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O fenômeno crossover fiction na obra As Crônicas de Nárnia, de C.S. Lewis Juliana Garcia de Mendonça Hanke (Universidade Estadual de Maringá - UEM) Resumo: Em 1949, C.S. Lewis escreveu o livro O leão, a feiticeira e o guarda-roupa, posteriormente escreveu outros seis livros que juntos formam a obra As Crônicas de Nárnia, uma obra repleta de aventuras, viagens, criaturas fantásticas e batalhas. O último livro que compõem as crônicas, A última batalha, ganhou a Carnegie Medal, uma medalha estabelecida no Reino Unido em 1936 para premiar livros escritos para o público infantil e juvenil. É mais do que claro que essa se trata de uma obra destinada a esse público, entretanto ela traspôs os limites de seu público e alcançou o público adulto. Sandra Beckett (2009) afirma que livros capazes de desfocar as linhas entre crianças e adultos são chamados de livros crossover, obras que cruzam as fronteiras entre públicos. Esse é apenas um dos exemplos dessa literatura e umas das formas de manifestação do fenômeno crossover fiction. A partir de aspectos textuais, buscamos apontar que se trata de uma narrativa escrita para jovens, mas permeadas de alegorias e relações com a vida real que tem cativado muitos leitores adultos, levando-os a inferências e reflexões. Palavras-chave: Crossover fiction; Literatura juvenil; Público juvenil. Introdução Por volta de 1956, o último livro que compõe As Crônicas de Nárnia, de C. S. Lewis, foi publicado. As Crônicas formam uma obra repleta de fantasia com aventuras vivenciadas por crianças em um mundo diferente do nosso, a famosa Nárnia. Inserida em um mundo característico do público infantil, essa é uma narrativa considerada crossover não apenas pela eloquência e escrita do autor, mas também pelo fato de apresentar um encontro intrigante entre fantasia e realidade capaz de cativar leitores de todas as idades. As histórias, cheias de encanto, magia, dragões, dríades, faunos, heróis, vilões, Aslam e crianças como protagonistas, apontam diretamente para o mundo da fantasia, infantil e juvenil, entretanto, ao nos debruçarmos atentamente ao texto, compreendemos que não se trata de uma obra apenas para esse público. Essa obra atravessa a fronteira entre públicos ao se mostrar uma verdadeira alegoria da vida real, com ensinamentos sobre integridade, ética e moral e com um fundo cristão despercebido por muitos, sendo, portanto, necessário um conhecimento prévio para se fazer as inferências necessárias e não ficar apenas na superfície dessa obra. O último livro que compõem as crônicas, A última batalha, ganhou a Carnegie Medal, uma medalha estabelecida no Reino Unido em 1936 para premiar livros escritos para o público infantil e juvenil. Essa medalha vem para comprovar que esse livro é uma literatura para jovens e crianças. Além disso, logo no início, o livro pode apresentar marcas textuais com relação ao

O fenômeno crossover fiction na obra As Crônicas de Nárnia ... · magia, dragões, dríades, faunos, heróis, vilões, Aslam e crianças como protagonistas, apontam diretamente

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O fenômeno crossover fiction na obra As Crônicas de Nárnia, de C.S. Lewis

Juliana Garcia de Mendonça Hanke

(Universidade Estadual de Maringá - UEM)

Resumo: Em 1949, C.S. Lewis escreveu o livro O leão, a feiticeira e o guarda-roupa,

posteriormente escreveu outros seis livros que juntos formam a obra As Crônicas de Nárnia,

uma obra repleta de aventuras, viagens, criaturas fantásticas e batalhas. O último livro que

compõem as crônicas, A última batalha, ganhou a Carnegie Medal, uma medalha estabelecida

no Reino Unido em 1936 para premiar livros escritos para o público infantil e juvenil. É mais

do que claro que essa se trata de uma obra destinada a esse público, entretanto ela traspôs os

limites de seu público e alcançou o público adulto. Sandra Beckett (2009) afirma que livros

capazes de desfocar as linhas entre crianças e adultos são chamados de livros crossover, obras

que cruzam as fronteiras entre públicos. Esse é apenas um dos exemplos dessa literatura e umas

das formas de manifestação do fenômeno crossover fiction. A partir de aspectos textuais,

buscamos apontar que se trata de uma narrativa escrita para jovens, mas permeadas de alegorias

e relações com a vida real que tem cativado muitos leitores adultos, levando-os a inferências e

reflexões.

Palavras-chave: Crossover fiction; Literatura juvenil; Público juvenil.

Introdução

Por volta de 1956, o último livro que compõe As Crônicas de Nárnia, de C. S. Lewis,

foi publicado. As Crônicas formam uma obra repleta de fantasia com aventuras vivenciadas

por crianças em um mundo diferente do nosso, a famosa Nárnia. Inserida em um mundo

característico do público infantil, essa é uma narrativa considerada crossover não apenas pela

eloquência e escrita do autor, mas também pelo fato de apresentar um encontro intrigante entre

fantasia e realidade capaz de cativar leitores de todas as idades. As histórias, cheias de encanto,

magia, dragões, dríades, faunos, heróis, vilões, Aslam e crianças como protagonistas, apontam

diretamente para o mundo da fantasia, infantil e juvenil, entretanto, ao nos debruçarmos

atentamente ao texto, compreendemos que não se trata de uma obra apenas para esse público.

Essa obra atravessa a fronteira entre públicos ao se mostrar uma verdadeira alegoria da vida

real, com ensinamentos sobre integridade, ética e moral e com um fundo cristão despercebido

por muitos, sendo, portanto, necessário um conhecimento prévio para se fazer as inferências

necessárias e não ficar apenas na superfície dessa obra.

O último livro que compõem as crônicas, A última batalha, ganhou a Carnegie Medal,

uma medalha estabelecida no Reino Unido em 1936 para premiar livros escritos para o público

infantil e juvenil. Essa medalha vem para comprovar que esse livro é uma literatura para jovens

e crianças. Além disso, logo no início, o livro pode apresentar marcas textuais com relação ao

público a que se dirige. Por exemplo, as primeiras edições de O leão, a feiticeira e o guarda-

roupa apresentavam na capa a seguinte inscrição: “A Story for Children” (Uma história para

crianças). Estamos lidando, então, com uma obra cujo alvo são crianças e jovens, mas como o

próprio autor do livro diz “[i]nclino-me quase a afirmar como regra que uma história para

crianças de que só as crianças gostam é uma história ruim. As boas permanecem” (LEWIS,

2009, p.743). As Crônicas de Nárnia é, pois, um texto crossover – aquele que transpõe a

barreira entre os públicos tradicionalmente separados, a saber, crianças e adultos. Sandra

Beckett (2009) é a maior expoente em se tratando de literatura crossover e, em seu livro

intitulado Crossover fiction: global and historical perspectives, a autora faz a seguinte

afirmação: “Literatura crossover (...) se refere a ficção que cruza de criança para adulto ou de

adulto para audiências de criança”1 (BECKETT, 2009, p.4 – tradução da autora do artigo).

Desse modo, esse artigo procura, a partir da leitura sobre o fenômeno crossover fiction

discutido por Sandra Beckett (2009), investigar as marcas presentes na obra que a permitem

ser considerada uma literatura crossover e ser destinada não apenas ao aparente público-alvo –

crianças e jovens –, mas também ao público adulto. A partir de construções textuais que exigem

uma inferência por parte de um leitor que possua uma maior experiência de vida e de leitura, é

possível comprovar que esse é um texto que busca, também, por leitores adultos. Para alcançar

tal objetivo, lançou-se mão da metodologia de caráter bibliográfico, e o trabalho foi dividido

em dois capítulos além da introdução e das considerações finais – o primeiro discute a teoria

do fenômeno de cruzamento das fronteiras entre públicos, com base em Sandra Beckett (2009);

e o segundo centra-se na discussão e análise dos aspectos que fazem de As Crônicas de Nárnia

uma crossover fiction.

1 Crossover Fiction – de criança para adulto

Sandra Beckett (2009) afirma que livros capazes de desfocar as linhas entre crianças e

adultos são chamados de livros crossover, obras que cruzam as fronteiras entre públicos. Os

anos 2000 têm sido um ponto de marco para a literatura crossover, apesar de não se tratar de

um fenômeno novo. O fenômeno Potter fez com que editores e mídia voltassem seus olhos para

essa literatura. Antigamente, as publicações não eram especialmente destinadas ao público

1 “’Crossover literature’ (...) refers to fiction that crosses from child to adulto or adult to child audiences”

(BECKETT, 2009, p.4).

infantil ou juvenil, a obra encontrava sua própria audiência (BECKETT, 2009). Alguns dos

livros crossover mencionados pela própria autora são O Senhor dos Anéis, de Tolkien, escrito

entre os anos de 1954 e 1955; Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, 1865; O mágico

de Oz, de L. Frank Baum, 1900, e inclusive o objeto de estudo desse artigo, As Crônicas de

Nárnia, de C.S. Lewis – o primeiro livro das crônicas foi escrito em 1949. Antes desses ainda,

as fábulas de La Fontaine, lidas por crianças, jovens e adultos e publicadas em 1668.

Melina Galete Braga Pinheiro (2015) afirma que, por se tratar de um fenômeno antigo,

mas só considerado recentemente, é um conceito ainda aberto, no entanto aponta sempre para

o texto que rompe as barreiras entre os diferentes leitores. Ademais, a autora afirma que ironias

e referências presentes em um texto considerado infantil e juvenil podem exigir uma leitura

adulta, com mais experiência de mundo, “sem que, no entanto, coloquem entraves sérios à

fruição da obra” (PINHEIRO, 2015, p.68), pelo fato de tal texto apresentar referências

próximas ao universo juvenil. Segundo Ana Margarida Ramos e Diana Navas (2015), um texto

que apresenta uma riqueza em termos e referências intertextuais e simbólicas se aproxima do

universo crossover, quando tais referência forem dirigidas a leitores com experiência de vida

e de leitura.

Existem alguns gêneros que nunca se limitaram a um determinado público, fábulas,

apólogos, contos de fadas e contos orientais são exemplos de tais textos. É muito comum,

também, que um autor tenha escrito seu texto com certa audiência em mente, no entanto, ser

comercializado para outro público. A literatura que rompe as barreiras é oriunda de uma

tradição secular e permite seu compartilhamento entre crianças e adultos, sendo obras que

migram da audiência infantil para adulta, ou da adulta para o público infantil – apesar de

Beckett (2009) afirmar que essa segunda é a mais comum, nossa análise se centrará em um

livro que transmigra do público infantil e juvenil para o adulto, como já mencionado

anteriormente. Além disso, a teórica afirma que existe uma tendência em equiparar textos

crossover à fantasia, todavia todos os outros gêneros podem cruzar as linhas que separam as

audiências.

Sandra Beckett (2009) nos aponta Alice no País das Maravilhas (1865) como um

exemplo desse fenômeno. A autora afirma que esse livro “tem um lugar incontestado no cânon

ocidental da literatura infantil, mas, na verdade, raramente é lida, pelo menos em sua forma

integral, pelos filhos de hoje. Os fãs entusiastas dos livros de Alice tendem hoje a ser adultos”2

(p.103 – tradução da autora do artigo). Dessa maneira, podemos compreender o que muitos

autores e críticos dizem com relação a categorização rígida entre literatura adulta e literatura

infantil e juvenil estar intimamente ligada a questões mercadológicas e não a necessidades

psicológicas e sociais. C.S. Lewis (2009) afirma que a classificação dos livros em faixas etárias

de forma rígida tem uma relação superficial com os hábitos dos leitores reias, e profunda com

os editores. Reiteramos essas afirmações com as palavras de Sandra Beckett (2009, p.9 –

tradução da autora do artigo), “muitos autores e críticos tem sustentado que a boa literatura

infantil deve atrair também a adultos”3. Em outros termos, a boa literatura deve ser crossover.

É importante apontar que Sandra Beckett (2009) estuda esse fenômeno em dois níveis,

a saber, o crossover de Adulto-para-criança e o crossover de Criança-para-adulto, além de

apontar os aspectos gráfico-editoriais de um livro e a atuação das editoras como responsáveis

por facilitar a transposição dos limites entre públicos. Visto que analisamos uma obra

considerada literatura infantil e juvenil e que também é consumida por adultos, focamos no

crossover de Criança-para-adulto. Recentemente, os livros infantis têm ganhado posições

importantes nas listas de best-seller, antes ocupada apenas por livros adultos. Ademais, Beckett

(2009) afirma que adultos leem sem medo ou vergonha tais livros. Aqui destacamos a formação

do mercado crossover.

Embora os livros crossover não sejam novos, o mercado de crossover como tal era

virtualmente inexistente até o final da década de 1990 (BECKETT, 2009). A partir de então,

editores passam a ser muito mais sofisticados na maneira como embalam um livro (FIGURA

1). Para não ter o custo de duas edições, editores procuram capturar um público crossover – a

circulação do livro entre os públicos nas duas direções – a partir de uma embalagem que seja

semelhante para adultos e jovens leitores. Dessa maneira, editores reembalam um texto infantil

de modo a cativar um adulto, da mesma maneira, um texto adulto é projetado graficamente

para atrair o jovem e a criança. “Para posicionar um livro como um crossover, os editores

geralmente especificam em algum lugar no paratexto que é destinado a uma audiência diversa”4

2 “(...) has an uncontested place in the Western canon of children’s literature but, in actual fact, it is seldom read,

at least in its integral form, by today’s children. The enthusiastic fans of the Alice books tend nowadays to be

adults” (BECKETT, 2009, p.103). 3 “(...) many authors and critics have maintained that good children’s literature must also appeal to adults”

(BECKETT, 2009, p.9). 4 “In order to position a book as a crossover, publishers often specify somewhere in the paratext that it is meant

for a diverse audience” (BECKETT, 2009, p.232).

(BECKETT, 2009, p. 232 – tradução da autora do artigo). No caso da edição analisada de As

Crônicas de Nárnia, trata-se de um livro volume único, contendo todas as sete crônicas, e na

orelha do livro encontramos a seguinte informação: “Enganosamente simples e diretas, As

Crônicas de Nárnia continuam cativando os leitores com aventuras, personagens e fatos que

falam a pessoas de todas as idades, mesmo cinquenta anos após terem sido publicadas pela

primeira vez”, no paratexto do próprio livro existe essa marcação que revela sua intenção de

alcançar as “pessoas de todas as idades”.

Figura 1 diferentes edições de As Crônicas de Nárnia

2 As Crônicas de Nárnia à luz do fenômeno crossover fiction

Alguns dos livros que compõem as crônicas foram adaptados para diversos meios como

rádio, televisão e cinema. O lançamento da adaptação cinematográfica de O leão, a feiticeira e

o gurada-roupa pela Disney só fez crescer o interesse do público pela obra. A popularidade

duradoura desse livro

entre os adultos foi claramente demonstrada quando ficou na nona posição na

Big Read 2003 da BBC, a maior pesquisa de ficção popular já realizada entre

os adultos, com o objetivo de encontrar o " Best-Loved Book" da Grã-

Bretanha. O fato de que o livro infantil de Lewis apareceu no top dez prova

que suas histórias de fantasia atraem uma ampla audiência de adultos”5

(BECKETT, 2009, p.105 – tradução da autora do artigo).

O autor de As Crônicas de Nárnia afirma “[e]screvi o que eu gostaria de ter lido quando

criança e que ainda gosto de ler agora, com mais de cinquenta anos (C.S. LEWIS, 2009, p.

741). Deixa claro, pois, a sua intenção de sua obra ser um texto que alcance todos os públicos.

Ele dá seu próprio exemplo dizendo que, quando criança, apreciava os contos de fadas e, depois

de adulto, seu gosto não mudou, ele apenas cresceu, passando, assim, a gostar de contos de

fadas e também de Tolstói, Jane Austen e Trollope. O autor começou a escrever para crianças

apenas após completar 50 anos de idade, apesar disso, suas crônicas são o trabalho mais

conhecido e apreciado do autor. A primeira de suas crônicas foi publicada em 1950 e a última,

em 1956, todas elas ilustradas por Pauline Baynes. Antes da saga Harry Potter, As Crônicas de

Nárnia eram os livros de fantasia mais consumidos, em especial o livro intitulado O leão, a

feiticeira e o guarda-roupa (1950), o segundo livro das crônicas, mas o primeiro a ser escrito.

Beckett (2009) afirma que

[o]s livros de Nárnia são lidos por estudantes universitários e outros adultos,

bem como por crianças e adolescentes. Enquanto alguns adultos leem os

livros como ficção cristã alegórica, as crianças apreciam principalmente as

histórias como fantasias emocionantes6 (BEKETT, 2009, p.105 – tradução da

autora do artigo).

O fato de ser considerado uma ficção alegórica cristã é em decorrência de o Grande

Leão Aslam ser uma representação de Cristo, ele é o único personagem que está presente em

todas as crônicas, desde de a criação de Nárnia até sua destruição. Muitas referências bíblicas

são encontradas no decorrer das histórias, e essa é uma importante marca que categoriza esse

livro como crossover. Tais referências requerem de seus leitores inferências a nível não

superficial, que exigem experiência de vida e de leitura. Na segunda crônica, O leão, a feiticeira

5 “(...) among adults was clearly demonstrated when it placed ninth in the BBC’s 2003 Big Read, the largest survey

of popular fiction ever conducted among adults,with the goal of finding Britain’s ‘Best-Loved Book’. The fact

that Lewis’s children’s book appeared in the top ten proves that his fantasy stories appeal to a wide audience of

adults” (BECKETT, 2009, p.105). 6 “The Narnia books are read by college students and other adults as well as by children and adolescents. While

some adults readthe books as allegorical Christian fiction, children mainly appreciate the novels as exciting

fantasies” (BECKETT, 2009, p.105).

e o gurada-roupa, esse retrato fica claro ao percebermos a alusão que o autor faz a crucificação

de Cristo. A seguir, alguns excertos dessa referência:

(...) Um momento antes de desferir o golpe, a feiticeira inclinou-se e disse,

vibrando com a voz:

– Quem venceu, afinal? Louco! Pensava com isso poder redimir a traição da

criatura humana?! Vou mata-lo, no lugar do humano, como combinamos,

para sossegar a Magia Profunda (...). Consciente disso, desespere e morra.

(...)

O sol dera a tudo uma aparência diferente, alternando de tal maneira as cores

e as sombras, que por um momento não repararam na coisa de fato importante.

Até que viram. A Mesa de Pedra estava partida em duas por uma grande

fenda, que ia de lado a lado. E de Aslam, nem sombra. (...)

Olharam. Iluminado pelo sol nascente, maior do que antes, Aslam sacudia a

juba. (C.S. LEWIS, 2009, p. 171 e 174).

Esse nível de leitura só é possível a um leitor que já tenha um conhecimento prévio com

relação à história aludida. No entanto, como a literatura permite diferentes níveis de leitura, o

leitor que não possui esse conhecimento prévio não terá sua leitura truncada. Outrossim, essa

história pode ser considerada pesada para crianças, visto que se trata de um assassinato e é

descrito com riqueza de detalhes. Nessa mesma cena, um pouco antes de a feiticeira sacrificar

Aslam, o autor escreve o seguinte:

Vou lhe contar o que elas viram.

Uma imensa multidão estava reunida em torno da Mesa de Pedra. Embora o

luar clareasse tudo, muitos traziam tochas, que ardiam com sinistras chamas

vermelhas e fumo negro.

Que bicharada! Ogres de dentes monstruosos! Lobos! Homens com cabeça

de touro! Espíritos de árvores más e de plantas venenosas! Não falo de outros

seres porque, se fizesse isso, as pessoas adultas não o deixariam ler este livro:

vulpinos, bruxas, íncubos, fúrias, horrores, espectros, sátiros, lobisomens...

Estavam ali todos os que eram do partido da feiticeira, convocados pelo lobo

(C.S. LEWIS, 2009, p.169-170).

Júlia Zuza (2014) afirma que temas considerados desadequados para crianças são por

vezes abordados em livros crossover. Beckett (2009) lembra que temas mais sombrios estão

na literatura infantil há séculos; por exemplo, os contos de fadas de Perrault, dos irmãos Grimm

e de Andersen, entremeados com cenas de crueldade, violência e morte. Assim também

acontece na obra analisada, temas considerados para adultos são abordados e trabalhados de

maneira a levar o leitor (seja qual for sua idade) à reflexão. É interessante destacar no trecho

acima o fato de C.S. Lewis afirmar que não vai mencionar outros seres porque os adultos não

permitiriam que as crianças lessem tal livro, mas logo em seguida, ele continua elencando os

seres, como uma maneira de preparar o leitor infantil e juvenil para o que estaria por vir, mas,

também, como uma forma de provocar e brincar com seu leitor adulto – visto que, apenas lendo

o livro, o adulto poderia saber do que se trata e, então, não permitir a leitura.

C. S. Lewis faz algumas considerações quanto a essa temática em seu ensaio Três

maneiras de escrever para crianças, compilado ao final do livro As Crônicas de Nárnia

(volume único, 2009). O escritor assevera que se o adulto não permitir que seu filho leia

histórias em que coisas assustadoras aconteçam, prendendo-o apenas a historinhas inocentes

sobre a vida infantil, não conseguirá eliminar os terrores da vida e tirará da vida dele tudo

aquilo que possa tornar esses terrores respeitáveis ou suportáveis. A última batalha, último

livro das crônicas, que ganhou a Carnegie Medal, é um exemplo de temática considerada

desapropriada para um público infantil, além de trazer descrições de momentos considerados

terríveis. A história se desenrola a partir das trapaças de um rei macaco que tem um fim terrível

nas mãos de um deus impiedoso (FIGURA 2).

Figura 2 - deus Tash, ilustração original de Pauline Baynes

Ademias, o capítulo catorze dessa história conta sobre o fim das maravilhosas terras de

Nárnia, lugar em que os protagonistas viveram as maiores aventuras de suas vidas, enfrentaram

dificuldades, perigos e inimigos, mas cresceram e aprenderam com tudo o que viveram. O fim

de Nárnia requer inferências de uma leitura adulta, novamente o escritor faz aqui uma alusão

bíblica, ao apocalipse, o fim do mundo, um grande julgamento:

– Que agora haja um fim!

O gigante lançou ao mar sua trombeta. Depois esticou um braço (era negro e

parecia ter milhares de quilômetros de comprimento) através do céu, até que

sua mão alcançou o Sol. Ele o pegou e espremeu com a mão como quem

espreme uma laranja. E, no mesmo instante, fez-se total escuridão (C.S.

LEWIS, 2009, p.722).

Lutas e mortes são temas muito recorrentes na obra de C.S. Lewis, no entanto, são, por

vezes, apresentados de maneira sublime, proporcionando ao leitor o contato com etapas da vida

e desafios que nela encontramos, sem deixá-lo na redoma da literatura que mostra apenas “o

lado bonito da vida”. Uma das características da literatura crossover é a abordagem desses

temas de cariz existencial, segundo Ramos e Navas (2015), temas como vida, morte, perdas.

Tais temáticas “são trazidas à tona, convidando o leitor não apenas a contemplá-las, mas a

refletir e a compreendê-las como situações integrantes do seu contexto” (RAMOS; NAVAS,

2015, p.246). A habilidade de escrita e de linguagem e a narrativa de estrutura sofisticada, além

da qualidade estética do texto são elementos presentes nos textos que cruzam a fronteira e

permitem o alcance de públicos diversos.

Existem algumas reflexões presentes no texto que apontam para pessoas de todas as

idades, tanto pela questão da eloquência e da construção da tessitura textual, como também,

por levar seu leitor a uma reflexão mais profunda acerca do que está sendo dito

superficialmente, ou seja, é necessária uma leitura entrelinhas. Segundo Pinheiro (2015), tal

leitura não se mostra um entrave para os jovens leitores por permitir diferentes interpretações,

variando segundo a capacidade de interpretação de cada leitor. Esse é um dos aspectos da

literatura crossover, a qual possibilita a

interpretação ‘por camadas’ ou em diferentes níveis de profundidade, desde

uma leitura ‘superficial’, a outras mais profundas, decorrentes da relação de

cada leitor com o texto, dos objetivos de leitura específicos, da maturidade

leitora e da própria experiência de vida (PINHEIRO, 2015, p.69).

A terceira crônica, O cavalo e seu menino, é um exemplo claro do que foi dito acima.

Os excertos apresentados a seguir revelam a intenção do autor de ensinar a seus jovens leitores

lições que considera preciosas, assim como lembra-las a seus leitores adultos que podem tê-las

esquecido, ou até mesmo nunca terem se dado conta delas. Referindo-se ao jovem protagonista

da história, Shasta, o autor escreve “[a]inda não aprendera que a recompensa de uma boa ação

é geralmente ter de fazer uma outra boa ação, mais difícil e melhor” (C.S. LEWIS, 2009,

p.255). Com relação ao enfrentamento das dificuldades que o protagonista vive, “[m]as de

repente pensou que ter medo naquele momento era sentir medo em todas as outras lutas de sua

vida” (C.S. LEWIS, 2009, p.271). O último trecho que destacamos dessa história para mostrar

que se trata de um texto que busca ambas as audiências se trata de um diálogo entre o grande

Leão e o cavalo de guerra Bri, que se envolve em uma grande aventura com o jovem Shasta: “

– Aslam – disse, Bri, com voz estremecida –, acho que sou um estúpido. – Feliz o cavalo que

sabe disso ainda na juventude. Ou o humano” (C.S. LEWIS, 2009, p.278 – grifos da autora do

artigo).

Existe um outro trecho de As Crônicas de Nárnia que merecem destaque nesse sentido

de ser uma consideração que requer de seu leitor um aprofundamento na leitura, com

referências e inferências oriundas de uma experiência de vida. Da crônica O Príncipe Caspian:

“[n]ão seria medonho se um dia, no nosso mundo, os homens se transformassem por dentro em

animais ferozes, como os daqui, e continuassem por fora parecendo homens, e a gente assim

nunca soubesse distinguir uns dos outros?” (C.S. LEWIS, 2009, p.349). Para o leitor mirim, se

trata apenas de uma reflexão sobre como seriam os homens se fossem como animais, mas o

leitor adulto tem conhecimento da crítica que existe por detrás dessas palavras e alude a todos

aqueles seres humanos que agem de maneira impulsiva, quase como animais.

Para finalizar as discussões acerca de As Crônicas de Nárnia, retomamos brevemente

o que Beckett (2009) afirma sobre o trabalho sofisticado dos editores que embalam os livros e,

assim, facilitam o cruzamento das obras. É importante mencionar que essa elaboração não se

resume a capa do livro, mas envolve todos os paratextos que pode apresentar e todo o projeto

gráfico-editorial de um livro. De acordo com Alice Áurea Penteado Martha (2010), tal

composição passa por vezes despercebida ao leitor, mas os editores lançam mão dele na

intenção de “atrair leitores para um texto pouco adequado ao público pretendido” (MARTHA,

2010, p.68). Quando se trata de um texto destinado ao público infantil e juvenil, vê-se um

grande investimento na materialidade do texto – qualidade do papel, tipografia, encadernação,

ilustração, design gráfico.

Em geral, o público infantil e juvenil é alcançado por meio do trabalho gráfico-editorial

elaborado pelas editoras, em especial, “alicerça-se na ilustração e no convencimento, com o

auxílio dos paratextos (MARTHA, 2010, p.68). No caso, da edição que compõe o corpus desse

trabalho, fica clara a intenção do mercado em fazer circular tal livro nos dois âmbitos: infantil

e juvenil e adulto. Beckett (2009) afirma que o mercado embala um único livro para alcançar

públicos diversos. A obra selecionada é composta por páginas carregadas de textos

apresentando ilustrações apenas em algumas poucas páginas, como por exemplo na primeira

página dos capítulos (FIGURA 3) e alguns mapas de Nárnia no decorrer dos livros para que o

leitor compreenda o percurso feito pelas personagens. Essa é uma característica marcante de

literaturas para jovens adultos e adultos – extensas manchas textuais por páginas com pouca ou

nenhuma ilustração. Mais uma característica que coloca a obra como um livro crossover.

Figura 3 - ilustração original de Pauline Baynes na primeira página do capítulo 12 do livro O leão, a feiticeira e

o guarda-roupa

Considerações finais

Esse artigo objetivou investigar algumas das marcas textuais e gráficas presentes no

livro As Crônicas de Nárnia que o permitem ser considerado uma ficção crossover e, portanto,

circular e ser consumido por audiências diversas e não apenas por aquela à qual é destinado a

princípio. Tal investigação foi baseada nos estudos de Sandra Beckett (2009) sobre o crossover

fiction. As construções textuais analisadas exigem inferências por parte do leitor e fazem

referências que estabelecem uma leitura mais adulta e madura, comprovando que esse texto vai

à procura de leitores adultos.

Diante disso, concluímos que a rígida separação entre literatura infantil e juvenil e

adulta tem sido cada vez mais colocada em xeque. Os interesses mercadológicos que antes

lucravam e muito com essa separação, hoje, dão vez para e investem na literatura crossover. O

livro As Crônicas de Nárnia, de C.S. Lewis, é, pois, uma ficção crossover, que ultrapassa as

barreiras e vai ao encontro dos leitores adultos. A construção da narrativa aponta para uma

fantasia repleta de aventuras, com um narrador que se dirige a seus jovens leitores, mas que

traz conceitos, ideias e referências que exigem uma leitura adulta, capaz de ler nas entrelinhas

do texto. Além disso, o fato de o aspecto gráfico do livro analisado ser composto quase que

unicamente por textos, é característica marcante dos livros destinados aos jovens adultos e

adultos.

Finalmente, esperamos que esse artigo contribua em alguma medida para os estudos

sobre o fenômeno crossover fiction que, apesar de ser um fenômeno antigo, foi conceituado

recentemente, por volta dos anos 2000, e, por isso, trata-se um conceito ainda muito aberto que

merece ser estudado e está longe de ser uma temática exaurida.

Referências

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2009.

LEWIS, C. S. As Crônicas de Nárnia. volume único. Tradução Silêda Steuernagel, Paulo

Mendes Campos. 2. ed., 2009.

MARTHA, A. A. P. Mercado editorial e efeméride: Machado de Assis para jovens leitores. In

Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia

(CIELLA); organização Myriam Crestian Chaves da Cunha, Jorge Domingues Lopes. Belém:

Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPA, vol. 1, 2010. p.67-75.

PINHEIRO, M. G. B. Uma leitura do romance A vida no céu, de José Eduardo Agualusa,

à luz do conceito de crossover fiction. 2015. 79f. (Dissertação Mestrado em Línguas,

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