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HVMANITAS- Voi. LII (2000) ASPECTOS DA FORMAÇÃO DA NOÇÃO DE EUROPA NA ANTIGUIDADE O DESAFIO DAS DIFERENÇAS ÉTNICAS EM HERÓDOTO UMA QUESTÃO DE INTELIGÊNCIA E DE SABER 1 MARIA DE FáTIMA SILVA Universidade de Coimbra Abstract: — The ethnical differences challenge in Herodotus. A question of intelligence and knowtedge(l) To save from forgetfulness what out of the human life is worthy of merit and of the experience of each people, not only the remarkable exploits that stand out, but also a whole of everyday life practices which are the individualization features of each community, constitutes Herodotus' purpose, defined in the proem to his Stories. The harmonious intercourse among peoples or the success that, through unavoidable crisis, changes the politicai chess of the known world depends first of ali on the intelligence put into the strategy to be applied, that must proceed from a deep knowledge and from respect towards any adversary to be faced. Haughtiness, that the exercise of power arises, with the tendentious contempt towards the unknown, has left by the experience of powerful men to be a sign of attention to the unhappy, sensible man. It was the traditional 0(oppoaúvT) that the Halicarnass Historian advertised as a lemma in the intercourse, which became tighter and tighter, between Greeks and Barbarians. A frase com que Heródoto introduz a apresentação das suas Histórias esta é a exposição das investigações de Heródoto de Túrios, cujo objec- tivo é que nem as realizações do homem, com o tempo, se apaguem, nem os feitos grandes e notáveis, cometidos quer por Gregos quer por bárbaros, fiquem sem reconhecimento — prima pela dicotomia. Gregos e bárbaros 1 Esta reflexão será dividida em dois blocos, um que abarca a experiência do imperialismo persa em terras do oriente e Africa, o segundo consagrado ao avanço em território europeu.

o Desafio Das Diferenças Étnicas Em Heródoto

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maria de fátima silva-universidade de coimbra"Abstract: — The ethnical differences challenge in Herodotus. A question ofintelligence and knowtedge""A frase com que Heródoto introduz a apresentação das suas Histórias— esta é a exposição das nvestigações de Heródoto de Túrios, cujo objectivo é que nem as realizações do homem, com o tempo, se apaguem, nem os feitos grandes e notáveis, cometidos quer por Gregos quer por bárbaros, fiquem sem reconhecimento — prima pela dicotomia."

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  • HVMANITAS- Voi. LII (2000)

    ASPECTOS DA FORMAO DA NOO DE EUROPA NA ANTIGUIDADE

    O DESAFIO DAS DIFERENAS TNICAS EM HERDOTO UMA QUESTO DE INTELIGNCIA E DE SABER1

    MARIA DE FTIMA SILVA Universidade de Coimbra

    Abstract: The ethnical differences challenge in Herodotus. A question of intelligence and knowtedge(l)

    To save from forgetfulness what out of the human life is worthy of merit and of the experience of each people, not only the remarkable exploits that stand out, but also a whole of everyday life practices which are the individualization features of each community, constitutes Herodotus' purpose, defined in the proem to his Stories. The harmonious intercourse among peoples or the success that, through unavoidable crisis, changes the politicai chess of the known world depends first of ali on the intelligence put into the strategy to be applied, that must proceed from a deep knowledge and from respect towards any adversary to be faced. Haughtiness, that the exercise of power arises, with the tendentious contempt towards the unknown, has left by the experience of powerful men to be a sign of attention to the unhappy, sensible man. It was the traditional 0(oppoavT) that the Halicarnass Historian advertised as a lemma in the intercourse, which became tighter and tighter, between Greeks and Barbarians.

    A frase com que Herdoto introduz a apresentao das suas Histrias esta a exposio das investigaes de Herdoto de Trios, cujo objec-tivo que nem as realizaes do homem, com o tempo, se apaguem, nem os feitos grandes e notveis, cometidos quer por Gregos quer por brbaros, fiquem sem reconhecimento prima pela dicotomia. Gregos e brbaros

    1 Esta reflexo ser dividida em dois blocos, um que abarca a experincia do

    imperialismo persa em terras do oriente e Africa, o segundo consagrado ao avano em territrio europeu.

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    aparecem como dois mundos, isolados ou mesmo opostos (x fxv "EAAr]oi, x Papppoiox), bem como diverso aquilo que de um e de outro destes dois universos preciso salvaguardar (os actos comuns do comportamento humano, a par dos feitos distintos e gloriosos) dentro de dois planos da existncia: o do quotidiano (x yev\ieva) e o do momento particular em que cada um se eleva ao nvel do distinto e do herico. O desencadear de um processo de confrontao entre estas quatro parcelas grego / brbaro, quotidiano / crise ocorreu com a guerra, um conflito cujas causas Herdoto afirma de seguida merecerem a sua particular ateno2.

    Para alm de sugerir directamente uma inteno do autor a de salva-guardar a perenidade da memria, esta frase, tantas vezes discutida, deixa uma sugesto sobre os materiais, que so outras tantas perspectivas pelas quais Herdoto ir desenvolver o seu objectivo. Se os.pya u.eyK KCU B(x>\Laox parecem incluir os momentos em que um povo grego ou br-baro - se elevou, at aos limites humanos, para atingir a glria das grandes conquistas ou dos rasgos de heroicidade, x yev[ieva ter decerto o sen-tido abrangente de 'as ocorrncias, os factos', que podem abarcar tudo quanto so 'as prticas, usos e costumes' do quotidiano de cada povo. A juno destes dois planos da experincia do homem a que constitui a normalidade com a que resulta de tempos de evoluo ou de crise no julgo que produza o resultado directo de uma soma de parcelas distintas, realizada por um esprito mais ou menos curioso, que se torna, em funo disso, 'o pai da histria', como da antropologia, da histria da cultura ou da filosofia da histria. Parece-me que, mais do que uma soma de elementos, o quotidiano se articula com o herico como as duas faces indissociveis de uma mesma realidade. Cada povo, de acordo com a sua mentalidade e com as prticas do seu dia-a-dia, assumir, nos grandes momentos da sua histria, a atitude mais consentnea com o prprio carcter. E se, em boa parte, as horas notveis resultam do choque de civilizaes, da guerra que desafia cada comunidade para um jogo onde se arrisca a prosperidade ou a sobrevivncia, a atitude ou interveno estratgica de cada um passa pelos condicionalismos de uma personalidade colectiva que lhe est subjacente. Nesta perspectiva, os

    2 O interesse de Herdoto pela diferena entre Gregos e brbaros, ainda que no

    de todo indito nas preocupaes helnicas, como se pode inferir de vrios testemunhos literrios j a partir da pica, tem de facto, em consequncia do conflito fulcral entre a Grcia e a Prsia, uma dimenso e um impacto novos. Na literatura clssica, historiogrfica e teatral, a questo grego / brbaro recrudesce com uma fora evidente. Sobre a presena plida da noo de brbaro na poca arcaica, vide I. Weiler, 'Greek and non-Greek world in the Archaic Period', GRBS 9, 1968, pp. 21-29.

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    captulos etnogrficos que integram invariavelmente cada logos, a preceder ou a suceder a cada campanha blica, deixam de ser um simples relato de curiosidade que preserve a especificidade de cada etnia, para potenciar a compreenso do comportamento ou reaco do invadido perante o ataque. Logo a guerra, ou esta guerra em particular que o objecto da narrativa que aqui se inicia, coloca frente a frente dois mundos que iro discutir, de armas na mo, questes fundamentais de independncia poltica e cultural. Antes do conflito central entre Persas e Gregos, Herdoto alonga-se num relato em que o crescimento progressivo de um grande imprio oriental ganha vulto, por um vasto processo de sucessivas conquistas ou hegemonias. O Persa que caminha contra a Hlade o herdeiro de uma tradio de ataque e conquista, sob o lema 'preserva o que herdaste e acrescenta ao teu poder uma nova parcela'''. Norteado por este princpio, o povo persa desempenhou um papel de conquistador e unificador de um imprio, que, ao longo de dcadas, se estendeu pela sia, Africa e finalmente Europa e o tornou o imenso inimigo dos Gregos. Empreendimento que implicou incansveis e inmeras cam-panhas e o defrontar sistemtico de inimigos numerosos e diversos. Consumava-se um processo em que o choque sistemtico entre povos distintos e, entre si em boa parte desconhecidos, produzia uma conscincia clara do sentido das diferenas humanas, como das regras que presidem convivncia universal.

    Mais do que no grande projecto unificador, nas condies da sua execuo que irei deter-me. Partindo do embrio de um imprio que a Ldia de Creso, Herdoto conduz-nos, atravs das conquistas de Ciro, Cambises e Drio por um caminho ascendente, que experimenta um momento de derro-cada com a ousadia do ataque contra a Grcia perpetrado por Xerxes. Neste processo extenso viveram-se horas de vitria e de derrota, condicionadas pelos mais variados factores. Como motivaes para cada empreendimento, sabido que, mais do que razes de estado, Herdoto tende a valorizar motivos pessoais, e o desejo de vingana com incidncia particular. Mas o prossegui-mento do projecto, e sobretudo o seu desfecho, parecem estar na mo do saber, da perspiccia ou da inteligncia4.

    "' com base neste princpio que Atossa intervm junto de Drio estimulando-o a novas conquistas (3. 134. 1).

    4 S. Said, 'Guerre, intelligence et courage dans Hrodote', Ancient Society

    11/12, 1980-1981, pp. 83-117, valoriza a noo de que, com o incremento da sofstica, a guerra comeou a ser lida como um produto da arte e do saber (xxvn e 7UO"rr)U.r)), para alm da consequncia de uma estratgia militar. Com esta nova perspectiva, a inteligncia vai aparecendo, nos historiadores do sc. V a. C, como um factor determinante no desenrolar do combate.

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    Conhecer o inimigo, avaliar-lhe o comportamento, saber-lhe os hbitos e as reaces condio elementar para o resultado a obter. Mais do que o poder, a riqueza ou o nmero, de homens, de armas, de terras, que fazem a vantagem aparente de uma das partes, a sorte final depende sobretudo da lucidez, da razo, do conhecimento, que podem redimir os mais fracos da prpria desvantagem natural. Esta circunstncia, que teve o seu teste supremo no confronto determinante entre Gregos e Persas, foi visvel desde os primeiros movimentos expansionistas registados por Herdoto nas suas Histrias. A ambio e arrogncia do mais forte, que o estimulam a encarar com segurana ou menosprezo um inimigo mais dbil, trazem em si um potencial de risco; no apenas por uma questo tica, implcita na viso da poca de Herdoto, a de que hybris corresponde invariavelmente a punio dos deuses. Acima desta leitura teolgica, tipicamente esquiliana, o que parece impor-se em Herdoto a interpretao racional dos factos. De par com a ambio excessiva anda a ignorncia ou a leviandade na avaliao correcta das circunstncias. Pronto a considerar inferior o adversrio, porque remoto, selvagem ou mais fraco, o invasor poderoso desconhece a realidade, deixa-se levar pela precipitao e pelas aparncias. Os alertas que lhe chegam de quem sabe mais, julga-os fteis e por isso os despreza. Por fim, a leviandade punida e a lio, tambm esquiliana, de 'aprender pelo sofrimento' aplica-se-lhe com toda a propriedade.

    A ocorrncia, constante e cclica em Herdoto, da disputa entre o saber e a ignorncia o principal objectivo desta reflexo. A repetio da mesma dicotomia em cada um dos logoi, sugerida expressivamente por alguma insistncia vocabular, far, em ltima anlise, de yviir) ou de owcj)poavr| a verdadeira rainha do mundo. No conheciam os Persas o valor desta regra implcita na leitura que um grego como Herdoto faz dos acontecimentos. Para eles, pelo contrrio, so factores ocasionais como a proximidade ou a distncia que nivelam a considerao a ter pelo adversrio. Entre os aspectos fundamentais da mentalidade persa, Herdoto regista o critrio com que se auto-avaliam, como tambm aos outros povos (1. 134. 2-3): 'Tm uma estima muito particular, a seguir a si prprios, pelos que lhes vivem mais prximos; depois, por aqueles que vivem um pouco mais longe e assim por diante, vo medindo a estima por este critrio; os que esto mais afastados tm-nos em muito pouca considerao. Esto convencidos de que eles prprios so, sob todos os pontos de vista, os melhores do mundo, e que os outros tm um mrito proporcional segundo o critrio que referimos; os que lhes ficam mais afastados so a prpria nulidade'.

    Antes de penetrarmos definitivamente no universo dos grandes conflitos militares, vamos deter-nos, tal como Herdoto, numa histria domstica que

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    simboliza, no entanto, a origem de uma maldio a pairar sobre o primeiro dos grandes conquistadores orientais no relato de Herdoto: Creso da Ldia. Por estes captulos preambulares que, como tem sido reconhecido, desempenham um papel na esquematizao estrutural da narrativa onde os momentos permanentes da origem ou ascenso ao poder de um soberano, auge da autoridade e decadncia tendem a ser assinalados por histrias de fico , so-nos dados tambm padres simblicos que nos permitem ler, de acordo com critrios de avaliao previamente definidos por Herdoto, o sentido universal dos factos histricos que se sucedem5.

    Do primeiro ascendente da sua linha dinstica, Giges, Creso herdara a mancha do crime e a ameaa da punio. Ao mesmo tempo, porm, este famoso episdio de Giges e Candaules (1. 8-13), mais do que condicionar o destino do grande senhor da Ldia a quem Herdoto dedica a primeira metade do seu primeiro livro, abre o relato de Histrias como um paradigma vital em todo o futuro do oriente: nele se joga um processo de desrespeito pelo nomos, um choque de cegueira e perspiccia, a vitria segura para o lado mais fraco se a lucidez o favorece. esta a chave para a leitura do conflito fundamental entre o par real da Ldia, em dias remotos, Candaules e a sua mulher6. Encarado nesta perspectiva, este que o primeiro logos de fico em Herdoto ganha um significado com uma dimenso universal, de enorme alcance para a viso geral que o autor tem da histria. Juntamente com o episdio central da entrevista de Creso e Slon, ou com a cena conclusiva da pira de Creso, serve para ilustrar, como em fronto imponente, um princpio fundamental: o da excelncia do saber e da clarividncia como garantia de vitria e de prosperidade, a par do risco que representa o desrespeito pelo poder, quase sagrado ele tambm, do nomos.

    A histria de Candaules e da mulher o drama do eterno conflito entre fora e fraqueza, aqui representados pelo poder rgio e masculino do sobe-rano perante o que parecia ser a dependncia e fraqueza da sua mulher. Mas aquele que , nesta histria, o senhor da Ldia revela, sem dvida, traos de uma personalidade que, aqui exemplificados no plano domstico, se projec-

    5 A importncia simblica destas histrias preliminares e a posio tam-

    bm significativa que ocupam na abertura da narrativa tm a sua justificao por serem, nas palavras de K. Waters (Herodotos on tyrants and despots, Wiesbaden, 1971, p. 46), 'extremamente indicativas do plano da histria e da filosofia do seu autor'.

    6 Numa altura em que o processo de expanso militar, como todo o esquema de

    confrontos entre povos, se no iniciou ainda em Herdoto, no plano domstico ou palaciano que as regras gerais da existncia se patenteiam de forma simbolicamente paradigmtica.

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    tam como uma constante no carcter de um soberano oriental. A ambio, o desejo de posse, manifestam-se, neste caso, pela insistncia na ideia de 'pai-xo'; f\poQr\, logo repetido em paaOes (1. 8. 1), clarifica a leviandade e cegueira que o sentimento irracional produz. Associado paixo est o desejo de posse, de domnio sobre uma propriedade ou um tesouro, que neste caso a beldade que Candaules tem por mulher (xfjs autou yuvouKs, 1. 8. 1). Se a razo tem, no processo, alguma interveno (v(j,i(e, vouiwv) para corroborar a sofreguido e elucidar sobre a seduo do objecto desejado (vp,i(e oi eivai y u v a i ' K a HOV itaocov KccXaxriv, 1. 8. 1). Dessa mulher, o rei nada mais sabe do que a seduo que o atrai conquista e a subalternidade que o dispensa de se interrogar sequer sobre a natureza ou personalidade do objecto da sua paixo. Dele pretende fazer uso a seu bel prazer, exp-lo como um trunfo invejvel que possui. A convico do seu poder dispensa-o de procurar conhecer o outro que quer dominar, em definitivo, como sua propriedade. Destas breves linhas dedicadas caracterizao do monarca est significativamente ausente qualquer vocabulrio alusivo a 'conhecimento, saber ou conscincia'. a paixo e o pensamento precipitado que o determinam.

    Giges, no papel de um primeiro conselheiro nas Histrias, detm uma lucidez que falta ao monarca e que usa para o advertir. O acto que o seu senhor lhe sugere de espiar a rainha nua uma infraco ao nomos feminino e pode despoletar reaco ou desgraa. Desrespeitar as regras, considera-o Giges uma atitude no saudvel nem sensata (OK Yioc). Consignados em frases proverbiais, como a que se aplica circunstncia com o vestido que despe, a mulher despe tambm o pudor , os princpios, as regras que neste caso a prpria comunidade ldia estabeleceu h muito tempo (iiai i xaX v8p(jTCOioi ^ei3pr)Tai) impem-se aos homens como um elemento de beleza e harmonia; por isso obrigao de cada agente social aprend-los e aceit-los: TCOV pavveiv e. As palavras do conselheiro que se v compelido a cometer uma irregularidade so de splica e de advertncia insistente: 'Por isso te peo que me no peas uma infraco' (oeo o|iai u.f| eadai vfiojv). Logo, a tonalidade da caracterizao a oposta no caso do conselheiro. Junto do monarca irreflectido, ele a voz do saber, um saber prprio de um homem de corte, mas sobretudo o testemunho de uma sabedoria que a comunidade ldia de h muito descobriu e consignou. Claramente a sua atitude de prudncia tem um alcance colectivo, como o espelho do saber geral que ele reage. Algumas qualidades faltam tragicamente a Giges para desempenhar o seu papel: perspiccia natural, determinao e coragem. Perante o rei autoritrio na sua leviandade, o conselheiro teme (ppcwv, p,f] (J)oPo) e fica por isso incapaz de reagir.

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    Da mulher ofendida e da sua possvel reaco nem uma suspeita, por mais leve que seja, o aflora.

    O tringulo humano da histria completa-se com a personagem da mulher, esse objecto que para o marido no passa de uma propriedade de que se dispe sem reservas, para Giges de matria que entra no foro da legalidade e por isso pode trazer problemas. Nenhum dos dois detm, no entanto, da beldade real um conhecimento pessoal e objectivo. Assim, Herdoto nos reserva, sobre esta enigmtica mulher, uma surpresa. Chegada a hora de um foco directo nos revelar a sua personalidade, o vocabulrio que se impe o do saber, do pensamento, da deciso consciente, que se repete com uma insistncia falante:

    MaSoGcm to 7toir|6v x TOU vps orne vpwae caxuvOeiaa orne o^e u,a8eiv, v voto yovoa xeaeaca TV KavaAr)v.

    'Ela percebeu que ali andava a mo do marido, mas nem gritou a sua vergonha nem deu a entender que tinha percebido. Apenas alimentou no ntimo a ideia de se vingar de Candaules'.

    Tal como Giges, ela sabe, o conhecimento e a lucidez so o seu trao principal. Mas o que sabe no resulta da repetio simples de regras convencionais, mas de uma observao atenta do que a rodeia. ignorncia e indiferena com que a olham os seus interlocutores mais directos, Candaules e Giges, ela ope um conhecimento seguro das personalidades de ambos. Sabe que um acto leviano como o que lhe causou uma profunda humilhao s pode vir do marido, como lhe no deixa dvidas o medo de Giges, que faz dele apenas um cmplice involuntrio do monarca. inteligncia, a mulher de Candaules junta a frieza e a determinao. Ao contrrio do marido, todo sentimento e paixo, ela toda cabea e razo; ao invs de Giges, inseguro e temeroso, ela a imagem da deciso. Oculta reaces espontneas, finge distraco ou ignorncia, calculado cada gesto e cada palavra. Tambm ela, como Giges, conhece os nomoi e a fora que tm e deles exige o cumprimento; mas essa , na sugesto que Herdoto d ao repetir as regras que j antes o conselheiro enunciara, uma segunda motivao para o castigo; a primeira a sua satisfao pessoal de se vingar de Candaules, o marido que a no respeita e esta , mais do que uma infraco ao cdigo social, uma questo de foro ntimo e conjugal. esta supremacia de esprito que lhe depe nas mos a vingana e, com ela, a vitria e o poder. Porque no dia seguinte, quando o plano de desforra se desencadeia, ela j paaieia, a soberana, plena de autoridade ao comando da situao. Giges cometeu ainda uma ltima ingenuidade, acorreu ao chamamento da rainha sem suspeitas, no lhe parecendo que ela se tivesse apercebido da aventura nocturna:

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    ov oKwv aT|v ... Ttoraacu. Essa a grande desvantagem que o deixou de imediato nas mos autoritrias da soberana, que agora por sua vez o confronta, como antes o marido, com terrveis exigncias. A prpria alternativa reveladora das intenes ou prioridades da ofendida: como primeira hiptese ela coloca a condenao de Candaules ('mata Candaules e fica comigo e com o trono da Ldia'), o que lhe satisfaz o desejo de desforra pessoal; ou ento que se puna Giges de morte pela fraqueza subserviente diante do monarca que o leva a ter transgredido a lei; cobardia e anomia so os dois erros, o pessoal e o legal, que ela identifica no cmplice do marido. Esboada uma leve resistncia ou splica, Giges percebeu que estava diante de uma exigncia inabalvel (vaYKodr|v, vayKeis) a que no podia resistir. Escolheu ento matar o soberano, dobrando simultaneamente ao poder da senhora duas vontades que antes se lhe julgavam superiores: a do marido e a do conselheiro que exercia na corte uma interveno poderosa nas questes mais delicadas.

    Est, a partir de Candaules, traado um perfil que se repetir como a marca dos poderosos senhores do oriente: o desejo de possuir, de afirmar a sua autoridade, que assenta na convico leviana do ascendente que detm, e que mal lhes deixa tempo para uma interrogao ou um pensamento de avaliao do adversrio. Avanam sem receios, surdos a quaisquer avisos, plenos de certezas e de autoridade, para um risco que quase sempre lhes traz a destruio ou a morte.

    Quatro geraes mais tarde, reinava j Creso sobre a Ldia desenvol-vendo uma poltica de agresso e domnio sobre os Gregos da sia Menor, quando um novo episdio ocorre (1. 27), agora no plano poltico-militar, que, de forma ainda discreta, retoma a questo. O sucesso obtido nos ataques sucessivos contra os Gregos da Inia e da Elia deixavam Creso espectante, ansioso de avanar sempre mais e de estender o alcance da sua autoridade. Esgotado o terreno em terra firme, o monarca projectou (iievee, I. 27) construir navios e navegar contra as ilhas. Sem que Herdoto seja ainda muito explcito, a verdade que um leitor atento descortina j neste projecto factores de risco e de comportamento, repetitivos e cclicos nas Histrias. O alcance da sua realizao, que exige a travessia do mar, tem caractersticas de excesso, impe a superao de uma barreira lquida natural, que funciona, no pensamento de Herdoto, como simblica fronteira destinada a suster a ambio humana. Ultrapass-la equivale sempre a insensatez e garante derrota ou runa. Animado pelo sucesso demasiado constante, que corrompe e incentiva a ir mais longe, Creso est incapaz de ponderar realmente as condi-cionantes do novo projecto, nada sabe nem procura saber sobre o inimigo. ento que surge junto do rei um outro conselheiro, Bias de Priene ou Ptaco

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    de Mitilene; se a identidade da figura duvidosa, no o a ideia de que um grego a voz da razo neste caso. E a lio que traz considerao do rei da Ldia versa sobre nomos , ainda que nunca a palavra aqui aparea registada. O sbio grego limita-se a inverter os papis e a relatar a Creso que, nas ilhas, se prepara um corpo de cavalaria com a inteno (v voto xovtes) de um ataque contra a Ldia. Creso rejubila de esperana (TtoavTa), considera uma ddiva dos deuses que os pretensos invasores levem por diante o seu plano. Desta vez so justas as esperanas (oKxa TCcov), aprova o con-selheiro, de enfrentar em terra firme o inimigo. Apenas com o mesmo jbilo que este espera receber o invasor ldio junto s suas costas. Creso aplaudiu o conselho (r)o6fjvai xcp %i\y(x>), teve a noo da sensatez das palavras que ouvia (Ttpooc^uws ^ax Yetv) e, de uma forma inteligente, desistiu.

    No seu desenvolvimento breve, este episdio progride numa interes-sante estrutura quistica: definido pelo entusiasmo que desencadeia o pro-jecto e pela sensatez que impe a desistncia, o espao interno caracteriza a actuao potencial dos dois inimigos, os preparativos que um e outro alinha-vam para a sua execuo, relatados nas palavras directas e explcitas de um sbio. A essncia do conselho, que avulta tacitamente do episdio, tem, porm, a ver com o nomos. Atacar o inimigo no seu terreno exige a ponderao dos hbitos que lhe iro ditar a estratgia: que um povo de ndole martima ataque em terra um inimigo que mestre desse terreno ser um projecto suicida, to fatal como o seu inverso. Para alm de caracterizar, desde o incio, o perfil blico dos dois povos, cujo futuro conflito mal germina ainda - os orientais em vantagem em terra, os Gregos superiores no mar7 -, este significativo episdio valoriza desde logo a ideia de que a ignorncia ou o menosprezo pela identidade do adversrio um factor de

    7 Esta conscincia de que o mar estabelecia uma efectiva barreira natural

    constitua, para os Gregos das ilhas e mesmo do continente, um tampo de segurana, num tempo em que era evidente a incapacidade dos orientais no mar. Este equilbrio, que resultava dos diferentes nomoi dos dois povos fronteirios, quebrou-se ao tempo da revolta inica e foi responsvel pelo conflito profundo que agitou os finais do sc. VI e primeiras dcadas do sc. V. Depois que Aristgoras, tirano de Mileto, atacou Naxos com uma armada persa (5. 31-34), embora sem sucesso, esta nova situao - a violao do Egeu por navios persas - alterou a atitude grega: perante a revolta inica, os Gregos do continente entenderam solidarizar-se com os seus irmos de alm-mar, antevendo o interesse de enfrentar um inimigo comum e de prevenir o avano de um perigo que se tornava patente.

    Sobre as marcas claras que a natureza diversa das duas comunidades - um povo de mar, outro de terra - deixa na narrativa de Herdoto, vide S. W. Hirsch, 'Cyrus'parable of the fish: sea power in the eariy relations of Greece and Prsia', CJ 81, 1986, pp. 222-229.

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    risco que, neste momento, parece ainda evidente a todos. A beira de cometer um erro, Creso salvo pela lucidez do conselheiro e pela prpria disponibilidade para lhe prestar ouvidos.

    Anos mais tarde, quando de novo projectou uma empresa arriscada, agora contra os Persas, o esprito de Creso agitou-se outra vez (vfir\oe s (jjpovta, 1. 46) na expectativa de uma nova conquista. Agora era o rio, o Hlis, que o separava do seu objectivo e a avaliao de foras o grande enigma que se lhe colocava. Creso, que se tinha na conta de um soberano poderoso, avaliava as suas possibilidades perante um inimigo cujo poder dia-a-dia se revelava mais imponente. Como sempre em Herdoto, a simetria das palavras d um contributo impressionante ao pensamento: fora, grandeza, conquista, grandeza, fora so a escada equilibrada que contm todos os motivos e possibilidades que demovem um conquistador ainda, apesar de tudo, consciente da grandeza do adversrio e interrogativo sobre a oportuni-dade de um ataque:

    ... e KG)9 VCUTO Ttplv [ieylou yevaQax to)s Ilpaas, Kaialafieiv aiitwv povco ( TI povoiev, (frpovovTa xi]v r)6er|v), como uma vnia ao seu efectivo saber. Perante as respostas recolhidas, Creso verificou8 os seus mritos relativos (o verbo vopt repete-se como significativo de uma constatao meramente superficial: VQUPCCS povov eivoci |ictvTr)ov to v Ae

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    ictf|0"8ai). Mas tanto foi suficiente para lhe revitalizar as esperanas de conciliar as boas graas dos deuses antes de mais: \n(>v xv 6ev ... vaKTf)O"ea0ca (1. 50). E da esperana ao jbilo, a passagem foi rpida, para tanto bastaram as respostas com que Apolo satisfez, sob a capa de uma evidente ambiguidade, as suas perguntas insistentes:

    'TnepriaSn xe xotai xpriaxripoiai, nyxv xe A-Tcoaq Kaxaoeiv XTIV Kpou paair|r]v.

    'Ficou eufrico com os orculos, cheio de esperana de arrasar o reino de Ciro'.

    IIOAV xi [lXxaxa fivxcjv r)o8r|, Xniwv ... 'E ento a sua euforia foi completa, na esperana de que ...' Dotado, em Herdoto, de alguma sensatez qualidade em que no

    desmerece do seu antepassado remoto, Giges , Creso tem a noo da prpria ignorncia, como da necessidade de ter certezas antes de arriscar grandes projectos. Mas esta sua qualidade tem os limites do precrio; posto diante da verdade absoluta que lhe provm da omniscincia divina, ainda que velada pelo percurso imenso que afasta a mediocridade humana da radiosa luz dos deuses, Creso no sabe ler nem compreender. O pensamento de Herdoto conflui, neste caso, com o de Sfocles. Pressgios ou orculos revelam ao homem a verdade, porque os deuses no so inexistentes nem falsos. A comunicao entre os dois grandes planos do universo est assegurada, apenas a distncia profunda que os separa no permite ao homem a compreenso. Este o grande drama da condio humana, a sua ignorncia e inacessibilidade ao saber pleno. Tentado a interpretar os sinais divinos de acordo com os seus ntimos desejos, o homem facilmente cai na euforia e se toma de esperanas; mas o erro que assim comete a razo fatal da sua inevitvel destruio. A par de todas as maldies que o destino lhe prepare, a sua colaborao activa o factor que, em ltima anlise, o condena. Por isso, Herdoto remata esta fase preparatria da campanha de Creso contra os Persas com uma concluso esclarecedora (1.71. 1):

    Kpoioos [iapxa)v xov xpr)axo jioiexo oxpaxr|r|v s KaTmaoKr|v, Xnows Kaxcapf]aeiv Ktipov xe Kcd xf)v Ilepatov vau,iv.

    'Creso, errando na leitura do orculo, fez uma campanha contra a Capadcia, na esperana de derrubar Ciro e o poder dos Persas'.

    Um ltimo aviso se ergue ainda junto do monarca, que tambm o ltimo fracasso da sua compreenso. A voz que agora se faz ouvir humana, a de um outro conselheiro, Sndanis, considerado em funo do seu bom-senso (Yvc|ir)), aocj)s (1. 71). De uma forma curiosa, os conselhos que este homem dirige ao rei contrastam com o tom ambguo e profundo dos do

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    orculo. So observaes prticas e claras, resultantes da ateno e do conhecimento pragmtico que tem da realidade. Falam do nomos persa, identificam os traos do inimigo a enfrentar e pressagiam, em funo desses dados objectivos, o comportamento previsvel do atacado. Apesar do crescimento evidente do seu poder a razo determinante da campanha de Creso , os Persas mantm ainda o perfil de 'um povo primitivo', que os deixa, aparentemente, numa posio de desfavor em relao Ldia. As diferenas revelam-se, ostensivas (1. 71): a forma de vestir, com trajos de couro, a modstia alimentar que os leva a prescindirem dos requintes da mesa e a valerem-se apenas do que o seu solo, pobre alis, produz , o consumo de gua em vez de vinho, so a evidncia da austeridade de hbitos que lhes comum, por falta ou desconhecimento de outras propostas de regime de vida. Face disparidade existente entre os dois blocos, Sndanis conclui pela inutilidade de um povo poderoso anexar um outro que lhe inferior, e, em contrapartida, pelas mltiplas aliciantes que uma 'populao primitiva' poder ter diante dos encantos da civilizao. Os riscos no resultam, nesta perspectiva, da adequao entre nomos e estratgia militar, mas entre cultura e motivao para a conquista.

    Progressivamente, a cegueira de Creso no fez, em todo este processo, mais do que acentuar-se. Se teve a lucidez suficiente para ceder aos conselhos de Bias, foi j precipitada e insensata a leitura que fez dos orculos; e agora, diante deste ltimo aviso, limitou-se a no ouvir: xam ycov OK rteie TV Kpooov (1. 71). J em plena guerra, quando, depois de um primeiro recontro de resultados indefinidos em Ptria, Creso teve de enfrentar o inimigo s portas de Sardes, a capital da Ldia como tambm do luxo e do poder , outras diferenas de nomoi se impuseram, nas estratgias de guerra adoptadas e que nada permitira prever (1. 80); Herdoto fala da valen-tia famosa dos Ldios e sobretudo do sucesso e pujana dos seus cavaleiros armados de dardos. Sem dvida que, nesta caracterstica, residia em boa parte uma auto-confiana que muitos sucessos j adquiridos legitimavam: alm de que o terreno lhes parecia favorvel, uma plancie extensa e aberta s portas de Sardes. Por todas estas razes, se bem que incomodado com a reaco imprevista do inimigo de inverter a marcha e passar ao contra-ataque, Creso no esmoreceu na defesa. Sobre a forma como os Persas conduziriam a arre-metida, nunca ao seu esprito se colocou a mais leve pergunta. Por seu lado Ciro, consciente da vantagem do adversrio, temeu-se do seu poderio (Karappwriaas TT]V Tntov, 1.80). Decerto desta diferena de atitude dependeu o desfecho da batalha: o rei ldio apenas atento s suas prprias vantagens, que se revelaram afinal ilusrias, o persa sobretudo temeroso do tradicional ascendente do adversrio. Porque por fim, aquele que, na luta

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    iminente, representava o lado aparentemente mais fraco, os Persas, dispunha de um trunfo decisivo de que no suspeitava Creso, nem mesmo o prprio Ciro. Um conselho oportuno lembrou ao rei persa a utilidade dos camelos na circunstncia: presentes no exrcito persa como simples animais de carga, eis que, por milagre do saber (oeo(j)ioTO, 1. 80), eles se tornam na arma deci-siva para a vitria dos seus possuidores. Aliviados dos fardos e usados pelos soldados, converteram-se nas hostes montadas dos invasores; de facto, os cavalos no suportam a viso e o cheiro dos camelos, pelo que, pelo mero espectculo da fora inimiga, o poderio da cavalaria ldia se viu radicalmente neutralizado (xpriaxov). Um primeiro golpe, e profundo, era dado nas to apregoadas esperanas de Creso: i(j)9apT xe xc3 Kpoocp f) Tts.

    Do logos de Creso, que funciona em Histrias como um conjunto de episdios de sentido essencialmente paradigmtico, ressalta j com nitidez, em contextos de natureza diversa, o principio da vantagem que o saber d. Um vocabulrio apropriado e expressivo se define igualmente desde logo. No centro da aco, est o homem que detm o poder ou a supremacia, e, com eles, a responsabilidade da deciso. O conhecimento que tem das situaes marcado pela superficialidade e pela iluso das aparncias. AoKco 'parecer' e vouio) 'julgar' so os dois verbos que referem a fragilidade da sua opi-nio. 'EeupoKco e 7i;uv0vou.ca, 'averiguar' e 'informar-se', so cuidados que, por vezes, toma para acautelar os seus projectos; estes, expressos pelas formas iavow e Tuvoco, tm a fora da teimosia e de uma pr-determi-nao que sempre condiciona a deciso definitiva. Em paralelo com a fra-queza resultante desta falta de um conhecimento verdadeiro, funciona a figura clarividente do conselheiro ou mesmo de um opositor que sabe real-mente, ou porque conhece os cdigos em vigor ou simplesmente porque tem perspiccia para uma avaliao mais profunda das situaes ou das pessoas; [iavvo, Ttoraum,

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    Ciro, o conquistador da Ldia, revelou desde muito novo qualidades de uma enorme finura e sensatez, que lhe deram triunfos seguros e o puseram no caminho do sucesso. Face ao primeiro desafio que se lhe colocou como chefe dos Persas, o de destronar Astages, rei dos Medos, e de conquistar para o seu povo liberdade e maior poder, o jovem Ciro mostrou-se altura da situao. Se foi Hrpago quem lhe inspirou a campanha de vingana contra o av que maquinara a sua morte, a estratgia a usar revelou a espantosa capacidade de Ciro para escolher o melhor caminho (1. 125). A motivao do seu povo para a empresa foi-lhe ditada por uma ponderao lcida:

    'O Kpos pvTie xeoo xprcQ OO^COTKTCO Hpoai dvaiteoei TtoxaoQai povxoov ' eupiax xe xe Kaipioxcnra eivai KC Ttoee fi xe.

    'Ciro ponderou de que forma mais inteligente levaria os Persas revolta; e depois de o ponderar, descobriu qual era o processo mais oportuno e p-lo em prtica.'

    Aquilo que se pode chamar xpitos oocjxxaxos ou x KapioSxaxa tem a ver com o conhecimento perfeito que detinha dos hbitos do seu prprio povo e, portanto, da sua reaco perante a proposta a apresentar-lhe. Ciro sabia que os Persas detinham j um poder competitivo, que os colocava ao nvel dos seus rivais medos. Mas era-lhe tambm evidente que aos Persas faltava ainda a conscincia das suas possibilidades. o salto para o futuro que o rei os estimula a dar neste momento: se aspiram a uma vida de conforto e prosperidade, em vez de um modelo de trabalho e de servido, tm em Ciro o chefe capaz de transformar o seu destino. Assim, o jovem soberano ganha um lugar determinante na deciso do futuro de um povo que se havia de tornar, ao fim de poucas geraes, o grande imprio oriental.

    Porque mais complexo do que as anteriores campanhas, o ataque, anos mais tarde, contra a Babilnia colocou a Ciro dificuldades acrescidas, embora se tenha finalmente saldado num sucesso. Neste caso o alvo a atingir era um povo e uma cidade que Herdoto no hesita em designar como a mais famosa e mais forte (1. 178) que tinham ocupado at ento um lugar cimeiro na sia. Por outro lado, quando postos frente a frente, Persas e Babilnios tinham um do outro um conhecimento equivalente, pelo que no havia partida vantagem para nenhum dos lados. Os sitiados conheciam a persistncia do invasor e a sua sede de conquista (e7uoxu.evoi xi Ttpxepov xv KOpov OTJK xpeuiovxa, 1. 190) e, por isso, se prepararam para um longo cerco. Com esta atitude causaram a Ciro, como previam, uma real dificuldade. S quando o rei persa percebeu o que havia a fazer (ep,ot8e x Ttoinxov o rjv, 1. 191), ou por si prprio ou por conselho alheio, a situao teve um desfecho a seu favor. Como sempre, o

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    sucesso dependeu da soma harmoniosa do seu conhecimento das caractersticas do terreno adversrio, como da ignorncia dos invadidos. Primeiro, Ciro valeu-se das obras de regularizao do curso do Eufrates, outrora empreendidas, com carcter defensivo, pela rainha Nitcris, para penetrar numa cidade que parecia inexpugnvel; por ironia do destino, o que devia ser uma barreira de proteco da cidade tornou-se, por fora do raciocnio de um invasor inteligente, num canal aberto de ataque9. Por seu lado, os Babilnios no tiveram conhecimento nem informao dos intuitos que Ciro alimentava (e \iv vcov Ttpoe7t8ovTO f) |ia8ov oi BaPicvioi T x TO) Kpou Ttoiepevov, 1. 191) e no foram capazes de accionar as vantagens que a prpria arquitectura da cidade lhes proporcionaria: deixar o inimigo entrar pelas portas fluviais e fech-las para o encurralar e o agredir do alto das muralhas. A ignorncia juntou-se o acaso (xv%eiv YP a1 ovoav pTT)v, 1. 191), porque a festa que ento se realizava os manteve estranhos ao sucedido; quando, enfim, se deram conta (iiOovTo) da presena do invasor, nada mais havia a fazer e a cidade foi tomada pela primeira vez. Ficou, assim, muito claro que o desconhecimento ou a falta de informao dos Babilnios os impediu sequer de resistirem invaso persa; e se o acaso deu uma pequena ajuda ao atacante, foi sobretudo o plano estratgico - de resto inspirado pela prpria vtima, neste caso - que garantiu um sucesso inesperadamente fcil. Aquelas que Herdoto destacara desde logo como as potencialidades de defesa da cidade as grandes muralhas que opunham ao invasor uma barreira slida (1. 178-181) e a abundncia da produo agrcola que lhe daria meios de resistir a um longo cerco (1. 192-193) de nada lhe valeram, quando foi entre o seu prprio desconhecimento e a estratgia avisada do adversrio que se jogou a cartada final.

    O propsito daquela que foi a ltima campanha de Ciro, o ataque contra os Massgetas, e que lhe havia de determinar a morte, marcado em Herdoto por um claro sentido de precipitao:

    'Q TC Kpco KCC TOVJTO t Ovos KaTpyocoTo, 7te8u.r[ae MaaaayTas m' couxc iio\r\aaoQai.

    9 Este um pormenor curioso que Herdoto assinala: Nitcris, a me do

    monarca em exerccio ao tempo da invaso persa, distinguiu-se por uma poltica de obras pblicas que, para alm do embelezamento de Babilnia, tinham um propsito defensivo: 'ao ver que os Medos, cujo poder crescera, no se mantinham em paz, e que se iam apoderando de vrias cidades, caso de Nnive, tomou em relao a eles todas as precaues possveis' (1. 185). Mas o destino havia de decidir que as obras de controle do curso do rio, que a soberana fez no sentido de proteger a entrada na cidade, fossem por Ciro usadas de forma a facilitar a penetrao do seu exrcito.

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    'Mal que Ciro dominou este povo, concebeu o desejo de avanar contra os Massgetas'.

    A sequncia imediata entre o sucesso de Babilnia e a empresa seguinte no deixa espao a qualquer reflexo. Apenas a ambio irracional e intuitiva (Ke0|j,r|oe) pesou na deciso. No entanto, prossegue a narrativa, o novo alvo de Ciro era um povo 'com fama de ser grande e valente' (\iya Xyexai eivai Kai KIU-OV); logo, a distncia a que se encontrava este ltimo objectivo de Ciro no permitia mais do que um conhecimento vago e indirecto, baseado em opinies gerais ou boatos. Um rio, mais uma vez, separava o invasor do seu alvo, o Araxes, que serviu de ltima barreira a afastar os dois campos. Uma primeira apresentao dos costumes dos Massgetas define, em pormenor, alguns traos da vida deste povo. Antes de mais, a simplicidade de hbitos alimentares, base de frutos, e de vesturio; depois, as caractersticas do terreno que habitam do, em traos gerais, uma primeira marca da identidade dos Massgetas. Antes de retomar o movimento do avano persa, Herdoto repete, como uma frmula, que o projecto de Ciro obedece a um impulso irracional (ii' ous Kupos oye iipoBvjp.ccv otpaxeoeoQai, 1. 204), o que equivale a dizer que as caractersticas do povo a invadir o no perturbam nem atemorizam. Para alm de outros motivos a incentivarem-no - a hybris que o levava a considerar-se sobre-humano e a emvxa infalvel que desde sempre o acompanhara -, uma autoconfiana desmedida, que subjaz ao plano estratgico a definir, um ltimo pressgio de runa.

    O menosprezo que Ciro sente pelo adversrio manifesta-se, de imediato, na abordagem dolosa que lhe faz, sob forma de uma proposta de casamento rainha, soberana dos Massgetas por morte do marido. O que significa que o rei persa tem em conta uma circunstncia conhecida, a de ser uma mulher o chefe do inimigo; mas este factor desencadeia nele uma dupla arrogncia, de homem e de poderoso senhor de um grande reino. No perde um momento a interrogar-se sobre a personalidade, as caractersticas ou a perspiccia do adversrio. Por isso mesmo, uma surpresa lhe estava reservada: Tmiris percebeu (ouvieaa, 1. 205) que, com este pedido, era mais o trono do que a sua pessoa o que Ciro pretendia; e, ao recusar, desfechou no inimigo um primeiro golpe.

    No faltou tambm a palavra do conselheiro, agora repartida entre as opinies autorizadas dos membros de um conselho de guerra em quem o rei se apoiou, como tambm numa mensagem escrita da prpria inimiga, Tmiris. Aquela determinao que deixara Ciro resolver por si e com clarividncia o ataque contra Astages ou contra Creso, que oscilara levemente na arremetida contra Babilnia, abandonava agora totalmente o

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    rei, que recorreu a diversas opinies e teve de escolher entre as hipteses contraditrias que lhe foram sugeridas. No so desta vez os orculos a desafiar a sua capacidade de interpretao, mas a opinio de uma mulher, para mais inimiga, confrontada com a dos seus conselheiros. E so diversas as tonalidades das sugestes que tem diante: a mensagem espontnea de Tmiris como que um apelo reflexo que se interpe no frenesim dos preparativos que Ciro entretanto desenvolvia. Enquanto o rei persa avanava. construa, ligava as duas margens do rio, Tmiris convida-o a suspender a aco (itaOoca OTtecov, 1. 206) para pensar na oportunidade do ataque (ou yp v eeris ei TOI i Kcapv oxai, 1. 206). A insistncia no sen-tido da oportunidade, que antes Ciro considerara prioritrio (cf. supra 1. 125 e p. 16), mostra quanto mudara o agora todo-poderoso soberano persa. Consciente, porm, de que a lucidez no cabe num esprito que se entrega ao desejo desenfreado ([ieyXwi TipoOrjU-ai, 1. 206), Tmiris desafia-o a escolher o terreno para o combate: ou atravessar o rio para atacar em territrio massgeta, ou aguardar, do lado persa, que o atravessem, em legtima defesa, os inimigos. esta a alternativa que leva Ciro a reunir o seu conselho e a ouvir as opinies dos seus homens de confiana. Herdoto limita-se a informar de que a opinio geral era de que os Persas aguardassem, no seu prprio terreno, os Massgetas, uma ideia que, depois do conselho de Tmiris de que Ciro desistisse do combate e se satisfizesse com o que tinha, parecia ainda assim a mais prudente. Mas a ltima palavra, a de Creso, a que o rei persa ouve com agrado e executa. Herdoto, pela importncia das palavras do antigo rei da Ldia, recorre agora ao discurso directo. O argumento que usa inspira-se no valor da experincia, maneira esqui liana (1.207):

    T u.oi 7ta8r||j,KTK vxa ^piToc [iaQr\\iaxa jyove. 'Mesmo se o sofrimento me foi penoso, trouxe-me o conhecimento'. Prossegue com princpios que retomam ideias anteriormente discutidas

    na conversa com Slon. O ser humano bem sucedido precisa de reconhecer os limites inerentes sua condio (e ' yvcKccs xi ccvpcoTios Kai o>, 1. 207) e inferir da a instabilidade da sorte (Tcpctwv |i8e, OK cei TOS atous eikuxeiv, 1. 207). maneira de Giges, Creso recita fielmente as regras gerais que aprendeu com o sbio grego e testou no seu prprio percurso de vida. Apenas, e lamentavelmente, os conselhos prticos que avana a propsito do dilema em discusso no se inspiram na prudncia e no bom-senso. Creso estimula Ciro a cometer ousadias, a no se limitar a uma vitria no seu prprio terreno ou, em caso de derrota, a correr o risco de abrir ao inimigo o caminho de uma invaso imparvel em terreno persa; defende que seja Ciro a atravessar o rio, porque, se vitorioso no lado inimigo,

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    a ele que uma conquista mais longa premiar. Esquece, porm, a ltima hiptese, que coroaria o equilbrio do raciocnio. E se Ciro for vencido em territrio massgeta? Para alm de orientar na opo, o conselheiro sugere tambm uma estratgia, que se inspira no conhecimento da identidade do adversrio e pretende trazer vantagem ao atacante. Mais do que o prprio monarca, Creso conhece e acentua o ponto fraco do inimigo, o desconhecimento que tem das vantagens da civilizao, aquilo que constitui a marca do primitivismo de um povo aculturado (1. 207):

    'Qs yp ^Y^ 7tuv6Kvo[iai, Maaoayxax eiai, YccSoov xe IlepoxKcv Kireipoi KCU Kawv (ieycov naQe^.

    'Quanto julgo saber, os Massgetas so inexperientes dos confortos persas e desconhecedores dos grandes prazeres da vida'.

    Da diferena, Creso pretende tirar dividendos: oferecer aos olhos cobiosos dos Massgetas os prazeres da comida e do vinho, perturb-los com os atractivos da civilizao que no conhecem e, depois de tomados de embriaguez, captur-los sem dificuldade. Esta uma estratgia apoiada no conhecimento das diferenas; e a sequncia vai mostrar como Creso estava certo sobre a sua eficcia. Se tinha sido doloso o processo de abordagem que Ciro fizera rainha, no o era menos aquele que, por proposta do Ldio, o ps finalmente em marcha contra os Massgetas. Um factor de imprevisto - o aprisionamento e posterior suicdio do prncipe filho de Tmiris -, como tambm o menosprezo pela capacidade blica do inimigo, abriram no plano uma brecha de derrocada. Um ltimo aviso da rainha, que tambm a sua derradeira condescendncia, prope ainda a libertao de Espargpises e a desistncia da campanha como uma reparao que a faria ultrapassar o oprbrio sofrido pelo seu povo. Mas a persistncia cega de Ciro no consentiu na soluo. Depois de um combate encarniado, o rei persa perdia, por falta de uma avaliao correcta das circunstncias, a vitria que o galardoara desde sempre e a prpria vida. Num gesto de vingana suprema, que tambm o smbolo do choque entre povos diferentes, Tmiris permitia-se converter o gesto humilhante do detentor da civilizao, o uso doloso do vinho, na vingana simblica de um brbaro vencido, que ofende o cadver do inimigo encharcando-lhe em sangue o rosto sedento de conquista. Civilizao e barbrie retribuem-se neste brinde, de vinho e de sangue, que as ope e equilibra ao mesmo tempo. Um breve captulo final a sintetizar os nomoi dos Massgetas (1. 215-216) define-lhes, dentro de um cdigo habitual em Herdoto - relevo para os metais usados, forma de vestir, dieta alimentar, prticas sexuais e rituais fnebres -, os principais factores de uma diferena que, com valentia, foram capazes de proteger perante uma terrvel ameaa de extino.

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    Cambises, o sucessor legtimo de Ciro, dirigiu, antes de mais contra o Egipto, projectos ambiciosos de conquista. Para alm das motivaes pessoais que o demoviam, o rei persa teve desde logo a conscincia das dificuldades que a empresa levantava pelo seu desconhecimento do alvo a atingir e das formas de o tornar acessvel. Muito a propsito pde recorrer a um informador, com o nome simblico de Fanes ((j)ovt, 'mostrar, revelar', 3. 4), um mercenrio exilado na sua corte, que detinha bom-senso e experincia de guerra (Yvop.riv KOUS KOU x %oX\iia Kipos, 3.4. 1), como outras condies que faziam dele um aliado poderoso e til: agravos contra o fara e um bom conhecimento do Egipto (7UOxu.evov x itepi Aytmxov xpeKaxaxci, 3. 4. 2). Atravs do conselho deste homem (itapccxvcov, 3. 3. 3) Cambises pde resolver o primeiro embarao que se lhe erguia diante (itopovxi xf)v Xaoxv, 3. 4. 3), o da travessia at ao objectivo a atingir. No se tratava desta vez da habitual barreira lquida, mas da imensido rida do deserto, fronteira nica de acesso ao Egipto para um persa. A conscincia da sua ignorncia e o recurso a um informador competente fizeram de Cambises, sem demora, o novo senhor do Egipto.

    A partir da, porm, o persa arquitectou novos avanos contra Cartago, mon e a Etipia sem que Herdoto dedique qualquer referncia aos preparativos. Limitou-se a passar de um projecto caprichoso (PouAeoaxo, 3. 17. 1, Poueuop.va>, 17. 2) aco, colhendo assim, sem o esperar, uma frustrao completa desta trplice iniciativa. Se a campanha contra Cartago no chegou a processar-se por recusa dos Fencios, o corpo naval mais importante nas foras de Cambises, os outros dois projectos sofreram as consequncias da imponderao real. Em ambos os casos, a natureza do terreno, hostil aos Persas, exerceu contra eles um boicote espontneo. Sobre os Etopes, que no sobre a forma de os alcanar, Cambises quis conhecer alguns pormenores e, por isso, lhes enviou uma embaixada. Dadas as intenes verdadeiras do agora senhor do Egipto a invaso da Etipia eram falsos os presentes de cortesia com que simulava negociar a amizade do monarca etope. Como antes Ciro perante os Massgetas, tambm o seu sucessor pretendia seduzir um povo, que considerava remoto, selvagem, e logo inferior, com as aliciantes da civilizao: uma veste de prpura, pulseiras e braceletes de ouro, perfumes e vinho. Mas na realidade, mais do que arautos de amizade, os embaixadores eram espias encarregados de fazer o reconhecimento de um potencial inimigo. Deste facto se deu de imediato conta o rei etope; tal como antes Tmiris, farejou o dolo (paBcov xi Kaxitxai rpcoiev, 3. 21. 2) e denunciou as intenes subjacentes dos visitantes; pelos presentes no se

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    deixou impressionar, por os considerar ridculos, no caso da prpura ou do perfume, e vulgares, os objectos de ouro que os Etopes possuam com abundncia e que leu como grilhetas ameaadoras; apenas o vinho o no deixou insensvel. Mais uma vez a bebida era o trao verdadeiro de separao entre os dois mundos. Para alm de uma acuidade de esprito que a arrogncia persa no previu, em troca dos presentes tambm o inimigo dedicou a Cambises uma oferta simblica e um conselho: da sua experincia de brbaro enviou-lhe uma insgnia de guerra, um arco enorme medida da prpria superioridade fsica dos Etopes; e, com ele, uma mensagem, a de adiar a invaso para o dia em que fosse capaz de manobrar aquele arco com a agilidade de um etope. O desafio e o presente de um inimigo desconhecido tornam-se, a partir deste momento, a insgnia da aventura africana de Cambises: este arco ganhou o sentido de um smbolo de resistncia ou de impotncia, que o rei persa passou a enfrentar como o teste supremo da sua capacidade de guerreiro, de soberano e de homem.

    De facto, foi perante a informao dos Ictifagos, de regresso da Etipia, que o seu comportamento ganha, pela primeira vez com clareza, contornos estranhos. A precipitao apodera-se de Cambises, que no determina quaisquer preparativos nem pondera o alcance da misso que vai executar. Mais do que a ignorncia ou o desconhecimento, Herdoto acentua-Ihe a violncia da reaco, a denunciar evidentes assomos de loucura (3.25.2):

    ota p,|j,Kvr|9 te wv Kc o fopevfjpris, cs rJKovjae twv 'Ix6uo(|)Y0v, axpaTeeTO.

    'Como louco que era, como indivduo sem senso, mal que ouviu os Ictifagos, ps-se em marcha'.

    Cometido o primeiro erro, o de partir frente de um grande exrcito por um terreno desconhecido, sem provises suficientes, Cambises poderia ter tido ainda uma sada airosa para a aventura, se tivesse sabido avaliar a tempo a repercusso de uma caminhada difcil, sem alimentos, quando at as bestas de carga foram esquartejadas como ltimo recurso. Nesse momento, a desistncia teria sido sinal de sabedoria.

    E p,v vuv |i,a8ov xam Kccu-Porcs Yvcoaip,%ee KCU Ttfyye Ttaco TV orpatv, iu xfj p%f)8ev y^o^vr] p.ap"ri rjv KV vf)p oos.

    'Se, ao constatar esta situao, Cambises capitulasse e conduzisse o exrcito de volta, teria tido, depois de cometido um erro inicial, um comportamento sensato'.

    Mas a teimosia da demncia que o tomava deixou-o indiferente. S quando, perante a aridez total do deserto, os seus homens optaram por devo-

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    rar um companheiro para sobreviver, Cambises desistiu. Tarde de mais, numa campanha que se saldou por um desastre inominvel. Entretanto, o destaca-mento que enviara a Amon, para destruir o orculo, era engolido por uma tempestade do deserto, sem deixar rasto. Imprevisibilidade e incompreenso das verdadeiras condies desta misso o que se impe como a causa fun-damental do insucesso. S mesmo os naturais, no caso do ataque a mon, souberam arriscar uma explicao para o misterioso desaparecimento de cinquenta mil homens em pleno deserto.

    Mas se se mostrou inacessvel a Cambises a possibilidade de progredir com novas conquistas no territrio impenetrvel do deserto, revelou-se-lhe tambm tarefa difcil a de manter a sua autoridade sobre o prprio Egipto j conquistado. Mais uma vez o confronto com nomoi desconhecidos e a sua incapacidade de os interpretar ou entender o lanaram em inqualificveis actos de crueldade que o tornaram mal amado pelo inimigo e, desta vez, pelo seu prprio povo tambm. Herdoto passa a somar situaes reveladoras, todas elas de sentido decisivo para o desfecho trgico da vida do monarca.

    Em primeiro lugar, no regresso da campanha frustrada da Etipia, Cambises encontrou Mnfis em festa, porque, segundo a prtica egpcia, quando pis se manifestasse havia lugar a festejos. No foi o rei capaz de entender, apenas pelo que via, o sentido da comemorao e, a julgar pelas aparncias, interpretou-a como uma ofensa sua derrota recente (3. 27. 2):

    'Iv xavxa (...) Ka|iPar|, %yxu ocjras KaxaEMl coutoO KttKQS 7tpr|avTOS xapp.auva -cauta noiev ...

    'Ao ver aquele espectculo, Cambises convenceu-se de que eles faziam aqueles festejos por causa do seu insucesso'.

    Fez at um esforo para fundamentar a interpretao da atitude do povo egpcio; chamou a administrao da cidade, depois os sacerdotes, e inquiriu do sentido da festa. A incapacidade em acreditar no depoimento que obteve -o sentido efectivo daquela manifestao que nada tinha a ver com a sua derrota - levou-o a cometer atrocidades: contra os responsveis humanos pela festa, que assassinou, e contra o prprio deus que sujeitou ao teste da espada para julgar da sua imortalidade. Sobranceiro perante povos desconhecidos, como os Etopes, Cambises incorria em erro semelhante contra os prprios deuses que, na sua ignorncia, considerava ridculos e impotentes, apenas porque diferentes. Na sua perspectiva, neste caso justificada, cada povo cria deuses sua imagem e semelhana: ^ws (xv ye AiywKXov ouros ye 8es, ' medida dos Egpcios esse tal deus' (3. 29. 2); logo o desprezo que lhe merecem os povos que ocupa ou tenta conquistar extensivo s divindades que veneram. A desconfiana, como a incompreenso, que so caractersticas do poder do mais forte perante um adversrio que considera

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    inferior, continuam, no caso particular de Cambises, a revestir uma exteriorizao prpria resultante da loucura que tristemente o distinguiu dos seus ascendentes ou sucessores na corte persa. As dvidas que o levam a agir revestem sempre o tom do furor (mou.apYxepos, 3. 29) e o riso vai-se colando s suas reaces como uma dolorosa manifestao de inconscincia (yeXaai, 3. 29). Como ltima deciso, o persa feriu pis e, sob a fora de ameaas de morte, ps fim aos festejos rituais em honra do deus. Outros cultos egpcios no escaparam igualmente sua fria: o de Hefesto, venerado sob o exterior de um pigmeu, provocou-lhe um riso desbragado (iro xc YA,p,aTi KaxeyXaae, 3. 37. 2); penetrou no templo dos Cabiros (cujo culto se relaciona com o anterior) onde s ao sacerdote permitido entrar, e incendiou as imagens por entre uma troa sem fim (ito KaxaoK(i|;a,3, 3. 37. 3). Acumulava, com esses erros, culpas e desafiava castigos superiores que, esses sim, se revelam constantes e universais. No se esquece Herdoto de remeter, mais tarde, para esta impiedade contra pis a morte de Cambises, tambm ele acidentalmente ferido por uma espada na coxa, tal como o deus (3. 64. 3).

    Se contra o inimigo Cambises se desdobrou em actos de crueldade, no deixou igualmente de os infligir ao seu prprio povo, ningum poupando dos familiares, amigos ou simples cidados sob a sua autoridade. Com todos estes atentados, era tambm o nomos persa que estava em causa. A primeira vtima a sofrer as consequncias da sua violncia foi Esmrdis, o irmo, em quem o rei suspeitou, por mera deturpao do sentido de um sonho, um usurpador do trono (3. 30). Depois a irm e esposa, em quem percebeu uma atitude crtica perante as atrocidades que cometia. J o prprio matrimnio com uma irm era contrrio aos costumes persas: oiiau-os y&P ioQeaav itpxepov Tfjai e(|)T|fioi auvoKeiv Tpaai, 'em caso algum, no passado, fora hbito dos Persas desposarem as irms' (3. 31). E s o temor dos conselheiros reais encontrara para a pretenso do rei alguma artificiosa legitimidade. Para tal fora necessrio invocar, em resposta a um nomos que sempre tacitamente se cumprira ainda que no estivesse claramente expresso, outro nomos persa que salvaguardava a supremacia da vontade real:

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    hesitou em mat-la, apesar de, segundo uma verso dada do episdio, ela se encontrar grvida (3. 32). A seguir foram o filho de Prexaspes, seu homem de confiana, e Creso, conselheiro do rei, a sofrer-lhe as iras e a despertar nele um terrvel flego assassino (3. 34-36). Por fim, e indiscriminadamente, outros persas perderam a vida (3. 37) sem culpa formada e sem motivo evidente. Este uso criminoso da vida humana revelou-se como uma forma de inconscincia perante regras, que alm de persas so tambm universais, e que Cambises, na sua loucura, passou a desconhecer.

    Terminada a enumerao das atrocidades que Cambises multiplicou durante a campanha egpcia, Herdoto coroa todos estes comportamentos loucos com uma reflexo paradigmtica sobre o sentido individualizante do nomos e sobre a aceitao da diferena como um princpio de bom-senso e de abertura de esprito. A Cambises, cujo diagnstico agora claramente consumado como 'completamente louco' (|ivr) [leyXw, 3. 38. 1), que perdeu o respeito por todas as normas do que sagrado pelos deuses ou pelo nomos manifestando na gargalhada a sua demncia completa, Herdoto ope o exemplo de Drio, o seu futuro sucessor e, pelo menos neste momento (veremos como mais tarde Drio comete tambm alguns erros nesta matria), um defensor esclarecido da individualidade dos costumes. Drio, o rei sen-sato, referido como rbitro num confronto exemplar entre Gregos e India-nos sobre os rituais fnebres que praticam: aos primeiros horroriza-os a ideia da tanatofagia, o acto de devorar os cadveres dos pais, como os Indianos reagem com vigor cremao. A distncia , portanto, profunda em matria to delicada como o respeito a ter pelos mortos que so smbolo de vnculos familiares, como do contacto com o alm ou com o sagrado. Se, desde logo, exemplaridade da questo se acrescenta o peso da prova concreta a contra-dio dos dois testemunhos, Drio vai mais longe, ao invocar ainda o reforo da autoridade de Pndaro que, com sabedoria, reconhecera nomos como soberano supremo (v|i09 TtvTcov Paaies). Com todas estas com-ponentes, o episdio evocado de Drio estabelece um marco na experincia expansionista persa e no seu contacto com os diversos nomoi. Definida por um crescendo de desconhecimentos, erros ou atentados criminosos, cumpria-se neste momento uma primeira fase de vida para a corte aquemnida, num momento em que a loucura de Cambises impusera golpes profundos no apenas sobre o adversrio egpcio, aquele que o destino prioritariamente lhe atribura, como sobre os prprios Persas e o seu ncleo rgio, de forma a deixar num doloroso vazio a sucesso e garantia do futuro do seu imprio.

    Como tendncia natural entre os homens, reconhecida a propenso que cada um tem para preferir os seus prprios 'costumes', ou seja, as

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    prticas que individualizam cada civilizao ou comunidade humana. ao longo desta experincia de contactos entre povos orientais primeiro e, logo depois, entre asiticos, africanos ou europeus, que a questo das divergncias ou incompatibilidades se patenteia. Como reagir perante esta evidncia? Herdoto perfilha o que afirma ser a posio mais geral, a de que troar ou menosprezar a diferena s pode ser loucura. Com esta afirmao, o autor de Histrias anuncia uma poca de abertura e tolerncia, em que a noo de brbaro, com a carga negativa ancestral, perdia fora e em que a distncia entre o estrangeiro e o grego, como entre os povos prsperos e os mais modestos ou remotos, se reduzia. Esta lio representava, numa poca de profundos conflitos e mudanas, uma conquista para a humanidade que, pelo sofrimento que a guerra sempre acarreta, tinha oportunidade de aprender a lei suprema do equilbrio e harmonia universal: a do respeito pela diferena e o da avaliao sbia e inteligente dos valores alheios.