O Sujeito Cerebral - Um Esboço Histórico e Conceitual

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O sujeito cerebral.

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  • P o l i s e P s i q u e , V o l . 1 , n 1 , 2 0 1 1 P g i n a | 169

    O sujeito cerebral: um esboo histrico e conceitual

    (original em Francs, Le Sujet Crbral, publicado na PSN, volume III, numro 11, janvier-

    fvrier 2005)

    El sujeto cerebral: un esbozo histrico y conceptual

    The cerebral subject _ an historical outline on the anthropology

    of "brainhood"

    Fernando Vidal

    Instituto Max Planck de Histria das Cincias, Berlim, Alemanha.

    Resumo

    Desde meados do sculo XX, numerosos discursos e prticas, dentro e fora das disciplinas

    cientficas e filosficas, tm apresentado o desenvolvimento da noo de ser humano como

    um sujeito cerebral. O crebro concebido como a nica parte do corpo que devemos

    possuir, e que deve ser nossa, para que sejamos ns mesmos. J que a personalidade a

    qualidade ou condio para ser considerado um indivduo, a cerebralidade , dessa forma, a

    qualidade ou condio de ser um crebro. Esta propriedade define o sujeito cerebral. A

    antropologia da cerebralidade pode parecer uma conseqncia natural do progresso das

    neurocincias mas procede de desenvolvimentos das filosofias da matria e da identidade

    pessoal do sculo XVII. As neurocincias confirmam e reforam esta perspectiva. O autor

    delineia a narrativa histrica relacionada ao desenvolvimento do sujeito cerebral assim como

    alguns temas contemporneos que surgem a partir das neurocincias.

    Palavras-chave: Cerebralidade, Corpo, Identidade Pessoal, Sujeito Cerebral

    Resumen

    Desde los medios del siglo XX, numerosos discursos y prcticas, adentro y afuera de las

    disciplinas cientficas y filosficas, han demostrado lo desarrollo de la nocin de ser humano

    como un 'sujeto cerebral'. El cerebro es concebido como la nica parte del cuerpo que

    debemos poseer y que debe ser nuestra para que seamos nosotros mismos. Como la

    personalidad es la cualidad o condicin para ser considerado un indivduo, la 'cerebralidad' es

    as la cualidad o condicin de ser un cerebro. Esta propiedad define el sujeto cerebral. La

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    antropologa de la 'cerebralidad' puede parecer una consecuencia natural del progreso de las

    neurociencias pero procede de los desarrollos de las filosofias de la materia y de la identidad

    personal del siglo XVII. Las neurociencias conferman y fortalecen esta perspectiva. El autor

    delinea la narrativa histrica relativa a lo desarrollo de lo sujeto cerebral as como unos temas

    de las neurociencias.

    Palabras clave: Cerebralidad, Cuerpo, Identidad Personal, Sujeto Cerebral

    Abstract

    Since the middle of the 20th century, numerous discourses and practices, both within and

    outside scientific and philosophical disciplines, have manifested the development of the

    notion of the human being as a cerebral subject. The brain appears to be the only organ of the

    body that we need, and that has to be exclusively ours, in order for each individual to be

    himself or herself. Since personhood is the quality or condition of being an individual person,

    brainhood is thus the quality or condition of being a brain. This property defines the cerebral

    subject. The anthropology of brainhood may seem a natural consequence of progress in the

    neurosciences. However, it is rooted in 17th-century developments in the philosophies of

    matter and personal identity. The neurosciences confirm and reinforce this perspective. The

    author outlines the historical narrative concerning the development of the cerebral subject as

    well as some contemporary issues arising from the neurosciences.

    Keywords: Brainhood, Body, Personal identity, Cerebral subject

    Ele pensa, logo ele vende.

    Jonathan Keats, um artista de So

    Francisco, registrou os direitos de seu

    crebro como se esse fosse uma escultura

    fabricada pelo pensamento, depois colocou

    seus neurnios venda no mercado,

    lanando seu negcio com uma

    apresentao pblica de imagens digitais

    de seu crebro em atividade. Keats espera

    reunir fundos suficientes para cobrir o

    custo de manter o rgo em funcionamento

    pelo menos 70 anos aps sua morte, o que

    lhe outorga a lei sobre a propriedade

    intelectual

    (http://cnewmark.com/keats.html; Singel.

    2003). Menos ldicos, alguns de seus

    compatriotas seguem a ltima moda em

    matria de criogenia: congela-se o crebro

    unicamente, que permanece desse modo a

    espera do dia em que ele poder ser posto

    em funcionamento para sempre. a

    chamada neuropreservao

    (http://www.alcor.org/FAQs/faq02.html#n

    europreservation). A idia no totalmente

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    nova. Em um conto de 1960, Roald Dahl

    relata como William, agonizando, escolhe

    sobreviver sob a forma de um crebro

    flutuante em uma soluo, com um globo

    ocular afixado para continuar a ler o jornal

    (Dahl, 1979). Encontra dificuldade de faz-

    lo, visto que sua mulher faz a partir de

    ento diante dele todas as coisas que o

    desagradam... No que concerne o modo de

    sobrevida de seu heri, Dahl utiliza to

    somente um motivo j corrente na fico.

    Ora, mesmo que, uma vez que esto vivos,

    nem os personagens reais, nem os fictcios

    se apercebem como estando literalmente

    reduzidos ao crebro, conservando-o que

    eles esperam sobreviver.

    O crebro reconhecido como

    sendo a nica parte do corpo que devemos

    possuir, e que deve ser nossa, para que

    sejamos ns mesmos; ele aparece como o

    nico rgo indispensvel a existncia do

    eu e a manuteno da identidade pessoal.

    Ocorre com ele algo diverso do que com o

    resto do corpo. Se transplantarmos o

    crebro de A para o corpo de B, no B

    que recebe um novo crebro, mas A que

    ganha um novo corpo. na medida em que

    o crebro define a pessoa, que somos um

    sujeito cerebral. Existe aqui muito mais do

    que um jogo de artista conceitual ou de

    uma fantasia de loucos por eternidade.

    O que acabamos de nomear sujeito

    cerebral impe-se como uma figura

    antropolgica, cuja importncia no cessa

    de aumentar desde meados do sculo XX,

    e cujas manifestaes se multiplicam fora

    das disciplinas mais diretamente afins.

    Estaramos tentados a atribuir suas origens

    ao progresso das neurocincias.

    Gostaramos, entretanto, de sugerir um

    percurso inverso. A idia de que somos

    essencialmente nosso crebro precede o

    desenvolvimento das neurocincias para

    enraizar-se nas filosofias da matria e da

    identidade pessoal do fim do sculo XVII.

    Desde o sculo XIX, dados cientficos

    parecem corrobor-la. Nos anos 60, as

    fices relativas ao crebro tornam-se um

    instrumento aparentemente incontornvel

    para filosofar sobre a identidade pessoal.

    mais ou menos desta poca que podemos

    datar o predomnio da cerebralidade

    como propriedade definidora do ser

    humano, bem como do sujeito cerebral

    como figura antropolgica. A utilizao

    das fices filosficas sobre o crebro

    coincide cronologicamente com o

    crescimento do peso simblico,

    institucional e financeiro da pesquisa

    neurocientfica, e com a percepo de que

    se trata de um dos domnios mais decisivos

    para o futuro da humanidade. Esta

    convico afirma-se cada vez mais. Os

    anos 90 foram o Decnio do Crebro;

    acreditando-se em Jean Pierre Changeux, o

    sculo XXI ser o sculo (Changeux,

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    2000). Diversas tentativas emergem para

    captar os fundamentos cerebrais de

    fenmenos individuais ou sociais, como

    para aproximar as cincias humanas das

    neurocincias ou pensar os numerosos

    problemas levantados por essas ltimas.

    Com efeito, as disciplinas neuro

    se multiplicam. O prefixo existe desde o

    sculo XVI tal qual, mas o termo

    neurocincias nasce nos anos 60.

    Palavras anlogas seguiram-se, e falamos

    hoje no somente de neuropediatria, de

    neuropsiquiatria, ou de neurogerontologia,

    de neurolingstica, ou de neuropsicologia,

    mas tambm, pouco a pouco, de

    neurofilosofia, neuroeducao,

    neuroesttica, neurotica, neuroeconomia,

    neuroteologia, neuropsicanlise... Mesmo

    que estas reas tornem-se autnomas ou

    permaneam como zonas de interseco ou

    de interao entre as neurocincias e as

    cincias humanas, seus nomes so por si

    prprios significativos. Eles desvelam o

    poder publicitrio e legitimador das

    atividades que chamam para si as cincias

    do crebro. Ao mesmo tempo, a

    nomenclatura em voga declara a novidade

    dos desafios que lanam as neurocincias e

    a esperana que elas levantam de chegar a

    compreender os fundamentos neuronais

    dos processos estudados pelas cincias

    humanas, at mesmo de remanejar essas se

    apoiando no conhecimento do crebro. A

    neurotica distingue-se pelo fato de no se

    limitar a pesquisa das bases neurolgicas

    do comportamento moral; antes, ela

    acentua as conseqncias ticas, sociais,

    legais e mesmo polticas dos saberes

    neurocientficos (Blank, 1999, Marcus,

    2004).

    Nenhum desses domnios

    homogneo e, apesar de suas tendncias

    reducionistas e crtico-cntricas, bem

    como sua confiana algumas vezes acrtica

    frente s tcnicas de imagem cerebral, eles

    tendem a pesquisar na interdisciplinaridade

    e no dilogo entre as disciplinas.

    Diferentemente interessadas esto as

    empresas com o objetivo lucrativo, como a

    neurotecnologia, o neurofitness ou a

    neuropreservao j mencionada. Ora,

    todos so sinais no somente da presena

    das neurocincias na cultura

    contempornea, mas tambm de uma

    progresso notvel na cerebralizao do

    sujeito. o desenvolvimento desse sujeito

    cerebral que eu gostaria aqui de discutir em

    uma perspectiva histrica.

    A alma e o crebro

    Primeiramente, convm diferenciar

    a questo do sujeito cerebral daquela das

    relaes entre alma e o corpo. Para

    simplificar podemos dizer que, na histria

    das idias concernente a essas relaes,

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    houve no mundo cristo ocidental dois

    momentos tericos principais (aristotlico

    e ps-aristotlico) e uma tradio

    fisiolgica derivada de Galeno.

    A alma como forma e a alma racional

    De acordo com um esquema que

    prevalece at o fim do sculo XVI, a alma

    (psukh, anima) est definida nos termos

    de Aristteles, como a forma de um

    corpo natural que tenha vida em potncia

    (Aristteles, 1966; 412a20). Ela um

    princpio de vida que permite a realizao

    das potencialidades de certos tipos de

    matria e no pode realmente ser separada

    do corpo. Se o olho fosse um animal

    completo, diz Aristteles, a vista seria a

    alma dele; ora, o olho a matria da

    viso e essa desaparecendo, ele no mais

    um olho, se no por homonmia como um

    olho de pedra ou desenhado (Aristteles,

    1966, 412b20). Assim concebida, a alma

    responsvel por todas as funes essenciais

    dos seres vivos. Essas so tradicionalmente

    definidas como faculdades: vegetativas

    (nutrio, crescimento e reproduo),

    sensitivas e motoras (sentidos externos e

    internos, movimento fsico e faculdade

    apetitiva), e racionais ou intelectivas

    (Wright, Potter, 2000). O ser humano

    possui todas essas faculdades; os animais

    no humanos possuem apenas as

    sensitivas, motoras e vegetativas; as

    plantas somente as ltimas. Mas todos so

    animais com corpos providos de uma

    alma; eis porque at o fim do sculo XVII,

    o termo psicologia (j utilizado em torno

    de 1570) designa uma cincia genrica dos

    seres vivos (Vidal, 2006).

    A alma intelectual ou racional

    levanta problemas particulares. Aristteles

    fala de uma inteligncia ativa separvel,

    imortal e eterna. Esta noo de aparncia

    pouco Aristotlica engendra interminveis

    debates. Entretanto, no sculo XIII, a igreja

    declara que alma uma substncia

    indivisvel e que a alma racional per se et

    essentialier a forma do corpo. Mais

    tarde, com a desintegrao dos quadros

    aristotlicos, a alma cessa de ser

    responsvel pelas funes vegetativas,

    nutritivas e sensitivas e, como na filosofia

    de Ren Descartes (1596-1650), ela torna-

    se igual ao esprito (mens) ou alma

    racional. Essa transformao do conceito

    de alma torna problemtica as relaes

    entre alma e corpo.

    Nos sculos XVII e XVIII,

    enumeramos trs posies principais

    (Baertschi, 1992). De acordo com o

    sistema da influncia fsica, as duas

    substncias agem materialmente uma sobre

    a outra. No ocasionalismo do padre

    Nicolas Malebranche (1638-1715), Deus

    o agente causal de seu lao: quando a alma

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    quer fazer mexer o corpo, Deus o faz se

    mexer. Finalmente, Gottfried Wilhelm

    Leibniz (1646-1716) compara a relao da

    alma e do corpo quela de dois pndulos

    perfeitamente sincronizados, regulados por

    uma harmonia preestabelecida. Tende-se

    ento a diferenciar o postulado da unio

    alma-corpo da questo das modalidades

    empricas de seu comrcio. Enquanto

    que a unio aceita como um fato,

    misterioso em si prprio, mas confirmado

    pela f, a razo e experincia, a interao

    ou commercium tornam-se um objeto

    prprio da psicologia emprica tal qual ela

    se desenvolve no sculo XVIII (Vidal,

    2006).

    A tradio fisiolgica de Galeno

    A despeito das diferenas

    fundamentais entre os momentos

    aristotlicos e ps-aristotlicos, a maneira

    de conceber a interao da alma e do corpo

    repousou durante numerosos sculos sobre

    as teorias fisiolgicas de Galeno, filsofo e

    mdico grego do sculo II (Temkin, 1973).

    Apoiando-se em idias atribudas a

    Hipcrates, mdico grego nascido

    aproximadamente em 460 a.C., Galeno

    define a sade como o equilbrio entre os

    quatro fluidos ou humores do corpo: o

    sangue, a bile amarela, a bile negra e a

    fleuma. Esses humores so compostos por

    quatro elementos e suas qualidades (o

    fogo/quente, o ar/frio, a gua/mida e a

    terra/seca). Suas combinaes e dosagens

    no corpo constituem temperamentos;

    esses determinam a personalidade e as

    capacidades do indivduo, como declara o

    ttulo do influente tratado galnico, Quod

    animi mores corporis temperamenta

    sequantur (As faculdades da alma

    acompanham os temperamentos do corpo)

    (Galeno, 1995). O ser humano um

    composto de duas substncias, o corpo e a

    alma ligados intimamente entre si e em

    constante interao.

    Resta explicar esta interao. O

    corpo segundo Galeno comporta trs

    sistemas: o crebro e os nervos, o corao

    e as artrias, o fgado e as veias. O sangue

    formado no fgado transportado pelas

    veias para o resto do corpo, onde ele serve

    a nutrio e ao crescimento sob a forma de

    um esprito natural. Aps misturar-se ao

    ar nos pulmes e passado no corao ele se

    transforma em dois tipos de pneuma: uma

    parte torna-se o esprito vital de que

    dependem as funes vitais e locomotoras;

    outra d ao crebro o esprito animal

    necessrio as sensaes e as funes

    intelectivas. As qualidades (temperatura,

    densidade, etc.) desses espritos procedem

    dos humores, em particular do sangue: se

    esse muito frio, os espritos animais

    correm o risco de assim o serem e os atos

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    mentais que deles dependem sero ento

    fracos e lentos.

    Localizadas nos ventrculos

    cerebrais entre os quais circulam os

    espritos animais, as faculdades articulam-

    se entre si a partir do princpio de que nada

    h no intelecto que no tenha passado

    primeiro pelos sentidos. Os dados dos

    sentidos externos (viso, audio, paladar,

    tato e olfato) esto reunidos por um dos

    sentidos internos, o senso comum

    (sensus communis), colocando em

    funcionamento a memria, bem como a

    imaginao sob suas formas passiva e ativa

    (via imaginativa, fantasia) (Figura 1).

    Sobre a base das imagens sensveis assim

    geradas, o intelecto forma os conceitos e

    realiza suas outras operaes especficas

    (Clarke, Dewhurs, 1972; Harvey, 1975;

    Kemp, 1990). O crebro preenche a funo

    essencial de fabricar e de guardar os

    espritos animais, mas so esses espritos

    por si mesmos, e o temperamento no seu

    conjunto, que ditam o carter e as aptides

    de uma pessoa. Exemplar desta tradio

    o clebre Exame de engenhos pelas

    cincias. Seguindo o Quod animi mores, o

    mdico espanhol Juan Huarte de San Juan

    (1530?-1592) estabelece a as

    correspondncias entre o mido e a

    memria, o seco e o entendimento, o

    quente e a imaginao, e delas tira

    conselhos e prescries concernentes as

    atitudes e as inclinaes individuais, bem

    como os ofcios (dos mais humildes aos

    mais elevados) aos quais convm a cada

    um se consagrar em funo de seu

    temperamento (Huarte,1989).

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    O rgo da alma

    Nos sculos XVII e XVIII, o

    momento em que a teoria humoral perde

    sua importncia, os nervos, concebidos

    como fibras slidas e elsticas ou como

    tubos ocos tornam-se os intermedirios

    entre a alma e o corpo. Seu hipottico

    ponto de convergncia no interior do

    crebro freqentemente considerado

    como sede da alma, quer dizer, no

    um lugar em que a alma se encontraria

    materialmente, mas o rgo onde ela

    interage com o corpo. Para Descartes, a

    alma exerce imediatamente suas

    funes junto glndula pineal. Pelo

    fato dela no ser dupla, a epfise

    escolhida como o rgo onde as

    impresses transmitidas pelos rgos

    sensoriais (sempre duplos) renem-se

    em uma nica percepo. De acordo

    com a tese cartesiana, os espritos

    animais circundam a glndula pineal.

    Quando a alma quer recordar-se de

    alguma coisa, sua vontade faz com que

    a glndula mova os espritos at que

    eles encontrem os traos do objeto em

    questo (as recordaes, explica

    Descartes, formam-se pelo alargamento

    dos poros da glndula sob o efeito da

    passagem dos espritos animais)

    (Descartes, 1649, 1664). Thomas Willis

    (1621-1675) contrariamente a

    Descartes, anatomista e mdico ingls,

    postula a localizao distribuda das

    faculdades da alma. A imaginao

    sendo uma ondulao dos espritos do

    centro do crebro para sua

    circunferncia, tem sua sede no corpo

    caloso. A memria depende dos

    espritos impulsionados da periferia

    para o centro; sua sede ento no

    crtex. A coordenao sensorial feita

    no corpo estriado. Colocado entre a

    mencionada medula oblonga (mais ou

    menos nosso tronco cerebral) e o corpo

    caloso, o corpo estriado recebe as

    impresses que sobem para o crebro e

    constitui a via pela qual os espritos

    animais descem para as extremidades

    (Willis, 1978).

    Os dois modelos se confrontam

    ao longo do sculo XVII. No que se

    referem sede unitria da alma, os

    dados principalmente anatomoclnicos,

    vem no apoio de vrias localizaes: o

    corpo caloso, o centro oval, as paredes

    dos ventrculos. Mas a diversidade das

    teorias e o carter pouco slido das

    provas justificam a opinio de Albert de

    Haller (1708-1777) em uma carta

    Charles Bonnet datada de 22 de janeiro

    de 1771: colocando a sede da alma

    globalmente na massa branca do

    encfalo, estima-se que se em razo do

    carter indivisvel da alma, a Filosofia

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    favorece uma parte nica, indubitvel

    que a anatomia no diz nada sobre esse

    assunto (Bonnet, 1766, p. 90).

    Nos dois casos, o crebro

    prevalece como rgo do eu. O

    materialismo no necessita disso. De

    fato no entre os materialistas das

    Luzes que encontramos as expresses

    mais completas sobre o sujeito cerebral

    nascente. Por exemplo, Julien Offray de

    La Mettrie (1709-1751) explica que se a

    sede da alma tem uma certa extenso ou

    se a alma tem diferentes sedes no

    crebro, ento ela no inextensa e no

    existe enquanto substncia imaterial (La

    Mettrie, 1987). Mas acreditando na

    alma que ainda durante certo tempo

    elaboram-se as psicologias empricas.

    Dois dos mais importantes pensadores

    psicolgicos das Luzes, o escocs David

    Hartley (1705-1757) e o genebrino

    Charles Bonnet (1720-1793) so

    cristos convictos. Ora, precisamente

    porque eles aderem definio do ser

    humano como composto de alma e de

    corpo, procuram compreender o

    funcionamento mental enfatizando o

    papel do crebro e dos nervos como

    sede da alma e como elo entre as duas

    substncias (Bonnet, 1760, Hartley,

    1967). Trata-se, porm, de

    neuropsicologias conjecturais e o

    crebro permanece, largamente por

    razes tcnicas, difcil para ser

    examinado cientificamente (Begley,

    Wright, Church, Hager, 1992, Brazier,

    1988, Clarke, OMalley, 1968, Finger,

    1994). A cerebralizao ou

    neurologizao do psiquismo,

    levemente avanada nas psicologias das

    Luzes, no se origina, portanto dos

    conhecimentos sobre a funo e a

    estrutura do crebro, mas da corrente

    que os precede, em direo a uma

    antropologia da cerebralidade.

    Das origens do sujeito cerebral: o ser

    humano na tradio crist

    Apesar da importncia que

    atribuem ao crebro, no so nem a

    fisiologia galnica, nem a psicologia do

    sculo XVIII que determinam a

    emergncia do sujeito cerebral. A fim

    de compreender os fatores cientficos e

    filosficos que conduzem a ela, convm

    lembrar que o cristianismo repousa

    sobre o dogma da Encarnao. Houve

    certamente debates sobre a natureza do

    corpo de Cristo e sobre a relao exata

    entre suas duas naturezas, humana e

    divina. Entretanto, conforme a posio

    que se tornou oficial, o Cristo , ao

    mesmo tempo, Deus e um homem

    dotado de um corpo humano. Eis

    porque inexato dizer que conforme a

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    tradio crist, ser humano significa

    ser um esprito encarnado [embodied

    mind] (Porter, 1992, p. 212). O

    cristianismo postula que o homem

    feito de corpo e alma, mas no admite

    que a pessoa possa existir de outro

    modo que no somente composto por

    essas duas substncias. O homem no

    simplesmente algum que tem um

    corpo, mas algum cuja existncia

    corporal (Bynum, 1995, Keenan, 1994,

    Vergote, 1979).

    A conseqncia mais radical de

    tal antropologia concerne ressurreio

    dos corpos. A histria dos debates sobre

    esta doutrina ilustra admiravelmente a

    origem e as implicaes do sujeito

    cerebral (Vidal, 2002). Ressuscitando,

    supe-se que cada um de ns retome

    seu prprio corpo. Derivam da

    problemas complexos, mesmo alm da

    questo de saber como o corpo se

    reformar e ser o mesmo apesar das

    novas propriedades que o tornam

    espiritual. Cristo tendo declarado que

    nenhum cabelo de sua cabea ser

    perdido (Lucas 21. 18), os telogos

    dOrigenes e Atengoras a Santo

    Agostinho e So Toms de Aquino

    perguntam-se onde terminar a

    substncia do corpo terrestre. Para que

    corpo, por conseguinte, retornar a

    carne de indivduo devorado por um

    canibal ou por um animal

    posteriormente comido pelos seres

    humanos? As respostas variam no

    decorrer dos sculos, mas todas insistem

    na identidade do corpo terrestre e do

    corpo espiritual como condio

    indispensvel identidade dos

    ressuscitados. No se concebe uma

    pessoa sem o corpo inteiro, nem a

    identidade pessoal sem identidade

    corporal.

    Esta antropologia questionada

    no fim do sculo XVII. Observa-se

    ento uma desencarnao relativa da

    noo de pessoa, uma psicologizao da

    identidade pessoal e uma focalizao

    crescente do corpo sobre o crebro. De

    uma parte, conforme a filosofia

    corpuscular da matria, essa uniforme

    e formada por partculas cujos

    acidentes mecnicos (tais quais o

    movimento ou a posio no espao)

    explicam todos os fenmenos naturais.

    Na medida em que as coisas no

    diferem pelos seus componentes

    materiais ltimos, elas podem se

    transformar, em determinadas

    condies, em no importa qual outra

    coisa. Aplicada a ressurreio, uma tal

    filosofia implica que um corpo

    ressuscitado (e conseqentemente uma

    pessoa) no necessita ser formada pela

    mesma matria que o corpo terrestre

  • P o l i s e P s i q u e , V o l . 1 , n 1 , 2 0 1 1 P g i n a | 179

    correspondente para poder ser dito o

    mesmo. A continuidade material

    perde-se enquanto elemento constitutivo

    da identidade pessoal.

    A pessoa e seu crebro

    Por outro lado, em 1694, na

    segunda edio de seu Ensaio

    concernente ao entendimento humano

    (Locke, 1951), John Locke (1632-1704)

    distingue o homem da pessoa, e

    define a identidade dessa como uma

    continuidade da conscincia e memria.

    Se a conscincia de uma pessoa

    permanecesse fixa ao seu dedo mnimo

    enquanto esse separado do resto do

    corpo, para Locke evidente que o

    dedo mnimo seria a mesma pessoa (

    17); a alma de um prncipe no corpo de

    um sapateiro o tornaria a mesma pessoa

    que o prncipe, apesar de que o homem

    seria diferente ( 15). A partir da, a

    sentena do Juzo Final se justificar

    pela convico em si de onde estaro

    todos os Homens, que em qualquer

    Corpo que eles apaream, ou a qualquer

    Substncia que este sentimento interno

    esteja ligado, que eles tenham eles

    mesmos cometido tais ou quais aes,

    que eles merecem o castigo que lhes

    infligido por t-las cometido ( 27).

    Dentro de tal noo de eu ou de

    pessoa (sinnimos em Locke, 26),

    no diremos mais que somos um corpo,

    mas que temos um corpo. Objetivado e

    distanciado do eu, o corpo revela-se ser,

    na perspectiva do individualismo

    possessivo, uma coisa que possumos e

    no mais o que somos (Taylor, 1989).

    A identidade pessoal torna-se

    assim psicolgica e independente da

    identidade corporal. Mas a

    desencarnao no total. Na medida

    em que a pessoa depende da memria e

    da conscincia, o crebro a nica parte

    do corpo de que ela necessita para ser

    ela mesma. Bonnet, cujo retrato o

    mostra meditando sobre a vida futura

    [Figura 2], retira da as conseqncias

    para a doutrina da ressurreio. Ele

    especula que nossos crebros abrigam

    uma espcie de minsculo crebro

    indestrutvel que, combinado a

    propriedades do tipo embriolgico, se

    desenvolver quando do Juzo Final,

    restituindo a cada um sua personalidade

    e lhe concedendo um corpo diferente do

    terrestre. O que interessa a partir da, a

    unio da alma e do crebro. Bonnet d a

    esta primeira forma de sujeito cerebral

    uma expresso sucinta quando escreve

    que se a Alma de um Huron pudesse

    herdar o crebro de Montesquieu,

    Montesquieu ainda criaria [Bonnet C.

    1760, 771].

  • P o l i s e P s i q u e , V o l . 1 , n 1 , 2 0 1 1 P g i n a | 180

    Na ausncia cada vez maior do

    conceito de alma, esta viso de ser

    humano e do lugar do crebro fortalece-

    se consideravelmente no sculo XIX

    (Breidbach, 1997, Hagner, 1997). A

    frenologia o exemplo mais conhecido

    (Renneville, 2000). Fundamentada nas

    teorias do mdico vienense Franz

    Joseph Gall (1758-1828), ela ao

    mesmo tempo uma psicologia das

    faculdades, uma teoria do crebro, e um

    mtodo para estudar o carter e as

    aptides. Repousa sobre vrias

    suposies: o crebro o rgo da

    mente; a mente composto de

    capacidades inatas; cada uma dessas

    capacidades tem sua prpria sede ou

    rgo dentro do crebro; o tamanho

    de um rgo proporcional a fora da

    capacidade que lhe corresponde; o

    crebro moldado pelo tamanho desses

    rgos; o crnio devendo sua forma ao

    crebro, as proeminncias de sua

    superfcie revelam as aptides e as

    inclinaes individuais.

    As proposies desses rgos,

    numerosas e variadas como mostra a

    Figura 3, revelam-se como imaginrias.

    Contudo, algumas premissas

    frenolgicas parecem confirmadas na

    segunda metade do sculo XIX, quando

    acontecem grandes progressos no

    Figura 2. CHARLES BONNET (1720-1793)

    leo sobre tela por Jens Juel, 1777, biblioteca

    pblica e universitria, Genebra. Fotografia:

    Centro de Iconografia de Genebra

    M. Juel (escreve Bonnet), pintou-me

    enquanto eu estava mergulhado em uma

    profunda meditao sobre a reconstituio e

    o aperfeioamento futuros dos seres vivos.

    Percebemos, suficientemente, a dificuldade

    para transmitir esse carter meditativo; mas

    para os grandes talentos, inspirados pela

    genialidade, nada difcil. (C. Bonnet,

    obras, vol.1). O livro, uma Bblia, est aberto

    na primeira epstola de So Paulo aos

    Corntios, texto fundador da doutrina crist da

    ressurreio. Nele distinguimos, no alto da

    pgina, o que tu semeias no vivificado, se

    primeiro no morrer.; no alto da outra

    pgina, Onde est, morte, a tua vitria?

    Onde est, morte, o teu aguilho? (1

    Cor.15.36 e 55)

  • P o l i s e P s i q u e , V o l . 1 , n 1 , 2 0 1 1 P g i n a | 181

    conhecimento do crebro,

    principalmente a respeito das

    localizaes e da citoarquitetura. As

    descobertas neurocientficas confirmam

    a idia de que o crebro o rgo do eu.

    Esta crena se concretiza em inmeros

    domnios, desde a anatomopatologia e a

    localizao das doenas psquicas at a

    antropologia fsica e a diferenciao de

    raas e de sexos. As pesquisas sobre os

    gnios, os criminosos e os doentes

    mentais supem que as qualidades

    positivas ou negativas dos sujeitos esto

    inscritas nos seus crebros. Desde

    ento, o postulado neurofilosfico de

    uma correlao entre os estados

    cerebrais e psicolgicos no perdeu em

    nada a sua fora; pelo contrrio, foi

    reforado graas as imagens produzidas

    pelas tcnicas digitais de imagem

    cerebral.

    [Figura 4]. Essas imagens divulgadas pela mdia parecem imediatamente legveis; e

    temos a tendncia de ver nelas um verdadeiro retrato do que ns somos (Dumit, 2004).

    Figure 3. Verso tardia de uma cabea frenolgica. Em

    amarelo os sentidos da percepo (da faculdade de

    observao linguagem); em branco aqueles do

    pensamento (memria, sentido de combinao crtica);

    em rosa, os sentidos morais (benevolncia, crena na

    autoridade, esperana, crena); em azul, os sentidos

    artsticos (construo, imitao, contraste, ideal e

    sentido da beleza natural); em verde, os instintos

    dominantes (poder de concentrao, segurana,

    vaidade, prudncia, calma, firmeza, meticulosidade);

    em cinza, aqueles da conservao (luta, ao, nutrio,

    dissimulao, aquisio); em marrom, os instintos de

    sociabilidade (pulso sexual, amor pelos filhos, amor

    pela ptria e pela famlia).

    In Max von Kreusch, Praktische Phrenologie.

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    Beurteilung auf Grund der Kopfform fr Unterricht

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  • P o l i s e P s i q u e , V o l . 1 , n 1 , 2 0 1 1 P g i n a | 182

    O crebro e a filosofia da identidade

    pessoal

    Os desenvolvimentos histricos

    esboados acima contriburam para

    estabelecer a antropologia da

    cerebralidade implcita nos desejos de

    imortalidade atravs da

    neuropreservao evocadas no incio.

    Jonathon Keats e os adeptos da

    criogenia personificam o sujeito

    cerebral. Um momento crucial, a

    cristalizao desse enquanto figura

    chave do pensamento contemporneo,

    foi a utilizao de fices ao estilo de

    John Locke, nas discusses filosficas

    sobre a identidade pessoal. De acordo

    com meu conhecimento, o primeiro

    exemplo encontra-se no Self Knowledge

    and Self Identity, livro de Sidney

    Shoemaker, lanado em 1963.

    Examinando os critrios

    corporais e da identidade pessoal,

    Shoemaker apresenta a fico lockeana

    da alma do prncipe no corpo do

    sapateiro descrevendo-a como um

    raciocnio concernente a uma mudana

    de corpo (change-of-body-argument), e

  • P o l i s e P s i q u e , V o l . 1 , n 1 , 2 0 1 1 P g i n a | 183

    como significando que uma pessoa pode

    cessar de ter o corpo que havia tido, o

    seu, no passado, obtendo um novo

    (Shoemaker, 1963, p. 22). Tentando

    aprofundar a questo, Shoemaker

    imagina que a medicina inventou uma

    tcnica graas a qual um crebro pode

    ser extrado do crnio de um paciente,

    para ser concertado. Ora um dia aps a

    operao, assistentes invertem os

    crebros de Brown e Robison. Um dos

    homens morre. O outro, que Shoemaker

    batiza Brownson, tem o corpo de

    Robison e o crebro de Brown. Quando

    Brownson retoma a conscincia, ele se

    espanta com sua aparncia; seu corpo,

    ele diz, o cadver deitado no leito

    vizinho! Quando lhe perguntado seu

    nome ele responde Brown, reconhece

    a mulher de Brown, bem como sua

    famlia, e pode descrever os

    acontecimentos da vida de Brown. Em

    suma, ele tem todos os traos

    psicolgicos que tinham sido de Brown.

    Mesmo que Brownson tenha o

    corpo de Robison, pensamos que ele

    na realidade Brown. Ele mudou de

    corpo, mas tem a mente, a biografia e a

    personalidade de Brown. Shoemaker

    no retira dessa experincia a concluso

    de que a identidade do crebro constitui

    o elemento definidor da identidade

    pessoal. Se apesar da troca de rgos,

    Brownson agisse da maneira de

    Robison, no diramos que ele Brown

    apenas porque tem o crebro desse. O

    filsofo infere da que a relao entre

    estado do crebro e os traos

    psicolgicos da pessoa causal e

    contingente, mas no logicamente

    necessria. O fato de que Brownson

    tenha o crebro de Brown explica que

    ele tenha a psicologia de Brown mas

    nada mais. Conseqentemente, se

    decidirmos que Brownson Brown,

    porque privilegiamos o critrio

    psicolgico em detrimento da no

    identidade corporal (Shoemaker, 1963,

    p. 24-25). Evidentemente, falando de

    mudana de corpo e de no

    identidade corporal, Shoemaker parece

    identificar o corpo ao corpo

    descerebrado, e esquecer que o crebro

    um rgo corporal. Entretanto, o que

    no era verdadeiro nos anos 60 tornou-

    se depois, considerando que, quando se

    fala do crebro na mdia, poucas

    imagens so to divulgadas quanto a

    dicotomia entre o corpo e o crebro. O

    crebro, pode-se ler no New Scientist,

    no o corpo, faz com que os atletas se

    sintam fatigados (J. Randerson, Brain

    not body makes athletes feel tired,

    nmero de 29/07/04).

    A utilizao de fices

    cirrgicas do crebro foi durante longo

  • P o l i s e P s i q u e , V o l . 1 , n 1 , 2 0 1 1 P g i n a | 184

    tempo um dos principais instrumentos

    para pensar filosoficamente a identidade

    pessoal. O crebro impunha-se como

    limite somtico do eu, de modo que eu

    cesso de ser eu mesmo se dele sou

    amputado. Confim da identidade, at

    rgo consubstancial do eu, o crebro

    aparece como uma das fronteiras

    maiores da cincia e como o desafio

    principal de saber sobre o que faz o ser

    humano enquanto humano. Alm de sua

    funo de causa, fundamento material

    ou condio de possibilidade, ele possui

    certo primado ontolgico. X com o

    crebro de Y Y; no podemos trocar

    de crebro sem nos tornarmos outro. O

    critrio cerebral invalida o critrio

    corporal de identidade apenas se

    imaginamos o corpo como se fosse um

    corpo descerebrado. Todavia, ele apia-

    se sobre uma reduo radical do corpo

    prprio, sobre uma redefinio do corpo

    como sendo aquilo que, materialmente

    falando, fundamentalmente a pessoa.

    Desde ento, uma pessoa P idntica a

    uma pessoa P* se e somente se P e P*

    so dotadas de um nico e mesmo

    crebro funcional (Ferret, 1993, p. 30).

    Tal a frmula lgica do sujeito

    cerebral. Ter o mesmo crebro ter o

    mesmo corpo e ser a mesma pessoa.

    No h necessidade de aderir a

    tais frmulas para agir em funo de

    uma representao do homem como

    sujeito cerebral. Essa representao,

    problemtica mesmo na aplicao

    corrente dos critrios da morte cerebral

    (Schlich, Wiesemann, 2001), manifesta-

    se, como percebemos, em numerosos

    campos de atividade. Alm da

    neurofilosofia, da psicologia e das

    neurocincias, alm tambm das

    neurodisciplinas nascentes, ela inspira

    toda uma galxia em expanso de

    neurocrenas e de neuroprticas

    concernente ao bem estar e ao

    desenvolvimento pessoal, ao

    esoterismo, at mesmo a escatologia. As

    tcnicas de imagem cerebral engendram

    uma imagem digital da categoria de

    pessoa que modifica os indivduos

    condicionando-os a percepo que tem

    de si mesmos (Dumit, 2004). E mesmo

    que as prticas de modificao corporal

    paream designar o corpo como sede de

    identidade pessoal, elas implicam uma

    relao com o corpo tal qual o

    consideramos como uma coisa que ns

    possumos, antes do que como algo que

    ns somos (Andrieu, 2002,

    Featherstone, 2000, Le Breton, 2002).

    Ser de carne

    Vimos que a noo de ser

    humano como sujeito cerebral constitui

  • P o l i s e P s i q u e , V o l . 1 , n 1 , 2 0 1 1 P g i n a | 185

    uma ruptura com a tradio crist e

    supe uma psicologizao, bem como

    uma relativa desencarnao dos critrios

    definidores da identidade pessoal. Se tal

    viso de homem no evidentemente a

    nica na cultura contempornea, ela

    sem contestao uma das principais.

    Convm, portanto encar-la e interrog-

    la sobre seu alcance, seus limites, suas

    conseqncias. A reduo da identidade

    cerebralidade e do corpo prprio ao

    crebro, a relegao da experincia

    vivida, da histria do sujeito, do

    contexto social ou de seus modos de ser

    no mundo, comportam seguramente

    perigos quando, no momento de tomar

    decises polticas, jurdicas ou mdicas,

    trata-se de pensar no que o homem e

    de conseqentemente agir. necessrio

    destacar que a crtica do sujeito cerebral

    no exige que se negue o papel

    fundamental do crebro. Kathleen

    Wilkes, por exemplo, no seu brilhante

    Real People. Personal identity without

    thought experiments, pe em questo o

    valor das fices filosficas (Wilkes,

    1988). Isso no a impede de consagrar

    numerosas pginas ao crebro,

    insistindo na necessidade de no

    simplificar exageradamente a

    informao cientfica e de no limitar o

    crebro ao crtex. Dentro de outro

    estilo, Francisco Varela partia de uma

    crtica da equao crebro-corpo e do

    neuroreducionismo eliminativo para

    propor uma neurofenomenologia cujo

    propsito de reintegrar nas

    neurocincias a corporeidade e a

    experincia pessoal (Varela, 1996,

    Varela, Thompson, Rosch, 1991).

    Quanto a Paul Ricoeur ele ope o

    sujeito cerebral (que ele no identifica

    como tal) ao si (soi) como carne e a

    relao vivida (ento

    fenomenologicamente crucial) que

    podemos estabelecer com as partes do

    corpo ligadas ao movimento (a mo), a

    percepo (o olho), a emoo (o

    corao), ou a expresso (a voz)

    (Ricoeur, 1990).

    Essas tomadas de posio fazem

    por si s parte de um universo marcado

    pela figura do sujeito cerebral. A tarefa

    de examinar este universo com

    profundidade permanece a ser feita. Ela

    no de modo algum simples, visto que

    no podemos ser sem ao menos uma

    parte do crebro, e que estamos

    mergulhados em uma cultura da

    cerebralidade que nos molda. Os

    neurotransmissores nos fazem sentir,

    mas no crebro, em si, nenhuma

    sensao sentida. Quem praticam

    neurofitness querem que seu crebro se

    sinta mais jovem; contudo no neste

    rgo que eles podem localizar uma

  • P o l i s e P s i q u e , V o l . 1 , n 1 , 2 0 1 1 P g i n a | 186

    cinestesia qualquer. Entretanto, dada a

    natureza da psicologia e do crebro

    humana, possvel que as neuroprticas

    e os neurodiscursos em voga acabem

    por dar ao crebro o status

    fenomenolgico que segundo Ricoeur

    lhe falta. Trata-se a de questes abertas,

    como so ainda a maioria daquelas que

    dizem respeito ao sujeito cerebral. Aqui

    eu quis somente dar os primeiros passos

    e esboar uma problemtica, mas eu no

    poderia terminar sem dizer minhas

    preferncias, pelo menos indiretamente,

    oferecendo um smbolo que as

    resumem.

    Em 1991, Helen Chadwick cria

    uma obra de arte desconcertante (Figura

    5). Trata-se de uma fotografia impressa

    em uma placa de vidro e iluminada por

    trs. Seu ttulo: Auto-retrato.

    Substituindo o rosto por um crebro,

    Chadwick parece dizer que ela esse

    rgo. Entretanto, o crebro

    reproduzido no pode ser o seu; o so

    em contrapartida as mos, elemento

    tradicional do auto-retrato. Elas

    seguram o crebro de modo a evocar

    um gesto de oferenda ou de devoo,

    sacralizando assim o rgo e

    sublinhando sua fragilidade. Com sua

    forma nica e reconhecvel com as

    marcas e adornos que lhes so prprios,

    as mos seguram o crebro sobre o

    fundo de um tecido cor de carne, cujas

    dobras evocam ao mesmo tempo as

    circunvolues e a gola de renda que

    destaca o rosto em tantos grandes

    retratos barrocos. O conjunto remete a

    cerebralidade, mas tambm ao corpo

    inteiro da artista, a seu trabalho, a sua

    individualidade, a sua histria, a seu

    meio. Finalmente, no Eu sou meu

    crebro que diz o auto-retrato de Helen

    Chadwick. Antes se o crebro visto no

    centro da obra de arte, ele atesta que a

    pessoa que criou a obra no redutvel

    a seu crebro.

  • P o l i s e P s i q u e , V o l . 1 , n 1 , 2 0 1 1 P g i n a | 187

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    Fernando Vidal: Doutor em

    psicologia, diretor de pesquisa no

    Instituto Max Planck de Histria das

    Cincias (Berlim). Correspondncia:

    Max Planck Institut fr

    Wissenschaftsgeschichte. Boltzmannstr.

    22, D-14195 Berlin, Alemanha. E-mail:

    [email protected]

    Traduo: Maria Elsia Flores

    Filsofa (UFRGS). Diplme de Nancy -

    Aliana Francesa de Porto Alegre. E-

    mail: [email protected]

    Reviso tcnica: Marcos Adegas de

    Azambuja Doutorando em Psicologia

    Social PUCRS (bolsista CNPq).

    E-mail:[email protected]