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270 Discursos ciceronianos: a oratória como estratégia política na Roma Antiga MARINALVA VILAR DE LIMA MICHELLY PEREIRA DE SOUSA CORDãO Universidade Federal de Campina Grande Brasil RESUMO O ensaio discute a personagem de Cícero a partir do auto-retrato por ele elaborado e das representações biográficas que lhe construíram autores de sua época e da contemporaneidade. Problematiza a escritura ciceroniana, destacando as rela- ções que constrói entre a retórica e o exercício político. Intenciona contribuir para a construção da imagem de Cícero enquanto sujeito histórico, ainda que toque em aspectos estéticos de sua produção discursiva. P ALAVRAS-CHAVE Literatura latina; história de Roma; Cícero; política; retórica. No universo dos escritores latinos do século I a. C., tais como Tito Lívio, Virgílio, Propércio, Horácio e Cícero, é possível perceber uma ênfase na temática do político ou de suas ligações pessoais para com a cena política que os rodeia. A escritura ciceroniana assume, no entanto, destaque, haja vista que é constituída por um conjunto considerável de obras que toma a política como tópos central e, mesmo naquelas em que se propõe a tratar de questões jurídicas e filosóficas, mantém as preocu- pações políticas como norteadoras de seus discursos. Com efeito, desde obras como Do sumo bem e do sumo mal, em que Cícero discute questões concernentes à vida humana a partir de uma perspectiva filosófica, ao conjunto de seus discursos em que ora acusa ora defende figuras públicas, a temática da política aparece como eixo de compreensão de mundo do orador. Cícero, na referida obra, faz comentá- rios sobre a honestidade enquanto a maior das virtudes para mostrar como um homem púbico deveria agir em benefício da República, e é provável que enderece sua obra para um grupo específico e limitado de leitores: os homens públicos. Nesse sentido, percebemos que a discussão que traça sobre o sumo bem se dá a partir de um objetivo pragmático que se associa ao universo da política. Aspecto, na maioria das vezes, diluído no âm- Email: [email protected] e [email protected] Classica (Brasil) 20.2, 270-292, 2007

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LIMA, Marinalva. Discursos Ciceronianos a Oratória Como Discurso Político

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    Discursos ciceronianos: a oratria como estratgia poltica na Roma Antiga

    MARInALvA vILAR DE LIMA MICHELLy PEREIRA DE SOUSA CORDO

    Universidade Federal de Campina GrandeBrasil

    RESUMO . O ensaio discute a personagem de Ccero a partir do auto-retrato por ele elaborado e das representaes biogrficas que lhe construram autores de sua poca e da contemporaneidade. Problematiza a escritura ciceroniana, destacando as rela-es que constri entre a retrica e o exerccio poltico. Intenciona contribuir para a construo da imagem de Ccero enquanto sujeito histrico, ainda que toque em aspectos estticos de sua produo discursiva.

    PALAvRAS-CHAvE . Literatura latina; histria de Roma; Ccero; poltica; retrica.

    No universo dos escritores latinos do sculo I a. C., tais como Tito Lvio, Virglio, Proprcio, Horcio e Ccero, possvel perceber uma nfase na temtica do poltico ou de suas ligaes pessoais para com a cena poltica que os rodeia. A escritura ciceroniana assume, no entanto, destaque, haja vista que constituda por um conjunto considervel de obras que toma a poltica como tpos central e, mesmo naquelas em que se prope a tratar de questes jurdicas e filosficas, mantm as preocu-paes polticas como norteadoras de seus discursos.

    Com efeito, desde obras como Do sumo bem e do sumo mal, em que Ccero discute questes concernentes vida humana a partir de uma perspectiva filosfica, ao conjunto de seus discursos em que ora acusa ora defende figuras pblicas, a temtica da poltica aparece como eixo de compreenso de mundo do orador. Ccero, na referida obra, faz coment-rios sobre a honestidade enquanto a maior das virtudes para mostrar como um homem pbico deveria agir em benefcio da Repblica, e provvel que enderece sua obra para um grupo especfico e limitado de leitores: os homens pblicos. Nesse sentido, percebemos que a discusso que traa sobre o sumo bem se d a partir de um objetivo pragmtico que se associa ao universo da poltica. Aspecto, na maioria das vezes, diludo no m-

    Email: [email protected] e [email protected]

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    bito das anlises, visto focarem mais na questo do estilo, perscrutando os recursos retricos e a beleza com que Ccero constri seus discursos.

    SEBASTIO TAvARES PInHO,1 ao traduzir As Catilinrias para o portu-gus, comenta a ttulo de introduo aos discursos veiculados na obra que se deve dar mais ateno beleza literria que perpassa a obra e menos ateno s informaes nela contidas. Sem dvida, para que se estabelea uma anlise profcua da obra de Ccero, h que se considerar a forma como ele articula sua fala e quais os interesses que a norteiam. Redu-zir, porm, as catilinrias a discursos tonificados por aspecto literrio nos impossibilitaria de perceber questes concernentes ao mundo da poltica romana, passveis de serem visualizadas a partir de sua leitura e anlise.

    Viso semelhante de Pinho aparece em estudo promovido por RO-BSOn TADEU CESILA2 em que analisa os dispositivos e elementos retricos do Pro Archia luz das compreenses de retrica construdas por Ccero e Aristteles. Cesila promove um saudvel exerccio de decupagem do gnero discursivo que caracteriza a escritura ciceroniana. Apresenta e discute cada parte que constitui o discurso, a saber, o exrdio, a narrao, a diviso, a confirmao / refutao e a concluso. Exerccio vlido mas, limitando-se ao esteticismo do discurso, vem a perder de vista a dimen-so poltica que perpassa todos os discursos do orador, tratando-os como ingnuos textos providos de beleza literria e, portanto, desprovidos de intencionalidades. Ora, o prprio ato do pronunciamento do discurso constitui a priori um gesto que prenuncia interesses polticos, visto que o aparecimento em pblico representava na Roma antiga uma das estra-tgias para ascenso poltica.

    Em Da Repblica, Ccero deixa claro sua compreenso acerca da re-lao entre conhecimento e ao poltica, criticando aqueles que, ao invs de buscar explicaes para questes do mundo poltico, como a situao desarmnica entre o povo e o senado que ento vivenciava, se inquietavam em saber assuntos relativos ao universo. Da, porque sua crtica a Plato, filsofo que construiu uma Repblica localizada no mundo das idias. Em Da Repblica Ccero se refere virtude como tpos obrigatrio para o governo saudvel da Repblica, associando este aspecto da moral romana esfera cvica (Rep. 1.2):

    etsi ars quidem cum ea non utare scientia tamen ipsa teneri potest, virtus in usu sui tota posita est; usus autem eius est maximus civitatis

    1 Ccero - As Catilinrias, Lisboa, Verbo, 1974.2 Anlise do discurso Pro Archia de Ccero, Campinas, IEL-UNICAMP, 2004.

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    gubernatio, et earum ipsarum rerum quas isti in angulis personant, reapse non oratione perfectio.

    Uma arte qualquer, pelo menos, mesmo quando no se pratique, pode ser considerada como cincia; mas a virtude afirma-se por completo na prtica, e seu melhor uso consiste em governar a Repblica e con-verter em obras as palavras que se ouvem nas escolas.3

    Dentro dessa compreenso, Ccero aponta ainda que a oratria cons-titui um conhecimento essencial ao homem pblico, devendo, por isso, ser exercitada em benefcio da Repblica.

    Com tais preocupaes, Ccero escreveu e pronunciou um conjunto de discursos, dos quais se tem acesso contemporaneamente a um consi-dervel nmero. Do corpus ciceroniano, consideramos que os discursos In Catilinam, Contra Catilina) constituem um territrio profcuo para a discusso sobre a relao entre oratria e poltica. Se, de um lado podemos observar Ccero como orador que ascendeu politicamente por meio do uso da oratria, de outro podemos visualizar em seus discursos os recursos retricos utilizados para conquistar o pblico a quem o enderea. Mais do que isso, percebe-se como o orador argumenta em proveito de seus anseios particulares, ainda que construa um discurso em que a defesa da res publica sirva de argumento justificador. o debate sobre a relao entre oratria e poltica e, portanto, sobre o uso da palavra como forma de poder em Roma, que enfeixa nossa argumentao sobre a obra de Ccero. Trata-se de um exerccio que toma as prticas e representaes no mbito da poltica como possibilidades assinaladoras para o homem romano.

    JEAn-JACqUES COURTInE,4 ao fazer um estudo sobre a ascenso dos discursos miditicos, em detrimento dos discursos pronunciados em comcios pelos oradores polticos, percebe que tal mudana teria ocor-rido na Frana na dcada de 1970, demonstrando como os discursos polticos na atualidade perderam a dimenso que os caracterizavam no mundo antigo. Situao que, hipoteticamente, explica a atual cultura do espetculo, sistematizada pela televiso, veculo miditico atravs do qual o poltico pode construir sua imagem apelando para a ateno do pblico, e no mais por meio de sua habilidade na arte de falar, mas a partir da veiculao de sua imagem. Da poltica do texto, conforme Courtine, as investidas so transferidas para a poltica de imagens pos-sibilitada pela televiso. O orador poltico passa a ser mais visto do que

    3 Trad. AMADOR CISnEIROS in Ccero - Da repblica, So Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 147.4 Os deslizamentos do espetculo poltico, in MARIA DO ROSRIO GREGOLIn (org.), Dis-curso e Mdia: a cultura do espetculo, So Carlos, Clara Luz, 2003.

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    escutado, fato que demonstra o valor que a sociedade contempornea atribui imagem miditica.

    Na Roma antiga, todavia, a palavra era o instrumento por exceln-cia para assinalao do indivduo no mundo pblico, conforme afirma MOSES FInLEy,5 para quem o mundo antigo era predominantemente da fala e no da escrita. Da figuras como Virglio e Ccero terem fre-qentado escolas de retrica, enviados por seus respectivos pais. Se o primeiro, informa PIERRE GRIMAL,6 no correspondeu aos anseios do pai, visto no ter seguido carreira poltica, mas explorado seu esprito medi-tativo com a escritura de poemas, Ccero, desde muito jovem, usou sua habilidade retrica para ascender a cargos pblicos em Roma. Segundo Plutarco (Cic. 2), historiador grego que construiu as vidas paralelas dos homens ilustres da Grcia e de Roma, Ccero, antes mesmo de chegar idade para estudos aplicados, j se destacava na escola por seu nvel intelectual. Plutarco no esconde sua admirao pelo orador, co-locando como ele se preocupava em apreender todos os saberes e como suscitou grandiosa admirao no pblico, aps a defesa de sua primeira causa. Estimulado pelas palavras dos amigos, que viam na oratria a possibilidade do jovem romano adquirir a glria mais brilhante, Ccero aceitou defender um romano chamado Rscio, acusado de parricdio por Sila (Plu. Cic. 3) e, conseguindo salv-lo, foi aclamado por todos. Foi, portanto, do ponto de partida para uma carreira poltica de xito, constituda pelo exerccio de atividades em cargos pblicos no mbito da sociedade romana, fato que exemplifica o papel dado oratria en-quanto possibilidade de ascenso poltica.7

    Plutarco tambm faz comentrios sobre os estudos a que Ccero teve acesso mediante dilogos com filsofos gregos, enfatizando a admirao que os discursos provocavam naqueles que os escutavam. Neste momento, Plutarco afirma que as esperanas de ingressar nos negcios pblicos fo-ram ampliadas, ressaltando que Ccero tinha pouca nsia de conquistar cargos pblicos. O Ccero de Plutarco representa um indivduo impelido para o Foro pelo pai e pelos amigos e no por sua prpria vontade, ainda que enfatize o brilhantismo com que o mesmo se portava no ambiente pblico (Plu. Cic. 5):

    5 Poltica no Mundo Antigo, Lisboa, Edies 70, 1997, p. 426 Virgilio o el segundo nacimiento de Roma, trad., prlogo y notas de Hugo Francisco Bauz, Buenos Aires, Eudeba, 19877 AMRICO C . RAMALHO, Prefcio, in MARIA HELEnA DA ROCHA PEREIRA (dir.), Ccero. As Catilinrias. Defesa de Murena. Defesa de rquias. Defesa de Milo, Lisboa / So Paulo, 1974, p. 9-36.

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    Mas, a sua ambio natural e as exortaes de seu pai e dos amigos o impeliram para o Fro. Rapidamente colocou-se na primeira fileira, no por progressos lentos e necessrios, mas por lances brilhantes e rpidos, ultrapassando, em curto prazo, todos os seus rivais na ad-vocacia.8

    Alguns anos depois, em 76 a. C., Ccero se tornou questor na Siclia, cargo que lhe possibilitou advogar algumas causas em favor do senado e do povo romano, atitude que promoveu, por exemplo, nos discursos contra Verres, acusado pelos sicilianos de corrupo quando do perodo que fora pretor na Siclia (RAMALHO, 1974).

    Ccero se tornou o primeiro advogado de Roma durante o perodo da questura, situao que provavelmente lhe concedeu espao para ir construindo sua figura de homem pblico. Tornou-se, em seguida, edil curul, pretor e, por fim, conseguiu alcanar a suprema magistratura: o consulado.9 Enquanto homo novus, visto no advir de uma famlia de tra-dio poltica, Ccero representa o tpico exemplo do jovem romano que usou estrategicamente o conhecimento oratrio para ascender no espao pblico da urbs, imagem que se torna possvel a partir da leitura de alguns dos seus discursos e da biografia que Plutarco lhe dedicou. Esse, ainda que exalte seu biografado como o grande orador e poltico romano, seja por sua habilidade na arte da retrica, seja por suas virtudes, nos permite mapear como Ccero foi conquistando o espao pblico e como, por meio de seus discursos, foi mantendo os poderes adquiridos.

    O discurso In Catilinam, pronunciado em 63 a.C., constitui um exem-plo profcuo para se refletir sobre como Ccero construiu uma represen-tao incompatvel com os valores morais da sociedade romana da poca de um adversrio poltico que havia se candidatado e perdido as eleies consulares na disputa com ele e que, por isso, poderia representar pe-rigo para a Repblica sob seu consulado. Embora tente deixar claro que seu objetivo livrar a ptria de um monstro que tramava uma terrvel conspirao contra a ptria, visvel como Ccero defende seus interesses

    8 Trad. SADy-GARIBALDI, in Plutarco - A Vida dos Homens Ilustres: Demstenes e Ccero, So Paulo, Atena, s/d, p. 52.9 RAMALHO, 1974, p. 16.

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    particulares. Essa situao era muito comum em Roma, por exemplo di-ferentemente de Atenas, cuja constituio democrtica auxiliava a defesa dos interesses coletivos.

    Em Roma, interesses pessoais em detrimento do interesse coletivo se tornam visveis pela prpria organizao poltica da Repblica, sistema em que nem todos os cidados romanos tinham direito de participar nas decises polticas. Em Atenas, na poca da democracia, mesmo cida-dos desafortunados podiam participar das assemblias, visto se tratar de uma prtica definida a partir do critrio da hereditariedade.10 Por sua vez, na Repblica romana, a riqueza se constitua no elemento de carter definidor para a assinalao de um indivduo e, logo, para sua participa-o poltica, pois era necessrio uma quantia mnima de recursos para a articulao de planos e o alcance da dignitas. PAUL vEynE11 demonstra como os jovens cidados romanos, desprovidos de riquezas, buscavam o apadrinhamento de homens pblicos, como o dos senadores, para se assinalarem no espao pblico de Roma. A Ccero, por exemplo, s foi possvel adentrar na cena pblica da urbs mediante o uso da oratria, em cujo aprendizado seu pai investiu parte de suas riquezas.

    Dentro dessa atmosfera de interesse por assinalao que Tito L-vio narra, no livro XXII da Ab urbe condita libri, Histria de Roma, a experincia de Caio Terncio Varro. Trata-se de um quadro narrativo em que a figura desse pretor romano, que preferiu se colocar em defesa do projeto que ia de encontro aos interesses do ditador romano de ento e que coadunava com os interesses do comandante da cavalaria, apre-sentada como provida de astcia e perspiccia poltica, visto que ditador agia contra os interesses da Repblica. Lvio o mostra como um astuto poltico, pelo fato de discernir habilmente qual homem pblico seria mais conveniente defender, diante das circunstncias. Construindo a imagem de Varro enquanto indivduo que desde o incio de sua juventude articu-lou estratgias para ascenso, Lvio demonstra como o romano investiu as riquezas deixadas pelo pai para a prtica da oratria, instrumento es-sencial para a conquista de popularidade e, por extenso, para o alcance da dignitas (22.25-26):

    Patrem lanium fuisse ferunt, ipsum institorem mercis, filioque hoc ipso in seruilia eius artis ministeria usum. Is iuuenis, ut primum ex eo

    10 CLAUDE MOSS, As instituies gregas, Lisboa, Edies 70, 1985.11 O Imprio Romano, in PHILIPPE ARIS & GEORGES DUBy, Histria da Vida Privada: do imprio romano ao ano mil, So Paulo, Cia. das Letras, 1991.

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    genere quaestus pecunia a patre relicta animos ad spem liberalioris fortunae fecit, togaque et forum placuere, proclamando pro sordidis hominibus causisque aduersus rem et famam bonorum primum in notitiam populi, deinde ad honores peruenit, quaesturaque et dua-bus aedilitatibus, plebeia et curuli, postremo et praetura, perfunctus, iam ad consulatus spem cum attolleret animos, haud parum callide auram fauoris popularis ex dictatoria inuidia petit scitique plebis unus gratiam tulit.

    Ao que sussurrava, seu pai fora aougueiro que com as prprias mos trinchava a mercadoria; e o prprio filho labutara naquele mister servil. Quando o dinheiro assim ganho, deixado pelo pai, habilitou o jovem a ansiar por uma situao mais liberal, escolheu a toga e a praa pblica. E vociferando em prol de homens e causas vis contra a fortuna e a reputao das pessoas de bem, alcanou primeiro a popularidade, em seguida as honras. Depois de cumprir a questura e as duas edilidades, plebia e curul, chegou pretura e agora se encarniava para empalmar o consulado. No sem astcia, ia para onde soprava o favor pblico no episdio da impopularidade do ditador e logrou atrair s para si todo o reconhecimento do povo por ocasio do plebiscito.12

    Exemplo que demonstra a relevncia da oratria como forma de po-der em Roma e que nos permite estabelecer comparaes com a histria da ascenso poltica de Ccero, uma vez que utilizou o mesmo instru-mento para introduzir-se no mundo pblico romano. Varro, conforme a narrativa de Lvio, representa o exemplo do jovem descendente de famlia provida de parca riqueza, suficiente, todavia, para lhe facultar possibilidades para ascenso. Por meio da herana do pai, se lana no mundo pblico de Roma, explorando sua oratria para conquistar po-pularidade e, por conseguinte, para alcanar cargos pblicos. Anseios que terminaram se concretizando, semelhante ao que ocorreu com C-cero. Temos que a trajetria do personagem liviano se assemelha do Ccero plutarquiano, visto que ambos primeiramente se popularizaram mediante a defesa de causas; em seguida, alcanaram, seqencialmente, os cargos de questor, edil e pretor; por fim, articularam estratgias para o alcance do consulado. Recuperemos, ento, um excerto da obra ci-ceroniana que contribui para que se acompanhe o exerccio poltico do orador em sua fase madura.

    12 Traduo de PAULO M . PEIxOTO in Tito Lvio - Histria de Roma, So Paulo, Paumape, 1989, p. 43 .

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    Primeira catilinria: oito de novembro de 63 a. C. A assemblia senatorial se rene no templo de Jpiter Esttor. Aguarda-se o discurso jurdico do orador, ento cnsul, mais conhecido poca; discurso que apresentar fortes revelaes sobre provveis conspiraes que trariam um grande mal Repblica romana. De um lado do espao do templo, h um nmero de senadores assentados prximos uns dos outros. De outro, visualiza-se uma figura, para prximo de quem ningum ousou se dirigir. No espao de destaque, adequado ao orador, vemos Ccero discursar in Catilinam, usando a gravidade de sua voz e a gestualidade de seu corpo para provar a tese que ora, com ousadia, defendia. Todo um conjunto de vocalidade utilizado para o xito da causa que apre-senta, expulsar o monstro que ainda se mantinha, descaradamente, caminhando pelo espao da Urbs, ptria que dele havia recebido fortes ameaas de destruio. Com audcia, dirige suas primeiras palavras quele que desejava afastar de Roma (Cat. 1.1.1):

    Quo usque tandem abutere, Catilina, patientia nostra? Quam diu etiam furor iste tuus nos eludet? Quem ad finem sese effrenata iactabit audacia?

    At quando, Catilina, abusars de nossa pacincia? Por quanto tempo ainda h-de [sic] zombar de ns essa tua loucura? A que ex-tremos se h-de precipitar a tua audcia sem freio?13

    Se obrigar Catilina, cidado romano, ao exlio constitua uma ta-refa pouco estratgica, coube a Ccero usar a gravidade de sua voz para demonstrar a ele que Roma no mais desejava sentir seu corpo por ela percorrendo e que, por isso, ele prprio deveria tomar a deciso de fugir da cidade.

    Nesse exrdio, parte da arte retrica que constitui o primeiro mo-mento do discurso, o orador lana uma invectiva contra Catilina, a fim de causar, logo de imediato, impacto no pblico a quem enderea o discurso. Promove um encadeamento de interrogaes que dirige ao prprio Cati-lina, se referindo a suas atitudes contrrias Repblica, perguntas que so usadas para causar abalo entre os senadores que ora escutam seu discurso.

    Ccero considera que ao eloqente orador, o mais perfeito de todos, cabe a juno dos trs gneros de estilo (o grave, o mdio e o tnue) que devem, portanto, ser utilizados de acordo com o tipo de causa defendida. Uma vez defendendo causas intermdias, deve-se usar o tom mdio. Por

    13 Traduo de PInHO, 1974, p. 57.

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    outro lado, se se trata de coisas elevadas, o tom grave o mais conve-niente (Orat. 16.53). Nesse sentido, Ccero constri a primeira catilinria a partir de um discurso grave, no qual investe toda sua eloqncia quele que acusava de maus tratos para com Roma.

    Prosseguindo com um tom grave, lamenta a perda dos costumes da tradio (Cat. 1.1.2) O tempora, o mores! demonstrada pelos atos cruis de Catilina, homem pblico construdo como aquele que a todos marcou para a chacina e que trazia apenas runa Repblica. Para uma acusao desse tipo foi necessria a construo de um dis-curso grave, violento, cujas palavras pudessem penetrar os ouvidos dos senadores e do prprio Catilina como a traduo mais fiel dos perigos que se aproximavam da Repblica. No que toca ao como falar, Ccero sugere a articulao entre ao e elocuo. Trata-se do uso eloqente do corpo e da adoo de um tom de voz que provoque nimo no ou-vinte, bem como, do uso de gestos, com uma ateno para a expresso do rosto. Para a consecuo da eloqncia, Ccero considera necessrio conceder formas voz de acordo com as partes do discurso. Portanto, para as partes violentas prefervel um tom agudo; um tom baixo para as partes calmas; um tom flexionado para as partes patticas; por fim, para as partes profundas um tom grave (Orat. 17.56).

    Ccero aponta duas partes essenciais a um discurso: a thesis, questo geral do mesmo; a auxesis (acrscimo, aumento), exaltaes e amplifi-caes que devem perpassar o discurso (Orat. 36.126). Assim, revela o que ele prprio promove em seus discursos jurdicos. Contudo, o pblico para quem os enderea no o mesmo para quem direciona as obras de carter terico, como O Orador e Retrica a Hernio. Essa, em que apresenta regras da retrica, provavelmente foi escrita para um pblico mais restrito, visto que seu objetivo era ensinar a arte retrica. Uma obra direcionada aos prprios oradores, portanto, ainda que no ttulo Ccero sugira ter escrito para um s indivduo, Hernio, que pode ser interpre-tado como a representao dos oradores de maneira geral, pois foi para esses que Ccero apontou as regras da oratria. De toda forma, no se trata de obras direcionadas para o senatus populusque romanus, como ocorre com a maioria de seus discursos, percepo que nos permite compreender porque nelas Ccero revela os ardis do mundo da oratria.

    Ccero cita, por outro lado, dois elementos que podem gerar eloqn-cia admirvel, a saber, a ethicon, cujo significado est associado forma de ser, aos costumes e conduta geral de uma pessoa e, por isso, atrai o pblico com seu tom agradvel e afvel; e a patheticon, mediante a qual se excita os coraes humanos, visto produzir um discurso veemente e

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    impetuoso. Nesse sentido, Ccero refere-se a si mesmo como um orador moderno, mas que sempre, por meio da impetuosidade conferida ao seu discurso, derrota seus adversrios. Vejamos sua referncia a Catilina (Orat. 37.128): a nobis homo audacissimus Catilina in senatu accusatus obmutuit, Graas a mim, um homem to audacioso como Catilina emu-deceu acusado no Senado. Ele aponta vrias figuras de linguagem que devem ser usadas pelo orador, considerando que a esse apetecvel, por exemplo, a repetio de uma mesma idia, insistindo na mesma coisa por numerosas vezes (Orat. 39.135), pois assim seu discurso ser mais persu-asivo. Ao construir, sobretudo a segunda catilinria, ele repete variadas vezes, a partir de ornamentos distintos, como Catilina e seus aliados pra-ticavam atos viciosos, insistindo sobre o mal que suas atitudes causavam Repblica, exerccio que lhe permite tornar persuasiva a causa que ora defendia. Da mesma forma o orador diz vrias vezes a Catilina, no pri-meiro dos discursos contra esse proferido, que ele deveria sair de Roma, articulando a isso um conjunto de informaes sobre aes corruptas do mesmo, bem como, ornamentos retricos para causar efeitos de conven-cimento no destinatrio.

    Em meio s referncias s aes de Catilina e seus cmplices, C-cero coloca um ornamento com o qual se dirige aos deuses imortais, se mostrando triste com a situao em que se encontra Roma, pois que entre os prprios senadores, havia homens que agiam em favor da destruio da cidade (Cat. 1.4.9).

    O di inmortales! ubinam gentium sumus? in qua urbe vivimus? quam rem publicam habemus?

    Oh deuses imortais! Em que pas do mundo estamos ns, afinal? Que governo o nosso? Em que cidade vivemos ns?14

    Plutarco (Cic. 14) diz que um prodgio teria sinalizado que Ccero deveria agir contra os conjurados, colocao que demonstra como os elementos divinos sempre so acionados para a justificativa das aes no mundo poltico. Comenta tambm a cupidez e a cegueira de alguns homens que tentavam subverter e agitar o estado harmnico das coisas, mediante a articulao de uma conjurao. Trata-se da chamada conju-rao de Catilina, e o historiador reproduz a imagem ciceroniana de Catilina, construdo tambm como um monstro na esfera privada, visto que teria cometido incesto com a filha e assassinado o prprio irmo.

    14 Idem, ibidem p. 60.

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    Por outro lado, Plutarco elogia a eloqncia de Ccero enquanto ele-mento que eleva o Bem, representando-o como um orador que demons-trou, por meio da oratria, que o direito e as leis so bens invencveis, se defendidos pelo talento daquele que domina a palavra (Cic. 13):

    , , , , , .

    Ccero foi, de todos os oradores, o que soube fazer sentir melhor aos romanos como o encanto da eloqncia amplifica o bem e como o direito invencvel, quando sustentado pelo talento e pela palavra! Mostrou-lhes como o homem de Estado que quer governar bem deve, na sua conduta pblica, preferir sempre o que honesto ao que en-gana; mas que deve tambm, nos seus discursos, temperar a doura da linguagem com o rigor dos atos que prope.15

    Apropriando-se da percepo socrtica, observada nos dilogos pla-tnicos e em obras de Aristteles, segundo a qual as aes humanas so impulsionadas pelos contrrios (bem e mal, justo e injusto, etc.), Ccero se coloca como o honesto, construindo a imagem de um Catilina enganador e possuidor de outros adjetivos a esse extensivos.

    Tanto os discursos de Ccero, como alguns de escritores que sobre esse escreveram, a exemplo de Plutarco, so marcados por relaes de poder e por defesas de interesses particulares. Os escritos que se toma como base para a construo da histria de Roma, na contemporaneidade, foram erigidos por indivduos, que em sua maioria, encontravam-se na ambincia dos espaos freqentados por imperadores e/ou por outras figuras pblicas. Ccero, Tito Lvio, Plutarco e Tcito foram homens que escreveram suas obras tambm para justificar poderes, sejam particulares, sejam do Estado, sejam ainda de ambos os lados. A escrita se constitua em uma das formas pelas quais um indivduo podia se destacar em Roma, constituindo-se em um instrumento produzido e endereado pela e para a aristocracia. Ccero se coloca nos quatro discursos In Catilinam como algum que deveria salvar a Repblica por ordem dos deuses e, mais do que isso, como algum que se dispunha a salvar a si prprio dos ataques de uma peste abominvel. O orador faz questo de construir ou, pelo

    15 Trad. SADy-GARIBALDI, p. 61 (ver nota 8).

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    menos, ampliar a idia de que os planos de Catilina estavam voltados tambm para a sua morte, j que o havia vencido nas eleies consula-res. Dessa forma, Ccero constri uma forte ligao de si prprio com a Repblica, colocando como ele e essa estavam prestes a ser eliminados pelo corruptor da juventude (Cat. 1.5.11):

    denique, quotienscumque me petisti, per me tibi obstiti, quamquam videbam perniciem meam cum magna calamitate rei publicae esse coniunctam.

    todas as vezes que me atacaste, foi por mim mesmo que te resisti, muito embora eu visse que a minha morte ficaria ligada a uma grande desgraa do Estado.16

    Impressiona como, por meio da eloqncia, transforma uma expe-rincia que ainda no havia acontecido em algo terrvel para a Repblica (Cic. Cat. I, 5.12):

    Nunc iam aperte rem publicam universam petis, templa deorum in-mortalium, tecta urbis, vitam omnium civium, Italiam [denique] totam ad exitium et vastitatem vocas.

    Mas agora a toda Repblica que tu diriges abertamente o teu ataque; so os templos dos deuses imortais, so as casas da cidade, a vida de todos os cidados, a Itlia inteira, tudo isto que tu arrastas para a runa e a devastao17.

    Ccero foca as aes de Catilina em sua direo, tomando para si o lugar de representante mximo da Repblica, com isso atrelando seu des-tino ao destino da urbs. Afirmar que Catilina o ataca constitui o mesmo que dizer que a Repblica, nele representada, a quem se dirigem os golpes de Catilina. Ao colocar que Catilina deseja sua morte o faz na imbricao que constri entre si prprio e a Repblica, que, por sua vez, seria assassinada. Retoricamente, afirma (Cat. 1.6.15):

    quotiens tu me designatum, quotiens consulem interficere conatus es! quot ego tuas petitiones ita coniectas, ut vitari posse non viderentur, parva quadam declinatione et, ut aiunt, corpore effugi!

    16 Idem, ibidem p. 62.17 Idem.

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    () quantas vezes, sendo eu cnsul designado, quantas vezes mesmo durante o meu consulado, me tentaste matar! Quantos golpes, vibra-dos de tal maneira, que parecia impossvel escapar-lhes, eu no evitei com um pequeno desvio ou, como costuma dizer-se, s com o corpo!18

    A expresso quantas vezes constitui um ornamento que causa a impresso de que o acusado tentou vrios planos, quando, provavelmente, o fez apenas uma vez. Ao orador cabe, a partir da eloqncia, aumentar um fato, porm necessrio que haja indcios de sua ocorrncia.

    PIERRE GRIMAL considera que, de acordo com a verso de Salstio, hostil a Ccero, a conjurao no atacava diretamente o cnsul, mas di-versas pessoas.19 Com efeito, Ccero faz questo de direcionar para si os terrveis intentos de Catilina a fim de mostrar que esse tinha objetivos pessoais, visto j ter sido derrotado nas eleies passadas ao consulado, por exemplo. Alm do mais, colocar-se como alvo maior das investidas de Catilina , ao fim e ao cabo, ter seus pares focados em sua pessoa. A Repblica utilmente referenciada como trunfo que aumenta seu cabedal de importncia poltica.

    Considerada por Grimal como um dos mais clebres monumentos de eloqncia ciceroniana, a chamada primeira catilinria conseguiu tornar provvel a causa defendida, visto que, conforme diz Grimal, aps o dis-curso, os senadores foram persuadidos de que a conjurao no era mera inveno. O Catilina de Ccero representa a corrupo dos costumes tradicionais, visto ser desprovido de uma moral privada e pblica. Os interesses particulares teriam norteado seus planos em promover uma conjurao contra Roma, j que, aps ser derrotado por seguidas vezes nas eleies consulares, o romano teria se disposto a construir planos des-conectados com as leis e os costumes romanos, a fim de tornar concretas suas idealizaes pessoais no campo da poltica.

    Catilina foi muito mais do que um personagem da histria de Roma. Trata-se de um smbolo construdo por Ccero para tornar mais visvel a que nvel a corrupo havia chegado Repblica romana. Mais do que isso um smbolo a partir de que o orador pde elevar seu status poltico, visto que se construiu como o contrrio de Catilina, se referindo a si mesmo como o defensor da Repblica, mantenedor dos costumes tradicionais e, portanto, um poltico que tinha como preocupao maior a defesa da causa republicana. A imagem construda para Catilina constituiu-se, portanto,

    18 Idem p. 63.19 Cicern, Paris, Fayard, 1986, p. 155.

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    em estratgia usada por Ccero para desenhar sua imagem pblica de virtuosidade. O virtuoso se torna mais visualizvel na comparao com o seu diferente, o no virtuoso, o que incita o estudo comparativo entre o discurso da primeira catilinria e o discurso ao povo romano (Red. pop.), elaborado por Ccero aps sua volta do exlio. Trata-se de discutir como o orador usou a palavra para se manter no poder em Roma a partir da cons-truo de discursos que ora acusavam seus adversrios, ora defendiam a si prprio como virtuoso homem pblico. Nesse sentido, no discurso ao povo romano, Post reditum ad quirites oratio, o orador constri para si a imagem de amante e defensor da ptria. De sua leitura possvel observar como Ccero eleva sua imagem a partir do argumento de que seus bens fo-ram restitudos como resultado de uma deciso do prprio Senado, prtica incomum em Roma, construindo para si a imagem de ardente defensor da ptria que, por isso, foi reconhecido pelo senatus populusque romanus.

    Ccero inicia o discurso justificando seu exlio, colocando-se no lu-gar de quem preferia que todo o dio de maldosos homens se dirigisse para ele, ao invs de se direcionar para a Repblica. Ornamento retrico que o conduz a agradecer em seguida aos Padres Conscritos, Itlia e aos deuses por terem reconhecido sua benevolncia em face da Rep-blica romana ao se deixar exilar para a preservao de seu bem. Eleva a restituio de seus bens em detrimento da concedida a outros romanos, como C. Mrio e Q. Metelo, a partir do argumento de que foi o Senado que a concedeu, ao contrrio de outros casos, muitos dos quais receberam a concesso via tribunos. Da ele afirmar que (Red. pop. 9-10)

    () ut longe superiores omnes hac dignitate copiaque superarem. numquam de P. Popilio, clarissimo ac fortissimo viro, numquam de Q. Metello, nobilissimo et constantissimo cive, numquam de C. Ma-rio, custode civitatis atque imperii vestri, in senatu mentio facta est. Tribuniciis superiores illi rogationibus nulla auctoritate senatus sunt restituti, Marius vero non modo non a senatu, sed etiam oppresso senatu est restitutus, nec rerum gestarum memoria in reditu C. Mari, sed exercitus atque arma valuerunt. at de me ut valeret, semper sena-tus flagitavit, ut aliquando proficeret, cum primum licuit, frequentia atque auctoritate perfecit.

    () a todos os antecedentes vim a exceder muito nesta prerrogativa e abundncia. Nunca de P. Poplio, homem de singular nobreza e virtude, nem de Q. Metelo, nobilssimo e constantssimo cidado, nem de C. Mrio, coluna desta vossa Corte e Imprio, se fez meno no Senado. Todos estes antepassados foram restitudos a rogo dos tribunos, sem interveno do Senado, mas oprimido o Senado; nem

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    a C. Mrio lhe valeram, para voltar, as suas faanhas, mas as tropas e armas. A mim, porm, sempre o Senado requereu que valessem; e enfim concluiu que assim se executasse, tanto que pde, com o seu concurso e autoridade.20

    As representaes que Ccero construiu para si e para outros pol-ticos romanos ainda so concebidas por muitos comentadores como sua imagem fiel, visto que Catilina, por exemplo, aparece em alguns textos, sobretudo aqueles que fazem a introduo das obras ciceronianas, como um monstro, como se outros catilinas no fossem possveis. O Cati-lina de Ccero o corruptor dos costumes, ao passo que seu construtor o defensor das virtudes tradicionais. Compreenso que nos leva a sentir a fora da oratria ciceroniana, capaz de atravessar sculos, quase intoc-vel, ainda que no esteja alheia historicidade. Passamos, doravante, a problematizar a personagem histrica de Ccero. Exerccio que faremos a partir do uso de um discurso de acusao e outro de autodefesa do orador, mesmo que saibamos que em ss discursos de acusao, Ccero, costuma fazer referncias as suas virtudes. Nesse nterim, constri-se como uma figura feliz mais pela benevolncia dos romanos, ento lhe concedida, e menos pela fortuna/riqueza, se referindo ao seu amor pelos filhos, pelo irmo e por seus haveres domsticos, enquanto sentimento que mais se aflorou durante o exlio. Por isso, se mostra grato por ter recebido de volta tudo aquilo que lhe fez falta no ostracismo (Red. pop. 3-4):

    amicitiae, consuetudines, vicinitates, clientelae, ludi denique et dies festi quid haberent voluptatis, carendo magis intellexi quam fruendo. Iam vero honos, dignitas, locus, ordo, beneficia vestra quamquam mihi semper clarissima visa sunt, tamen ea nunc renovata inlustriora videntur, quam si obscurata non essent.

    As amizades, os congressos, as sociedades, enfim os jogos e dias festivos, ento conehci melhor quanto eram aprazveis, quando me vi sem eles. Pois, j quanto s honras, crdito, graduaes, cargos e benefcios vossos, agora renovados me parecem mais ilustres do que se nunca tivessem sido escurecidos21.

    Por fim, constri um elogio ptria, tentando persuadir o povo de como a experincia do exlio elevou ainda mais seu amor por ela (Red. pop. 4):

    20 Trad. AnTOnIO JOAqUIM, in Ccero - Oraes, Rio de Janeiro, So Paulo e Porto Alegre: Jackson, 1952, p. 84.21 Idem, ibidem p. 82.

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    ipsa autem patria, di immortales, dici vix potest, quid caritatis, quid voluptatis habeat; quae species Italiae, quae celebritas oppidorum, quae forma regionum, qui agri, quae fruges, quae pulchritudo urbis, quae humanitas civium, quae rei publicae dignitas, quae vestra maiestas! quibus ego omnibus antea rebus sic fruebar, ut nemo magis.

    Quanto ptria, bons deuses! que coisa mais amvel e deliciosa que a formosura da Itlia, que o plausvel das povoaes, que a figura dos pases, que o aprazvel dos campos e dos frutos, que a beleza de Roma, que a polcia dos cidados, que a nobreza da Repblica, que a vossa majestade! Do que tudo ningum se gozava mais do que eu22.

    Ccero usa a imagem da famlia para a construo da sua, enquanto homem pblico, experincia discursiva que nos remete a Plutarco que, por sua vez, ao biograf-lo, procura articular suas experincias privadas s pblicas, a fim de engrandecer a imagem do biografado enquanto pol-tico romano. Plutarco, em meio a referncias s aes polticas de Ccero, comenta sobre seu divrcio com Terncia, apontando ainda que o orador desposou outra mulher apenas para pagar suas dvidas e por influncia dos amigos. Ao se referir a decises de Ccero que poderiam lhe ferir a reputa-o, Plutarco ressalta que as mesmas resultaram de sugestes dos amigos. Por outra parte, na primeira catilinria, Ccero denuncia atos privados de Catilina, colocando que esse, aps a morte da esposa, visou a um novo casamento, indagando ainda, ao prprio Catilina, se ele no havia cometido um outro delito, sobre o qual afirma que no comentar a fim de que no se torne perceptvel que a Repblica no o castigou por sua prtica. Por conseguinte, Ccero coloca que no lhe interessa os fatos pessoais de Cati-lina, mas, sobretudo aqueles que suscitam problemas Roma (Cat. 1.6.14):

    ad illa venio, quae non ad privatam ignominiam vitiorum tuorum, non ad domesticam tuam difficultatem ac turpitudinem sed ad summam rem publicam atque ad omnium nostrum vitam salutemque pertinent.

    Refiro-me a factos que dizem respeito no infmia pessoal dos teus vcios, no tua penria domstica e tua m fama, mas, sim, aos superiores interesses do Estado e vida e segurana de todos ns.23

    Ccero faz questo de citar vcios privados de Catilina, pois que esses ajudam na construo de sua imagem pblica, constituindo elementos

    22 Idem. 23 Trad. PInHO, 1974, p. 63.

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    que permitem ao orador ornar os fatos e, assim, torn-los mais provveis.Retornando ao discurso ao povo romano, observamos que Ccero

    recupera exemplos de homens pblicos que ao serem exilados/dester-rados no receberam benesses semelhantes s que recebera, elevando sua imagem como o primeiro dos romanos a ter restitudo os bens aps o desterro. Nesse sentido, reala como sua presena em Roma suscitava festividade, alegria, ao passo que sua ausncia, implicava em obscuridade (Red. pop. 8):

    Pro me praesente senatus hominumque praeterea viginti milia vestem mutaverunt, pro eodem absente unius squalorem sordesque vidistis.

    Por me verem presente, se vestiram de gala o Senado e outras quase vinte mil pessoas; na minha ausncia vistes o luto e desalinho de um s sujeito.24

    Por conseguinte, invade seu espao domstico, descrevendo a tris-teza de seus parentes quando de sua ausncia:

    nam coniugis miserae squalor et luctus atque optimae filiae maeror adsiduus filiique parvi desiderium mei lacrimaeque pueriles aut itineribus necessariis aut magnam partem tectis ac tenebris con-tinebantur.

    Pois quanto ao luto e pranto da coitada mulher, e a perptua tristeza da inocente filha, e as saudades e lgrimas pueris do filhinho, tudo ocultava a distncia em que estavam, e seu encerramento domstico25.

    As narrativas de experincias concernentes esfera privada demons-tram como os escritores latinos consideravam profcuo faz-lo, para a construo da imagem pblica dos polticos, na medida em que a partir desse exerccio poderiam explorar gestos e prticas que demonstrassem o lado humano daqueles. Fazer referncia, por exemplo, tristeza de Ccero aps a morte de sua filha Tlia, gesto promovido por Plutarco, constitui uma estratgia narrativa para elevar a imagem do Ccero p-blico. Da porque no possvel se estabelecer fronteiras entre o universo pblico e o privado em Roma, visto que ambos eram cmplices.

    De forma semelhante, observamos na contemporaneidade como a mdia televisiva explora o lado privado dos polticos para, ora denegrir sua imagem, ora elev-la. Referir-se, por exemplo, sexualidade de um poltico ou ao seu divrcio, constitui uma forma de corromper e desfa-

    24 Trad. JOAqUIM, 1952, p. 84.25 Idem, ibidem.

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    vorecer sua imagem em face do pblico. Por outro lado, fazer referncia aos seus casamentos tradicionais constitui uma estratgia para elev-la. Portanto, percebe-se como em sociedades caracterizadas pelo tpos do moralismo o mundo privado constitui um ponto relevante a ser acionado pelos homens pblicos em detrimento de seus opositores na cena poltica. Ao elogiar Cneu Pompeu por seu valor, prudncia e glria, considerando-o seu nico amigo particular, Ccero parece faz-lo como retribuio a um gesto daquele, que havia lhe defendido num discurso a fim de conserv-lo em Roma aps o exlio. Nesse sentido, coloca o que Pompeu proferiu em sua orao acerca de sua figura a fim de elogiar a si prprio a partir da suposta fala daquele (Red. pop. 16):

    quorum princeps ad cohortandos vos et ad rogandos fuit Cn. Pom-peius, vir omnium, qui sunt, fuerunt, erunt, virtute, sapientia, gloria princeps. qui mihi unus uni privato amico eadem omnia dedit, quae universae rei publicae, salutem, otium, dignitatem. cuius oratio fuit, quem ad modum accepi, tripertita: primum vos docuit meis consiliis rem publicam esse servatam causamque meam cum communi salute coniunxit hortatusque est, ut auctoritatem senatus, statum civitatis, fortunas civis bene meriti defenderetis; tum [me] in perorando posuit vos rogari a senatu, rogari ab equitibus Romanis, rogari ab Italia cuncta, deinde ipse ad extremum pro mea vos salute non rogavit so-lum, verum etiam obsecravit.

    Entre todos tem o primeiro lugar, nas exortaes e rogos que vos fez, Cn. Pompeu, heri em todos os sculos sem igual, em valor, prudncia e glria; este foi o nico que a um amigo particular, como eu era seu, concedeu o mesmo que a toda a Repblica, a vida, o des-canso, o crdito. Cuja orao, como me constou, teve trs partes: na primeira mostrou como a Repblica fora conservada com meus ditames, unindo a minha causa com a do bem pblico, onde vos exor-tou a que defendsseis que autoridade do Senado, o estado da corte e os interesses de um cidado benemrito; depois se empregou em perorar, mostrando que assim vo-lo pediam o Senado, os cavaleiros romanos e toda a Itlia; e por ltimo, ele mesmo no s vos rogou, mas importunou pela minha conservao26.

    A fim de no elogiar diretamente a si prprio, Ccero recorre ao que Pompeu teria proferido a seu respeito. Exerccio que lhe faculta mais possibilidades de persuadir o pblico de que era um homem pblico vir-

    26 Idem p. 87.

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    tuoso. Para faz-lo toma como referncia ainda aes de outros roma-nos, comentando sobre C. Mrio, romano tambm exilado, que sentiu a mesma infelicidade que ele prprio ao se v distante da ptria. Por outro lado, aponta que ele e Mrio se distinguiam, visto que, enquanto esse, ao retornar ptria, buscou se vingar de seus inimigos por meio de armas, ele desejava apenas a paz (Red. pop. 21):

    Quamquam ille animo irato nihil nisi de inimicis ulciscendis age-bat, ego de ipsis amicis tantum, quantum mihi res publica permittit, cogitabo.

    () ele, ardendo em ira, no se lembrava mais do que de vingar-se dos inimigos; eu, s porei o pensamento em inimigos quanto a Re-pblica mo permitir.27

    Ccero se constri como uma figura pblica que se vinga de seus inimigos por meio de aes virtuosas, se contrapondo ao Mal com o Bem (Red. pop. 21-22):

    quod erat penes ipsos, vendiderunt, sic ulciscar facinora singulo-rum, quem ad modum a quibusque sum provocatus, malos civis rem publicam bene gerendo, perfidos amicos nihil credendo atque omnia cavendo, invidos virtuti et gloriae serviendo, mercatores provincia-rum revocando domum atque ab iis provinciarum ratione repetenda. Quamquam mihi, Quirites, maiori curae est, quem ad modum vobis, qui de me estis optime meriti, gratiam referam, quam quem ad modum inimicorum iniurias crudelitatemque persequar.

    Vingar-me-ei pois de cada uma destas ofensas pelo mesmo teor com que fui provocado; dos maus cidados, administrando bem a Re-pblica; dos amigos desleais, no me fiando de nada e acautelando tudo; dos invejosos, seguindo a virtude e glria; dos mercadores das provncias, chamando-os ptria e pedindo-lhes conta delas. Mas muito mais cuidarei em mostrar-me agradecido para convosco, a quem to obrigado estou, do que em perseguir a meus cruis ofen-sores e inimigos.28

    O discurso atravessado por uma tnica moralista, mediante a qual Ccero se constri enquanto benevolente e humano e, mais do que isso, enquanto um homem pblico, cujo interesse maior zelar pelo bem da Repblica.

    27 Idem p. 89.28 Idem.

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    Dos discursos In Catilinam, o segundo, proferido ao povo romano na assemblia curial, a fim de se defender das acusaes dos cmplices de Catilina, segundo os quais o orador teria condenado esse sem o consenti-mento da Repblica, se destaca dos outros pela forte tnica moralista que o perpassa. Ccero se representa como o virtuoso defensor da Repblica e dos costumes tradicionais que a respaldam, ao passo que Catilina aparece como o monstro e o flagelo que para aquela conduz todos os vcios humanos. Ccero dirige implacveis crticas aos conjurados, aliados de Catilina, demonstrando como todos aqueles que faziam parte do crculo de amizades do monstro, se transformaram em seres providos de uma depravao, semelhante daquele. Usando um discurso moralista, Ccero rebaixa a figura de Catilina e a de seus aliados, colocando todos num es-pao obscuro, em que a corrupo dos costumes se proliferava. A Catilina Ccero atribui todos os vcios humanos, representando-o como o smbolo por excelncia da corrupo dos costumes (Cat. 2.4.7):

    quis tota Italia veneficus, quis gladiator, quis latro, quis sicarius, quis parricida, quis testamentorum subiector, quis circumscriptor, quis ganeo, quis nepos, quis adulter, quae mulier infamis, quis corruptor iuventutis, quis corruptus, quis perditus inveniri potest, qui se cum Catilina non familiarissime vixisse fateatur? quae caedes per hosce annos sine illo facta est, quod nefarium stuprum non per illum?

    Qual o envenenador, o gladiador, o gatuno, o sicrio, o parricida, o falsificador de testamentos, o vigarista, o freqentador de tabernas, o dissipador, o adltero, a mulher de m fama, o corruptor da juventude, o depravado, qual o homem pervertido que se pode encontrar na Itlia inteira que no se cometeu sem ele? Que atentado nefando contra o pudor se ter praticado seno por seu intermdio?29

    Para tornar mais visvel aos ouvintes de seu discurso a devassido dos aliados de Catilina, Ccero descreve com detalhes prticas depravadas dos que a esse rodeavam, ornamento retrico que lhe permite construir uma terrvel imagem daqueles que o acusavam de ir de encontro s leis romanas, ao expulsar Catilina de Roma, apenas com sua orao. Trata-se de homens, cujos excessos no deveriam constituir parte das prticas dos valorosos romanos (Cic. Cat. II, 5.10):

    qui mihi accubantes in conviviis conplexi mulieres inpudicas vino languidi, conferti cibo, sertis redimiti, unguentis obliti, debilitati stu-

    29 Trad. PInHO, 1974, p. 76.

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    pris eructant sermonibus suis caedem bonorum atque urbis incendia.

    Esses que, estendidos pelos leitos dos banquetes, abraados a mulhe-res sem pudor, amolecidos pelo vinho, empanturrados pela comida, coroados de grinaldas, besuntados de perfumes, enfraquecidos pela devassido, vomitam nas suas palavras a morte dos homens de bem e os incndios da cidade.30

    Considerando o carter moralista da sociedade romana da poca, descrever no corpus da orao esse tipo de prtica constitua uma estra-tgia para persuadir os ouvintes no apenas que as acusaes dos aliados de Catilina eram infundadas. Trata-se de uma estratgia usada pelo orador para se construir como o salvador de Roma, visto t-la livrado de uma terrvel conspirao que dela poderia retirar o carter eterno. Dizer que Catilina no promoveu nada daquilo sobre o que Ccero comenta, pode constituir um exagero, visto que os discursos oratrios eram pautados em provas, em fatos que aconteceram. Contudo, usando o carter essencial da oratria, a saber, a elocutio, Ccero amplifica tal experincia, transfor-mando Catilina num monstro, imagem que ainda ressoa nos escritos contemporneos sobre o referido romano. Ccero ataca Catilina a partir do elemento que mais lhe poderia auxiliar no rebaixamento do ru: o mo-ralismo. Por outro lado, Ccero se constri como o defensor da Repblica e que, portanto, age atravs da oratria, to somente para proteg-la dos atos cruis dos inimigos da ptria (Cat. 1.9.27):

    Etenim, si mecum patria, quae mihi vita mea multo est carior, si cuncta Italia, si omnis res publica loquatur: "M.Tulli, quid agis? Tune eum, quem esse hostem comperisti, quem ducem belli futurum vides, quem expectari imperatorem in castris hostium sentis, auctorem sce-leris, principem con iurationis, evocatorem servorum et civium per-ditorum, exire patiere, ut abs te non emissus ex urbe, sed immissus in urbem esse videatur?

    Porquanto, se a Ptria, que para mim mais cara que a prpria vida, se a Itlia inteira, se toda a Repblica me dissesse: Que ests tu a fazer, Marco Tlio? Ento tu vais consentir que aquele que provaste ser um inimigo pblico (), ser o instigador de um ato criminoso, o cabecilha de uma conspirao, um agitador de escravos e de cidados perversos, a esse vais tu deix-lo partir de tal maneira, que nem parece ter sido por ti expelido para fora da cidade, mas, sim, impelido contra ela?31

    30 Idem, ibidem p. 77.31 Idem p. 68.

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    Impressiona a eloqncia do orador ao transferir suas opinies para a Repblica, colocando uma suposta mensagem da mesma em seu discurso endereada para ele prprio. Por meio desse ornamento retrico, constri elogios em benefcio de si, j que usa aquilo que a Repblica dirige para ele como uma estratgia para no apresentar louvores pessoais de forma explcita (Cat. 1.9.28):

    Praeclaram vero populo Romano refers gratiam, qui te, hominem per te cognitum nulla commendatione maiorum tam mature ad summum imperium per omnis honorum gradus extulit, si propter invidiam aut alicuius periculi metum salutem civium tuorum neglegis.

    Bela maneira essa de agradeceres ao povo romano, ele que te elevou to cedo ao supremo poder atravs de todos os graus da magistra-tura, sendo tu um homem conhecido apenas pela tua pessoa sem nenhuma recomendao de antepassados se, por causa da impopu-laridade ou do receio de algum perigo, desprezas a salvao de teus concidados!32

    Incitado por essas fortes palavras que Ccero justifica a necessidade de investir duramente contra o mal que ento atormentava Roma. Ccero explora sua condio enquanto homo novus, cujo esforo para alcanar a magistratura do consulado supera s aes de homens pblicos que j possuam tradio poltica na famlia. Por outro lado, no referido excerto se torna visvel como se constri como aquele que age apenas conforme as demandas da Repblica, em detrimento dos seus interesses pessoais. Suas aes so apenas impulsionadas pelos anseios da Repblica, espcie de objeto por ele utilizado para ocultar interesses individuais.

    Consideramos que a comparao entre os discursos construdos por Ccero para a representao dele prprio e de Catilina, bem como o efeito persuasivo dos mesmos, visto que o orador venceu quase todas as causas defendidas, nos permitiu perceber como a oratria constituiu na Roma antiga um valioso instrumento para a articulao poltica. Se Ccero conseguiu, por exemplo, persuadir os senadores da suposta conjurao planejada por Catilina, significa dizer que seus discursos possuam cre-dibilidade em meio ao pblico para quem eram endereados, ainda que, ressalte-se, os prprios senadores, ao se fazerem convencidos, provavel-mente seguiam de acordo com seus prprios interesses. De toda forma, os discursos de Ccero, nos permitiram sentir a dimenso da oratria nas aes polticas em Roma. Por extenso, nos ofereceram possibilidades de

    32 Idem p. 69.

  • 292 MARINALVA V. DE LIMA E MICHELLy P. DE SOUSA CORDO

    Classica (Brasil) 20.2, 270-292, 2007

    perceber uma Repblica norteada por relaes de poder; por disputas, que encontravam na palavra um forte espao para seu fomento.

    Por fim, considerando os numerosos discursos de Ccero, bem como, as mltiplas possibilidades de discusso oferecidas por sua anlise, cremos que esse ensaio constitui apenas o incio de uma investigao historio-grfica que demanda maiores investidas.

    TITLE . Ciceronian discourses: oratory as a political strategy in Ancient Rome

    ABSTRACT . This essay discusses Ciceros personality based on a self-portrait wrau-ght by himself as well as on biographic representations built by authors of his own days and modern ones. It raises the issue of Ciceronian writings and highlights the relation he builds between rhetoric and poltical exercise. It intends to contribute to the construction os Ciceros image as a historical subject besides touching on the aesthetic aspects of his discursive production.

    kEyWORDS . Latin Literature; History of Rome; Cicero; politics; rhetoric.