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O sujeito cerebral.
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P o l i s e P s i q u e , V o l . 1 , n 1 , 2 0 1 1 P g i n a | 169
O sujeito cerebral: um esboo histrico e conceitual
(original em Francs, Le Sujet Crbral, publicado na PSN, volume III, numro 11, janvier-
fvrier 2005)
El sujeto cerebral: un esbozo histrico y conceptual
The cerebral subject _ an historical outline on the anthropology
of "brainhood"
Fernando Vidal
Instituto Max Planck de Histria das Cincias, Berlim, Alemanha.
Resumo
Desde meados do sculo XX, numerosos discursos e prticas, dentro e fora das disciplinas
cientficas e filosficas, tm apresentado o desenvolvimento da noo de ser humano como
um sujeito cerebral. O crebro concebido como a nica parte do corpo que devemos
possuir, e que deve ser nossa, para que sejamos ns mesmos. J que a personalidade a
qualidade ou condio para ser considerado um indivduo, a cerebralidade , dessa forma, a
qualidade ou condio de ser um crebro. Esta propriedade define o sujeito cerebral. A
antropologia da cerebralidade pode parecer uma conseqncia natural do progresso das
neurocincias mas procede de desenvolvimentos das filosofias da matria e da identidade
pessoal do sculo XVII. As neurocincias confirmam e reforam esta perspectiva. O autor
delineia a narrativa histrica relacionada ao desenvolvimento do sujeito cerebral assim como
alguns temas contemporneos que surgem a partir das neurocincias.
Palavras-chave: Cerebralidade, Corpo, Identidade Pessoal, Sujeito Cerebral
Resumen
Desde los medios del siglo XX, numerosos discursos y prcticas, adentro y afuera de las
disciplinas cientficas y filosficas, han demostrado lo desarrollo de la nocin de ser humano
como un 'sujeto cerebral'. El cerebro es concebido como la nica parte del cuerpo que
debemos poseer y que debe ser nuestra para que seamos nosotros mismos. Como la
personalidad es la cualidad o condicin para ser considerado un indivduo, la 'cerebralidad' es
as la cualidad o condicin de ser un cerebro. Esta propiedad define el sujeto cerebral. La
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antropologa de la 'cerebralidad' puede parecer una consecuencia natural del progreso de las
neurociencias pero procede de los desarrollos de las filosofias de la materia y de la identidad
personal del siglo XVII. Las neurociencias conferman y fortalecen esta perspectiva. El autor
delinea la narrativa histrica relativa a lo desarrollo de lo sujeto cerebral as como unos temas
de las neurociencias.
Palabras clave: Cerebralidad, Cuerpo, Identidad Personal, Sujeto Cerebral
Abstract
Since the middle of the 20th century, numerous discourses and practices, both within and
outside scientific and philosophical disciplines, have manifested the development of the
notion of the human being as a cerebral subject. The brain appears to be the only organ of the
body that we need, and that has to be exclusively ours, in order for each individual to be
himself or herself. Since personhood is the quality or condition of being an individual person,
brainhood is thus the quality or condition of being a brain. This property defines the cerebral
subject. The anthropology of brainhood may seem a natural consequence of progress in the
neurosciences. However, it is rooted in 17th-century developments in the philosophies of
matter and personal identity. The neurosciences confirm and reinforce this perspective. The
author outlines the historical narrative concerning the development of the cerebral subject as
well as some contemporary issues arising from the neurosciences.
Keywords: Brainhood, Body, Personal identity, Cerebral subject
Ele pensa, logo ele vende.
Jonathan Keats, um artista de So
Francisco, registrou os direitos de seu
crebro como se esse fosse uma escultura
fabricada pelo pensamento, depois colocou
seus neurnios venda no mercado,
lanando seu negcio com uma
apresentao pblica de imagens digitais
de seu crebro em atividade. Keats espera
reunir fundos suficientes para cobrir o
custo de manter o rgo em funcionamento
pelo menos 70 anos aps sua morte, o que
lhe outorga a lei sobre a propriedade
intelectual
(http://cnewmark.com/keats.html; Singel.
2003). Menos ldicos, alguns de seus
compatriotas seguem a ltima moda em
matria de criogenia: congela-se o crebro
unicamente, que permanece desse modo a
espera do dia em que ele poder ser posto
em funcionamento para sempre. a
chamada neuropreservao
(http://www.alcor.org/FAQs/faq02.html#n
europreservation). A idia no totalmente
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nova. Em um conto de 1960, Roald Dahl
relata como William, agonizando, escolhe
sobreviver sob a forma de um crebro
flutuante em uma soluo, com um globo
ocular afixado para continuar a ler o jornal
(Dahl, 1979). Encontra dificuldade de faz-
lo, visto que sua mulher faz a partir de
ento diante dele todas as coisas que o
desagradam... No que concerne o modo de
sobrevida de seu heri, Dahl utiliza to
somente um motivo j corrente na fico.
Ora, mesmo que, uma vez que esto vivos,
nem os personagens reais, nem os fictcios
se apercebem como estando literalmente
reduzidos ao crebro, conservando-o que
eles esperam sobreviver.
O crebro reconhecido como
sendo a nica parte do corpo que devemos
possuir, e que deve ser nossa, para que
sejamos ns mesmos; ele aparece como o
nico rgo indispensvel a existncia do
eu e a manuteno da identidade pessoal.
Ocorre com ele algo diverso do que com o
resto do corpo. Se transplantarmos o
crebro de A para o corpo de B, no B
que recebe um novo crebro, mas A que
ganha um novo corpo. na medida em que
o crebro define a pessoa, que somos um
sujeito cerebral. Existe aqui muito mais do
que um jogo de artista conceitual ou de
uma fantasia de loucos por eternidade.
O que acabamos de nomear sujeito
cerebral impe-se como uma figura
antropolgica, cuja importncia no cessa
de aumentar desde meados do sculo XX,
e cujas manifestaes se multiplicam fora
das disciplinas mais diretamente afins.
Estaramos tentados a atribuir suas origens
ao progresso das neurocincias.
Gostaramos, entretanto, de sugerir um
percurso inverso. A idia de que somos
essencialmente nosso crebro precede o
desenvolvimento das neurocincias para
enraizar-se nas filosofias da matria e da
identidade pessoal do fim do sculo XVII.
Desde o sculo XIX, dados cientficos
parecem corrobor-la. Nos anos 60, as
fices relativas ao crebro tornam-se um
instrumento aparentemente incontornvel
para filosofar sobre a identidade pessoal.
mais ou menos desta poca que podemos
datar o predomnio da cerebralidade
como propriedade definidora do ser
humano, bem como do sujeito cerebral
como figura antropolgica. A utilizao
das fices filosficas sobre o crebro
coincide cronologicamente com o
crescimento do peso simblico,
institucional e financeiro da pesquisa
neurocientfica, e com a percepo de que
se trata de um dos domnios mais decisivos
para o futuro da humanidade. Esta
convico afirma-se cada vez mais. Os
anos 90 foram o Decnio do Crebro;
acreditando-se em Jean Pierre Changeux, o
sculo XXI ser o sculo (Changeux,
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2000). Diversas tentativas emergem para
captar os fundamentos cerebrais de
fenmenos individuais ou sociais, como
para aproximar as cincias humanas das
neurocincias ou pensar os numerosos
problemas levantados por essas ltimas.
Com efeito, as disciplinas neuro
se multiplicam. O prefixo existe desde o
sculo XVI tal qual, mas o termo
neurocincias nasce nos anos 60.
Palavras anlogas seguiram-se, e falamos
hoje no somente de neuropediatria, de
neuropsiquiatria, ou de neurogerontologia,
de neurolingstica, ou de neuropsicologia,
mas tambm, pouco a pouco, de
neurofilosofia, neuroeducao,
neuroesttica, neurotica, neuroeconomia,
neuroteologia, neuropsicanlise... Mesmo
que estas reas tornem-se autnomas ou
permaneam como zonas de interseco ou
de interao entre as neurocincias e as
cincias humanas, seus nomes so por si
prprios significativos. Eles desvelam o
poder publicitrio e legitimador das
atividades que chamam para si as cincias
do crebro. Ao mesmo tempo, a
nomenclatura em voga declara a novidade
dos desafios que lanam as neurocincias e
a esperana que elas levantam de chegar a
compreender os fundamentos neuronais
dos processos estudados pelas cincias
humanas, at mesmo de remanejar essas se
apoiando no conhecimento do crebro. A
neurotica distingue-se pelo fato de no se
limitar a pesquisa das bases neurolgicas
do comportamento moral; antes, ela
acentua as conseqncias ticas, sociais,
legais e mesmo polticas dos saberes
neurocientficos (Blank, 1999, Marcus,
2004).
Nenhum desses domnios
homogneo e, apesar de suas tendncias
reducionistas e crtico-cntricas, bem
como sua confiana algumas vezes acrtica
frente s tcnicas de imagem cerebral, eles
tendem a pesquisar na interdisciplinaridade
e no dilogo entre as disciplinas.
Diferentemente interessadas esto as
empresas com o objetivo lucrativo, como a
neurotecnologia, o neurofitness ou a
neuropreservao j mencionada. Ora,
todos so sinais no somente da presena
das neurocincias na cultura
contempornea, mas tambm de uma
progresso notvel na cerebralizao do
sujeito. o desenvolvimento desse sujeito
cerebral que eu gostaria aqui de discutir em
uma perspectiva histrica.
A alma e o crebro
Primeiramente, convm diferenciar
a questo do sujeito cerebral daquela das
relaes entre alma e o corpo. Para
simplificar podemos dizer que, na histria
das idias concernente a essas relaes,
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houve no mundo cristo ocidental dois
momentos tericos principais (aristotlico
e ps-aristotlico) e uma tradio
fisiolgica derivada de Galeno.
A alma como forma e a alma racional
De acordo com um esquema que
prevalece at o fim do sculo XVI, a alma
(psukh, anima) est definida nos termos
de Aristteles, como a forma de um
corpo natural que tenha vida em potncia
(Aristteles, 1966; 412a20). Ela um
princpio de vida que permite a realizao
das potencialidades de certos tipos de
matria e no pode realmente ser separada
do corpo. Se o olho fosse um animal
completo, diz Aristteles, a vista seria a
alma dele; ora, o olho a matria da
viso e essa desaparecendo, ele no mais
um olho, se no por homonmia como um
olho de pedra ou desenhado (Aristteles,
1966, 412b20). Assim concebida, a alma
responsvel por todas as funes essenciais
dos seres vivos. Essas so tradicionalmente
definidas como faculdades: vegetativas
(nutrio, crescimento e reproduo),
sensitivas e motoras (sentidos externos e
internos, movimento fsico e faculdade
apetitiva), e racionais ou intelectivas
(Wright, Potter, 2000). O ser humano
possui todas essas faculdades; os animais
no humanos possuem apenas as
sensitivas, motoras e vegetativas; as
plantas somente as ltimas. Mas todos so
animais com corpos providos de uma
alma; eis porque at o fim do sculo XVII,
o termo psicologia (j utilizado em torno
de 1570) designa uma cincia genrica dos
seres vivos (Vidal, 2006).
A alma intelectual ou racional
levanta problemas particulares. Aristteles
fala de uma inteligncia ativa separvel,
imortal e eterna. Esta noo de aparncia
pouco Aristotlica engendra interminveis
debates. Entretanto, no sculo XIII, a igreja
declara que alma uma substncia
indivisvel e que a alma racional per se et
essentialier a forma do corpo. Mais
tarde, com a desintegrao dos quadros
aristotlicos, a alma cessa de ser
responsvel pelas funes vegetativas,
nutritivas e sensitivas e, como na filosofia
de Ren Descartes (1596-1650), ela torna-
se igual ao esprito (mens) ou alma
racional. Essa transformao do conceito
de alma torna problemtica as relaes
entre alma e corpo.
Nos sculos XVII e XVIII,
enumeramos trs posies principais
(Baertschi, 1992). De acordo com o
sistema da influncia fsica, as duas
substncias agem materialmente uma sobre
a outra. No ocasionalismo do padre
Nicolas Malebranche (1638-1715), Deus
o agente causal de seu lao: quando a alma
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quer fazer mexer o corpo, Deus o faz se
mexer. Finalmente, Gottfried Wilhelm
Leibniz (1646-1716) compara a relao da
alma e do corpo quela de dois pndulos
perfeitamente sincronizados, regulados por
uma harmonia preestabelecida. Tende-se
ento a diferenciar o postulado da unio
alma-corpo da questo das modalidades
empricas de seu comrcio. Enquanto
que a unio aceita como um fato,
misterioso em si prprio, mas confirmado
pela f, a razo e experincia, a interao
ou commercium tornam-se um objeto
prprio da psicologia emprica tal qual ela
se desenvolve no sculo XVIII (Vidal,
2006).
A tradio fisiolgica de Galeno
A despeito das diferenas
fundamentais entre os momentos
aristotlicos e ps-aristotlicos, a maneira
de conceber a interao da alma e do corpo
repousou durante numerosos sculos sobre
as teorias fisiolgicas de Galeno, filsofo e
mdico grego do sculo II (Temkin, 1973).
Apoiando-se em idias atribudas a
Hipcrates, mdico grego nascido
aproximadamente em 460 a.C., Galeno
define a sade como o equilbrio entre os
quatro fluidos ou humores do corpo: o
sangue, a bile amarela, a bile negra e a
fleuma. Esses humores so compostos por
quatro elementos e suas qualidades (o
fogo/quente, o ar/frio, a gua/mida e a
terra/seca). Suas combinaes e dosagens
no corpo constituem temperamentos;
esses determinam a personalidade e as
capacidades do indivduo, como declara o
ttulo do influente tratado galnico, Quod
animi mores corporis temperamenta
sequantur (As faculdades da alma
acompanham os temperamentos do corpo)
(Galeno, 1995). O ser humano um
composto de duas substncias, o corpo e a
alma ligados intimamente entre si e em
constante interao.
Resta explicar esta interao. O
corpo segundo Galeno comporta trs
sistemas: o crebro e os nervos, o corao
e as artrias, o fgado e as veias. O sangue
formado no fgado transportado pelas
veias para o resto do corpo, onde ele serve
a nutrio e ao crescimento sob a forma de
um esprito natural. Aps misturar-se ao
ar nos pulmes e passado no corao ele se
transforma em dois tipos de pneuma: uma
parte torna-se o esprito vital de que
dependem as funes vitais e locomotoras;
outra d ao crebro o esprito animal
necessrio as sensaes e as funes
intelectivas. As qualidades (temperatura,
densidade, etc.) desses espritos procedem
dos humores, em particular do sangue: se
esse muito frio, os espritos animais
correm o risco de assim o serem e os atos
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mentais que deles dependem sero ento
fracos e lentos.
Localizadas nos ventrculos
cerebrais entre os quais circulam os
espritos animais, as faculdades articulam-
se entre si a partir do princpio de que nada
h no intelecto que no tenha passado
primeiro pelos sentidos. Os dados dos
sentidos externos (viso, audio, paladar,
tato e olfato) esto reunidos por um dos
sentidos internos, o senso comum
(sensus communis), colocando em
funcionamento a memria, bem como a
imaginao sob suas formas passiva e ativa
(via imaginativa, fantasia) (Figura 1).
Sobre a base das imagens sensveis assim
geradas, o intelecto forma os conceitos e
realiza suas outras operaes especficas
(Clarke, Dewhurs, 1972; Harvey, 1975;
Kemp, 1990). O crebro preenche a funo
essencial de fabricar e de guardar os
espritos animais, mas so esses espritos
por si mesmos, e o temperamento no seu
conjunto, que ditam o carter e as aptides
de uma pessoa. Exemplar desta tradio
o clebre Exame de engenhos pelas
cincias. Seguindo o Quod animi mores, o
mdico espanhol Juan Huarte de San Juan
(1530?-1592) estabelece a as
correspondncias entre o mido e a
memria, o seco e o entendimento, o
quente e a imaginao, e delas tira
conselhos e prescries concernentes as
atitudes e as inclinaes individuais, bem
como os ofcios (dos mais humildes aos
mais elevados) aos quais convm a cada
um se consagrar em funo de seu
temperamento (Huarte,1989).
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O rgo da alma
Nos sculos XVII e XVIII, o
momento em que a teoria humoral perde
sua importncia, os nervos, concebidos
como fibras slidas e elsticas ou como
tubos ocos tornam-se os intermedirios
entre a alma e o corpo. Seu hipottico
ponto de convergncia no interior do
crebro freqentemente considerado
como sede da alma, quer dizer, no
um lugar em que a alma se encontraria
materialmente, mas o rgo onde ela
interage com o corpo. Para Descartes, a
alma exerce imediatamente suas
funes junto glndula pineal. Pelo
fato dela no ser dupla, a epfise
escolhida como o rgo onde as
impresses transmitidas pelos rgos
sensoriais (sempre duplos) renem-se
em uma nica percepo. De acordo
com a tese cartesiana, os espritos
animais circundam a glndula pineal.
Quando a alma quer recordar-se de
alguma coisa, sua vontade faz com que
a glndula mova os espritos at que
eles encontrem os traos do objeto em
questo (as recordaes, explica
Descartes, formam-se pelo alargamento
dos poros da glndula sob o efeito da
passagem dos espritos animais)
(Descartes, 1649, 1664). Thomas Willis
(1621-1675) contrariamente a
Descartes, anatomista e mdico ingls,
postula a localizao distribuda das
faculdades da alma. A imaginao
sendo uma ondulao dos espritos do
centro do crebro para sua
circunferncia, tem sua sede no corpo
caloso. A memria depende dos
espritos impulsionados da periferia
para o centro; sua sede ento no
crtex. A coordenao sensorial feita
no corpo estriado. Colocado entre a
mencionada medula oblonga (mais ou
menos nosso tronco cerebral) e o corpo
caloso, o corpo estriado recebe as
impresses que sobem para o crebro e
constitui a via pela qual os espritos
animais descem para as extremidades
(Willis, 1978).
Os dois modelos se confrontam
ao longo do sculo XVII. No que se
referem sede unitria da alma, os
dados principalmente anatomoclnicos,
vem no apoio de vrias localizaes: o
corpo caloso, o centro oval, as paredes
dos ventrculos. Mas a diversidade das
teorias e o carter pouco slido das
provas justificam a opinio de Albert de
Haller (1708-1777) em uma carta
Charles Bonnet datada de 22 de janeiro
de 1771: colocando a sede da alma
globalmente na massa branca do
encfalo, estima-se que se em razo do
carter indivisvel da alma, a Filosofia
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favorece uma parte nica, indubitvel
que a anatomia no diz nada sobre esse
assunto (Bonnet, 1766, p. 90).
Nos dois casos, o crebro
prevalece como rgo do eu. O
materialismo no necessita disso. De
fato no entre os materialistas das
Luzes que encontramos as expresses
mais completas sobre o sujeito cerebral
nascente. Por exemplo, Julien Offray de
La Mettrie (1709-1751) explica que se a
sede da alma tem uma certa extenso ou
se a alma tem diferentes sedes no
crebro, ento ela no inextensa e no
existe enquanto substncia imaterial (La
Mettrie, 1987). Mas acreditando na
alma que ainda durante certo tempo
elaboram-se as psicologias empricas.
Dois dos mais importantes pensadores
psicolgicos das Luzes, o escocs David
Hartley (1705-1757) e o genebrino
Charles Bonnet (1720-1793) so
cristos convictos. Ora, precisamente
porque eles aderem definio do ser
humano como composto de alma e de
corpo, procuram compreender o
funcionamento mental enfatizando o
papel do crebro e dos nervos como
sede da alma e como elo entre as duas
substncias (Bonnet, 1760, Hartley,
1967). Trata-se, porm, de
neuropsicologias conjecturais e o
crebro permanece, largamente por
razes tcnicas, difcil para ser
examinado cientificamente (Begley,
Wright, Church, Hager, 1992, Brazier,
1988, Clarke, OMalley, 1968, Finger,
1994). A cerebralizao ou
neurologizao do psiquismo,
levemente avanada nas psicologias das
Luzes, no se origina, portanto dos
conhecimentos sobre a funo e a
estrutura do crebro, mas da corrente
que os precede, em direo a uma
antropologia da cerebralidade.
Das origens do sujeito cerebral: o ser
humano na tradio crist
Apesar da importncia que
atribuem ao crebro, no so nem a
fisiologia galnica, nem a psicologia do
sculo XVIII que determinam a
emergncia do sujeito cerebral. A fim
de compreender os fatores cientficos e
filosficos que conduzem a ela, convm
lembrar que o cristianismo repousa
sobre o dogma da Encarnao. Houve
certamente debates sobre a natureza do
corpo de Cristo e sobre a relao exata
entre suas duas naturezas, humana e
divina. Entretanto, conforme a posio
que se tornou oficial, o Cristo , ao
mesmo tempo, Deus e um homem
dotado de um corpo humano. Eis
porque inexato dizer que conforme a
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tradio crist, ser humano significa
ser um esprito encarnado [embodied
mind] (Porter, 1992, p. 212). O
cristianismo postula que o homem
feito de corpo e alma, mas no admite
que a pessoa possa existir de outro
modo que no somente composto por
essas duas substncias. O homem no
simplesmente algum que tem um
corpo, mas algum cuja existncia
corporal (Bynum, 1995, Keenan, 1994,
Vergote, 1979).
A conseqncia mais radical de
tal antropologia concerne ressurreio
dos corpos. A histria dos debates sobre
esta doutrina ilustra admiravelmente a
origem e as implicaes do sujeito
cerebral (Vidal, 2002). Ressuscitando,
supe-se que cada um de ns retome
seu prprio corpo. Derivam da
problemas complexos, mesmo alm da
questo de saber como o corpo se
reformar e ser o mesmo apesar das
novas propriedades que o tornam
espiritual. Cristo tendo declarado que
nenhum cabelo de sua cabea ser
perdido (Lucas 21. 18), os telogos
dOrigenes e Atengoras a Santo
Agostinho e So Toms de Aquino
perguntam-se onde terminar a
substncia do corpo terrestre. Para que
corpo, por conseguinte, retornar a
carne de indivduo devorado por um
canibal ou por um animal
posteriormente comido pelos seres
humanos? As respostas variam no
decorrer dos sculos, mas todas insistem
na identidade do corpo terrestre e do
corpo espiritual como condio
indispensvel identidade dos
ressuscitados. No se concebe uma
pessoa sem o corpo inteiro, nem a
identidade pessoal sem identidade
corporal.
Esta antropologia questionada
no fim do sculo XVII. Observa-se
ento uma desencarnao relativa da
noo de pessoa, uma psicologizao da
identidade pessoal e uma focalizao
crescente do corpo sobre o crebro. De
uma parte, conforme a filosofia
corpuscular da matria, essa uniforme
e formada por partculas cujos
acidentes mecnicos (tais quais o
movimento ou a posio no espao)
explicam todos os fenmenos naturais.
Na medida em que as coisas no
diferem pelos seus componentes
materiais ltimos, elas podem se
transformar, em determinadas
condies, em no importa qual outra
coisa. Aplicada a ressurreio, uma tal
filosofia implica que um corpo
ressuscitado (e conseqentemente uma
pessoa) no necessita ser formada pela
mesma matria que o corpo terrestre
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correspondente para poder ser dito o
mesmo. A continuidade material
perde-se enquanto elemento constitutivo
da identidade pessoal.
A pessoa e seu crebro
Por outro lado, em 1694, na
segunda edio de seu Ensaio
concernente ao entendimento humano
(Locke, 1951), John Locke (1632-1704)
distingue o homem da pessoa, e
define a identidade dessa como uma
continuidade da conscincia e memria.
Se a conscincia de uma pessoa
permanecesse fixa ao seu dedo mnimo
enquanto esse separado do resto do
corpo, para Locke evidente que o
dedo mnimo seria a mesma pessoa (
17); a alma de um prncipe no corpo de
um sapateiro o tornaria a mesma pessoa
que o prncipe, apesar de que o homem
seria diferente ( 15). A partir da, a
sentena do Juzo Final se justificar
pela convico em si de onde estaro
todos os Homens, que em qualquer
Corpo que eles apaream, ou a qualquer
Substncia que este sentimento interno
esteja ligado, que eles tenham eles
mesmos cometido tais ou quais aes,
que eles merecem o castigo que lhes
infligido por t-las cometido ( 27).
Dentro de tal noo de eu ou de
pessoa (sinnimos em Locke, 26),
no diremos mais que somos um corpo,
mas que temos um corpo. Objetivado e
distanciado do eu, o corpo revela-se ser,
na perspectiva do individualismo
possessivo, uma coisa que possumos e
no mais o que somos (Taylor, 1989).
A identidade pessoal torna-se
assim psicolgica e independente da
identidade corporal. Mas a
desencarnao no total. Na medida
em que a pessoa depende da memria e
da conscincia, o crebro a nica parte
do corpo de que ela necessita para ser
ela mesma. Bonnet, cujo retrato o
mostra meditando sobre a vida futura
[Figura 2], retira da as conseqncias
para a doutrina da ressurreio. Ele
especula que nossos crebros abrigam
uma espcie de minsculo crebro
indestrutvel que, combinado a
propriedades do tipo embriolgico, se
desenvolver quando do Juzo Final,
restituindo a cada um sua personalidade
e lhe concedendo um corpo diferente do
terrestre. O que interessa a partir da, a
unio da alma e do crebro. Bonnet d a
esta primeira forma de sujeito cerebral
uma expresso sucinta quando escreve
que se a Alma de um Huron pudesse
herdar o crebro de Montesquieu,
Montesquieu ainda criaria [Bonnet C.
1760, 771].
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Na ausncia cada vez maior do
conceito de alma, esta viso de ser
humano e do lugar do crebro fortalece-
se consideravelmente no sculo XIX
(Breidbach, 1997, Hagner, 1997). A
frenologia o exemplo mais conhecido
(Renneville, 2000). Fundamentada nas
teorias do mdico vienense Franz
Joseph Gall (1758-1828), ela ao
mesmo tempo uma psicologia das
faculdades, uma teoria do crebro, e um
mtodo para estudar o carter e as
aptides. Repousa sobre vrias
suposies: o crebro o rgo da
mente; a mente composto de
capacidades inatas; cada uma dessas
capacidades tem sua prpria sede ou
rgo dentro do crebro; o tamanho
de um rgo proporcional a fora da
capacidade que lhe corresponde; o
crebro moldado pelo tamanho desses
rgos; o crnio devendo sua forma ao
crebro, as proeminncias de sua
superfcie revelam as aptides e as
inclinaes individuais.
As proposies desses rgos,
numerosas e variadas como mostra a
Figura 3, revelam-se como imaginrias.
Contudo, algumas premissas
frenolgicas parecem confirmadas na
segunda metade do sculo XIX, quando
acontecem grandes progressos no
Figura 2. CHARLES BONNET (1720-1793)
leo sobre tela por Jens Juel, 1777, biblioteca
pblica e universitria, Genebra. Fotografia:
Centro de Iconografia de Genebra
M. Juel (escreve Bonnet), pintou-me
enquanto eu estava mergulhado em uma
profunda meditao sobre a reconstituio e
o aperfeioamento futuros dos seres vivos.
Percebemos, suficientemente, a dificuldade
para transmitir esse carter meditativo; mas
para os grandes talentos, inspirados pela
genialidade, nada difcil. (C. Bonnet,
obras, vol.1). O livro, uma Bblia, est aberto
na primeira epstola de So Paulo aos
Corntios, texto fundador da doutrina crist da
ressurreio. Nele distinguimos, no alto da
pgina, o que tu semeias no vivificado, se
primeiro no morrer.; no alto da outra
pgina, Onde est, morte, a tua vitria?
Onde est, morte, o teu aguilho? (1
Cor.15.36 e 55)
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conhecimento do crebro,
principalmente a respeito das
localizaes e da citoarquitetura. As
descobertas neurocientficas confirmam
a idia de que o crebro o rgo do eu.
Esta crena se concretiza em inmeros
domnios, desde a anatomopatologia e a
localizao das doenas psquicas at a
antropologia fsica e a diferenciao de
raas e de sexos. As pesquisas sobre os
gnios, os criminosos e os doentes
mentais supem que as qualidades
positivas ou negativas dos sujeitos esto
inscritas nos seus crebros. Desde
ento, o postulado neurofilosfico de
uma correlao entre os estados
cerebrais e psicolgicos no perdeu em
nada a sua fora; pelo contrrio, foi
reforado graas as imagens produzidas
pelas tcnicas digitais de imagem
cerebral.
[Figura 4]. Essas imagens divulgadas pela mdia parecem imediatamente legveis; e
temos a tendncia de ver nelas um verdadeiro retrato do que ns somos (Dumit, 2004).
Figure 3. Verso tardia de uma cabea frenolgica. Em
amarelo os sentidos da percepo (da faculdade de
observao linguagem); em branco aqueles do
pensamento (memria, sentido de combinao crtica);
em rosa, os sentidos morais (benevolncia, crena na
autoridade, esperana, crena); em azul, os sentidos
artsticos (construo, imitao, contraste, ideal e
sentido da beleza natural); em verde, os instintos
dominantes (poder de concentrao, segurana,
vaidade, prudncia, calma, firmeza, meticulosidade);
em cinza, aqueles da conservao (luta, ao, nutrio,
dissimulao, aquisio); em marrom, os instintos de
sociabilidade (pulso sexual, amor pelos filhos, amor
pela ptria e pela famlia).
In Max von Kreusch, Praktische Phrenologie.
Allgemeinverstndlicher Leitfaden der Charakter-
Beurteilung auf Grund der Kopfform fr Unterricht
und Selbstausbildung [frenologia prtica. Guia fcil
para julgar os caracteres conforme a forma da cabea,
para o ensinamento e instruo prpria], Berlin, Verlag
Kreusch, 1921.
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O crebro e a filosofia da identidade
pessoal
Os desenvolvimentos histricos
esboados acima contriburam para
estabelecer a antropologia da
cerebralidade implcita nos desejos de
imortalidade atravs da
neuropreservao evocadas no incio.
Jonathon Keats e os adeptos da
criogenia personificam o sujeito
cerebral. Um momento crucial, a
cristalizao desse enquanto figura
chave do pensamento contemporneo,
foi a utilizao de fices ao estilo de
John Locke, nas discusses filosficas
sobre a identidade pessoal. De acordo
com meu conhecimento, o primeiro
exemplo encontra-se no Self Knowledge
and Self Identity, livro de Sidney
Shoemaker, lanado em 1963.
Examinando os critrios
corporais e da identidade pessoal,
Shoemaker apresenta a fico lockeana
da alma do prncipe no corpo do
sapateiro descrevendo-a como um
raciocnio concernente a uma mudana
de corpo (change-of-body-argument), e
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como significando que uma pessoa pode
cessar de ter o corpo que havia tido, o
seu, no passado, obtendo um novo
(Shoemaker, 1963, p. 22). Tentando
aprofundar a questo, Shoemaker
imagina que a medicina inventou uma
tcnica graas a qual um crebro pode
ser extrado do crnio de um paciente,
para ser concertado. Ora um dia aps a
operao, assistentes invertem os
crebros de Brown e Robison. Um dos
homens morre. O outro, que Shoemaker
batiza Brownson, tem o corpo de
Robison e o crebro de Brown. Quando
Brownson retoma a conscincia, ele se
espanta com sua aparncia; seu corpo,
ele diz, o cadver deitado no leito
vizinho! Quando lhe perguntado seu
nome ele responde Brown, reconhece
a mulher de Brown, bem como sua
famlia, e pode descrever os
acontecimentos da vida de Brown. Em
suma, ele tem todos os traos
psicolgicos que tinham sido de Brown.
Mesmo que Brownson tenha o
corpo de Robison, pensamos que ele
na realidade Brown. Ele mudou de
corpo, mas tem a mente, a biografia e a
personalidade de Brown. Shoemaker
no retira dessa experincia a concluso
de que a identidade do crebro constitui
o elemento definidor da identidade
pessoal. Se apesar da troca de rgos,
Brownson agisse da maneira de
Robison, no diramos que ele Brown
apenas porque tem o crebro desse. O
filsofo infere da que a relao entre
estado do crebro e os traos
psicolgicos da pessoa causal e
contingente, mas no logicamente
necessria. O fato de que Brownson
tenha o crebro de Brown explica que
ele tenha a psicologia de Brown mas
nada mais. Conseqentemente, se
decidirmos que Brownson Brown,
porque privilegiamos o critrio
psicolgico em detrimento da no
identidade corporal (Shoemaker, 1963,
p. 24-25). Evidentemente, falando de
mudana de corpo e de no
identidade corporal, Shoemaker parece
identificar o corpo ao corpo
descerebrado, e esquecer que o crebro
um rgo corporal. Entretanto, o que
no era verdadeiro nos anos 60 tornou-
se depois, considerando que, quando se
fala do crebro na mdia, poucas
imagens so to divulgadas quanto a
dicotomia entre o corpo e o crebro. O
crebro, pode-se ler no New Scientist,
no o corpo, faz com que os atletas se
sintam fatigados (J. Randerson, Brain
not body makes athletes feel tired,
nmero de 29/07/04).
A utilizao de fices
cirrgicas do crebro foi durante longo
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tempo um dos principais instrumentos
para pensar filosoficamente a identidade
pessoal. O crebro impunha-se como
limite somtico do eu, de modo que eu
cesso de ser eu mesmo se dele sou
amputado. Confim da identidade, at
rgo consubstancial do eu, o crebro
aparece como uma das fronteiras
maiores da cincia e como o desafio
principal de saber sobre o que faz o ser
humano enquanto humano. Alm de sua
funo de causa, fundamento material
ou condio de possibilidade, ele possui
certo primado ontolgico. X com o
crebro de Y Y; no podemos trocar
de crebro sem nos tornarmos outro. O
critrio cerebral invalida o critrio
corporal de identidade apenas se
imaginamos o corpo como se fosse um
corpo descerebrado. Todavia, ele apia-
se sobre uma reduo radical do corpo
prprio, sobre uma redefinio do corpo
como sendo aquilo que, materialmente
falando, fundamentalmente a pessoa.
Desde ento, uma pessoa P idntica a
uma pessoa P* se e somente se P e P*
so dotadas de um nico e mesmo
crebro funcional (Ferret, 1993, p. 30).
Tal a frmula lgica do sujeito
cerebral. Ter o mesmo crebro ter o
mesmo corpo e ser a mesma pessoa.
No h necessidade de aderir a
tais frmulas para agir em funo de
uma representao do homem como
sujeito cerebral. Essa representao,
problemtica mesmo na aplicao
corrente dos critrios da morte cerebral
(Schlich, Wiesemann, 2001), manifesta-
se, como percebemos, em numerosos
campos de atividade. Alm da
neurofilosofia, da psicologia e das
neurocincias, alm tambm das
neurodisciplinas nascentes, ela inspira
toda uma galxia em expanso de
neurocrenas e de neuroprticas
concernente ao bem estar e ao
desenvolvimento pessoal, ao
esoterismo, at mesmo a escatologia. As
tcnicas de imagem cerebral engendram
uma imagem digital da categoria de
pessoa que modifica os indivduos
condicionando-os a percepo que tem
de si mesmos (Dumit, 2004). E mesmo
que as prticas de modificao corporal
paream designar o corpo como sede de
identidade pessoal, elas implicam uma
relao com o corpo tal qual o
consideramos como uma coisa que ns
possumos, antes do que como algo que
ns somos (Andrieu, 2002,
Featherstone, 2000, Le Breton, 2002).
Ser de carne
Vimos que a noo de ser
humano como sujeito cerebral constitui
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uma ruptura com a tradio crist e
supe uma psicologizao, bem como
uma relativa desencarnao dos critrios
definidores da identidade pessoal. Se tal
viso de homem no evidentemente a
nica na cultura contempornea, ela
sem contestao uma das principais.
Convm, portanto encar-la e interrog-
la sobre seu alcance, seus limites, suas
conseqncias. A reduo da identidade
cerebralidade e do corpo prprio ao
crebro, a relegao da experincia
vivida, da histria do sujeito, do
contexto social ou de seus modos de ser
no mundo, comportam seguramente
perigos quando, no momento de tomar
decises polticas, jurdicas ou mdicas,
trata-se de pensar no que o homem e
de conseqentemente agir. necessrio
destacar que a crtica do sujeito cerebral
no exige que se negue o papel
fundamental do crebro. Kathleen
Wilkes, por exemplo, no seu brilhante
Real People. Personal identity without
thought experiments, pe em questo o
valor das fices filosficas (Wilkes,
1988). Isso no a impede de consagrar
numerosas pginas ao crebro,
insistindo na necessidade de no
simplificar exageradamente a
informao cientfica e de no limitar o
crebro ao crtex. Dentro de outro
estilo, Francisco Varela partia de uma
crtica da equao crebro-corpo e do
neuroreducionismo eliminativo para
propor uma neurofenomenologia cujo
propsito de reintegrar nas
neurocincias a corporeidade e a
experincia pessoal (Varela, 1996,
Varela, Thompson, Rosch, 1991).
Quanto a Paul Ricoeur ele ope o
sujeito cerebral (que ele no identifica
como tal) ao si (soi) como carne e a
relao vivida (ento
fenomenologicamente crucial) que
podemos estabelecer com as partes do
corpo ligadas ao movimento (a mo), a
percepo (o olho), a emoo (o
corao), ou a expresso (a voz)
(Ricoeur, 1990).
Essas tomadas de posio fazem
por si s parte de um universo marcado
pela figura do sujeito cerebral. A tarefa
de examinar este universo com
profundidade permanece a ser feita. Ela
no de modo algum simples, visto que
no podemos ser sem ao menos uma
parte do crebro, e que estamos
mergulhados em uma cultura da
cerebralidade que nos molda. Os
neurotransmissores nos fazem sentir,
mas no crebro, em si, nenhuma
sensao sentida. Quem praticam
neurofitness querem que seu crebro se
sinta mais jovem; contudo no neste
rgo que eles podem localizar uma
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cinestesia qualquer. Entretanto, dada a
natureza da psicologia e do crebro
humana, possvel que as neuroprticas
e os neurodiscursos em voga acabem
por dar ao crebro o status
fenomenolgico que segundo Ricoeur
lhe falta. Trata-se a de questes abertas,
como so ainda a maioria daquelas que
dizem respeito ao sujeito cerebral. Aqui
eu quis somente dar os primeiros passos
e esboar uma problemtica, mas eu no
poderia terminar sem dizer minhas
preferncias, pelo menos indiretamente,
oferecendo um smbolo que as
resumem.
Em 1991, Helen Chadwick cria
uma obra de arte desconcertante (Figura
5). Trata-se de uma fotografia impressa
em uma placa de vidro e iluminada por
trs. Seu ttulo: Auto-retrato.
Substituindo o rosto por um crebro,
Chadwick parece dizer que ela esse
rgo. Entretanto, o crebro
reproduzido no pode ser o seu; o so
em contrapartida as mos, elemento
tradicional do auto-retrato. Elas
seguram o crebro de modo a evocar
um gesto de oferenda ou de devoo,
sacralizando assim o rgo e
sublinhando sua fragilidade. Com sua
forma nica e reconhecvel com as
marcas e adornos que lhes so prprios,
as mos seguram o crebro sobre o
fundo de um tecido cor de carne, cujas
dobras evocam ao mesmo tempo as
circunvolues e a gola de renda que
destaca o rosto em tantos grandes
retratos barrocos. O conjunto remete a
cerebralidade, mas tambm ao corpo
inteiro da artista, a seu trabalho, a sua
individualidade, a sua histria, a seu
meio. Finalmente, no Eu sou meu
crebro que diz o auto-retrato de Helen
Chadwick. Antes se o crebro visto no
centro da obra de arte, ele atesta que a
pessoa que criou a obra no redutvel
a seu crebro.
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Fernando Vidal: Doutor em
psicologia, diretor de pesquisa no
Instituto Max Planck de Histria das
Cincias (Berlim). Correspondncia:
Max Planck Institut fr
Wissenschaftsgeschichte. Boltzmannstr.
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Traduo: Maria Elsia Flores
Filsofa (UFRGS). Diplme de Nancy -
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Reviso tcnica: Marcos Adegas de
Azambuja Doutorando em Psicologia
Social PUCRS (bolsista CNPq).
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