Meister Eckhart Os Sermoes Alemaes

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  • Meister Eckhart, Sermes Alemes

    M E I S T E R E C K H A R T

    O S S E R M E S A L E M E S C O M P L E T O S

    Tr a d u o d e M a r c o s B e l t r owww.marcosbeltrao.net

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  • Meister Eckhart, Sermes Alemes

    P R I M E I R O S E R M O

    (quint 57)

    DUM MEDIA SILENTIUM TENERENT OMNIA ET NOX IN SUO CURSOMEDIUM ITER HABERET, ETC.

    (Sap 18:14)

    Hoje, mesmo vivendo dentro do tempo1, celebramos o nascimento eterno no qual Deus Painasce e incessantemente repete este ato de nascer na eternidade, por que este nascimento doqual falamos realizado nesta natureza humana e inserido no tempo.

    Diz Santo Agostinho:Do que adiantaria que este nascimento ocorresse sempre se no fosse para ser

    realizado dentro de mim? Que isto ocorra dentro de mim o que me interessa.Discorramos pois de tal nascimento, de como ele pode ser realizado em ns e como

    ocorre na pessoa virtuosa sempre que Deus Pai fala a sua palavra eterna na alma perfeita.Pois tudo aquilo que falarei aqui para ser entendido do homem purificado e estvel quetrilha os caminhos de Deus; no, claro, do homem natural e sem prtica, pois este esttotalmente distanciado deste nascimento, alm de o ignorar.

    Um ditado dos sbios diz:

    Quando todas as coisas estavam envoltas em silncio, ento surgiu em mim umapalavra secreta, que veio direto do trono real, desde o alto.

    O que se segue deste sermo todo sobre esta Palavra.

    Logo trs coisas ficam nitidamente evidenciadas aqui.

    Primeiramente, em que localidade exata da alma Deus o Pai d o Seu recado, ondeacontece o nascimento, e onde a alma receptiva a tal pois isto somente pode ocorrernaquela parte mais pura, elevada e sutil da alma. A verdade que, se Deus Pai em suaonipotncia pudesse doar alma algo mais nobre e se a alma por sua vez pudesse receberDele algo de mais nobre, ento o Pai teria de adiar o nascimento para a vinda destaexcelncia maior ainda. Portanto a alma onde este nascimento ocorreria deve se manterabsolutamente pura e viver em nobre estilo, por completo dona de si mesma e voltada emsua totalidade para o interior: no saindo a todo instante pelos cinco sentidos para amultiplicidade das criaturas, mas voltada para dentro, recolhida na parte mais pura. Ali seulugar, ela despreza tudo que for menos.

    1. Sermo do dia de Natal.

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    A segunda parte deste sermo aborda a atitude do homem em relao a esteacontecimento, ao recado de Deus, a esta palavra dentro da alma, a este nascimento. Se formais conveniente que o homem coopere para que isto seja efetuado atravs de seu prprioesforo e mrito; se o homem deve possuir uma predisposio mental, arquitetarpensamentos, refletindo na grande sabedoria de Deus, Sua onipotncia, eternidade ou o quemais se possa imaginar de Deus. Se isto o mais favorvel para que o Pai possa vir a nascerna alma ou se a pessoa deve subtrair todos os pensamentos, palavras e aes, bem comotodas as imagens preconcebidas geradas pelo intelecto, mantendo uma atitude receptiva totalpara com a chegada de Deus, como se a pessoa, permanecendo inerte, abrisse caminho emseu ntimo para a ao de Deus. Qual a melhor atitude com respeito a este nascimento?

    Atentem que tudo que eu afirmar em seguida ser corroborado por dados concretos,para que se possa observar universalmente que assim , pois, embora tenha f total nasEscrituras, acho mais fcil constatarem-se os fatos atravs de argumentos palpveis.

    Em primeiro lugar, analisemos as palavras:

    Quando todas as coisas estavam envoltas em silncio, ento surgiu em mim umapalavra secreta.

    Mas, caro fulano de tal, onde que est este silncio e, mais ainda, onde est apalavra secreta?

    Como eu acabei de expor, ela est no lugar mais puro que a alma capaz de alcanar,na parte mais nobre, no cho de fato, na essncia mesma da alma, que sua parte maissecreta. Ali que est o silencioso meio, pois ali criatura alguma jamais chegou; e menosainda imagem alguma jamais penetrou neste lugar, nem tem a alma deste lugar qualquercompreenso; e por isto mesmo que ali ela no est consciente de nenhuma imagem, querseja uma imagem gerada por si mesmo, ou imagem alheia, de alguma outra criatura.

    O que a alma faz, ela o faz com suas foras. O que ela compreende, compreende como intelecto; o que lembra com a memria; se quiser amar, usa a vontade: e assim elatrabalha com suas foras, no com sua essncia.

    Todo ato externo est ligado a algum meio. O poder da viso funciona com os olhos:se assim no fosse, no poderia nem usar a viso nem ver; e assim ocorre tambm com osdemais sentidos. Todo ato externo da alma realizado atravs de algum meio. Mas naessncia da alma, ali no ocorre atividade alguma, pois as foras ali empregadas provm docho do ser.

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    Contudo, neste mesmo cho que se encontra o silencioso meio: ali nada existeseno o repouso e a celebrao deste nascimento, deste ato, no qual Deus Pai fala Suapalavra; pois um fato constatado que este lugar a nada receptivo exceto divina essncia,sem mediao. Ali Deus entra na alma com sua fora total e no parcialmente. Deus entrapois neste cho da alma. Ningum pode tocar este cho da alma, seno Deus apenas.Nenhuma criatura pode penetrar no cho da alma: deve permanecer de fora, nas foras.Desde dentro, a alma se apercebe da imagem atravs da qual a criatura foi absorvida eclassificada. Pois sempre que as foras da alma percebem uma criatura, elas comeam afuncionar e tecem uma reproduo da criatura, em imagem e semelhana, a qual emseguida assimilada pelas foras. assim que estas foras chegam a um conhecimento dacriatura. No h criatura que se aproxime mais da alma do que isso e a alma tambm por suavez no se aproxima jamais de uma criatura, sem antes ter tecido esta imagem dela para simesma. E' atravs da mediao desta imagem presente que a alma se achega s criaturas assinalando-se que a imagem algo que a alma constri com suas prprias foras a partir dosobjetos externos. Quer se trate de uma pedra, um cavalo, um homem, ou o que seja, que eladeseje conhecer, ela produz a imagem daquilo que ela havia j assimilado e desta formaque ela se une ao objeto.

    Mas para o homem receber de tal forma uma imagem, deve ela necessariamente vir defora, atravs dos sentidos. Por conseqncia, nada h que seja to ignoto alma quanto elamesma, pois as imagens entram atravs dos sentidos: logo, dela mesma ela no pode terimagem alguma. Assim, de si mesma ela desconhecida. Por esta razo disse um mestre quede si mesma a alma no pode obter nem criar imagens. Portanto, ela no tem meios de seauto-conhecer; pois se as imagens emanam atravs dos canais dos sentidos, ento delamesma ela no possui imagens. Segue-se que, por falta de mediao, de si mesma ela ignota.

    E deve se saber que por dentro a alma est livre e esvaziada de todo e qualquerintermedirio e imagem eis porque a ela Deus pode se unir livremente sem forma e semsemelhana. Se a pessoa diz que um mestre espiritual qualquer possui fora, no se podeatribuir esta fora que ele qui possua, seno a Deus sem limites. Quanto mais forte e cheiode recursos hbeis o mestre, tanto mais expedito o seu trabalho, e tanto mais se constataa simplicidade com que realiza seu trabalho. O homem necessita de muitos intermediriospara produzir obras externas; muito preparo prvio dos materiais se faz necessrio antes queele execute a obra como estava pensando. Mas o sol em seu poder soberano faz o seutrabalho de verter luz de forma imediata: no mesmo instante em que seu brilho aparece,todos os lugares at os confins da Terra se enchem de luz. Quanto mais elevado for o anjo,tanto menos ele necessita de coisas para seu trabalho, de tanto menos imagens ele necessita:isto se deve ao fato de que ele percebe como unidade tudo aquilo que seus subalternospercebem como sendo mltiplo.

    Mas Deus no necessita sequer de qualquer imagem, tampouco possui Ele qualquerimagem que seja. Sem qualquer semelhana, intermedirio ou imagemDeus agediretamente na alma: naquele cho mesmo do qual falvamos, onde imagem alguma jamaispenetrou, apenas Ele mesmo com seu ser. Isto no h criatura que possa fazer.

    Como Deus Pai faz nascer Seu Filho na almacomo criatura, imagem ousemelhana?

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    No, de forma alguma, mas assim mesmo como Ele o faz nascer na eternidade assim, sem tirar nem por.

    Bem, mas neste caso, como Ele O faz nascer?

    Vejam: Deus Pai tem de Si mesmo um conhecimento to penetrante e irretocvel, toprofundo, Dele de Si mesmo, que no feito atravs de imagens. assim que Deus Pai d aluz seu Filho na unidade da natureza divina. desta forma e apenas desta forma, note-sebem, que Deus Pai d a luz o Filho no cho e essncia da almae assim se une Deus alma.Pois se houvesse intermediao de qualquer imagem que fosse, no haveria unio legtimae nesta unio realizada que reside toda a felicidade da alma.

    Algum poderia levantar a questo de que nada h na alma seno imagens. No istoque ocorre, de forma alguma! Se assim fosse a alma no poderia jamais se tornar abenoada,pois Deus no geraria jamais criatura alguma da qual se pudesse receber a felicidade inefvel;porquanto, se tal ocorresse, no seria Deus a bno mais elevada e o objetivo final, quandoo contrrio o que ocorre: a natureza de Deus ser esta bno, e sua absoluta vontadeser o alfa e o mega de todas as coisas. Nenhuma criatura pode ser a felicidade de umapessoa, nem a perfeio desta pessoa aqui na terra; pois o que nesta vida a perfeioouseja, o somatrio total das boas qualidades da pessoa, seguida pela perfeio na vida depoisdesta. Portanto temos que nos postar e permanecer postados na essncia e no cho: e alique Deus nos tocar com sua essncia simples, sem a interveno de qualquer imagem.Nenhuma imagem representa e aponta para si mesma. Ela sempre imagem daquilo que elarepresenta. E j que no temos imagem alguma, exceto de coisas externas a ns (que soabsorvidas pelos sentidos, e sempre ficam indicando aquilo de que imagem) impossvelatingir a felicidade atravs de qualquer imagem que seja. por esta razo que deve haver umsilncio e uma quietao e atravs deste meio que o Pai vir a ser conhecido e seexpressar, dando luz seu Filho e realizando a obra que isenta de imagens.

    O segundo ponto importante a ser levado em conta: Qual parte o homem tem queaplicar de si mesmo para chegar a merecer e ganhar a consumao deste nascimento dentrode si?

    Ser melhor fazer algo ativamente para isto, como imaginar e sonhar com Deus; ouser melhor ficar em quietao e silncio, e deixar que, em vez de imaginar, que fale Deus echegue a agir atravs de si, ou seja uma atitude receptiva espera de Deus?

    O que vou dizer agora refere-se apenas queles que j se estabilizaram em algum graude atitude correta; que praticaram e assimilaram virtudes, e que estas j se tornaram coisanatural neles, sem que sequer eles estejam cientes de tal. E que acima de tudo levem dignavida, permanecendo nos elevados ensinamentos de Nosso Senhor Jesus Cristo. Devemento estar plenamente cnscios de que o excelso ensinamento transmitido nesta vida osilncioque abre espao, para Deus fazer seu trabalho interno na alma. Apenas quandotodas as foras forem retradas de todos os seus trabalhos e imagens que a palavra poderento ser falada. Foi por isto que ele disse:

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    Quando todas as coisas estavam envoltas em silncio, ento surgiu em mim umapalavra secreta.

    E assim, quanto mais a pessoa for capaz de recolher suas foras para uma unidade ese olvidar das coisas e das imagens das coisas produzidas; e quanto mais a pessoa puder seabstrair das criaturas e suas imagenstanto mais achegado estar a isso e tanto maispreparado para receb-lo. Se de repente voc estivesse inconsciente de todas as coisas, entoqui voc poderia entrar no esquecimento de seu corpo, como fez So Paulo quando disse:

    Se estou no corpo no sei, tampouco sei se estou fora dele: S Deus sabe.(2Cor.12:2)

    O que ocorreu aqui foi que o esprito absorveu to completamente as foras, que seesqueceu do corpo: a memria no mais funcionava, nem a compreenso, nem os sentidos,nem as foras que, funcionando, davam vida ao corpo; e o calor vital e corporal foramsuspensos, de tal forma que o corpo no padeceu durante os trs dias em que ele nem sealimentou nem bebeu. O mesmo ocorreu com Moiss ao jejuar na montanha durantequarenta dias, sem que se desgastasse de forma alguma com isto. Pois no ltimo dia ele seencontrava to saudvel quanto no primeiro. assim que o homem deve abandonar seussentidos, voltar e dirigir suas foras para o interior e esquecer de si mesmo e de todas ascoisas.

    Uma vez um mestre2 falou assim sua alma:

    Retira-te do sorvedouro das atividades externas, fuja e guarda-te da confuso dospensamentos, pois estas coisas s trazem balbrdia e discrdia.

    Logo, para que Deus fale sua palavra na alma, esta tem que estar em descanso e empaz e apenas ento Ele falar Sua palavra, ou seja: Ele mesmo na alma, no como umaimagem, mas Ele em pessoa!

    Dionsio3 disse:

    Deus no possui imagem ou semelhana de Si mesmo, sendo como intrinsecamentetodo bondade, verdade e ser.

    Deus realiza todos os Seus trabalhos num timo, quer seja em Si mesmo ou fora de Simesmo. No imaginem, nem por um s instante sequer, que Deus, ao fazer o cu, a terra etodas as coisas, fez uma coisa num dia e outra no dia seguinte. Moiss explicou assim, masele sabia que de fato tal no ocorria: ele falou assim para o benefcio daqueles que de outraforma no poderiam conceber o fato. O que Deus fez foi o seguinte: Ele quis, ele falou, e ascoisas aconteceram! Deus fez o Seu trabalho sem intermedirios e sem imagens. E quantomais liberto voc estiver de imagens, tanto mais pronto voc estar para o trabalho internode Deus; e quanto mais voltado para dentro e esquecido de si mesmo voc estiver, tantomais aproximado disto voc estar.

    2. Anselmo de Canterbury.3. Dionsio, o Areopagita.

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    Dionsio4 encorajava seu discpulo Timteo neste sentido, ao dizer:

    Caro Amigo Timteo, voe voc com uma mente sem preocupaes acima de simesmo e de todas as suas foras, acima, muito acima de todo o raciocnio e discriminaohumana, acima de trabalhos e de todas as formas de existncia, bem profundo no segredo eescurido quieta, para que voc possa se inteirar do Deus desconhecido e super divino.

    Deve haver uma retirada de todas as coisas. Deus desdenha agir atravs de merasimagens.

    Algum poderia nesta altura perguntar:

    O que Deus obra no cho e na essncia?

    Isto eu no posso saber porque as foras da minha alma so capazes de receber apenasimagens; estas foras conhecem e atm-se a cada coisa com sua imagem adequada. Elas noso capazes de reconhecer um cavalo ao ser mostrada a imagem de um homem; e j que ascoisas vm de fora, aquele conhecimento est oculto de minha almao que altamentebenfico.

    Este no-saber torna-a imaginativa e a conduz a uma busca audaz, pois se ela percebeclaramente o que , ela no reconhece como nem o que seja. Sempre que o homem se inteirada causa das coisas, ele rapidamente delas se cansa e procura algo mais variado. Semprequerendo conhecer, sempre inconstante. desta forma que este saber sem saber mantm aalma constante e a estimula em sua busca.

    Sobre isto um velho sbio afirmou:

    No meio da noite, quando tudo estava silente, uma palavra oculta me foi passada.Veio a mim como um ladro s escondidas.(Sap.18:14,15)

    Porque ele menciona uma palavra, se ela estava oculta? A funo de uma palavra revelar o que est oculto. Ela se revelou a mim e brilhou, revelando-me algo e tornandoDeus conhecido de mim: por esta razo ele mencionou uma Palavra. Mas do que se tratouisso se queda oculto de mim. Foi desta forma que ela veio, sorrateira em uma calmamurmurante e se revelou. Logo, porque est oculta que se h de busc-la. Ela brilhou econtudo estava oculta: ns devemos suspirar e anelar por ouvir tal palavra. So Paulo nosaconselha a persegui-la at seu vislumbre e que no nos detenhamos at que a termosagarrado. Aps t-la agarrado no terceiro cu, onde Deus se fez conhecido e onde elepresenciou todas aquelas coisas, ao voltar ele de nada havia se esquecido; mas estava toprofundamente no seu cho, que seu intelecto no podia abarcar e compreender isto: estavaoculto dele. Logo, ele teve que procurar e perseguir dentro dele, e no fora dele mesmo. Esttudo dentro, nada fora, mas est completamente dentro. Consciente disto, ele afirmou:

    4. De mystica theologia 1. Ver a obra do sculo 14, Denis Hid Divinity, no A Nuvem do No saber e outros Tratados por

    um Mstico Ingls do sculo 14.

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    Estou seguro de que nem a morte nem qualquer sofrimento pode me separar do queencontrei dentro de mim.(Rom.8:38-39).

    Um mestre pago disse-o bem, ao constatar de certa feita:

    Estou ciente de que algo brilha em minha compreenso: posso nitidamente discernirde que se trata, mas o que istono posso saber. E contudo, se o pudesse possuir, saberiatudo que h para ser sabido.

    Ao que o outro mestre retorquiu:

    S corajoso em tua busca. Pois se puderes segurar isto, ters o somatrio total doque bom e de quebra tambm a vida eterna!

    Santo Agostinho disse algo parecido:

    Percebo que algo brilha e fulgura diante de minha alma: se estivesse plenamenteaperfeioado e estabilizado, por certo seria a vida eterna!

    Isto algo que se revela, mas ao mesmo tempo se oculta; vem, mas como um ladropara tudo surripiar e fazer tabula rasa do que existe na alma. Esta coisa que aparece tem aclara inteno de chamar a alma de volta para si mesma, e em seguida roubar e tirar a almade si mesma.

    Sobre isto, comenta o profeta:

    Senhor, tira deles o esprito e d-lhes o teu esprito em troca.(Ps.103:29-30).

    Isto tambm foi o que a alma saturada de amor quis dizer:

    Minha alma se dissolveu e desmanchou quando o Amor falou a sua palavra.(Cant.5:6) Quando ele entrou, eu tive que me retirar.

    Cristo quis dizer isto quando falou:

    Quem tudo abandonar por minha causa ser recompensado a cem por um, e quemquiser possuir isto deve negar a si mesmo e a todas as coisas; e quem deseja me servir queme siga e no busque mais suas coisas.

    Mas agora algum poderia dizer:

    Mas meu caro senhor, voc quer inverter a ordem natural das coisas e ir contra suanatureza! a natureza da alma absorver as coisas atravs dos sentidos e formar imagens.Para que contrariar esta ordem natural das coisas?

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    No! Mas sabe l voc que nobreza Deus conferiu natureza humana, aindatotalmente desconhecida e no revelada? Pois quem se atreveu a tentar descrever a nobrezada alma no foi mais alm do que os levaram suas inteligncias naturais; e eles no sonharamjamais entrar em seu prprio cho, de tal modo que de fato eles nada conhecem.

    Foi o que o profeta disse:

    Em silncio eu me sentarei, e ouvirei o que Deus me dir.(PS.84.9).

    Por ser de tal forma secreta, esta palavra vem na noite e na escurido.

    So Joo disse:

    A luz brilhou na escurido e tomou seu lugar de direito, e tantos quantos areceberam se tornaram com toda autoridade filhos de Deus; a estes lhes foi dado o poder dese tornarem filhos de Deus.(Joo 1:5,11-12).

    Tomem bem nota de como se usa esta palavra secreta e esta escurido. O filho do PaiCeleste no nasce isolado nesta escurido, que Sua caracterstica: voc tambm pode nascercomo filho do mesmo Pai celestial e a voc tambm ele encher de fora. Vejam como enorme a utilizao disto! A despeito de todo o conhecimento dos mestres, obtidos por seusintelectos e compreenses, ou o que eles chegaro a obter at o dia do Juzo Final, eles notiveram qualquer idia que fosse deste conhecimento e deste cho. Apesar de poderemrotul-lo de loucuraum no-saber, h contudo mais seiva aqui do que em todo saber ecompreenso fora disto, pois este no-saber que lhe atrai para fora de todas as coisasrestritas, assim como de voc mesmo, inclusive.

    Foi o que Cristo disse:

    Quem no negar a si mesmo, e no deixar pai e me, e deles no se desapegarcompletamente, de mim no digno.(Matt.10:37)

    Como se estivesse dizendo: Quem no se desligar de todas as criaturas externas nopode nem ser concebido neste nascimento divino nem nascer. Mas, subtraindo-se de vocmesmo, e de tudo que for externo, este desapego lhe proporcionar isto. E a bem dizer, edisto estou seguro, quem estiver estabelecido nisto no pode jamais se desligar de Deus. Eleno pode de forma alguma cometer um pecado mortal. A ele seria prefervel sofrer a mortemais horrenda, como os santos fizeram antes dele, do que perpetrar o menor dos pecadosmortais. Alm disto, eu afirmo que tais pessoas no por vontade prpria cometer nem queseja apenas um pecado venial, eles mesmos ou em relao a outros, se o puderem evitar. Toprofundamente esto eles estabelecidos e atrados a isto, eles no podem se voltar a qualqueroutro caminho que seja: para este caminho esto voltadas todas as suas foras, sentidos eenergia.

    Possa Deus, que nasceu de novo como homem, assistir-nos neste nascimento,ajudando-nos eternamente, a ns, fracos homens, a nascermos de novo Nele como Deus.

    Amm.

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    S E G U N D O S E R M O

    (Quint 58)

    UBI EST QUI NATUS EST REX JUDAEORUM?

    (Mat. 2:2)

    Prestem detida ateno ao local onde ocorre este nascimento: Onde est aquele quenasceu? Tantas vezes eu j disse isto antes, e agora o direi novamente, isto : que estenascimento ocorre na alma justamente como ele ocorre na eternidade, exatamente da mesmaforma, pois este nascimento se d na essncia e no cho da alma.

    Surgem neste momento certas dvidas.

    Primeiro, j que Deus em tudo se encontra como inteligncia, e mais est Ele nascoisas do que as prprias coisas esto em si mesmas, e de uma maneira mais natural; etambm sabendo-se que onde Deus est, Ele est ali trabalhando, conhecendo-se a Simesmo, e falando a Sua palavra por que ento estar a alma mais preparada para estadivina operao do que qualquer outra criatura na qual Deus tambm esteja? Vou explicaristo agora.

    Deus se encontra em todas as coisas como ser, como ao e como poder. Masfecundo Ele o apenas na alma; pois, mesmo admitindo que toda a criatura seja um vestgiode Deus, a alma a imagem natural de Deus. Esta imagem deve se tornar melhorada eaperfeioada, quando este nascimento ocorre. Somente a alma receptiva a este nascimento,e nenhuma outra criatura. Realmente uma tal perfeio, como esta que realizada na alma,quer venha da luz divina indivisa, ou da graa ou bem-aventurana, deve necessariamenteentrar na alma por intermdio deste nascimento, e de nenhuma outra forma. Aguardemoseste nascimento ocorrer dentro de ns, e tudo que for bom, for felicidade, conforto everdade experimentaremos. Caso contrrio, teremos que passar sem tudo aquilo que bem e bem-aventurana. Em realizando isto, tudo que vier a acontecer ento nos trarapenas puro ser e estabilidade; mas tudo aquilo que buscarmos, ou a que nos apegarmos foradisto, perecer seja l como for, tudo perecer. Apenas isto confere o ser o resto todoperece. Mas neste nascimento voc partilhar do influxo divino, e todas as suas ddivas. Istono pode vir das criaturas, nas quais a imagem de Deus no se encontra, pois que a imagemda alma est ligada de forma especial a este nascimento eterno, que ocorre na alma,proveniente do Pai mesmo, no cho da alma e em seus mais ntimos recessos, e onde jamaisqualquer imagem penetrou, ou fora da alma.

    A segunda pergunta que surge agora : Visto que este nascimento, que acontece nocho e essncia da alma, ocorre tanto para um pecador quanto para um santo, ento quebenefcios isto poderia me trazer? Se o cho da natureza idntico em ambos de fato, atmesmo aqueles que se encontram no inferno retm intactas a nobreza de suas naturezas portoda a eternidade.

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    Eis a resposta.

    E' caracterstica deste nascimento que, sempre que ele venha, traga luz nova emabundncia para a alma. Sempre que ele ocorre, uma grande luz se faz na alma, pois anatureza do bem difundir-se onde estiver. Neste nascimento Deus jorra para dentro daalma uma tal superfluidade de luz, que este acontecimento envolve tambm o homem defora, suas foras e o exterior. Foi o que aconteceu com Paulo, quando, na metade de seutrajeto, Deus lhe tocou com Sua luz e lhe falou. Um reflexo desta luz cintilou externamente,e seus companheiros viram Paulo banhado em luz, como um dos abenoados. O excesso deluz no cho da alma sobe pelo corpo, que se v cheio de seu fulgor. No h pecador quepossa receber tal; nem ele digno disto estando cheio de pecados e maldades, o que conhecido como obscuridade. Logo, diz-se:

    A escurido nem pode receber nem compreender a luz.(Joo 1:5)

    Tal ocorre porque os caminhos pelos quais a luz poderia ter fludo se encontramvedados e obstrudos pela obscuridade e ignorncia; pois a luz e a escurido no podemcoexistir, pelo mesmo motivo que no o podem, Deus e as criaturas: se Deus quiser entrar,ento devem sair as criaturas. E' possvel ao homem estar ciente desta luz. Voltando-se paraDeus, logo uma luz se faz sentir dentro dele, que lhe permite compreender quais aes fazere quais outras deixar de fazer, com uma certeira orientao sobre as coisas que ele antesignorava.

    Onde voc ficou sabendo disto e de que forma?

    Vejam bem. Com muita freqncia nosso corao deseja algo que vai contra o mundo.Como poderia isto ocorrer, seno por influncia desta luz? E' to interessante, que logocansamos das demais coisas que no sejam de Deus ou estejam em Deus. Ela nos arrastapara o bem, apesar de sua origem ser desconhecida. Esta inclinao interior no se deveabsolutamente a criaturas ou aos desejos delas, pois o que as criaturas fazem ou influenciamvem sempre da parte de fora. Mas, atravs deste trabalho, o que muda apenas o cho daalma; e quanto mais completamente voc se abandonar tanto mais luz, verdade ediscernimento voc encontrar. Logo, sempre que o homem se perde, porque se afastoudisto, e conseqentemente se apega demais a coisas externas. E' Santo Agostinho quem diz,que muitos buscaram a luz e a verdade, mas justamente do lado de fora, onde elas nopodem ser encontradas. Finalmente eles acabam se afastando tanto, que j lhes impossvelvoltar, e achar o Caminho e a casa. No podem pois achar a Verdade, porquanto esta spode ser encontrada do lado de dentro, e no do lado de fora. Aquele que veria a luz para setornar consciente da Verdade, em primeiro lugar deve observar e tomar conscincia destenascimento interno, no cho. Ento todas as suas foras so iluminadas, bem como ohomem externo. Pois logo que Deus se move internamente junto com a Verdade,simultaneamente Sua luz se manifesta nas foras, e este homem fica conhecendo mais doque qualquer meio poderia vir a lhe informar. Como diz o profeta:

    Eu obtive uma compreenso maior do que a de todos aqueles que me ensinaram.

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    Logo, como esta luz no pode brilhar nos pecadores, segue-se que este nascimentono pode de forma alguma ocorrer neles. Tal nascimento no se coaduna com a escuridodo pecado, embora o nascimento ocorra no nas foras, mas na essncia, no cho da alma.

    Neste momento, poder-se-ia indagar: J que Deus Pai realiza o nascimento somente naessncia e no cho da alma, e no nas foras, que importa s foras o que estejaacontecendo? Como estas foras poderiam auxiliar somente por sua inatividade e descanso?De que adiantaria, j que este nascimento no ocorre nas foras? Boa pergunta. Ouamatentamente explicao.

    Toda a criatura funciona para algum fim. O fim sempre o primeiro na inteno, maso ltimo na execuo. De forma semelhante, Deus em todas as suas obras tem um muitoelevado fim em vista, ou seja, Ele mesmo: o de trazer a alma junto com todas as suas foraspara justo este fim Ele mesmo. Para tal fim todas as obras de Deus so executadas; e poreste motivo, tambm o Pai faz nascer Seu Filho na alma, para que todas as foras da almaconfluam em direo a tal. Ele se queda esperando por tudo aquilo que a alma contm, atodos convidando para a festa em Sua corte. Mas a alma se encontra dispersa no exteriorentre suas foras e dissipada na ao de cada uma delas: a fora da viso no olho, a fora daaudio no ouvido, a fora gustativa no paladar de tal forma que sua faculdade de operarinternamente fica debilitada, pois uma fora to fracionada assim fica enfraquecida. Logo,para que seu trabalho interno seja eficaz, ela deve concentrar para dentro todas as suasforas, e focaliz-las da diversidade das coisas para uma s atividade interna.

    Santo Agostinho faz notar que a alma est muito mais onde ela quer estar, do queonde ela confere vida ao corpo. Havia, por exemplo, um certo mestre pago,5 que sededicava a uma arte, a matemtica, na qual ele empenhava todas as suas foras. Um dia ele seencontrava sentado ao lado do fogo, calculando e praticando sua arte, quando se achegouum homem que, desembainhando a espada, disse-lhe sem saber quem era este Mestre:Diga-me seu nome rpido, se no eu o mato! O Mestre estava por demais absorto parasequer ver, ou ouvir seu interlocutor, ou tentar entender o que ele havia vociferado; ele nadadisse, nem mesmo disse meu nome fulano de tal. E assim seu algoz, tendo bradadorepetidas vezes a pergunta sem obter resposta, decepou-lhe a cabea. E isto este Mestre fezpara dominar uma mera cincia natural. Quanto mais ns ento, devemos nos retirar detodas as coisas, para nos concentrarmos em aprender e conhecer a verdade infinita, eterna eno-criada! Para tal fim, devemos reunir todas as nossas foras, todos os nossos sentidos,nossa mente e memria: e dirigi-los todos para o cho, onde est oculto nosso tesouro. Maspara que tal ocorra, todos os outros nossos trabalhos devem ser tambm abandonados devemos chegar at o no-saber, se quisermos chegar at ao fundo da questo.

    Surge a pergunta: No seria talvez mais proveitoso deixar cada fora ligada a suaoperao, nem uma delas interferindo na outra ao operar, nem Deus em suas operaesindividuais? Ser que no haveria uma forma de conhecer a criatura, que no apresentasseobstculos, assim como Deus conhece todas as coisas sem obstculos, e assim como osrealizados no cu? Esta sem dvida uma excelente pergunta tambm. Segue-se aexplicao.

    5. Arquimedes, que dizem ter sido morto por um soldado romano enquanto desenhava figuras geomtricas no

    cho de seu prprio jardim em Siracusa (212 B.C.)

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    Os realizados vem a Deus em uma s imagem, e nesta imagem eles percebem todasas coisas. Assim tambm Deus se v a si mesmo, percebendo todas as coisas em si mesmo.Ele no precisa voltar-se de uma coisa para outra, como ns fazemos. Suponhamos por ummomento, para tomarmos um exemplo, que pela vida afora ns tivssemos ante ns umespelho, com a propriedade de nos mostrar todas as coisas de uma s vez, e no qual tudoreconhecssemos em uma imagem nica; ento, neste caso, nem a ao nem oconhecimento nos causaria qualquer obstculo. Mas ns temos que ficar nos voltando deuma coisa para outra, e assim somente podemos nos concentrar em uma coisa de cada vez.Pois a alma se encontra to firmemente ancorada s foras, que ela necessita fluir junto comelas onde quer que elas vo; por que, em qualquer situao que se apresente s foras, a almadeve estar presente e atenta, ou estas foras no poderiam funcionar de forma alguma. Se aalma estiver dispersa por sua ateno a coisas externas, isto a enfraquecer em seu trabalhointerior. Por que, para realizar este nascimento, Deus necessita de uma alma despossuda,livre e desimpedida, que nada contenha seno Ele mesmo, e que nada e ningum veja senoEle mesmo.

    Quanto a isto, diz o Cristo:

    Quem amar outra coisa alm de mim como pai, me ou outras coisas, este no digno de mim. Eu no vim terra para trazer a paz, mas a espada, que corta fora todas ascoisas para te separar de irm, irmo, me, filho e amigo, que nada mais so do que teusinimigos.(Matt.10-4:36) (Cf:Matt.19:28)

    Tudo aquilo que te familiar teu inimigo. Se o teu olho quisesse ver todas as coisas,teu ouvido tudo ouvir, e teu corao tudo lembrar, ento realmente tua alma estaria dispersaem toda esta multiplicidade de coisas externas.

    Por isto um mestre disse:

    Para realizar uma ao interior o homem deve se concentrar com todas as suas forasem um canto da alma, onde, ocultando-se de todas as imagens e formas, ele possa trabalhar.

    Este o lugar onde se deve chegar a um auto-esquecimento, a um no-saber. Devehaver uma calma e um silncio para que esta Palavra possa ser ouvida. Ele no pode servir aesta Palavra melhor, que na calma e no silncio: ali que a podemos ouvir, e ali tambm que a compreenderemos adequadamente, no no-saber. quele que nada sabe ela aparece, ese revela.

    Mais uma considerao pode ser levantada. Poderiam dizer: Caro Senhor, voccoloca toda a nossa salvao na ignorncia. Isto me parece uma coisa errada. Deus fez ohomem para que este conhecesse, como dizia o profeta: ' Senhor, faa-os conhecer!'(Tob.13-4). Onde existe a ignorncia existe algo a ser corrigido, algo que no est correto, eo homem fica embrutecido, um macaco, um tolo, e assim estar enquanto ignorante for.Ahsim, mas ocorre que aqui ns devemos chegar a um conhecimento transformado: este no-saber no provm da ignorncia; muito pelo contrrio, do saber que devemos extrair esteno-saber. Se assim fizermos, conheceremos com o conhecimento divino, e nosso no-saberse enobrecer, e ficar adornado com o conhecimento sobrenatural. E' atravs de nossa

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  • Meister Eckhart, Sermes Alemes

    passividade, neste ponto, que ficaremos mais perfeitos do que ficaramos se ativosestivessemos. Por isto mesmo, um certo mestre declarou que a audio mais nobre do quea viso, pois ns absorvemos mais sabedoria ouvindo, do que vendo, e atravs disto vivemostanto mais sabiamente. Havia um mestre pago que estava s portas da morte. Seusdiscpulos debatiam diante dele sobre alguma arte requintada; falecendo como estava, eleergueu a cabea para ouvir, dizendo: Ah, como gostaria de me inteirar deste tipo de arteagora, para que nele pudesse sempre me regozijar! Ouvir conduz para o lado de dentro, masa viso extroverte. E' por sua prpria natureza que a viso provoca isto. Logo, na vida eternamuito mais nos alegraremos pela fora da audio do que por aquela da viso. Pois o ato deouvir a Palavra eterna est dentro de mim, mas o ato de ver sai de mim: ouvindo eu mequedo passivo, enquanto que vendo eu estou ativo.

    Mas a nossa felicidade no reside na atividade, mas na nossa passividade a Deus. Poisda mesma forma que Deus melhor do que as criaturas, assim o trabalho de Deus superiorao meu. Foi calcado em Seu amor incomensurvel, que Deus erigiu nossa felicidade nosofrimento, pois ns aceitamos mais do que agimos, e muito mais recebemos do que damos;e a cada presente recebido, este nos prepara para outros recebermos ainda maiores; e cadapresente divino alarga mais nossa receptividade e a vontade de receber algo maior ainda emais elevado. Por esta razo alguns mestres assinalam, que neste aspecto a alma igual aDeus. Pois assim como Deus sem limites em doar, assim a alma sem limites em receber.E assim como Deus onipotente para a ao, assim a alma tambm no menos profundaem sofrer, e desta forma ela transformada com Deus e em Deus. Deus deve agir, e a almadeve sofrer. Ele deve se auto conhecer nela, ela deve conhecer atravs do Seu conhecimentoe amar atravs do Seu amor, e assim ela estar mais com o que Dele, do que com o que dela, e sua felicidade depender mais de Suas aes, do que das dela prpria.

    Os discpulos de So Dionsio lhe perguntaram porque Timteo os superava a todosem perfeio. Dionsio retrucou: Timteo um homem que sofre Deus. Quem sabe distosupera todos os outros.

    E' desta forma que o teu no-saber no um erro, mas tua principal perfeio; e o teusofrimento, tua atividade mais elevada. E' assim que deves colocar de lado todas as tuasaes e trazer ao silncio tuas faculdades, se realmente desejares que este nascimento venha aocorrer em ti. Se quiseres encontrar este Rei recm-nascido, deves deixar e abandonar tudomais com que te deparares.

    Possamos ns deixar e abandonar tudo que for desfavorvel a este Rei recm-nascido,para que Ele nos possa ajudar a nos tornarmos uma criana humana, a fim de que nostornemos filhos de Deus.

    Amm.

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  • Meister Eckhart, Sermes Alemes

    T E R C E I R O S E R M O

    VIDETE QUALEM CHARITATEM DEDIT NOBIS PATER, UT FILII DEINOMINEMUR ET SIMUS

    (1 Joo 3:1)

    Devemos saber que a raiz destas coisas s uma: conhecer Deus, e ser conhecido porDeus, ver Deus, e ser visto por Deus. Vendo e conhecendo Deus, vemos e conhecemos queEle nos faz ver e conhecer. como o ar luminoso, que no diferente da luz, pois seencontra luminoso justamente por ali estar a luz. Da mesma forma conhecemos sendoconhecidos, e porque Ele nos faz conhecer. Logo, o Cristo diz: Novamente Mevereis(Joo, 16:26). Quer dizer, vendo, voc Me conhecer e, em seguida, Teu corao serejubilar, isto , na viso e conhecimento de Mim, e Ningum te roubar tuaalegria(Joo, 16:22).

    So Joo diz: Veja que grande amor o Pai nos evidencia, que somos chamados e defato somos, filhos de Deus(1 Joo, 3:1). Eu digo tambm que assim como um homem nopode ser sbio sem que tenha sabedoria, tambm ele no pode ser filho sem a natureza filialdaquele que Filho de Deus como no h sbio que no tenha sabedoria. Logo, a pessoas Filho de Deus se possuir tudo aquilo que Deus e Seu Filho possuem. Mas isto nomomento est oculto de ns. Em seguida, ns temos: Bem amado, ns somos Filhos deDeus. E em que consiste nosso conhecimento? Foi acrescentado aqui, E ns seremos omesmo que Ele(1 Joo, 3:2), isto significando: o mesmo ser, tanto experimentando, quantocompreendendo tudo que Ele , quando vemos Deus. Logo, Deus no poderia ter mefeito filho de Deus, se em mim no houvesse a natureza filial de Deus, nem poderia Deus terme feito sbio, se eu j no tivesse sabedoria. Como somos filhos de Deus? Ainda nosabemos.Ainda no nos foi revelado: tudo que podemos saber que como Ele seremos.Existem certas coisas que velam este conhecimento de nossas almas, e as ocultam de ns.

    A alma tem algo em si, uma fagulha do intelecto, que imperecvel: e nesta fagulha,como oposto mais excelso do intelecto, ns colocamos uma imagemda alma. Mas tambmexiste em nossas almas um conhecimento dirigido para coisas externas, a percepo sensvele racional, que opera atravs de imagens e com palavras, e que nos veda o conhecimentodesta fagulha do intelecto. Como ento somos filhos de Deus? Partilhando Sua natureza.Mas, para chegarmos ao entendimento disto necessrio distinguir entre a compreensointerna e externa. A compreenso interna nos vem intelectualmente, atravs de umconhecimento da natureza de nossa alma. E, contudo, isto no a essncia da alma, mas estenraizado ali, como a vida da alma. Ao dizermos que a compreenso a vida da alma,queremos dizer sua vida intelectiva, e nesta vida que o homem nasce como filho de Deus, ena vida externa. Esta compreenso se situa alm do tempo, sem um lugar, sem um aqui eagora. Nesta vida tudo uno e comum: todas as coisas esto em todas, e todas se encontramem uma s.

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  • Meister Eckhart, Sermes Alemes

    Eu vou ilustrar isto atravs de um exemplo. No corpo, todos seus membros estounificados, de tal forma que o olho pertence ao p, e o p pertence ao olho. Se pudesse o pfalar, diria que o olho, situado na cabea, pertence mais a si mesmo do que se estivessesituado no prprio p e o olho diria o mesmo do p. Da mesma forma, toda graa que Mariatem, pertence mais a um anjo, e est localizada mais nele prprio, do que se fosse delemesmo, ou dos santos; a graa de Maria mais deste anjo, e ele pode dela fruir mais, que seestivesse em si prprio.

    Mas sei que esta interpretao se encontra um pouco grosseira e carnal, pois feita deimagens externas. Vou mostr-la num sentido mais sutil. Eu afirmo que, no reino celeste,tudo est em tudo, e tudo ali uno, e ali tudo nos pertence. A graa de Nossa Senhorapertence a mim (se eu estivesse nesse reino), no como transbordando de Maria, mas dentrode mim mesmo, como se oriunda de mim, e no de fonte externa. Neste reino, o que umpossui, o outro tambm possui, no como coisa alheia, mas prpria, como a graa que emalgum se encontra, tambm no outro se encontra, como se do outro fosse. Assim seencontra o esprito no esprito. Por isto digo que eu no posso ser filho de Deus, a menosque tenha natureza idntica ao filho de Deus: possuindo esta natureza idntica nos tornaaquilo que Ele , e ns O vemos como Ele : Deus.Mas ainda no apareceu ante a ns oque somos. Neste sentido, pois, no uma questo de semelhana ou de diferena, mas deidentidade exata, em essncia e substncia e natureza, como Ele em Si mesmo. Mas istoNo est ainda revelado: se revelar e aparecer Quando O virmos como Ele : Deus.Deus se torna conhecido de ns em Seu ser, e em Seu conhecimento, e este Seu se tornarconhecido idntico ao meu conhecer: desta forma Seu conhecer meu assim como o queo mestre ensina, o mesmo que discpulo aprende. E j que Seu conhecimento meu, e queSua substncia Seu conhecimento, Sua natureza e Sua essncia, segue-se que Sua essncia,Sua substncia e Sua natureza so apropriadas por mim. E se Sua substncia, Seuconhecimento e Sua natureza so minhas, ento eu sou o Filho de Deus.Vejam, irmos,com que amor Deus nos amou, que somos chamados e somos de fato os Filhos de Deus!Notem como somos os Filhos de Deus: tendo exatamente a mesma essncia que o Filhotem.Como a pessoa pode ser Filho de Deus, ou como se tornar consciente disto, j queDeus no parecido a ningum?

    Com efeito, isto a pura verdade, pois como Isaas disse: Com quem fizeste que Elese parecesse, ou qual imagem Lhe outorgaste? (Is. 40-18). J que a natureza de Deus comningum se parecer, temos que nos tornar nada, para entrarmos na mesma natureza que Ele. Logo, quando eu consigo me estabelecer no nada, e o nada em mim, estirpando e jogandofora aquilo que em mim se encontra, ento eu posso passar ao ser nu de Deus, que , aomesmo tempo, o ser nu do esprito. Tudo aquilo que cheira a semelhana deve sereliminado, para que eu possa ser transplantado para Deus e com Ele me unificar: uma ssubstncia, um s ser, uma natureza e o filho de Deus. Uma vez tendo isto se passado, nadaexiste de oculto em Deus, que no seja meu, e que no se encontre revelado. Ento eu vouser sbio e poderoso, e tudo mais que Ele , e uma s coisa idntica com Ele. Ento Sion setornar de fato o ato de ver e o verdadeiro Israel, um homem que v a Deus e do qual nadaexiste na natureza de Deus, que lhe esteja oculto. Ento o homem fica direcionado porDeus. Mas para que nada esteja oculto em Deus, que no seja revelado a mim, nada deveaparecer em mim semelhantemente, ou seja, nenhuma imagem deve aparecer, pois nenhumaimagem nos pode revelar a essncia de Deus, ou Sua natureza. Se qualquer imagem ousemelhana permanecer em ns, no seremos jamais unos com Deus. Para nos unificar a

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    Deus nada deve existir em ns de imaginrio, ou gerador de imagens, para que em ns nadafique coberto, que no seja descoberto ou jogado fora.

    Observem a natureza do defeito. Ele advm do nada. Desta forma, aquilo que de nadaveio, deve ser retirado da alma: pois enquanto existir em ns tal defeito, ainda noconseguiremos ser Filhos de Deus. A pessoa fica se lamentando e triste, somente por causada deficincia. Logo para que a pessoa se torne Filho de Deus, tudo isto deve ser expulso eremovido da alma, para que no mais exista lamentao e tristeza. A pessoa no feita depedra ou de madeira, e assim tudo aquilo que for deficincia deve ser evitado. No seremoscomo Ele, at que este nada seja expulso, para que nos tornemos tudo no tudo, da mesmaforma que Deus tudo no tudo.

    A pessoa experimenta um duplo nascimento: um que para o mundo, e outro que para fora do mundo, para Deus, espiritual. Se quisermos saber se nossa criana nasceu, e sese encontra nu, se de fato se tornou Filho de Deus, ento se nos lamentarmos no coraopelo que seja, at mesmo por causa do pecado, ento nossa criana ainda no nasceu. Senosso corao ainda experimenta dores, ainda no nos tornamos mes: mas estaremos nasdores do parto, e nossa hora se encontrar prxima. Ento no fiquemos desalentados, selamentarmos por ns, ou por nosso amigo apesar de ainda no haver nascido, nossa horaestar quis prxima. Mas a criana nasceu completamente quando o corao da pessoa pornada se lamenta: ento a pessoa possui essncia, natureza, substncia, sabedoria, alegria, etudo aquilo que Deus tem. Ento o ser mesmo do Filho de Deus nosso prprio, e dentrode ns se encontra, e ns alcanamos aquilo que Deus em essncia.

    Cristo disse: Quem quiser me seguir, que negue a si mesmo, tome sua cruz e mesiga(Mat. 16:24, Mc. 8:34). Isto , atirar fora toda lamentao para que a alegria perptuareine em nosso corao. desta forma que a criana nasce. E se ento a criana nasceu emmim, a viso de meus pais, e de todos meus amigos mortos bem em frente a mim, deixariammeu corao impassvel. Pois se eu ficasse tocado com isto, a criana ainda no teria nascidoem mim, apesar do nascimento poder se encontrar prximo. Eu digo que Deus e os anjos sealegram de tal forma em toda ao da pessoa boa, que no h alegria que se parea com esta.Assim, se a criana nasceu em voc, ento voc tem uma tal alegria em toda boa ao queseja feita no mundo, que esta alegria se tornar permanente, e nunca mais mudar. Assim Elediz: Ningum te tirar tua alegria(Joo 16:22). Se eu estiver de fato estabelecido na essnciadivina, ento Deus, e tudo aquilo que ele tem, se tornaro meus. Portanto Ele diz: Eu sou oSenhor teu Deus(Ex. 20:2). Isto , quando eu possuo a verdadeira alegria, quando nem ador nem a tristeza podem tirar isto de mim, pois ento eu me encontro estabelecido naessncia divina, onde a tristeza no pode penetrar. Pois constatamos que em Deus no existenem tristeza nem raiva, mas apenas amor e alegria. Apesar Dele parecer s vezes estarzangado com os pecadores, no se trata na verdade de zanga, mas de amor, pois que seorigina no grande amor divino: aqueles que Ele ama Ele no poupa, pois Ele amor, ou oEsprito Santo. E assim a zanga de Deus se origina no amor, pois Sua zanga sem paixo.Desta forma quando voc chegou a este ponto onde nada te cause lamentao, ou lhe sejaduro, e onde a dor no mais dor para voc, onde tudo lhe seja alegria perfeita, ento suacriana de fato nasceu.

    Lute pois para se assegurar que sua criana no seja apenas uma promessa, mas quenasa de fato, assim como em Deus o Filho est sempre nascendo e sendo concebido. Paraque tal ocorra conosco, a tal nos ajude Deus.

    Amm.

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    Q UA R T O S E R M O

    (Quint 44)

    MORTUUS EST ET REVIXIT, PERIERAT ET INVENTUS EST

    (Lucas 15:32)

    Ele faleceu e reviveu. Ele se achava perdido e de novo foi encontrado. Num sermoeu j havia abordado este assunto, e agora eu gostaria de demonstrar como todos os bonstrabalhos da pessoa realizados em estado de pecado mortal, recuperam a vida novamente, damesma forma que o tempo no qual foram realizados. E isto agora eu vou demonstrar com amaior clareza, porque muitos pediram que o fizesse. isto que ora farei, e com isto mecolocarei em oposio maioria dos mestres viventes.

    Todos os mestres afirmam que quando em estado de graa, todos os trabalhos dohomem so dignos de serem recompensados com a eternidade, e isto est correto, pois Deus quem opera no estado de graa, e eu concordo com eles. Mas os mestres em seguidaafirmam que se o homem cair em pecado mortal, todos os trabalhos que ele realizar nesteestado perecero, assim como o autor deles tambm, e estas obras no traro recompensaeterna, por que ele no est em estado de graa. E, neste sentido, isto o que ocorre, e euconcordo com estes mestres. Mas eles dizem em seguida: quando Deus restaurar a graadaquele que se encontra em estado de pecado mortal, e ele tiver se arrependido de seuspecados, aquelas obras que ele tinha realizado no estado de graa, prvio queda no pecadomortal, se soerguero novamente, e vivero como anteriormente. E com isto eu concordo.Mas aqui eles acrescentam, que aqueles trabalhos cometidos em pecado mortal para sempreesto perdidos tempo e trabalho, para sempre perdidos. E esta parte eu, Meister Eckhart,cabalmente nego. Dentre todas as obras feitas por algum, quando em pecado mortal, nemuma s destas sequer estar perdida, e nem o tempo no qual foram realizadas, se elerecuperar a graa. Isto que eu acabei de afirmar, vai contra todos os mestres ora viventes.

    Prestem ateno ao alcance de minhas palavras. Ento elas ficaro claras para vocs.Eu digo que todos os bons trabalhos que o homem tenha feito, bem como o tempo no qualos realizou, todos estes se encontram completamente perdidos, trabalhos como trabalhos, etempo como tempo. Eu digo mais, nenhum trabalho pode ser considerado bom, sagrado ouabenoado. O mesmo vale tambm para o tempo, que no pode ser considerado bom,sagrado ou abenoado, nem jamais ser. Como poderiam ento ser preservados, j que noso nem bons, nem sagrados, nem abenoados? Desta forma j que os bons trabalhos, bemcom o tempo no qual eles ocorreram, se encontram perdidos, como podem aquelestrabalhos estarem preservados, que foram feitos em pecado mortal, e o tempo no qualocorreram? Assim eu digo: eles se perderam completamente, trabalhos e tempo, bem e mal,trabalhos como trabalhos, e tempo como tempo, tendo se perdido simultaneamente, e parasempre.

    Agora poderia surgir a pergunta: Porque um trabalho chamado de sagradoouabenoado, ou de um bom trabalho, e da mesma forma o tempo no qual ele ocorreu?Como eu j disse: o trabalho e o tempo no qual ele ocorreu, no so nem sagrados, nemabenoados, nem bons. A bondade, o fato de ser sagrado, ou abenoado, isto um nomerotulado ao trabalho e ao tempo, e no uma coisa intrnseca a ele. Por que? Um trabalho

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  • Meister Eckhart, Sermes Alemes

    como trabalho no causa a si mesmo, ali no se encontra por si mesmo, no toma lugar porsua prpria vontade, ou por sua prpria causa, e de si mesmo nada conhece. Desta formano nem abenoado, nem deixa de ser: O que ocorre que o esprito que causou otrabalho a ser feito, se livra da imagem, e isto nunca volta novamente. Pois ento otrabalho, como trabalho, desaparece completamente, da mesma forma que o tempo no qualele ocorreu, e isto no se encontra em parte alguma, pois o esprito se desfez do trabalho. Seno mais est com o trabalho, porque em outros trabalhos estar, num outro tempo.Assim, trabalhos e tempo esto completamente perdidos, bem e mal se esvaem, pois nopossuem lugar em si mesmos, e Deus tampouco deles necessita. Logo, se perdem e perecem.

    Se algum perfaz um bom trabalho, esta pessoa se livra com isto deste trabalho, e selivrando disto, ele se encontra mais prximo e semelhante sua origem, que antes destetrabalho, e nesta medida esta pessoa se acha melhor e mais abenoada, que antes de terrealizado este trabalho. Por esta razo este trabalho chamado de abenoado e sagrado, bemcomo o tempo no qual foi feito: mas realmente no foi isto que ocorreu, porque o trabalhono possua ser, nem o tempo, j que tudo isto perece automaticamente. Logo, no umaquesto que o trabalho seja bom, sagrado ou abenoado, mas, ao contrrio, a pessoaabenoada na qual o fruto do trabalho permanece, no como tempo e trabalho, mas comoboa disposio, e isto eterno, como eterno o esprito que o realizou. Desta formanenhuma boa ao foi jamais perdida, nem o tempo no qual ela tenha ocorrido: no quetivesse sido preservada como trabalho e tempo, mas ao contrrio, como estando livre dotrabalho e do tempo, como disposio do esprito, no qual ela eterna assim como o prprioesprito eterno.

    Avaliemos agora aquelas obras realizadas em pecado mortal. Como j disse (paraaqueles que me compreenderam), as boas obras perpetradas em pecado mortal, se achamperdidas, obras e tempo conjuntamente. Mas eu tambm disse que trabalhos e tempo, em si,nada so. Mas se nada so, quem os perde, nada perde. o que ocorre. Mas eu acrescentei:Obras e tempo no possuem lugar, ou ser, em si: como trabalho, j foi abandonado peloesprito, no tempo. Se mais realizar o esprito, ser um outro trabalho, num tempo outro.Logo, enquanto trabalho e tempo, no conseguem penetrar no esprito. Muito menos aindao podem em Deus, pois em Deus jamais entram tempo ou trabalho que sejam. Logo, porfora devem ter perecido, e se perdidos esto.

    E, no obstante, eu afirmei que bons trabalhos realizados em pecado mortal no seperdem, nem tempo, nem trabalho. E isto assim, da forma que eu vou explicar. E, comoeu j disse, isto entra em choque com todos os mestres de hoje em dia.

    Analisemos brevemente o sentido daquilo que estamos discutindo. Se um homem fazbons trabalhos se encontrando em estado de pecado mortal, ele no comete os bons atosdesde o pecado mortal, pois os trabalhos so bons, e os pecados so maus. Ao invs ele osperpetra desde o foro e cho de seu esprito, que em si mesmo bom por natureza, mesmoque ele no se encontre no estado de graa, e os trabalhos no meream os cus quandoocorrem. Contudo, isto no danifica o esprito, pois o fruto do trabalho, livre do trabalho etempo, fica no esprito, sendo espiritual, e no perece, como no perece a essncia doesprito. Mas o esprito liberta seu ser com estas obras, que so boas, assim como o faria,caso estivesse em estado de graa (apesar de no obter os cus com estas obras, como o fariacaso estivesse em estado de graa), pois assim ele cria a mesma predisposio para a unio esemelhana, sendo trabalhos e tempo teis porque tornam possvel a realizao da pessoa. Equanto mais a pessoa se liberta e aos trabalhos, tanto mais de Deus se aproxima, que livreem Si mesmo: e na medida que a pessoa se livra, nesta medida nem tempo, nem trabalhos,

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  • Meister Eckhart, Sermes Alemes

    esto perdidos. E quando retorna a graa, o que tenha estado nele por natureza, ali seencontra agora por graa.

    E na medida em que ele se libertou atravs de boas obras enquanto em pecado mortal,assim tambm ele progride em sua unio com Deus, o que ele no poderia realizar notivesse se livrado destes trabalhos, enquanto em pecado mortal. Se ele tivesse que realizarestas obras presentemente, teria que gastar tempo para isto. Mas j que disto se livrouenquanto em pecado mortal, obteve para si o tempo no qual agora se encontra liberto. Logo,o tempo no qual agora ele se v livre, no se encontra perdido, pois ele ganhou este tempo, epode realizar outras coisas neste tempo, que mais ainda o aproximaro de Deus. Os frutosdos trabalhos, que ele tenha realizado no esprito, no esprito permanecem, e espirituais so,junto com o esprito. Apesar de obras e tempo j se acharem no passado, o esprito, que osoriginou, vive ainda, e os frutos dos trabalhos, libertos de tempo e trabalho, tambm vivemainda cheios de graa, assim como tambm cheio de graa o esprito.

    Assim foi demonstrada a verdade de minha afirmao, e quem contradisser isto, eu ocontradigo tambm, e para esta pessoa no ligo a mnima, pois o que eu disse verdade, e averdade se declara a si mesma. Houvessem eles compreendido o que o esprito, e o que sotrabalho e tempo, certamente no teriam dito que toda e qualquer boa disposio estariaperdida. Apesar do trabalho passar adiante e com o tempo perecer, naquele parte em quecorresponde ao esprito em sua essncia, no perece jamais.

    Aqui est a correspondncia, que o esprito est liberto pela disposio (que seconcretiza nas obras). Este o poder do trabalho, o porqu da realizao do trabalho. Istopermanece no esprito, e no mais perdido, e no mais perece que o prprio esprito, poisexatamente isto esprito. Reparem, se a pessoa tivesse compreendido isto, como poderia terafirmado que todo bom trabalho perece, quando o esprito estiver estabelecido no novoestado de graa?

    Possamos ns nos tornar um s esprito com Deus, e possamos ser encontrados emestado de graa, para tal nos ajude Deus.

    Amm.

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    Q U I N T O S E R M O

    QT6

    IN HOC APPARUIT CARITAS DEI IN NOBIS

    (1 Joo 4:9)

    O amor de Deus nos foi revelado neste fato, que Deus nos tenha enviado Seu Filhonico aqui para o mundo, para que possamos ns viver com o Filho, no Filho, e atravs doFilho, pois todos aqueles que no vivem pelo Filho, esto de fato equivocados.

    Vamos por exemplo supor que um poderoso rei existisse, que tivesse uma bela filha, seele a desse ao filho de um homem pobre, todos aqueles que pertencessem quela famliaficariam enobrecidos. Diz um mestre: Deus se tornou homem e com isto toda raa humanafoi elevada, e feita nobre. Nos rejubilemos todos ns que Cristo, nosso irmo, tenha seelevado com Sua prpria fora acima de todos os coros dos anjos, e que esteja sentado mo direita do Pai. Este mestre de fato disse a verdade, mas estou pouco ligando para tal.De que me adiantaria que tivesse um irmo que fosse rico se eu fosse pobre? Que meadiantaria se tivesse um irmo que fosse sbio, se eu fosse um tolo total?

    Eu digo algo de diferente e mais direto: Deus no apenas se tornou homem, mas eletambm revestiu a natureza humana.

    Todos os mestres concordam quando dizem que os homens so igualmente nobrespor natureza. Mas eu digo que na verdade, toda bondade que todos os santos possuramjamais, e Maria tambm, a me de Deus e de Cristo, conforme sua humanidade, tudo isto meu nesta natureza. Agora vocs podem me indagar, j que tenho tudo nesta natureza que oCristo pode fazer de acordo com sua humanidade, porque ento magnificamos eencomiamos o Cristo como Nosso Senhor e como nosso Deus? Isto porque ele era ummensageiro de Deus enviado a ns e ele nos trouxe em pessoa o estado abenoado. Oestado abenoado que nos trouxe era j nosso prprio desde a nascena. Onde o Pai d aLuz ao Seu Filho, no cho mais interno, desde ali flui esta natureza. Esta natureza una esimples. Algo pode ali fitar, ou se lhe apoiar, mas no ser este Uno.

    Eu digo mais, e at algo de mais incisivo. Quem quiser existir na nudez de suanatureza, livre de toda mediao, deve ter deixado atrs de si toda distino de pessoa, deforma que esteja to aberto quele que est longnquo, e a quem nunca tenha visto, quanto pessoa com a qual se encontra agora, e de quem seja amigo pessoal. Enquanto favorecermosmais nossa pessoa, que aquela pessoa que nunca vimos, com certeza no teremos ainda estarazo da qual falvamos, nem a teremos fitado jamais. Talvez que tenhamos visto umaimagem semelhante, como um quadro que representa uma paisagem, mas isto ainda no omelhor possvel. E, em segundo lugar, a pessoa deve ser pura de corao, pois aquelecorao apenas puro, no qual todo conceito de criatura foi totalmente abolido.

    Em terceiro lugar, devemos estar livres do nada. Alguns se perguntam sobre o quequeima no inferno. Em geral os mestres dizem que a vontade egosta. Mas agora vou dizera verdade: o que queima ali o nada. Eis uma explicao. Tomemos de uma brasa ardente, ea coloquemos na palma da mo. Se eu disser que a brasa que queima minha mo, estariaincorreto. Para tudo dizer deveria afirmar que o que queima a negao, pois a brasa

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  • Meister Eckhart, Sermes Alemes

    contem algo que minha mo no contm. E este no que me queima. Mas se minha mocontivesse tudo aquilo que a brasa contivesse, ento seria da mesma natureza do fogo. Nestecaso, nem todo fogo do mundo queimaria minha mo. Da mesma forma eu digo quesomente porque Deus, e tudo aquilo que vem de Deus, tem algo que os que no seencontram neste estado abenoado no tem, este mesmo no que atormenta as almas noinferno, mais que qualquer vontade egosta, ou mais que qualquer fogo. Enquanto este noaderir a ns, nesta tanto somos imperfeitos. Se quisermos pois ser perfeitos, devemos noslivrar do no.

    Sobre isto versa o texto que eu lhes dei: Deus enviou Seu filho nico aomundo.Vocs no devem achar que isto queira dizer o mundo externo, como quando elebebeu e comeu conosco, mas sim isto deve ser compreendido no sentido do mundo interno.To seguramente quanto o Pai em Sua natureza simples concebe Seu filho com naturalidade,to seguramente tambm Ele o tem concebido nos recessos mas ntimos do esprito, e este o mundo interno. Aqui, o cho de Deus meu cho, e meu cho o cho de Deus. Aqui euvivo em mim da mesma forma em que Deus vive em Si. Pois aquele que uma s vez tenhavislumbrado este cho, para este tanto fazem mil barras de ouro, quanto um centavo decobre. Neste cho interno, todos os trabalhos devem ser feitos sem um porqu. Eu digo averdade, que enquanto nossos trabalhos forem realizados por causa do cu, ou de Deus, ouda felicidade eterna, ainda estaremos em erro. Pode passar por vistas grosseiras, mas no omelhor possvel. De fato, se algum acha que vai conseguir mais de Deus atravs demeditaes, ou de devoes, ou xtases, ou por infuses especiais da graa, do que sequedando ao lado da lareira, ou do estbulo, isto nada mais que pegar Deus, O enrolar emuma toalha, e O enfiar debaixo da cadeira. Pois quem procura Deus de alguma formaespecial, obtm aquela forma, mas perde Deus, que nela est oculto. Mas quem procuraDeus sem qualquer caminho especial, O obtm como Ele em Si mesmo, e aquele homemvive com o Filho, e ele a vida mesma. Se algum indagasse da vida durante mil anos:Porque vives? e se ela pudesse responder, diria por certo: Vivo porque vivo.Isto porquea vida vive desde seu prprio cho, e irrompe em frente a partir de si mesma. Portanto vivesem um porqu, porque vive por si mesma. assim que, se perguntasse a um homemgenuno, que age desde seu prprio cho, Por que ages? e se ele se dignasse a responder,com certeza diria, Ajo porque ajo.

    Onde a criatura cessa, ali que Deus comea. Tudo que Deus quer de ns quesaiamos de ns mesmos enquanto criaturas, e que deixemos que Ele se encontre dentro denosso interior. A menor imagem de criatura que surja em ns, toma tanto espao quantoDeus. Como assim? que isto no priva do todo de Deus. Logo que esta imagem entra,Deus obrigado a sair, com toda Sua essncia. Mas quando sai a imagem, que Deus entra.Deus deseja que saiamos de ns mesmos tanto, como se toda Sua felicidade distodependesse. Meus caros amigos, que mal nos pode advir de deixar que Deus em ns entre?Saiamos pois imediatamente de ns mesmos, por amor a Deus, e Deus prontamente de Simesmo sair por ns! Quando estes dois partirem, o que ter restado uno e simples. NesteUno, o Pai concebe Seu Filho em Sua mais ntima fonte. Da desabrocha o Esprito Santo, eento surge em Deus uma vontade que pertence alma. Enquanto esta vontade permanecerintocada por todos os seres, e tudo que criado, esta vontade livre. O Cristo disse, Noh ningum que nos cus entre, exceto aquele que dali sai.(Joo 3:13) Tudo criado donada. Portanto suas fontes originais so o nada, e enquanto esta nobre vontade se curvarante criaturas, fica dissipada entre criaturas, em seus nadas. Surge a pergunta, se esta nobrevontade poder ser dissipada, de forma que no volte a si nunca mais. Os mestres, em geral,

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    dizem que no retorna nunca mais, na medida em que fica dispersa no tempo. Mas eu digo:sempre que esta vontade se volta novamente a si, e contra toda a criao, nem que sejaapenas por um s momento, sua fonte primeira, ento a vontade tem o direito de nascerdesde a liberdade, e livre, e neste momento todo tempo perdido recuperado.

    As pessoas com freqncia me pedem, Reze por mim.E eu fico imaginando, Porque que voc vai embora? Por que no fica dentro e utiliza seu prprio tesouro? Pois voctem toda a verdade, em sua essncia, bem dentro de voc.Possamos ns de fatopermanecer dentro, e possamos possuir toda verdade imediatamente, sem distino, noverdadeiro estado abenoado, para tal nos ajude Deus.

    Amm.

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    S E X T O S E R M O

    (Quint 1)

    INTRAVIT JESUS IN TEMPLUM DEI ET EJICIEBAT OMNES VENDENTESET EMENTES

    (Mat 21:12)

    Lemos na Escritura Sagrada, que Nosso Senhor foi ao templo, e que dali expulsouaqueles que estavam comprando e vendendo, e deu um ultimato aos que vendiam pombas ecoisas assim: Retirem daqui estas coisas, levem-nas embora!

    Qual a razo porque Jesus fez retirar os vendilhes, e mandou os que vendiampombas se retirarem do recinto? Sua inteno nada mais era que limpar o Templo, comodizendo: Eu sou o dono de direito deste Templo, e o quero s para mim. Que quer dizeristo? Este templo no qual Deus seria senhor nico, a alma humana, a qual Ele criouexatamente da mesma forma que Ele mesmo , como est escrito por Nosso Senhor:Faamos o homem nossa imagem e semelhana(Gen., 26). E foi isto exatamente que foifeito. To semelhante a Si mesmo Deus erigiu a alma humana, que no h nada entre o Cue a Terra, apesar de toda variedade de criaturas que Deus fez, com tanta alegria, que mais separea a Deus, que a alma humana. Por isto que Deus deseja este templo completamentelimpo, para que possa ocup-lo apenas Ele. Isto se deve ao fato que este templo lhe toagradvel, por sua semelhana a Si mesmo, e to vontade Ele se encontra, ao ali se versozinho.

    Notem cuidadosamente quem eram os vendilhes do templo, e quem so eles aindahoje. Neste sermo eu mencionarei apenas os bons. Mesmo assim, eu mostrarei quem eramos vendilhes e quem eles so ainda hoje que comprando e vendendo desta forma,foram banidos por Nosso Senhor. Ainda hoje, Ele expulsa quem negocia neste templo: anenhum deles permitido ali permanecer.

    So mercadores todos aqueles que, mesmo evitando pecado mortal, e querendo servirtuosos, fazem suas boas obras, tais como jejuns, viglias, preces e este tipo de coisas, paraa glria de Deus, mas o fazem querendo algo em troca de Nosso Senhor, ou para obrigarema Deus a lhes restituir de alguma forma so estes os chamados vendilhes. Isto evidente, pois eles desejam barganhar, e assim fazer um negcio com Nosso Senhor. Masnesta barganha muito se enganam, pois se tudo entregam do que tm e do que fazem, paraDeus, e se extinguem por Deus, Deus no est obrigado a lhes devolver nada, nem nadarealizar por eles, a menos que o faa livremente, e sem obrigaes. Pois seu ser o receberamde Deus, e o que possuem tambm veio de Deus, e no de seus prprios mritos. Logo,Deus no tem qualquer obrigao de fazer devolues, nem de suas aes, nem de suasoferendas, a menos que Ele o queira, por Sua graa, e no pelo que eles deram ou fizeram;pois eles no doaram de si mesmos, nem agiram por si mesmos, como diz Cristo: Semmim, nada podereis fazer(Joo, 15:5). Nscios so estes que negociaram assim com NossoSenhor: da verdade conhecem pouco, ou nada. Por isto foram expulsos do templo porNosso Senhor. A luz e as trevas no podem coexistir. Deus, que a verdade, a luz. Ao

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    entrar no templo, Deus exclui a ignorncia, que so as trevas, e se mostra na luz e naverdade. Os vendilhes devem se retirar, ao se revelar a verdade, por que na verdade no hnegcios. queles que so Seus, Deus no procura. Ele tem liberdade total em suas aes, squais Ele realiza por amor verdadeiro. Da mesma forma, age o homem unido a Deus, sendode uma liberdade total em suas aes: tudo ele faz por amor, e sem ter porqu somentepela glria de Deus, e no buscando levar vantagem, e Deus age em conjunto com estehomem.

    Eu vou mais alm: quando a pessoa ao agir, deseja algo de Deus, ele fica assim nomesmo nvel dos mercadores. Se voc deseja ficar completamente sem mcula demercadores, para que Deus o deixe entrar em Seu templo, ento tudo que voc fizer deve serpela glria de Deus, e voc deve estar completamente livre disto, como o Nada, cujanatureza no est em parte alguma. Nada deve requisitar em troca. Sempre que agir destaforma, seus trabalhos esto no mundo do esprito e so sagrados, os vendilhes foramexpulsos do templo, e ali est Deus somente, pois s Deus estar em seus pensamentos.Assim se limpa o templo dos mercadores! Aquele que considera apenas a Deus, e a glria deDeus, est absolutamente livre de toda sujeira de comrcio em suas aes, e para si mesmonada buscar, como Deus tambm totalmente livre no que faz, e nada busca para Simesmo.

    J mencionei tambm como Nosso Senhor falou com aqueles que negociavam compombas: Levem-nas embora, tirem isto daqui! Ele no ejetou essas pessoas, ou as tratouduramente, mas foi, ao invs, muito carinhoso, Levem-nas daqui! , como se estivessedizendo no se tratar propriamente de um equvoco, mas era mais um tipo de obstculo verdade pura e nua. Todas essas pessoas eram boas, todos obravam por Deus, e no para si,mas estavam apegados aos frutos da obra. Isto lhes causa obstculos para chegarem maisalta realizao da verdade, para estarem por inteiro livres e desimpedidos, como estavaNosso Senhor Jesus Cristo, que se concebia a Si mesmo, sempre renovado incessantemente,vivendo no templo de Seu Pai Celeste, e mesmo neste momento presente, renascendocontinuamente com louvor e ao de graas, perfeito, na mesma majestade do Pai e comglria igual. Logo, para ser receptivo mais alta verdade, e para ali estabelecer residncia, apessoa precisa ser sem um antes e depois, desimpedido em suas aes, e livre de quaisquerimagens que tenham sido concebidas por si, livre e vazio, vivendo no presente eterno, e oconcebendo com louvor e ao de graas, em Nosso Senhor Jesus Cristo. Somente entoteriam partido as pombas, leia-se aqui o apego, e os obstculos criados pelas obras, boasem si mesmas, nas quais a pessoa ainda busca algo para si mesmo. Assim disse NossoSenhor, bondosamente: Levem isto embora, tirem-no daqui! , como se dissesse, Isto timo, mas estorva o Caminho.

    Quando o templo estiver assim purificado e sem obstculos, ento aquilo brilharlindamente, fulgurando acima de tudo que foi criado por Deus, em toda Sua criao, de talforma que seja inigualvel por tudo, exceto o Deus no-criado. Nada pode se comparar aeste templo, exceto o no-criado. Nada existe abaixo dos anjos que se compare a essetemplo. O mais elevado anjo em muito se assemelha a esse templo da alma nobre, mas node todas as maneiras. A sua parcial semelhana alma, consiste no conhecimento e no amor.Mas isto tem um limite, e alm disto eles no podem prosseguir. A alma vai alm disto. Se aalma da pessoa, em sua existncia temporal, fosse semelhante do mais elevado anjo ainda assim potencialmente esta pessoa poderia se colocar infinitamente alm deste anjo,sempre se renovando, neste agora atemporal, e isto sem a menor restrio: acima damodalidade anglica e de toda inteligncia criada. Deus apenas livre e no-criado, e assim

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    somente Ele est s, como a alma liberta, que, apesar de criada, idntica a Ele no seuaspecto no-criado. E quando ela surge na luz pura, ela est no Nada, longe do que foicriado, e com suas foras ela no pode mais retornar ao que foi criado. Deus que no-criado sustenta a vacuidade da alma, e a preserva. A alma que assim ousou se tornar nada,por si mesma no pode retornar, pois se lanou to longe de si mesma. Isto se passaforosamente assim, pois, como eu h havia dito, Jesus foi ao templo e dali varreu osvendilhes, e os que compravam e vendiam, e disse, Levem isto daqui! . Notem que nohavia ningum exceto Jesus, no momento em que Ele falou no templo. Disto estejamseguros: se mais algum, alm de Jesus, fosse falar no templo (que a alma), Jesus nada diria,como se no se sentisse vontade, pois ali estariam estranhos hspedes que a distrairiam.Mas se Jesus for falar na alma, ela deve se encontrar completamente s, e aquietada parapoder ouvir o que ser dito. E, digamos, se Ele entrar e falar, o que diz? Ele diz aquilo queEle . O que Ele, finalmente? Ele uma Palavra do Pai. Nesta mesma Palavra o Pai seexprime a Si, e toda a natureza divina e tudo que Deus , assim como Deus est cientedaquilo, e de como aquilo . Sendo pois perfeito no conhecimento e no amor, Ele tambm perfeito no discurso. Ao dizer a Palavra, Ele a diz e a todas as coisas em uma outra pessoa, aquem Ele deu a mesma natureza que a Sua. E a forma como Ele fala esta Palavra em todosos espritos racionais, como esta Palavra tem sua imagem dentro Dele. E contudo, quandocada imagem acontece, tendo existncia prpria, no idntica em tudo Palavra. Mas todostm o poder de ganhar esta semelhana, pela graa desta Palavra, e a Palavra tal qual , ditapelo Pai a Palavra com tudo aquilo que a inclui.

    J que o Pai que o diz, o que diz Jesus alma? Como eu j disse, o Pai diz a Palavra,e ento Jesus fala na alma. Sua forma de se exprimir revelar o que o Pai disse a Si, deacordo com a capacidade que cada esprito tem de receber isto. Ele revela a autoridade doPai no esprito, em um poder igual e sem limites. Recebendo esse poder no Filho atravs doesprito, este recebe fora em tudo que faz, e se torna equnime e poderoso em todas asvirtudes, e na unidade perfeita, de tal forma que nem a tristeza ou a alegria, nem nada criadopor Deus no tempo, possa destruir a pessoa, mas para que ele fique estvel, como sepossusse foras divinas, em vista do que as demais coisas se tornam fteis e pequenas.

    Em segundo lugar, Jesus se revela na alma em infinita sabedoria, como Ele em Simesmo. Nesta sabedoria o Pai Se conhece a Si mesmo, em toda Sua autoridade paterna, equela palavra tambm, que a prpria sabedoria, e tudo aquilo que a ela diz respeito.Quando esta sabedoria se estabelece na alma, a dvida, o erro e a escurido quedam-seresolvidos, e ela se estabelece numa luz pura e brilhante que nada mais que Deus mesmo,como diz o Profeta: Senhor, em Tua luz que a Tua luz conheceremos(Ps., 36:9). EntoDeus reconhecido por Deus na alma; atravs dessa sabedoria ela se conhece, e a tudo mais;e esta sabedoria se conhece atravs de si prpria; e com esta mesma sabedoria conhece opoder do Pai no trabalho frutfero, e no Ser essencial na unidade simples do vazioindiscriminado.

    Jesus revela a Si mesmo de outra forma, em Sua doura infinita, e em Sua riqueza quetransborda e jorra a partir do Esprito Santo, rica e docemente em todos os coraesreceptivos. Quando Jesus se revela atravs desta riqueza e doura, e est unido alma, a almacorre para si mesma com esta riqueza e doura, alm de todas as coisas, pelo poder e graa,sem intermedirios, at fazer uso da fonte original. Neste momento o homem externo serobediente ao interno at a morte, e para sempre estar em paz no servio de Deus.

    Para que Jesus possa em ns entrar e limpar e remover todos os obstculos de corpoe mente, e nos tornar unos, assim como uno Ele com o Pai e o Esprito Santo, um s

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    Deus, para que possamos nos tornar, e permanecer unidos a Ele por toda a eternidade, a talnos ajude Deus.

    Amm.

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    S T I M O S E R M O

    (QUINT 2)

    INTRAVIT JESUS IN QUODDAM CASTELLUM ET MULIER QUAEDAMEXCEPIT ILLUM ETC

    (Lucas 10:38)

    Eu tomei primeiramente esta citao dos Evangelhos em latim, que significa oseguinte: Nosso Senhor Jesus Cristo foi a uma cidadela fortificada, e ali foi recebido poruma virgem6, que era mulher.

    Prestem bem ateno a isto. Deve necessariamente ser virgem a pessoa que receberJesus.Virgemsignifica aquele que vazio de imagens formadas a partir do exterior, tovazio como aquela poca em que esta pessoa ainda no era. Poderia ser indagado como apessoa, que nascida, e possui uma compreenso racional, pode estar despida de todasimagens, como se fosse no-nascida: pois ela sabe muitas coisas, e todas estas coisas soimagens: ento como poderia estar vazia destas imagens? Ateno explicao. Se eu tivessecompreenso suficiente para perceber todas as imagens jamais concebidas, no apenas portodos os homens, mas tambm por Deus mesmo e se eu as tivesse sem apego, na ao ouinao, sem considerar o passado ou o futuro, mas ao invs me mantendo aberto neste agorapresente, para receber a muito adorada vontade de Deus, e a realizar continuamente, entoeu seria de fato um virgem, desobstrudo por quaisquer imagens, fossem quais fossem, comoquando eu ainda no era.

    Mesmo assim eu digo que o fato de ser um virgem no tira do homem o mrito dotrabalho que ele j tenha realizado: ele permanece em liberdade virginal, no oferecendoobstculo algum mais elevada verdade, da mesma forma que Jesus permanece vazio, livre evirginal. J que, de acordo com os mestres, a unio chega apenas pela juno de semelhantecom semelhante, o homem que receberia o virgem Jesus, deve ele mesmo ser virgemtambm.

    Mas, notem bem, se a pessoa permanecesse virgem para sempre, nunca daria frutos.Quem for dar frutos algum dia, deve tambm se tornar mulher.Mulher o nome maisnobre que se poderia dar alma muito mais nobre que virgem. Pois que um homemreceba Deus em si bom, e ao faz-lo ele virgem. Mas para que Deus se torne frutfero emsi, isto melhor ainda, pois o nico agradecimento possvel por este presente so os frutosdo mesmo, e aqui o esprito se torna uma mulher, cuja gratido a fecundidade, causandoJesus a nascer novamente no corao paterno de Deus.

    Muitos bons presentes recebidos na virgindade, no renascem em Deus, e no dofrutos como uma mulher, com agradecimento e louvor. Tais presentes apodrecem, e de nadavalem, por eles no chega o homem a ser nem melhor nem mais feliz. Neste caso a

    6. Eckhart interpreta de sua maneira o texto da Bblia em Latim, onde nada dito sobre uma virgem.

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  • Meister Eckhart, Sermes Alemes

    virgindade intil, porque no lhe foi adicionada a perfeita fecundidade da mulher. Isto um grave erro. Foi por isto que eu disse, Jesus se dirigiu a uma cidadela fortificada e ali foirecebido por uma virgem, que era mulher.As coisas devem se passar desta forma, comoacabo de demonstrar.

    Quem casado d pouco mais que um s fruto por ano. Mas so a outros casadosque eu estou me referindo agora: todos aqueles apegados a jejuns, viglias, preces e todo tipode disciplina e mortificao, oriundas desde fora. Todo apego a qualquer prtica, queimplique a perda da liberdade, para agradar Deus no aqui e agora, e para segui-lo sozinhonaquela luz que te indica o que fazer e deixar de fazer, livre e renovadamente, como se vocnada mais tivesse ou pudesse fazer qualquer apego ou prtica que lhe tolha esta liberdade, o que eu chamo um ano: pois sua alma no dar frutos, at que voc finalize este trabalho,ao qual est to firmemente apegado, e tambm voc no ter confiana nem em Deus, nemem si, at que finalize esta prtica, ou trabalho, a que se props, pois voc no descansar attermin-lo. Isto o que eu chamo de um ano, e o fruto deste trabalho deverasmesquinho, pois proveio do apego obra, e no da liberdade. So estes que eu chamo depessoas casadas, pois o apego lhes ata. Do pouco fruto, e mesmo assim mesquinho,como j disse.

    Uma virgem que j mulher, est liberta e sem apego: est sempre to prxima aDeus, quanto de si mesma. D muitos e belos frutos, que so nem mais nem menos queDeus. Este nascimento da virgem que mulher d frutos e retorno a cem e mil por um!Inumerveis so, de fato, os partos realizados neste cho nobre, ou para diz-lo maisobjetivamente, naquele cho mesmo onde o Pai fala para sempre Sua Palavra eterna. Ali elase torna frutfera, e participa no ato de criao. Pois Jesus, que a luz e o esplendor docorao eterno (como diz So Paulo (Heb. 1:3), que Jesus a glria e esplendor do coraodo Pai, e ilumina com este poder o corao do Pai), Jesus se une alma, e a alma Jesus,brilhante com ele numa s unidade, como uma s luz, pura e brilhante no corao paterno.

    Eu j disse algures, que h na alma um poder que no est ligado nem matria nemao tempo, que flui e se mantm no esprito, completamente espiritual. Neste poder Deusest se mostrando em toda alegria e glria que Ele em si mesmo. Ali h, de fato, uma tocompleta alegria, to indizivelmente profunda, que no h quem a possa descreveradequadamente, pois nesta fora o Pai eterno est para todo o sempre concebendo seu Filhoeterno incessantemente, de tal forma que esta fora concebe o Filho do Pai, e tambm aoFilho mesmo, no poder nico do Pai. Suponhamos, como exemplo, que algum reinassesobre todo o mundo, sendo dono de tudo. Em seguida, suponhamos que ele a tudoabandonasse por Deus, e virasse o mais pobre dos pobres que jamais tivesse pisado na terra,e que alm disto Deus lhe desse mais sofrimento que Ele tivesse jamais dado a qualqueroutro ser vivente, e que ele tivesse que suportar isto at o dia mesmo em que morresse, e queento Deus lhe permitisse apenas vislumbrar como Ele em seu poder a alegria destehomem seria de tal ordem, que tudo aquilo que ele havia penado nada significaria para si.Sim, e mesmo que Deus lhe garantisse que isto seria tudo que ele jamais veria dos cus, aindaassim ele estaria ricamente quitado de todo seu sofrimento, pois Deus se encontra nestepoder como no presente eterno. Se o esprito da pessoa estivesse sempre unida a Deus nestepoder, ela no envelheceria mais. Pois o Agora no qual Deus fez o primeiro homem queexistiu, o Agora no qual existir o ltimo homem da criao, e o Agora no qual eu meencontro, so os mesmos em Deus, e no existe seno um s Agora. Vejam, esta pessoa quevive unida com Deus, que no possui sofrimento com a passagem do tempo, e no qual todasas coisas se encontram em sua essncia, nenhuma novidade lhe vem de encontro, nem

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  • Meister Eckhart, Sermes Alemes

    qualquer acidente, pois ele vive no Agora, sempre novo e revitalizado, sem intermisses. Tal a soberania divina que caracteriza este poder.

    Existe um outro poder, tambm imaterial, oriundo e estabelecido no esprito,completamente espiritual. Neste poder Deus se encontra brilhante, resplandecente em Suariqueza multifacetada, em toda doura e alegria. Neste poder est concentrada uma alegriato inefvel, que no h o que o possa descrever. Contudo, eu afirmo, se um homemhouvesse que em viso intelectual e em verdade de leve chegasse a vislumbrar a felicidade aliacumulada, ento tudo aquilo que ele tivesse acaso sofrido, e tudo que Deus lhe houvessecolocado no caminho de dor, para ele nada seria, seria um zero para ele. De fato, eu digo quepara ele isto seria somente alegria e conforto.

    Se voc quer descobrir se seu sofrimento provm de voc ou de Deus, h um testesimples para isto: Se por voc que sofre, ento isto difcil de agentar e incomoda. Mas sevoc sofre por Deus apenas, seu sofrimento no lhe uma carga, e no pesa nada, pois Deus que agenta tudo. O fato que, se houvesse algum que se dispusesse a sofrerexclusivamente por Deus, ento se lhe coubesse agentar todo o sofrimento coletivo da raahumana, tudo que todos j sofreram, isto sequer o acabrunharia, pois seria Deus que levariaa carga toda. E se me colocassem uma carga de cem quilos, mas outro a tivesse levando, eusustentaria cem quilos to folgadamente quanto um s, pois isto no me pesaria ou causariaincmodo. Resumindo, aquilo que a pessoa sofre por Deus e somente por Deus, Ele o tornaleve e fcil de levar. Como eu disse no comeo deste sermo: Jesus foi a uma cidadelafortificada, e ali foi recebido por uma virgem, que era mulher.Por que? Tinha que ser assim,virgem e mulher. Eu j disse que Jesus foi recebido, mas ainda no expliquei o que vem a sera cidadela fortificada, que o que o farei agora.

    Eu disse j algumas vezes que existe um poder na alma que apenas ele livre. Porvezes o chamei de guardio do esprito, outras vezes de luz do esprito e disse ainda, emoutras ocasies, que seria uma fagulha. Mas agora eu digo que no isto ou aquilo: algomais elevado que isto tudo, tanto quanto o cu exaltado sobre a terra. Vou agora poisnome-lo de uma forma mais nobre que o fiz at ento, mesmo que este poder no liguepara o nome e forma, por transcend-los. Est livre de todos os nomes, e vazio de todas asformas, completamente livre e desapegado, como Deus livre e desapegado em Si. completamente uno e simples, como Deus , de tal forma que homem algum o possa fitar.Aquele poder que eu mencionei, no qual Deus desabrocha para todo o sempre, e estbrilhando em Sua essncia, e o esprito em Deus, neste mesmo poder Deus d a luz ao seuFilho nico to completamente quanto em Si mesmo, pois Ele mora neste poder e o espritofaz nascer ao Pai aquele mesmo Filho nico, e a Si mesmo como Filho, e Ele mesmo oFilho nico nesta luz. Se voc pudesse ver isto com meu corao, voc compreenderia o queeu digo, pois isto a verdade, e a verdade declara a si prpria.

    Agora vejam! To una e simples esta cidadela fortificada na alma, to elevada sobretodos os modos, que este nobre poder que acabei de mencionar no sequer digno de daruma olhadela que seja para dentro desta cidadela fortificada, e nem mesmo aquele outropoder que eu havia mencionado, no qual Deus brilha em toda sua riqueza resplandecente ealegria, seria capaz de ter a mais leve penetrao dentro desta cidadela: to verdadeiramenteuna e simples a cidadela fortificada, transcendendo a todos os modos e poderessolitariamente, que nem poder nem modo a poder alcanar, nem mesmo Deus mesmo! Isto fato, assim como Deus vive! Deus mesmo a isto no pode fitar, pois Ele existe nos modose propriedades de Suas pessoas. Apenas este Uno no possui modo nem propriedade. Logo,para que Deus ali pudesse dar uma olhadela, isto lhe custaria todos Seus nomes divinos e

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  • Meister Eckhart, Sermes Alemes

    propriedades pessoais: a todos Ele os deveria deixar do lado de fora, se quisesse fitar jamaisisto. Mas apenas enquanto uno e indiviso, sem modos ou propriedades: neste sentido Deus,no nem o Pai, nem o Filho, e nem o Esprito Santo, contudo algo Ele , que no nemisto nem aquilo.

    Vejam, na forma em que Ele uno e simples, Ele pode entrar naquilo que eu chamode cidadela da alma, mas de nenhuma outra forma: apenas assim Ele ali entra e mora. Nestaparte da alma, ela idntica a Deus, e em mais nenhuma. O que eu acabei de dizer averdade: chamo a verdade como testemunha e ofereo minha alma como garantia.

    Possamos ns ser aquela cidadela, a qual Jesus ascenda e seja ali recebido para morareternamente em ns, da forma que eu descrevi, para tal nos ajude Deus!

    Amm.

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    O I TAV O S E R M O

    (Quint 28)

    INTRAVIT JESUS IN QUODDAM CASTELLUM ET MULIER QUAEDAM,MARTHA NOMINE, EXCEPIT ILLUM ETC

    (Lucas 10:38)7

    So Lucas nos diz em seu Evangelho que Nosso Senhor Jesus Cristo se dirigiu a umapequena cidade, tendo sido ali recebido por uma mulher por nome Marta, e sua irm, Maria,sentou-se aos ps de Nosso Senhor, embebida em Suas palavras, mas Marta se locomovia decima para baixo, servindo a Nosso Senhor. Trs coisas causaram a Maria sentar-se aos ps deNosso Senhor. A primeira era que a bondade de Deus infiltrava-se em sua alma. A segundaera o desejo indefinvel: ela desejava no sabia bem o que, e queria no sabia bem o que. Aterceira era a doce alegria e conforto que usufrua das palavras eternas que fluam do Cristo.

    Quanto Marta, trs coisas tambm faziam com que trabalhasse e servisse seuquerido Cristo. A primeira era sua idade madura e seu treinamento, que lhe faziam crer queningum pudesse realizar o trabalho to bem quanto ela. A segunda, a compreenso sbia,que sabia executar as tarefas necessrias to diligentemente quanto o amor manda. E aterceira coisa, a grande dignidade de seu amado hspede.

    Tudo aquilo que desejado pelo homem, tanto dos sentidos quando do intelecto, atudo isto Deus atende nos permitindo realizar nossos objetivos, assim afirmam os mestres.Que Deus realiza plenamente aquilo que desejamos, intelectualmente e fisicamente, pode serconstatado ao examinarmos os amigos mais chegad