71

Michel Foucault - Donça Mental e Psicologia.pdf

Embed Size (px)

Citation preview

  • BIBLIOTECA TEMPO UNIVERSITRIO II

    Coleo dirigida por EDUARDO PORTELLA

    Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro

    T radu o deLILIAN ROSE SHALDERS

    Rev i so Tcn i ca deCHAIM SAMUEL KATZ

    c a p a d eMAURICIO JOS MARCHEVSKY

    TRADUZIDO DO ORIGINAL FRANCESMALADIE MENTALE ET PSYCHOLOGIE

    da PRESSES UNIVERSITAIRES DE FRANCE, Paris

    Direitos em lngua portuguesa reservados sEDIES TEMPO BRASILEIRO LTDA.

    Rua Gago Coutinho, 61 Laranjeiras ZC 01 Tel.:225-8173

    Caixa Postal n 99 End. Telegrfico: TEMBRAS

    RIO DE JANEIRO RJ BRASIL

  • MICHEL FOUCAULT

    DOENA MENTAL

    E

    PSICOLOGIA

    tempo brasi l e i ro

    Rio de Janeiro 1975

  • SUMRIO

    INTRODUO........................................................................................................................... 5

    Capitulo I ............................................................................................................................... 6MEDICINA MENTAL E MEDICINA ORGNICA ..........................................................6

    PRIMEIRA PARTE .................................................................................................................. 16AS DIMENSES PSICOLGICAS DA DOENA............................................................. 16

    Capitulo II ............................................................................................................................ 16A DOENA E A EVOLUO .......................................................................................... 16

    Captulo III .......................................................................................................................... 27A DOENA E A HISTRIA INDIVIDUAL ................................................... 27

    Captulo IV ........................................................................................................................... 38A DOENA E A EXISTNCIA ....................................................................................... 38

    S E G U N D A P A R T E ................................................................................................. 49LOUCURA E CULTURA ......................................................................................................... 49

    Introduo ........................................................................................................................ 49

    Captulo V ............................................................................................................................ 52A CONSTITUIO HISTRICA DA DOENA MENTAL ......................................... 52

    Captulo VI ........................................................................................................................... 61A LOUCURA, ESTRUTURA GLOBAL............................................................................ 61

    CONCLUSO ........................................................................................................................... 68

  • INTRODUO

    Duas questes se colocam: sob que condies pode-se falar dedoena no domnio psicolgico? Que relaes podem definir-se entre osfatos da patologia mental e os da patologia orgnica? Todas aspsicopatologias ordenaram-se segundo estes dois problemas: h aspsicologias da heterogeneidade que se recusam, como o fez Blondel, a ler asestruturas da conscincia mrbida em termos de psicologia normal; e, aocontrrio, as psicologias, analticas ou fenomenolgicas, que procuramapreender a inteligibilidade de toda conduta, mesmo demente, nassignificaes anteriores distino do normal e do patolgico. Umadiviso anloga se faz igualmente no grande debate da psicognese e daorganognese: busca da etiologia orgnica, desde a descoberta daparalisia geral, com sua etiologia sifiltica; ou anlise da causalidadepsicolgica, a partir das perturbaes sem fundamento orgnico,definidas no fim do sculo XIX como sndrome histrica.

    Tantas vezes retomados, estes problemas, hoje, desagradam, e nohaveria vantagens em resumir os debates que suscitaram. Mas podemosperguntar-nos se a confuso no provm do fato de que se d o mesmosentido s noes de doena, de sintomas, de etiologia nas patologiasmental e orgnica. Se parece to difcil definir a doena e a sadepsicolgicas, no porque se tenta em vo aplicar-lhes maciamenteconceitos destinados igualmente d medicina somtica? A dificuldade emreencontrar a unidade das perturbaes orgnicas e das alteraes dapersonalidade no provm do fato de se acreditar que elas possuem umaestrutura de mesmo tipo? Para alm das patologias mental e orgnica, huma patologia geral e abstrata que as domina, impondo-lhes, maneira deprejuzos, os mesmos conceitos, e indicando-lhes os mesmos mtodos maneira de postulados. Gostaramos de mostrar que a raiz da patologiamental no deve ser procurada em uma "meta-patologia" qualquer,mas numa certa relao, historicamente situada, entre o homem e ohomem louco e o homem verdadeiro.

    Entretanto, um balano rpido necessrio, ao mesmo tempo paralembrar como se constituram as psicopatologias tradicionais ou recentes, epara mostrar de que preliminares a medicina mental tem que estarconsciente para encontrar um novo rigor.

  • Capitulo I

    MEDICINA MENTAL E MEDICINA ORGNICA

    Esta patologia geral de que acabamos de falar desenvolveu-se em duasetapas principais.

    Como a medicina orgnica, a medicina mental ten tou, inicialmente,decifrar a essncia da doena no agrupamento coerente dos sinais que aindicam. Constituiu uma sintomatologia na qual so realadas as correlaesconstantes, ou somente freqentes, entre tal tipo de doena e talmanifestao mrbida: a aluci nao auditiva, sintoma de uma estruturadelirante; a confuso mental, sinal de tal forma demente. Consti tuiu, poroutro lado, uma nosografia onde so analisadas as prprias formas dadoena, descritas as fases de sua evoluo, e restitudas as variantes que elapode apresentar: haver as doenas agudas e as crnicas; descrever-se-oas manifestaes episdicas, as alternncias de sintomas, e sua evoluo nodecorrer da doena.

    Pode ser til esquematizar estas descries clssicas, no s a ttulo deexemplo, mas tambm para fixar o sentido originrio de termosclassicamente utilizados. Tomaremos, das obras antigas do comeo destesculo, descries cujo arcasmo no deve fazer esquecer que elas foramresultado e ponto de partida.

    Dupr definia assim a histeria: "Estado no qual o poder daimaginao e da sugestibi lidade, unido a esta sinergia particular do corpoe do esprito que denominei psicoplasticidade, resulta na simulao mais oumenos voluntria de sndromes patolgicas, na organizao mitoplstica deperturbaes funcionais, impossveis de distinguir das dos simuladores(1)."Esta definio clssica designa ento como sintomas superiores dahisteria, a sugestibilidade, e o aparecimento de perturbaes como aparalisia, a anestesia, a anorexia, que no tem, na ocorrncia, fundamentoorgnico, mas uma origem exclusivamente psicolgica.

    A psicastenia, a partir dos trabalhos de Janet, caracterizada peloesgotamento nervoso com estigmas, orgnicos (astenia muscular,perturbaes gastro-intestinais, cefalias); uma astenia mental(fatigabilidade, impotncia diante do esforo, desespero em face doobstculo; insero difcil no real e no presente: o que Janet chamava

    1 DUPR, La Constitution Emotive (1911).

  • `a perda da funo do real); enfim perturbaes da emotividade (tristeza,inquietude, ansiedade paroxstica) .

    As obsesses: "aparecimento num estado mental habitual de indeciso,dvida e inquietao, e sob a forma de acessos paroxsticos intermitentes, deobsesses-impulses diversas" (2). Distingue-se da fobia, caracterizada porcrises de angstia paroxstica diante de objetos determinados(agorafobia diante dos espaos vazios), a neurose obsessiva, na qual estosobretudo marcadas as defesas que o doente cria contra sua angstia(precaues rituais, gestos propiciatrios).

    Mania e depresso: Magnan denominou "loucura intermitente" esta formapatolgica, na qual vem-se alternar, a intervalos mais ou menos longos,duas sndromes entretanto opostas: a sndrome manaca, e a depressiva. Aprimeira compreende a agitao motora, um humor eufrico ou colrico,uma exaltao psquica caracterizada pela verborragia, a rapidez dasassociaes e a fuga das idias. A depresso, ao contrrio, apresenta-secomo uma inrcia motora tendo com o fundo humor triste, acompanhadade hipo-atividade psquica. s vezes isoladas, a mania e a depresso estoligadas mais freqentemente por um sistema de alternncia regular ouirregular, do qual Gilbert-Ballet traou os diferentes perfis (3) .

    A parania: num fundo de exaltao passional (orgulho, cime), e dehiperatividade psicolgica, ve-se desenvolver-se um delrio sistematizado,coerente, sem alucinao, cristalizando numa unidade pseudo-lgica temasde grandeza, perseguio e reivindicao.

    A psicose alucinatria crnica , tambm, uma psicose delirante;mas o delrio mal sistematizado, freqentemente incoerente; os temas degrandeza acabam por absorver todos os outros numa exaltao pueril dopersonagem; enfim e sobretudo, ele sustentado poralucinaes.

    A hebefrenia, psicose da adolescncia, classicamente definida poruma excitao intelectual e motora (tagarelice, neologismos, trocadilhos;maneirismo e impulsos), por alucinaes e um delrio desordenado, cujopolimorfismo empobrece paulatinamente.

    A catatonia reconhecida devido ao negativismo do sujeito (mutismo,recusa de alimento, fenmenos chamados por Kraepelin "barreiras devontade"), a sua sugestibilidade (passividade muscular, conservao das

    2 DELMAS, La pratique psychiatrique (1929).3 G. BALLET, La psychose p riodique, Journal de Psychologie, 1909-1910.

  • atitudes impostas, respostas em eco), enfim s reaes estereotipadas e aosparoxismos impulsivos (descargas motoras brutais que parecem extravasartodas as barreiras instauradas pela doena).

    Observando que estas trs ltimas formas patolgicas, que intervesmbastante cedo no desenvolvimento, tendem para a demncia, isto , para adesorganizao total da vida psicolgica (o delrio se esboroa, asalucinaes tendem a serem substitudas por um onirismo desordenado, apersonalidade soobra na incoerncia), Kraepelin agrupou-as sob adenominao comum de Demncia Precoce (4). E esta mesma entidadenosogrfica que Bleuler retomou, alargando-a no sentido de certas formasde paranoia (5); e deu ao conjunto o nome de esquizofrenia, caracterizada, deum modo geral, por uma perturbao na coerncia normal dasassociaes como um fracionamento do fluxo do pensamento epor outro lado, por uma ruptura do contato afetivo com o meio ambiente,por uma impossibilidade de entrar em comunicao espontnea com avida afetiva do outro (autismo).

    Estas anlises tm a mesma estrutura conceitual que as da patologiaorgnica: em ambas, mesmo mtodos para distribuir os sintomas nosgrupos patolgicos, e para definir as grandes entidades mrbidas. Ora, oque se encontra por detrs deste mtodo nico, so dois postulados queconcernem a natureza da doena.

    Postula-se, inicia lmente, que a doena uma essncia, uma entidadeespecfica indicada pelos sintomas que a manifestam, mas anterior a eles, ede certo modo independente deles; descrever-se- um fundo esquizofrnicooculto sob sintomas obsessivos; falar-se- de delrios camuflados; supor-se- a entidade de uma loucura manaco-depressiva por detrs de uma crisemanaca ou de um episdio depressivo.

    Ao lado deste preconceito de essncia, e como para compensar aabstrao em que ele implica, h um postulado naturalista, que considera adoena como uma espcie botnica; a unidade que se supe em cada gru ponosogrfico por detrs do polimorfismo dos sintomas seria como aunidade de uma espcie definida por seus caracteres permanentes, ediversificada em seus sub-grupos: assim a Demncia Precoce como umaespcie caracterizada pelas formas ltimas de sua evoluo natural, e quepode apresentar as variantes hebefrnicas, catatnicas ou paranides.

    4 KRAEPELIN Lehrbuch der Psychiatric (1889).5 E. BLEULER Dementia praecox oder Gruppe der Schizophrenien (1911).

  • Se se define a doena mental com os mesmos mtodos conceituais que adoena orgnica, se se isolam e se se renem os sintomas psicolgicoscomo os sintomas fisiolgicos, porque antes de tudo se considera adoena, mental ou orgnica, como uma essncia natural manifestada porsintomas especficos. Entre estas duas formas de patologia, no h entounidade real, mas semente, e por intermedirio destes dois postulados,um paralelismo abstrato. Ora o problema da unidade humana e datotalidade psicossomtica permanece inteiramente aberto.

    *E o peso deste problema que fez derivar a patologia para novos

    mtodos e novos conceitos. A noo de uma totalidade orgnica epsicolgica faz tbula rasa dos postulados que consideram a doena umaentidade especfica. A doena como realidade independente tende adesaparecer, e renunciou-se a faze-la desempenhar o papel de uma espcienatural com relao aos sintomas, e, com relao ao organismo, o de umcorpo estranho. Privilegiam-se, pelo contrrio, as reaes globais doindivduo; entre o processo mrbido e o funcionamento geral do organismo, adoena no se interpe mais como uma realidade autnoma; no se aconcebe mais seno como um corte abstrato no devir do indivduo doente.

    No domnio da patologia orgnica, lembremo-nos do papeldesempenhado atualmente pelas regulaes hormonais e suasperturbaes, a reconhecida importncia dos centros vegetativos, como aregio do 3 ventrculo que comanda estas regulaes. Sabe-se quantoLeriche insistiu sobre o carter global dos processos patolgicos, e sobre anecessidade de substituir uma patologia celula r por uma patologiatextrina. Selye, por seu lado, descrevendo as "doenas da adaptao",mostrou que a essncia do fenmeno patolgico devia ser procurada noconjunto das reaes nervosas e vegetativas que so como que a respostaglobal do organismo ao ataque, ao "stress", proveniente do mundo exterior.

    Na patologia mental, d-se o mesmo privi lgio a noo de totalidadepsicolgica; a doena seria alterao intrnseca da personalidade,desorganizao interna de suas estruturas, desvio progressivo de seudesenvolvimento: s teria realidade e sentido no interior de umapersonalidade estruturada. Neste sentido tentou-se definir as doenasmentais, segundo a amplitude das perturbaes da personalidade, e daichegou-se a distribuir as perturbaes psquicas em duas grandescategorias: as neuroses e as psicoses.

  • 1) As psicoses, perturbaes da personalidade global, comportam:um distrbio do pensamento (pensamento manaco que foge, flui, deslizasobre associaes de sons ou trocadilhos; pensamento esquizofrnico, quesalta, ultrapassa os intermedirios e procede por saltos ou por contrastes) ;uma alterao geral da vida afetiva e do humor (ruptura do contatoafetivo na esquizo frenia; coloraes emocionais macias na mania ouna depresso); uma perturbao do controle da conscincia, daperspectivao dos diversos pontos de vista, formas alteradas do sensocrtico (crena delirante na parania, na qual o sistema de interpretaoantecipa as provas de sua exatido, e permanece impermevel a qualquerdiscusso; indiferena do paranide singularidade de sua experinciaalucinatria que tem para ele valor de evidncia);

    2) nas neuroses , pelo contrrio, semente um setor da personalidade atingido: ritualismo dos obsedados com respeito a um objeto, angstiasprovocadas por tal situao na neurose de fobia. Mas o fluxo dopensamentopermanece intacto na sua estrutura, mesmo se mais lento nospsicastenicos; o contato afetivo subsiste, chegando a ser exagerado at asuscetibil idade nos histricos; enfim, o neurtico, mesmo quando apresentaobliteraes de conscincia como o histrico, ou impulsos incoercveis como oobsedado, conserva a lucidez crtica com relao a seus fenmenos mrbidos.

    Classificam-se, geralmente, entre as psicoses, a parania e todo o grupoesquizofrnico, com suas sndromes paranides, hebefrnicas e catatnicas;entre as neuroses, a psicastenia, a histeria, a obsesso, a neurose deangstia e a de fobia.

    A personalidade torna-se, assim, o elemento no qual se desenvolve adoena, e o critrio que permite julg-la; ao mesmo tempo a realidade e amedida da doena.

    Viu-se neste resumo da noo de totalidade um retorno a patologiaconcreta, e a possibilidade de determinar como um nico domnio ocampo da patologia mental e o da orgnica. No , na verdade, aomesmo indivduo humano na sua realidade que ambas se dirigem por viasdiferentes? Atravs desta localizao da noo de totalidade noconvergem, ao mesmo tempo, pela identidade de seus mtodos e unidadede seu objeto?

    A obra de Goldstein poderia testemunh-lo. Estudando, nas fronteiras damedicina mental e orgnica, uma sndrome neurolgica como a afasia,ele recusa tanto as explicaes orgnicas por uma leso local, quanto as

  • interpretaes psicolgicas por um dficit global da inteligncia. Mostra queuma leso cortical ps-traumtica pode modificar o estilo das respostas doindivduo a seu meio; um dano funcional limita as possibilidades deadaptao do organismo e suprime do comportamento a eventualidade decertas atitudes. Quando um afsico no pode nomear um objeto que lhe mostrado, apesar de poder reclam-lo, se dele necessita, no por causa deum dficit (supresso orgnica ou psicolgica), que se poderia descrevercomo uma realidade em si; que ele no mais capaz de uma certaatitude face ao mundo, de uma perspectiva de denominao que, ao invsde aproximar-se do objeto para peg-lo (greifen), distancia-se paramostr-lo e indic-lo (zeigen) (6).

    Quer suas designaes primeiras sejam psicolgicas ou orgnicas, adoena concerniria de qualquer modo a situao global do indivduo nomundo; em vez de ser uma essncia fisiolgica ou psicolgica, uma reaogeral do indivduo tomado na sua totalidade psicolgica e fisiolgica. Emtodas estas formas recentes de anlise mdica, pode-se, ento, ler umasignificao nica: quanto mais se encara como um todo a unidade doser humano, mais se dissipa a realidade de uma doena que seriaunidade especifica; e tambm mais se impe, para substituir a anlisedas formas naturais da doena, a descrio do indivduo reagindo a suasituao de modo patolgico.

    Pela unidade que ela assegura, e pelos problemas que suprime, estanoo de totalidade tem todas as possibilidades para trazer a patologia umclima de euforia conceitual. deste clima que quiseram aproveitar-se osque, de perto ou de longe, inspiraram-se em Goldstein. Mas a infelicidadequis que a euforia no estivesse do mesmo lado que o rigor.

    Gostaramos de mostrar, pelo contrrio, que a patologia mental exigemtodos de anlise diferentes dos da patologia orgnica, e que somente por um artif cio de linguagem que se pode emprestar o mesmosentido as "doenas do corpo" e as "doenas do esprito". Uma patologiaunitria que utilizasse os mesmos m todos e os conceitos nos domniospsicolgico e fisiolgico , atualmente, da ordem do mito, mesmo que aunidade do corpo e do esprito seja da ordem da rea lidade.

    1) A abstrao Na patologia orgnica, o tema de um retorno aodoente para alm da doena no exclui a perspectivao rigorosa quepermite isolar, nos fenmenos patolgicos as condies e os efeitos, os

    6 GOLDSTEIN Journal de Psychologie (1933) .

  • processos macios e as reaes singulares. A anatomia e a fisiologiapropem justamente a medicina uma anlise que autoriza abstraesvlidas sobre o fundo da totalidade orgnica. Certamente, a patologia deSelye insiste, mais que qualquer outra, na solidariedade de cada fenmenosegmentrio com o todo do organismo; mas no para faz-losdesaparecer em sua individualidade, nem para denunciar neles umaabstrao arbitrria. para permitir, pelo contrrio, ordenar os fenmenossingulares numa coerncia global, para mostrar, por exemplo, como lesesintestinais anlogas as da tifide ocorrem num conjunto de perturbaeshormonais, do qual um elemento essencial um distrbio do funcionamentocrtico-suprarrenal. A importncia atribuda em patologia orgnica noode totalidade no exclui nem a abstrao de elementos isolados, nem aanlise causal; ela permite, pelo contrrio, uma abstrao mais vlida e adeterminao de uma causalidade mais real.

    Ora, a psicologia nunca pde oferecer a psiquiatria o que a fisiologiadeu a medicina: o instrumento de anlise que, delimitando o distrbio,permitisse encarar a relao funcional deste dano ao conjunto dapersonalidade. De fato, a coerncia de uma vida psicolgica pareceassegurada de maneira diversa que no a coeso do organismo; a integraodos segmentos tende, neste caso, a uma unidade que torna cada um delespossvel, mas resume -se e recolhe-se em cada um: o que os psiclogoschamam, no seu vocabulrio tomado fenomenologia, a unidadesignificativa das condutas, que encerra em cada elemento sonho, crime,gesto gratuito, associao livre o comportamento geral, o esti lo, todaa anterioridade histrica e as implica es eventuais de uma existncia.A abstrao no pode, ento, fazer-se do mesmo modo em psicologia eem fisiologia; e a delimitao de um distrbio pa tolgico exige napatologia orgnica mtodos diversos dos da patologia mental.

    2) O normal e o patolgico - A medicina viu esfumar-seprogressivamente a linha de separao entre os fatos patolgicos e osnormais: ou melhor ela apreendeu mais claramente queos quadros clnicosno eram uma coleo de fatos anormais, de "monstros" fisiolgicos, mas simconstitudos em parte pelos mecanismos normais e as reaes adaptativas deum organismo funcionando segundo sua norma. A hipercalciuria, quesegue uma fratura do fmur, uma resposta orgnica situada, como dizLeriche, "na linha das possibi lidades textrinas" (7): o organismoreagindo de um modo ordenado ao dano patolgico, e como para repar-lo.

    7 LERICHE - Philosophie de la Chirurgie.

  • Mas, no o esqueamos: estas consideraes repousam numa planificaocoerente das possibilidades fisiolgicas do organismo; e a anlise dosmecanismos normais da doena permite, de fato, melhor dis cernir oimpacto do dano mrbido, e, com as virtuali dades normais do organismo,sua capacidade de cura: do mesmo modo que a doena est inscrita nointerior das virtualidades fisiologicas normais, a possibilidade da cura estescrita no interior dos processos da doena.

    Em psiquiatria, ao contrrio, a noo de personalidade tornasingularmente difcil a distino entre o normal e o patolgico. Bleuler,por exemplo, tinha oposto como 2 plos da patologia mental, o grupo dasesquizofrenias, com a ruptura do contato com a reali dade, e o grupo dasloucuras manaco-depressivas, ou psicoses cclicas, com o exagero dasreaes afetivas. Ora, esta anlise pareceu definir tanto as personalidadesnormais quanto as mrbidas; e Kretschmer pde constituir, neste esprito,uma caracteriologia bipolar, comportando a esquizotimia e a ciclotimia,cuja acentuao patolgica apresentar-se-ia como esquizofrenia e como"ciclofrenia". Mas, desde logo, a passagem das reaes normais asformas mrbidas no depende de uma anlise precisa dos processos;permite somente uma apreciao qualitativa que ocasiona todas asconfuses.

    Enquanto que a idia de solidariedade orgnica permite distinguir eunir dano mrbido e resposta adaptada, o exame da personalidadeantecede, em patologia mental, a anlises semelhantes.

    3) O doente e o meio Finalmente, uma terceira diferena impede quese tratem com os mesmos mtodos e que se analisem com os mesmosconceitos a totalidade orgnica e a personalidade psicolgica. Ne nhumadoena, sem dvida, pode ser separada dos mtodos de diagnstico, dosprocedimentos de isolamento, dos instrumentos teraputicos com os quaisa cerca a prtica mdica. Mas a noo de totalidade orgnica ressalta,independentemente destas prticas, a individualidade do sujeito doente; elapermite isolar na sua originalidade mrbida, e determinar o carter prpriode suas reaes patolgicas.

    Do lado da patologia mental, a realidade do doente no permite umaabstrao semelhante e cada individualidade mrbida deve ser entendidaatravs das prticas do meio a seu respeito. A situao de interna mentoe de tutela imposta ao alienado desde o fim do sculo XVIII, suadependncia total com relao a deciso mdica contriburam, sem

  • dvida, para fixar, no fim do sculo XIX, a personagem do histrico.Despojado de seus direitos pelo tutor e pelo conselho de famlia,recaindo praticamente no estado de menori dade jurdica e moral,privado de sua liberdade pelo medico todo-poderoso, o doente tornava-se ocentro de todas as sugestes sociais: e no ponto de convergncia destasprticas, apresentava-se a sugestibilidade, como sndrome maior dahisteria. Babinski, impondo de fora a sua doente o domnio dasugesto, a conduzia a este ponto de alienao no qual, destruda, semvoz e sem movimento, estava preparada para receber a efi ccia dapalavra milagrosa: "Levanta -te e anda". E o mdico encontrava o sinal dasimulao no sucesso de sua parfrase evanglica, j que a doente, seguindoa injuno ironicamente proftica, levanta-se realmente e realmenteandava. Ora, naquilo que o mdico denunciava como iluso, ele esbarravade fato com a realidade de sua prtica mdica: nesta sugestibilidade, eleencontrava o resultado de todas as sugestes, de todas as dependncias asquais estava submisso o doente. O fato das observaes hoje noapresentarem mais milagres semelhantes, no anula a realidade dossucessos de Babinski, mas prova somente que o rosto do histrico tendea desvanecer-se, a medida que se atenuam as prticas da sugesto queconstituam antigamente o meio do doente .

    A dialtica das relaes do indivduo e seu meio no se faz, ento, nomesmo estilo em fisiologia patolgica e em psicologia patolgica.

    *No se pode, ento admitir prontamente nem um paralelismo abstrato,

    nem uma unidade macia entre os fenmenos da patologia mental e os daorgnica; impossvel transpor de uma para outra os esquemas deabstraes, os critrios de normalidade ou a definio do indivduo doente.A patologia mental deve libertar-se de todos os postulados de uma"metapatologia": a unidade assegurada por esta entre as diversas formas dedoena somente artificial; quer dizer que ela depende de um fato histrico,do qual j escapamos.

    preciso, ento, dando crdito ao prprio homem, e no as abstraessobre a doena, analisar a especificidade da doena mental, buscar as formasconcretas que a psicologia pde atribuir-lhe; depois determinar ascondies que tornaram possvel este estranho sta tus da loucura, doenamental irredutvel a qualquer doena.

  • A estas questes procuram responder as 2 partes desta obra:

    1) as dimenses psicolgicas da doena mental;

    2) a psicologia como fato de civilizao.

  • PRIMEIRA PARTE

    AS DIMENSES PSICOLGICAS DA DOENA

    Capitulo II

    A DOENA E A EVOLUO

    Diante de um doente atingido profundamente, tem-se a impressoprimeira de um dficit global e macio, sem nenhuma compensao: aincapacidade de um sujeito confuso de local izar-se no tempo e noespao, as rupturas de continuidade que se produzem incessantemente nasua conduta, a impossibilidade de ultrapassar o instante no qual estenclausurado para atingir o universo do outro ou para voltar-se para opassado e futuro, todos estes fenmenos levam a descrever sua doenaem termos de funes abolidas: a conscincia do doente est desorientada,obscurecida, limitada, fragmentada. Mas este vazio funcional , ao mesmotempo, preenchido por um turbilho de reaes elementares que parecemexageradas e como tornadas mais violentas pelo desaparecimento das outrascondutas: todos os automatismos de repetio so acentuados (o doenteresponde em eco as perguntas que lhe so feitas, um gestodesencadeado susta-se e reitera-se indefinidamente), a linguageminterior invade todo o domnio de expresso do sujeito que prossegue ameia-voz um monlogo desordenado sem enderear-se jamais a algum;finalmente, por instantes, surgem reaes emocionais intensas.

    No se deve ento ler a patologia mental no textodemasiado simples dasfunes abolidas: a doena no somente perda da conscincia,entorpecimento de tal funo, obnubilao de tal faculdade. No seu corteabstrato, a psicologia do sculo XIX incitava esta descrio puramentenegativa da doena; e a semiologia de cada uma era muito fci l:limitava-se a descrever as aptides desaparecidas; a enumerar, nasamnsias, as lembranas esquecidas, a pormenorizar nos desdobramentos depersonalidades as snteses tornadas impossveis. De fato, a doena apaga,mas sublinha; abole de um lado, mas para exaltar do outro; a essncia dadoena no est somente no vazio criado, mas tambm na plenitudepositiva das atividades de substituio que vem preenche-lo.

    Que dialtica vai explicar ao mesmo tempo estes fatos positivos e osfenmenos negativos de desaparecimento?

  • Inicialmente, pode-se notar que funes desaparecidas e funesexaltadas no so de mesmo nvel: o que desapareceu, so as coordenaescomplexas, a conscincia com suas aberturas intencionais, seu jogo deorientao no tempo e no espao, a tenso voluntria que retoma eordena os automatismos. As con dutas conservadas e acentuadas so, aoinverso, segmentarias e simples; trata-se de elementos dissociados que seliberam num estilo de incoerncia absoluta. A sntese complexa dodilogo substituda pelo monologo fragmentrio; a sintaxe atravs daqual se constitui um sentido quebrada, e s subsistem elementos verbaisdos quais escapam sentidos ambguos, polimorfos e lbeis; a coernciaespao-temporal que se ordena no aqui e agora desmoronou-se, e ssubsiste um caos de aqui sucessivos e de instantes insulares. Osfenmenos positivos da doena se opem aos negativos, como o simplesao complexo.

    Mas tambm como o estvel ao instvel. As snteses espao-temporais,as condutas intersubjetivas, a intencionalidade voluntria estoincessantemente comprometidas por fenmenos to freqentes quanto osono, to difusos quanto a sugesto, to costumeiros quanto o sonho. Ascondutas acentuadas pela doena tem uma solidez psicolgica que noapresentam as estruturas abolidas. O processo patolgico exagera osfenmenos mais estveis e s suprime os mais lbeis.

    Finalmente as funes patologicamente acentuadas so as maisinvoluntrias: o doente perdeu toda ini ciativa, ao ponto de que aprpria resposta induzida por uma pergunta no lhe mais possvel: ele spode repetir as ltimas palavras de seu interlocutor; ou quandoconsegue fazer um gesto, a iniciativa to logo substituda por umautomatismo de repetio que a interrompe e sufoca. Digamos, ento,resumindo, que a doena suprime as funes complexas, instveis evoluntrias, exaltando as funes simples, estveis e automticas.

    Ora, esta diferena de nvel estrutural duplicada por uma diferenano nvel evolutivo. A preeminncia das reaes automticas, a sucessosempre interrompida e desordenada das condutas, a forma explosiva dasreaes emocionais so caractersticas de um nvel arcaico na evoluo doindivduo. So estas condutas que do seu estilo as reaes da criana:ausncia das condutas de dilogo, amplitude dos monlogos seminterlocutores, repeties em eco por incompreenso da dialtica pergunta-resposta; pluralidade das coordenadas espao-temporais, o que permitecondutas ilhadas, nas quais os espaos esto fragmentados e os momentos

  • independentes, todos estes fenmenos que so comuns as estruturaspatolgicas e aos estgios arcaicos da evoluo designam na doena umprocesso regressivo.

    Se ento, num s movimento, a doena ocasiona sinais positivos enegativos, se ela suprime e exalta, ao mesmo tempo, na medida em que,retornando a fases anteriores da evoluo, faz desaparecerem as aquisiesrecentes, e redescobre as formas de condutas normalmente ultrapassadas.A doena o processo ao longo do qual se desfaz a trama da evoluo,suprimindo inicialmente, e nas suas formas mais benignas, as estruturasmais recentes, atingindo em seguida, no seu trmino e no seu pontosupremo de gravidade, os nveis mais arcaicos. A doena no entoum dficit que atinge cegamente esta faculdade ou aquela; h noabsurdo do mrbido uma lgica que preciso saber ler; a prpria lgicada evoluo normal. A doena no uma essncia contra a natureza, ela a prpria natureza, mas num processo invertido; a histria natural dadoena s tem que restabelecer o curso da histria natural do organismoso. Mas nesta lgica nica, cada doena conservar seu perfilsingular; cada entidade nosogrfica encontrar seu lugar, e seu contedoser definido pelo ponto onde pra o trabalho da dissociao; as diferenasde essncia entre as doenas, preciso preferir a anlise segundo o graude profundidade da deteriorao, e o sentido de uma doena poder serdefinido pela estiagem em que se estabiliza o processo de regresso.

    *

    "Em toda loucura", dizia Jackson, "existe um dano mrbido de umnmero mais ou menos grande de centros cerebrais superiores, ou, o que sinnimo, do nvel de evoluo mais elevado da infra-estrutura cerebral,ou, o que ainda sinnimo, do substrato anatmico da base fsica daconscincia... Em qualquer loucura, grande parte dos centros cerebraissuperiores colocada fora de funcionamento de um modo temporrio oupermanente, por algum processo patolgico" (8). Toda a obra de Jacksontendeu a dar importncia ao evolucionismo em neuro e em psicopatologia.A partir das Croonian Lectures (1874), no mais possvel omitir osaspectos regressivos da doena; a evoluo e doravante uma das dimensesatravs das quais tem-se acesso ao fato patolgico.

    Toda uma parte da obra de Freud comentrio das formas evolutivas

    8 Facteurs de la Folie, Selected Papers. II, p 411 26

  • da neurose. A histria da libido, de seu desenvolvimento, de suas fixaessucessivas como a compilao das virtualidades patolgicas do indivduo:cada tipo de neurose um retorno a um estgio de evoluo libidinal. Ea psicanlise acredi tou poder escrever uma psicologia da criana, fazendouma patologia do adulto.

    1) Os primeiros objetos procurados pela criana so os alimentos, e oprimeiro instrumento de prazer, a boca: fase de erotismo bucal durante aqual as frustraes alimentares podem estabelecer os complexos dedesmame; fase tambm de ligao quase biolgica com a me, na qualtodo abandono pode provocar os dfi cits fisiolgicos analisados porSpitz (9), ou as neuroses descritas por Gueux como sendo especificamenteneuroses de abandono (10). Sechehaye chegou at a analisar uma jovemesquizofrnica na qual uma fixao nestes estgios muito arcaicos dedesenvolvimento tinha conduzido, por ocasio da adolescncia, a um estadode estupor hebefrnico no qual o sujeito vivia, destrudo, na conscinciaansiosamente difusa de seu corpo esfomeado.

    2) Com a dentio e o desenvolvimento da musculatura, a crianaorganiza todo um sistema de defesa agressiva, que marca os primeirosmomentos de sua independncia. Mas tambm o momento no qual asdisciplinas e, num grau maior, a disciplina esfincteriana se impem acriana, tornando-lhe presente a instncia paterna sob sua formarepressiva. A ambivalncia se instala, como dimenso natural daafetividade: ambivalncia do alimento que s satisfaz na medida em que se odestri no modo agressivo da mordida; ambivalncia do prazer que tanto deexcreo quanto de introjeo; ambivalncia das satisfaes ora permitidas evalorizadas, ora interditas e punidas. no cerne desta fase que se d oaparecimento do que Melanie Klein chama os "bons" e os "maus objetos";mas a ambigidade latente de uns e de outros no est dominada ainda, e afixao neste perodo descrita por Freud como "estgio sdico-anal"cristaliza as sndromes obsessivas: sndrome contraditria de dvida, deinterrogao, de atrao impulsiva incessantemente compensada pelo rigorda proibio, de precaues contra si-mesmo, sempre voltada, mas semprerecomeada, dialtica do rigor e da complacncia, da cumplicidade e darecusa, onde se pode ler a ambivalncia radical do objeto desejado.

    3) Ligada as primeiras atividades erticas, ao refinamento das reaes deequilbrio, e ao reconhecimento de si no espelho, constitui -se uma

    9 SPITZ O hospitalismo.10 G. GUEUX Les Nvroses d'abandon

  • experincia do "corpo prprio". A afetividade desenvolve ento como temamaior a afirmao ou a reivindicao da integridade corporal; onarcisismo torna-se uma estrutura da sexualidade, e o corpo prprioum objeto sexual privilegiado. Qualquer ruptura, neste circuito narcisista,perturba um equilbrio j difci l, como testemunha a an gstia das crianasdiante das fantasias castratrias das ameaas paternas. nesta desordemansiosa das experincias corporais que se precipita a sndrome histrica:desdobramento do corpo, e constituio de um alter ego no qual o sujeito l,como espelho, seus pensamentos, desejos e gestos cujo duplo demonaco odesapossa antecipadamente; fracionamento histrico que subtrai daexperincia global do corpo elementos anestesiados ou paralisados; angstiade fobia diante de objetos cujas ameaas fantasmticas visam para odoente integridade de seu corpo (Freud analisou assim a fobia de ummenino de 4 anos no qual o medo dos cavalos ocultava o pavor dacastrao)(11).

    4) Finalmente faz-se a "escolha objetal", ao ter mino desta primeirainfncia: escolha que deve implicar, com uma fixao heterossexual,numa identificao com o pai do mesmo sexo. Mas a essa diferenciao, aassuno de uma sexualidade normal se opem a atitude dos pais e aambivalncia da afetividade infan ti l: ela , na realidade, nesta pocaainda, fixada no modo de um cime inteiramente mesclado de erotismo deagressividade, a uma me desejada que se recusa ou pelo menos divide-se;e ela se decompe em ansiedade diante do pai cuja rivalidade triunfantesuscita, com o dio, o desejo amoroso de identificao. o famosocomplexo de dipo, no qual Freud acreditava ler o enigma do homem ea chave de seu destino; no qual preciso sem dvida encontrar a anlisemais compreensiva dos conflitos vividos pela criana em suas relaes comseus pais, e o ponto de fixao de muitas neuroses.

    Em resumo, todo estgio libidinal uma estrutura patolgica virtual. Aneurose uma arqueologia espontnea da libido.

    Janet retoma, ele tambm, o tema jacksoniano, mas num horizontesociolgico. A queda de energia psicolgica que caracteriza a doenatornava impossveis as condutas complexas adquiridas no decorrer daevoluo social, e descobriria, como uma mar que se retira, comportamentossociais primitivos, ou mesmo reaes pr-sociais.

    Um psicastnico no chega a acreditar na reali dade do que o cerca;

    11 FREUD, Cinq Psychanalyses (p. 111).

  • uma conduta, para ele, "demasiado difci l". O que uma condutadifci l? Essencialmente uma conduta na qual uma anlise vertical mostra asuperposio de vrias condutas simultneas. Matar um animal na caa uma conduta; contar, depois do fato, que se matou um animal, umaoutra conduta. Mas no momento em que se espreita, em que se mata,contar-se a si mesmo que se mata, que se persegue, que se espreita, parapoder, em seguida, contar a epopia aos outros; ter simultaneamente aconduta real da caa e a virtual do relato, uma dupla operao. muito maiscomplicada do que cada uma das duas outras, e que s mais simplesaparentemente: a conduta do presente, germe de todas as condutastemporais, na qual se superpem e se imbricam o gesto atual e aconscincia de que este gesto ter um futuro, isto , que mais tarde poder-se- narr-lo como um acontecimento passado. Pode-se ento medir adificuldade de uma ao de acordo com o nmero de condutas elementaresem que implica a unidade de seu desenvolvi mento.

    Tomemos por sua vez esta conduta do "relato aos outros", cujavirtualidade faz parte das condutas do presente. Contar, ou maissimplesmente falar, ou de um modo mais elementar ainda, dar uma ordemno tampouco algo simples; significa, inicialmente, referir-se a umacontecimento ou a uma ordem de coisas, ou a um mundo ao qual no tenhoacesso, mas que pode ser atingido por outro em meu lugar; -me necessrioento reconhecer o ponto de vista do outro, e integr-lo ao meu; precisoento duplicar minha prpria ao (a ordem dada) com uma condutavirtual, a do outro que deve execut- la. Mais ainda: dar uma ordemsupe sempre o ouvido que a perceber, a inteligncia que a compreender,o corpo que a executar; na ao de comandar est implcita a virtualidadede ser obedecido. Isto quer dizer que estas condutas aparentemente tosimples que constituem a ateno no presente, o relato, a palavraimplicam todas numa certa dualidade, que no fundo a dualidade de todas ascondutas sociais. Se, ento, o psicastnico acha to rdua a ateno nopresente, devido s implicaes sociais que obscuramente ela encerra;tornaram-se difceis para ele todas estas aes que tem um contrrio(olhar-ser olhado, na presena; falar-ser falado, na linguagem; crer-seracreditado, na narrativa) porque so condutas que se desdobram numhorizonte social. Foi preciso toda uma evoluo social para que o dilogose tornasse um modo de relao inter-humano; s tornou-se possvel pelapassagem de uma sociedade imvel em sua hierarquia do momento, ques autoriza a palavra de ordem, a uma sociedade na qual a igualdade dasrelaes permite e garante a troca virtual, a fidelidade ao passado, o

  • engajamento do futuro, a reciprocidade dos pontos de vista. E toda estaevoluo social que rest abelece o doente, incapaz de dilogo.

    Cada doena, segundo sua gravidade, abole certas condutas que asociedade em sua evoluo tinha tor nado possveis, e as substitui porformas arcaicas de comportamento:

    1) ao dilogo, como forma suprema da evoluo da linguagem, substituiuma espcie de monlogo no qual o sujeito conta a si prprio o que faz, ouento no qual ele trava, com um interlocutor imaginrio, um dilogo queele seria incapaz de travar com um parceiro real, como o professorpsicastnico que s podia proferir sua conferencia diante do espelho. Torna-separa o doente demasiado "difci l" agir sob os olhares do outro: eisporque tantos sujeitos, obsedados ou psicastnicos, apresentam, quando sesentem observados, fenmenos de liberao emocional, como os tiques, asmmicas, as mioclonias de toda espcie;

    2) perdendo esta virtualidade ambgua do dilogo, e no maisapreendendo a palavra seno pela face esquemtica que ela apresenta aosujeito falante, o doente perde o domnio de seu universo simblico; e oconjunto das palavras, dos signos, dos ritos, em resumo de tudo o que hde alusivo e referencial no mundo humano, cessa de integrar -se numsistema de equivalncias significativas; as palavras e os gestos noconstituem mais o domnio comum no qual se encontram as intenes desi prprio e dos outros, mas significaes existindo por si mesmas, de umaexistncia macia e inquietante; o sorriso no mais a resposta banal a umasaudao cotidiana; um acontecimento enigmtico que nenhuma dasequivalncias simblicas da polidez pode reduzir; no horizonte do doenteele se destaca, ento, como o smbolo de no se sabe que mistrio, como aexpresso de uma ironia que se cala e ameaa. O universo daperseguio brota de todos os lados;

    3) este mundo que vai do delrio a alucinao parece dependerinteiramente de uma patologia da crena, como conduta inter-humana;o critrio social da verdade ("acreditar no que os outros crem") notem mais valor para o doente; e neste mundo que a ausncia do outroprivou de solidez objetiva, ele faz penetrar todo um universo de smbolos,de fantasmas, de pavores; este mundo no qual apagou-se o olhar do outrotorna-se permevel as alucinaes e aos delrios. Assim, nestes fenmenospatolgicos, o doente remetido a formas arcaicas de crena, quando ohomem primitivo no encontrava em sua solidariedade com o outro o

  • critrio da verdade, quando projetava seus desejos e temores emfantasmagorias que teciam com o real as meadas indissociveis dosonho, da apario, e do mito.

    No horizonte de todas estas anlises, h, sem dvida, temasexplicativos que se situam por si mesmos nas fronteiras do mito: omito, inicialmente, de uma certa substncia psicolgica ("libido", em Freud,"fora psquica", em Janet), que seria a matria bruta da evoluo, eque, progredindo no decorrer, do desenvolvimento individual e social,sofreria uma espcie de recada, e voltaria, devido a doena, a seu estadoanterior; o mito tambm de uma identidade entre o doente, o primitivo e acriana, mito atravs do qual se tranqiliza a conscincia escandalizadadiante da doena mental, e consolida-se a conscincia presa a seuspreconceitos culturais. Destes dois mitos, o primeiro, porque cientfico, logoabandonado (de Janet, retm-se a anlise das condutas, e no ainterpretao pela fora psicolgica: os psicanalistas rejeitam cada vez maisa noo bio-psicolgica de libido) ; o outro, pelo contrrio, tico, porquejustifica mais do que explica, permanece vivo ainda.

    Entretanto, no h qua se sentido em restituir uma identidadeentre a personalidade mrbida do doente e a normal, da criana ou doprimitivo. Das duas uma, com efeito:

    ou admite-se rigorosamente a interpretao de Jackson: "Imaginareique os centros cerebrais dispem-se em quatro camadas, A, B. C, D,"; aprimeira forma da loucura, a mais benigna, ser A + B + C + D; "atotalidade da personalidade de fato + B + C + D; o termo A dado spara mostrar em que a nova personalidade difere da anterior" (12) ; aregresso patolgica assim somente uma operao subtrativa; mas oque se subtrai nesta aritmtica, justamente o termo ltimo, que promove earremata a personalidade; quer dizer que "o resto" no ser umapersonalidade anterior, mas abolida. Como, por meio disto, identifi car oindivduo doente s personalidades "anteriores" do primitivo ou da criana?

    ou, ento, estende-se o jacksonismo, admitindo uma reorganizao dapersonalidade; a regresso no se contenta com suprimir e liberar, elaordena e coloca no lugar; como o diziam Monakow e Murgue a propsitoda dissoluo neuro-lgica: "A desintegrao no a inverso exata daintegrao... Seria absurdo dizer que a hemiplegia um retorno ao estgioprimitivo da aprendizagem da locomoo... A autoregulao tem um

    12 C. JACKSON Facteurs de la folie, tradi franc. , p. 30.

  • papel aqui, de maneira que a noo de desintegrao pura no existe. Esteprocesso ideal est camuflado pela tendncia criadora do organismoincessantemente em ao a restabelecer o equil brio perturbado (13)."Ento, no se trata mais de personalidades arcaicas; preciso admitir aespecificidade da personalidade mrbida; a estrutura patolgica dopsiquismo no originria; rigorosamente original.

    No se trata de invalidar as anlises da regresso patolgica, mas preciso somente libert-las dos mitos dos quais nem Janet nem Freudsouberam decant-las. Seria intil, sem dvida, dizer, numa perspectivaexplicativa, que o homem, adoecendo, volta a ser uma criana: mas doponto de vista descritivo, exato dizer que o doente manifesta, na suapersonalidade mrbida, condutas segmentarias, anlogas as de uma idadeanterior ou de uma outra cultura; a doena descobre e privilegiacondutas normalmente integradas. A regresso s deve ento serentendida como um dos aspectos descritivos da doena.

    Uma descrio estrutural da doena deveria, ento, para cada sndrome,analisar os sinais positivos e negativos, isto , detalhar as estruturas abolidase as estruturas realadas. No significaria explicar as formas patolgicas, massomente coloc-las numa perspectiva que tornasse coerentes ecompreensveis os fatos de regresso individual ou social relevados porFreud e Janet. Podem-se resumir assim as grandes linhas de uma descriosemelhante:

    1) o desequilbrio e as neuroses so apenas o primeiro grau dedissoluo das funes psquicas; o dano s atinge o equilbrio geral dapersonalidade psicolgica, e esta ruptura freqentemente momentnealibera apenas os complexos afetivos, os esquemas emocionaisinconscientes, constitudos no decorrer da evolu o individual;

    2) na parania, o distrbio geral do humor libera uma estrutura passionalque no seno o exagero dos comportamentos costumeiros dapersonalidade; mas nem a lucidez, nem a ordem, nem a coeso do, fundomental esto ainda atingidos:

    3) mas com os estados onirides, atingimos um nvel no qual asestruturas da conscincia j esto dissociadas; o controle perceptivo e acoerncia do raciocnio desapareceram; e nesta fragmentao da esferaconsciente, veem-se infiltrar as estruturas do sonho que, geralmente, so

    13 MONAKOW & MURGUE, Introduction biologique la neurologie (p. 178) .

  • liberadas apenas no sono. Iluses, alucinaes, reconhecimentos falsosmanifestam no estado de viglia a desinibio das formas da conscinciaonrica;

    4) a dissociao chega, nos estados manacos e melanclicos, a esferainstintivo-afetiva; a puerilidade emocional do manaco, a perda daconscincia do corpo e das condutas de conservao, no melanclico,representam o lado negativo. Quanto as formas positivas da doena, elasaparecem nestes paroxismos de agitao motora ou de exploses emocionaisdurante os quais o melanclico afirma seu desespero, o manaco suaagitao eufrica;

    5) finalmente, nos estados confusos e esquizofrnicos, a deterioraotoma o aspecto de um dficit capacitrio; num horizonte no qual asreferencias espaciais e temporais tornaram-se demasiado imprecisaspara permitir a orientao, o pensamento, dividido, procede porfragmentos isolados, esconde um mundo vazio e negro de "sncopespsquicas", ou fecha-se no silencio de um corpo cuja prpria motricidade tolhida pela catatonia. Somente continuaro a emergir, como sinaispositivos, as estereotipias, as alucinaes, os esquemas verbais cristalizadosem slabas incoerentes, e bruscas irrupes afetivas atravessando comometeoros a inrcia demente;

    6) e na demncia que se fecha o ciclo desta dissoluo patolgica; ademncia onde pululam todos os sinais negativos dos dficits, e onde adissoluo tornou-se to profunda que no h mais instncia algumapara desinibir; no h mais personalidade, mas semente um ser vivo.

    Mas uma anlise deste tipo no poderia esgotar o conjunto do fatopatolgico. Ela duplamente insuficiente:

    a) negligncia a organizao das personalidades mrbidas nas quais sodeterminadas as estruturas regressivas; por mais profunda que seja adissoluo (excetuando-se o caso da demncia), a personalidade nuncapode desaparecer completamente; o que a regresso da personalidadeencontra, no so elementos dispersos pois eles nunca o foram nem personalidades mais arcaicas pois no h retorno nodesenvolvimento da personalidade, mas somente na sucesso dascondutas. Por mais simples e inferi ores que sejam, no se podem omitiras organizaes atravs das quais um esquizofrnico estrutura seuuniverso; o mundo fragmentado que ele descreve est de acordo comsua conscincia dispersa, o tempo sem futuro nem passado no qual

  • ele vive o reflexo de sua incapacidade para se projetar num futuro, epara reconhecer-se num passado; mas este caos encontra seu ponto decoerncia na estrutura pessoal do doente que assegura a unidade vivida desua conscincia e de seu horizonte. Por mais doente que esteja, esteponto de coerncia no pode deixar de existir. A cincia dapatologia mentals pode ser a cincia d personalidade doente;

    b) a anlise regressiva descreve a orientao da doena, semdeterminar seu ponto de origem. Se ela fosse apenas regresso, a doenaseria como uma virtualidade arrancada, em cada indivduo, pelo prpriomovimento de sua evoluo; a loucura somente seria uma eventualidade,o tributo sempre exigido pelo desenvolvimento humano. Mas a nooabstrata de regresso no pode dar conta do fato de que uma pessoaestejadoente, e esteja doente, neste momento, desta doena, que suasobsesses tenham determinado tema, que seu delrio comporte taisreivindicaes, ou que suas alucinaes se extasiem no universo de certasformas visuais. Na perspectiva evolucionista, a doena notem outro statusseno o da virtualidade geral; no foram ainda distinguidas nem acausalidade que a torna necessria nem a que d a cada quadro clnicosua colorao singular. Esta necessidade e suas formas individuais nodevem ser exigidas de uma evoluo sempre especfica, mas da histriapessoal do doente.

    E, ento, necessrio conduzir a anlise alm; e completar esta dimensoevolutiva, virtual e estrutural da doena, pela anlise desta dimenso que atorna necessria, significativa e histrica.

  • Captulo III

    A DOENA E A HISTRIA INDIVIDUAL

    A evoluo psicolgica integra o passado ao presente numa unidadesem conflito, nesta unidade ordenada que se define como uma hierarquia deestruturas, unidade slida que apenas uma regresso patolgica podecomprometer; a histria psicolgica, pelo contrrio, ignora uma junosemelhante do anterior e do atual; ela os situa um em relao ao outro,colocando entre eles esta distncia que suscita normalmente tenso,conflito e contradio. Na evoluo, o passado que promove o presentee o torna possvel; na histria, o presente que se destaca do passado,confere-lhe um sentido e torna-o intel igvel. O devir psicolgico , aomesmo tempo, evoluo e histria; o tempo do psiquismo deve seranalisado, concomitantemente, segundo o anterior e o atual isto , emtermos evolutivos mas tambm segundo o passado e o presente querdizer em termos histricos. Quando no final do sculoXIX, depois de Darwine Spencer, ficou-se maravilhado em descobrir, no seu devir de ser vivo, averdade do homem, imaginou-se que era possvel escrever a histriaem termos de evoluo, ou ainda confundir ambas em benefcio dasegunda: encontrar-se-ia, alis, o mesmo sof isma na sociologia da poca.O erro originrio da psicanlise. e depois dela da maioria das psicologiasgenticas, , sem dvida, no ter apreendido estas duas dimensesirredutveis da evoluo e dahistria na unidade do devir psicolgico (14) .

    Mas o gnio de Freud est no fato de ter podido, bastante cedo,ultrapassar este horizonte evolucionista, definido pela noo de libido, paraaceder a dimenso histrica do psiquismo humano.

    De fato, na psicologia analtica, sempre possvel separar o que vem deuma psicologia da evoluo (como os Trs ensaios sobre a sexualidade)e do que resulta de uma psicologia da histria individual (como as Cincopsicanlises e os textos que com elas se relacionam). Falamos acima daevoluo das estruturas afetivas tal como detalhada pela tradiopsicanaltica. Tomaremos agora da outra vertente da psican lise onecessrio para definir o que pode ser a doena mental quando se a encarasob a perspectiva da histria individual (15) .

    14 Em Minha vida e a psicanlise, FREUD cita a influncia de Darwin na primeira orientao deseu pensamento.15 S falaremos brevemente da teoria psicanaltica, que deve ser exposta no seu conjunto porBoutonier numa obra desta mesma coleo. (Refere-se coleo do original francs N.T.)

  • Eis uma observao que Freud cita na Introduction la psychanalyse(16): uma mulher de seus cinqenta anos suspeita que seu marido a enganacom sua jovem secretria. Situao e sentimentos de uma extremabanalidade. Entretanto, este cime tem ressonncias singulares: foisuscitado por uma carta annima; conhece-se o seu autor que s agiupor vingana e que apenas alegou fatos inexatos; o sujeito sabe tudo isto,reconhece de bom grado a injustia de suas acusaes com relao a seumarido, fala espontaneamente do amor que ele sempre lhe dedicou. E,contudo, seu cime no chega a dissipar-se; quanto mais os fatosproclamam a fidelidade de seu marido, mais suas suspeitas se reforam; seucime cristalizou-se paradoxalmente em torno da certeza de no serenganada. Enquanto o cime m rbido, sob sua forma clssica deparania, uma convico impenetrvel que vai pro curar sua justificaonas formas mais extremas do raciocnio, tem-se, nesta observao deFreud, o exemplo de um cime impulsivo que se contesta incessantementeseu fundamento, que tenta, a cada instante, negar-se, e vive no mododo remorso; eis a um caso muito curioso (e relativamente raro) decime obsessivo.

    Na anlise, revela-se que esta mulher est apai xonada por seugenro; mas experimenta tais sentimen tos de culpa, que no pode suportareste desejo, e transfere para seu marido o erro de amar uma pessoa muitomais jovem. Uma investigao mais profunda mostra, alis, que mesmoeste amor pelo genro ambivalente, e que esconde uma hostilidadeciumenta, na qual o objeto da rivalidade a filha da doente: no cerne dofenmeno mrbido encontra-se, pois, uma fixao homossexual com relaoa filha.

    Metamorfoses, simbolismos, transformao dos sentimentos em seucontrrio, disfarces das personagens, transfernci a de culpa, inverso deum remorso em acusao, eis todo um conjunto de processos que sedenunciam como traos da fabulao infanti l. Poder -se-ia facilmenteaproximar esta projeo ciumenta da descrita por Wallon nas Origines ducaractere (17): ele cita de Elsa Khler o exemplo de uma menina de 3 anosque bate na sua companheirinha, e, desfazendo-se em lgrimas, corre parasua bab para ser consolada por ter apanhado. Nesta criana, como naobsedada da qual falvamos, encontram-se as mesmas estruturas deconduta: a indiferenciao da conscincia em si impede a distino entreo agir e o sofrer (bater -- apanhar; enganar ser enganado) ; a

    16 Introduction la psychanalyse , p. 270.17 Les Origines du caractere chez l'enfant, p 217. 41

  • ambivalncia dos sentimentos permite, por outro lado, uma espcie dereversibi lidade entre a agresso e a culpa. Tanto num caso como nooutro encontram-se os mesmos traos de arcasmo psicolgico: fluidez dascondutas afetivas, habilidade da estrutura pessoal na oposio eu-outro.Mas no se trata de confirmar mais uma vez o aspecto regressivo dadoena.

    O importante aqui que esta regresso tem na doente de Freud umsentido bastante preciso: trata-se para ela de escapar a um sentimentode culpa; foge de seu remorso de amar demasiadamente sua filha forando-se a amar seu genro; e escapa da culpa que este novo amor ocasiona,reportando sobre seu marido, por uma espcie de projeo em espelho,um amor paralelo ao seu. Os processos infantis de metamorfose do realtem, ento, uma utilidade: constituem uma fuga, uma maneira vantajosade agir sobre o real, um modo mtico de transformao de si mesmo e dosoutros. A regresso no uma queda natural no passado; uma fugaintencional fora do presente. mais um recurso do que um retorno. Mas sse pode escapar do presente colocando outra coisa em seu lugar; e opassado que vem a tona nas condutas patolgicas no o solo originrioao qual se retorna como a uma ptria perdida, o passado fatcio eimaginrio das substituies.

    Ora uma substituio das formas de comportamento: as condutasadultas, desenvolvidas e adaptadas, se desvanecem diante das condutasinfantis, simples e inadaptadas. Como com a famosa doente de Janet: idia de que seu pai possa ficar doente, ela manifesta as formas paroxsticasda emoo infantil (gritos, exploso motora, queda) , porque recusa a c o n du t a adaptada que seria encarar o fato de cuidar dele, prever os meios deuma cura lenta, organizar-se uma existncia de enfermeira;

    ora uma substituio dos prprios objetos: s formas vivas darealidade, o sujeito substitui os ternas imaginrios de seus primeirosfantasmas; e o mundo parece abrir-se para os objetos arcaicos, aspersonagens reais desvanecerem-se diante dos fantasmas paternos; comoacontece com estes doentes fbicos qu e se chocam, diante de cadaconduta, contra os mesmos me dos ameaadores; a personagemmutiladora do pai, ou a me captadora delinea-se sob a imagemestereotipada do animal terrificante, por detrs do fundo difuso de angstiaque submerge a conscincia.

    Todo este jogo de transformaes e repeties manifesta que, nos

  • doentes, o passado s invocado para substituir a situao atual; e que s realizado na medida 'em que se trata de irrealizar o presente.

    Mas que vantagem pode haver em repetir uma crise de angstia?

    Que sentido h em reencontrar os fantasmas terrificantes da vida infantil,em substituir os distrbios maiores de uma afetividade ainda mal reguladapelas formas atuais de atividade? Por que fugir do presente, se parareencontrar tipos de comportamento inadaptados?

    Inrcia patolgica das condutas? Manifestao de um princpio derepetio que Freud extrapola na realidade biolgica de um paradoxal"instinto da morte", que tende ao imvel, ao idntico, ao montono, aoinorgnico, como o instinto da vida tende a mobilidade sempre nova dashierarquias orgnicas? Isto significa. sem dvida, dar aos fatos um nomeque, unindo-os, recusa qualquer forma de explicao. Mas h notrabalho de Freud e da psicanlise com que explicar esta irrealizao dopresente de modo diverso que o da repetio pura e simples do passado.

    O prprio Freud teve oportunidade de analisar um sintoma emformao. Tratava-se de um garoto de 4 anos, o pequeno Hans (18), quetinha um mdo fbico de cavalos. Medo ambguo, j que ele procuravatodas as oportunidades para v-los e corria a janela logo que ouvia umacarruagem; mas, terrificado, gritava de pavor logo que percebia o cavaloque viera olhar. Medo paradoxal, alm disso, j que temia ao mesmotempo que o cavalo o mordesse, e que o animal, caindo, mor resse.Desejava ou no ver cavalos? Receava por si prprio ou por eles? As duascoisas, sem dvida. A anlise mostra a criana no ponto nodal de todas assituaes edipianas: seu pai empenhou-se em prevenir nele uma fixaodemasiado forte pela me; mas o agarramento com ela s se tornoumais violento exasperado ainda mais pelo nascimento de uma irm, se bemque o pai tenha sido sempre para o pequeno Hans um obstculo entre suame e ele. neste momento que se forma a sndrome. O simbolismo maiselementar do material onrico permite adivinhar, na imagem do cavalo, umsubstituto da "imagem" paterna; e na ambigidade dos pavores da criana, fcil reconhecer o desejo da morte do pai. O sintoma mrbido , de modoimediato, satisfao de um desejo; no tendo conscincia de que deseja amorte de seu pai, o menino vive esta morte no modo imaginrio da morte deum cavalo.

    Mas este simbolismo, e a est o ponto importante, no somente a

    18 Cinco psicanlises

  • expresso mtica e figurada da realidade; desempenha um papelfuncional em relao a esta realidade. Indubitavelmente, o mdo de sermordido pelo cavalo uma expresso do receio de uma castrao; elesimboliza a interdio paterna de todas as atividades sexuais. Mas este mdode ser ferido duplicado pela obsesso de que o cavalo possa cair, ferir-see morrer: como se a criana se defendesse de seu prprio medo, pelodesejo de ver seu pai morrer, e cair assim o obstculo que o separa desua me. Ora, este desejo assassino no aparece imediatamente como talno fantasma da fobia: ele s se apresenta a sob a forma disfarada deum medo; a criana teme tanto a morte do cavalo quanto seu prprioferimento. Ela se defende contra seu desejo de morte e dele afasta aculpa, vivendo-o no modo de um medo equivalente ao que sente por simesmo; receia por seu pai o que teme para si; mas seu pai s tem querecear o que ele receia desejar contra ele. Ve-se, ento, que o valorexpressivo da sndrome no imediato, mas que se constitui atravs deuma srie de mecanismos de defesa. Dois destes mecanismos participaramneste caso de fobia: o primei ro transformou o medo por si mesmo emdesejo assassino contra aquele que suscita o medo; o segundo transformoueste desejo em medo de v-lo realizar-se.

    A partir deste exemplo, pode-se ento dizer que a vantagem encontradapelo doente em irrealizar seu presente na sua doena tem por origem anecessidade de se defender contra este presente. A doena tem comocontedo o conjunto das reaes de fuga e de defesa atravs das quais odoente responde a situao na qual se encontra; e a partir deste presente,desta situao atual que preciso compreender e dar sentido as regressesevolutivas que surgem nas condutas patolgicas; a regresso no semente uma virtualidade da evolu o, uma conseqncia da histria.

    Esta noo de defesa psicolgica capital. em torno dela que giroutoda a psicanlise. Investigao do inconsciente, pesquisas dos traumatismosinfantis, liberao de uma libido suposta por detrs de todos os fenmenos davida afetiva, esclarecimento das pulses msticas como o instinto da morte,a psicanlise foi apenas isto durante muito tempo; mas ela tende cadavez mais a conduzir sua pesquisa em direo aos mecanismos de defesa, e aadmitir finalmente que o sujeito s reproduz sua histria porque respondea uma situao presente. Anna Freud fez um inventrio destes mecanismosde defesa (19) : alm da sublimao considerada como uma condutanormal, ela encontra nove procedimentos com os quais o doente se defende,

    19 Anna FREUD. Le moi et les mcanismes de defense, p. 39.

  • e que definem por suas combinaes os diferentes tipos de neurose,recalque, regresso, formao reativa, isolamento, anulao retroativa,projeo, introjeo, auto-referencia, transformao no seu contrrio.

    O histrico usa, sobretudo o recalque; ele subtrai ao consciente todas asrepresentaes sexuais; rompe por medida de proteo a continuidadepsicolgica, e nestas "sncopes psquicas" aparecem a inconscincia, oesquecimento, a indiferena que constituem seu aparente "otimismo";rompe tambm a unidade do corpo para dele apagar todos os smbolos etodos os substitutos da sexualidade: da as anestesias e as paralisiaspititicas;

    ao contrrio, o obsedado defende-se, sobretudo pelo "isolamento";separa a comoo conflitual de seu contexto; d-lhe smbolos e expressessem relao aparente com seu contedo real; e as foras em conflitofazem surgir bruscamente condutas pulsionais, rgidas e absurdas, nointerior de um comportamento adaptado: testemunha disto aquela doentede Freud (20), que sem saber porque, sem que pudesse justificar-se a siprpria por nenhum sentimento de precauo ou de avareza, no podiadeixar de anotar todos os nmeros de cdulas que lhe passavam pelasmos. Mas esta conduta, absurda no seu isolamento, tinha um sentido sefosse recolocada no seu contexto afetivo: ela correspondia ao desejo que adoente tinha experimentado de assegurar-se do amor de um homemconfiando-lhe como garantia uma moeda; mas todas as moedas separecem... ; se, pelo menos, ela tivesse podido dar-lhe uma cdula quepudesse ser reconhecida pelo seu nmero... E ela tinha-se defendido desteamor que julgava culpado isolando a conduta de suas justificaessentimentais;

    delirando, ao mesmo tempo perseguido e perseguidor, denunciandono corao dos outros seus prprios desejos e dios, amando o que querdestruir, identificando-se com o que odeia, o paranico caracteriza-sesobretudo pelos mecanismos de projeo, introjeo o auto-referncia. Freud o primeiro (21) a mostrar no cime paranico o conjunto destesprocessos. Quando o paranico reprova seu companheiro por engan-lo,quando sistematiza em torno desta infidelidade todo um conjunto deinterpretaes, no faz seno censurar no outro o que censura em simesmo; se acusa sua amante de engane-o com um amigo, que eleprprio sente precisamente este desejo; e se defende deste desejo

    20 Introduction la psychanalyse, pi 286.21 Cinq psychanalyses: "Le Prsident Schreber", p. 301.

  • homossexual transformando-o em relao heterossexual, e projetando-ono outro, sob a forma de uma reprovao de infidelidade. Mas por umaprojeo simtrica, que tem, ela tambm, o sentido de uma justifi cao ede uma catarse, ele acusar de desejo homossexual aquele mesmo que eledeseja, e por uma inverso do afeto, vangloriar-se- de um dio mtico quejustificam a seus olhos as assiduidades do seu rival. No sou eu que teengano, s tu que me trais: no sou eu que o amo, ele que me deseja e mepersegue; no tenho amor por ele, mas semente dio: tais so osmecanismos com os quais um paranico, defendendo-se de suahomossexualidade, constitui um delrio de cime.

    A iterao patolgica do passado tem, ento, agora um sentido; no opeso de um "instinto da morte" que a impe; a regresso faz partedestes mecanismos de defesa ou melhor o recurso aos conjuntos deproteo j estabelecidos. A forma iterativa do patolgico apenassegunda em relao a sua significao defensiva.

    O problema nodal permanece: de que se defende o doente quando,criana, instaura formas de proteo que far ressurgir nas repetiesneurticas de sua vida adulta? Qual este perigo permanente que, tendosurgido na aurora de sua vida psicolgica, delinear-se- constantemente noseu universo, ameaa de mil aspectos de um perigo que permaneceidntico?

    Ainda neste caso a anlise de um sintoma pode servir-nos de fiocondutor. Uma garota de 10 anos comete um furto (22): apodera-se de umabarra de chocolate sob os olhos da vendedora que a repreende e ameaacontar a histria a me da menina. Roubo cuja forma impulsiva e inadaptadadenuncia logo como neurtico. A histeria do sujeito mostra claramenteque este sintoma situa-se no ponto de convergncia de duas condutas: odesejo de reaver uma afeio materna que lhe recusada, e cujo smbolo, aqui, como bem freqentemente, o objeto alimentar; e por outro lado, oconjunto das reaes de culpa que seguem o esforo agressivo para captaresta afeio. Entre estas duas condutas, o sintoma vai aparecer como umcompromisso; a criana dar curso livre a suas necessidades de afeiocometendo o furto, mas liberar suas tendncias a culpa, cometendo-o demaneira a que seja surpreendida. O comportamento de roubo inbil revela-se como urna destreza da conduta; sua imperfeio um estratagema:compromisso entre duas tendncias contraditrias, uma maneira dedominar o conflito. O mecanismo patolgico , pois, proteo contra um

    22 A. FREUD, O tratamento psicanaltico das crianas.

  • conflito, defesa diante da contradio que suscita.

    Mas todo conflito no provoca uma reao mr bida e a tenso queocasiona no forosamente patolgica; mesmo provavelmente a trama detoda vida psicolgica. O conflito que o compromisso neurtico revela no simplesmente contradio externa na si tuao objetiva; mas contradioimanente, na qual os termos se misturam de tal forma que o compromisso,longe de ser uma soluo, em ltima instncia um aprofundamento doconflito. Quando uma criana rouba para recuperar uma afeio perdida, eacalma seus escrpulos deixando se surpreender, est claro que o resultadode seu gesto, trazendo a punio desejada, retirar-lhe- mais ainda a afeioque ele lamenta, aumentar nele os desejos captadores que seu roubosimboliza, e satisfeito um instante, aumentar conseqentemente ossentimentos de culpa. Experincia de frustrao e reao de culpa estoassim ligadas, no como duas formas de conduta divergentes que separtilham o comportamento, mas como a unidade contraditria que definea dupla polaridade de uma nica e mesma conduta. A contradio patolgicano o conflito normal; este devasta do exterior a vida afetiva do sujeito;suscita nele condutas opostas, o faz oscilar; provoca aes, depoisocasiona o remorso; pode exaltar a contradio at incoerncia. Mas aincoerncia normal . a rigor, diferente do absurdo patolgico. Este animado interiormente pela contradio; a coerncia do ciumento paraconvencer sua mulher de infidelidade perfeita; perfeita tambm a coernciado obsedado nas precaues que toma. Mas esta coerncia absurda porqueela aprofunda, desenvolvendo-se, a contradio que tenta superar; quandouma doente de Freud retira de seu quarto, numa preocupao obsessiva,todos os pndulos e relgios cujos tique-taques possam perturbar seu sono,defende-se, ao mesmo tempo, contra seus desejos sexuais e os satisfazmiticamente: afasta de si todos os smbolos da sexualidade, mas tambm daregularidade fisiolgica que poderia perturbar a maternidade que ela deseja:ao mesmo tempo que satisfaz seus desejos de modo mgico, aumentarealmente seus sentimentos de culpa (23). Ate onde o indivduo normalexperimenta contradio, o doente faz uma experincia contraditria; aexperincia de um abre-se sobre a contradio, a do outro fecha-se sobreela. Em outros termos: conflito normal, ou ambigidade da situao;conflito patolgico, ou ambivalncia da experincia. (24)

    Assim como o medo reao ao perigo exterior, a angstia a dimenso

    23 Introduction la psychanalyse, P. 287.24 esta unidade contraditria da conduta e da vida afetiva que se chama, a partir deBleuler, "ambivalncia".

  • afetiva desta contradio interna. Desorganizao total da vida afetiva, ela a expresso maior da ambivalncia, a forma na qual se termina, pois que a experincia vertiginosa da contradio simultnea, a prova de ummesmo desejo de vida e morte, amor e dio, a apoteose sensvel dacontradio psicolgica: angstia da criana que descobre pela mordida que oerotismo da absoro est carregado de agressividade destrutiva, angstiaainda do melanclico que, para arrancar da morte o objeto amado,identifica-se com ele, torna-se o que ele foi, mas acaba por sentir-se a siprprio na morte do outro, e se pode reter o outro na sua prpria vidareunindo-se a ele na morte. Com a angstia estamos no cerne dassignificaes patolgicas. Sob todos os mecanismos de proteo quesingularizam a doena, revela-se a angstia e cada tipo de doena defineuma maneira especifica de reagir a ela: o histrico recalca sua angstia e aoblitera encarnando-a num sintoma corporal; o obsedado ritua liza, emtorno de um smbolo, condutas que lhe permitem satisfazer os dois ladosde sua ambivalncia; quanto ao paranico, ele se justifica miticamenteatribuindo aos outros projetivamente todos os sentimentos que trazem em sisua prpria contradio; distribui para o outro os elementos de suaambivalncia, e mascara sua angstia sob as formas de sua agressividade. Ea angstia tambm, como prova psicolgica da contradio interior, que servede denominador comum e que d uma significao nica ao devirpsicolgico de um indivduo: ela foi experimentada pela primeira vez nascontradies da vida infantil e na ambivalncia que elas suscitam; e sob seuimpulso latente erigiram-se os mecanismos de defesa repetindo ao longo deuma vida seus ritos, precaues, suas manobras rgidas logo que a angstiaameaa reaparecer.

    Pode-se, ento, dizer, de certo modo, que atravs da angstia quea evoluo psicolgica transforma-se em histria individual; de fato, aangstia que unindo o passado e o presente situa-os um em relao aooutro e confere-lhes uma comunidade de sentido; a conduta patolgicatinha-nos parecido ter, paradoxalmente, um contedo arcaico e umainsero significativa no presente; que o presente, prestes a suscitar aambivalncia e a angstia, provoca o jogo da proteo neurtica; mas estaangstia ameaadora, e os mecanismos que a afastam foram h muito tempofixados na histria do sujeito. A doena desenvolve-se, ento, no estilo deum circulo vicioso: o doente se protege por meio de seus atuais mecanismosde defesa contra um passado cuja presena secreta faz surgir a angstia;mas, por outro lado, contra a eventualidade de uma angstia atual, osujeito se protege apelando para protees outrora instauradas no decorrer

  • de situaes anlogas. O doente defende-se com seu presente contra seupassado, ou protege-se de seu presente com a ajuda de uma histria finda? preciso dizer, sem dvida, que neste circulo que reside a essncia dascondutas patolgicas; se o doente est doente, na medida em que aligao do presente com o passado no se faz no estilo de uma integraoprogressiva. Certamente, todo indivduo sentiu angstia e erigiu condutas dedefesa; mas o doente vive sua angstia e seus mecanismos de defesa numacircularidade que o faz defender-se contra a angstia com osmecanismos que lhe esto ligados historicam ente, que, por isso,exaltam-no ao mximo, e ameaam incessantemente faze-la ressurgir. Emoposio histria do indivduo normal, esta monotonia circular o traoda histria patolgica.

    A psicologia da evoluo, que descreve os sintomas como condutasarcaicas, deve, ento, ser completada por uma psicologia da gnese quedescreve, numa histria, o sentido atual destas regresses. precisoencontrar um estilo de coerncia psicolgica que autorize a compreensodos fenmenos mrbidos sem tomar como modelo de referncia estgiosdescritos a maneira de fases biolgicas. necessrio encontrar o centrodas significaes psicolgicas a partir do qual, historicamente, ordenam-se ascondutas mrbidas.

    Ora, este posto para o qual convergem as signifi caes, acabamos dev-lo, a angstia. A histria psicolgica do doente constitui-se como umconjunto de condutas significativas, que erigem mecanismos de defesacontra a ambivalncia das contradies afetivas. Mas na histria psicolgicao status da angstia ambguo: ela que se encontra sob a trama de todosos episdios patolgicos de um sujeito; ela os apavora incessantemente; mas porque j se encontrava a que estes episdios sucederam-se, comotentativas para escapar-lhe; se ela os acompanha, porque os precedeu. Porque tal indivduo s encontra, numa situao, um conflito supervel, e taloutro uma contradio na qual se encerra de modo patolgico? Por que amesma ambigidade edipiana ser ultrapassada por um, enquanto quedesencadear no outro a longa seqncia dos mecanismos patolgicos? Eis auma forma de necessidade que a histria individual revela como umproblema, mas no chega a justificar. Para que uma contradio fossevivida no modo ansioso da ambivalncia, para que, a propsito de umconflito, uni sujeito se encerrasse na circularidade dos mecanismospatolgicos de defesa, foi preciso que a angstia j estivesse presente,angstia esta que transformou a ambigidade de uma situao emambivalncia das reaes. Se a angstia preenche a histria de um

  • indivduo, porque ela seu princpio e seu fundamento; logo de incio, eladefine um certo estilo de experincia que marca os traumatismos, osmecanismos psicolgicos que eles desencadeiam, as formas de repetioque eles afetam no decorrer dos epi sdios patolgicos: ela como um apriori de existncia.

    A analise da evoluo situava a doena como uma virtualidade; a histriaindividual permite encar-la como um fato do devir psicolgico. Mas preciso agora compreende-la na sua necessidade existencial.

  • Captulo IV

    A DOENA E A EXISTNCIA

    A anlise dos mecanismos da doena pra diante de uma realidadeque os ultrapassa, e que os constitui na sua natureza patolgica; por maisexaurida que seja, ela leva a encarar a angstia como o elemento mrbidoltimo, e como que o cerne da doena. Mas para compreend-la um novoestilo de anlise se impe: forma de experincia que vai alm de suasprprias manifestaes, a angstia no pode nunca deixar-se reduzir poruma anlise de tipo naturalista; consolidada no cerne da histria individual,para dar-lhe, sob suas peripcias, uma significao nica, ela tambm nopode esgotar-se numa anlise de tipo histrico; mas a histria e a naturezado homem s podem ser compreendidas tendo-a como referncia.

    preciso, agora, colocar-se no centro desta experincia; somentecompreendendo-a do interior que ser possvel enquadrar no universomrbido as estruturas naturais constitudas pela evoluo, e os mecanismosindividuais cristalizados pela histria psicolgica. Mtodo que nada devetirar das "Naturwissenschaften"(25), de suas anlises discursivas e suacausalidade mecnica; mtodo que no dever tambm jamais voltar-se paraa histeria biogrfica, com sua descrio dos encadeamentos sucessivos eseu determinismo em sries. Ao contrrio, deve apreender os conjuntoscomo totalidades cujos elementos no podem ser dissociados, por maisdispersos que estejam na histria. No basta dizer que o medo da criana a causa das fobias no adolescente, mas preciso reencontrar ,sob estemedo originrio e sob estes sintomas mrbidos, o mesmo estilo de angstiaque lhes confere sua unidade significativa. A lgica discursiva no cabeaqui: ela se embaraa nos labirintos do delrio e esgota-se seguindo osraciocnios do paranico. A intuio vai mais depressa e mais adiantequando consegue restituir a experincia fundamental que domina todosos processos patolgicos (por exemplo, no caso da parania, a alteraoradical da relao viva com o outro). Ao mesmo tempo que desdobra sob umanica viso as totalidades essenciais, a intuio reduz, at extenu-la, estadistncia de que feito todo conhecimento objetivo: a anlise naturalistaencara o doente com o distanciamento de um objeto natural; a reflexohistrica guarda-o nesta alteridade que permite explicar, mas raramentecompreender. A intuio, penetrando na conscincia mrbida, procura ver omundo patolgico com os olhos do prprio doente: a verdade que busca

    25 Cincias da natureza. No alemo, no original. (N. do T.) 55

  • no da ordem da objetividade, mas da intersubjetividade.

    Na medida em que compreender quer dizer, ao mesmo tempo, reunir,

    apreender de pronto, e penetrar, esta nova reflexo sobre a doena , antesde tudo, "compreenso": foi este o mtodo usado pela psicologiafenomenolgica

    Mas ser possvel compreender tudo? A caracterstica da doena mental,em oposio ao comportamento normal, no exatamente de poder serexplicada, mas resistir a qualquer compreenso. O cime no normalmesmo quando compreendemos seus exageros, e no mrbido quando"no compreendemos mais" suas reaes mesmo as mais elementares?Deve-se a Jaspers (26) o mrito de ter mostrado que a compreenso podeestender-se muito alm das fronteiras do normal e que a compreensointersubjetiva pode atingir o mundo patolgico na sua essncia .

    Indubitavelmente, h formas mrbidas que ainda so e permanecero

    opacas a compreenso fenomenolgica. So os derivados diretos dosprocessos cujo prprio movimento desconhecido da conscincia normal,como as irrupes na conscincia de imagens provocadas por intoxicaes,como estes "meteoros psquicos" que s podem explicar-se por uma rupturado tempo da conscincia, pelo que Jaspers denomina uma "ataxia psquica";finalmente so estas impresses que parecem tomadas de uma matriasensvel totalmente estranha a nossa esfera: sentimento de uma influnciapor campos de foras ao mesmo tempo materiais e misteriosamenteinvisveis, experincia de uma transformao aberrante do corpo.

    Mas aqum destes limites longnquos da compreenso, a partir dos quaisabre-se para ns o mundo estranho e morto do insano, o universomrbido permanece penetrvel. E por esta compreenso, trata -se derestituir, ao mesmo tempo, a experincia que o doente tem de suadoena (a maneira pela qual ele se vive como indivduo doente,anormal, ou sofredor), e o universo mrbido para o qual se abre estaconscincia de doena, o mundo a que visa e que ao mesmo tempo constitui.Compreenso da conscincia doente, e reconstituio do seu universopatolgico, tais so as duas tarefas de uma fenomenologia da doenamental.

    A conscincia que o doente tem de sua doena rigorosamente original.

    Nada mais falso, sem dvida, que o mito da loucura, doena que se ignora;o distanciamento que separa a conscincia do mdico da do doente no

    26 K. JASPERS, Psicopatologia geral. 56

  • medido pela distncia que separa o conhecimento da doena e suaignorncia. O mdico no est do lado da sade que detem todo oconhecimento sobre a doena; e o doente no est do lado da doena quetudo ignora sobre si mesma, at sua prpria existncia. O doente reconhecesua anomalia e d-lhe, pelo menos, o sentido de uma diferena irredutvelque o separa da conscincia e do universo dos outros. Mas o doente, por maislcido que seja, no tem sobre seu mal a perspectiva do mdico; no tomajamais este distanciamento especulativo que lhe permit iria apreender adoena como um processo objetivo desenrolando-se nele, sem ele; aconscincia da doena tomada no interior da do ena; est consolidadanela, e, no momento em que a percebe, exprime-a. A maneira pela qualum sujeito aceita ou recusa sua doena, o modo pelo qual a interpreta e dsignificao a suas formas mais absurdas, tudo isto constitui unia dasdimenses essenciais da doena. Nem destruio inconsciente no interiordo processo mrbido, nem conscincia lcida, objetiva e desinserida desteprocesso, mas reconhecimento alusivo, percepo difusa de um cenriomrbido no fundo do qual se destacam os temas patolgicos, tal o modode conscincia ambgua, cuja reflexo fenomenolgica deve analisar asvariaes (27) .

    1) A doena pode ser percebida com um status de objetividade que a

    coloca a uma distncia mxima da conscincia doente. No seu esforo paravence-la e no se reconhecer ne la, o doente lhe confere o sentido de umprocesso acidental e orgnico. nos limites de seu corpo que o doentemantm sua doena: omitindo ou negando qualquer alterao daexperincia psicolgica, ele s d importncia e, finalmente, s percebe etematiza os contedos orgnicos da sua experincia. Longe de ocultar suadoena, ele a exibe, mas somente nas suas formas fisiolgicas; justifica-se ao mdico ver, na objetividade que o doente confere a seus sintomas, amanifestao de distrbios subjetivos. E esta preeminncia dos processosorgnicos no campo de conscincia do doente e na maneira pela qual eleapreende sua doena que constitui a gama dos sinais histricos(paralisias ou anestesias psicgenas), sintomas psicossomticos, oufinalmente preocupaes hipocondracas que se encontram tofreqentemente na psicastenia ou em certas formas de esquizofrenia.Elementos da doena, estas formas orgnicas ou pseudo-orgnicas so,para o sujeito, modos de apreenso da sua doena.

    2) Na maior parte dos distrbios obsessivos, em muitas paranias e certas

    27 Foi nesta perspectiva que WYRSCH estudou a esquizofrenia (Die Person desSchizophrenen).

  • esquizofrenias, o doente reconhece que o processo mrbido incorpora-se asua personalidade. Mas de um modo paradoxal: ele reencontra na suahistria, nos conflitos com seu ambiente, nas contradies de sua situaoatual, as premissas da doena; descreve sua gnese; mas, ao mesmotempo, v no comeo da doena a exploso de uma existncia nova quealtera profundamente o sentido de sua vida, com o risco de amea-la. Dissoso testemunhas os ciumentos que justificam sua desconfiana, suasinterpretaes, suas sistematizaes delirantes com uma gnese minuciosade suas suspeitas e que parecem diluir seus sintomas ao longo de suaexistncia; mas reconhecem que desde tal aventura ou tal ressalto de suapaixo, sua existncia fica inteiramente transformada, sua vida ficaenvenenada e no podem mais suport-la. Vem no seu cime mrbido averdade mais profunda de sua existncia e tambm a infelicidade maisradical. Eles a normalizam referindo-a a toda sua vida anterior; mas dela sedestacam isolando-a como uma desordem brutal. Apreendem a doena comoum destino; ela s termina sua vida rompendo-

    3) Esta unidade paradoxal no pode ser sempre mantida: os elementos

    mrbidos destacam-se ento de seu contexto normal, e, fechando-se sobresi mesmos, constituem um mundo autnomo. Mundo que tem para o doentemuitos sinais da objetividade: promovido e freqentado por forasexteriores cujo mistrio faz com que escapem a qualquer investigao; ele seimpe a evidncia, resiste ao esforo. As alucinaes que o assaltam lhe doa riqueza sensvel do real; o delrio que une os elementos deste assegura-lhe uma coerncia quase racional. Mas a conscincia da doena no sedesvanece nesta quase objetividade; permanece presente, pelo menos demaneira marginal: este mundo de elementos alucinatrios e de delrioscristalizados s faz justapor-se ao mundo real. O doente jamais confunde avoz de seu mdico e as vozes alucinatrias de seus perseguidores, mesmoquando seu mdico no para ele seno um perseguidor. O delrio maisconsistente s aparece, no mximo, ao doente to real quanto o prprioreal; e neste jogo de duas realidades, nesta ambigidade teatral, aconscincia da doena revela-se como conscincia de uma outra realidade .

    Esta oposio ao mundo real, ou melhor, a irredutvel justaposio destesdois mundos reais, o doente est pronto para reconhece-la: um alucinadopergunta a seu interlocutor se ele no ouve, corno ele, as vozes que operseguem; intima-o a render-se a esta evidncia sensvel; mas se lhe oposta uma negao ou uma igno rncia macia dos fatos que invoca, eleacomoda-se bastante bem, e declara que, nestas condies, o nico a ouvi-las. Esta singularidade da experincia no inva lida para ele a certeza que o

  • acompanha; mas ele reconhece, aceitando-o, afirmando-o mesmo, o carterestranho e dolorosamente singular de seu universo; admitindo dois mundos,adaptando-se tanto ao primeiro quanto ao segundo, ele manifesta nofundo de sua conduta, uma conscincia especfica da sua doena.

    4) Finalmente, nas formas ltimas da esquizofrenia e nos estados de

    demncia, o doente absorvido pelo mundo da doena. Apreende,entretanto, o universo que deixou como uma realidade longnqua evelada. Nesta paisagem crepuscular, na qual as experincias mais reais os acontecimentos, as palavras ouvidas, o ambiente tomam um aspectofantasmtico, parece que o doente conserva ainda um sentimento ocenicoda sua doena. Est submerso pelo universo mrbido e tem conscincia disto;e, pelo que se pode supor segundo o relato dos doentes curados, a impressopermanece sempre presente na conscincia do sujeito, tanto que a realidades apreendida disfarada, caricaturada e metamorfoseada, no sentidorestrito do termo, no modo do sonho. Schehaye, que cuidou e curou umajovem esquizofrnica, recolheu as impresses que sua doente experimentarano decorrer de seu episdio patolgico: "ter-se-ia dito, narra ela, queminha percepo do mundo me fazia sentir de um modo mais agudo aestranheza das coisas. No silncio e imensidade, cada objeto delineava-senitidamente, destacado no vazio, no ilimitado, separado dos outros objetos.Por ser sozinho, sem ligao com o que o cercava, ele se punha a existir...Eu me sentia rejeitada pelo mundo, fora da vida, espectadora de um filmecatico que se desenrolava incessantemente ante meus olhos, e do qual noconseguia participar". E um pouco mais adiante, acrescenta: "As pessoas meaparecem como num sonho; no consigo mais distinguir seu carterparticular"(28). A conscincia de doena s ento um sofrimento moralimenso, diante de um mundo reconhecido como tal por referncia implcitaa uma realidade tornada inacessvel.

    A doena mental, quaisquer que sejam suas formas, os graus deobnubilao que comporta, implica sempre numa conscincia da doena; ouniverso mrbido no jamais um absoluto no qual se aboliriam todas asreferncias ao normal; pelo contrrio, a conscincia doente desdobra-sesempre, por si mesma, numa dupla referncia, quer ao normal e aopatolgico, quer ao familiar e ao estranho, seja ainda ao singular e aouniversal, seja, finalmente, a viglia e ao onirismo.

    Mas esta conscincia doente no se resume na conscincia que ela tem da

    sua doena; dirige-se tambm a um mundo patolgico, cujas estruturas

    28 SCHEHAYE. Journal d`une schizophrne, pi 50 e 56.

  • teriam de ser estudadas agora, completando assim a anlise notica pelaanlise noemtica.

    Minkowski estudou as perturbaes nas formas temporais do mundo