O MODELO ESTRUTURAL DO JOGO HERMENÊUTICO

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  • 7/26/2019 O MODELO ESTRUTURAL DO JOGO HERMENUTICO

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    1Licenciado em Filosofia, doutorando em Educao. Docente, Centro Universitrio Franciscano. Santa Maria,RS, Brasil.

    O MODELO ESTRUTURALDO JOGO HERMENUTICO COMO

    FUNDAMENTO FILOSFICO DA EDUCAO

    Structural model of the game hermeneuticsas philosophical foundations of Education

    235Cincia&Educao,v. 17, n. 1, p . 235-248, 2011

    Marcos Alexandre Alves1

    Resumo: O objetivo deste trabalho apresentar o modelo estrutural do jogo hermenutico comofundamento da educao. Para tal, refletiremos sobre a dimenso metodolgica da hermenutica filo-sfica e sobre o modo e a forma de acontecer da educao luz da experincia hermenutica. En-quanto no mtodo analtico, dialtico sinttico, a experincia dissecada e, consequentemente, elimi-nada, no jogo hermenutico a experincia conservada e ampliada, constituindo-se como aberturasempre a novas possibilidades de pensar, conhecer, educar e agir. Neste sentido, procuraremos expli-citar a seguinte questo: em que medida e como o jogo constitui elemento fundamental educaosob a anlise da hermenutica filosfica? Especificamente, intencionamos esclarecer o papel do jogopara a hermenutica filosfica de Gadamer e determinar a influncia do carter ldico do jogo em suacontribuio educao.

    Palavras-chave:Hermenutica. Jogo. Educao.

    Abstract: The aim of this paper is to present the structural model of the game as a hermeneuticfoundation of education. To do this we will reflect on the methodological dimension of philosophicalhermeneutics and the method and form of education which happen through the experience of herme-neutics. While the analytical method, dialectical, synthetic experience is dissected and, therefore, elim-inated from the game, hermeneutic experience is preserved and expanded, establishing itself as alwaysopen to new possibilities of thinking, knowing, educating and acting. In this sense, we aim to clarifythe following question: to what extent and how fundamental is the game to education in this analysisof philosophical hermeneutics? Specifically, we intend to clarify the role of the game for Gadamersphilosophical hermeneutics and the influence of the playful character of the game in his contributionto education.

    Keywords:Hermeneutics Game. Education.

    Travessa Visconde de Urugua i, 25Perptuo Socorro - Santa Maria, RS97.045-500

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    Introduo

    Propomo-nos, neste trabalho, a apresentar a noo de jogo como fundamento daeducao, segundo a hermenutica filosfica. Na hermenutica, o processo de conhecer, depensar e de ensinar no predeterminado por uma fora causadora a priori, nem por umateleologia que lhe seja externa. Mais importante que a produo de uma certeza, o processointerativo, experiencial e dialgico. A totalidade filosfica e educativa espelha-se no acontecerhermenutico como jogo. Contudo, o jogo no representa um crculo vicioso, pois o filosofare o educar efetivam-se de modo relacional ao procurarem compreender a totalidade a partir dafinitude, a qual carrega aquela nsia inesgotvel de buscar compreender o todo, isto , o desejonatural de conhecer.

    O jogo circular do filosofar e educar no vicioso nem puramente formal, no podeser totalmente subjetivo ou objetivo, porque o compreender ocorre enquanto um jogo entre atradio e a interpretao. A compreenso de sentido, que conduz nossa compreenso de um

    texto, no uma atividade da subjetividade, mas se determina a partir da comunidade, que nosamarra com a tradio, que uma totalidade, por um lado, fechada e, por outro, aberta. Anoo de jogo retrata, exemplarmente, as relaes entre o pensamento sistmico e a herme-nutica filosfica. Assim, como ambas partem e pretendem chegar totalidade compreensivado mundo, da vida, ambas tambm comungam de uma forma, de uma metodologia, coerentecom tal projeto tematizado na noo de jogo enquanto modo de conhecer, de pensar, deensinar e de agir universal.

    Para levarmos a termo nosso objetivo, qual seja: apresentar o modelo estrutural dejogo, segundo a hermenutica filosfica, como fundamento da educao, teremos de refletirsobre a dimenso metodolgica da hermenutica filosfica e, mais especificamente, sobre omodo e a forma de acontecer da educao luz do jogo como experincia hermenutica. Ora,enquanto, no mtodo analtico, dialtico sinttico, a experincia dissecada e, consequente-

    mente, eliminada, no jogo hermenutico, a experincia conservada e ampliada, constituindo-se como abertura sempre a novas possibilidades de pensar, conhecer, educar e agir. Nestesentido, procuraremos explicitar a seguinte questo: em que medida e como o jogo se constituicomo elemento fundamental educao sob a anlise da hermenutica filosfica? Especifica-mente, intencionamos esclarecer o papel do jogo para a hermenutica filosfica de Gadamer(2007)e determinar a influncia do carter ldico do jogo dialgico e sua contribuio educao. Fundamentalmente, nosso estudo consiste em uma abordagem terico-conceitual,de carter filosfico, cuja fundamentao encontra-se, basicamente, nas obras Verdade e MtodoII (2004),Verdade e Mtodo I (2007) eEducar educar-se(2000) de H. G. Gadamer.

    A acepo metafrica e o emprego da noo de jogoOs jogos suscitam mltiplas representaes e constituem um dos modos pelo qual

    so definidas as noes e as atitudes de que a humanidade tem se utilizado desde a antiguida-de. Para Huizinga (1971), o uso de metforas - melhor que o sentido literal - que nos permitechegar essncia dos fenmenos. O problema que a metfora, do ponto de vista literal,positivista, foi rechaada da filosofia. Do ponto de vista iluminista, unvoco, ela no possui

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    funo cognitiva, mas apenas valor ornamental, confundido, em geral, com a funo de distra-ir, e no de instruir. Contudo, Gadamer (2007) afirma que quanto mais a gente metaforiza,melhor se compreende, ou ainda mais: quanto mais nos distanciamos do original, tanto maisteremos chance de descobrir o originrio.

    O jogo, na filosofia, em geral, ainda malvisto, e, por aludir ao ldico, relegado aohorizonte do no filosfico. Ele no pertence circunscrio conceitual utilitrio-pragmticanem faz parte do rol dos mtodos clssicos da filosofia. No rejeit-lo como filosfico resultade um erro de perspectiva ou menosprezo categorial. Como se trata de atividade no orientadateleologicamente em direo a um fim a atingir, conclui-se que no possui razo. Porm, o jogoconsiste e aborda um porqu, sem para qu. Da mesma forma que a rosa floresce sem porqu,o jogo sem porqu, joga-se por jogar. precisamente em seu sem para que, que vai, entre-tanto, de par com um porqu, que deve ser tomado a srio (GADAMER, 2007).

    A compreenso da dignidade e da seriedade do jogo, como filosficas, dependerda perspectiva que se tiver presente. Quem parte de uma perspectiva analtica, matemtica,

    portanto, parcial da linguagem, no compreende o jogo como uma metfora metodolgico-filosfica. O jogo sendo uma metfora viva (RICOEUR, 2000), uma metodologia do conhe-cer e pensar foi utilizada por alguns filsofos ao longo da tradio do pensamento ocidental.Quem parte de uma compreenso de totalidade pode compreend-lo como uma metfora e ummodo de pensar autenticamente filosfico. Deste modo, para se chegar ao mago da essnciado jogo, devemos confiar nas metforas: pois a fenomenologia do jogo nos permite compreen-der melhor o fato de que as metforas, longe de serem uma espcie de luxo da linguagem,jogam um papel central na articulao lingustica do mundo (GADAMER, 2007). Portanto, nanoo de jogo, como um todo ordenado e coerente, esto juntas, tensionalmente, a contingn-cia e a liberdade, a razo forte e a razo fraca, a racionalidade apodtica e a racionalidade veros-smil, o determinismo e o acaso. Por isto que, do ponto de vista filosfico-educacional, o serhumano no deveria ser apenas tomado como homo sapiens, homo faberou homo lpus, mas tam-

    bm e, sobretudo, como homo ludens(HUIZINDA, 1971).Os jogos humanos podem ser classificados com base em quatro caractersticas funda-

    mentais: de competio, de imitao, de acaso e de vertigem. Estas concepes de jogo mos-tram como se d o decidir do vir-a-ser de uma civilizao. No jogo acontece uma espcie deajuste entre os diferentes elementos que compem certa situao, verificando-se relaes deinterdependncia e dependncia estveis. Nele acontecem, s vezes, situaes em que se esta-belecem duravelmente, at o final do jogo, quer a liderana incontestada de um dos times querum marasmo generalizado, sem que a relao energtica das foras que se defrontam imponha,mecanicamente, um ou outro desfecho. Acontece e emerge algo no jogo que no pode serprevisto nem explicitado a priorinem a partir de suas partes isoladas (GADAMER, 2007).

    O jogo constitui-se sempre como processo e, por isto mesmo, sempre temporal,

    pois algo novo e imprevisto pode emergir. Nele, o que resulta, a coisa mesma, no produtofinal da aplicao de uma tcnica sobre algo. O que emerge, ao longo do processo, possui certaautonomia, em seu conjunto, com relao ao ponto de partida e com relao ao que estenvolvido no mesmo. O motor principal do jogo reside na prpria interao entre elementosrealmente distintos ou entre partes semidistintas, no seio do organismo vivo.

    Na filosofia, o jogo foi empregado, entre outros, por Heidegger (1989a), Wittgenstein(1975) e Gadamer (2007). Heidegger (1989a)usou a noo de jogo para descrever a transcen-

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    dncia prpria ao ser-no-mundo do Dasein humano. Listou, para tanto, diferentes jogos echamou a ateno para a plurivocidade da noo de jogo. Com o projeto de dar um fundamen-to existencial noo de viso de mundo, Heidegger (1989a) retomou a definio kantianade homem do mundo como aquele cuja habilidade e jogo de cintura o qualificam para parti-cipar no grande jogo da vida. Neste caso, o mundo do qual se trata aqui a cena onde sedesenvolve o jogo do ser-um-com-o-outro dos homens em sua relao ao ente. Esta defini-o no apreende, pois, o homem como membro do cosmos, mas, ao contrrio, em suasrelaes histricas de sua existncia. Wittgenstein (1975), em sua anlise acentuadamentepragmtica dos jogos de linguagem, entrelaou, conjuntamente, as noes de gramtica e deforma de vida. Seu foco de interesse pelo jogo concentra-se na noo de regra existente eacentuada, ao passo que, para Heidegger (1989a), a noo de jogo mesmo, como transcen-dncia, o que interessa.

    O emprego que Gadamer (2007) fez do jogo evidencia o fato de que, execuo dojogo de palavras, todos os empregos referem-se a fenmenos naturais ou impessoais, e no a

    atividades humanas. Compreende-se, ento, melhor que o mundo, que est em questo tem oprimado sobre a atividade humana. Ou seja, o jogo no enfatiza a proeza ou a performace deum sujeito, que mostra do que ele capaz, mas como a descoberta que o si (soi) se encontratomado em um jogo no qual ele no o iniciador nem o senhor. Neste sentido, a experinciahermenutica desenvolvida por Gadamer se apresenta como o poder ou a faculdade pa-radoxal de nos deixarmos atingir e afetar por um sentido e uma verdade que nos precede porcausa da companhia eterna do jogo onde, de agente, o sujeito se torna participante, destina-trio do sentido do qual ele mesmo no o autor (senhor).

    O jogo como estrutura metodolgica da hermenutica filosfica

    A hermenutica conhecida apenas como um instrumento apropriado s cinciashumanas. Em oposio ao mtodo analtico, que esclarece e disseca o objeto, seria um mtodointerpretativo, compreensivo, apropriado interpretao das coisas humanas. H, contudo,um certo grau de fundamento nisto, porm, para Grondin (1999), depois das obras Ser e Tempode Heidegger (1989a; 1989b)e Verdade e Mtodode Gadamer (2004; 2007), no mais possvelreduzir a hermenutica a uma doutrina ou receiturio interpretativo, nem conceb-la comouma atividade que se contrape cincia moderna.

    J, na perspectiva de Rohden (2002), para se compreender melhor o jogo como mto-do filosfico desenvolvido por Gadamer (2007), necessrio ter presente algumas reflexesde Heidegger (1989a), acerca da desconstruo do mtodo cartesiano. Para Heidegger (1989a),por um lado, o mtodo no , agora, mais apenas a ordenada sucesso dos diversos passos da

    reflexo, demonstrao, exposio e sistematizao de conhecimentos. Por outro lado, o pen-sador se afastou tambm do mtodo especulativo-dialtico de Hegel (2003), sobretudo porquea subjetividade constitui seu estatuto fundamental. Ante estes dois mtodos, Heidegger (1989a)justificou que o mtodo especulativo-hermenutico o nico possvel e necessrio para umpensamento que articula sua nova tarefa apoiada na estrutura binria de velamento e desvela-mento: a questo do ser. Assim, para Stein (2008) a hermenutica, na perspectiva de recondu-zir os conceitos petrificados ao seu sentido original, realizou uma destruio, ou seja, uma

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    desconstruo da subjetividade moderna. Gadamer (2007)assume este modo de filosofar e,na esteira da crtica ao mtodo cientfico moderno, procurou alargar a noo de mtodo. Nomomento, restringimo-nos a mostrar, numa concepo mais ampla de hermenutica, o jogocomo modelo estrutural metodolgico apropriado filosofia, desenvolvido por Gadamer (2007),na primeira parte de Verdade e Mtodo I.

    Para Gadamer (2007), os mtodos da cincia natural no captam tudo o que vale apena saber, nem sequer o que mais vale a pena: os fins ltimos, que devem orientar todo odomnio dos recursos da natureza e do homem. Diferentemente do mtodo cientfico, com ofilosfico, no se pretende chegar a um fim ltimo e definitivo, que elimina a histria, aexperincia e a instigante atitude filosfica de querer sempre saber mais. Ainda, de acordocom Gadamer (2007), somente uma conscincia cientfica exacerbada at a cegueira podeignorar que o debate sobre os verdadeiros fins da sociedade humana, ou a pergunta pelo serem pleno predomnio do fazer, ou a recordao de nossa origem histrica e de nosso futuro,dependem de um saber que no cientfico.

    Para Stein (1998), no por acaso que Gadamer intitulou sua obra Verdade e Mtodo.No a intitulou Verdade ou mtodo nem Verdade contra o mtodo nem pretendeu suprimir omtodo cientfico por outro lado. A reduo do mtodo filosfico ao modelo matemtico, namodernidade, exige de ns uma reflexo, a fim de recolocarmos o sentido e o modo prprioda filosofia. Neste sentido, pode-se inferir que Gadamer (2007) apresentou o jogo como fiocondutor da explicao ontolgica.

    Quando falamos de jogo no contexto da experincia da arte no nosreferimos ao comportamento, nem ao estado de nimo daquele que criaou daquele que desfruta do jogo e muito menos liberdade de uma sub-jetividade que atua no jogo, mas ao modo de ser da prpria obra de arte.[...] De certo, pode-se diferenciar do prprio jogo o comportamento do

    jogador, que, como tal, se integra com outros modos de comportamentoda subjetividade. [...] A partir disso, podemos procurar determinar o con-ceito de jogo. O que mero jogo no srio. O jogar possui uma refern-cia essencial prpria para com o que srio. [...] O jogar s cumpre afinalidade que lhe prpria quando aquele que joga entra no jogo. No a referncia que, a partir do jogo, de dentro para fora, aponta para aseriedade; s a seriedade que h no jogo que permite que o jogo sejainteiramente um jogo. Quem no leva a srio o jogo um desmancha-prazeres. O modo de ser do jogo no permite que quem joga se compor-te em relao ao jogo como se fosse um objeto. Aquele que joga sabemuito bem o que o jogo e que o que est fazendo apenas um jogo,mas no sabe o que ele sabe nisso. (GADAMER, 2007, p. 154-155)

    Rigorosamente falando, o jogo no um mtodo compreendido como a realizao deum caminho para se chegar a um fim determinado previamente. O jogo um caminho, ouseja, um modelo estrutural segundo o qual podemos mostrar e explicar, com determinadospressupostos, condies e exigncias, como se d e deve ocorrer o saber filosfico. Assim,para evitar mal-entendidos, consider-lo-emos um modelo estrutural, com pressuposto e con-dies filosficas, no intuito de explicarmos, em ltima anlise, os traos filosficos prprios

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    da hermenutica, diferente e complementar dos mtodos cientficos, dialticos, analtico, fe-nomenolgico (ALMEIDA, 2000).

    Por jogo compreendemos o ldico, o cltico, o dramtico, o literrio. Muito mais queum mero fazer de conta, o jogo possui uma dimenso fixa, objetiva, com regras prprias,tempo limitado, espao demarcado, ocorrendo na mais absoluta seriedade embora seja umjogo. Contudo, ele s acontece com propriedades subjetivas, tais como: liberdade, correr orisco, conscincia de que apenas aps ter jogado saber-se- o resultado ou o processo experi-encial. Ou seja, para Gadamer (2007, p. 160):

    O prprio jogo um risco para o jogador. S se pode jogar com pos-sibilidades srias. Isso significa, evidentemente, que algum se engajaao ponto de permitir que elas o superem e se imponham. O atrativoque o jogo exerce sobre o jogador reside exatamente nesse risco. Des-frutamos assim de uma liberdade de deciso que est correndo riscos e

    est sendo inapelavelmente restringida.

    Com a noo de jogo, podem-se conservar os principais ganhos da modernidade: aobjetividade cientfica e a subjetividade, pois, s joga, em sentido autntico, quem se prope ajogar. O jogador distingue-se do jogo por seu comportamento subjetivo, por sua liberdade decriao ao jogar. No jogo, como comportamento ldico, no desaparecem todas as refernciasfinais ou regras, mas permanecem, por assim dizer, suspensas, pois quem joga sabe que o jogono mais que jogo e este s cumpre o objetivo que lhe prprio quando o jogador seabandona totalmente no jogo. A relao que o jogador possui com o jogo diferente darelao com outros objetos. Nesse sentido, no possvel mostrar o sentido do jogo indepen-dentemente do jogador e vice-versa, ou seja, no possvel objetific-lo totalmente.

    Conforme Gadamer (2007), a obra de arte no pode ser compreendida nem apenas

    em si mesma, nem enquanto projeo subjetiva de quem a contempla. O verdadeiro ser daArte converte-se numa experincia que modifica ao que a experiencia. Este um dos elemen-tos essenciais do jogo enquanto possui essncia prpria, independente da determinao cons-ciente e voluntria dos jogadores em oposio ao determinismo da subjetividade moderna.

    Ora, segundo Gadamer (2007, p. 155), o sujeito do jogo no so os jogadores. Elesimplesmente ganha representao atravs dos que jogam o jogo. por isso que no deve-mos compreender o jogo como um simples desempenho de uma atividade teleologicamentepredeterminada, como ocorre com uma determinada concepo do mtodo dialtico hegelia-no. O sujeito o jogo em si mesmo, joga e jogado nele mesmo, sendo necessrio que haja, nojogo, um outro que jogue com ele e responda s suas iniciativas com suas contrainiciativas.Para que haja jogo no absolutamente indispensvel que outro participe efetivamente do

    jogo, mas preciso que ali sempre haja um outro elemento com o qual o jogador jogue e que,de si mesmo, responda com um contralance ao lance do jogador (GADAMER, 2007, p. 159).O jogo apresenta uma tarefa particular ao que joga, em que este no pode abandonar-se, totale simplesmente, sua liberdade ao jogar. O jogo no se constitui de um movimento linear,mas assemelha-se ao movimento antistrfico das tragdias gregas.

    O jogo precisa ser compreendido como um processo medial, mais que um simplesinstrumento. No jogo, para Gadamer (2007, p. 156), sempre est implcito o vaivm de um

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    movimento que no se fixa em nenhum alvo, onde termine. O ser do jogo no est naconscincia ou na conduta de quem joga, mas, pelo contrrio, atrai este ao seu crculo e oenche de seu esprito. O jogador experimenta o jogo como uma realidade que o supera.

    O movimento que jogo no possui nenhum alvo em que termine,mas renova-se em constante repetio. O movimento de vaivm obri-gatoriamente to central para a determinao da essncia do jogo quechega a ser indiferente quem ou o que executa esse movimento. Omovimento do jogo como tal tambm desprovido de substrato. ojogo que jogado ou que se desenrola como jogo; no h um sujeitofixo que esteja jogando ali. O jogo a realizao do movimento comotal. (GADAMER, 2007, p. 156-157)

    Diferentemente do mtodo cientfico que, partindo de uma hiptese procura apenas

    confirm-la, num movimento semelhante ao de Ulisses que retornou ao mesmo ponto dondesaiu, a hermenutica filosfica, mostrvel pelo modelo estrutural do jogo, assemelha-se atitude corajosa e aberta realidade, que encontramos em Abrao. A representao dramtica um jogo com uma estrutura consistente. O drama, ainda que o que representa seja ummundo complementar fechado em si mesmo, est aberto ao espectador. Sem espectador eleno alcana seu pleno significado. Ou seja, em Gadamer (2007, p. 163), o espectador apenasrealiza o que o jogo como tal.

    Neste sentido, o jogo dramtico no est desligado da contingncia das condies deacesso por parte do espectador. Vale dizer, em Gadamer (2007, p. 164), o jogo aparece comorepresentao para o espectador, ou seja, como espetculo. O jogo no uma simples repre-sentao nem implica apenas autorreconhecimento, mas construo que no resulta apenas daatividade subjetiva nem da passividade objetiva, mas da interpretao e imbricao dessas

    duas polaridades. Tambm a interpretao uma recriao, porm esta no se guia por um atocriador precedente, seno pela figura da obra j criada, pois ela mesma existe enquanto experin-cia, independente da conscincia daqueles que jogam, porm cada qual deve repre-sentar como nela encontra algum sentido. Construo no sentido de que a experincia do es-pectador em relao ao drama, ou ao texto, leva a uma experincia enquanto produto darelao que acontece quando se interpreta ou assiste a um drama. Assistir a um drama algomais que a simples copresena com algo que tambm est a. Assistir quer dizer participar. Oque est entre o falar e o ouvir que so traos constitutivos do compreender designa esignifica deixar ouvir, sentir, ouvir no sentido de estar atento, o que explicita o aspecto passivodo conhecimento humano. A concepo de jogo, como estrutura epistemolgica prpria daexperincia artstica, acena para o sentido humano da indiferena-ativa ante a obra de arte.

    No h separao entre sujeito e objeto no jogo, como mtodo para conhecer e saber.Segundo Palmer (1989), entre ambos, h uma relao de pertena mtua. Para compreender-mos o conceito de pertena ser conveniente que observemos a dialtica peculiar, contida noouvir. Nesta perspectiva, est o fato de que quem interpelado tem de ouvir, queira ou no.No pode apartar seus ouvidos, tal como se aparta a vista de outra coisa, olhando para deter-minada direo, enquanto nenhum dos demais sentidos participa diretamente na universalida-de da experincia lingustica do mundo, j que cada um deles abarca to somente o seu campo

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    especfico, o ouvir um caminho rumo ao todo, porque est capacitado para escutar o logos. E,talvez, contra a tirania do olhar, devssemos explorar o que est contido no ouvir como umaface da metodologia hermenutica.

    Essa estrutura da experincia hermenutica contrria, pois, ao procedimento dacincia, uma vez que tem seu fundamento prprio no acontecer da linguagem. A insuficinciado conceito de mtodo moderno se deve ao fato de pretender constituir-se numa reflexoexterna. Para Hegel (2003), o verdadeiro mtodo seria o fazer da prpria coisa, contudo,obviamente que a coisa no anda seu caminho nem segue seu curso sem que ns pensemos.

    O educar, o conhecer e o saber, a partir do modelo estrutural do jogo, ficam emaberto, no sentido de que no se concluem em conceitos definitivos. o que ocorre na expe-rincia esttica em que h um jogo (a arte em si mesma), um jogador (espectador ativo, admi-rador) e o jogo, que consiste na experincia de admirao de uma obra de arte. Percebe-se que,nessa relao tripolar, no bipolar, no h eliminao nem sobreposio de um dos polossobre os demais. O saber se constitui como um jogo e representao. A concepo de jogo

    desenvolvida por Gadamer (2007) implica uma pertena do jogador ao jogo. A distncia doespectador em relao representao cnica no arbitrria, mas essencial para a constitui-o da unidade de sentido do jogo. Neste sentido, para Gadamer (2007, p. 164):

    Mesmo o espetculo teatral continua sendo jogo, isto , tem a estrutu-ra do jogo, estrutura de ser um mundo fechado em si mesmo. Mas, pormais fechado em si mesmo que seja o mundo representado no espet-culo cltico ou profano, est como que aberto para o lado do especta-dor. s neste que ganha o seu inteiro significado. Como em todojogo, os atores representam seus papis, e assim o jogo torna-se repre-sentao, mas o prprio jogo o conjunto de atores e espectadores.De fato, aquele que no participa do jogo mas assiste quem faz a

    experincia mais autntica e que percebe a inteno do jogo. Nele ojogo eleva-se sua idealidade prpria.

    O saber filosfico facultado pelo modelo estrutural do jogo remete-nos experinciasocrtica de filosofar. Da, para Gadamer (1983), que a filosofia tem sua origem: ela no Sofia, disposio de um saber sobre algo, mas aspirao para ele. E como tal a mais altapossibilidade das pessoas. Ou, ento, a filosofia no se coloca jamais como uma cincia prontae acabada; ela no abandona seu velho nome e continua sendo somente um projeto sempreinacabado e incompleto, sempre s amor sabedoria.

    Tanto o espectador, o intrprete, bem como o drama, a obra e o filsofo, cada um temseu prprio horizonte. Filosofar consiste em assumir o desafio de pr em jogo o horizonte que

    cada um carrega consigo para que ocorra uma autntica fuso de horizonte. Em outras pala-vras, a hermenutica supe, descobre e apresenta as condies de verdade que no esto nalgica da investigao, seno que a precedem. Neste sentido, a hermenutica, ao estar s voltascom a explicao de pressupostos e dogmas conceituais, no se concebe como simples conci-liadora da realidade. Muito antes, revela-se como crtica ao procurar mostrar-se como jogo.

    O pressuposto da inter-relao e da alteridade manifesta-se na explicao e execuodo modelo estrutural do jogo. Deste modo, possvel desmascarar a atitude de neutralidade

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    cientfica como garantia de verdade e ampliar o cogitocartesiano que, a princpio, pretendejogar sozinho, contrariando a lei do jogo. A partir do jogo, a verdade no resultante de umasimples aplicao de um mtodo. A verdade qual se chega aplicando um mtodo umaverdade lgica, abstrata, em tudo diferente da verdade como filha do tempo, em tudo diferentede uma concepo de verdade irredutvel certeza.

    por esta razo que ressaltamos que a atitude do jogador no deve ser compreendidacomo um comportamento da subjetividade, j que , antes, o prprio jogo o que joga, namedida em que inclui em si os jogadores e se converte deste modo no verdadeiro subjectumdomovimento ldico. O filosofar, para Gadamer (2007), converte-se num jogo irredutvel aofazer de conta porque aquele que compreende j est sempre includo num acontecimento, emvirtude do qual se faz valer o que tem sentido; na medida em que compreendemos, estamosincludos num acontecer da verdade e, quando queremos saber o que temos de crer, parece-nos que chegamos demasiado tarde.

    O equvoco da filosofia moderna foi, segundo Coreth (1973), ter fundamentado seu

    procedimento na metodologia das cincias naturais. Contudo, precisamos distinguir nveis deracionalidade. No possvel pensar assuntos matemticos, de modo provvel. Talvez dever-amos falar em mtodos filosficos, como o analtico, o dialtico, o indutivo, o fenomenolgi-co, sem exclusivizar um caminho, um jogo. Como h diferentes jogos de linguagem, h dife-rentes jogos metodolgicos, e a relao entre eles como a relao entre parentes, afinal, ahumanidade no pode ser encaixada num leito de Procrusto. Entretanto, o que permanececomum o jogo com as exigncias apresentadas anteriormente. Neste sentido, a hermenuti-ca, ao repensar o modo de filosofar, converte-se numa postura, num modo de ser, cuja expe-rincia mostrvel pelo modelo estrutural do jogo. O jogo filosfico autntico aquele quenos arranca do nosso solipsismoe nos impulsiona a ver com mais sensibilidade e clareza, commais amplido e ostentao o real.

    Gadamer (2007), com o seu mtodo ensastico, em oposio possibilidade de se

    construir Sumas ou de se ocupar com disputas silogsticas, estreis, com sua obra, quase todaescrita em forma de ensaios/artigos, se ops construo ou concepo de filosofia como umsistema absoluto. Porm, tem no centro de suas reflexes o ser humano, enquanto realidadeconcreta. Isto se explicitou, na forma de um saber, como um modo de viver que se joga como mundo. Deste modo, seria temerrio afirmar que ele defendeu um mtodo contra outros, oucontra a verdade. Ampliou - e quisemos mostrar isto pelo modelo do jogo - tanto um quantoo outro. Outrossim, o que a tica, como uma reflexo sobre a moral, seno uma aposta numjogo que deve ser jogado pela argumentao em torno da passagem do ser ao dever-ser?Passamos do tempo em que se impunham os princpios ticos pela autoridade. Neste sentido,para Rohden (2008, p. 87):

    A tica trata-se de um jogo, porque os sujeitos ticos devem estarenvolvidos no mesmo para jogar e projetar o que deve ser assumidocomo bem de todos. O autoritarismo no joga, impe. Os sistemasabsolutos no jogam, induzem e deduzem. O dogmatismo no joga,cr. O ceticismo no joga, silencia. Enfim, quem pensa que sabe, secala e somente quem ainda no sabe, prope-se, sempre de novo, ajogar o jogo filosfico.

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    Hermenutica: dilogo - do jogo filosfico ao jogo educativo

    Nesta ltima parte da presente reflexo, procura-se estabelecer, a partir da noo dejogo, uma aproximao entre hermenutica e educao (HERMANN, 2002). Trata-se, aqui, deapresentar o jogo como uma experincia hermenutica enquanto modo de pensar , que expeo modo reducionista de entender a educao a partir dos ditames da cientificizao, em que oOutro se torna objetivado, para indicar que o processo educativo uma experincia do prprioaluno, que se realiza pela linguagem. Quanto mais o processo pedaggico se aproxima dosparmetros cientficos, maior a pretenso de controle das circunstncias em que ocorre talprocesso. Dentro dessa estrutura deixam escapar a experincia dos atores envolvidos no pro-cesso, com seus inevitveis preconceitos e danos, empobrecendo, assim, a experincia formati-va. Na racionalidade cientfica, conforme Flickinger (1998), o processo pedaggico interpre-tado como algo que se pode dominar, sendo, inclusive, traduzvel em tcnicas que promovamum ensino ativo. Na estrutura e abordagem do jogo na hermenutica filosfica, a conduo do

    processo pedaggico pela via cientfico-metodolgica um equvoco, porque desconsidera apluralidade de concepes pedaggicas que expressam diferentes modos de socializao e deorientaes valorativas em favor da crena de que s temos um caminho a seguir. Em contra-posio a isto, busca na linguagem um horizonte, de relao educativa, no objetivvel e queconstitui um espao interpretativo que no tem limites.

    luz do modelo estrutural do jogo hermenutico, o processo pedaggico extrapola arelao sujeito-objeto, no sentido do sujeito que domina o objeto. Esta interpretao expe aestreiteza das categorias prevalecentes nos sistemas de ensino (avaliao, procedimentos peda-ggicos, metodologias). Tais determinaes metodolgicas costumam reduzir o espao deexperincia, em que aquele que aprende deve entregar-se nova situao, aceitando o risco dasincertezas. Por isto, em nome do jogo abertura da experincia educativa, Gadamer (2000)afirma que s atravs do dilogo possvel aprender (p. 10) e, em seguida, completa: edu-

    car educar-se (p. 11). Isto implica apreciar a posio do outro (aluno) como algum quenecessita ter suas capacidades e limites respeitados. S neste espao de jogo e de aberturadialgica pode se dar o convencimento necessrio a respeito dos contedos da aprendizagem,e o aluno pode realizar sua prpria experincia. A experincia educativa, enquanto jogo, oeducar se constitui como educar-se, que, por sua vez, pressupe reconhecer que o processo deeducao vulnervel e que se educar uma exposio ao risco.

    Para Gadamer (2000), o jogo educativo, enquanto reflexo hermenutica, implicaque, na compreenso de algo ou algum, produz-se uma autocrtica. Deste modo, para que oconceito de emancipao no se torne abstrao, preciso pressupor que aquele que compre-ende no adota uma atitude de superioridade, mas sente a necessidade de submeter a examesua suposta verdade, ou seja, necessita pr em jogo seus prprios preconceitos. E isto s pode

    acontece, para Rohden (2002), no espao do dilogo, gerando uma atitude de autocrtica.Portanto, jogo enquanto experincia educativa exige a exposio ao risco, s situaes abertase inesperadas, coincidindo com a impossibilidade de assegurar a tais prticas uma estruturaestvel, que garanta o xito da ao interventiva.

    Uma abordagem hermenutica da educao no pode deixar de reconhecer a fecundi-dade da experincia do estranhamento, pela constante necessidade de ruptura com a situaohabitual, como exigncia para penetrar no processo compreensivo. O sentido da educao no

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    emerge de uma abstrao, de uma subjetividade pura, nem encontra sua produtividade quandose entrega rede de tcnicas e procedimentos metodolgicos, mas da entrega ao jogo daprpria experincia educativa, aceitando o que ela tem de imprevisibilidade. Trata-se da lgicados acontecimentos, que no captvel pela lgica dos conceitos. Deste modo, na educao, importante a valorizao da metfora, pois ela amplia as possibilidades compreensivas, que,por sua vez, abrem espao para a pluralidade contra o esmagamento do modelo nico e seusperigos. Numa palavra, os jogos pedaggicos, a despeito do domnio buscado por diferentestcnicas, trazem consigo o movimento prprio da existncia humana, que a tenso entreiluminao e encobrimento.

    Por conseguinte, na busca da aproximao entre hermenutica e educao, parte-se,mais uma vez, do pensamento de Gadamer (2000), para quem o dilogo espao de compre-enso mtua. O jogo e a experincia do conhecer, que acontecem no dilogo, implicam odeslocamento da possibilidade de se chegar ao conhecimento por uma ao da conscincia dosujeito, para dar relevncia conversao. Assim, o aprender se realiza por meio do jogo do

    dilogo, de modo a tornar ntido o vnculo entre aprender, compreender e dialogar. Ou seja, odilogo que busca a espontaneidade viva do perguntar e do responder, do dizer e deixar-sedizer, modo prprio de a hermenutica filosfica se estruturar. O dilogo se constitui, assim,na possibilidade de experimentar nossa singularidade e a experincia do outro com suas obje-es ou sua aprovao. Ele s acontece quando deixa algo em ns. O dilogo no a experin-cia de algo novo por si s, mas algo outro que veio ao nosso encontro, que ainda nohavamos encontrado em nossa prpria experincia do mundo. O dilogo possui uma foratransformadora.

    Gadamer trata do dilogo em vrias partes de sua obra, mas o tematiza especifica-mente em Verdade e Mtodo II(2004), no ensaio intitulado incapacidade para o dilogo (p.242). Seu objetivo consiste em uma defesa do dilogo, contudo, aponta, paradoxalmente, parauma espcie de incapacidade para a conversao. Neste sentido, a partir de Gadamer (2004),

    pode-se questionar: at que ponto a arte do dilogo est desaparecendo no campo educativo?Na vida social e pedaggica de nossa poca, no estamos assistindo a um processo crescentede monologizao do comportamento humano? O monlogo no seria um fenmeno tpicode uma educao que acredita excessivamente no processo tcnico-cientfico e, por conse-guinte, deixa de lado a dimenso tica? Que experincias especficas, no mundo moderno,fazem os nossos alunos se calarem? O que de fato est contribuindo para o que se tem chama-do de incapacidade para o dilogo? E o que o dilogo e qual a sua contribuio para umaautntica educao?

    Estas perguntas destinam-se a compreender o dilogo desde uma perspectiva maisabrangente, ou seja, a partir daquele dilogo que busca a espontaneidade viva do perguntar edo responder, do dizer e do deixar-se dizer. Deste modo, o dilogo o modo prprio da

    hermenutica filosfica se estruturar. Em outras palavras, segundo Hermann (2002, p. 91), odilogo se constitui assim na possibilidade de experimentar nossa singularidade e a experin-cia do outro com suas objees ou sua aprovao. Ele s acontece quando deixa algo em ns.

    Nesta perspectiva, Gadamer (2004) reconhece vrios tipos de jogos de dilogo: peda-ggico, negocial, teraputico e potico - a) Dilogo pedaggico, aquele que acontece entreprofessor e aluno no processo de ensino. Na tradio, o dilogo sempre foi constitutivo darelao pedaggica, embora nem sempre os professores mantenham essa capacidade dialgi-

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    ca. Com frequncia, quem ensina acredita que, quanto mais clareza, densidade e organizaotiver o tema, melhor ser o resultado obtido. Essa incapacidade para o dilogo se deve ao fatode o professor ser o transmissor autntico da cincia. O aprisionamento da educao pelomodelo da cientificidade cria dificuldades para a abertura dialgica ao outro. A experinciaeducativa originria se alimenta da linguagem vivida no dilogo, que d possibilidade para ohomem constituir a si mesmo; b) Dilogo como negociao aparece na troca entre os interlo-cutores. O xito deste dilogo ocorre quando surge um acordo, que pressupe o saber ouvir,de modo a superar nossas prprias limitaes. Os envolvidos no dilogo no so trocadoscomo pessoas, mas na medida em que administram seus prprios interesses; c) Dilogo tera-putico acontece a partir de uma situao inicial em que a comunicao natural de algum comos outros est impedida por ideias delirantes. A incapacidade para o dilogo decorre de estadopatolgico. Na situao teraputica, o dilogo revela-se como um trabalho de esclarecimento,e no como uma simples aplicao do saber mdico. A incapacidade para o dilogo aparece,tambm, quando o prprio envolvido no consegue se pr em dilogo com o outro, no senti-

    do de ouvi-lo ou ouvir mal. O dilogo autntico exige a participao dos envolvidos, ou seja,pressupe que o participante esteja aberto para mudar sua prpria posio e entrar no jogocom o outro. A palavra que circula no dilogo desvela, questiona, configura identidades edemanda diferenas; d) Dilogo potico uma fora que desvela o ser e configura possibilida-des. O dilogo no um procedimento metodolgico, mas se constitui na fora do prprioeducar, que educar-se, no sentido de uma constante confrontao do sujeito consigo mesmo,com suas opinies e crenas, pela condio interrogativa na qual vivemos. A peculiaridade dasituao dialgica que nenhum dos interlocutores tem uma posio superior do outro. Aocontrrio, os interlocutores tm de levar a srio a posio um do outro, e desse processo surgeum conhecimento que, at ento, no se encontrava disponvel para nenhum dos envolvidos.

    A despeito de uma diversidade de tipos de dilogos, por um lado, a incapacidade paraa conversao aparece na forma daquela incapacidade que no se confessa a si mesma, onde o

    prprio envolvido no jogo dialgico no consegue colocar-se em dilogo com o outro. Essaincapacidade pode ser tanto subjetiva, resultante da incapacidade de ouvir, como objetiva, pelaausncia de uma linguagem comum.

    Por outro lado, a incapacidade para o dilogo vai se aprofundando na estrutura mo-nolgica de nossa civilizao cientfica, que no nos permite mais prestar ateno ao sentidodas palavras. O verdadeiro dilogo exige a participao de todos os envolvidos, em que estestm a possibilidade de exporem as suas prprias posies culturais, cientficas, filosofias, po-lticas, religiosas etc. Portanto, o dilogo autntico pressupe que os participantes estejamabertos para mudarem as suas prprias posies e entrarem no jogo com o outro. Isto porque,para Gadamer (2004), a palavra que circula no dilogo desvela, questiona, configura identida-des e demarca diferenas.

    Por conseguinte, Flickinger (1998), na esteira do pensamento gadameriano, defendeque a educao, em seu sentido verdadeiro, o lugar por excelncia do jogo, do dilogo, olugar por excelncia da palavra e da reflexo, que ultrapassa a apropriao dos conhecimentospara nos conduzir formao pessoal. Desde que podemos dizer a palavra, estamos em cons-tante conversao com o mundo, instaurando a prpria possibilidade de educar. A palavra quejoga e circula no dilogo tambm a palavra da pergunta: fazer a pergunta significa declarar arelatividade, a limitao de nosso conhecimento e reconhecer nossa finitude, mas, tambm,

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    convite a si incessante. Deixar os que se educam dizer a palavra radicalizar a ideia de que ohomem possui linguagem. A abertura de horizontes que o dilogo possibilita permite educa-o fazer valer a polissemia dos discursos e criar um espao de compreenso mtua entre osenvolvidos.

    Consideraes finais

    Procuramos, nesta reflexo, explicitar dois eixos temticos: em primeiro lugar, mos-trar o ponto de tenso do jogo hermenutico com o sistema filosfico marcado pelo cientifi-cismo moderno de carter eminentemente positivista, cuja pretenso foi atribuir um nicocaminho para se atingir a verdade. Neste sentido, a hermenutica se insurge como uma contra-posio a este modo monista cientfico-metodolgico, enquanto espao exclusivo de constru-o do conhecimento, trazendo o interpretar, o produzir sentido e a impossibilidade de separar

    o sujeito do mundo objetivado. Ou seja, a hermenutica, como jogo filosfico, afasta-se doprocedimento objetivador, peculiar cincia moderna e, por conseguinte, recupera, para asubjetividade, a condio de pertencimento e familiaridade a uma cultura, que a constitui epredetermina todas as suas possibilidades de compreenso. Este modo de filosofar tematiza acompreenso da experincia humana no mundo, um mundo que, desde j, se oferece interpre-tado. Por isto, o seu problema central mostrar que a verdade, enquanto experincia e vivn-cia, interpretao, um ato histrico-cultural.

    Em segundo lugar, analisamos em que medida a hermenutica, como horizonte inter-pretativo, interfere e possibilita a compreenso do jogo educativo. No que toca aproximaoentre hermenutica e educao, procuramos demonstrar quanto os resultados deste tipo defilosofia contribuem no campo educacional, sobretudo por viabilizarem uma autocompreen-so, uma autocrtica da prtica pedaggica, bem como gestar condies de possibilidade de se

    produzirem novas interpretaes sobre o sentido da formao. A filosofia hermenutica naeducao resgata o seu verdadeiro carter enquanto jogo dialgico, pois o ato de compreenderpressupe abertura ao Outro, ao mundo. Portanto, na educao como jogo dialgico, oprprio sujeito que se educa com o Outro. Ou seja, o dilogo no um mero procedimentometodolgico, mas constitui-se como mvel do prprio educar, que educar-se como umconstante confronto da subjetividade consigo mesma, com suas vivncias que pressupemum mundo cultural anterior ao prprio sujeito.

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    Artigo recebido em novembro de 2010 e aceito em dezembro de 2010.