LITERATURA E MÜSICA

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/15/2019 LITERATURA E MSICA

    1/85

  • 7/15/2019 LITERATURA E MSICA

    2/85

    LITERATURA E MSICA

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira da Livro,SP,Brasil)

    Literatura e msica / Solange Ribeiro de Oliveira.. [et ai.] .So Paulo Editora Senac SoPaulo : Instituto Ita Cultural,

    2003.Outros autores: Carlos Reottd, Paulo Freire, Maria Alice Amorim, Janaina Rocha.

    Bibliografia.ISRN 85-7359-342 3 (Editora Senac So Paulo]

    ISRN 85-85294-43-5 (Instituto Ita Cultura]4. Msica e literatura 1. Oliveira, Solange Ribeiro de. II. Reond, Carlos. III. Freire, Paulo.

    IV. Amorim, Maria Alice.V . Rocha, Janaina.ndices para catlogo sistemtico:4. Literatura e msica 780.082. Msica e literatura 780.08

    Todos os direitos desta edio reservados Editora Senac So Paulo

    Rua Rui Rarbosa, 37710andarReis Vista CEP 01328-040

    Caixa Postal 3S95CEP 02090-970So Paulo SP

    Ibl. (11) 3284-4322Fax (11) 289 9634E-mail: [email protected] page: http://www.editoraedssp.com.br

    02-5316e ao

    Ita Cultural000-780.08 Avenida Paulista, 149

    ORP 01311 000So PauloSPTel. (41]3268-1700

    Home page :http ://www itaucultural.org.br Dos autores, 2003

  • 7/15/2019 LITERATURA E MSICA

    3/85

    LITERATURA E MSICA

    Solange Ribeiro de OliveiraCarlos RennPaulo Freire

    Maria Alice AmorimJanaina Rocha

    Itaculturaleditora

  • 7/15/2019 LITERATURA E MSICA

    4/85

    ADMINISTRAO REGIONAL DO SENAC NO ESTADO DE SO PAULO

    Presidente do Conselho Regional:Abram Szajman

    Diretor do Departamento Regional:Luiz Francisco de Assis SalgadoSuperintendente de Operaes:

    Darcio Sayad Maia

    EDITORA SENAC SO PAULO

    Conselho Editorial:Luiz Francisco de Assis Salgado

    Clairton MartinsLuiz Carlos Dourado

    Darcio Sayad MaiaMarcus Vinicius Barili AlvesEditor:

    Marcos Vinicius Barili Alves ([email protected])Coordenao de Prospeco Editorial:

    Isabel M. M. Alexandre ([email protected])Coordenao de Produo Editorial:

    Antonio Roberto BerleIli ([email protected])Superviso de Produo Editorial:

    Izilda de Oliveira Pereira ([email protected])Preparao de Texto:

    Beth GriffiReviso de Texto:Adalberto Luis de Oliveira, Kimie Imai, Lucina Ges

    Editora o Eletrnica:Antonio Carlos De Angelo

    Capa:Moema Cavalcanti

    Impresso e Acabamento:Cromosete Grfica e Editora Ltda.

    Gerncia Comercial:Marcus Vinicius Barili Alves ([email protected])

    Administrao e Vendas:Rubens Gonalves Folha ([email protected])

    ITA CULTURAL

    Presidente de Honra Superintendente AdministrativoOlavo Egydio Setubal Walter Feltran

    Presidente Superintendente de Atividades CulturaisMil Villela

    Eduardo SaronVice-Presidentes Seniores

    Joaquim Falco

  • 7/15/2019 LITERATURA E MSICA

    5/85

    Jorge da Cunha LimaVice-Presidentes Executivos

    NCLEO DE LITERATURA

    Alfredo Egydio SetubalRonaldo BianchiConsultor de EquipeClaudiney FerreiraDiretores Executivos

    Antonio Carlos BarbosaOliveira Lvia Perran

    Antonio Jacinto MatiasLuciana Den Jlio

    Cludio Salvador LemboRenata Amaral T. Correia

    Mal Pereira de AlmeidaRenata SarmentoRenato Roberto Cuoco

    Sara Marta FariasShirlene Amsaa

  • 7/15/2019 LITERATURA E MSICA

    6/85

    SUMRIO

    Nota dos editores 07Apresentao - Lus Camargo 08Introduo melopotica: a msica na literatura brasileira - Solange Ribeiro de Oliveira 12

    Poesia literria e poesia de msica: convergncias - Carlos Renn 28A msica dos causos - Paulo Freire 39Improviso: tradio potica da oralidade - Maria Alice Amorim 52Repensando -Janaina Rocha 72Sobre os autores 84

  • 7/15/2019 LITERATURA E MSICA

    7/85

    NOTA DOS EDITORES

    Mais uma vez o Senac So Paulo e o Ita Cultural lanam uma coletnea de ensaiostemticos maneira de Rumos da crtica, Outras leituras e Literatura, cinema e televiso.

    A exemplo daqueles, cinco autores especializados em literatura e/ou msica analisam aqui amusicalidade do texto, as relaes dessas artes que, no dizer da professora de literaturacomparada Solange Ribeiro de Oliveira, so evidentes na prosa e na poesia de grandesescritores. Ela pergunta e conclui com elegncia: Como negar a musicalidade dominanteno poema [de Manuel Bandeira]? Mais que o sentido, a msica das palavras puxa a linha do

    verso, fazendo que a dimenso semntica brote, como Vnus das ondas, do borbulharsonoro.

    Acreditamos que a leitura deste livro apura o ouvido e o senso crtico dos que

    apreciam literatura e msica, desvendando em uma e outra arte perspectivas cujaidentificao as enriquece.

  • 7/15/2019 LITERATURA E MSICA

    8/85

    APRESENTAO

    O remo abre o rio.O rio murmura.

    Cecilia Meireles

    As vogais e as consoantes do a cada palavra uma sonoridade particular. Aspalavras tambm podem imitar os sons aos quais se referem: zumbir, tilintar, farfalhar. Adisposio das slabas, fracas e fortes, d a cada palavra um ritmo. Por uma espcie deeconomia fontica, esses ritmos so recorrentes, assim como cada lngua utiliza um nmeroreduzido de fonemas. A sonoridade e o ritmo, que esto presentes em cada palavra, so,assim, o ponto de partida para a musicalidade da poesia e, por extenso, da literatura.Essas propriedades musicais da palavra vm sendo estudadas desde a retrica clssica,incluindo a peiformance do orador, especialmente o cuidado com a fala: a entonao, a

    intensidade, a velocidade, as pausas, etc. H registros de que Demstenes, o maior oradorda Grcia antiga, teve aulas com um ator, visando aprimorar suapeiformance. Com respeito aestudos sobre a declamao de poemas, Aristteles menciona Glauco de Teos, cujo textono chegou at ns. O dilogo on, de Plato, embora enveredando por uma outraabordagem, sugere a importncia dos rapsodos, que declamavam os poemas de Homero.Na Antiguidade, os estudos mais detalhados sobre a peiformanceso os de Quintiliano, naInstitutio oratoria (A educao oratria, ou, mais livremente,A educao do orador).

    Nosso conceito de literatura, por outro lado, foi se afastandoda oralidade e est intimamente associado ao suporte livro e leitura silenciosa e solitria. Dessa forma, a musicalidade das palavras tornou-se, para ns,principalmente uma possibilidade, uma virtualidade. Uma possibilidade do texto que

    atualizada em geral, apenas mentalmente a cada leitura. Essa musicalidade realmente concretizada pela leitura em voz alta e pela declamao.Existe, assim, uma msica de palavras. Nos versos de Cecilia Meireles, na epgrafe acima, apalavra murmuraimita o barulho da guas, enquanto a repetio dos erres sugere o barulhodo remo: O remo abre o rio.

    Outra interao da msica com a literatura a msica verbalespcie de descrio deuma composio musical, especialmente seus efeitos sobre o ouvinte. Nesses casos, o autorfreqentemente expressa suas sensaes ou as de um personagem a partir da audio deuma msica real ou fictcia , o que nos faz enveredar pela recepo musical.Uma outra interao a imitao de estruturas musicais pelo texto literrio como, porexemplo, tema e variao, contraponto, rapsdia e sonata. Essas interaes so alguns dos

    tpicos abordados pela professora de literatura Solange Ribeiro de Oliveira. Seusconhecimentos de literatura e de msica permitem-lhe transitar com facilidade por essesdois campos, oferecendo-nos uma viso bastante clara da melopotica, campo de estudosinterartes rnsica/ literatura.

    A poesia lirica, como o nome sugere, era acompanhada pela lira. Na Grcia haviaoutras formas de acompanhamento da poesia, como a flauta, alm de poemas feitos paraserem apresentados com msica e dana, o hiporquema. Por outro lado, a msica tambmnasce associada poesia. A msica instrumental desenvolveu-se posteriormente. Essahibridao de linguagens no difcil de entender se pensarmos na cano popularcontempornea, cujos showsassociam poesia, canto, msica e dana.

    A cano popular, como o nome sugere, visa o grande pblico, a fcil recepo.

    Pode ocorrer, entretanto, uma poetizao da cano, quando a letra atinge o plano daletra-arte: poesia.

  • 7/15/2019 LITERATURA E MSICA

    9/85

    Esse o tema que o letrista Carlos Renn aborda em seu ensaio, destacando umdos grandes momentos de associao de msica e poesia na tradio ocidental, a poesiatrovadoresca, dando um salto para falar da cano popular norte-americana e brasileira. Elecomenta procedimentos sonoros e rtmicos, como rimas entre estrofes diferentes, quase -rimas ou pseudo-rirnas, alm do apelo imagtico, exemplificando com Cho de estrelas, de

    Orestes Barbosa, e alguns versos de Prince.Graas sua experincia como tradutor de canes, ele oferece exemplos concretosde desafios e solues. Em sua visoque retoma a de Pound e a dos poetas concretistasbrasileiros, no se trata de traduzir apenas o quese diz, mas tambm o como se diz. Almde procurar recriar os efeitos estticos, ele tambm busca a melhor cantabilidade possvelpara as palavras em portugus. Esse conceito cantabilidade parece abrirperspectivas minto frteis para o estudo da poesia e da cano.

    Outro procedimento utilizado por Carlos Renn a transposio para umcontexto brasileiro, procedimento que poderia ser denominado transculturao e quepoderia, talvez, ser colocado como um outro tipo de traduo, ao lado dos trs tiposidentificados por Jakobson: traduo dentro da mesma lngua, de uma lngua para outra e

    da linguagem verbal para a no verbal ou vice-versa. Entre vrias solues to criativas, citouma das estrofes da traduo de Carlos Renn para A Picture of MeWithout You(1935) (Aimagem de mim sem voc), de Cole Porter:

    Imagine Kant sem a razo,Imagine Guirnares sem o serto,

    Imagine Tyson sem um cruzado,Imagine Marylin Monroe sem um pecado,

    Imagine Kraus sem um desdito,Imagine Dom Pedro sem um grito,

    Junte tudo isso e a voc temA imagem de mim sem voc.

    O violeiro Paulo Freire junta seus interesses pela msica, especialmente pela viola(acstica, eltrica, de cocho, sem preconceitos), e pela literatura (de Guimares Rosa sletras de Angelino de Oliveira) com o interesse pelo outro, pelo convvio, pelo partilhar dehistrias, experincias e emoes. Esse interesse pelo outro faz com que ele veja nos causostodo um imaginrio coletivo, criador de laos entre as pessoas. Essas pontes so criadastambm pela msica especial do falar, especialmente a musicalidade da fala do caipira.Nesse universo, surgem diferentes interaes entre literatura e msica, alm da msica dafala: os toques de viola, que so um tipo de msica instrumental, que geralmente contamuma histria, o que leva Paulo Freire a falar em arte de transformar causo em msica,alm do estilo falar e cantar, de Raul Torres e Florncio, que declamam um poema edepois seguiam com a msica desenvolvendo o caso contado no poema.Na tradio popular, as interaes entre literatura e msica fazem parte de manifestaesculturais formadas por um conjunto complexo de artes em que os limites entre artista epblico no so rgidos. Na prosa gostosa de Paulo, o leitor introduzido nas tradies daFolia de Reis. Tradies que tm suas regras e suas surpresas, como o leitor ver.

    A jornalista e pesquisadora Maria Alice Amorim fala sobre uma das vrias manifestaes daliteratura oral: a poesia improvisada, especialmente a de repentistas e a de mestres demaracatu rural.

    Embora improvisada, a poesia segue certos padres de organizaoestrfica, rtmica e rmica, configurando mais de setenta gneros poticos, dos quais cercade cinqenta encontram-se em uso. Graas a uma farta bibliografia, que oferece umaperspectiva histrica, alm de pesquisa de campo, o ensaio traz vrios exemplos dessadiversidade.

    A literatura popular no esttica, afirma Maria Alice. Isso fica plenamentedocumentado por sua referncia organizao de congressos, lanamentos de CDs, etc.

  • 7/15/2019 LITERATURA E MSICA

    10/85

    Outro ponto a destacar a mudana no perfil cultural dos criadores, que tanto podem terpouca escolaridade como ser ps-graduados.

    A nomenclatura popular diferente da erudita a estrofe, por exemplo, denominada verso; o verso, linha ou p , podendo criar certo estranhamento. Hdenominaes saborosas, como quadro, para oitava. Aprendemos que o repentista tem

    que ter baio e sonora. Baio refere-se ao toque de viola e, assim, ao talento comoinstrumentista, enquanto sonorarefere-se voz.Embora rapidamente, Maria Alice tambm fala sobre a formao do repentista e da

    presena feminina, completando o quadro sobre manifestaes tradicionais to ricas, aindato atuantes e com grande receptividade seria melhor dizer particzao do pblico.Da passamos ao rap. O rap um gnero musical, um tipo de cano, mais do que umapoesia para ser cantada, uma poesia para ser declamada, com nfase no ritmo e comacompanhamento musical. Isso est sugerido no termo rap, abreviatura de rhjthm and poetrj,ritmo e poesia. O rap um dos elementos de uma manifestao cultural mais ampla, o hip-hop, cultura de rua constituda por uma msica (rap), uma dana (break), uma manifestao

    visual (grafite) e dois atores indispensveis: o DJ e o MC.

    Os nomes e as siglas j sugerem a origem norte-americana. Manifestao deresistncia cultural e de protesto, em sua origem, vai ganhando outras funes, ao espalhar-se pelo mundo. Na Frana, por exemplo, assume um carter mais literrio.No Brasil, so ainda bastante recentes os estudos sobre o rap. A jornalista Janaina Rocha

    vale-se de pesquisas realizadas por ela mesma para a elaborao de livro e de vdeo, alm doreferencial da teoria literria que ela busca em Antonio Candido eJonathan Cuiler.

    Em Candido, ela se apropria do conceito de sistema literrio composto pela trade autor-obra-pblico formando uma tradiopara procurar entender a produo, circulao e recepo do rap, sem esquecer que ele uma espcie de subsistema dentro da indstria cultural. Como lembra Bosi, citado por

    Janaina, na sociedade capitalista avanada, no h nenhuma obra que, publicada, se possa

    dizer inteiramente marginal.Cuiler fornece a Janama elementos para refletir sobre alguns aspectos bastantecaractersticos do rap, como a reciclagemmusical, fenmeno que tem sua contraparte literriana intertextua/idade.

    No processo de legitimao e reconhecimento do rap no Brasil, Janaina destaca apublicao Literatura marginal, organizada por Ferrz, que rene escritores, rappers egrafiteiros. O Manifesto de abertura, assinado por Ferrz, com referncias a Joo

    Antnio e ao cordel, serve para Janaina mostrar a construo das imagens de literaturamarginal e de literatura popular, visando construo de uma tradio e buscandoreconhecimento. Ela tambm estabelece uma aproximao com um texto fundamental parase compreender a potica de Joo Antnio, Corpo-a-corpo com a vida. Sem dvida uma

    aproximao que oferece pistas muito ricas para a compreenso da potica do rap.Os ensaios aqui reunidos so resultado de cinco minicursos oferecidos no Ita Cultural, emSo Paulo, em julho de 2002.

    Esses cursos fazem parte de uma srie, iniciada em 1999, que j resultou em trslivros publicados em co-edio com a Editora Senac So Paulo: Rumos da crtica, Outrasleiturase Literatura, cinema e te/ento.

    O livro Literatura e msicareafirma a crena de que os estudos literrios podem seenriquecer com abordagens feitas por profissionais de outros campos do conhecimento,como os aqui reunidos, alm da necessidade de se abordar as relaes da literatura comoutras artes e mdias, em um momento em que so tantas e to Intensas essas interaes.O pblico grego e o medieval tinham e o nordestino ainda tem uma recepo oral, mas

    tambm visual e presencial, pois tratava-seou ainda se tratade ouvir e ver o rapsodo,jogral ou repentista diante de si. Hoje, obras, personagens e temas literrios apresentam-se

  • 7/15/2019 LITERATURA E MSICA

    11/85

    freqentemente em meios audiovisuais e eletrnicos. A audio e a viso parecem, assim,preceder a leitura, O que no significa, obviamente, uma morte da leitura, mas umaalterao significativa em sua natureza.

    Outro ponto a destacar na alterao da natureza da leitura a multiplicao de sitesliterrios, especialmente em lingua inglesa, com transcries de obras literrias

    geralmente de domnio pblico, inclusive em verses fac-similares, sitesde pesquisa, quepermitem a comparao de textos originais, diferentes tradues e recriaes (como asfbulas de Esopo, recriadas por Fedro, La Fontaine, etc.).

    Literatura e msica abre, assim, uma janela sobre uma vasta paisagem. Sua leituracertamente amplia nosso hori2onte de expectativas em relao ao texto literrio, ao mesmotempo que amplia nosso conceito de literatura, ao mostrar as interaes do literrio comoutros sistemas culturais. Sua releitura e a conseqente familiaridade com os vriosconceitos aqui expostos modificam nosso modo de ler e de ouvir, a comear por umapercepo mais acurada do estrato sonoro dos textos, abrindo-se, em seguida, para as vriasinteraes entre literatura e msica aqui abordadas.

    Lus Camargo

    Coordenador dos cursos que deram origem a este livro

  • 7/15/2019 LITERATURA E MSICA

    12/85

    INTRODUO MELOPOTICA: A MSICA NA LITERATURA BRASILEIRA

    SOLANGE RIBEIRO DE OLIVEIRA

    [..] vargas msicas sem som,mortas baladas de enterrado amor

    Abgar Renault, Windermere, Ambleside, Grasmere, em Obra potica.

    longa e venervel a histria das relaes entre a msica e a literatura, objeto deestudo da melopotica (do grego, meios= canto +potica), sugestiva designao cunhada porSteven Paul Scher para essa disciplina indisciplinada. Filiada antiga tradio que associaa literatura e as outras artes, remonta citao, feita por Plutarco 1, de uma afirmaoatribuida a Simnides de Ceos, que, cerca de quinhentos anos antes de Cristo, referia-se poesia como pintura falante e pintura como poesia muda. Para a arquitetura, podemosacrescentar a expresso msica congelada, usada por Goethe e por Schelling. Ut picturapoesis (A poesia deve ser como um quadro), verso inicial da Arte potica de Horcio,retoma a analogia de Ceos, passando a nomear emblematicamente a linha crtica voltadapara as referncias mtuas entre as artes. Inserida nessa tradio, a melopotica afrrma-segradativamente a partir do sculo XVI, at atingir, em nossos dias, o prestigio que lheconferem a literatura comparada e a inclinao ps-moderna pela fuso entre os vriossistemas artsticos.

    O estudo da contribuio da musicologia para as anlises interdisciplinares encontraadeptos ilustres no sculo XX. Lvi-Strauss2 aponta na teoria musical, ou, maisprecisamente, na concepo de acordes proposta por Rameau, uma precursora da anliseestrutural nas cincias humanas, alcanando tambm a literatura. Uma incurso nesseterreno, que poderamos denominar ulmusica joesis, conduz a questes tericas muito gerais,como a fundamentao para as ligaes entre as artes e os contrastes entre as respectivaslinguagens. Nesse sentido, perguntas instigantes, formuladas atravs dos tempos, vmsendo retomadas por tericos contemporneos como Eugne Souriau, Steven Paul Scher,Calvin Brown, Susanne Langer, Michel Butor, Roland Barthes, Nancy Anne Cluck, Ulrich

    Weisstein, L. e H. Rice-Sayre, Jon de Green e, no Brasil, Mrio de Andrade, Jos MiguelWisnik e outros. De modos diversos, voltam baila antigas indagaes. Como justificar aprtica ininterrupta das leituras intersemiticas? Haveria uma vinculao essencial entre asartes, testemunhada pelo registro histrico, sugerindo um passado remoto, quando dana,canto e poesia constituiriam uma obra de arte global, ainda testemunhadas, nos dias dehoje, pela inseparabilidade entre msica, dana e poesia em culturas da oralidade? Outrahiptese, endossada por Robert Jourdain, prope que a possibilidade de aproximaesinterartes repousa numa fundamental unidade emprico-psicolgica, origem doentrelaamento, no crebro humano, de diferentes percepes sensrias e estticas.Susanne Langer oferece mais uma explicao, implcita nas anlises comparativas, para aessencial unidade dos vrios sistemas artsticos. Segundo a filsofa, cada arte projeta uma

    viso particular da experincia, uma apario primria, que pode se manifestarsecundariamente em outro sistema, possibilitando os paralelos entre eles. No caso damsica e da literatura, a aproximao seria ainda mais justificada, j que, alm departilharem o mesmo material bsico o som, ambas tm o tempo virtual como suaapario primria. Trilhando outro caminho, a anlise semiolgica representada por Jean-Louis Scheffer, Louis Marin, Michel Butor e Roland Barthes, entre outros, postula quetodo objeto artstico constitui um texto, convidando a uma leitura, ou seja, a uma

    1

    Plutarco, Were the Athenians More Famous in War or in Wisdom, emPlutarchs Moralia, trad. FrankCole Babbitt, vol. 4 (Cambridge/Londres: Harvard University Press. Heinemann, 1972), p. 5012 Claude Lvi-Strauss, Olhar, escutar, ler(So Paulo: Cia. das Letras, 1993), p. 35

  • 7/15/2019 LITERATURA E MSICA

    13/85

    interpretao vazada em linguagem verbal. Mediando a recepo de todas as criaesartisticas, a verbalizao, consciente ou no, justificaria as anlises intertextuais. Valida-se,assirri, a perspectiva semitica, que toma as artes como diferentes tipos de linguagem,interligados por equivalncias estruturais as chamadas homologias confluentes nocontexto social.

    Oferecendo denominadores comuns para sua abordagem, as homologiasaproximam as artes, incluindo, evidentemente, literatura e msica. Trabalhando o mesmotipo de materialblocos sonoros em movimento, embora de diferente qualidade acstica

    , as duas artes englobam sistemas sgnicos rivais. Dentro dessa concepo, a msica,segundo Langer, constitui um sistema de signos sui generis, integrado por simbolos no-consumados, j que lhes falta o elemento referencial, de alguma forma presente nalinguagem verb ai.

    Discusses tericas como essas so complementadas pela crtica e historiograflaliterrias. Em tempos relativamente recentes, o florescimento do romantismo e dosimbolismo destaca momentos cruciais para o entrelaamento de literatura e msica,evidente no interesse dos romnticos pelas relaes entre as artes em geral. A data

    aproximada de 1800 assinala o auge do clima em que crticos e artistas afirmam,simultaneamente, a supremacia da criao esttica na hierarquia das realizaes humanas.Sinestesia a palavra de ordem de muitos desses romnticos, partindo do famosoconceito de arquitetura como msica congelada, citado por Schelling3 em suasconferncias de Jena-Wrsburg sobre a filosofia da arte. Crticos e artistas utilizam noesmetafricas como msica verbal, pintura tonal, orquestrao de cores e planossonoros, visando anulao das fronteiras entre a pintura, a poesia e a msica. Expande -se, assim, a conhecida literatizao da pintura e da msica durante todo o sculo XIX, aolado do destaque concedido s artes visuais por Ludwig Tieck, E. T. A. Hoffmann e pelospr-rafaelitas. No se restringindo a motivos e temas, o impacto da msica sobre aliteratura mais profundo e abrangente que o das artes plsticas. As qualidades acsticas de

    slabas, palavras e frases, as propriedades sonoras de locues verbais passam a ser cada vezmais apreciadas como fenmenos essencialmente musicais.O que os romnticos iniciaram os simbolistas terminaram, comenta Edmund

    Wilson. Emular o carter indefinido da msica tornou-se um dos principais objetivos donovo movimento. Wilson menciona o formidvel impacto da teoria e da msica de Wagnersobre os simbolistas, bem como o pronunciamento de Poe sobre o carter vago da

    verdadeira msica da poesia. A obsesso pela instrumentalizao sonora faz-se presente emVerlaine e em Ren Ghil; a partitura musical e espacializada comparece no texto analgicode Mallarm, sem esquecer o que o crtico brasileiro Antonio Manoel4, em importanteestudo sobre a msica na potica de Mrio de Andrade 5, denomina a vidncia rfica deRimbaud. Na Alemanha, a tripla constelao constituda por Schopenhauer,

    Difundidas na Europa por Mme. de Stel e por Byron, as conferncias s foram publicadaspela Wagner e Nietzsche introduz a preocupao com a msica na formulao de sua teoriacrtica e metafsica. Wagner pode no ter obtido o sucesso desejado na criao daGesamtkunstwerk, a obra de arte total, mas conseguiu tornar mais aceitvel a tese, deSchopenhauer, para quem a msica constitui a expresso imediata da vontade. FriedrichSchler tambm interessou-se pelo carter musical da poesia. Suas consideraes envolvemtrs tpicos: o aspecto meramente sonoro do texto, a questo da msica como expresso

    3Germanic Review, n 19, Nova York, 1944, pp. 284-308. Edmund Wilson, Axes Caste (Nova York:

    Charles Scribners Sons, 1943), p. 13.4Antonio Manoel, A msica na primeira potica de Mrio de Andrade, em Carlos Daghlian (org.)5Poesia e msica, Coleo Debates, n 195 (So Paulo: Perspectiva, 1985), p. 18. 20

  • 7/15/2019 LITERATURA E MSICA

    14/85

    direta, imediata e exclusiva da emoo, e a ordenao artstica da sucesso temporal nacriao literria e musical6.

    De um modo geral, as associaes invocadas pelos poetas simbolistas dizemrespeito maneira pela qual a msica, em sua preciso formal, afeta o ouvinte: comoexperincia imanente, transfiguradora, recepo sensria difcil de identificar com uma idia

    ou emoo precisa. Em termos tcnicos, a insistncia dos simbolistas sobre a hesitaoentre o som e o sentido na produo potica, resumida pela frase de Verlaine, de lamusique avant toute chose, traduz-se principalmente na explorao de estruturasfonmicas e tonais. A Chanson grisedo poeta francs inspirou um vasto nmero de poemas

    visando a efeitos de instrumentos musicais, da flauta de Mallarm em Laprs-midi dinfameaharpas, clarins, sinos e guitarras, cada um com seu timbre particular. Por volta de 1895,busca-se estabelecer uma conveno de simbolos e poesia lrica simulando efeitos musicais.Ren Ghil, freqentador do circulo de Mallarm, chega a redigir um ensaio terico, Le traitdii verbe, buscando uma base cientfica para a correlao entre som instrumental ecombinaes sonoras na poesia. Outros, como Gustavo Kahn, concentram-se na

    versificao, visando a liberar a prosdia francesa da tirania secular do alexandrino7.

    De certa forma, a proposta sirnbolista enfatiza aquilo que, em maior ou menor grau,sempre esteve presente na poesia de todos os tempos: a explorao de recursos fnicos eacsticos. Prprios da linguagem verbal e da musical, explicam a milenar proximidade entreliteratura e msica, artes irms, geradas pelo enlace entre som e dimenso temporal. Noestrato sonoro da literatura, destacam-se imagens acsticas como assonncia, consonncia,aliterao, onomatopia, variaes tmbricas e distribuies fonemticas, alm de elementosrelacionais, essncia do ritmo e da mtrica, que incluem acentuao tnica, rima,enjambemente pausas expressivas8.

    A sonoridade destacada na linguagem potica no se restringe, evidentemente, vaga musicalidade de romnticos e simbolistas. Prolongando-se na modernidade, faz pensartambm naquilo que W. K. Winsatt chama de orquestrao verbal ou relao homofnica9,

    mais audvel, imediata e ntida.No Brasil, a relao entre literatura e msica exemplarmente ilustrada pela poesiade Manuel Bandeira, o mais musical de nossos poetas do sculo XX, autor de Os sapos, hinooficial do modernismo, notvel pelo apelo de seu estrato fnico. No fica atrs o jogo deassonncias, consonncias e aliteraes de Berimbau, em O ritmo dissoluto:

    Os aguaps dos aguaaisNos igaps dos Japuts

    6 Cf. H. A. Basilius, Thomas Manns Use 01 Musical Structure and Techniques in Tonio Krger, emNancy Anne Cluck, Literature and Music: Essays on Form (Provo: Brigham Young University Press,1981), pp. 153-174.7 Ver a respeito AIex Preminger et ai., Symbolism, em The New Princetori Encyclopedia of Poetryand Poetics, edio de Earl Miner (Princeton: Princeton University Press, 1993), pp. 1256-1257.8 Ver Maria Luza Ramos, O estrato tnico, em Fenomenologia da obra literria (38 ed. Rio deJaneiro: Forense-Universitria, 1974), pp. 38-57.9Ct. Franklin de Oliveira, Nota preliminar, em Manuel Bandeira,Poesia completa e prosa (4 ed. Riode Janeiro: Nova Aguilar, 1986), p 30.

  • 7/15/2019 LITERATURA E MSICA

    15/85

    Bolem, bolem, bolem.Chama o saci:Si si si si!

    Ui ui ui ui iii! uiva a IaraA mameluca uma maluca.

    Saiu sozinha da maloca.

    Como negar a musicalidade dominante no poema? Mais que o sentido, a msica daspalavras puxa a linha do verso, fazendo que a dimenso semntica brote, como Vnus dasondas, do borbulhar sonoro. Coerente com o predomnio do estrato acstico sobre osemntico, o texto inteiro reverbera com a explorao de assonncias, consonncias ealiteraes estrategicamente situadas. O chamado do saci evoca a ltima nota da escala ded. A interjeio ui! gera a forma verbal uiva. O adjetivo maluca nasce do nomemameluca, que o contm, denunciando o jogo de palavra puxa palavra, que Me lquiorsurpreende na poesia de Drummond e que perpassa todo o poema de Bandeira10. Ao fim eao cabo, que toda essa pirotecnia sonora contribua para evocar a paisagem da Amaznia,

    com suas figuras lendrias, parece esse um dos segredos da grande arte resultar damgica mo do acaso, celebrada pelo soneto de Keats11.Do ponto de vista da melopotica, sobram razes para lembrar a obra de Bandeira.

    Como vimos, a explorao da musicalidade intrnseca linguagem verbal, de suaspropriedades sonoras e rtmicas, visando a um efeito conativo-afetivo semelhante ao daobra musical, exemplarmente ilustrada por sua potica. Ademais, o poeta demonstravaamar e estudar a msica, tendo contribudo com resenhas crticas de concertos para arevista Idia Ilustrada, editada por Lus Anbal Falco. Seu Itinerrio de Pasrgadavoltarepetidas vezes ao tema do vnculo essencial entre a linguagem potica e a musicalidade 12.Falando da influncia da msica sobre sua arte, discute o efeito encantatrio e a atraoexercida por certas palavras, cuja funo no texto , no raro, puramente musical.

    Menciona os valores plsticos e musicais dos fonemas, creditando a efeitos meldicos apeculiar sensao de surpresa criada pela boa rima. Pensando, certamente, no empregomusical de tema e variao, o poeta atribu msica, e no imitao de qualquer modeloliterrio, a repetio de um ou dois versos, s vezes de uma estrofe inteira, em muitospoemas deA cinta das horase de Carnaval. Informa que, poca da publicao do primeiro,estava to impregnado dos liederde Schubert que quase usou como epgrafe a frase inicialdo itied Der Leiermann. Sobre Carnaval, Bandeira acrescenta que, lembrando o famoso Opus9de Schumann, imaginou fazer algo do mesmo gnero em poesia, ou seja, combinar ritmosdiferentes. No poemaEvocao do Recife, destaca a inteno musical no uso das duas formasCapiberibe Capibaribe: a primeira vez com e, e a segunda com a, me dava a impressode um acidente, como se a palavra fosse uma frase meldica dita na segunda vez com

    bemol na terceira nota. De igual modo, em Neologismo, o verso Teadoro, Teodora leva amesma inteno, mais do que de jogo verbal.Bandeira vivenciou ainda outros tipos de colaborao com a msica. Muitos dc seus

    poemas foram escolhidos livremente para ser musicados; alguns, como Trem de ferro,Berimbau, Azulo e Dentro da noite,vrias vezes, por diferentes compositores. Jaime Ovaile e

    Vila-Lobos tambm ofereceram melodias para que Bandeira compusesse o texto. Citandoas consideraes de crticos musicais sobre a marcada preferncia por seus poemas como

    10Manuel Bandeira, O ritmo dissoluto, em Poesia completa e prosa, cit., p. 196.11When 1 have fears that 1 may cease to be[...] And think that 1 may never live to trace Their shadows, withthe magic hand of chance, John Keats, em Arthur Quilter-Couch (org.), The Oxford Book of English Verse

    1250-1900 (Nova York: Bartleby.com, 1999), soneto de 1818.1212 Manuel Bandeira, Itinerrio de Pasrgada, em Poesia completa e prosa, cit., pp. 33-111; em especial pp. 34,41, 42, 45, 50-53, 56-57, 68-74 e 85.

  • 7/15/2019 LITERATURA E MSICA

    16/85

    letras para canes, Bandeira discute a relao entre a musicalidade possvel na poesia e amsica propriamente dita, cuja acstica especfica no pode ser reproduzida pela linguagem

    verbal: paradoxalmente, um fosso intransponvel convive com as afinidades entre literaturae msica.

    Nesse sentido, a teorizao de Itinerrio de Pasrgada, bem como a composio dos

    poemas citados, concentra-se num tipo de relao que Steven Paul Scher, tratando dadimenso musical embutida na literatura, chama de msica de palavras. Na tipologia qu eprope para o estudo da melopotica, Scher define msica de palavras como a imitao,pela linguagem verbal, da qualidade acstica de sons musicais exemplificada pelaonomatopia. Na poesia brasileira, para exemplificar essa imitao, escolho a ldicaexplorao do estrato fnico na poesia de Bandeira. A msica de palavras, segundoScher, contrasta com a imitao de estruturas e tcnicas musicais no texto literrio, etambm com msica verbal, equivalente literrio de partituras existentes ou imaginrias,constitudo pela apresentao literria (em poesia ou prosa), de composies musicais,reais ou fictcias13.

    A construo semelhante empregada na composio musical tambm se faz

    representar na obra de Bandeira. Mestre na criao de msica de palavras, Bandeirarecorre a modelos musicais para a estruturao de alguns de seus poemas, particularmente tcnica denominada tema e variao, constante na maioria das formas musicais, comotambm na poesia e at na prosa. Na fico, a tcnica chega a ser explicitada no ttulo de

    Missa do galo, variaes sobre o mesmo tema, srie de reescritas do conto de Machado de Assispor seis autores contemporneos14. No por acaso, Tema e variaes precisamente onome de um poema de Bandeira em Opus 10, outro ttulo claramente indicativo deinspirao musical:

    Sonhei ter sonhadoQue havia sonhado.

    Em sonho lembrei-me

    De um sonho passadoO de ter sonhado

    Que estava sonhando

    Sonhei ter sonhadoTer sonhado o qu?

    Estar com voc.Estar? Ter estado,

    Que tempo passado.

    Um sonho presenteUm dia sonhei.

    Chorei de repente,

    Que vi, despertadoQue tinha sonhado.15

    O ncleo semntico do poema o paradoxal sentimento de simultnea perda epreservao de uma experincia passada, cuja veracidade questionada pelapersonalrica introduzido por uma espcie de mote constitudo pela linha inicial, Sonhei ter sonhado.

    Esse verso, instituindo-se como um tema semelhante ao decomposio musical, sofre uma srie de acrscimos e reformulaes, que constituem as

    13Cf. Steven Paul Scher, Literature and Music, em Jean-Pierre Barricelil, Interrelations ofLiferature, edio deJoseph Gibaldi (Nova York: MLA, 1982), pp. 225-250.14

    Reescrevem o conto Antnio Caliado, Autran Dourado, Julieta de Godoy Ladeira, Lygia Fagundes TelIes,Nlida Pion e Osman Lins (So Paulo: Summus, 1977).15Manuel Bandeira, OPUS 10, em Poesia completa e prosa, cit.,pp. 298-299.

  • 7/15/2019 LITERATURA E MSICA

    17/85

    variaes. Elas surgem inicial- mente nas doze linhas que contm uma forma cognata desonhei, primeira palavra do poema. A variao consiste geralmente na mudana dotempo verbal ou do significado da palavra-chave tempo. Dos cinco versos restantes, doisligam-se gramaticalmente aos anteriores por conter igualmente uma variao de forma

    verbal (Estar com voc. /Estar? Ter estado), enquanto outro verso (Que tempo

    passado) gera um trocadilho com os dois sentidos da expresso tempo passado: osentido gramatical de forma verbal pretrita e a significao genrica de espaocronolgico anterior ao momento atual. Remetendo tambm ao duplo sentido, ogramatical e o cronolgico, da palavra presente, o verso Um sonho presente resume aperfeita integrao do conjunto forma-contedo que constitui o texto. Ficam assimenfatizadas tanto a natureza evanescente da temporalidade como a dvida sobre apossibilidade de se recuperar, pela memria, a experincia humana, condicionada por essatemporalidade. A temtica da vida como mltiplo questionamento da realidade srie desonhos dentro de outros sonhosemerge da tcnica utilizada.

    Como outro exemplo da utilizao de tema e variao na literatura brasileira, citoDrama de Brbara Heliodora. Esse poema de Henriqueta Lisboa em Madrinha lua

    expande, com inmeras variaes, um tema constitudo por versos de Alvarenga Peixoto,que descrevem e comentam os destinos da esposa e da filha do inconfidente:

    Brbara belado norte estrela

    que o meu destinosabesguiar.

    Quem que assim cantacomo quem est chorando?

    Suas faces encovaram,seus olhos se amorteceram,

    sobre seus cabelos negroscai uma chuva de cinza.

    Ah! E havia tanta brasaem torno de seus cabelos,

    tanto sol na sua ilharga,tanto ouro nas suas minas,

    tanto potro galopandoEm suas terras sem fim.

    [...]Tu entre os braos

    temos abraosda filha amadapodes gozar.

    [...] deveras a Princesa

    do Brasil, essa meninade madeixas escorridas,

    de lbios esmaecidos,de tnica mal vestida?

    Essa, a mesma por quem vinhamda Corte os melhores mestres

    de dana e lngua estrangeira?A de damascos e aurolas

    a quem brotavam nos dedostbios ramos de coral?

    [...]16

    16Henriqueta Lisboa, Madrinha lua, em Obras completas(So Paulo: Duas Cidades, 1985), pp. 211-214.

  • 7/15/2019 LITERATURA E MSICA

    18/85

    Com procedimentos to inequvocos, Bandeira e Henriqueta tinham certamente emvista o significado tcnico dos termos tema e variao. Para a teoria musical, tema aidia musical que serve de ponto de partida para uma composio, como sonata, sinfonia,quarteto de cordas, fuga, ou ainda as chamadas formas variacionais, a chacona, a

    passaca,g/ia e o basso ostinato, enquanto a variao consiste na reiterao do tema, com

    alguma alterao, de qualquer natureza, incluindo ritmo, tonalidade, acompanhamento,orquestrao, etc17.Os conceitos de tema e variao, bsicos para a teoria musical, tm sido

    amplamente utilizados tambm na anlise literria. Calvin Brown defme a variao comouma verso do tema, coerentemente reconhecvel como tal18. No entender de Brown, o usode tema e seu reaparecimento nas variaes tm a mesma importncia para a literatura epara a msica: toda mtrica depende de repetio e variao, embora, na literatura, arepetio exija mais cautela. Um poema de mtrica totalmente regular seria tomortalmente cansativo como uma composio musical em tempo quaternrio com quatrosemnimas em cada compasso. Brown enumera outras dificuldades inerentes ao uso detema e variao na literatura, que no pode duplicar totalmente o modelo musical. H

    problemas tcnicos, como a extenso do tema e das variaes. Na msica, o compositorusa muitas vezes o que os elisabetanos chamavam de divises: o compasso bsico sedivide em notas de duraes decrescentes, como no Andante da Quinta sinfonia deBeethoven. O recurso no pode ser utilizado na poesia, em que a velocidade das sila Ateoria musical distingue diferentes tipos de variaes, tais como variaes seccionais e

    variaes contnuas. A variao pode ocorrer na harmonia, na melodia, em ambas, ou,composies modernas, de modo inteiramente livre, podendo at chegar a dificultar oreconhecimento dos contornos estruturais do tema.

    Slabas variam muito menos que a das notas musicais e escapa inteiramente aocontrole do poeta. Ademais, se as variaes literrias se afastarem muito do tema, no seroreconhecidas pelo leitor: muito mais fcil lembrar um elemento musical, como a melodia,

    que a letra de uma cano. O escritor enfrenta ainda outro problema: cada variao deveatingir um efeito de novidade, pois a redundncia, prazerosa na msica, dificilmente o serna literatura. Para evit-la, os poetas recorrem a artifcios prprios, como variar a imagemusada ou, no caso de mant-la, sugerir uma interpretao diferente a cada vez que umaimagem reaparece.

    O emprego de tema e variaes, conhecido desde o sculo XVIII, persiste nossculos XIX e XX, em iniciativas independentes, geralmente de poetas menores. Brownaponta possibilidades diversas exploradas na literatura (algumas raramente usadas): variaode mtrica, de tom, de ponto de vista, ou na estrutura sonora global. Exemplifica o uso de

    variaes na fico com Une page darnour, de Zola, esclarecendo que o paralelo no exato,pois as variaes no aparecem em seqncia, como no tema e variaes musicais, mas

    distribudas igualmente por todo o texto. O romance dividido em cinco partes, todas comcinco sees. Cada parte se encerra com um captulo de dez a doze pginas caracterizadopela descrio de uma vista de Paris. As cinco descries funcionam como cinco variaesde um mesmo tema: so descritos sempre os mesmos monumentos, mas vistos sobiluminaes diferentes e em diferentes meses do ano. Curiosamente, os textos surgem cercade vinte anos antes que Monet pintasse suas Catedrais, sries de representaes da catedralde Rouen vista em circunstncias diferentes e sob condies variveis de luz. Zola antecipaassim, em forma literria, a prtica do pintor, exemplificada tambm pelas diferentes

    verses de seusMontes defino e deNernfares.

    17

    Cf. Willi Apel, Harvard Dictionary of Music(Cambridge: Harvard University Press, 1972), pp. 843 e 892.18Calvin Brown, Theme and Variations as a Literary Form, em Nancy Anne Cluck, Literature and Music:Essays on Form, cit, pp. 70-82.

  • 7/15/2019 LITERATURA E MSICA

    19/85

    A tcnica de tema e variao, entendida como uma repetio mais ou menosalterada de material j conhecido, faz-se presente em quase todos os gneros musicais,ensejando a criao de formas comopassacaglia, rapsdia, contraponto e fuga. Tambm paraessas formas existem equivalentes literrios. EmA morte em Venea, novela de Thomas Mann

    na obra desse autor o elemento musical to importante que s o romance Doutor

    Fausto j inspirou mais de mil trabalhos na linha da melopotica , Vernon Venableaponta o equivalente literrio de uma passacaglia, que integra uma variao continuamenterepetida, identificada, na narrativa de Mann, com o motivo da morte 19.Outros trabalhos investigam a possibilidade de transposio literria do contraponto noqual duas ou mais linhas meldicas soam simultaneamente e de sua forma maisdesenvolvida, a fuga. Nem todos os crticos concordam com a possibilidade de emulaoliterria desse tipo de criao musical. H. A. Basilius traz baila a objeo de ReginaldPeacock: a imitao exata do contraponto impossvel na literatura, cuja linguagem,forosamente Imear, incapaz de fazer soar ao mesmo tempo dois pontos contrastantes,como na polifonia e no contraponto musical. No Brasil, Mrio de Andrade tenta, semmuito sucesso, enxergar a simultaneidade, ou combinao harmnica, exigida pelo

    contraponto, em frases de natureza nominal, semanticamente disjuntivas e sucessivamenteapostas sem formas nexivas20. Basilius vai mais longe. Alega que a expressividade musicalcontrapontstica pode ser obtida na literatura por meio de temas contrastantes, mesmo quedispostos em forma seqencial. Argumentando no mesmo sentido, Jean-Louis Cupersacrescenta que o contraponto literrio no contempla, evidentemente, a simultaneidadesonora de vrias partes, mas o jogo temtico, acompanhando, ao mesmo tempo, aarticulao sinttica do texto e os jogos metafricos que comandam sua decodificao.

    Afirma-se, assim, na literatura, uma estranha presena/ausncia da arte irm21.Numa linha semelhante, William Freedman analisa o romance de Laurence Sterne, TristramShandj, como uma forma de contraponto literrio, que antecipa, em quase dois sculos, amusicalizao da fico espetacularmente tentada por Aldous Huxley no romance

    musical Point Counter Point(Contraponto), de 1928, e reiterada em Themes and Variations, de195022.No Brasil, estudos comparveis ao de Freedman contemplam obras construdas

    semelhana de tema e variaes, que podem ser associados a formas como fuga econtraponto, mas tambm a construes mais livres, como a rapsdia. Destaco duasanlises do romance Macunama, de Mrio de Andrade, cujo subttulo exatamente umarapsdia. Em edio crtica do texto, Tel Porto Ancona Lopez menciona brevemente suaconstruo musical, remetendo a observaes de Mrio sobre a questo 23. Em O tupi e oalade, analisando o mesmo romance, Gilda de Meio e Souza demonstra minuciosamente atransposio paraMacunamade duas formas bsicas da msica ocidental, comuns criaoerudita e popular: o princpio rapsdico da sute e o princpio da variao, este ltimo

    presente, de modo muito peculiar, no improviso do cantador nordestino. Meio e Souzaestuda longamente a utilizao, por Mrio de Andrade, do processo da sute a tcnicade construir recheando o ncleo bsico com temas subsidirios, com vrias peas de forma

    19Cf. H. A. Basilius, Thomas Manns Use to Musical Structure and Techniques in Tonio Krger, cit.20Antonio Manoel, A msica na primeira potica de Mrio de Andrade, cit., p. 31.21 Ver a respeito Jean-Louis Cupers, Euterpe et Harpocrate ou/e dfi Iittraire dela musique: aspectsmthodologiques de lapproche musico-littraire(Bruxelas: Publications des Facults Universitaires Saint-Louis, 1988),pp. 63-64.22 Cf. William Freedman, Tristam Shandy: the Art ot Literary Counterpoint, em Nancy Anne Cluck,Literature and Music: Essays on Form, cit. pp. 26-35.23

    Tel Porto Ancona Lopez, Rapsdia e resistncia, em Mrio de Andrade,Macunama, o heri sem nenhumcarter, edio crtica coordenada por TeI Porto Ancona Lopez, Coleo Arquivos (Florianpolis: UFSC,1988), pp. 266-277.

  • 7/15/2019 LITERATURA E MSICA

    20/85

    e carter distintos24, nas personagens e na dubiedade das aes. Silviano Santiago quetambm cita o trabalho de Meio e Souza faz uma anlise semelhante de Clarissa,demostrando que, como Macunama, o romance de Erico Verssimo exibe uma estruturamusical equivalente da rapsdia, visando a combinar em harmonia elementoshetercitos, de tal forma que exista uma composio do todo que no seja mero produto

    de acmulo25

    .Como modelo ou analogia para a estruturao do texto verbal, nenhuma formamusical se compara, entretanto, sonata, se considerarmos o nmero e o alcance dostrabalhos que tem inspirado. Constituindo, talvez, a mais importante das configuraesmusicais eruditas, tem sido usada continuamente desde Haydn e Mozart, embora, a partirde 1900, venha recebendo um tratamento cada vez mais livre. Antes de abordar sua relaocom a obra literria, preciso lembrar que o termo sonata pode referir-se a composiescomplexas para um nico instrumento como uma sonata para piano, geralmente comtrs movimentos , mas tambm a uma forma de construo tpica do primeiromovimento de composio complexa, como, por exemplo, uma sinfonia. Nesse ltimosentido, que o que aqui interessa, a sonata tambm chamada de forma sonata ou

    forma de primeiro movimento. Em sua estruturao clssica, consiste em umaintroduo opcional, uma exposio de material bsico, um desenvolvimento desse materiale uma recapitulao, ocasionalmente seguida por uma corda26. Para alguns musiclogos, aprincipal caracterstica da forma sonata a presena, na exposio, de dois temascontrastantes. No desenvolvimento, os dois temas entram em conflito, sendo retrabalhadospara que criem uma tenso, que resolvida na recapitulao. Para outros tericos, aquesto central o conflito, no de temas, mas entre reas tonais.Consciente ou inconscientemente, romancistas e poetas tm- se deixado seduzir pela formasonata representao musical de um mundo inparvo, um microcosmo, que projeta aimpresso de um todo perfeitamente integrado27. Bandeira, includo entre os seduzidos,narra o resultado de sua tentativa de como um poema modelado na forma sonata

    poema que, insatisfeito, destruiu28

    .Entre os crticos brasileiros, Maria Luza Ramos aponta emMara, de Darci Ribeiro,uma estruturao modelada na forma sonata. Segundo a autora, o romance desenvolve doistemas a cultura indgena e a chamada civilizao contrapostos por tonalidadesdistintas. Diferenciando-se do contexto indgena, o contexto civilizado marcado por umdiscurso referencial, pontuado, s vezes, por cichs burocrticos do registro policial. Nessediscurso, diz a autora: [...] no h lugar para a reflexo, pois o que importa informar,devendo, pois, a linguagem acompanhar a rapidez com que se sucedem os fatos. Por outrolado, espelhando logo depois a atemporalidade do mundo mtico, que caracteriza osegundo tema, o discurso lento e potico. As pausas e as freqentes repeties instauramna recursividade da linguagem, voltada sobre si mesma, a densidade dos ritos no mundo

    fechado das sociedades primitivas. Como se d na forma sonata, h um contraste entre as

    24Ver Gilda de Meio e Souza, O tupi e o alade: uma interpretao de Macunama (So Paulo: DuasCidades, 1979), p. 37; Siviano Santiago, A estrutura musical do romance: o caso Erico Verssimo, em JlioCsar25 Machado Pinto & Eneida Maria de Souza (orgs.), Anais do Simpsio de Literatura Comparada, 2, 1986(Belo Horizonte: UFMG, 1987), pp. 164-165.26 Sobre as diferentes definies da forma sonata, ver WilIi Apel, Harvard Dictionary of Music, cit: e Peter J.Rabinowitz, Chord and Discourse, em Steven Paul Scher, Music and Text: Critical Inquiries (Cambridge:Cambridge University Press, 1992), pp. 49-5127

    Cf. Arnold Hauser, Histria social da literatura e da arte, trad. Walter H. Geenen, vol. 2 (So Paulo:Mestre Jou, 1982).28Manuel Bandeira, Itinerrio de Pasrgada, cit., pp. 50-51.

  • 7/15/2019 LITERATURA E MSICA

    21/85

    duas linguagens, desde uma diferena tonal at um diversificado tratamento rtmico 29.Ao lado de outros exemplos de estruturao textual semelhante da forma sonata, aliteratura brasileira tambm registra a utilizao do que Scher caracteriza como msica

    verbal ou apresentao literria (em poesia ou prosa) de composies musicais, reais oufictcias. Alm de equivalentes verbais de partituras reais ou imaginrias, esses textos

    podem sugerir uma execuo musical ou uma reao subjetiva do autor in-iplicito ou deuma personagem. Bolero de Ravel, de Drummond, em Sentimento do mundo, ilustra essamsica verbal:

    A alma cativa e obcecadaenrola-se indefinidamente numa espiral de desejo

    e melancolia.Infinita, infinitamente...

    []Os olhos, magnetizados, escutam

    e no crculo ardente nossa vida para sempre est presa, est presa...Os tambores abafam a morte do Imperador30.

    No se trata, aqui, de imitao sonora, semelhante que se encontra em efeitosfnicos como a onomatopia, a aliterao ou a assonncia. O texto de Drummondcorresponde a uma descrio literria da composio de Ravel, criada inicialmente comoestudo para orquestrao e ensaio para execuo de crescendo. O tema do Bolero, umalnguida msica de dana espanhola, constituda por duas melodias entrelaadas, objetode insistente repetio, enriquecida pela variedade do colorido instrumental. De incio, umtambor estabelece o ritmo, que se afirma inexoravelmente. Contra esse fundo, projeta-seuma melodia, executada por diferentes instrumentos, isolados a princpio, depois emgrupos, crescendo em volume e efeitos eletrizantes, at o frentico climax final.O poema constitui uma transcrio potica do efeito desses fatos musicais sobre asensibilidade do ouvinte inscrito no texto, a persona potica. Os termos enrola-se,

    espiral e crculo, relativos melodia, assinalam a percepo da dimen5o espacialprojetada na temporal, prpria da msia, segundo a acepo de Susanne Langer. Oobsessivo contorno meldico interpretado como uma curva, que, desenrolando-se,afasta-se gradativamente de um ponto inicial. O brusco e surdo final parece imitar o somde um tiro, sugerindo a execuo de uma personagem imperial. Como se v, o texto notenta imitar as caractersticas acsticas da composio, apenas registra a impresso quedesperta no eu-lrico.

    A msica verbal comparece tambm na fico brasileira. Reflexos do baile, deAntnio Caliado, oferece um exemplo muito ilustrativo, representando a reao deCarvalhaes, embaixador portugus em visita a uma escola brasileira, quando por acaso ouveum choro, executado a distncia. O trecho que contm essa msica verbal, alm da aluso a

    elementos rtmicos, meldicos e compositivos, destaca a percepo dos traos subversivosvislumbrados nessa forma musical, resultante histrica da recriao transgressora demodelos europeus. Eis como a personagem descreve sua audio da msica sedutora,povoada de perigosos, dissolventes anjos:

    [...] notas musicais puseram-se a estalar e crepitar como gomos do bambu deitados nas chamas.Uma toada amorosa, cheia de requebros, mas enquadrada em composio sonora de to alarmante rigor

    que perguntei ao meu descompassado corao se afinal c existem dementes a tentar tudo comear denovo. Franziu o cenho o diretor da escola diante dos perigosos, dissolventes anjos que a msica soltava

    entre as crianas de uniforme31.

    29 Maria Luiza Ramos, Mara: leitura/escritura, em Interfaces: literatura, mito, inconsciente, Cognio BeloHorizonte: UFMG, 2000),p. 142.30

    Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do mundo, emNova reunio: 19 livros de poesia,vol 1 (2 ed. Riode Janeiro: J. Olympio, 1985),p. 74.31Antnio Calado, Reflexos do baile(Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976), pp. 18-19

  • 7/15/2019 LITERATURA E MSICA

    22/85

    No mesmo romance, outro exemplo de msica verbal a descrio do efeito daaudio de um choro sobre o narrador assinala mais uma vez a percepo doselementos revolucionrios dessa criao musical, considerada a matriz mais importante damsica brasileira, em sua deformao irreverente e criativa de modelos europeus:as notas da melodia maldita, que comearam a soar sojigadas, entranhadas nas vsceras do

    disco como diabos nas dobras e pregas do negro ventre de quem os engendra, voaram emdensos rolos pelas janelas da casa, pelas portas da Capela e at pela grimpa assanhada deabetos e choupos. Eram agudos punhais de msica, [...] verrumas amarelas32.

    Msica de palavras, msica verbal ou estruturao literria inspirada em modelosmusicaistipos de incrustao de msica na literaturarevelam-se rtulos teis para osinteressados na melopotica, mas, evidentemente, no esgotam as mltiplas possibilidadesde contribuio da msica para a criao literria. Em Reflexos do baile, as contnuasreferncias ao choro, alm de exemplificar a msica verbal, tm tambm um carteremblemtico. A evoluo histrica do choro, gnero transgressor de modelos europeusimpostos pela colonizao, torna esse gnero musical uma metfora muito adequada para apostura revolucionria assumida pelas personagens do romance. A transgresso esttica

    prenuncia, assim, a resistncia politica.O uso metafrico da referncia musical, sem eliminar outras funes possveis,pode, como no texto de Cailado, constituir uma entrada para a leitura. o caso tambm doLundu do escritor difcil, emA costela do gro co, de Mrio de Andrade:

    Eu sou um escritor difcilQue a muita gente enquizila

    Porm essa culpa fcilDe se acabar de uma vez:

    s tirar a cortinaQue entra luz nesta escurez.

    []Eu sou um escritor difcil,Porm culpa de quem !...

    Todo difcil fcil,Abasta a gente saber.

    Bag, pich, chu, xavi,De to fcil virou fssil,

    O difcil aprender![]

    Voc sabe o francs singeMas no sabe o que guanba?Pois macaco, seu mano,

    Que s sabe o que da estranja33.O ttulo do poema um designador bvio, pista transparente, mas indispensvel

    para a leitura. Remete definio de lundu, canto e dana populares provavelmente

    introduzidos por escravos angolanos no Brasil do sculo XVIII. Em 1895, Nina Rodriguesdescreve o lundu como dana de pretos, muito indecente, na qual se fazem mil espcies dc movimentos com o corpo34. A referncia forma musical ecoreogrfica afro-brasileira aponta diretamente para o carter hbrido da cultura nacional,poderosamente influenciada pelo elemento africano. No texto de Mrio, a voz poticaidentifica-se com esse elemento, que passa a indicar, metonirnicamente, as vrias etnias quecontriburam para a construo da cultura nacional, sobretudo cm suas manifestaespopulares. E o que sugere a personapotica, quando convida adoo da fala brasileira,

    32Ibid., pp. 129-130.33 Mrio de Andrade, A costela do gro co, em Poesias completas (53 ed. So Paulo/Belo Horizonte:

    Martins/ltatiaia, 1980), pp. 242-243.34Apud Mrio de Andrade, em OneydaAlvarenga & Flvia Camargo Toni, Dicionrio musical brasileiro(Belo Horzonte: Itatiaia, 1989), p. 291.

  • 7/15/2019 LITERATURA E MSICA

    23/85

    com suas variantes regionais, incluindo construes sintticas tpicas do linguajar popular(No carece vestir tanga), pronncias banidas da linguagem culta (ruim, xavi), alm de itens lxicos, cuja origem africana e indigena reflete os diferentes elementos tnicosfundidos na cultura nacional (urubutinga, caipora, gupiara, guariba, angu,caruru). Inseparveis da referncia ao lundu, esses fatores sublinham a propos ta

    nacionalista do modernismo, bem como sua condenao subservincia cultural,responsvel pela admirao acrtica do elemento estrangeiro (Voc sabe o francs singe )e pela ignorncia do nacional (Mas no sabe o que guariba?). Por constituir umaexceo regra e conhecer e explorar artisticamente a prpria cultura, desconhecida de seuscompatriotas, que a voz potica paradoxalmente se confessa um escritor difcil. Oconjunto das propostas implicitas no poema constitui, assim, o lundu, simbolicamenteexecutado para o ouvinte implcito no texto: o brasileiro europeizado, indiferente lngua eaos costumes de seu pas. A aluso musical potencializa os vrios constituintes textuais,indispensveis leitura, ilustrando a importncia da imagem musical para os estudosliterrios. Remetendo ao contexto cultural, a referncia musical denuncia a dependnciacultural, lembrando que, como a prpria msica, a metfora nela inspirada nunca

    inocente dos contedos ideolgicos.A referncia a formas musicais pode exercer ainda outras funes, nem semprerotulveis, dependendo do efeito sobre a sensibilidade do ouvinte. O ttulo Cantiguinha,poema de Drummond em Boitempo 135, alude a composies populares musicadas, com ver-curtos, geralmente heptassilabos. Eis o texto:

    CANTIGUINHAEra um brinquedo Maria

    era uma estria Maria[]

    era uma vez era um diaMaria.

    O estrato fnico do texto, comeando pelo ttulo, insiste no fonema /i/,convencionalmente associado aos conceitos de pequenez e de ternura, em razo de suapresena em diminutivos, talvez por ser a vogal /i/ pronunciada com menor abertura daboca que as demais. A idia do pequeno, evocando a do humilde, convm a essaCantiguinha, celebrao de uma Maria annima, mulher comum, indicada pelaminscula, cuja vida, dos jogos infantis maturidade amorosa e morte, simbolicamenterememorada. Com sua insistncia numa mesma construo (Era um..), espcie de rimasinttica, o poema lembra tambm o princpio da repetio, que a msica partilha com aliteratura, alm de sugerir efeitos de crescendo e de diminuendo. Evidentemente, essesefeitos dependem da interpretao e da inflexo dadas pela leitura, lembrando a crtica darecepo, segundo a qual cabe ao leitor executar os elementos latentes na composio

    artstica.A funo exercida pela referncia musical no texto no esgota as questes queinteressam melopotica, especialmente em seus aspectos tericos. Pode-se indagar, porexemplo, se o elemento musical resulta sempre de uma inteno consciente do artista.Nesse caso, o fato de um poeta declarar no ser amante da msica eliminaria a presenadela em seu texto? Seria esse o caso de Joo Cabral de Melo Neto? No o que parece. Emprimeiro lugar, no h como eliminar o ritmo e os aspectos acsticos, que a composiopotica inapelavelmente partilha com a msica. Ademais, a criao de Cabral, inversamenteao que faria supor a propalada indiferena do autor pela msica, revela interesse por ela,como se v em ttulos como Noturno e Cano, poemas de Pedra do sono. No ltimo, areferncia parece ser cano conceituada como espcie de poesia lrica de estilo refinado,

    35Carlos Drummond de Andrade, Boitempo 1, emNova reunio: 19 livros de poesia.,vol. 2, cit., pp.585-586.

  • 7/15/2019 LITERATURA E MSICA

    24/85

    cantada por trovadores, com acompanhamento musical. o que sugerem, alm do ritmo eda melodia, as vagas aluses a uma figura imperial, associada a uma histria trgica,espelhada na emoo do poeta:

    CANODemorada demoradamente

    nenhuma voz me falou.

    Eu vi o espectrodo reino sei em que porta ele entrou.

    []Mas por detrs da cortina

    que gesto meu se apagou?36

    E que dizer sobre a musicalidade do verso branco? indubitvel que nele, comotambm na prosa, pode haver msica, em qualquer de suas manifestaes literrias msica de palavras, msica verbal, construo modelada em formas musicais, metforamusical, etc. Um poema de Abgar Renault anuncia essa presena j no ttulo, Sofotulafai(referncia emblemtica a uma cidade asitica, equivalente Pasrgada de Bandeira), com a

    sugesto diagramtica de trs notas musicais: sol, f, l. O texto, longa reflexo filosficasobre o papel do tempo e da mente na criao do mundo, comea com a sugesto domomento em que, adormecido o poeta e afrouxado o domnio da conscincia sobre acriao literria, libera-se a criao inconsciente, representada por objetos associados escrita livros, lpis, mquina de escrever. Com a recm-adquirida autonomia, essesobjetos entregam-se ao fazer potico, usando as armas de seu ofcio: palavras, soberbossignificantes, com peso e vida prpria, a princpio indiferentes ao significado. O sentidobrota, entretanto, espontaneamente, do pipocar de termos esdrxulos (outrossim, adimplir,

    pastifcio, radagzio, nenhures, istopos), explodindo, fmalmente, numa srie de aliteraes, atresultar numa rima inusitada, que fere um ponto nevrlgico da sensibilidade do eu-lricoadormecido: a lembrana de Belo Horizonte, cidade vista atravs de um horizonte, onde

    o poeta viveu sua juventude:SOFOTULAFAI

    s vezes temo que, na minha ausncia,as cousas no mais sejam o que so,

    e o acontecido, quando estou ausente,seja diverso do acontecimento

    em que, at sem querer e sem saber,a inocente presena do meu ser

    se misturasse, tal como gua e ventono ar se fundem inconscientemente

    e criam tempestade e furaco.Abrem-se de repente dicionrios,

    vocbulos saltando vo em fieiras,e, cleres, ordenam-se em fileiras,

    e vo compondo versos arbitrrios,palavrassetas rpidas, certeiras:

    Destilo sem o mnimo artifcioe mando a todo aquele que no me ame

    outrossim, adimplir e pastifcio,Radagzio, nenhures e vexame.

    Aglimos istopos pulavamos carrilhes unvocos ladravam

    as noites sob as luas caminhavam

    36Joo Cabral de Melo Neto, Pedra do sono, em Marly de Oliveira (org.), Obra completa (Rio de Janeiro:Nova Aguilar, 1994), p. 47.

  • 7/15/2019 LITERATURA E MSICA

    25/85

    as aliteraes levavam lmpadapara alumiar a antiga estampa da

    cidade vista atrs de um horizonte37.

    O territrio comum entre msica e literatura parece, assim, inesgotvel. Poderamosconsiderar ainda, entre vrias estratgias partilhadas pelas duas artes, processos como o dareescrita e o da colagem. Tal como na literatura, a msica recorre freqentemente acitaes, aluses intertextuais a outras composies. Nesse caso, como em textos literriospardicos, a reescrita musical pode servir a variegados objetivos, incluindo a dennciasocial e politica. pera do malandro, comdia musical de Chico Buarque, transcriao dacomdia musical setecentista de John Gay, The Beggar Opera (A pera do mendigo), e daOpera dos trs vintns, composta por Bertolt Brecht e Kurt Weil em 1928, ilustraexemplarmente esse processo38. Na perade Chico, destaco a cano Teresinha, pardiaelevada ensima potncia, j que remete s duas outras peras, elas prprias inicialmentepardicas (conforme documenta a longa trajetria compositiva dos musicais de Gay eBrecht/Weil). No se contentando em parodiar essas pardias, a perade Cbico parodiatambm canes isoladas, como faz com a cano de roda Teresinha de Jesus. Em nossocancioneiro popular, a letra dessa espcie de balada resume o destino reservado mulher nasociedade patriarcal: a frgil protagonista, tendo sofrido urna queda, mostra-se incapaz delevantar-se por si prpria. Agarra-se sucessivamente mo de trs personagens masculinos,tradicionais detentores de poder sobre seu destino: o pai, o irmo, o marido. Ao contrrio,a Teresinha de Chico desdenha da predeterminao patriarcal. Acertada ou no, sua aescolha do pretendente ao qual finalmente se entrega:

    O primeiro me chegouComo quem vem do floristaTrouxe um bicho de pelcia

    Trouxe um broche de ametista[]

    Mas no me negava nadaE assustada eu disse no

    O segundo me chegouComo quem chega do bar

    Trouxe um litro de aguardenteTo amarga de tragar

    []Mas no me entregava nada

    E assustada eu disse noO terceiro me chegou

    Como quem chega do nadaEle no me trouxe nada

    Tambm nada perguntou[]

    Foi chegando sorrateiroE antes que eu dissesse no

    Se instalou feito um posseiroDentro do meu corao.39

    A pardia na letra dessa cano duplicada pela melodia. Os compassos iniciaiscontm claras citaes meldicas da cantiga de roda. Ao contrrio, entretanto, da

    37Abgar Renault, Sofotulafai, em Obra potica(Rio de Janeiro: Record, 1 990), pp. 137-138 e 141.38 Cf. Solange Ribeiro de Oliveira, De mendigos e malandros. Chico Buarque, Bertolt Brecht, John Gay:

    uma leitura transcultural(Ouro Preto: UFOP-MG, 1999).39 Chico Buarque, pera do malandro, apresentao de Luiz Werneck Vianna (So Paulo: Cultura,1978), pp. 83-84.

  • 7/15/2019 LITERATURA E MSICA

    26/85

    repetitiva melodia tradicional, que espelha o destino cclico da mulher submetida ao jugopatriarcal, incapaz de construir a prpria histria, a melodia de Chico temdesenvolvimentos e resolues inesperadas. A construo musicalo inesperado da letra, como convm personagem, determinada a construir seu prpriodestino. O conjunto verbivocomusical funde, assim, as associaes ingnuas inicialmente

    evocadas pela melodia com o inesperado de seu desenvolvimento, refletido na letra, queexplicita a caracterizao da personagem. Na pera de Chico, a mocinha submissa dacano de roda cede o passo a outra Teresinha, que no de Jesus. Dura herdeira de umacadeia de meretrcio, ela aperfeioa os mtodos do pai e do marido, servindo stira daexplorao capitalista, emblemada pela prostituio40. pera do malandro exemplifica, assim,no apenas a presena da msica em sua dimenso acstica, rtmica, estrutural oumetafrica, mas aquela em que o verbal e o musical, fundidos na forma imemorial dacano, municiam a denncia social.

    Uma outra forma de associao entre as duas artes, explorada por Scher, aquelaem que a literatura constitui o suporte para a composio musical, como ocorre na msicaprogramtica ou poema sinfnico. Em terreno afim, Dcio Pignatari proporciona um

    exemplo curioso, quando traduz o poema de Mallarm, Laprs-midi dunfaune, que foimusicado por Debussy. A traduo de Pignatari que oferece trs versos distintos paracada linha do poema francs fora o leitor a fundir, em uma nica imagem, a trplice

    viso oferecida pela traduo de cada linha do poema francs, conferindo ao conjunto algosemelhante indistino de contornos (visuais ou tonais) do impressionismo pictrico oumusical. Tal o mtodo antiestocstico, caracterizado, segundo Pignatari, por meticulosapreciso na busca do impreciso. Referindo-se ao texto de Mallarm, o tradutorbrasileiro usapalavras que, em sua mltipla ressonncia, poderiam igualmente remeter relaoliteraturamsica: so ninfas e a poesia; uma flauta dupla pripica, duas ninfas: socanetas, tinteiro pntano...41. Para mim, a caneta citada por Pignatari inclui a usada pelocompositor, quando confia ao papel a sua partitura, podendo ainda simbolizar a batuta do

    maestro, que, como o instrumentista, extrai da notao musical o milagre de sua arte. Dequalquer forma, com suas rimas hologrmicas, grandes assonncias e ressonncias,harmonia vria e aleatria de amostragem, o poeta/tradutor proporciona mais umexemplo das muitas formas, limitadas apenas pela criatividade individual, dainterpenetrao de msica e literatura.

    O texto extremamente interessante, como registro da experincia pessoal de umpoeta em sua relao com a msica. Bandeira42 comea por admitir que, no sentido estrito,a poesia no pode reproduzir os efeitos acsticos da composio musical. Detm-selongamente, entretanto, nos efeitos sonoros ao alcance da linguagem literria. O poetadiscorre, evidentemente, sobre os efeitos de imitao sonora ao alcance do discurso verbal,mas destaca sobretudo a organizao do texto de modo semelhante ao explorado pela

    msica, em formas como polifonia, tema e variao e sonata. especialmente interessanteo relato de uma tentativa juvenil de construir um poema calcado no modelo da formasonata. Descontente com o resultado, o poeta terminou por destruir a sua sonata, fatoque veio depois a lamentar.

    40Vale lembrar o comentrio de Luiz Werneck Vianna na apresentao Opera do malandro, cit., p. 14.Referindo-se ao comportamento empresarial da personagem durante a era Vargas, Vianna declara:tu Teresinha [...] aparenta maturidade e domnio de si para enfrentar riscos e situaes ainda no vividos,impondo ao seu pai e ao marido novos padres de conduta.41 Dcio Pignatari, A tarde de vero de um fauno, em Augusto de Campos et ai., Mallarm (So Paulo:

    Perspectiva, 1991), p. 8542Bibliografia ComentadaBandeira, Manuel. Itinerrio de Pasrgada. EmPoesia completa e prosa. 4R cd. Riode janeiro: Nova Aguilar, 1986.

  • 7/15/2019 LITERATURA E MSICA

    27/85

    Trata-se de texto clssico, um dos estudos mais abrangentes sobre as relaes entrea sociedade, a literatura e a arte. Partindo da Pr-histria, o autor, acompanhando as vriasfases da evoluo dos fenmenos artsticos e literrios, chega contemporaneidade, que eledenomina A era do filme. O estudo enfatiza a relao da produo artstica com asrespectivas circunstncias histrico-sociais, que, na linguagem dos estruturalistas de Praga,

    constituem sries paralelas, indissociveis da dimenso esttica. A ttulo de ilustrao,menciono o impressionismo: na pintura como na msica, pode ser associado, sugereHauser43, noo do objeto evanescente, anunciando a cultura do efmero e dodescartvel, tpica de nossos dias.

    Extremamente pertinente como ilustrao da anlise melopotica aplicada fico,o texto complementa o de Manuel Bandeira, que focaliza a poesia. A autora estuda

    Macunama, de Mrio de Andrade, luz de seu subttulo, Uma rapsdia 44. Demonstra, deforma convincente, que o romance corresponde realmente a essa forma musical,caracterizada pela inspirao popular, pela irregularidade compositiva e pela improvisao.

    A autora demonstra que, tendo uma linha principal, a narrativa deixa que ela sejaobscurecida, como na composio musical, por desenvolvimentos laterais. Adota, assim, o

    processo de construir recheando o ncleo central com temas subsidiriosprocedimentocorrente tanto na msica romntica europla como no teatro de revista e nas danasdramticas brasileiras, cuja expresso mais perfeita o bumba-meu boi.

    Introduo atualizada melopotica, disciplina que focaliza as relaes entre aliteratura e a msica, o livro contm urna introduo tenca, voltada para a natureza damsica, sua relao com a literatura, a evoluo histrica dos estudos msico-literrios,abordagens adotadas, etc. Examina tambm as contnbuies dos estudos hternos para aanlise musical e, em contrapartida, as da musicologia para a critica literria. Examina aindaa estruturao do discurso literrio segundo modelos musicais, como tema e variao,contraponto e forma sonata. Segue-se a anlise de textos literrios contemporneos, emque metforas musicais, derivadas de formas hbridas, como o choro, o lundu e o calipso,

    remetem experincia da colonizao, literal ou simblica, incluindo questes de gnero,raa ou grupo social. Literatura e msica45 um estudo paralelo a Literatura e artes plsticas(IJFOPMG, 1994), da mesma autora.

    Importante antologia de ensaios sobre a relao msica/literatura, contemplaaspectos pouco estudados, como a contribuio da crtica ps-estruturalista, da criticadarecepo, da critica cultural e da etnografia para a anlise decomposies musicais. Soespecialmente inovadores alguns ensaios evidenciando que nem mesmo a msica,considerada a mais pura das artes, escapa ao conluio com a ideologia. Um ensaio feministaevidencia, por exemplo, que a concepo patriarcal da funo social da mulher se fazpresente at em composies aparentemente inocentes, como liedsde Schumann ou criaco, de Haydn46.

    43HAUSER, Arnold.Histria social da literatura e da arte. Trad. Walter H. Geenen. 2 vols. 45 ed. SoPaulo: Mestre Lou, 1982.44 MELLO E SOUZA, Gilda de. O tupi e o alinde: uma interpretao de Macunama. So Paulo: DuasCidades, 1979.45 Oliveira, Solange Ribeiro de. Literatura e msica: modulaes ps-coloniais. Coleo Debates, 286.So Paulo: Perspectiva, 2002.46

    Scher, Steven Paul (org.). Music and Text: Critical inquiries. Cambridge: CambridgeUniversity Press, 1992.

  • 7/15/2019 LITERATURA E MSICA

    28/85

    POESIA LITERRIA E POESIA DE MSICA: CONVERGNCIAS

    CARLOS RENN

    Poesia no literatura, decretou Ezra Pound, um dos maiores poetas e tericos depoesia do sculo passado, autor do clebre e ainda hoje, por tantas razes, atual e, por issomesmo, utiIssimo (como neste texto mesmo veremos)ABC ofReadin,gABC da literatura,tal como foi traduzido entre ns por Augusto de Campos e Jos Paulo Paes. Para esse

    cone do modernismo literrio europeu, norte-americano de nascimento, a poesia seria umaarte mais prxima da msica e at da pintura e da escultura do que da literaturapropriamente dita, tal a diferena substancial, de natureza estrutural, existente entre ela e aprosa1.

    As ideias de Pound a respeito das relaes de proximidade e afinidade entre amsica e a poesiae, por extenso, acerca da relevncia de elementos musicais para a artepoticadesenvolveram-se a partir de uma base muito slida, apoiadas na experincia do

    artista. Durante sua vida e o desenrolar da construo de sua obra, o poeta manteve umaligao profunda no s com o gnero de poesia de carter essencialmente musical, atrovadoresca, como tambm, em certos perodos, com a prpria msica.De um lado, ele foi um dos maiores responsveis pelo resgate, no sculo passado, dolegado dos trovadores provenais, que introduziu e traduziu para seus contemporneos epara as geraes posteriores. De outro, ele mesmo se envolveu, primeiro indireta, emseguida diretamente, com a chamada arte dos sons.Assim, depois de patrocinar o trabalho dopianista e compositor americano George Antheil, cm sua primeira fase, de carterlargamente experimental, Pound, ento, se dedicou composio, criando uma espcie depera de vanguarda chamada Le testament(baseada em baladas de Vilion). Para completar,ainda teve uma mulher violinista.

    De acordo com um outro grande poeta do sculo XX, o francs Paul Valry, apoesia seria uma hesitao entre som e sentido definio a que chegou tambm porlevar em alta conta a importncia que tem a msica para a arte potica, considerando-se asonoridade como uma das principais propriedades musicais da poesia, ao lado do ritmo.O universalmente reconhecido O corvo, de Edgar Allan Poe, oferece uma interessantedemonstrao da idia expressa por Valry, servindo de ilustrao do que representa o sompara a poesia. O Iingista russo Roman Jakobson foi quem apontou a relao de afinidade,do ponto de vista sonoro, entre o ttulo do poema, The Raven, e seu estribilho,nevermore, mais exatamente entre raven e never, termos quase completamenteanagrmicos (fato que, surpreendentemente, passou despercebido pelo prprio Poe, naconhecida dissecao que fez do processo de criao de sua obra-prima, intitulada Filosofia

    da composio).Ao mesmo tempo, uma leitura do poema em ingls e de sua traduo para oportugus realizada por Fernando Pessoa, desde que feita com ouvidos sensveis, podeservir modelarmente de exemplo do que seja o ritmo para a poesia. Observar como Pessoa,mantendo a mesma mtrica definida no original, no apenas restitui os significados maisessenciais dos versos em ingls (uma lngua minto mais sinttica que a nossa), como, aindapor cima, o faz reproduzindo em portugus a mesmssima msica que o poema apresenta

    Segundo Pound, se a poesia mesmo parte da literatura coisa de que, por vezes, me sinto propensoa duvidar, porque a verdadeira poesia est em relao muito mais estreita com o que de melhor h namsica, na pintura e na escultura, do que com qualquer parte da literatura que no seja verdadeira poesia

    [...]. Ezra Pound,A arte da poesia: ensaios escolhidos, trads. Heloysa de Lima Dantas & Jos Paulo Paes(3 ed. So Paulo. Cultrix, 1991), p. 149.1Edgar Alian Poe, em Ivo Barroso (org.), O corvo e suas tradues(Rio de Janeiro: Lacerda, 1998).

  • 7/15/2019 LITERATURA E MSICA

    29/85

    em seu idioma de partida. simplesmente notvel: o ritmo que ouvimos idntico!Comparar essa traduo com outras j realizadas para o portugus do mesmo poema snotabilizar ainda mais o trabalho do genial poeta portugus, por causa principalmente doseu senso musical. Cotej-la com a feita por outro gnio mas da prosa... em nossalngua, Machado de Assis, traduo que tambm mostra suas qualidades, s que do ponto

    de vista mais estritamente literrio, pode servir para dar uma viso do que seja uma poesiacontaminada de msica e outra nem tanto)A traduo de outro poeta, Augusto de Campos, para Canson do ili mot son plan e prim

    (Cano de amor cantar eu vim), de um grande trovador provenal, Arnaut Daniel,tambm um primor de poesia sob o ponto de vista da musicalidade. Sob o aspectosonoro, por exemplo, Augusto reproduz com o som mais aproximado em portugus trs(em im, or e oifla olha) das quatro rimas usadas em sistema de rodzio em cadauma das seis estrofes e uma coda do poema. No tocante cantabiiidade, a operaotradutria se mostra igualmente bem-sucedida. Como se pode comprovar ouvindo agravao existente da cano (j que desta a notao musical no se perdeu), os versos de

    Augusto so perfeitamente cantveis sobre suas frases meldicas, slaba por slaba sobre

    nota por nota, sem que a prosdia do poema no idioma de chegada seja jamaisprejudicada2.De fato, a poesia no toda, mas boa parte dela apresenta propriedades

    musicais que lhe parecem intrnsecas. J a podemos localizar um primeiro aspecto aassociar as duas artes ou linguagens de naturezas to distintas, uma verbal, outra sonora, epor isso mesmo passveis de ser classificadas, pelo carter, como dspares e op ostas.

    A associao entre elas, no entanto, remonta prpria origem da poesia (da poesiaocidental, pelo menos), que, na Antiguidade, como sabemos, era cantada. Depois, muitotempo depois, na Alta Idade Mdia, a chamada poesia trovadoresca veio a promover umaampliao da aplicao dessa propriedade primordialmente caracterstica da poesia. Comoigualmente se sabe, tambm os poemas criados pelos trovadores ou menestris eram todos

    cantados, a cada um correspondendo invariavelmente uma melodia. No toa vieram a serchamados de canes.Infelizmente, grande parte das notaes que poderiam indicar as msicas

    correspondentes a essas letras se perderam. Os poucos exemplos de linhas de cantosugeridas para os versos desses poemas que permaneceram at hoje, no entanto, so, porsua fora expressiva e notvel beleza, mais do que suficientes para provar por que taispoemas recebiam a denominao de canes. As canes trovadorescas constituemefetivamente o caso mais evidente de poesia literria em ponto de convergncia com amsica.

    Situada ao sul do territrio que viria a ser posteriormente o da nao francesa, aregio de Provena foi o lugar em que, por nela inaugurar-se e crescer, durante os sculos

    XI a XIII, uma tradio de trovadores dos mais inventivos, a arte da poesia trovadorescaprosperou mais gloriosamente.A msica popular ou talvez seja mais exato dizer a cano popular , que

    ganhou imensa difuso no sculo XX, tornando-se uma expresso do esprito dos temposmodernos, e que continua florescendo com grande esplendor nos Estados Unidos e noBrasil, vem realizando, por sua vez, em seus momentos culminantes, uma espcie deretomada, no plano da produo artstica de consumo, da arte potica erudita dostrovadores medievais. Destes, j se disse que os maiores son,gwritersdos ltimos cem anospodem ser vistos como continuadores ou sucessores.

    Os Cole Porters, os George e Ira Gershwins, os Bob Dylans, os John Lennons e osPrinces; os Nois, os Caetanos, os Chicos e Gils; os Jacques Brels e Alfredos Marceneiros

    2Augusto de Campos.Mais provenais(2 ed. rev. e ampi. So Paulo: Cia. das Letras, 1987), pp. 59-61.

  • 7/15/2019 LITERATURA E MSICA

    30/85

    todos esses, e outros mais, seriam assim os trovadores da modernidade, os sucessoresde Arnaut Daniel, Bernart de Ventadorn, Raimbaut dAurenga e Bertran de Bom (para mereferir a alguns dos principais praticantes da linha mais inventiva das canes trovadorescasprovenais) dos tempos modernos. Isso, levando em considerao o enorme engenho-e-arte do conjunto de suas letras e msicas (de suas poemsicas, digamos assim) ou

    particularmente da poro mais engenhosa e artstica, do ponto de vista potico,especialmente, de seus repertrios.Ocorre que, quando a letra de msica se sofistica, extrapolando os limites entre alta

    e baixa cultura e confundindo as distines usualmente feitas entre cultura erudita epopular, ela alcana um plano esteticamente superior e pode, ento, ser tomada como umamodalidade de poesia: poesia cantada (uma forma de poesia de msica, em contraposio poesia literria, de livro). A propsito disso, Augusto de Campos, o mais msico dos poetasbrasileiros, escreveu:

    Esses cruzamentos da linguagem popular e impopular, que rompem fronteiras estilsticas, sinalizamo que se poderia denominar poetizao da canoo momento em que a letra de msica, por vezes banalou vulgar, sem qualquer valor intrnseco, mas eficaz porque perfeitamente aderente melodia, ou valorizada

    pela interpretao, se sobreleva e atinge o plano da letra arte: poesia.3

    Augusto de Campos j cresceu num ambiente musical. Seu pai, Eurico de Campos,era compositor de sambas (um deles, Caiu a noite, ganhou registro do prprio poeta,includo no CD Poesia risco, de Augusto em parceria com o filho Cid, que msicoprofissional), O gosto por msica popular nasceu, portanto, em casa. A familiarizao como repertrio erudito, de vanguarda, porm, no tardou a ser cultivada.Mais tarde, como I\lallarm em relao a Um lance de dados (cuja inovadora configuraoespacial dos versos devia ser vista, segundo o grande poeta francs, como uma partitura),

    Augusto incorporou a msica estrutura de seus poemas. Assim, a srie dc seuspoetamenos, publicada nos anos 1950, procurou assimilar, por meio do uso de uma

    variao de cores nas letras, a melodia de timbres pioneiramente empregada por AntonWebern, o criador do serialismo dodecafnico. Tal apropriao inseriu-se no prprio

    projeto concretista, de uma poesia de natureza verbivocovisual procurando atuar,portanto, no s nas dimenses verbal e visual, mas tambm vocal.

    Paralelamente a isso, Augusto vem, desde a dcada de 1960, desenvolvendo umbrilhante trabalho de interveno crtica, dedicando-se divulgao de trabalhos e obras demsicos que considera importantes e que, no raro, foram marginalizados.

    J naquela poca, desempenharam papel importante, no cenrio da msica popularbrasileira, seus textos em defesa da produo de vanguarda, principalmente a dostropicalistas. De l para c, tornaram-se comuns suas publicaes, na imprensa, de artigossobre compositores da msica contempornea de inveno, dos mais (Pierre Boulez a JohnCage) aos menos afamados (Henry Cowell a Nancarrow), a maioria deles muito poucoreconhecida. Muitos desses textos esto reunidos em seu livroMusica de inveno4.

    No de surpreender que um poeta assim tenha feito amizades e parceriasno meio musical brasileiro, em que segue sendo admirado pelas novas geraes. S Caetanomusicou dois poemas seus: Dias dias diase Pulsar.Alm disso, Augusto exibe uma notvelmusicalidade em outros trabalhos, como atestam suas tradues todas perfeitamentecantveisdo texto de Pierr lunar;a pera de Arnold Schoenberg, e de vrias canes detrovadores provenais, como Arnaut Daniel (o melhor artfice, na opinio de Dante

    Alighieri).

    3

    Augusto de Campos, Beba Cole, em Carlos Renn, Cole Poder: canes, verses, participao de Augusto deCampos, Caetano Veloso, Cludio Leal Ferreira (So Paulo: Paulicia, 1991), p. 31.4Augusto de Campos,Msica de inveno, Coleo Signos-Msica, n 5 (So Paulo: Perspectiva, 1998)

  • 7/15/2019 LITERATURA E MSICA

    31/85

    Alguns autores muito especiais j ergueram, outros (os que ainda esto vivos e ematividade) vm erguendo obras que ilustram magnificamente bem a poetizao da canopopular apontada por Augusto.

    No panorama mundial, para comear pelos norte-americanos, isso fica patente nostrabalhos de compositores-letristas da estirpe de Cole Porter, Irving Berlin, Jerome Kern e

    Johnny Mercer, alm das clebres duplas formadas pelos irmos George e Ira Gershwin epor Richard Rodgers e Lorena Hart (ou seu substituto, Oscar Hanimerstein), para nosdetermos nos autores da cano americana clssica, que viveu seu apogeu dos anos 1920aos 1940.

    Uma outra analogia pode aqui muito bem ser feita. Porter, Berlin, os irmosGershwin, Rodgers e Hart ou Hammerstein, Mercer, Kern, alm de Harold Arlen, HoagyCarrnichael, Vernon Duke, Victor Young e Vincent Youmans. Esses songwritersvm a ser,de fato, os Bachs, os Beethovens, os Mozarts, os Wagners, os Tchaikovskis da histria dacano popular no apenas americana, mas mundial, do sculo XX e deste incio de sculo.Numa palavra, os clssicos da cano moderna.

    Depois, obedecendo a uma ordem cronolgica de aparecimento na histria da arte

    da cano, um desfile, no tempo, das obras de maior inventividade, de uma perspectiva quepriorizasse o aspecto potico da conjugao de msica e poesia, naturalmente apresentaria,na seqncia, com enorme destaque, os nomes de cones do pop e do rock como Bob Dylan,

    John Lennon, Mick Jagger (estes dois, britnicos), Jim Morrison e Lou Reed, entre outrosda safra da dcada de 1960, seguidos por Stevie Wonder, Michael Jackson e, sobretudo,Prince, alm de David Byrne, surgidos j nos anos 1970 e 1980, respectivamente.Uma seleo internacional dos principais cancionistas do sculo XX no poderia, ainda,deixar de incluir nomes como Jacques Brel, o rei da cano francesa clssica, AlfredoMarceneiro, representante mximo do fado portugus tradicional, e provavelmenteDiscpolo, como o maior compositor-letrista de tangos. Entre outros autores e gneros...Quanto a ns, brasileiros, que em matria de cano popular no ficamos atrs dos

    americanos que so os primeiros , temos igualmente nos mostrado prdigos emmsicos-poetas dessa mais alta linhagem. No panorama de nossa cano, h mais de umadzia de criadoresexiste, solidamente estabelecida, uma tradio deles entre ns quese distinguem por alcanar patamares estticos normalmente no atingidos no cenriodessa arte em outros contextos nacionais.

    Apesar das profundas diferenas de estilo, procedimento, formao e contexto emque atuaram, os integrantes desse cl especial se do as mos, como artistas, num planosituado acima do tempo. Para efeito de simplificao, eles poderiam ser divididos segundoas geraes a que pertenceram.

    Assim, uma das mais antigas delas, reunida nos anos 1930, a chamada poca deouro de nossa msica popular, produziu Orestes Barbosa, Lamartine Babo e Noel Rosa,

    merecendo lembrana ainda o nome de Assis Valente. Despontando no fmal daqueladcada e consolidando suas obras nas seguintes, tivemos DorivalCaymmi e LupicnioRodrigues, valendo uma meno honrosssima para Nlson Cavaquinho e Cartola. Aterceira, na segunda metade dos 1950, nos deu Vincius de Morais. Na quarta, uma das maisconcentradamente fecundas, datada dos fervilhantes 1960, vieram Caetano Veloso, ChicoBuarque, Gilberto Gil e Jorge Ben Jor. Da dcada de 1970, poderamos destacar Rita Lee eRaul Seixas. E da de 1980, Cazuza e Arnaldo Antunes.

    LETRA-ARTE, LETRA-POEMA

    Cho de estrelas constitui o que se pode chamar de um belo caso de fanopia em

    poesia de msica popular. Fanopia uma das trs modalidades de poesia (as outras duasso a melopia e a logopia) classificadas por Pound em seu ABC da literatura;consiste,

  • 7/15/2019 LITERATURA E MSICA

    32/85

    segundo ele, num lance de imagens sobre a imaginao visual5. Trata-se, portanto, dequalquer texto potico de forte apelo imagtico.

    O carioca Orestes Barbosa foi, entre nossos letristas, um dos maiores cultores dafanopia. Os versos de Cho de estrelas, de sua autoria, receberam msica de Silvio Caldas, ea cano tornou-se um clssico do gnero seresta, instaurado pela dupla nos anos 1930.

    Composta integralmente de decassilabos, a letra, a exemplo da quase totalidade das letrasque Orestes escreveu, apresenta um sistema estrfico e rmico fixo, sendo formada dequatro estrofes de seis versos cada, as rimas ocorrendo segundo o esquema aabccb. Esseprocedimento, freqente em sua obra, j sugere a aspirao literria do autor.Em cho de estrelas, a fora das associaes de imagens crescente. Na terceira estrofe,Orestes j compara as roupas comuns dependuradas no varal a bandeiras agitadas e aum estranhofestival, onde se d a festa dos nossos trapos coloridos. O climax, porm,ocorre na ltima estrofe, em que, depois de dizer que a lua salpicava de estrelas o chodo barraco, ele nos brinda como famoso tu pisavas os astros, distrada.

    O verso fez a msica cair na preferncia de alguns poetas de renome cm nossaliteratura. Primeiro foi Guilherme de Almeida, a quem Silvio e Orestes mostraram a

    composio ainda indita e que lhes sugeriu a feliz expresso-titulo. Depois, outromodernista, Manuel Bandeira, o considerou talvez o mais bonito da lingu