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REVISTA PORTUGUESA DE PNEUMOLOGIA latrogenia dos antibacilares* Perspectiva da Bepatologia A. PEREIRA COUTINHO Assistente Hospitalar de Gastrenterologia.Ciinica Universitaria de Medicina lnterna e Gastrenterol ogia. Hospital de Pulido Valente. Director: Prof. Doutor Mario Gentil Quina Devido a importancia que o figado tern no meta- bolismo dos farmacos , o numero de medicamentos potencial mente hepatot6xicos e el evado . As adversas hepaticas ocorrem sobretudo com os medi- carnentos administrados oral mente que sao geralmen- te lipossoluveis para poderem ser absorvidos no tubo digestivo e sao convertidos no figado em substancias hidrossoluveis para serem excretados quer pela bilis quer pela urina A biotransforrnaylio dos agentes terapeuticos, ocorre atraves de diferentes vias meta- b61icas sendo aquela que e mediada pelo citocromo P 450 a mai s importante. Esta via processa-se em duas fases, na primei ra ocorrem reacy(jes de e de hidr oxilayi\o obtendo-se por vezes urn metabolito in t ermedio t6xico e posteriormente, atraves de reac- IY(jes de conjugaylio obtem-se produtos finais hidros- soluveis, mais faci l mente excretaveis. Certas substan- cias como o alcool, os barbiroricos ou a rifarnpicina ao ser em indutores do citocromo P 450 vao aumentar a produylio de metabolitos intermediarios, aumentan- do a vida media ou potenciando 0 efeito t6xico de alguns medicarnentos. Uma forma de classi ficar a hepatotoxicidade provocada pelos farrnaco s e di sti nguindo aqueles que tern uma toxicidade intrlnseca, portanto em relayAo directa com a sua con centrayi\o plasmatica, de aque- les em que a toxicidade nlio e previsivel. No primeiro caso a hepatotoxicidade e dose-dependente, tern urn Aprcscnt.ado no Meso Rcdonda "latrogenia dos Antibacilares" 212 Vol. VN°2 periodo curto e constante de incubayi\o e tern uma incidencia elevada- urn exemp lo paradigrnatico eo paracetarnol. No segun do caso , a toxicidade e inde- pendente da dose , tern urn periodo de incubayao Iongo e variado e a incidencia e baixa designando-se estes casos de reacy(jes ideossincrasicas (do grego ideos = pr6prio). Nestas reac9oes intervem dois mecanism os distintos, o mai s frequente resulta da de metabolitos t6xicos intermedia. rios t6xicos, tern urn periodo de sensibili zayao rnuito varia vel (de semanas a meses) e a resposta a re- e tardia. 0 mecanismo menos frequente e o da hipersensibilidade que se pode acompanhar de febre, rash , artrite, eosinoftlia e linfocitose sendo neste caso o perfodo de curto e a recidiva rapida, caso se reintroduza o farrnaco , podendo esse perfodo de tempo encurtar-se a cada nova exposiylio . Sao multiplos os factores que participarn na maior ou menor susceptibilidade individual a Ies(jes hepati- cas. 0 sexo femini no e mais vulneravel que o mascu- J ino e tarnbem a idade constitui urn factor de risco , uma vez que a hepatotoxicidade e rara n os jovens, observando-se sobr etudo nos indivfduos com mais de 50 anos (ex. a incidencia da toxicidade da i soniazida aumenta com a idade dos doen tes). Factore s geneti- cos podem igualmente interferir no metabol ismo dos farmacos como eo caso do sistema enzimatico P450, no qual cada proteln a esta codificada por urn (mico gene, pelo que diferenyas geneticas podem implicar Abril 1999

latrogenia dos antibacilares* - CORE · adversas hepaticas ocorrem sobretudo com os medi ... bina total. A pirazinamida tern uma hepatotoxicidade intrinseca, ... em caso de hepatite

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REVISTA PORTUGUESA DE PNEUMOLOGIA

latrogenia dos antibacilares*

Perspectiva da Bepatologia

A. PEREIRA COUTINHO

Assistente Hospitalar de Gastrenterologia.Ciinica Universitaria de Medicina lnterna e Gastrenterologia. Hospital de Pulido Valente. Director: Prof. Doutor Mario Gentil Quina

Devido a importancia que o figado tern no meta­bolismo dos farmacos, o numero de medicamentos potencial mente hepatot6xicos e elevado. As reac~(jes

adversas hepaticas ocorrem sobretudo com os medi­carnentos administrados oral mente que sao geralmen­te lipossoluveis para poderem ser absorvidos no tubo digestivo e sao convertidos no figado em substancias hidrossoluveis para serem excretados quer pela bilis quer pela urina A biotransforrnaylio dos agentes terapeuticos, ocorre atraves de diferentes vias meta­b61icas sendo aquela que e mediada pelo citocromo P 450 a mais importante. Esta via processa-se em duas fases, na primeira ocorrem reacy(jes de oxida~lio e de hidroxilayi\o obtendo-se por vezes urn metabolito intermedio t6xico e posteriormente, atraves de reac­IY(jes de conjugaylio obtem-se produtos finais hidros­soluveis, mais faci lmente excretaveis. Certas substan­cias como o alcool, os barbiroricos ou a rifarnpicina ao serem indutores do citocromo P 450 vao aumentar a produylio de metabolitos intermediarios, aumentan­do a vida media ou potenciando 0 efeito t6xico de alguns medicarnentos.

Uma forma de classificar a hepatotoxicidade provocada pelos farrnacos e distinguindo aqueles que tern uma toxicidade intrlnseca, portanto em relayAo directa com a sua concentrayi\o plasmatica, de aque­les em que a toxicidade nlio e previsivel. No primeiro caso a hepatotoxicidade e dose-dependente, tern urn

• Aprcscnt.ado no Meso Rcdonda "latrogenia dos Antibacilares"

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periodo curto e constante de incubayi\o e tern uma incidencia elevada- urn exemplo paradigrnatico eo paracetarnol. No segundo caso, a toxicidade e inde­pendente da dose, tern urn periodo de incubayao Iongo e variado e a incidencia e baixa designando-se estes casos de reacy(jes ideossincrasicas (do grego ideos = pr6prio). Nestas reac9oes intervem dois mecanismos distintos, o mais frequente resulta da acumula~lio de metabolitos t6xicos intermedia.rios t6xicos, tern urn periodo de sensibilizayao rnuito varia vel (de semanas a meses) e a resposta a re­exposi~lio e tardia. 0 mecanismo menos frequente e o da hipersensibilidade que se pode acompanhar de febre, rash , artrite, eosinoftlia e linfocitose sendo neste caso o perfodo de sensibiliza~lio curto e a recidiva rapida, caso se reintroduza o farrnaco, podendo esse perfodo de tempo encurtar-se a cada nova exposiylio.

Sao multiplos os factores que participarn na maior ou menor susceptibilidade individual a Ies(jes hepati­cas. 0 sexo feminino e mais vulneravel que o mascu­Jino e tarnbem a idade constitui urn factor de risco, uma vez que a hepatotoxicidade e rara nos jovens, observando-se sobretudo nos indivfduos com mais de 50 anos (ex. a incidencia da toxicidade da isoniazida aumenta com a idade dos doentes). Factores geneti­cos podem igualmente interferir no metabolismo dos farmacos como eo caso do sistema enzimatico P450, no qual cada protelna esta codificada por urn (mico gene, pelo que diferenyas geneticas podem implicar

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reac~Oes ideossincrasicas a determinados farmacos. Em rela~iio a isoniazida o fenotipo de acetiladores Iento ou rapido (em fun~ao da concentra~ao de N­-acetiltransferase) e para alguns autores a raziio para a toxicidade hepatica que se manifesta em certos doentes. No·caso de doen~a hepatica pre-existente, o metabolismo do farmaco fica afectado tanto mais quanto maior o grau de insufici~ncia hepatica, sen do nesses casos mais alta a incidencia tanto de reac~oes ideossincnisicas como de reacc;:oes hepatot6xicas a medicamentos. Deve igualmente ser tido em conta as intera~oes medicamentosas no caso de terapeuticas associadas, pois a toxicidade hepatica podera estar aumentada niio s6 por efeito aditivo como tambem por efeito sinergico entre farmacos (ex: a rifampicina ao ser indutor do citocromo P450 awnenta a toxicida­de da isoniazida ).

Em rela~iio as altera~oes morfo16gicas hepaticas provocadas pelos farmacos, sao mais frequentes as lesoes agudas podendo-se tambem observar lesOes cr6nicas sobretudo nas terapeuticas prolongadas. E no hepatocito que se vao encontrar as principais aJterac;:oes uma vez que as lesoes hepatocelulares predominam sobre as Jesoes colestaticas. Essas alterac;:oes apresentam uma grande variabilidade, desde a esteatose (micro ou macrovesicular), a necrose hepatocelular (focal ou difusa), a hepatite cr6nica activa e cirrose ou mesmo a lesoes neoplasi­cas tanto benignas como malignas. No entanto, nalguns casos, parece que o hepatocito se encontra poupado, estando afectada a drenagem de bflis devido a lesiio nas vias biliares intra-hepaticas. Nessas situa~oes de colestase, as lesoes agudas

. tambem podem evoluir para formas cr6nicas provo­cando a distorc;:ao do parenquima hepatico, assemelbando-se essas alterac;:oes a cirrose biliar primaria.

Em rela¥Ao as manifestavoes cllnico-patol6gicas, elas siio inespecificas e indistinguiveis de outras patologias hepato-biliares. Se predominar a necrose hepatocelular, o quadro vai ser de astenia, anorexia, nauseas, ictericia, discrasia hemorragica e encefalo­patia hepatica e uma eleva~ao das aminotransferases

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XIV CONGRESSO DE PNEUMOLOGIA: TEXTOS

transit6ria e ligeira ou atingindo 10 a mais de 100 vezes o normal em situa~oes mais graves. Se predo­minar a colestase as manifestac;:oes seriio sobretudo de ictericia e prurido cutaneo e nesse caso as altera­~oes analiticas serao a custa da eleva~ao da bilirrubi­na, da fosfatase alcalina e da gama-glutamiltranspep­tidase. No entanto, na pratica cU.nica na maior parte dos casos de hepatotoxicidade relacionada com farmacos, essa distim;:ao niio e tiio 6bvia existindo uma sobreposic;:ao entre os fen6nemos provocados pel a necrose hepatocelular e pela colestase.

Existe uma situa~ao que apesar de rara convem referir pela gravidade que I he esta associada, trata-se dahepatite fulminante que nos dias de hoje ainda tern uma mortaJidade de 80%. Por defmic;:ao a hepatite fulminante e uma insuficiencia hepatica aguda (alterac.;ao do estado de consciencia e coagulopatia) que se desenvolve ate as oito semanas ap6s o inicio da doenc;:a, num indivlduo sem doenc;:a hepatica previa Entre as etiologias responsaveis, o primeiro grupo e 0 das hepatites vlricas e 0 segundo e 0 dos farmacos (ex: isoniazida).

Depois desta introduc;:ao, importa referir alguns aspectos em rela~ao aos antibacilares. Na profilaxia com isoniazida em indivfduos assintomaticos, ocorre em cerca de 15-20% dos casos uma eJevayao transi­t6ria das aminotransferases (valor inferior a 3 x N). Em menos de I% desses individuos podera surgir uma hepatite grave, sendo essa percentagem superior em doentes com mais de 50 anos. No caso de existi­rem doen~as associadas, nomeadamente alcoolismo ou sea isoniazida estiver associada a rifamp.icina essa toxicidade e tambem mais elevada e pode surgir mais precocemente. A toxicidade da isoniazida e sobretudo hepatoceJular eo quadro cUnico e analitico e indistin­gu1vel de uma hepatite aguda vfrica. A rifampicina compete com o metabolismo da biJirrubina e dos sais biliares, a toxicidade e por isso de predominio coles­tatico observando-se uma elevac;:ilo da fosfatase alcalina, da gama-glutamiltranspetidase e da bilirru­bina total. A pirazinamida tern uma hepatotoxicidade intrinseca, pelo que esse efeito acess6rio e dependen­te da dose. Em rela~ilo aos antibacilares de 2" linha:

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estreptomicina, etambutol e quinolonas a hepatotoxi­cidade e rara.

Existem varios protocolos propostos em relayao a toxicidade hepatica dos antibacilares, nao havendo no entanto urn consenso em relayilo as atitudes que devem ser tomadas. Em todo o caso, convem referir uns princlpios gerais que devem ser tidos em conta,

BmLJOCRAFIA

SHERLOK S. DOOLEY J. Diseases of the liver and biliary system - ninth edition.

2. FARRELL G. Drug induced liver disease.

3 FELDMAN M. SLEISENGER M. Gastrointestinal and liver disease- 6 th edition

4 THOMSON P. Mc!NTGRE N Anti-tuberculosis medication

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como o reconhecimento precoce de toxicidade hepatica quer por alterayOes clinicas quer por altera­.yOes analfticas; a suspensao imediat~ dos farmacos em caso de hepatite aguda e a exclusao de outras causas de doen9a hepato-biliar nomeadamente: infecciosa, litiasica, metab61ica e auto-imune.

and the liver: dangers and recommendations in management . EurRespJ 1995; 1384-1388.

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