O Engenheiro e o Político, As Relações Entre o Discurso Político e o Discurso Científico Na Trajetória de Francisco Pereira Passos - Janaina Lacerda Furtado

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Sobre politica urbana no Rio de Janeiro

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    O engenheiro e o poltico: as relaesentre o discurso poltico e o discurso cientficona trajetria de Francisco Pereira Passos

    The engineer and the politician: the relations between politicaland scientific speech in the trajetory of Francisco Pereira Passos

    JANAINA LACERDA FURTADOMuseu de Astronomia e Cincias Afins | MAST

    RESUMO: A histria da cidade do Rio de Janeiro do sculo XIX, com suas reformas urbanas e epidemias, , sem dvida,um tema bastante recorrente na historiografia a maioria dos trabalhos fixa-se na anlise dos problemas de sade pblicae reurbanizao da cidade a partir da dcada de 1890 e incio do sculo XX. Entretanto, desses trabalhos, pouqussimosso voltados anlise da Comisso de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro, a primeira iniciativa do governo, nocaso do Ministrio dos Negcios do Imprio, ainda na dcada de 1870, de remodelar a cidade. Nesse sentido, com esteartigo prope-se a anlise do movimento pr-Bota-Abaixo, mostrando de que maneira o futuro prefeito Pereira Passosconstruiu, definiu e delineou, desde sua formao na Escola Militar at a consolidao das obras, suas idias de reurbanizaoda cidade, analisando sua trajetria de vida, suas influncias pessoais e intelectuais, sua relao com as teorias da Juntade Higiene Pblica e seu projeto para a cidade do Rio de Janeiro, explicitado nos planos da Comisso, at as obraspropriamente ditas, j no incio do sculo XX, de abertura da grande Avenida Central.

    Palavras-chave: Brasil Imprio; sade pblica; Comisso de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro; poltica.

    ABSTRACT: The history of the city of the Rio de Janeiro in the XIX century, with its urban reforms and epidemics is,doubtless, a recurrent subject in Historiography the majority of works set itself in the analysis of Public Health problemsand the reconstruction of the city from 1890s decade to the beginning of the twentieth. However, in the 1870s a few ofthese works were set on the first initiative of the government the Department of the Business of the Empire - of rearrangingthe city. In this sense, this work proposes the analysis of the pr Bota-Abaixo movement, showing how the future mayorPereira Passos built, defined and delineated his works and ideas of rearranging the city, since his formation in the MilitarySchool. And it will continue by analyzing his path of life, his personal and intellectual influences, and also his relation withthe theories of the Junta de Higiene - set out in the plans of the Commission - up to the opening of the great Avenida Centralin the beginning of the century XX.

    Key words: Empire of Brazil; public health; Comisso de Melhoramentos of the City of Rio de Janeiro; politics.

    Introduo

    A biografia, que hoje em dia voltou a figurar como gnero historiogrfico, j foi apontada como aexpresso mxima de um tipo de historiografia que precisava ser reformulada. Foi criticada duramentepor diversos historiadores, dentre os quais Jacques Le Goff, que, em 1974, ressaltava a insuficincia

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    metodolgica de um gnero situado nas fronteiras da literatura e da histria1. Porm, alguns anos maistarde, o prprio Le Goff props uma nova biografia histrica, na qual o historiador deveria fugir dalinearidade da biografia tradicional e perguntar ao biografado sobre sua trajetria, lugar em que nasceu,cresceu, estudou; quais suas relaes sociais e pessoais; em que contexto histrico e cultural ele viveue atuou e em quais idias acreditava e quais defendia2.

    Pierre Bourdieu, em seu artigo A iluso biogrfica, lembra-nos de que no podemos compreenderuma trajetria que chama de envelhecimento social sem que tenhamos previamente construdo osestados sucessivos no campo no qual ela se desenrolou e o conjunto das relaes objetivas que uniramo agente considerado e os demais agentes envolvidos no mesmo campo e confrontados com o mesmoespao dos possveis. Trata-se da superfcie social, uma descrio rigorosa do conjunto de posies si-multaneamente ocupadas em um dado momento por um indivduo socialmente institudo e este, porsua vez, agiria como suporte de um conjunto de atributos e atribuies que permitem a esse indivduointervir como agente eficiente em diversos campos3.

    Giovanni Levi props uma tipologia para se construir a superfcie social de uma trajetria apartir dos conceitos elaborados por Bourdieu denominada biografia e contexto. Nessa tipologia, abiografia conservaria sua especificidade tratando o indivduo singularmente; porm, a poca, o meio ea ambincia devem ser valorizados como fontes capazes de caracterizar uma atmosfera que explicitariaa singularidade das trajetrias, no se tratando de reduzir as condutas a comportamentos tpicos, masde interpretar as vicissitudes biogrficas luz de um contexto4.

    A partir das propostas desses trs autores a meu ver, complementares , escolhi analisar atrajetria de um indivduo pertencente elite imperial5 nas dcadas de 1860 e 1870: o engenheiro efuturo prefeito do Rio de Janeiro Francisco Pereira Passos como o agente considerado de que nos falaBourdieu. O conselheiro e ministro do Imprio Joo Alfredo Correia de Oliveira, os engenheirosMarcelino Ramos da Silva, Jernimo de Moraes Jardim e Andr Rebouas foram escolhidos como osdemais agentes, objetivando construir a superfcie social em que se desenrolou essa trajetria.

    A opo por Pereira Passos como biografado deu-se a partir dos critrios propostos por Levi, queafirma que os indivduos escolhidos para serem biografados o so porque eles nos do acesso aosproblemas que nos interessam. Pereira Passos pertencente boa sociedade, estudante da EscolaMilitar na dcada de 1850, poca, justamente, em que o Rio de Janeiro sofria com as epidemias de febreamarela, clera e varola e em que os debates a respeito de melhorias urbanas e sanitrias comeavama tomar flego assistiu a todas as mudanas ocorridas durante a segunda metade do sculo XIX nacidade. Sua formao, certamente, conferiu ao jovem bacharel uma bagagem ideolgica que o seguiriaat a sua morte em 1913.

    A atuao desse indivduo nessa superfcie nos aponta nosso problema central: o discurso cientfico elaborado por engenheiros e mdicos da higiene e reforma urbana como uma atividade humana.Aquele que pratica e discute essa cincia , na realidade, parte intrnseca de uma sociedade e, como tal, nopode um discurso cientfico parte da cultura, sociedade, pas ou tradio em que cresceu e se formou6.

    Atores e Superfcie Social

    Joo Alfredo Correia de Oliveira, pernambucano e bacharel em Direito, comeou sua vida polticaem Pernambuco, como deputado estadual. Em 1870, veio para o Rio de Janeiro para assumir uma pasta

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    do Ministrio do Imprio. Na poca, era engenheiro do Imprio Andr Rebouas, tambm formadopela Escola Central, mas com uma idia de engenharia muito diferente da de Pereira Passos. Andr eraencarregado, dentre outras atividades, dos estudos sobre as possibilidades de abastecimento de guada cidade7 pelo ento ministro da Agricultura do Gabinete do visconde de Itabora Diogo Velho.

    Andr Rebouas organizou uma empresa privada, consultando Itabora sobre diversos temasfinanceiros e operacionais. Entretanto, a resoluo para o problema de abastecimento da cidadecaminhava devagar, pois o ministro Diogo Velho mostrava pouco interesse, ou incapacidade, de avaliaro projeto de Rebouas, que, alis, contava com a co-autoria de seu irmo Antnio, optando pela produode estudos preliminares, em parte tambm para no desagradar os demais engenheiros do ministrio,como Francisco Pereira Passos, que, certamente, ops-se fortemente ao projeto.

    Itabora, ento, resolveu pressionar Diogo Velho para que fosse tomada uma medida prtica, queresultou em uma Comisso Especial, formada pelos irmos Rebouas e o Inspetor de guas Monteirode Barros. A proposta do grupo implicava a abertura de poos em terrenos particulares, o que gerouuma forte oposio aos trabalhos da Comisso de Rebouas. Assim, Diogo Velho, acatando a negativado conde de Bonfim em fornecer a gua, freou as pretenses de Rebouas. Porm, Andr, que no eracontratado efetivo, dirigiu-se diretamente a Itabora, que deu a contra-ordem. Assim, apesar de contarcom a simpatia do conselheiro, cresceu a hostilidade entre os irmos Rebouas e os demais engenheirosligados a Diogo Velho, dentre eles, Pereira Passos. Com a queda de Itabora e a instaurao de um novogabinete, o ministro Joo Alfredo, agora frente do Ministrio da Agricultura, cancelou todos oscontratos anteriores e demitiu Andr Rebouas8.

    Para Maria Alice Rezende, esse episdio importante pois demonstra, alm do incio de umapoltica de gabinete, o quadro institucional de entrelaamento entre o poder pblico e o desenvolvimentode uma burocracia profissional, representada pelos engenheiros do Ministrio de Agricultura e ObrasPblicas, abrindo caminho para o ento jovem promissor Francisco Pereira Passos, que, naquele mesmoano, tornou-se consultor tcnico do Ministrio de Agricultura e Obras Pblicas, sob a chefia de JooAlfredo. No ano seguinte, rumou novamente para a Europa, dessa vez para Londres, como inspetorespecial das estradas de ferro subvencionadas pelo governo, atuando como mediador em uma srie decontratos, regressando em 18739. Em 1874, foi promovido a engenheiro do Ministrio do Imprio,com a incumbncia de integrar a Comisso de Melhoramentos, poca em que os engenheiros comeama aparecer efetivamente no cenrio poltico e a ganhar, a partir da Escola Politcnica, visibilidade social.

    O outro membro da Comisso, Jernimo Rodrigues de Morais Jardim, era formado em EngenhariaCivil e em Matemtica, pela mesma Escola Militar. Marechal reformado do Exrcito e Inspetor-Geraldas Obras Pblicas do Imprio, tambm desenvolvia trabalhos sobre o abastecimento de gua dacidade, tendo publicado Projecto de abastecimento dagua para a cidade do Rio de Janeiro em 1874. Tambmcompunha a Comisso o engenheiro Marcelino Ramos da Silva.

    Projetos de Melhoramentos no Rio de Janeiro:Entram em Cena os Engenheiros

    Por aviso de 27 de maio ltimo [...]plano geral para alargamento e rectificao de vrias ruas desta capital [...]com o fim de melhorar suas condies higyenicas e facilitar a circulao [...]

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    dando ao mesmo tempo mais belleza e harmonia s suas construces.(Primeiro Relatrio da Comisso de Melhoramentos)

    A Comisso de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro existiu de 1874 a 1876 e produziudois relatrios: um em janeiro de 1875 e outro aproximadamente um ano depois. O primeiro tratava daparte que abrangia as freguesias do Engenho Velho, Andara, So Cristvo, Catete e Botafogo. Esserelatrio tratava tambm com destaque o problema do Canal do Mangue, ou, nas palavras da Comisso:receptculo de imundices [...] foco permanente de infeces miasmticas10 e fixava ainda as regraspara a construo de casas particulares.

    No que dizia respeito ao Canal do Mangue, a Comisso propunha duas solues: a) aterro completodo canal, que seria substitudo por uma grande galeria coberta que receberia as guas pluviais e servidas;b) prolongamento do canal at o mar, combinado com a construo de esgotos laterais e a desobstruodo canal. No segundo relatrio11, a Comisso volta ao assunto reafirmando a necessidade das obras docanal e prope ainda a construo de um ramal da Estrada de Ferro D. Pedro II sobre a margem esquerdado canal e de uma estao martima para a mesma estrada.

    Para as freguesias do Engenho Velho e do Andara, as propostas eram de alargamento e retificaodas ruas e abertura de algumas grandes vias, os bulevares, tendo como meta principal ligar o Campoda Aclamao raiz da serra do Andara. J para as regies de So Cristvo, Catete e Botafogo, asobras propostas se limitavam ao alargamento de ruas e construo de praas, alm de sugestes deconstruo de um sistema de esgoto subterrneo em substituio ao j existente12.

    To logo foi apresentado, o relatrio sofreu inmeras crticas, inclusive de outros engenheiros,por no ter priorizado a parte central da cidade, onde os problemas eram considerados de maiorgravidade. Em resposta aos comentrios, o engenheiro Pereira Passos publcou um artigo no Jornal doComrcio13, no qual defendia a escolha dessas freguesias. Para ele, nesses locais seria possvel iniciar asobras imediatamente sem grandes problemas pois a regio possua um terreno menos acidentado ecom poucas edificaes. A normatizao devida para as ruas e construes possibilitaria, posteriormente,o deslocamento da populao da parte central para os arrabaldes, para em seguida se iniciarem asobras naquela regio.

    O segundo relatrio apresentado pela Comisso em 1876 contemplava, talvez em resposta scrticas, a parte central da cidade. Esse segundo documento propunha o arrasamento dos morros doCastelo e de Santo Antnio. Em relao ao traado urbano, sugeria o alargamento da Rua Larga de SoJoaquim, pelo lado direito, descendo, alm de seu prolongamento, at uma nova rua projetada entre asruas dos Ourives e Uruguaiana e da at o Largo de Santa Rita, que propiciou, mais tarde, na reformade Pereira Passos j na prefeitura, a abertura da Rua Marechal Floriano, que fez desaparecer as ruasEstreita e Larga de So Joaquim.

    Esse relatrio propunha ainda o alargamento da Rua Visconde de Inhama em toda a sua extenso,o alargamento e a retificao da Rua da Prainha entre a Rua dos Ourives e o litoral, bem como o seuprolongamento at a Rua Estreita de So Joaquim. Para finalizar, o alargamento de vrios pontos dasruas da Sade e de So Bento; a abertura de uma nova rua, comeando na Prainha, passando pelas ruasdos Ourives, Uruguaiana e Largo da Carioca e, seguindo em linha reta, passando pela Rua GonalvesDias at o Largo da Me do Bispo.

    Em linhas gerais, esse segundo relatrio se ocupa dos assuntos j tratados no primeiro, tais comoas habitaes populares, a largura e altura das ruas e o Canal do Mangue, alm de dedicar uma parteaos morros do Castelo e Santo Antnio, aconselhando o arrasamento total de ambos. Entretanto, o

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    que chama a ateno nesse segundo relatrio o fato de, a todo momento, remeter-se s obras desaneamento de cidades europias, como Londres, Paris, Marselha, Bruxelas, entre outras, como modelode civilizao a ser seguido em oposio barbrie:

    Nas cidades antigas, em que as conveniencias de defeza obrigavam a encerrar em limitado perimetro, as ruaseram geralmente muito estreitas e pouco extensas. Entre os povos brbaros, e entre outros pouco adiantados emcivilisao, as ruas so igualmente acanhadas e mal dispostas14.

    E continua, fazendo o contraponto passado/barbrie e futuro/civilizao moderna:

    O mesmo defeito ainda se nota em quase todas as cidades da Europa, que no tem soffrido alteraes no sculopresente. E que os nossos antepassados no sentiam as necessidades que tem creado a civilisao moderna, parasatisfazer s quaes necessrio aumentar a largura das ruas15.

    Uma parte que deve ser ressaltada nos discursos da Comisso, presente nos dois relatrios, aque se referia s habitaes populares. A Comisso estabelecia regras para as construes e opinavadesde a altura e espessura das paredes internas e externas dos edifcios at a disposio dos cmodos.Um bom exemplo o artigo de nmero 22 do primeiro relatrio, no qual a Comisso estabelecia quecada cmodo deveria ter uma abertura de pelo menos um metro quadrado para a rua ou para o quintal.Tais regras se aplicavam tanto a construes novas quanto a antigas, que deviam, inclusive, serem de-molidas caso houvesse necessidade. Segundo a Comisso, essas construes eram as principais causasdo pssimo estado de salubridade da capital do Imprio16.

    A prpria Junta Central de Higiene Pblica, em seu relatrio do ano de 1874, j havia assinaladoque as casas insalubres e sem ventilao como so os cortios e estalagens [constituam a causa da febreamarela, uma vez que era] onde se abrigavam mais de 20.000 almas, muitas das quaes em grande misria17.

    Fica claro que a insalubridade e as doenas estavam diretamente ligadas s populaes de baixarenda, que viviam aglomeradas, e cujos hbitos pouco higinicos e degradantes, como a bebida, a de-generao moral, levavam a uma predisposio a doenas. Estas eram, de acordo com tal raciocnio,um fator de medio do grau de civilizao de um pas. A populao pobre, em sua maioria negra emestia, era a causa do atraso em que vivia o pas, o que pode ser observado em um dos trechos finaisdo segundo relatrio, em que os engenheiros da Comisso afirmam que essas habitaes e seus mo-radores, pelo aspecto exterior do a triste idia de nossa civilizao e de nossos sentimentos de beloe harmonioso18.

    Concluso: da Teoria Prtica

    O homem filho de seu tempo.Marc Bloch

    Com o fim da Comisso, os planos de reforma no se concretizaram. A bem da verdade, a crisepoltico-financeira pela qual passava o Imprio com o trmino da Guerra do Paraguai e o en-fraquecimento poltico cada vez maior do Imprio, aliada sada do ministro Joo Alfredo do cargo, foiuma dentre as inmeras razes para que os projetos no sassem efetivamente do papel.

    O fato que os engenheiros j haviam conquistado seu espao, tomando a forma de um grupocada vez mais organizado e ocupando definitivamente um lugar junto ao poder, ultrapassando, inclusive,

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    os higienistas. Esse processo, que se delineou ainda na dcada de 1870, consolidou-se de vez umadcada mais tarde, com a fundao do Clube de Engenharia por Pereira Passos.

    No Clube de Engenharia discutia-se, principalmente, o saneamento da capital. Seus associados,dentre os quais os tambm engenheiros Paulo de Frontin e Viera Souto, preocupavam-se, sobretudo,com a necessidade de redefinir o espao urbano e exterminar definitivamente as epidemias. Entretanto,a crise de final do Imprio e incio da Repblica, aliada ao colapso do abastecimento de gua da cidadeem pleno vero de 1889, mostrou a ineficcia da municipalidade em lidar com os problemas urbanos,fato este que possibilitou a entrada do Clube de Engenharia e de seus membros no cenrio poltico dopas. Afinal, o audacioso e vitorioso bom que se diga plano de Paulo de Frontin para regularizar oabastecimento de gua levou o Clube de Engenharia para junto da municipalidade, executando trabalhosde consultoria para a prefeitura19.

    A essa altura, o governo, agora uma repblica, passava por uma srie de dificuldades a fim de seafirmar como regime de governo, tendo de administrar as faces ligadas a Floriano Peixoto, burguesiacafeeira e at a monarquistas saudosos. A crise se refletiu na prefeitura de 1889 a 1902, houve 19prefeitos diferentes, dentre fixos e interinos. Enquanto isso, o projeto de saneamento da capitalcontinuava na pauta, pois as epidemias assolavam sem trguas20.

    Em 1903, o ento presidente da Repblica Rodrigues Alves convidou o engenheiro FranciscoPereira Passos coroando de vez a passagem do Clube de Engenharia e seus membros para a esferapblica para ocupar um cargo pblico importante que possibilitaria a efetivao dos planos desaneamento para o Rio de Janeiro elaborados por aquela instituio.

    Aos 66 anos de idade, Pereira Passos trouxe consigo a bagagem de engenheiro que presenciou asmudanas urbanas de diversas cidades europias, alm da sua prpria. Vivenciou a construo, ao lon-go do sculo XIX, ora como espectador, ora como produtor, do discurso da urbanizao e da sadepblica e vislumbrava de que maneira o Rio de Janeiro seria uma cidade moderna e higinica.

    Portanto, embora o sculo fosse outro, a forma de governo fosse outra, as pessoas fossem outras,Passos ainda era o mesmo, um engenheiro formado pela Escola Militar (1839-1874) cujas origensremontam Real Academia Militar, criada ainda no sculo XVIII, que objetivava a organizao de umexrcito regular e de engenheiros ligados poltica do Estado e como tal fortemente influenciado pe-las idias de progresso, civilizao e ordem que serviram de, nas palavras de Maria Inez Turrazi, arga-massa para as formulaes tericas desta e de outras instituies21 e, conseqentemente, de seus alunos.

    Para compreender esse processo, foi preciso entender Pereira Passos como um indivduo inseridoem um conjunto de prticas, tcnicas, habilidades e conhecimentos materiais e sociais que o tornouparte intrnseca do grupo ao qual pertencia: a elite intelectual, econmica e poltica do Imprio,engenheiro formado na primeira metade do sculo XIX na Escola Militar, aluno ouvinte da cole desPonts e Choses durante os intensos anos da reforma empreendida pelo engenheiro Eugenie Haussmanem Paris e imerso nas concepes cientificista e evolucionista de sua poca. Todo esse contexto no qualPassos estava inserido se refletiu nos planos e nas aes do engenheiro ao longo de sua vida, como sepode observar no trecho de seu plano de reformas publicado em 1903, cujo objetivo era:

    [dar] mais franqueza ao trfego crescente das ruas da cidade, iniciar a substituio das nossas mais ignbeis vielaspor largas ruas arborizadas, promover melhores condies estticas e higinicas para as construes urbanas22.

    E ainda:

    [...] necessrio melhorar a higiene domiciliria, transformar a nossa edificao, fomentar a construo de prdios

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    modernos e este desiteratum somente pode ser alcanado rasgando-se na cidade algumas avenidas, marcadas demodo a satisfazer as necessidades do trfego urbano e a determinar a demolio da edificao atual onde ela maisatrasada e repugnante se apresenta23.

    Percebe-se um discurso muito prximo ao de quase 30 anos antes, no qual prevalecia a preocupaode transformar, por meio das reformas e da disciplina do espao urbano e da populao, o Rio de Janei-ro em uma cidade moderna e civilizada, o que fica claro no trecho do relatrio da Comisso de 1874:

    A cidade do Rio de Janeiro j importantissima pelo seu commercio, riqueza e populao tem ante si um futuroimmenso, que lhe garantem sua situao geographica e a circumstancia de ser a capital de um dos mais extensose mais ferteis paizes do mundo24.

    A preocupao com a construo de imagem de cidade civilizada, promovendo a ligao entre asdiversas regies da cidade, zona central a sul, a norte e a zona porturia com a comercial, a partir doalargamento e construo de ruas j estava presente nos relatrios da Comisso ainda em 1874, inclusivea preocupao com as habitaes, a fim de melhorar as condies higinicas e estticas. Portanto,embora o sculo XX tenha trazido novas teorias a respeito do contgio e da preveno das doenas, aperspectiva miasmtica permanece nas reformas de 1903.

    Giovanni Levi quem nos alerta que, embora muitos associem a micro-histria ao estudo decoisas pequenas, na realidade ela vai alm: a histria de um indivduo na verdade olhar a formasatravs do microscpio. No se trata de estudar qualquer pessoa por qualquer motivo: estuda-se umavida para se enxergar alm dela, mais profundamente e de maneira mais completa, ou ainda, paraenxergar a vida social em sua dinamicidade prpria, incluindo os aspectos caticos e contraditrios.Podemos estudar um indivduo por ser singular, o So Lus de Le Goff ou, extremamente comum, oMenochio de Ginzburg. O que realmente importa so as perguntas que fazemos a esses indivduos25.

    A trajetria de Pereira Passos e sua atuao nos diferentes campos poltico, social, intelectual mostram-nos o quanto o contexto em que ele estava inserido, o local em que se formou, onde esteve,os discursos e fatos que presenciou o marcaram irremediavelmente. Assim, para se entender todo odiscurso da higiene e da reforma urbana no Rio de Janeiro do final do sculo XIX e incio do sculo XX, preciso analisar a trajetria desse engenheiro e poltico.

    NOTAS E REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    Janaina Lacerda Furtado mestre em Histria Poltica e bolsista PCI da Coordenao deMuseologia do Museu de Astronomia e Cincias Afins-MAST. Este artigo foi elaborado apartir da dissertao defendida em 2003 no Programa de Ps-Graduao em HistriaPoltica da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com apoio da FAPERJ. Aautora agradece pesquisadora Alda Lcia Heizer pela leitura crtica, comentrios esugestes. E-mail: [email protected].

    1 Jacques Le Goff e Pierre Nora citados por LEVILLAN, Philippe. Os protagonistas dabiografia. In: RMOND, Ren (Org.). Por uma histria poltica. Rio de Janeiro: Ed.UFRJ/Ed.FGV, 1996, p. 142.

    2 LE GOFF, Jacques. Comment crire une biographie historique aujourdhui? Le dbat,Paris, n. 54, p. 48-54, mars/avril 1989.

    3 BOURDIEU, Pierre. A iluso biogrfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO,Janana (Orgs.). Usos e abusos da histria oral. Rio de Janeiro: Ed.FGV, 2000.

    4 LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janana(Orgs.). Usos e abusos da histria oral. Rio de Janeiro: Ed.FGV, 2000, p. 174-177.

    5 O termo elite imperial remete ao conceito utilizado por Ilmar Rolhorr de Matos.

    6 PESTRE, Dominique. Por uma nova histria social e cultural das cincias: novasdefinies, novos objetos, novas abordagens. Cadernos IG/UNICAMP, Campinas, v.6, n. 1, p. 16, 1996.

    7 CARVALHO, Maria Alice Rezende de. O quinto sculo: Andr Rebouas e a construodo Brasil. Rio de Janeiro: Revan/IUPERJ, 1998, p. 108.

    8 Ibid., p. 109.

    9 BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira Passos, um Haussman tropical. Rio de Janeiro:Biblioteca Carioca, 1990.

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    10 PASSOS, Francisco Pereira et al. Primeiro Relatrio da Comisso de Melhoramentosda Cidade do Rio de Janeiro. In: BRASIL. Ministrio dos Negcios do Imprio. Ministro(Joo Alfredo Correia de Oliveira). Relatrio do Ministrio dos Negcios do Impriodo ano de 1875. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1876a, p. 2.

    11 PASSOS, Francisco Pereira et al. Segundo Relatrio da Comisso de Melhoramentosda Cidade do Rio de Janeiro. In: BRASIL. Ministrio dos Negcios do Imprio. Ministro(Joo Alfredo Correia de Oliveira). Relatrio do Ministrio do Imprio. Anexo F. Riode Janeiro: Tipografia Nacional, 1876b, p. 14.

    12 PASSOS, 1876a, p. 5.

    13 PASSOS, Francisco Pereira. O melhoramento da cidade do Rio de Janeiro. Respostass crticas Comisso. Jornal do Comrcio, Rio de Janeiro, fev. 1875. Gazetilha, p. 2.

    14 PASSOS, 1876b, p. 14.

    15 Ibid.

    16 Ibid., p. 16.

    17 REGO, Jos Pereira do. Relatrio da Junta Central de Higiene. In: BRASIL. Ministriodos Negcios do Imprio. Ministro (Joo Alfredo Correia de Oliveira). Relatrio doMinistrio dos Negcios do Imprio do ano de 1875. Rio de Janeiro: Tipografia Na-cional, 1876, p. 18.

    18 PASSOS, 1876b, p. 4.

    19 ROCHA, Oswaldo Porto. A era das demolies. Biblioteca Carioca: Rio de Janeiro,1990, p. 55-58.

    20 BENCHIMOL, op. cit., passim.

    21 TURAZZI, Maria Inez. A euforia do progresso e a imposio da ordem: a engenharia,a indstria e a organizao do trabalho na virada do sculo XIX ao XX. Rio deJaneiro: COPPE/So Paulo: Marco Zero, 1989, p. 38-39.

    22 Melhoramentos da cidade elaborados pelo prefeito do Distrito Federal. 1903. Citadopor: BENCHIMOL, op. cit., p. 236.

    23 Ibid.

    24 PASSOS, 1876b, p. 4.

    25 Giovanni Levi citado por: BARROS, Jos dAssuno. O campo da histria: especia-lidades e abordagens. Petrpolis: Vozes, 2004, p. 191.

    Artigo recebido para publicao em 01/2006.

    Aprovado para publicao em 06/2006.

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