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C ONATUS Revista FILOSOFIA DE SPINOZA k k k k k k

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FilosoFia de spinoza

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© 2013 EdUECE/CMAF/GT Benedictus de spinoza

Volume 8 - número 16 - dezembro - 2014issn: 1981 - 7517 (impressa)

e-ISSN: 1981 - 7509 (eletrônica)

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Revista Conatus: Filosofia de Spinoza/Universidade Estadual do Ceará, Centro de Humanidades. – v. 1, n. 1, (jul./dez. 2007). – Fortaleza: Ed. da Universidade Estadual do Ceará, 2007 –

Semestral

ISSN: 1981 - 7517

1. Filosofia - Periódicos. I. Universidade Estadual do Ceará, Centro de Humanidades. CDD: 100

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Revista Semestral publicada pelo Gt benedictus de spinoza,vinculado ao curso de mestrado acadêmico em FilosoFia da uece

em co-edição com a edueceVolume 8 - número 16 - dezembro - 2014

Fortaleza, ceará

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CORRESPONDÊNCIA / TO CONTACT US

Revista Conatusprof. dr. emanuel angelo da rocha fragoso (editor)

Av. Luciano Carneiro, n. 345 - Bairro de FátimaTel./Fax.: 55 - 85 - 3101 2033

CEP 60.410-690 - Fortaleza - CE - [email protected] [email protected]

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Volume 8 - número 16 - dezembro - 2014issn: 1981 - 7517 (impressa)

e-ISSN: 1981 - 7509 (eletrônica)

produzido compapel reciclado

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FilosoFia de spinoza

x

PUBLICAÇÃO/ PUBLISHED BY editorA dA universidAde estAduAL do ceArá em co-edição com o

mestrAdo AcAdêmico em fiLosofiA dA uece e com o gt Benedictus de spinozA

CAPA /GRAPHICS EDITORemAnueL AngeLo dA rochA frAgoso

EDITORAÇÃO/DESKTOP PUBLISHINGBrenA KátiA XAvier dA siLvA

emAnueL AngeLo dA rochA frAgoso

REVISÃO GERALgercinA isAurA dA costA BezerrA

IMPRESSÃO/PRINTINGpáduA gráficA - impressão dA cApA e montAgem

TIRAGEM/CIRCULATION300 eXempLAres/copies

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reitor

José Jackson Coelho Sampaio

vice-reitor

Hidelbrando dos Santos Soares

pró-reitor de pós-graduação e pesquisa

Jerffesson Teixeira de Souza

centro de humanidades

Leticia Adriana Pires Ferreira dos Santos (Diretora)

mestrado acadêmico em filosofia

Ruy de Carvalho Rodrigues Junior (Coordenador)

eduece Erasmo Miessa Ruiz (Diretor)

gt Benedictus de spinoza

Emanuel Angelo da Rocha Fragoso (Coordenador)

universidade estadual do ceará

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FilosoFia de spinoza

Volume 8 - número 16 - dezembro - 2014issn: 1981 - 7517 (impressa)

e-ISSN: 1981 - 7509 (eletrônica)

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EDITOR CIENTÍFICO/SCIENTIFIC EDITOREmaNuEl aNgElO Da ROCha FRagOSO

COmISSÃO EDITORIal/EDITORIal BOaRDEmaNuEl aNgElO Da ROCha FRagOSO FlORa BEzERRa Da ROCha FRagOSOJOÃO EmIlIaNO FORTalEza DE aquINO

CONSElhO EDITORIal/EDITORIal aDVISORS

alEx lEITE - uNIVERSIDaDE ESTaDual DO SuDOESTE Da BahIa - uESB (VITóRIa Da CONquISTa-Ba, BRaSIl)

aylTON BaRBIERI - uNIVERSIDaDE FEDERal DE SaNTa CaTaRINa - uFSC (FlORIaNópOlIS-SC, BRaSIl)

CaRlOS BalzI - uNIVERSIDaD NaCIONal DE CóRDOBa - uNC (CóRDOBa, aRgENTINa)

CaRlOS CaSaNOVa - DOCTORaDO DE FIlOSOFÍa - uNIVERSIDaD DE ChIlE (BECa CONICyT)

CéSaR maRChESINO - uNIVERSIDaD NaCIONal DE CóRDOBa - uNC (CóRDOBa, aRgENTINa)

DIaNa COhEN - uNIVERSIDaD DE BuENOS aIRES (BuENOS aIRES, aRgENTINa)

DIEgO TaTIáN - uNIVERSIDaD NaCIONal DE CóRDOBa - uNC (CóRDOBa, aRgENTINa)

EmaNuEl aNgElO Da ROCha FRagOSO - uNIV. EST. DO CEaRá - uECE (FORTalEza-CE, BRaSIl)

EmIlIaNO aquINO - uNIVERSIDaDE ESTaDual DO CEaRá - uECE (FORTalEza-CE, BRaSIl)

ENéIaS FORlIN - pROFESSOR DO DEpT. DE FIlOSOFIa Da uNICamp (CampINaS-Sp, BRaSIl)

hélIO REBEllO - uNIVERSIDaDE ESTaDual paulISTa - uNESp (SÃO paulO-Sp, BRaSIl)

hOmERO SaNTIagO - DEpaRTamENTO DE FIlOSOFIa Da uSp (SÃO paulO-Sp, BRaSIl)

JOSE EzCuRDIa - Universidad Nacional Autónoma de México - UNAM (México-D.F., México)

JulIaNa mERçON - uNIVERSIDaD VERaCRuzaNa - UV (Xalapa, México)

lOuRENçO lEITE - uNIVERSIDaDE FEDERal Da BahIa - uFBa (SalVaDOR-Ba, BRaSIl)

maRIa luÍSa RIBEIRO FERREIRa - uNIVERSIDaDE DE lISBOa, FaC. DE lETRaS (lISBOa, pORTugal)

maRIlENa ChauÍ - pROFESSORa DO DEpaRTamENTO DE FIlOSOFIa Da uSp (SÃO paulO-Sp, BRaSIl)

mauRICIO ROCha - pONTIFÍCIa uNIVERSIDaDE CaTólICa - puC-RJ (RIO DE JaNEIRO-RJ, BRaSIl)

ODIlIO aguIaR - uNIVERSIDaDE FEDERal DO CEaRá - uFC (FORTalEza-CE, BRaSIl)

paulO DOmENECh ONETO - uNIV. FED. DO RIO DE JaNEIRO - uFRJ (RIO DE JaNEIRO-RJ, BRaSIl)

paulO VIEIRa NETO - uNIVERSIDaDE FEDERal DO paRaNá - uFpR (CuRITIBa-pR, BRaSIl)

JEFFERSON alVES DE aquINO - uNIV. ESTaDual ValE DO aCaRaú - uVa (SOBRal-CE, BRaSIl)

JORgE VaSCONCEllOS - uNIVERSIDaDE FEDERal FlumINENSE - uFF (RIO DE JaNEIRO-RJ, BRaSIl)

ROBERTO lEON pONCzEk - uNIVERSIDaDE CaTólICa DE SalVaDOR (SalVaDOR-Ba, BRaSIl)

SEBaSTIáN TORRES CaSTañOS - uNIV. NaCIONal DE CóRDOBa - uNC (CóRDOBa, aRgENTINa)

SéRgIO luÍS pERSCh - uNIVERSIDaDE FEDERal Da paRaÍBa - uFpB (JOÃO pESSOa-pB, BRaSIl)

xESúS BlaNCO EChauRI - uNIVERSIDaDE SaNTIagO DE COmpOSTEla (galIza, ESpaNha)

Volume 8 - número 16 - dezembro - 2014 issn: 1981 - 7517 (impressa)

e-ISSN: 1981 - 7509 (eletrônica)

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Editorial

EmaNuEl aNgElO Da ROCha FRagOSO, p. 9

Spinoza and thE paradox of political frEEdomaNDRé SaNTOS CampOS, p. 11

a libErdadE Em SpinozaaNTONIO BapTISTa gONçalVES, p. 25

o fEnômEno do nada Em SpinozagIONaTaN CaRlOS paChECO, p. 39

o filóSofo UriEl da coStahOmERO SaNTIagO, p. 43

ESpinoSa E o aSno dE bUridanluIz CaRlOS mONTaNS BRaga, p. 67

dESpErtando do Sonho:a rEfUtação ExpErimEntal do império da mEntE SobrE o corpoluÍS CéSaR guImaRÃES OlIVa, p. 77

a cintilação dE ESpinoSaROmaIN ROllaND(TRaDuçÃO E NOTaS DE aDRIaNa BaRIN DE azEVEDO E guIlhERmE IVO), p. 87

rESUmoS doS artigoS, p. 93

como pUblicar, p. 97

Volume 8 - número 16 - dezembro - 2014issn: 1981 - 7517 (impressa)

e-ISSN: 1981 - 7509 (eletrônica)

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Revista

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9Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

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editorial

Ex quibus apparet, quantum sapiens polleat, potiorque sit ignaro, qui sola libidine agitur.1

Benedictus de spinoza

Neste segundo número do ano de 2014 de nossa rEviSta ConatuS - filoSofia dE Spinoza estamos publicando seis artigos e uma tradução de textos inéditos em português. Dos artigos, um veio do Rio Grande

do Sul, um de Portugal e quatro de São Paulo. A tradução também veio de São Paulo. Como de costume, os artigos e as traduções foram dispostos em ordem alfabética pelo primeiro nome do autor.

Iniciamos nosso número com o artigo de andré SantoS campoS, que nos apresenta a solução de Spinoza para o problema da incompatibilidade da noção de liberdade com a necessidade de obediência a outro no campo político.

No segundo artigo, antonio baptiSta gonçalvES, discute a liberdade em Spinoza, a partir da afirmativa de que “A liberdade inexiste para Baruch Spinoza”.

A seguir, no terceiro artigo, gionatan carloS pachEco, nos apresenta um exercício que terá como base teórica o pensamento de Espinosa, ao passo que terá por meta uma relação deste com textos de Heidegger, como “O que é Metafísica?” e “Introdução a Metafísica” com a pretensão de realizar apontamentos acerca de um suposto fenômeno do nada no pensamento de Spinoza.

No quarto artigo, homEro Santiago, descreve a vida de uRIEl Da COSTa e toda a sua trajetória de conflitos com os líderes da comunidade judaica de Amsterdam que termina tragicamente com o suicídio de Uriel.

No quinto artigo, lUiz carloS montanS braga, a partir da anedota do asno de Buridan, esboça o rol conceitual presente na narrativa pela pena de duas linhagens da tradição filosófica, a saber, a aristotélica e a cartesiana, mostrando como Espinosa opera o desmonte das teses da tradição, propondo outras relações para os conceitos de vontade, desejo e conhecimento.

No último artigo, lUíS céSar gUimarãES oliva, examina o famoso escólio da proposição 2 da parte 3 da Ética de Espinosa, no qual o autor refuta a suposta evidência experimental do poder absoluto da alma sobre o corpo, desmentindo a ilusão do livre-arbítrio no próprio nível da experiência.

1 Tradução: “Torna-se assim aparente o quanto o sábio prepondera e é mais potente que o ignorante, que age somente pela libido.” (Ética, Parte 5, Proposição XLII, escólio).

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Editorial. p. 9-10.

Encerrando este número, adriana barin dE azEvEdo e gUilhErmE ivo, nos trazem a tradução para o português do texto de ROmaIN ROllaND, a cintilação dE ESpinoSa, publicado somente na língua bengali, na revista asiática pRaBaSI em 1926.

Aproveitamos para reiterar o convite a todos que se interessam pelo filósofo holandês, ou pelos temas por ele abordados, para que nos enviem seus textos para possível publicação em nossa revista, lembrando que os mesmos devem estar adequados às regras de publicação de nossa revista e também às novas regras da ortografia para a língua portuguesa.

EmanUEl angElo da rocha fragoSo (Editor)

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11Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

One of the most recurrent problems

in early modern political philosophy

consists in the contrast between political

power and individual freedom – between the pre-

eminence of sovereignty and the pre-eminence

of individual rights limiting sovereignty. This

contrast constitutes the ‘Paradox of Sovereignty’:

it basically consists in stating that limited power

is actually more powerful than unlimited power

(Krasner, 1999: 3; and Holmes, 1995: 131). The

contrast is between sovereignty, insofar as it is

synonymous with absolute power, or rather power

to do anything that is politically possible to do; and

individual freedom, insofar as it is synonymous

with a certain personal sphere of action inside

which political powers cannot intervene.

However, this same paradox can be

formulated from the other side of the dichotomy

between sovereignty and individual rights. From

the perspective of individual political freedom, it

can be called a ‘Paradox of Freedom’ insofar as

the formation of political authority depends upon

a paradigm of obedience to someone (whether

natural or artificial), in order to maintain that

very same individual freedom. The individual,

in order to fully have a right of his own, must

somehow be under the right of another. The

argument tends to develop in the following way:

Individuals are free only if they participate in the

making of a political community, which requires

obedience to a sovereign; the sovereign, in turn,

can only be and remain a sovereign insofar as

he is obeyed; and obedience is more and more

assured the freer individuals are in the making

of their political community. The paradox is

that freedom can only be achieved by obedience,

which is usually regarded as the contrary of

freedom.

Nevertheless, the ‘Paradox of Freedom’

can be overcome if obedience stops being

understood as synonymous with a certain

absence of freedom, and if instead the relation

between obedience and freedom can somehow

be turned into a politically compatible one. But

the moment that obedience and freedom become

compatible, the element which is a necessary

condition for there to be political freedom

becomes exactly the same element which is

usually considered a necessary condition for

there to be political serfdom: obedience. How,

then, is one to discern between freedom and

non-freedom, between political freedom and

political serfdom, if both are to be related to the

same element of obedience? If two men obey one

same authority, how can the one who is free be

distinguished from the one who is a slave? Can

* André Santos Campos, graduado em Direito e doutorado em Filosofia, é investigador integrado do Instituto de Filosofia da Universidade Nova de Lisboa (Ifilnova), onde desenvolve os seus estudos nas áreas da Filosofia Política, Filosofia do Direito, Filosofia Moderna, e Ética. É autor de Jus sive Potentia (CFUL, 2010); Spinoza’s Revolutions in Natural Law (Palgrave MacMillan, 2012); Glosas Abertas de Filosofia do Direito. Um Tronco Comum para Juristas e Filósofos (Quid Juris, 2013). É ainda editor de Challenges to Participation in Democracy (Lexington Books, 2014); Spinoza and Law (Ashgate, 2015); e de Spinoza: Basic Concepts (Imprint Academic, 2015).

aNDRé SaNTOS CampOS*

Spinoza and thE paradox of political frEEdom

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12 Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

CAMPOS, André SAntOS. Spinoza and the paradox of political freedom. P. 11-24.

they be distinguished at all? Where does political

freedom stand in all this?

The following argument will try to show

that Spinoza tackles this problem directly

in both his political treatises, and from two

different viewpoints: firstly, from the viewpoint

of individual freedom; and secondly, from the

viewpoint of the State. Overall, both approaches

in both treatises seem to end up expressing one

same theoretical vision of what political freedom

is, albeit through different formulations: in the

TTP, by using four different criteria for measuring

that which can be termed ‘internal obedience’ and

that which can be termed political efficacy; and

in the TP, by using the conceptual pair sui juris / alterius juris as a combination on multiple levels

rather than as an exclusive opposition. 1

This paper comprises four sections. The

first two sections will approach freedom as it is

presented in the TTP – first, from the viewpoint

of the individual, then from the viewpoint of

the State. The last two sections will approach

freedom as it is presented in the TP – again, from

the viewpoint of the individual and then from the

viewpoint of the State. Ultimately, it will be made

clear how Spinoza’s solution combines a set of

different criteria for assessing political freedom,

both from the viewpoint of the individual citizen

and of the State, thus presenting a complex scale

for measuring freedom in degrees.

thE two critEria of frEEdom from thE viEwpoint of thE individUal in thE ttp

Spinoza addresses the ‘Paradox of

Freedom’ in the TTP. In chapter XVI, after having

spent several pages describing the formation of

1 Translations from the Ethics are from Spinoza, 1994. Translations from the Tractatus Theologico-Politicus [TTP], the Tractatus Politicus [TP] and the Correspondence [Ep] are from Spinoza, 1998. References are to Spinoza, 1925, by page number (included in most modern editions). The standard abbreviations are followed.

political societies and the constitutive obedience

created through the individual transferences of

power, he poses this question: are we thus ‘turning

subjects into slaves’ (TTP XVI/201)? His answer

will be provided in the remaining chapters. What

he seems to indicate is that obedience ‘does take

away liberty in some sense’ (TTP XVI/201), but

that does not mean that obedience necessarily

implies an absence (even if only a relative absence)

of freedom. The only way to make obedience and

freedom not only compatible, but also to make

the latter somehow dependent upon the former is

by considering the existence of different kinds of

obedience which will be associated with different

kinds of freedom or non-freedom. In other words,

obedience is necessary in order to make a free

citizen and also to determine whether someone

is a slave. The difference between freedom and

bondage, in this sense, will then be determined

by the kind of obedience.

Spinoza distinguishes between different

kinds of obedience twice in the TTP. At the

beginning of chapter XVII, he makes mere

factual obedience differ from a psychological

acceptance of specific commandments. The

distinction is between external obedience and

internal obedience: the former is the mere

observance through actions or omissions of

that which is commanded by whomever might

be in the position of authority, and is sufficient

for obedience2; the latter is an ‘internal action

of the mind’ through which one ‘resolves to

obey every word of another wholeheartedly’

(TTP XVII/209), and measures the intensity

of the externally observed obedience. In other

words, external obedience is sufficient for

obedience; internal obedience determines the

2 ‘It is not the reason for being obedient that makes a subject, but obedience as such’ (TTP, XVII/209). ‘Obedience as such’ is what one could call external obedience.

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13Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

CAMPOS, André SAntOS. Spinoza and the paradox of political freedom. P. 11-24.

reasons for actions or omissions. The more

an individual ‘resolves to obey every word of

another wholeheartedly’ because he understands

the necessity of compliance with that which is

commanded, the more wholeheartedly will he

obey, since the command will reveal reasons for

actions or omissions that are actively accepted

as such by the individual. He thus might be said

to participate intellectually in the normative

strength of the commandment to which he obeys.

Spinoza, however, provides another

distinction between different kinds of obedience

in another passage earlier in chapter XVI. When

he confronts the question of whether subjects

become slaves because they obey in order to

acquire freedom, Spinoza presents three kinds

of freedom illustrated with reference to three

different kinds of obedience: that of the slave;

that of the child; and that of the political

subject. What distinguishes one from the other

is their reasons for acting according to another’s

commands. What distinguishes them is the

different nature of their internal obedience.

The slave obeys every word of his master only

in view of what is advantageous to the master;

the child obeys every word of his parents in view

of what is advantageous to him, albeit only the

parents know what is more advantageous to

their children; and the political subject obeys

every word of the sovereign in view of what is

‘useful for the community and consequently also

for himself’ (TTP XVI/201). Moreover, Spinoza

adds that

Anyone who is guided by their own pleasure in this way and cannot see or do what is good for them, is him or herself very much a slave. The only [genuinely] free person is one who lives with his entire mind guided solely by reason. (TTP XVI/201).What these two passages show is that there are two main criteria for determining the political freedom of individuals whenever they

obey: the epistemological criterion, according to which an individual is free to the extent that he is guided by reason, and he is a slave to the extent that he is guided by passions; and the criterion of usefulness, according to which the individual who obeys another only to the advantage of another does not have the same freedom as that of the individual who obeys another to his own advantage, who in turn does not have the same freedom as that of the individual who obeys another to the advantage of his community and consequently of himself. Both criteria are used in order to infer the kind of internal obedience: external obedience is sufficient in order to produce a subject; but the freedom of the subject can only be determined when these two criteria measure the intensity of his internal obedience.

These two criteria for assessing political

freedom from the viewpoint of the individual

begin to show Spinoza’s original contribution to

solving both political paradoxes – the ‘paradox

of sovereignty’ and the ‘paradox of freedom’.

The epistemological criterion is the one which

establishes the conceptual framework of the very

notion of freedom because it is the only one that

allows the identification of freedom even when

there is no obedience at all. When Spinoza claims

that acting on obedience ‘does take away liberty

in some sense’, he is referring here mainly to

an epistemological freedom, since the human

individual who is guided by reason (the wise

man) knows things in their necessary, rather than

contingent, connections, and therefore does not

need to be compelled to follow a certain external

statement of necessity. That is why Spinoza

describes him as living ‘above the law’ [supra legem]3. In a community composed solely by wise

men, there is no need for obedience since laws

are nothing but imaginative constructs of what

should be deemed necessary (Campos, 2012:

53-67), and

3 Ep. 19/810, a letter dated from 1665, the year in which Spinoza supposedly began working on the TTP. In Jacqueline Lagrée’s words, one could say that Spinoza’s wise man is able to overcome the norma-tive realm only through cognitive activities. Cf. Lagrée, 2004 : 192-4.

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14 Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

CAMPOS, André SAntOS. Spinoza and the paradox of political freedom. P. 11-24.

Love of God is not obedience … Obedience … concerns the will of someone who commands, not the necessity and truth of a thing. (TTP XVI, annotation 34/ 272).

The problem is that such communities

composed exclusively by wise men are apolitical,

and are nowhere to be found except in men’s

imaginations. In fact, political communities

are composed mainly of men who are guided

by their passions, and wise men live also in

such communities. That is why the problem of

obedience is relevant also to the wise man. And in

this political context shared by both the man who

is guided by passions alone and the man who is

guided by reason, the epistemological criterion

is insufficient in order to distinguish between

different kinds of internal obedience. This is

the point at which the criterion of usefulness is added to the epistemological criterion in order to

produce an original theory of political freedom.

These two criteria function together in

order to distinguish between several different

degrees of internal obedience. This was not

possible when simply measuring external

obedience, since it can only be determined in an

‘all-or-nothing’ fashion rather than according to a

scale of different kinds of obedience. Thus, a first

glance at those different degrees of obedience

might also be regarded, from the viewpoint of

the individual, as a scale of different degrees of

freedom. A provisional scale might be presented

thus:

(1) The wise man living in a community

of wise men (apolitical freedom);

(2) The subject guided by reason;

(3) The subject guided by passions;

(4) The child;

(5) The slave.

Slavery, in this sense, is not necessarily a

conceptual space of non-freedom (synonymous

with bondage), since the two criteria of freedom

are necessarily complements rather than

alternatives to one another. If the slave leads

himself by reason rather than by passions, he can

be considered freer (or rather, less bound) than

the slave who is guided by passions. Hence, each

criterion cannot function in an ‘all-or-nothing’

fashion, but they are always functioning together

in order to produce a scale of different kinds of

obedience that is also a scale of different degrees

of individual freedom.

A new problem arises, though, which can

be traced to Epictetus’s famous dilemma: who is

the freest man? The slave who guides himself by

reason, or the master who is led by the passions?

If the epistemological criterion takes precedence

over the criterion of usefulness, then freedom

is firstly epistemological and only secondarily

political. The wise man guiding himself by reason

would be freer whether he lived in the most

oppressive of tyrannies or in the most amicable

democracy. Epictetus’s dilemma would be easy

to solve: the rational man would always be freer

than the one guided by passions, no matter to

whom their actions are directly advantageous.

Overall, a Socrates under arrest would always

be freer than a passionate politician.

However, if this is the case, the provisional

scale of obedience is completely wrong, since

the slave guiding himself by reason is freer

than the subject guided by the passions. But, if

so, what is the status of freedom in politics? In

what way can a Socrates under arrest be said to

be politically freer than a passionate politician?

There seem to be several reasons why the

simple epistemological criterion is insufficient

in a political context. Firstly, this is because

reducing freedom to a measure of rationality

would remove from Spinoza’s philosophy any

political sense of freedom, which contradicts

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15Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

CAMPOS, André SAntOS. Spinoza and the paradox of political freedom. P. 11-24.

the TTP’s main point of demonstrating that an

absence of freedom to philosophize threatens

any State’s peace and prosperity. Secondly, it is

because mere rational knowledge (specifically,

knowledge of what is necessary in the laws)

is not sufficient in early modern philosophy

for deeming someone to be free, since it is

also necessary that such laws cannot be made

arbitrarily and also that those who obey them

can somehow relate to their process of formation

(also in this sense, see James, 2012: 255-258).

And thirdly, because Spinoza uses freedom to

characterize not only individual subjects, but also

political societies (TTP XX/250), which implies

that political freedom must be something more

than mere individual knowledge. Thus, political

freedom cannot simply be synonymous with

reason, but must have some politically relevant

dimension that requires it to be approached also

from the viewpoint of the State’s relations with

its subjects.

thE two critEria of frEEdom from thE viEwpoint of thE StatE in thE ttp

Thus, both criteria for assessing political

freedom from the viewpoint of the individual

no longer seem sufficient to explain political

freedom from the viewpoint of the State.

Otherwise, what has been stated so far would

not be sufficient to explain the TTP’s main thesis,

which is included in its long title: that freedom of

philosophizing can preserve the State’s peace and

stability, and that it is not possible to overrule

it without endangering the State’s peace and

stability. Consequently, political freedom in the

TTP can be fully grasped only when the two

viewpoints are joined together cumulatively.4

4 Spinoza seems to follow here Machiavelli’s lead, according to which it is possible to be a free man as opposed to a slave only in a free political experience: see Machiavelli, 1996: 129-130.

From the viewpoint of the State, there will

also be two criteria for assessing freedom which

mirror in the politically institutional realm the

two criteria applied originally to individuals.

With regard to epistemology, States cannot

simply be called to know things rationally or by

intuitive science5, but they can be imputed with

ideas and intelligible statements just as if they

were thinking: these ideas are political decisions enacted in normative form. This is where the first

criterion of freedom from the viewpoint of the

State will develop: in efficacious decision-making.

In the TTP, Spinoza says clearly that

freedom of thought and speech is something

most advantageous to the sovereign. But

this entails two points: first, that freedom of

thought and speech cannot be confused with

licentiousness, that is, with an absolute ability

to think of everything and of expressing any

opinion whatsoever, since seditious opinions

to the public peace are to remain inadmissible

(TTP XX/253-4); and secondly, that when one

speaks of individual freedom for assessing a

State, one is not really talking about whether

sovereigns have a right (or the authority) to

compel subjects to follow certain opinions or

not, but rather if doing so can be beneficial or

damaging to the sovereign (TTP XX/251). In

Spinoza’s own words, ‘we have moved on from

arguing about right, and are now discussing

what is beneficial’ (TTP XX/251). What concerns

Spinoza is that absence of individual freedom

is damaging in the long-run for the sovereign,

since tyranny intensifies the gap between ruler

and subjects, which in turn furthers the subjects’

resistance to commands, which in turn weakens

the sovereign, which in turn produces social

tensions and conflicts that are damaging to peace

5 In the opposite sense, see Lucchese, 2003; and Blom, 2007.

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16 Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

CAMPOS, André SAntOS. Spinoza and the paradox of political freedom. P. 11-24.

and political stability. The free State – the one

which promotes individual freedom because that

is beneficial to its power – is the one that stands

in the middle of two contrary political regimes,

namely absolute anarchy and absolute tyranny:

it is the moderate government.

How can a State become moderate?

Spinoza provides the answer in chapter

XVII, following the Hebrew State’s example.

Moderation is achieved by limiting the power

attributed to Hebrew leaders and by ‘curbing

the boundless licentiousness of princes’ (TTP

XVII/220). The idea lying behind this example is

that unlimited power is worse and less powerful

than limited power. Political power is more stable

and prosperous the more it eliminates those

conditions that allow arbitrariness of political

decisions and the more it accepts the rule of

law. Legal certainty is then a condition for a free

State. The free State is the one with a moderate

government in which there is predictability

in decision-making. The exact opposite of a

moderate State is one in which people live their

whole lives in a ‘continual practice of obedience’,

where no one can desire what is forbidden but

only what is prescribed, to the point that slavery

is mistaken with freedom (TTP XVII/224). In

the moderate State, on the other hand, subjects

desire only what is prescribed because what is

prescribed is only what they desire in the first

place. The sovereign has no arbitrariness in the

moderate State, since he is limited to prescribing

only what subjects are expecting him to prescribe

– that is what makes his decisions efficacious.

This means that a moderate government, no

matter the political regime in question, is

always freer than an immoderate State such as

a tyranny, for instance.

Hence, political freedom will be found

mostly in those States in which there is a more

willing obedience to political decisions. However,

Spinoza claims in addition that ‘there is nothing

that people find less tolerable than to be ruled

by their equals and serve them’ (TTP V/73),

which means there is always a gap between

rulers and subjects and an asymmetry between

ruling and obeying except when citizens believe

they are following their own volitions when

obeying the laws. The more transcendent-like

the relation between the State and its subject

is, the more men will believe that they are

conforming to another’s will instead of their own,

which will entail that they will obey laws much

less willingly. In other words, political efficacy

depends mostly upon the personal generalized

belief that subjects participate to some extent

in the making of political decisions. This is

the criterion of usefulness as it is reproduced

in freedom from the viewpoint of the State,

thus constituting a fourth criterion of political

freedom: political regimes with majoritarian participations.

Spinoza proposes to equate political

efficacy with individual freedom. His first step is

to make the imaginary ontological gap between

rulers and subjects fade away by making each

individual believe that when he obeys political

decisions he is obeying no one but his own

will. The most effective political decisions are

those laws that become mandatory because

individuals are willing to obey them and accept

them qua obligatory – that is, those in which

the law-making process is somehow politically

immanent. And that can only be achieved

when the subjects who will obey the laws are

exactly the same individuals who constitute the

law-making process in the first place. In other

words, the more democratic-like the State, the

more efficacious it will be, since each individual

subject will more actively believe to obey the laws

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17Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

CAMPOS, André SAntOS. Spinoza and the paradox of political freedom. P. 11-24.

because it is advantageous for the public good

and consequently also for himself. Nevertheless,

much like what had occurred with the two

criteria of political freedom from the viewpoint of

the individual, the epistemological-like one will

take precedence over the other. Consequently,

moderation takes precedence over the specific

kind of political regime when measuring a free

State. For example, a moderate monarchy will

still be freer than a democratic licentiousness.

frEEdom from thE viEwpoint of thE individUal in thE tp

From the viewpoint of the political

individual, freedom in the TP appears mainly

when the pair sui juris/ alterius juris is used

to describe both consensual and conflictive

relations between individuals. Like many other

concepts proliferating in modern political theory,

this pair is derived from Roman private law

and imported into the public realm, in which

sui juris is synonymous with independence and

autonomy, and alterius juris is synonymous with

dependence and heteronomy. Politically, they

establish the difference between acting as one

wills and being subject to the power of another;

between being a citizen and a slave (Skinner,

1998: 40-42; Steinberg, 2008).

However, Spinoza’s uses this pair

differently. In the TP he says:

every man is sui juris to the extent that he can repel all force, take whatever vengeance he pleases for injury done to him, and, in general, live as he chooses to live. (TP II/9).

Overall, neither criterion of sui juris can

actually discard a certain level of dependence

and heteronomy – no one is strong enough to

repel all force moved against him; vengeance is

a sign of bondage to the passion of hate rather

than freedom; and no one lives without imitating

someone else’s affects at some point. How, then,

can sui juris be distinguished from alterius juris?

How can it be a lawful expression of human

freedom? Spinoza develops this idea further on:

the mind is fully sui juris only to the extent that it can use reason aright. Indeed, since human power should be assessed by strength of mind rather than robustness of body, it follows that those in whom reason is most powerful and who are most guided thereby are most fully sui juris. So I call a man altogether free insofar as he is guided by reason, because it is to that extent that he is determined to action by causes that can be adequately understood solely through his own nature, even though he is necessarily determined to action by these causes. (TP II/11).

Spinoza says here explicitly that the mind

is far more important than the body. There

is no autonomy of the attribute of thought

with regard to the attribute of extension, but

rather a dislocation of the viewpoint from

which the formation of relations is assessed.

In E2, individuals are defined inside a context

of physicalism. However, to be sui juris in the

TP appears from the perspective of thought:

it is primarily an epistemological concept for

evaluating human power and only secondarily

a physical concept determining what bodies can

and cannot do. The mind, rather the body, is the

subject for sui juris: the mind’s understanding

determines whether or not it is sui juris.

Consequently, those three prior criteria for sui juris are overcome by a new more powerful

criterion, which is not really opposed to the

former but rather absorbs and overrules them:

the one connecting sui juris to the guidance of

reason.

Spinoza distinguishes between different

degrees of understanding – imagination, reason,

and intuitive science. If sui juris is connected to

a certain kind of understanding, it must also

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18 Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

CAMPOS, André SAntOS. Spinoza and the paradox of political freedom. P. 11-24.

be expressed through different degrees. That is

probably why Spinoza says those that are ‘most

fully’ sui juris are those that are ‘most guided’ by

reason. If some men are more guided by adequate

ideas than others, there will also be some men

that are more sui juris than others. It is in this

point of contact between sui juris and rational

guidance that Spinoza posits individual political

freedom: an individual is free if guided by reason. Sui juris is synonymous with freedom only when

both express adequate kinds of understanding.

How, then, is one guided by reason? By

being ‘determined to action by causes that can

be adequately understood solely through his own

nature, even though he is necessarily determined

to action by these causes’ (TP II/11). This is the

description of sui juris as a degree for measuring

human power and as a legal qualification of

freedom. Actually, it is also entirely coincident

with Spinoza’s conception of virtue (E4d8) and

of adequate causality (E3d1). An adequate

cause is that ‘whose effect can be clearly and

distinctly perceived through it’ (E3d1) – it is

causality regarded from the viewpoint of the

understanding. In the context of natural power,

the measure by which virtue, freedom, and

sui juris can be assessed correlates with this

connection between higher levels of causality

and higher levels of adequate understanding. The

difference between activity and passivity cannot

be reduced to a difference between causing and

being caused, but includes mostly the difference

between adequate understanding of causality

and inadequate understanding of causality.

However, an active individual is not

someone who is causal whilst perceiving his

own causality with exclusive self-reference.

Otherwise, he would be an isolated monad, which

contradicts Spinoza’s definition of the individual

in the Ethics (E2p13def). Even the most active

of men requires the presence of an ‘other’. The

active individual, who can be considered sui juris in this sense, is not a completely autonomous

or independent individual even when he causes

adequately. He is rather a ‘becoming-causal’

perceiving the true nature of that causality of

which he is a part. The adequate cause does not

exclude the presence of an ‘other’, but rather is the

cause in which the presence of an ‘other’ can be

perceived as a necessary inherence to the cause’s

very nature. Consequently, virtue, freedom,

action, and sui juris necessarily imply relations

between different individuals. What they qualify

is not an independent self-reference in causality,

but rather the connection in human individuals

between being causal and understanding their

own causality’s immanence. The individual is

virtuous, free, or sui juris, to the extent that he

understands himself as an active participant in

the causality that makes him an effect.

Just as there are degrees of knowledge

in causality, there are also degrees of being

individual sui juris. Thus, even the imagination

(despite its inadequacy) can participate in being

sui juris. The imagination, even if accidentally,

can indeed produce some levels of human

cooperation that allow individuals to ‘repel

external force’ or ‘to avenge an injury’. Just as

the imagination can produce some effects in the

realm of politics that are similar to those that

would have been produced by reason (reasonable effects instead of rational effects6), the pair sui juris / alterius juris will also include degrees in

which inadequacy can be somewhat productively

similar to adequacy. Since Spinoza says there

are four criteria for determining whether or not

an individual is alterius juris (TP II/10) – two

of them describing physical compulsion, and

6 On the distinction between the reasonable and the ra-tional, see Garver, 2010.

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CAMPOS, André SAntOS. Spinoza and the paradox of political freedom. P. 11-24.

the remaining two describing bondage by fear

and by hope – those common elements that fear

and hope can produce, if reasonable albeit not

rational, can also constitute a minimum degree

of being sui juris.The relation between being sui juris and

alterius juris is not one of ‘this-or-that’, but

rather one of degrees. In the TTP’s terminology,

one could say that alterius juris refers to

internal rather than external obedience. And

some degrees of alterius juris – especially those

involving politically productive passions of hope

– do seem to be also a minimum degree of sui juris. These degrees are measured by Spinoza’s

three kinds of knowledge: the more passionate

men are the most bound; the more rational men

are the freest. Thus, a man bound by fear is more

alterius juris than a man bound by hope, and a

man bound by hope is less sui juris than a man

guided by reason. The pair sui juris/ alterius juris is not an exclusive opposition, but rather a

progressive scale for measuring how powerful

an individual is.7

To be under the natural right of another

does not imply a sacrifice of one’s natural

right. On the contrary, since there is no politics

without obedience, in order for an individual

to have a right of his own he will have to be

under another’s natural right at some point.

Since sui juris seems to entail always some

level of heteronomy (alterius juris), it cannot be

interpreted in the sense of Kantian autonomy or

independence.8 But because heteronomy seems

to have different degrees, the notion of sui juris divides heteronomy into different degrees in

7 See the clear accounts on different types of individual political freedom (the free man, the hopeful citizen-subject, the fearful citizen-subject, and the slave) in Steinberg, 2009.8 In this sense, see Uyl, 2003; and, for the opposite view, Kisner, 2011. Sui juris is commonly translated as ‘being one’s own master’.

accordance to the way the latter is perceived.

Hence, an individual is sui juris if he has a right

of his own. The more powerful he is, the more

sui juris he will be. And the more adequate

understanding he has in perceiving his own

causality, the freer he is.

frEEdom from thE viEwpoint of thE StatE in thE tp

If an individual’s degree of sui juris functions mostly as a measure for the connection

between that individual’s causality and higher

levels of understanding, in what sense can

politics matter to it at all? If an individual is free

and sui juris simply by obeying the law because

he understands that it is in his interests to do

so, then his freedom is firstly epistemological

and only secondarily political. The wise man

described in part V of the Ethics would be sui juris whether he lived in the most oppressive of

tyrannies or in the most amicable democracy.

Epictetus’s dilemma about whether the freest

man is the wise slave or the ignorant master

would thus be solved by Spinoza in favour of the

former – a Socrates under arrest would always

be more sui juris than a passionate politician.

Spinoza presents sui juris not only from

the perspective of an epistemological criterion,

but also from a politically oriented criterion

of usefulness applicable also to States. In fact,

Spinoza uses the pair sui juris / alterius juris in

the TP in reference not just to individuals but also

to political societies (TP III/12-13). Thus, sui juris cannot simply be synonymous with adequate

causality, but must have some politically

relevant dimension that requires freedom to be

approached also from the viewpoint of the State’s

relations with its citizens.

States cannot simply be said to understand

things through the imagination, reason or

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CAMPOS, André SAntOS. Spinoza and the paradox of political freedom. P. 11-24.

intuitive science, since rigorously speaking

they have no singular minds of their own. Still,

Spinoza insists (in the TP, at least) that ‘they

are guided as if by one mind’ [una veluti mente ducuntur]. This means that even though they

have no minds of their own, what they actually

make and achieve is somewhat similar (and

comparable) to what human minds do. Political

societies can thus be evaluated by different

degrees mirroring the human mind’s different

levels of understanding.

This does not imply that political societies

can be measured by the levels of understanding

by which their rulers know and guide their own

personal minds. Much like Machiavelli, Spinoza

believes that rulers’ philosophical and scientific

wisdom is irrelevant to producing a successful

political society, which is why he is so hostile to

Plato’s ideal of a philosopher-king (TP I/1). In

fact, political decisions are not to be evaluated

according to their truthfulness or falsity but

rather according to their efficacy, which is

the ‘truth’ of the political thing. And efficacy

is political power’s ability to conserve its own

dynamic condition by being the most obeyed

that it can possibly be, i.e. politically productive.

Instead, what is liable to being compared to

human ways of understanding is the connection

between the image of a unified political will and

the social efficacy of decisions imputed to such

an image. In this case, the more these political

decisions are effective – that is, followed and

believed to have originated in a sort of political

will – the more power the State will have, which

in turn requires a further empowerment of the

individuals composing the multitude, which in

turn strengthens that imagined political will by

making its decisions more effective, and so on.

There is more efficacy the more this political

cycle promotes inclusion and consensus rather

than exclusion and conflict, that is, the more it

expresses a practical realm of commonality in

which individuals become more empowered.

Consequently, insofar as political decisions

convey a greater or lesser production of the

common, they are more or less in accordance

with reason – since reason for Spinoza is the

mind’s production of common ideas (E2P40S)

–, even if those who hold office in the State’s

institutions were not guided by adequate ideas

at all. This is basically the primary sense of a

political sui juris from the viewpoint of the State:

political efficacy of institutional decisions in the

production and reinforcement of the common.

Even though d i s t inc t f rom the

epistemological sense of sui juris, qualifying a

State as sui juris implies certain characteristics

similar to those individual ways of understanding

– namely the fact that it can be expressed in

different degrees and that its practical results can

be ratified by reason. Just as the epistemological

criterion of sui juris in individuals is greater to

the extent that it is more adequate and rational,

also the epistemological-like criterion of sui juris in States is greater to the extent that it is more

reasonable.

States, unlike individuals, can to some

extent maintain themselves with closed borders

and with no external contacts at all. The fact that

a State has its frontiers closed and no diplomatic

or commercial relations whatsoever with

other communities does not entail that it must

immediately cease to exist or that it cannot be

conceived at all (TP III/12), unlike what happens

to individuals. Different generations can follow

one another in a closed society, even without the

need for societal external regeneration. However,

if state sui juris designates political decisions’

efficacy in the multitude’s productive itinerary,

a State will be more sui juris the more political

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CAMPOS, André SAntOS. Spinoza and the paradox of political freedom. P. 11-24.

commonality it is able to help produce. The State

that is more sui juris will be not the one that is

more self-sufficient and self-regenerative (since

such States will always function internationally

by exclusion, and are always then threatened

by the spectre of coming up against all other

remaining States) but rather the one which

agrees more effectively with other States to

abolish the threat of war and to engage in mutual

relations of cooperation.

If the greatest political power occurs

in peace – that is, in ‘a virtue which comes

from strength of mind’, since ‘obedience is the

steadfast will to carry out orders enjoined by

the general decree of the commonwealth’ (TP

V/4) –, then it can only exist in international

inclusive rather than exclusive relations, since

‘the right to make war belongs to each separate

commonwealth, whereas the right to peace

belongs not to a single commonwealth but to

at least two’ (TP III/13). It is true that the more

a State engages in international cooperative

relations, the less it has the power to declare war

unilaterally. Because it must ‘adapt itself to the

common will of the allies’ (TP III/16), it might

appear more alterius juris than actually sui juris. Thus, a State can be considered sui juris when it

is self-sufficient and self-regenerative; however,

a State’s constituent power is incremented in

conditions of international peace, which can

only really be achieved when other sovereign

powers are taken into account, i.e. when the

State is alterius juris to some extent. Just like

an individual sui juris, there also seems to be a

compatibility between degrees of alterius juris and degrees of sui juris in States, especially since

two States are more powerful if they ‘choose

to afford each other mutual help’ (TP III/12).

The State which is more sui juris is not the one

completely self-dependent, but rather the one

which decides to depend on others to some extent

in order to grow even more powerful.

This extends to any type of political

regime. It is not necessary for a State to adopt a

specific regime in order to be sui juris according

to the criterion of efficacy. On the contrary, sui juris can qualify monarchies, aristocracies and

democracies alike. What the TP actually seems

to intend is to provide the specific conditions

available to these different political structures

of power that allow them to become the most

sui juris they can possibly be. For instance, a

monarchy can be an effective organization of

empowerment if it renews hope continuously

in its citizens, thus augmenting their constant

will to obey institutional decrees; or it can be

a deficient way to empower individuals if it

oppresses them by repeatedly inducing fear, in

which case it is rather called a tyranny (which

is much less sui juris and has a shorter lifespan

than a constitutional monarchy). Much like in

the TTP, moderate government is the key for the

political conditions of freedom.

Spinoza mentions the three classic kinds

of political regimes – monarchy, aristocracy,

and democracy – and claims that they are the

only ones available in history (TP I/3), despite

the fact that he had spent several pages in the

TTP describing theocracy. Spinoza believes that

being sui juris operates in degrees even inside the

broader types of political regimes, and sometimes

those degrees of sui juris in States assume a

specific terminology. A monarchical regime

can, for instance, be a Hobbesian monarchy, a

Hebrew theocracy, or a Spinozist constitutional

monarchy. Each will represent a different degree

of a monarchical state sui juris. What the TP

strives to project is the most powerful structure

of state sui juris available to the three broader

types of political regimes.

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22 Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

CAMPOS, André SAntOS. Spinoza and the paradox of political freedom. P. 11-24.

It is true that the highest degrees of sui juris will be found in those communities in

which affective interplay induces a more willing

obedience to political decisions (TP V/4). And

since ‘there is nothing that people find less

tolerable than to be ruled by their equals and

serve them’ (TTP V/73), there is always an

asymmetry between ruling and obeying except

when citizens believe they are following their

own will when obeying the laws. The more

transcendent-like the relation between the State

and its citizens, the more men will believe that

they are conforming to another’s will instead of

their own, which entails that they will obey laws

much less willingly. In other words, political

efficacy depends mostly on the generalized belief

that citizens participate to some extent in the

making of political decisions.

Like in the TTP, Spinoza proposes to equate

political efficacy with citizens’ empowerment.

The first step is to convert the primary politically

constituent affects of fear into stronger and more

enduring affects of hope; that is, to make each

individual citizen less alterius juris. The second

step is to remove the image of an ontological

gap between rulers and subjects by making

each citizen believe that when he obeys political

decisions he is obeying his own will. Efficacy

depends upon the multitude’s constituent

force – the less powerful the multitude, the less

effective the institutional political decisions.

Hence, the most effective political institutions are

those which depend on the multitude’s growing

empowerment. For Spinoza, democracy is then

the most effective and powerful political regime.

If it is true that each type of political regime

has several degrees of being sui juris, it must also

be true that the three classic types of political

regimes constitute between themselves different

degrees of state sui juris. Insofar as the process

for political decision-making is shared by all

the individuals constituting a State’s multitude,

efficacy becomes more certain and political

commonality more probable. In principle, then,

democracies will tend to express a higher degree

of sui juris than monarchies. However, since each

type of political regime is also capable of different

degrees of sui juris, the distinction between

monarchy, aristocracy and democracy is not that

clear-cut. It is possible to have a representative

democracy in which participation in its actual

decision-making process is very restricted and

moved only by mutual fear (a democratic state

alterius juris), and a constitutional monarchy in

which participation is more willing and moved

mostly by hope (a monarchical state sui juris); in

such a case, the monarchy will be more sui juris than the democracy. But generally, if both have

the same intensity of internal affective support, a

democracy is capable of achieving more political

efficacy than a monarchy, which is why it will

be more sui juris. Just like in the TTP, from the

viewpoint of the State, political freedom is subject

to two criteria – efficacious decision-making and political regimes with majoritarian participations –, in which the former takes precedence over

the latter.

conclUding rEmarkS

It is not a coincidence that Spinoza

divides political regimes into a classical triptych

just as he had divided the different kinds of

understanding in the Ethics into a triptych. Both

end up representing progressive levels of being

sui juris, whether at the level of the individual or

at that of the State. And despite the fact that both

triptychs can to some extent be independent of

one another – since a wise man can be somewhat

sui juris in a State which is alterius juris –,

Spinoza’s concept of sui juris seems to depend

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CAMPOS, André SAntOS. Spinoza and the paradox of political freedom. P. 11-24.

upon a combination of both. Thus, individual

sui juris cannot simply disregard entirely the

social conditions in which understanding can

become more adequate. So, even from the

viewpoint of individual freedom, sui juris is not

just divided into three epistemological degrees,

but into several more, since these degrees must

be inserted into a given political context, which

in turn is also divided into degrees (political

regimes) that are also divided into degrees (more

or less efficacious political regimes) – just like in

the TTP’s treatment of political freedom.

Hence, the wise slave and the ignorant

master in Epictetus’s dilemma are both

simultaneously sui juris and alterius juris,

albeit in different degrees and from different

viewpoints. From the viewpoint of being sui juris, there is something positive in both, either in the

wise slave’s knowledgeable intimacy (rationality)

or in the ignorant master’s public participation

(reasonableness).

No man is ever as sui juris as he can be,

just as no State is ever as sui juris as it can be.

The complex scale of freedom that combines

four different criteria to two different viewpoints

is merely an auxiliary tool for measuring

individual freedom, starting at the bottom with

the passionate man who only knows through the

imagination in the most oppressive of tyrannies

and culminating in the wisest man who knows

through intuitive science in the most open of

democracies. This is exactly what Spinoza claims

in the TTP when he talks about different types of

obedience and in the TP when he mentions the

conceptual pair sui juris / alterius juris: both texts

present a scale for measuring political freedom

with the purpose of overcoming the modern

paradox between freedom and obedience. The

only major difference is that the TTP provides an

explanation of the criterion of usefulness applied

to the viewpoint of individual freedom not to

be found so explicitly in the TP, whereas the TP

provides a much more developed explanation

of political freedom from the viewpoint of the

State not to be found so explicitly in the TTP.

Ultimately, however, both treatises are complete

and autonomous texts with regard to the subject

of political freedom, and they both seem to

express one same theoretical vision of what

political freedom is.

k k k

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24 Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

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k k k

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25Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

introdUção

O artigo em tela tem por objetivo

desenvolver o conceito de liberdade a

partir e de acordo com os ensinamentos

de Spinoza. Assim poderíamos fazer o

desenvolvimento da maneira tradicional, ou

seja, com a visão racionalista da qual Spinoza

faz parte.

No entanto, não nos parece ser esse o

caminho que desejamos percorrer. De tal sorte,

portanto, iremos inicialmente apresentar quem

foi Spinoza, os problemas que enfrentou em

especial com os religiosos.

Depois, avançaremos apresentando ainda

que em breves linhas sua relação com Descartes

e as ideias cartesianas nas quais se inspira para

desenvolver sua própria visão do Universo de

acordo com os racionalistas. Assim, avançará no

modelo apresentado por Descartes, contudo, ainda

não trará uma solução definitiva para a proposta

dos racionalistas: matematizar o Universo.

Os problemas decorrentes da teoria de

Spinoza serão enfrentados por Leibniz a quem

Spinoza trocava correspondência. Todavia,

sem compreender qual a realidade enfrentada

por Baruch de Spinoza e quais as novas ideias

trazidas por Descartes naquela época ocasionará

uma considerável dificuldade àquele que desejar

compreender a negação da liberdade em Spinoza.

E, para um auxílio da problemática,

traremos, também, o conceito de liberdade.

Posteriormente traremos a visão de Spinoza

acerca da liberdade, porém, antes de iniciarmos

nosso estudo cremos ser salutar apresentar

o pensador objeto de nosso estudo, Baruch

Spinoza1.

1.0 Spinoza

Baruch de Spinoza (1632-1677) nasceu2,

viveu e morreu na Holanda, onde sua família,

que era judia e procedente de Portugal, havia

se refugiado da Inquisição. Educado na fé

1 De acordo com a tradução de seu nome podemos verificar a existência de Bento de Spinoza, Benedictus de Spinoza, Baruch de Espinosa, a fim de não criar uma grande variação em termos de sua nomenclatura, em nosso texto adotaremos de forma uniforma a designação ao pensador como Spinoza. Bento, é traduzido para o latim por “Benedictus” e para o hebraico por “Baruch”. 2 No dia 24 de novembro de 1632, em Amsterdam, nasceu Baruch (ou Bento em português, ou Benedictus em latim). Nasceu marcado pelo conflito de suas origens: judeu, porque recebido na comunidade de Abraão e por receber educação rabínica; português (e com o catolicismo implícito nesse fato), porque seus pais eram emigrantes portugueses, o português sua língua materna; holandês, porque nasceu em Amsterdam, morreu em Haia e porque participou da vida política e cultural dos Países-Baixos. SPINOZA, Benedictus de. Pensamentos metafísicos; Tratado da correção do intelecto; Ética; Tratado político; Correspondência. Traduções de Marilena de Souza Chauí et al. 3 ed. São Paulo: Aril Cultural, 1983, p. 7 e 8.

aNTONIO BapTISTa gONçalVES *

a libErdadE Em Spinoza

* Advogado, Membro da Associação Brasileira dos Constitucionalistas, Pós-Doutor em Ciência da Religião pela PUC/SP, Pós-Doutor em Ciências Jurídicas pela Universidade de La Matanza. Doutor e Mestre em Filosofia do Direito pela PUC/SP, Especialista em Direitos Fundamentais pela Universidade de Coimbra, Especialista em International Criminal Law: Terrorism’s New Wars and ICL’s Responses pelo Istituto Superiore Internazionale di Scienze Criminali, Especialista em Direito Penal Econômico Europeu pela Universidade de Coimbra, Pós-Graduado em Direito Penal – Teoria dos delitos pela Universidade de Salamanca, Pós-Graduado em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas – FGV, Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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26 Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

GONÇALVES, ANtONiO BAptiStA. A liberdAde em SpinozA. p. 25-37.

judaica, acabou sendo excomungado por causa

das opiniões heréticas, consideradas na época,

que adquiriu com o estudo da obra de Descartes

(1596-1649), o fundador da filosofia moderna,

que, apesar de ser francês, também viveu a maior

parte de sua vida criativa na Holanda. Graças a

Descartes, aos cartesianos e à liberdade intelectual

que prevaleceu na República Holandesa nos anos

que se seguiram à bem-sucedida revolta contra a

Espanha, a Holanda do século XVII foi, durante

algumas preciosas décadas, um centro de vida

intelectual e a primeira sede do iluminismo3.

Spinoza não foi exatamente muito

adorado ao longo de sua vida4, muito em virtude

de suas ideias um tanto quanto revolucionárias

para a época. O que ocasionou apenas e tão

somente a publicação em vida de uma única

obra anonimamente, em 1670, o Tratado

teológico-político. Obra esta, que dentre outras

coisas, faz uma exegese crítico-histórica da

Bíblia, no sentido de demonstrar os argumentos

advindos da tradição dos judeus, povo, que,

desde a Diáspora, luta por um Estado judeu.

Spinoza demonstra que o Estado judeu antigo

foi fundado sob leis advindas da imaginação de

seus profetas e que deu uma resposta histórica,

e não universal.

Spinoza não conseguiu se destacar

economicamente através de sua produção literária

e, portanto, para garantir sua sobrevivência

trabalhou com lapidação de instrumentos de

ótica. Dentre seus problemas e conflitos podemos

salientar as desavenças com a comunidade

judaica, mas também foi odiado por católicos e

protestantes.

3 SCRUTON, Roger. Espinoza. Tradução Angélika Elisabeth Könke. São Paulo: UNESP, 2000, p. 5.4 Segundo Scruton, foi excomungado da Igreja Católica, perseguido por judeus, e passou maior parte de sua vida recluso, em estudos abrangentes, assim como os filósofos de sua época, perpassando de filosofia à matemática e ciências físicas.

Paolo Cristofolini5 acerca da vida de

Spinoza:

Bento de Spinoza (Baruch em hebraico, Benedictus em suas obras latinas) nasceu em Amsterdam em 1632, numa família de judeus de origem portuguesa. Banido da comunidade judaica em 1656 por um herem (decreto de exclusão) que o condenava pela impiedade de suas ideias e de seu comportamento, ele viveu desde então de maneira modesta, misturando a lapidação de instrumentos de ótica e a atividade especulativa de pesquisa da verdade6.

Sobre seu conflito com a comunidade

judaica destacamos a carta de sua expulsão,

datada de 6 de agosto de 1656 um anátema lido

na Sinagoga de Amsterdam contra Spinoza:

Os Senhores do conselho espiritual fazem

saber a vós que, estando há muito cientes

dos ímpios sentimentos e palavras de Baruch

Spinoza, empenharam-se, em várias ocasiões e

mediante promessas, em afastá-lo de sua conduta

perniciosa. Todavia, como nada puderam

conseguir com ele e, antes, pelo contrário, tendo

a cada dia uma experiência maior dos erros

pavorosos que ele manifestava em palavras e

atos, e de suas vergonhosas afirmações – em

prova do que tiveram testemunhas fidedignas,

que na presença dele prestaram seu depoimento

e o fizeram compreender tudo isso –, resolveram,

na presença dos rabinos e com sua concordância,

5 In PRADEAU, Jean-Françoes (org.). História da Filosofia. Tradução de James Bastos Arêas e Noéli Correia de Melo Sobrinho. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 233.6 Spinoza levou, portanto, uma existência discreta, sem por isso se isolar do mundo: ele teve, de fato, como correspondentes os filósofos Tschirnhaus (1651-1708) e Leibniz (1646-1716), assim como célebres eruditos, principalmente Robert Boyle (1627-1691) e o secretário da Royal Society de Londres, Henri Oldenburg (1618-1677).Ele consagrou os últimos anos de sua vida à redação e ao término de sua obra-prima filosófica, a Ética, assim como ao Tratado político, cuja redação foi interrompida por sua morte, em 1677. In PRADEAU, Jean-Françoes (org.). História da Filosofia. Tradução de James Bastos Arêas e Noéli Correia de Melo Sobrinho. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 233.

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GONÇALVES, ANtONiO BAptiStA. A liberdAde em SpinozA. p. 25-37.

proferir esta sentença de excomunhão contra o

referido Spinoza e expulsá-lo do povo de Israel

nos termos do seguinte anátema: conforme o

julgamento dos anjos e dos santos, nós com

plena aprovação do tribunal espiritual e com o

consentimento de todas as sagradas comunidades,

na presença dos santos Livros, com os seiscentos

e treze preceitos nele contidos, banimos,

expulsamos, condenamos e maldizemos Baruch

Spinoza, com a maldição que Josué lançou sobre

Jericó, com a maldição que Elias proferiu contra

as crianças, e com todas as maldições que estão

escritas no Livro da Lei. Maldito seja ele de dia e

maldito seja de noite. Maldito seja ele ao dormir

e maldito seja ao levantar. Maldito seja ele ao

sair e maldito seja ele ao entrar. Que o Altíssimo

jamais o perdoe. Que o Altíssimo faça arderem

sobre esse homem Sua ira e Seu desfavor, e que

lance sobre ele todas as maldições escritas no

Livro da Lei. Que seu nome seja destruído sob os

céus e que, para sua desgraça, ele seja separado

de todas as tribos de Israel, com tudo o que é

amaldiçoado no Livro da Lei. Mas vós, que sois

fiéis ao Senhor vosso Deus, nós vos saudamos

nesse dia. Certificai-vos de que nenhum de vós

lhe conceda nenhum favor; que nenhum de

vós permaneça sob o mesmo teto que ele; que

ninguém fique a uma distância de menos de

quatro côvados dele, e que ninguém leia nada

que ele tenha escrito ou transcrito7.

Spinoza despertou a fúria dos religiosos

por, dentre outras coisas, destacar negativamente

a Bíblia8 e também, como vimos por afrontar a

7 FISCHER, Kuno et al. Estudos sobre Spinoza. Tradução Eliana Aguiar, Estela dos Santos Abreu, Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014, p. 34.8 “Quando, portanto, a Bíblia diz que a terra é árida por causa dos pecados dos homens ou que os cegos se curam pela fé, não lhe devemos dar mais atenção do que quando diz que Deus se enfurece com os pecados dos homens, que está triste, que se arrepende do bem que prometeu ou fez, ou que, vendo um sinal, se lembra de algo que havia prometido; essas expressões e outras semelhantes são lançadas

comunidade judaica9, aqui traremos um trecho

das afirmações de Spinoza:

Na Escritura, efectivamente, narram-

se muitas coisas como reais, e assim eram

consideradas, muito embora não passassem de

visões e coisas imaginárias. Diz-se, por exemplo,

que Deus (o Ser supremo) desceu do céu (Êxodo,

cap. XIX, e Deut. Cap. V, 19) e que o monte

Sinai fumegava porque Deus tinha descido

sobre ele circundado de fogo, ou que Elias subiu

ao céu num carro de fogo puxado por cavalos

igualmente de fogo, tudo coisas que certamente

não passaram de imagens adaptadas às opiniões

daqueles que no-las contaram tal como elas lhe

poeticamente ou relatadas segundo opiniões e preconceitos do autor. Podemos estar absolutamente certos de que todo acontecimento verdadeiramente descrito nas escrituras forçosamente se verificou, como tudo mais, segundo as Leis Naturais; e se há, ali, algo escrito que se possa provar em termos estabelecidos e que contradiz a ordem da natureza ou dela se deriva, devemos acreditar que foi introduzido sub-repticiamente nos escritos sagrados por mãos irreligiosas; pois o que quer que seja contrário à natureza é contrário à razão, e o que quer que seja contrário à razão é absurdo”. SPINOZA, Tratado Teológico-político. Tradução Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Martins Fontes, 2003.9 Apensas um dos exemplos que resultaram da não admiração de Spinoza por parte dos religiosos: Os judeus gozavam, na República Holandesa, de liberdade religiosa, que lhes era negada em outras partes do mundo cristão; mas essa liberdade podia ser-lhes retirada se não cumprissem o acordo que possibilitava a permanência deles. Em função disso, Saul Monteira convoca Espinosa e lhe pede que abandone suas críticas referentes aos ensinamentos da sinagoga, mas este se mostra convencido de que a razão está do seu lado e não retrocede. Então, os chefes da sinagoga oferecem a Espinosa uma pensão anual de mil gulden para que se cale. Mas isso era impossível para um genuíno filósofo, e Espinosa responde com um opúsculo: “Apologia para justificar a ruptura com a sinagoga”. O herem foi a resposta oficial dos chefes da comunidade judaica, o qual fora proferido em 27 de julho de 1656. Com esse ato, Espinosa era banido da sinagoga. A sentença assinada por Saul Morteira assim dizia: “Excomungamos, expulsamos, execramos e maldizemos Baruch de Espinosa, ninguém deve dirigir-lhe a palavra ou prestar-lhe qualquer serviço ou ler seus escritos ou chegar a quatro côvados de distância dele”. Morteira comparece perante as autoridades de Amsterdã, notifica as das acusações e do “herem” e pede a expulsão de Espinosa da cidade. REZENDE, Wander Ferreira. A liberdade em Espinoza. Tese de Mestrado em Filosofia. Rio Grande do Norte: Universidade do Rio Grande do Norte, 2006, p. 15 e 16.

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GONÇALVES, ANtONiO BAptiStA. A liberdAde em SpinozA. p. 25-37.

apareceram, isto é, como realidades. Quem quer

que saiba alguma coisa que mais do que vulgo

sabe que Deus não tem direita nem esquerda,

que não se move nem permanece imóvel, que

não está num determinado lugar, mas que é

absolutamente infinito e contém em si todas as

perfeições10.

Ainda acerca das críticas de Spinoza sobre

a Bíblia, Paolo Cristofolini:

O Tratado teológico-político é uma das obras que marcaram a grande virada moderna da crítica. Desse ponto de vista, depois de ter longamente demonstrado que os textos transmitidos pela Bíblia são truncados, falsificados, alterados e incoerentes, Spinoza conclui disso também que a lei divina universal ensinada pela Escritura não nos chegou sem corrupção11.

Spinoza cultivou vários problemas com os

religiosos, como vimos, e no que tange à liberdade

apresentaremos o cerne dessas desavenças. No

entanto, inicialmente podemos destacar que a

visão de Deus e do homem dada pelos religiosos

contrastava com o modelo desenvolvido pelos

racionalistas, dentre os quais Spinoza faz parte12,

assim, é consequência Spinoza negar muito dos

ensinamentos religiosos, em especial a parte

relativa aos milagres e acontecimentos não

explicáveis cientificamente que aparecem na

Bíblia.

E ao negar a veracidade destes Spinoza

ratifica sua posição como racionalista, mas,

evidentemente, ganha uma antipatia generalizada

dos religiosos.

10 SPINOSA, Baruch de. Tratado Teológico-Político. Tradução de Diogo Pires Aurélio. Imprensa Nacional, p. 201. 11 In PRADEAU, Jean-Françoes (org.). História da Filosofia. Tradução de James Bastos Arêas e Noéli Correia de Melo Sobrinho. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 237.12 De acordo com André Martins em sua obra Spinoza & Nietzsche, Spinoza insurge para renunciar à ideia de um Deus-Rei transcendente que perpetua até então na ontologia tradicional, trata-se de desmistificar o que acredita ser um pensamento de ficção ignorante.

2.0 inflUência dE dEScartES na obra dE Spinoza

Descartes, apesar de francês de nascimento,

viveu boa parte de sua vida na Holanda e foi

contemporâneo de Spinoza. Por ter vivido

naquele País é natural que o cartesianismo tenha

causado mais repercussão por lá, mas a teoria se

dissemina na França:

É na Holanda, jovem república cuja liberdade a torna centro de convergência da intelectualidade da época e que serve de residência a Descartes por boa parte de sua vida, que o cartesianismo mais rumor provoca. Aí, diversamente da frança terra natal do filósofo, onde a doutrina dissemina-se à margem das universidades e escolas, sendo discutida nas casas de nobres interessados nos rumos dos novos tempos e mais ou menos acolhida por algumas ordens religiosas, o cartesianismo logo seguiu as vias da institucionalização13.

Como demonstrado no começo desse

artigo Spinoza mantinha comunicação com

Leibniz. E com Descartes no mesmo local de sua

moradia Spinoza manteve contato estreito com

os ideais do cartesianismo14 e, nessa esteira, em

1663 lança em Amsterdam uma exposição do que

entende ser o sistema cartesiano com o título:

Partes I e II dos Princípios da Filosofia de René

Descartes demonstradas à maneira geométrica15.

13 SANTIAGO, Homero. Espinosa e o cartesianismo: o estabelecimento da ordem nos Princípios da Filosofia Cartesiana. São Paulo: FAPESP, 2004, p. 9.14 À época, o cartesianismo estava na ordem do dia, não faltavam explicações, cursos, refutações, sobretudo na Holanda, e se os PPC de fato mereciam algum destaque, quer dizer, mereciam serem lidos, isso justifica-se por sua dupla novidade, que depois de algumas explicações podemos reduzir a duas palavras: geometrização e fidelidade, expor geometricamente o cartesianismo, manter-se a ele fiel, sem dar azo à polêmica. SANTIAGO, Homero. Espinosa e o cartesianismo: o estabelecimento da ordem nos Princípios da Filosofia Cartesiana. São Paulo: FAPESP, 2004, p. 13.15 A obra nasceu de aulas a um jovem universitário comensal de Espinosa a quem este prometera e cumprira o ensino da física cartesiana, o que se deu maiormente por uma explicação da segunda parte dos Princípios. Por insistência de amigos, o filósofo preparou uma parte inicial com a exposição da metafísica de Descartes e

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GONÇALVES, ANtONiO BAptiStA. A liberdAde em SpinozA. p. 25-37.

Importante localizar temporalmente e

espacialmente os expoentes do racionalismo para

poder compreender como que a teoria racionalista

evoluiu e quais os motivos que causaram tantas

reações. Descartes foi importante pela introdução

e inserção de uma nova visão de mundo, na qual

a matemática era determinante, o que resultou

em uma geometrização do Universo.

No entanto, o cartesianismo possui

problemas não saneáveis por Descartes que serão

observados pelos demais racionalistas como

Spinoza e depois por Leibniz que, evidentemente,

são influenciados pelo cartesianismo, contudo,

desviam o caminho para outra direção diferente

de Descartes.

Sobre a influência do cartesianismo em

Spinoza, Hadi Rizk:

O aparecimento da física matemática de Galileu e as vivas discussões levantadas, em meados do século, pela interpretação que Descartes lhes dá. Pode-se lembrar principalmente os temas do método e das ideias claras e distintas, do mecanismo e da metafísica necessária para fundamentar a ordem do saber bem como o significado da realidade humana como união substancial do espírito e do corpo. O cogito, Deus e a liberdade16.

Spinoza pode ser considerado um

racionalista e teve muita influência de Descartes em

seu pensamento. Contudo, Descartes representa o

início do racionalismo, mas não é o projeto bem

acabado e definido do racionalismo, assim, este se

modifica e aperfeiçoa com a visão e contribuição,

dentre outros, de Spinoza e de Leibniz.

entregou a Luís Meyer o cargo da edição e redação de um prefácio; ficando então o livro composto por duas partes completas, o início da terceira incompleta, e o apêndice sobre temas escolásticos. Seu objetivo primeiro, anunciado pelo título e sobre o que insiste o prefácio, é a exposição dos princípios da filosofia segundo a maneira geométrica. SANTIAGO, Homero. Espinosa e o cartesianismo: o estabelecimento da ordem nos Princípios da Filosofia Cartesiana. São Paulo: FAPESP, 2004, p. 11.16 RIZK, Hadi. Compreender Spinoza. Tradução Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 12.

De tal sorte, como veremos, a visão de

liberdade, bem como de essência não é igual na

obra de Descartes e na de Spinoza. É notória a

influência do primeiro sobre o segundo, porém,

Spinoza avança em questões não tratadas por

Descartes.

3.0 o qUE é libErdadE

Para avançarmos na análise proposta a

fim de saber qual é a liberdade em Spinoza,

importante será determinar, primeiramente o

que vem a ser liberdade, em seu sentido mais

abrangente e relacionado com o indivíduo e o

convívio em sociedade.

Liberdade. Do latim libertas, de líber (livre), indicando genericamente a condição de livre ou estado de livre17, significa, no conceito jurídico, a faculdade ou o poder outorgado à pessoa para que possa agir segundo sua própria determinação, respeitadas, no entanto, as regras legais instituídas.

17 Historicamente, a concepção de que os seres humanos são livres e, por conseguinte, responsáveis pelos seus atos voluntários, surgiu durante o chamado período axial. Antes dele, prevalecia a convicção de que as forças sobrenaturais decidiam, em última instância, o destino da vida humana. A divindade estaria na origem de nossas boas ou más ações.A criação da filosofia ética na Grécia, como lembrado, partiu do postulado fundamental da liberdade de cada indivíduo e, em consequência, da irrecusável responsabilidade de cada qual na condução de sua vida. No plano político, contudo, como também foi assinalado, gregos e romanos consideravam que a liberdade dizia respeito, unicamente, à vida coletiva: ela existia para o povo em seu conjunto, diante de outros povos, não para os indivíduos em relação à pólis. Sob esse aspecto, portanto, ela se apresentava como o direito de participação ativa na vida política.Para os modernos, ao contrário, a liberdade foi redescoberta e afirmada, no século XVIII, como um status de independência do indivíduo, defesa da vida íntima ou particular contra a indevida interferência dos poderes constituídos, sejam eles políticos ou religiosos. Logo em seguida, porém, já na primeira metade do século XIX no Ocidente, a destruição, pelo capitalismo industrial, das antigas estruturas sociais, engendrando a nova servidão da classe operária, fez ver a importância de defender a liberdade coletiva da classe da classe trabalhadora, frente ao poder econômico irrefreado dos empresários. COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 538.

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GONÇALVES, ANtONiO BAptiStA. A liberdAde em SpinozA. p. 25-37.

A liberdade, pois, exprime a faculdade de se fazer ou não fazer o que se quer, de pensar como se entende, de ir e vir a qualquer atividade, tudo conforme a livre determinação da pessoa, quando não haja regra proibitiva para a prática do ato ou não se institua princípio restritivo ao exercício da atividade18.

Em geral, a liberdade é associada a um

indivíduo:

1. Grau de independência legítimo que um cidadão, um povo ou uma nação elege como valor supremo, como ideal (a justiça em termos absolutos é contrária à 1). 2. Conjunto de direitos reconhecidos ao indivíduo, considerado isoladamente ou em grupo, em face da autoridade política e perante o Estado; poder que tem o cidadão de exercer a sua vontade dentro dos limites que lhe faculta a lei19.

Nessa esteira temos o conceito de Marilena

Chauí:

Liberdade significa que todo cidadão tem o direito de expor em público seus interesses e suas opiniões, vê-los debatidos pelos demais e aprovados ou rejeitados pela maioria, devendo acatar a decisão tomada publicamente20.

Philip Petit também relaciona a liberdade

com o indivíduo:

A teoria da liberdade, como controle racional, pode ser ampliada à pessoa livre. O que ela diz nessa área é que a pessoa será livre quando, e só quando, ela relaciona-se com outras pessoas, de uma maneira tal que ela retenha o controle racional sobre suas ações. A pessoa que está no comando racional de suas ações, e mais ninguém, tem controle sobre o próprio comportamento e é exatamente isso que significa ser uma pessoa livre.É inteiramente plausível dizer que a liberdade de uma pessoa em relação a outras

18 SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. Atualizadores Nagib Slaibi Filho e Priscila Pereira Vasques Gomes. 29 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 843.19 DICIONÁRIO HOUAISS DA L ÍNGUA PORTUGUESA. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p. 1752.20 CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 13 ed. São Paulo: Ática, 2006, p. 405.

envolve, nada mais, nada menos, a retenção de um certo tipo de controle básico21.Predicar liberdade de um agente, em particular, de alguma coisa que o agente fez, é sugerir que ao menos três diferentes tipos de coisas acontecem (O’Leary-Hawthorne, Petit, 1996). A primeira é que o agente pode ser diretamente responsabilizado por aquilo que fez, mas se a ação foi livre, então não tem como pensar em responsabilizar o agente pela resposta que ele deveria ter dado. A segunda é que a ação escolhida livremente é uma ação que o agente pode possuir, pensando: isto aqui carrega a minha assinatura, isto sou eu. E a terceira é que a escolha do agente não foi totalmente determinada por uma certa gama de antecedentes, não foi totalmente determinada, por exemplo, por uma sugestão hipnótica ou um complexo inconsciente de condicionamento infantil.Qualquer descrição do conceito de liberdade deve levar em conta essas conotações de responsabilidade, possessão e subdeterminação e perguntar qual delas, se existir alguma, é a maior determinante básica da forma que aplicamos o conceito22.

Amartya Sen e a importância da liberdade:

A valorização da liberdade tem sido um campo de batalha há séculos, de fato, milênios, e ela tem partidários e entusiastas, bem como críticos e severos detratores. (...) A liberdade é valiosa por pelo menos duas razões diferentes. Em primeiro lugar, mais liberdade nos dá mais oportunidade de buscar nossos objetivos – tudo aquilo que valorizamos. Ela ajuda, por exemplo, em nossa aptidão para decidir viver como gostaríamos e para promover os fins que quisermos fazer avançar. Esse aspecto da liberdade está relacionado com nossa destreza para realizar o que valorizamos, não importando qual é o processo através do qual essa realização acontece. Em segundo lugar, podemos atribuir importância ao próprio processo de escolha. Podemos, por exemplo, ter certeza de que não estamos sendo forçados a algo por causa de restrições impostas por outros23.

Por fim, Fábio Konder Comparato:

A verdadeira liberdade não é uma situação de isolamento, mas, bem ao contrário, o inter-

21 PETIT, Philip. Teoria da Liberdade. Trad. Renato Sérgio Pubo Maciel. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 61 e 62.22 PETIT, Philip. Teoria da Liberdade. Trad. Renato Sérgio Pubo Maciel. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 9 e 10.23 SEN, Amartya. A ideia de Justiça. Trad. Denise Bottman e Ricardo Dinelli Mendes. São Paulo: Companhia das letras, 2011, p. 261 a 263.

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GONÇALVES, ANtONiO BAptiStA. A liberdAde em SpinozA. p. 25-37.

relacionamento de pessoas ou povos, que se reconhecem reciprocamente dependentes, em situação de igualdade de direitos e de deveres24.

De posse do que vem a ser liberdade

e qual a sua importância para o indivíduo e

para a sociedade, agora, podemos apresentar

como Spinoza relaciona a liberdade com o

indivíduo.

4.0 a libErdadE Em Spinoza

Não há liberdade em Spinoza e, para

entender o que motiva tal afirmação, necessário

será apresentar a noção de alma, corpo e

substância, para os racionalistas, em especial

Descartes e Spinoza. E, ao fazê-lo já traremos

as diferenças de segundo para com a visão do

primeiro e, posteriormente o racionalismo.

concEito dE dEScartES25:

Subordinação à vontade (se sobrepõe a

razão) de Deus;

O que define o juízo26 é a vontade27;

24 COMPARATO, Fábio Konder. Ética – Direito, moral e religião no mundo moderno. 2 ed. São Paulo: Companhia das letras, 2006, p. 537.25 Que essência do corpo, segundo Descartes, é a extensão, todo mundo “sabe”; que isso possibilita a aplicação da geometria à física e, mais ainda, conduz à formulação de uma física estritamente geométrica. PORTA, Mario Ariel González. A filosofia a partir de seus problemas. 2 ed. São Paulo: Loyola, 2004, p. 62. 26 É, em certo sentido, uma suma perfeição no homem que ele aja pela vontade, isto é, livremente, sendo assim de um certo modo peculiar o autor de suas ações e por elas merecendo louvor. DESCARTES, René. Princípios de Filosofia. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2002, p. 53.27 “Que haja liberdade em nossa vontade, e que, a nosso arbítrio, possamos assentir ou não assentir a muitas coisas é a tal ponto manifesto que deve ser enumerado entre as mais primeiras e comuns noções que nos são inatas. E isso ficou patente no mais alto grau um pouco antes, quando empenhando-nos em duvidar de todas as coisas, chegamos ao ponto de fingir que algum poderosíssimo autor de nossa origem se esforçava por nos enganar de todas as maneiras. Apesar disso, experimentávamos, com efeito, existir em nós essa liberdade (...) que podíamos nos abster de crer naquelas coisas que não eram inteiramente certas e averiguadas. Nem pode existir coisa alguma mais conhecida por si e mais bem

O que é verdadeiro ou falso (inclusive em

razões matemáticas da vontade de Deus (se Deus

quisesse que 2+2=5, por exemplo, então assim

seria). Para Descartes o método da filosofia deve

seguir o método matemático, isto é, assumir o

sistema axiomático, conceito este levado muito

a sério por Spinoza, contudo não é aplicável no

que tange à adoração ao divino.

concEito dE Spinoza:

Alma e corpo: duas substâncias que podem

existir independentemente uma da outra, mas

a existência delas depende de Deus que seria

a prioridade para Spinoza (única substância

é Deus28). E para alma e corpo, em Spinoza,

são atributos da única substância absoluta, isto

é, Deus e possui além de alma e corpo uma

infinidade de atributos que não conhecemos.

Com isso, a vinculação da relação alma e corpo

em Descartes se resolve (o que era extenso não

era pensante e vice-versa).

Para Spinoza todo ser que não é Deus

depende Dele para ser criado e subsistir29. Spinoza

é um racionalista, todavia, não concorda com o

dualismo de Descartes30. A noção de alma como

discernida do que as coisas que naquele momento pareciam não ser duvidosas”. DESCARTES, René. Princípios de Filosofia. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2002, p. 57.28 Deus é um ente absolutamente infinito, isto é, uma substância que consiste de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita. SPINOZA, Benedictus de. Ética. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010, p. 13.29 Se Deus é Substância, Essência e Potência de tudo ao redor, incluindo de si mesmo, nada pode existir sem ele, livre de sua influência, pois na hipótese de sua ausência não se teria substância e como é impossível algo existir sem ela, nada pode existir além da natureza divina. SPINOZA, Benedictus de. Ética. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.30 Para Descartes existem duas substâncias: a alma e o corpo e foi ele que definiu uma diferenciação entre corpo e alma. Um corpo, a matéria (redução forma o conceito moderno de matéria) não é mais algo que ocupa um lugar no espaço, o corpo se esgota em suas propriedades geométricas (largura, altura, profundidade). Assim, o corpo é objeto da física enquanto redução dos valores geométricos. Já alma de um é numericamente diferente de outra já para os corpos a diferença se processa de acordo

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32 Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

GONÇALVES, ANtONiO BAptiStA. A liberdAde em SpinozA. p. 25-37.

pensamento é uma visão tipicamente cartesiana,

o que não significa que a alma e seu estudo não

tenham tido outra visão anteriormente, como

fora, por exemplo, em Aristóteles.

O racionalismo pós Descartes descarta

o dualismo cartesiano, assim, se busca uma

explicação mais satisfatória da relação entre

corpo e alma. O problema surge em dar conta

da individualidade da alma e, inclusive, a

individualidade de Deus (não no sentido cristão

ou judaico). Afinal, se Ele está presente em tudo,

logo não pode ser uma pessoa e fazer parte do

Universo, ou melhor, como criou o mesmo não

pode, ao mesmo tempo, estar dentro e fora do

próprio Universo. O corpo, propriamente dito

em Deus, é o Universo.

Não há, em Spinoza, uma distinção entre

Deus e o todo, porque Deus está em tudo31

(onipresente); Deus está em todas as coisas32

e, com isso, uma crítica de localizar Deus no

pensamento como um ente vinculado ao ser

humano e demais conceitos religiosos entre Deus

e o homem.

com a variação das propriedades geométricas (o modo como o corpo aparece).31 Spinoza retoma certos termos clássicos da ontologia e da metafísica (Deus, substância, atributos, modos), não lhes atribui necessariamente um sentido tradicional. Por exemplo, Spinoza segue Descartes (mas não Aristóteles) no que se refere à noção de substância. Em compensação, seu Deus não é em nada cartesiano; não é o Criador transcendente, mas a própria natureza; é o famoso Deus sive natura: Deus, ou seja, (é a mesma coisa) a natureza. HUISMAN, Denis. Dicionário de Obras Filosóficas. Tradução Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 211.32 Se é verdade que toda coisa tem o ser em Deus – “Deus não é somente causa eficiente da existência das coisas, mas também da essência delas” (Ética I, prop. 25) – Deus, no entanto, não tem nem a mesma essência nem a mesma existência que as coisas. A potência de Deus é eterna, pois Deus é um ser incriado, cuja existência provém só de sua essência, ao passo que a existência das coisas naturais não decorre somente de sua essência, que, como já dissemos, não basta para fazer as coisas existirem. Assim a eternidade de Deus significa que seu ser escapa do tempo, da mudança, de tudo o que acontece a uma razão de outras coisas que não dela mesma. RIZK, Hadi. Compreender Spinoza. Tradução Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 21.

Assim, o conceito de liberdade teve uma

nova interpretação com os racionalistas, em

especial com Spinoza. Sobre o tema Jordino

Marques:

Não podemos nunca deixar de ver a liberdade no século XVII como um tema sempre recorrente de diferentes matizes e tonalidades como em Leibiniz, Espinosa e em Descartes. O século XVII traz em seu bojo a reflexão sobre a liberdade como conseqüência do novo modelo de explicação que o racionalismo impôs à reflexão33.

Ainda sobre a questão da liberdade Nicola

Abbagno:

Negar que o homem como tal é livre e afirmar que ele é livre enquanto manifestação da autodeterminação cósmica ou divina são a mesma coisa. Tudo fica muito claro na formulação de Espinoza: “diz-se que é livre o que existe só pela necessidade de sua natureza e é determinado a agir por si só, enquanto é necessário ou coagido aquilo que é induzido a existir e a agir por uma outra coisa, segundo uma razão exata e determinada”. Nesse sentido só Deus é livre34, pois só Ele age com base nas leis de sua natureza e sem ser obrigado por ninguém, ao passo que o homem, como qualquer outra coisa, é determinado pela necessidade divina da natureza divina e pode julgar-se livre somente por ignorar as causas de suas volições e de seus desejos35.

De tal sorte que se o que existe é Deus,

este é a única substância36, então tudo é

33 MARQUES, Jordino. A liberdade no tratado das paixões de Descartes. Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 12, n. 1-2, p. 269-284, jan.-dez. 2002, p. 269.34 Para a visão de Espinoza existe uma e somente uma substância, e que esta única substância é Deus, isto é, é um modo de Deus e, como tal, é dependente Dele. SCRUTON, Roger. Espinoza. Tradução Angélika Elisabeth Könke. São Paulo: UNESP, 2000, p. 15.35 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução Alfredo Bosi. 5 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 702.36 Além de Deus, não pode existir nem ser concebida nenhuma substância. Como Deus é um ente absolutamente infinito, do qual nenhum atributo que exprima a essência de uma substância pode ser negado, e como ele existe necessariamente, se existisse alguma substância além de Deus, ela deveria ser explicada por algum atributo de Deus e existiriam, assim, duas

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GONÇALVES, ANtONiO BAptiStA. A liberdAde em SpinozA. p. 25-37.

derivado Dele, mas e como fica a liberdade?

Deus possui liberdade absoluta, mas o mesmo

não se processa para o ser humano37. Nesse esteio

como fica a liberdade em relação ao indivíduo e o

materialismo? Essa é a crítica a Spinoza, visto que

este nega a existência da liberdade ao indivíduo38.

Nas palavras de Spinoza:

Os homens enganam-se quando julgam livres, e esta opinião consiste apenas em que eles têm consciência de suas ações e são ignorantes das causas pelos quais são determinadas. O que constitui, portanto, a ideia da sua liberdade é que eles não conhecem nenhuma causa das suas ações. Com efeito, quando dizem que as ações humanas dependem da vontade, dizem meras palavras das quais não tem nenhuma idéia. Efetivamente, todos ignoram o que seja à vontade e como é que ela move o corpo. Aqueles que se vangloriam do contrário e inventam uma sede e habitáculos para a alma provocam mais riso ou então náusea39.

substâncias de mesmo atributo, o que é absurdo. Portanto, não pode existir e, consequentemente, tampouco pode ser concebida nenhuma substância além de Deus. Pois, se pudesse ser concebida, ela deveria necessariamente ser concebida como existente. Mas isso é absurdo. Logo, além de Deus, não pode existir nem ser concebida nenhuma substância. SPINOZA, Benedictus de. Ética. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010, p. 29 a 31.37 Todos os prejuízos (...) dependem de um só, a saber: os homens supõem comumente que todas as coisas da Natureza agem, como eles mesmos, em consideração de um fim, e até chegam a ter por certo que o próprio Deus dirige todas as coisas para um determinado fim, pois dizem que Deus fez todas as coisas em consideração do homem, e que criou o homem para que lhes prestasse culto. Pensamentos metafísicos; Tratado da correção do intelecto; Ética; Tratado político; Correspondência. Traduções de Marilena de Souza Chauí et al. 3 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.38 O homem é livre na exata medida em que tem o poder para existir e agir segundo as leis da natureza humana (...), a liberdade não se confunde com a contingência. E, porque a liberdade é uma virtude ou perfeição, tudo quanto no homem decorre da impotência não pode ser imputado à liberdade. Assim, quando consideramos um homem como livre, não podemos dizer que o é porque pode deixar de pensar ou porque possa preferir um mal a um bem (...). Portanto aquele que existe e age por uma necessidade de sua própria natureza, age livremente (...). A liberdade não tira a necessidade de agir, mas a põe. SPINOZA, Tratado Teológico-político. Tradução Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Martins Fontes, 2003, II, p. 7 e 11.39 SPINOZA, B. Pensamentos Metafísicos. Tratado da Correção do Intelecto. Ética. Tratado Político.

A Ética de Spinoza constitui a mais

completa aplicação dessa nova teoria da

verdade. O autor procura mostrar de que

modo Deus se produz a si mesmo, às coisas e

ao homem, demonstrando que esse modo de

autoprodução é o próprio modo de produção do

real. Com isso, Spinoza elimina a principal ideia

sustentáculo da teologia e da filosofia cristãs: a

ideia de criação, isto é, de um Deus preexistente

que tira o mundo do nada. A expressão Deus

ou Natureza, encontrada a todo passo da Ética

tem vários significados: 1) o ato pelo qual Deus

se produz é o ato pelo qual produz as coisas;

2) Deus é a causa de si mesmo e das coisas

como causa imanente e não transcendente; 3)

a produção divina não visa a fim algum, é o

seu próprio fim, ou seja, entre ato de produção

e o produto não há distância a separá-los, são

uma só coisa40.

E como que Spinoza justifica a ausência

de liberdade?

Para Spinoza, o homem não é uma

substância, mas sim um modo de substância e,

portanto, os diferentes indivíduos nada mais

são do que diferentes modos da substância.

Assim, o racionalismo (que tem por escopo

uma explicação racional do Universo) entra

em conflito com a liberdade (porque tudo tem

uma razão de ser, a totalidade do real responde

a totalidade das proposições em um universo

completamente racional).

Nas palavras de Spinoza:

As coisas particulares não são mais que afecções dos atributos de Deus, ou, por outras palavras, modos pelos quais os atributos de Deus se exprimem de maneira certa e

Correspondências. Traduções de Marilena de Souza Chauí et al. 3 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 166.40 SPINOZA, Benedictus de. Pensamentos metafísicos; Tratado da correção do intelecto; Ética; Tratado político; Correspondência. Traduções de Marilena de Souza Chauí et al. 3 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 14.

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34 Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

GONÇALVES, ANtONiO BAptiStA. A liberdAde em SpinozA. p. 25-37.

determinada”. Sendo assim, a ação humana não poderá ser considerada livre, mas determinada pela natureza da Substância41.

Por conseguinte, podemos deduzir que

o livre-arbítrio não é racionalizável, o que

notadamente se transforma em um entrave

às ideias de Spinoza. Ademais para que a

racionalização do Universo seja possível só resta

a Spinoza conceituar a negação da liberdade.

É chamada livre uma coisa que existe

tão-somente pela necessidade de sua natureza

e é determinada a agir somente por si mesma.

Mas é chamada de necessária, ou mesmo de

coagida, uma coisa que é determinada por outra

a existir e a produzir um efeito de maneira certa

e determinada42.

Esse modelo já soa estranho nos dias

correntes, imagine sob a ótica de hoje na

época de Spinoza. Todavia, se transportarmos

esse pensamento a um exercício meramente

ideológico, este pode encontrar seu lugar,

senão vejamos. Em 19 de junho de 2014 foi

lançado um filme de ficção científica chamado

Transcendente43, no qual a discussão central gira

em torno da criação de uma mente coletiva, a

41 ESPINOSA, B. Pensamentos Metafísicos. Tratado da Correção do Intelecto. Ética. Tratado Político. Correspondências. Traduções de Marilena de Souza Chauí et al. 3 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 102. 42 SCRUTON, Roger. Espinoza. Tradução Angélika Elisabeth Könke. São Paulo: UNESP, 2000, p. 11. 43 O doutor Will Caster (Johnny Depp) é o mais famoso pesquisador sobre inteligência artificial da atualidade. No momento ele está trabalhando na construção de uma máquina consciente que conjuga informações sobre todo tipo de conteúdo com a grande variedade de emoções humanas. O fato de se envolver sempre em projetos controversos fez com que Caster ganhasse notoriedade, mas ao mesmo tempo o tornou o inimigo número 1 dos extremistas que são contra o avanço da tecnologia - e por isso mesmo tentam detê-lo a todo custo. Só que um dia, após uma tentativa de assassinato, Caster convence sua esposa Evelyn (Rebecca Hall) e seu melhor amigo Max Waters (Paul Bettany) a testar seu novo invento nele mesmo. Só que a grande questão não é se eles podem fazer isto, mas se eles devem dar este passo.

partir da transferência da consciência do cientista

para uma máquina. Logo, se questiona: Pode

uma máquina ter autoconsciência? Quais as

consequências de se transportar uma mente (uma

das mais inteligentes do mundo, diga-se) para o

universo online onde o acesso é livre a todos os

computadores (dados pessoais, bancários, etc.)

do mundo? O que fazer com esse poder? Essa

onipresença poderia resultar em uma nova forma

de um Deus? E, por fim, poderia Will Caster ser o

mesmo Will Caster, sem corpo, habitando aquele

computador?

Nesse diapasão é possível imaginar uma

consciência coletiva gerindo a vida humana e

todos serem parte de um ente maior, na qual sua

liberdade é limitada e restringida, para não dizer

controlada por essa inteligência. Claro que se

trata de uma ficção científica, porém, o modelo é

perfeitamente plausível para viabilizar e resolver

questões atinentes à liberdade e ao livre-arbítrio

de acordo com a visão de Spinoza.

Agora vejamos, se tal ideia já nos parece

um tanto quanto futurista em pleno século XXI,

imagine para a realidade da época de Spinoza? O

que não diminui em nada este pensamento, ainda

que duvidemos de sua aplicabilidade prática.

Nesse esteio, como Spinoza não tinha

ferramentas para afirmar ou tampouco defender

uma consciência coletiva, no que tange à

liberdade esta somente é absoluta, definida na

Parte 1, Definição 7, para e em Deus44. Por fim e

44 Colocamos o supremo conhecimento entre os atributos de Deus e acrescentamos que tira toda a sua perfeição de si mesmo e não de outra coisa. Se se disse, então, que há vários deuses ou vários entes sumamente perfeitos, todos deverão ser necessariamente supremamente cognoscentes. Para isto não é suficiente que cada um conheça somente a si mesmo, pois, se cada um deve conhecer tudo, então é preciso que conheça a si mesmo e aos outros, e neste caso decorreria que uma perfeição de cada um, a saber, o intelecto, seria em parte dele e em parte de outro. E, assim, nenhum poderá ser supremamente perfeito, isto é, como acabamos de observar, um ente que tira toda a sua perfeição de si mesmo e não de um outro. E, no entanto, já demonstramos que Deus é um ser

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GONÇALVES, ANtONiO BAptiStA. A liberdAde em SpinozA. p. 25-37.

não nos alongaremos no tema, ainda existe outra

ideia de liberdade, esta mais relativa, sugerida

pela teoria do conatus. Embora somente Deus

exista pela necessidade de sua própria natureza

e tudo o mais dependa dele como sendo a causa

que tudo abrange, os modos finitos podem

conter, em maior ou menor grau, as causas de

sua atividade e persistência em si mesmos45.

O racionalismo, então, questiona os

milagres religiosos, porque estes entram em

conflito com as leis da natureza. E, com isso,

as próprias revelações bíblicas também são

colocadas em xeque.

conclUSão

Spinoza nega a liberdade individual. O

artigo inteiro se resume a esta simples frase.

Contudo, para compreender os motivos e a

justificação de Spinoza se poderia percorrer

o caminho tradicional, qual seja, apresentar a

teoria racionalista e localizar as ideias de Spinoza

nesta teoria, ou, seguir a nossa metodologia, qual

seja, primeiro apresentar quem foi Spinoza, qual

a sua relação com os religiosos e, em especial,

com o movimento que se desenvolveu inclusive

na Holanda, em decorrência de seu principal

expoente: Descartes ter vivido naquele País na

mesma época de Spinoza.

No entanto, além de Descartes, Spinoza

tem uma influência clara da física de Euclides.

Assim, ao associar a visão racionalista é possível

compreender os motivos que levaram Spinoza

perfeito no mais alto grau e que ele existe. Podemos, concluir que ele é o único Deus existente, pois, se existissem vários, isto implicaria que um ente perfeito no mais alto grau tem uma imperfeição, o que é absurdo. Eis aí o que se refere à unidade de Deus. SPINOZA, Benedictus de. Pensamentos metafísicos; Tratado da correção do intelecto; Ética; Tratado político; Correspondência. Traduções de Marilena de Souza Chauí et al. 3 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 19. 45 SCRUTON, Roger. Espinoza. Tradução Angélika Elisabeth Könke. São Paulo: UNESP, 2000, p. 30.

a desconsiderar a liberdade do indivíduo. Pois,

se considerasse a presença do livre arbítrio e a

liberdade individual, Spinoza não conseguiria

justificar sua visão de Universo de acordo e em

consonância com a visão matemática defendida

pelos racionalistas.

Assim, apresentamos a ligação de Spinoza

com os ideais cartesianos para localizar a teoria

que se desenvolveria a seguir. Do contrário, se

torna deveras complexo compreender como que

as ideias de Spinoza surgiram. Novamente se

faz necessária uma adequação ao cenário vivido

pelo pensador.

No contexto e sob a ótica contemporânea

é compreensível afirmar que Spinoza não

tinha razão e que o livre arbítrio e a liberdade

individual existem, porém, não o será possível se

analisado a partir da ótica da realidade vivida na

época por Descartes, Leibniz e Spinoza.

Com isso a apresentação de corpo, alma e

substância são essenciais a fim de formar a visão

de mundo que os racionalistas pretendem com a

matematização do Universo. Descartes é o início

do racionalismo, contudo, este não culmina com

este e sua conclusão somente se dará com Wolff

(objetivação da razão).

Leibniz cuidará dos problemas apontados

e trazidos por Spinoza e se ocupará em

conciliar a visão cristã do Universo com o

projeto racionalista de matematização deste.

Neste pensador se introduziria o conceito de

monada para a forma e individualidade da

substância.

Leibniz trocava correspondência com

Spinoza e acompanhou os problemas advindos

do cartesianismo. A questão da substância ocupa

o cerne do debate destes pensadores e cada qual

irá se ocupar de justificar seu modelo no que

tange a corpo e alma a fim de racionalizar e

matematizar o universo.

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36 Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

GONÇALVES, ANtONiO BAptiStA. A liberdAde em SpinozA. p. 25-37.

No entanto, não é escopo deste trabalho

avançar no racionalismo e, tampouco, na

solução dos problemas causados pela negação

da liberdade em Spinoza. Mas sim, localizar

o pensador na sua realidade espaço-temporal

e apresentar os motivos que culminaram com

esta problematização. Então, para o modelo de

Spinoza faça sentido necessário será, de fato,

negar a existência da liberdade.

Não sabemos se Spinoza tinha consciência

da importância dos racionalistas e cremos que

não, porém, é de se destacar a coragem deste

pensador em enfrentar severas resistências a sua

negação da liberdade e, em especial, em afrontar

os religiosos e sua visão de mundo, o que lhe

trouxe como consequência não se sustentar por

sua própria produção literária e ser obrigado a

trabalhar para conseguir subsistir.

E importante notar a importância do

racionalismo, em especial, Descartes para o

conceito e visão que temos hoje do ser, da

substância, de Deus e do próprio Universo. Com o

racionalismo se inaugura o que conhecemos por

filosofia moderna e, para a época representou

um avanço sem precedentes em termos de

conhecimento do Universo e do próprio ser.

k k k

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Page 39: k k k Conatu Revista S

39Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

Primeiramente é preciso deixar claro que

na ontologia spinosana não há lugar para

o nada. Isto é, em nenhum momento

Spinoza dedicava tinta para escrever sobre o

nada. Muito antes ele estava habituado a falar

da totalidade da substância e de sua infinitude.

Spinoza é o filósofo do infinito1 e da eternidade.

Assim como Heidegger, Spinoza não está

interessado em um conceito que se defina como

“a plena negação da totalidade do ente”. O nada,

seja lá o que ele for, não é derivado da negação. A

negação, antes de tudo, é uma operação mental,

ou ainda, um ente de razão em vocabulário

spinoziano.

Não estamos, pois, falando de algum

bastardo da negação, estamos falando de algo

muito mais originário. O homem é imanente a

Natureza. Ele não a apreende em sua totalidade,

mas apreende algo, de certa maneira. Ao

falarmos sobre as condições dessa maneira de

apreender a Natureza sob uma certa relação,

segundo Kant, estamos diante de um exercício

transcendental, por outro lado, para uma ciência

que é uma prática que somente se ocupa com o

ente e mais nada, esse exercício seria, em última

instância, uma ocupação com nada.

.

Optemos, então, por nos distanciar de uma

concepção um tanto cientificista deste exercício

e nos esforcemos por entender como Spinoza e

Heidegger concebiam este fenômeno do nada. De

imediato, abandonemos a impossibilidade formal

da questão do nada, pois tal impossibilidade – é

importante ter isso claro – é originada de um

conceito implícito de nada baseado na negação.

Assim como para Heidegger “nós nunca

podemos [a]preender a totalidade do ente em

si e absolutamente” (p. 38), Spinoza admite

que a substância seja infinita e nosso poder de

ser afetado (tal poder pode ser chamado de

potência), por outro lado, seja um poder finito.

Além disso, esta substância infinita pode ser

expressa por infinitos atributos dos quais, porém,

temos acesso a apenas dois, a saber, a extensão e

o pensamento, de sorte que nós mesmos somos

seres extensos (enquanto corpo) e pensantes

(enquanto mente).

Admito que a leitura que esta sendo feita

destes filósofos pode apresentar-se um pouco

superficial visto que nem mesmo pode ser levada

às suas últimas consequências neste trabalho.

Além disso, não quero afirmar que o pensamento

de Heidegger, de fato, é harmoniosamente

compatível com o de Spinoza. Longe disso, muito

antes resolvi usar este espaço para registrar

alguns apontamentos úteis em uma reflexão

acerca dos dois pensadores.

A partir de uma leitura um pouco

audaciosa proporei um conceito de “fenômeno

gIONaTaN CaRlOS paChECO*

o fEnômEno do nada Em Spinoza

* Aluno do Bacharelado em Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria e bolsista de iniciação científica do CNPq vinculado ao “Projeto de pesquisa o Passado e a Memória”, sob orientação de César Schirmer dos Santos. Sua pesquisa atual foca no seguinte tema: tempo, duração e a eternidade em Espinosa, assim como a influência deste filósofo no, assim chamado, Iluminismo Radical.1 Ver Carta nº 12, também chamada Carta sobre o infinito.

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40 Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

PACHECO, GiOnAtAn CArlOs. O fenômenO dO nada em SpinOza. P. 39-42.

do nada” no pensamento de Spinoza. Esta

tarefa pode, prima facie, apresentar-se como um

contra senso, pois para Spinoza não há sequer

possíveis, oxalá houver não-existentes. Isto quer

dizer que para Spinoza tudo o que é possível

existe. Como aponta Deleuze: não pode haver

essências como meras possibilidades lógicas,

pois “se fossem possibilidades lógicas, não seriam

nada” (DELEUZE; p. 223). Numa livre expressão:

tais possibilidades lógicas seriam elementos

nadificantes que surgem do (e em) nosso

intelecto. A própria noção de decomposição é

originada de nossa incompletude, isto é, do fato

de mesmo nós pertencendo a uma substância

infinita e eterna, nos somos partes finitas desta

substância que possuem um certo poder de ser

afetado, ou seja, não concebemos as coisas “do

ponto de vista da natureza inteira”, pois deste

ponto de vista:

[...] não se pode dizer que haja ao mesmo tempo composição e decomposição [...]. Não há mais que composições de relações. É, com efeito, do ponto de vista de nosso entendimento que nós dizemos que esta ou aquela relação se compõe, em detrimento de tal outra relação que deve se decompor para que as duas outras se componham. Mas é porque nós isolamos uma parte da natureza. (Idem, p. 130).

Esta é a resposta de Spinoza, segundo

Deleuze, para a dicotomia entre Ser de Parmênides

e o devir de Heráclito. Com efeito, só há o ser, o

não-ser é produto de nossa enganosa forma

de intuir o próprio ser, desde modo é também

através da razão que nos afastamos da ilusão

das percepções do múltiplo, e vemos tudo como

uno, imutável, eterno (isto é, atemporal). Em

suma, como certa vez afirmou Schopenhauer:

“o verdadeiramente novo e totalmente original

é extremamente raro em todos os ramos do

pensamento e do saber” (2003, apud Spinoza, p.

358, 2014).

A esta altura é útil fazermos uma menção

de um ponto que, a meu ver, é irreconciliável entre

Heidegger e Spinoza, a saber, o conceito de tempo.

Para Spinoza o tempo não existe, tal como a medida

e até mesmo o número. Estes são entes de razão

que o entendimento cria para sua conveniência,

por outras palavras, são ficções úteis. Contudo,

alguém ainda poderia afirmar que uma operação

semelhante acontece no pensamento de Heidegger,

pois o tempo enquanto um ente de razão pode ser

tomado como estrutura das experiências possíveis.

Além disso, não é difícil de acharmos outras

aproximações do conceito spinosiano de tempo

e o tempo heideggeriano. Por exemplo, ao passo

que para Spinoza o tempo “não pressupõe somente

alguma coisa criada, mas, sobretudo, homens

pensantes” (Espinosa, Pensamentos Metafísicos, p.

31), por sua vez, segundo Heidegger “não podemos

dizer, houve um tempo em que o homem não era.

Em todo tempo o homem era, é e será, porque

o tempo só se temporaliza, enquanto o homem

é” (Heidegger, Introdução a Metafísica, p. 110).

Porém, esta pressuposição dos homens perante

o tempo é muito distinta nestes dois pensadores,

pois enquanto para Spinoza é o resultado de

um isolamento de uma parte da duração pelo

entendimento, para Heidegger o “temporalizar” é

“entendido como existência Histórica do homem”

(ibidem, p. 111).

De todo modo, o que me interessa neste

ponto é a nossa inadvertida construção de um

fenômeno do nada no pensamento spinosano

que não tenha por fundamento a negação.

Diremos, então, que nosso entendimento em sua

incompletude, ao isolar uma parte da natureza,

ou ainda, ao se ver como uma parte isolada dela,

baseia-se em um nada previamente dado. Este

nada surge a partir de nossa forma de sermos

afetados e também da origem a negação, sempre

enquanto ente de razão.

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41Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

PACHECO, GiOnAtAn CArlOs. O fenômenO dO nada em SpinOza. P. 39-42.

Em sua obra “Introdução a Metafísica”,

Heidegger acusa a tradução do termo grego

physis pelo termo latino natura de distorcer o

seu conteúdo originário, pois originariamente

physis “evoca o que sai ou brota de dentro de

si mesmo” (Ibidem, p. 44). Ora, se atentarmos

para a imanência da metafísica de Spinoza e o

seu célebre conceito de causa sui (causa de si),

curiosamente notamos uma correção feita por

este filósofo holandês sobre àquilo que filósofo

alemão atentara.

Um dos conceitos mais característicos da

obra de Heidegger é o conceito de ser-aí. Tal

conceito envolve noções como a de existência

e situação que entrelaçam-se e nos apontam

para condições como ser mortal, incompleto e

sempre em busca de um si mesmo, assim como

para a nossa situação que nos faz pertencer a

uma determinada comunidade e, em última

instância, a um destino em particular. Por

outro lado, um dos conceitos mais peculiares

da obra de Spinoza é o conceito de conatus. O conatus envolve noções como esforço para

perseverar no ser - uma espécie de vontade de

potência (anterior a Nietzsche) – noções tais

como de essência atual do modo (ente). Como

somos seres que organizam suas afecções de

uma forma um tanto peculiar, somos levados a

ambicionarmos preservação e expansão de nosso

ser, consequentemente expansão da essência.

Spinoza concebe sua Ética como ontologia

somente depois do conceito de conatus estar

muito bem colocado entre as noções principais

que regem a ontologia metafísica (isto é, não-

prática) de Spinoza, a saber: finitude, relação e

limite. Porém, não temos a ambição de comentar

cada uma destas noções, pois tal empresa

provavelmente nos tomaria um espaço bem mais

longo do que aquele que limita este artigo. O que

quero atentar, com efeito, ainda que abusando

dos parágrafos longos, é o seguinte fato: “O

esforço pelo qual cada coisa tende a perseverar

no seu ser não envolve tempo finito, mas um

tempo indefinido” seguindo a proposição VIII

do terceiro livro da Ética (E III P8). Ao mesmo

tempo, “o Dasein não tem um fim aonde chega

e simplesmente cessa, mas existe finitamente”

(SZ, p. 329, apud NUNES). Ou seja, estou aqui

aproximando alguns resultados semelhante

que, entretanto, possuem enraizamento teórico

distinto.

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42 Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

PACHECO, GiOnAtAn CArlOs. O fenômenO dO nada em SpinOza. P. 39-42.

rEfErênciaS bibliográficaS

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notas por Marilena de Souza Chauí. São Paulo:

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Cunha, Roberto Romano; trad. e notas J.

Guinsburg, Newton Cunha. 1. ed, São Paulo:

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NUNES, B. Heidegger & Ser e tempo. 3º ed.

Rio de janeiro: Zahar: 2010.

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43Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

I

É impossível tirar aos homens aliberdade de dizerem aquilo que pensam.

ESpINOSa, tratado tEológico-político.

O português Uriel da Costa é das figuras

mais interessantes do século XVII.

Batizado Gabriel da Costa, Uriel foi o

nome adotado quando da conversão ao judaísmo;

nascido no Porto, entre os anos 1580-1585,1

numa família de ascendência judaica, abandonou

o reino lusitano acompanhado da mãe e dos

irmãos no terceiro lustro do século.2 Resolvido

a regressar à fé dos antepassados, ele alcançou

Amsterdã, alojou-se na comunidade judaica local

e foi circuncidado. Até o ano de 1640, quando

se suicida, envolver-se-á num bom número

de polêmicas; será declarado herege pelas

comunidades judaicas de Veneza e Hamburgo,3

duas vezes heremizado,4 flagelado com 39

4 O “Herem” ou “Cherem” é a maior censura que o integrante de uma comunidade judaica pode sofrer; daí amiúde ser traduzido por “excomunhão”. De nossa parte, em vez de tentar traduções, resolvemos adotar a forma “herem” (bem como o verbo “heremizar”) como uma palavra portuguesa. É assim que o termo aparece nos documentos da comunidade de Amsterdã redigidos em português, e nos parece razoável respeitar os usos que lusófonos fizeram, ainda que em circunstâncias peculiares, de sua língua. Indo ao que mais importa, o herem era uma condenação em que fatores religiosos e políticos (referentes à vida comunitária) misturavam-se decretando não exatamente o abandono da religião judaica, mas pondo o condenado na condição de “apartado da Nação”. “Não há absolutamente diferença entre um decreto de excomunhão imposto pelos administradores da comunidade (os parnassim) e o imposto pelos rabis. Não se pode fazer a distinção entre as armas religiosa e secular”; Yosef Kaplan, “The social functions of the herem in the Portuguese Jewish community of Amsterdam em the seventeenth century” em Dutch Jewish History. Proceedings of the Symposium on the History of the Jews em the Netherlands, Jerusalém, Tel-Aviv University /Hebrew University of Jerusalem/The Institute for Research on Dutch Jewry, 1984, p. 125. Esta posição é contradita por Henry Méchoulan, que apresenta o herem como sentença exclusivamente decidida pelo poder secular, o Mahamad; cf. “O herem em Amsterdã e a ‘excomunhão’ de Espinosa”, Conatus, n. 14, Fortaleza, dezembro de 2013. A discussão sobre a esfera responsável pelo herem ganha relevância quando levamos em conta que a sentença servia não somente para questões religiosas como para desavenças políticas, transformando-se assim numa valiosa arma de disputa, uma sanção disciplinar cuja aplicação algumas vezes revelou-se despótica. O primeiro artigo do regulamento da comunidade Talmud Tora (nascida da unificação das três sinagogas de Amsterdam em 1639), o qual podemos dizer o fundamento legal da aplicação da pena a Uriel da Costa em 40, enuncia: “O Mahamad tem auctoridade absoluta e incontestável, ninguém pode ir contra as suas determinações sob pena de herem” (o Ascamoth ou regulamento de Talmud Tora vem como anexo em Gabriel Albiac, La sinagoga vacía. Un estudio de las fuentes marranas del spinozismo, Madri, Hiperión, 1987). Méchoulan, “O herem em Amsterdã e a ‘excomunhão’ de Espinosa”, art. cit., p. 139, explica que “o herem tornou-se um castigo que se vai graduar: [...] o primeiro grau desse castigo era a nerifa ou advertência; em seguida vinha o

hOmERO SaNTIagO*

o filóSofo UriEl da coSta

* Professor do Departamento de Filosofia da USP.1 É o período indicado por Carolina Michaëlis de Vasconcellos, Uriel da Costa. Notas relativas à sua vida e à sua obra, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1923, p. 22. 83 ou 84 são os anos propostos por I.S. Révah; cf. p. 154, nota 1, de Jean-Pierre Osier, D’Uriel da Costa à Spinoza, Paris, Berg International, 1983.2 A data é assinalada na cronologia preparada pelos Cahiers Spinoza, n. 3: “Spinoza et les juifs d’Amsterdam. Marranes et post-Marranes”, Paris, 1979-1980. I.S. Révah, em “La religion d’Uriel da Costa, marrane de Porto (d’après des documents inédits)”, Révue de l’histoire des religions, v. 161, n. 1, Paris, 1962, p. 49, confrontando documentos familiares, afirma que a fuga ocorreu, “sem dúvida, em 1614”.3 Tais condenações são mencionadas no herem (ver próxima nota) de 1623. Osier adverte que isso não implica, necessariamente, a presença de Uriel em tais cidades, cf. p. 190, nota 4, Osier, ob. cit.

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44 Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

SANTIAGO, HOmerO. O filósOfO Uriel da COsta. p. 43-65.

chibatadas e humilhado pela comunidade. A

trajetória de Uriel da Costa, desse modo, liga-se

a alguns dos temas mais interessantes de seu

século: a história da portentosa comunidade

judaica amsterdamesa, a aventura da República

das Províncias Unidas, nascedouro do mundo

moderno e terra de relativa liberdade num

tempo invariavelmente intolerante, e, enfim, o

marranismo, fenômeno religioso ocasionado

pelas Inquisições espanhola e portuguesa, e

seu entorno (expulsões, conversões, forçadas,

proibições de toda natureza, tortura, prisões);

está o portuense inteiramente inserto no

problema religioso de sua época e suas

obras conectam-se diretamente às questões

da liberdade de pensamento, da Reforma e

Contra-Reforma, da religião natural. Afora isso,

Uriel da Costa guarda, outrossim, um brilho

próprio; se bem sopesarmos o lugar-comum,

não será de todo mal dizê-lo um produto do

tempo, mesmo atípico: “a aventura de Uriel

da Costa constitui a mais notável das exceções

à lei geral”.5 Nele tendências inovadoras do

século e tribulações religiosas do passado,

sempre envolvendo grandes massas humanas,

matizaram-se numa personalidade singular,

no mais das vezes atormentada, combinação

da firmeza do estrepitoso à instabilidade do

fraco; o arraigar-se de um pensamento corajoso

levou-o à morte.

castigo corporal ou nardafa; a exclusão da comunidade, chamada petiha; e, por fim, a exclusão definitiva: niduy. Quando esta última sanção combinava-se com as prescrições particulares e maldições, tratava-se então do herem elevado a seu mais alto grau: schamatta” (idem, p. 118). O herem que atingiu Uriel da Costa em 1633 seria deste último tipo (o mesmo que atinge Espinosa 24 anos mais tarde); já o primeiro herem, o de 1623, seria uma sentença mais branda. Por fim, assinalemos a discordância de Kaplan, “The social functions of the herem in the Portuguese Jewish community of Amsterdam in the seventeenth century”, art. cit., p. 139: “nos graus de excomunhão que chegaram a nós, nenhuma distinção é feita entre nidui, herem e shamta”.5 Révah, “La religion d’Uriel da Costa”, art. cit., p. 16.

Numa época em que a religião e sua

estrutura institucional forneciam uma identidade

e mesmo uma personalidade ao indivíduo,

Uriel não acalentou nenhum dos três grandes

monoteísmos do mundo seiscentista, menos

por deliberação que por desvios plasmados

no fundo de um ânimo inquieto.6 Realmente,

não foi embalde a menção, em seu Exemplar humanæ vitæ, do vitupério atroz, quiçá retrato

de sua condição: “ele não tem religião nenhuma;

não é judeu, não é cristão, não é maometano”;7

assim o acusavam aqueles aos quais ele chamou

de fariseus. Sobre as desavenças religiosas,

pairava o ódio comum dirigido a todo renegado

que desobrigasse da adesão a um credo,

qualquer que fosse; Uriel por isso figurou entre

os contemporâneos como monstro terrível e

paradigmático8 – na esteira de Pierre Bayle, por

exemplo, poderíamos colocá-lo sob um pesado

estigma: ou a crença ou o pensamento, um

destrói forçosamente o outro.9

Pouco antes do suicídio, de sob a pena

de Uriel da Costa saiu o belíssimo libelo que é o

Exemplar humanæ vitæ De tintura autobiográfica

e polemista, obra que tocou profundamente não

poucos de seus leitores, o Exemplar ganhou a luz

pelas mãos do pastor reformado Philippe van

Limborch, como apêndice ao De Veritate religionis

6 Sobre o tema da identidade religiosa, vejam-se as pp. 180-183 de Yirmiyahu Yovel, Espinosa e outros hereges, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1993, v. I. Consoante tal autor, ness mesma situação persistiu Espinosa ao longo de toda a sua vida.7 Exemplar humanæ vitæ, p. 59. Citamos pela tradução de Epifânio da S. Dias de 1901, Espelho da vida humana, reeditada em edição bilíngue em Uriel da Costa, Três escritos, Lisboa, Instituto de Alta Cultura-Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1963. Tomamos a liberdade de, sem alterar substancialmente a tradução, optar por algumas variantes vocabulares mais correntes no português brasileiro. É imprescindível também a consulta à tradução anotada de J.-P. Osier, ob. cit.8 Vale notar que exemplar traduz, no latim escolástico, o grego paradeigma; daí as traduções: exemplo, modelo, espelho.9 Cf. infra, parte II.

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SANTIAGO, HOmerO. O filósOfO Uriel da COsta. p. 43-65.

Christianæ amica collatio cul erudito judæo, de

1687, portanto quase meio século após a redação

e o suicídio de seu autor. Num livro polêmico, em

que responde “amistosamente” ao judeu Oróbio

de Castro, como indica o título da obra, Limborch

crê estar bem servindo à cristandade ao alvejar,

num só tiro, dois inimigos.

Seguramente, diversos são os adversários dispersos por todo o universo que se opõem à sua verdade [a de Cristo]; em nossa pátria eles são principalmente de dois tipos: os judeus e os ateus ou deístas [...] Preservar a verdade da religião cristã dos ataques dos dois partidos é o primeiro dever de um cristão.10

Tal sorte editorial, à qual se acresce

a redação latina, gerou dúvidas acerca da

autenticidade do Exemplar ou da interpolação

de trechos apócrifos na obra, principalmente

pelo uso que dele fará o proselitismo cristão.11

Evidentemente, temos em conta as incertezas;

porém, como foge ao nosso intento discuti-las,

haja vista a espinhosidade e largura da tarefa,

simplesmente tomamos o texto como sendo

de Uriel, o que parece fazer a maior parte dos

comentadores.12 Segundo Limborch, “o texto

[...] compreende duas partes: na primeira o

autor relata a história trágica de sua vida – nada

aí parece pedir observações de nossa parte;

a segunda compreende um ataque vivíssimo

contra os judeus, em que se lastimava por ter

sido gravemente ferido por eles e submetido

10 Prefácio a Urielis Acosta Exemplar humanæ vitæ, anexo do citado De Veritate religionis. A apresentação e refutação de Limborch estão em Osier, ob. cit., pp. 167-184.11 O primeiro a fazer tal uso é o pastor antissemita hamburguês Johannes Müller, em 1644, alertando contra a excessiva liberdade concedida aos judeus e sobre a existência de heterodoxos “saduceus” entre eles; cf. Albiac, ob. cit., pp. 191-192.12 Salvo engano, I. S. Révah é o único dos estudiosos por nós consultados que é categórico ao afirmar sem delongas: “esta publicação comporta algumas passagens apócrifas, inseridas no Exemplar por um antissemita assaz inábil”; cf. Révah, “La religion d’Uriel da Costa”, art. cit., p. 48.

a tratamentos indignos. Ora, ele mistura neste

ataque argumentos opostos a toda revelação

divina, reduzindo de maneira odiosa para alguns

toda religião a um erro forjado por fraude

humana.”13 Deste amálgama sobreveio a força

do texto; não é má fórmula que o define como

“uma luta pelo reconhecimento”.14

Uriel da Costa que é um daqueles

personagens aos quais não calhariam mal uns

versos de Dante:

Per me si va nell’eterno dolore,Per me si va tra la perduta gente.

A gente de Uriel: sem dúvida, perduta gente. Metido na condição paradoxal do

intermezzo trágico-religioso está o marrano ou

cristão-novo:15 nem judeu, nem cristão; judeu

13 Limborch, loc. cit., p. 17l.14 Trata-se do título do terceiro capítulo de D’Uriel da Costa à Spinoza, ob. cit.15 Marrano, cristão-novo, judeu, judaizante e criptojudeu são designações que se confundem e em cada autor parecem assumir um matiz próprio. A fim de evitar ambiguidades, estabeleçamos as seguintes distinções: cristão-novo – todos os descendentes dos judeus convertidos a partir do século XV; marrano – cristão-novo mantenedor de uma tradição própria, consciente de pertencer a um grupo definido e que no âmbito familiar mantém algumas práticas religiosas de origem judaica, as quais eram para a Inquisição sinais de criptajudaísmo, mas que para o marrano nem sempre significavam rituais judaicos; judeu – aquele que retornou ao judaísmo fora de Portugal e Espanha (observa-se que, se se pode alardear uma consciência marrana dos judeus que aportavam na Holanda, stricto sensu não há marranos em Amsterdam, muito menos dentre os que aí nasceram e nunca viveram na península, tal como Espinosa). De modo geral, nessas especificações seguimos as propostas do professor Robert Rowland em sua conferência “A Inquisição e o problema da identidade marrana em Portugal”, proferida no Departamento de História-USP, em 26 de maio de 1995. Para uma visão ampla do problema marrano/cristão-novo/judeu no século XVII, inclusive para determinações diversas das aqui adotadas, além das obras já citadas, ver: I. S. Révah, “Les marranes”, Revue des études Juives, terceira série, CXVIII, tomo 1, 1959-60, pp. 3-76; Henry Méchoulan, “Quelques remarques à propos du marranisme: un concept à tout faire”, Ethnopsychologie, 33 (1), 1978, pp. 83-100; Jean-Pierre Osier, “Une polémique sur l’identité juive au XVIIeme siècle (Faut-il lire Léon de Modène?)” em Léon de Modène, Le bouclier et la targe, Paris, Centre d’Études Don Isaac Abravanel, 1980; Antonio

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46 Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

SANTIAGO, HOmerO. O filósOfO Uriel da COsta. p. 43-65.

numa sociedade cristã que lhe veda o acesso

aos textos sagrados de seu culto, convertido à

força que, no seio da família, clandestinamente,

mantém ritos mosaicos; ou ainda, crente honesto

na verdade cristã, perseguido por seu sangue

contaminado em razão da ascendência judaica.16

Duplicidade, fuga, ambiguidade e dissimulação,

tortura e fogueira, interioridade da crença, às

vezes dúvida e descrença; estes serão os traços

característicos das massas que, expulsas em 1492

da Espanha, convertidas à força em Portugal sob

D. Manuel I,17 acabarão ou nas celas inquisitoriais

e nos autos-de-fé ou alcançando a segurança

em alguma das poucas comunidades judaicas

espalhadas pelo continente, especialmente a de

Amsterdã.

Numa família de cristãos-novos, como

observado, nasceu Gabriel da Costa. Do pai,

Bento da Costa Brandão, ele afirma ter sido um

“verdadeiro cristão observantíssimo dos preceitos

da honra e grande prezador da honestidade dos

José Saraiva, Inquisição e cristãos-novos, Lisboa, Imprensa Universitária/Estampa, 1985; J. Lúcio Azevedo, História dos cristãos-novos portugueses, Lisboa, Clássica,1975; Joaquim Mendes dos Remédios, Os judeus portugueses de Amsterdam, Coimbra, F. França Amado Editor, 1911; Yosef Kaplan, From Christianity to Judaism. The story of Isaac Orobio de Castro, Oxford, The Littman library of Jewish Civilization, 1989; e os números especiais das revistas XVIIe Siècle, n. 183, abril-junho de 1994: “Israel et les nations au XVIIe siècle”; Cahiers Spinoza, n. 3, inverno de 1979-1980: “Spinoza et les juifs d’Amsterdam. Marranes et post-Marranes”.16 Os Estatutos de limpeza de sangue começaram a ser aplicados com valor legal na Espanha no século XV e, mais tarde, também em Portugal. Aos cristãos-novos, mesmo aos insuspeitos, era vedado o acesso a cargos e auxílios públicos, certas posições sociais, o casamento com cristãos-velhos; como ilustração, veja-se o Exemplar, em que Uriel relata as dificuldades em abandonar o reino português em virtude das proibições que recaiam sobre os descendentes de judeus. A certa altura, a Inquisição chegou mesmo a condenar pessoas com 1/4 ou 1/8 de sangue judeu (o professor Robert Rowland, na referida palestra, chegou a mencionar um caso de 1/32 de sangue judeu). O problema marrano ganhara então tintura de problema racial e o cristão-novo era perseguido não por seu credo – oficialmente o católico – mas por seu sangue.17 Cf. Révah, “Les marranes”, art. cit., pp. 31-32.

costumes.”18 Educado na fé católica romana, Uriel

matricular-se-á na Universidade de Coimbra

em Cânones, isto é, direito eclesiástico, e por

isso muitas vezes será referido como jurista,

embora nunca se tenha formado. À época de

estudante, despontaram-lhe já as “dúvidas” que

o colocariam numa primeira crise espiritual:

Pelo que respeita à religião, padeci na minha vida cousas inacreditáveis. Fui criado, segundo o costume daquele reino, na religião católica, e sendo já rapaz feito, com grande temor da condenação eterna, desejava observar pontualmente todos os preceitos religiosos. Aplicava-me à leitura do Evangelho e de outras obras espirituais, percorria as Sumas dos confessores, e quanto mais me entregava a estes estudos, maiores dificuldades se me alevantavam. Acabei por cair em inextricáveis enleios, em ansiedades e aperturas de coração. Ia-me finando de melancolia e magoa.19

A trajetória do jovem Uriel inicia-se no

ninho em que mais tarde encontrará o desfecho

fatal: na dúvida. De início, talvez, apenas uma

inquietação tênue comum à raça daqueles

que os antigos chamavam mortais; o temor da

morte, todavia, no jovem portuense assoma-

se a grau incomum à maioria das pessoas. O

apego ao viver choca-se com a certeza do fim

e com tribulações da existência, produzindo a

interrogação abrupta a respeito da vida eterna,

dos castigos e recompensas post mortem. A

certa altura de seus estudos, Gabriel assumiu a

tesouraria de uma Colegiada, não obstante, as

agruras da consciência intensificarem-se, “cum uero in Christiana Religione Pontificia quietem non invenissem (não tendo encontrado repouso

na religião católica romana)”.20 O jovem debate-

se, pergunta-se pelo acordo entre fé e razão, lê

atenciosamente o Antigo Testamento, questiona

a complexidade dos códigos e da especulação

18 Exemplar, p. 37.19 Idem, ibidem.20 Idem, p. 39.

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SANTIAGO, HOmerO. O filósOfO Uriel da COsta. p. 43-65.

cristãos; termina por defrontar-se com passagens

contraditórias do texto bíblico e opta pela

simplicidade do Antigo Testamento e pela lei

mosaica: “acabei por entender, acreditando em

Moisés, que devia obedecer à Lei, visto que ele

afirmava ter recebido tudo de Deus”.21

Não há por que discordamos de Carolina

Michaëlis de Vasconcellos quando designa o

Exemplar como “história de uma consciência”;22

mesmo tendo em conta a perceptível simpatia

da estudiosa para com o seu biografado

e os cuidados necessários com relação a

qualquer texto autobiográfico, a fórmula parece

verdadeira. Ao leitor do Exemplar humanæ vitæ logo se afigura o vigor dos relatos de conversão,

não os sistemáticos e teóricos, tais como o

Discurso do método ou o Tratado da emenda do intelecto, mas aqueles que nos despertam

especialmente a comoção. Junto do autor vamos

e vimos, paramos e duvidamos na busca de um

ponto firme e tranquilizador, ou seja, em busca

da certeza íntima. Assim avaliado o texto de Uriel

da Costa poderia ser posto ao lado, por exemplo,

das Confissões de Agostinho: “nada se pode ter

como certo para a conduta da vida?”, “... o desejo

de saber o que devia considerar como certo”.23

Uma vez convertido à lei mosaica, Uriel,

ainda Gabriel, decide abandonar o reino e

consigo leva os familiares: “movido pelo amor

fraterno, eu comunicara o que sobre a religião

me havia parecido mais consentâneo, embora

tivesse dúvidas acerca de alguns pontos e esta

comunicação podendo redundar em grande mal

para mim.”24 Este passo do Exemplar merece

ponderação, pois aí surge a figura de sua mãe,

Branca da Costa. Embora afirme ter iniciado seus

21 Idem, ibidem.22 C. M. Vasconcellos, ob. cit., p. 5.23 Confissões, São Paulo, Paulus, 1984, livro VI, caps. 11 e 5, respectivamente.24 Exemplar, p. 39.

familiares no judaísmo, pesquisas de I. S. Révah

nos arquivos da Inquisição portuguesa revelaram

uma tradição marrana no lado materno da

família de Uriel, com vários de seus parentes

tendo passado pelos cárceres inquisitoriais.25

No caso, a prática judaizante não significava

propriamente judaísmo, mas sim a coexistência

de uma religiosidade exterior, a católica, e de

uma série de ritos, interdições alimentares e

atenções dispensadas ao calendário e às festas

da religião, o que constituiria um “judaísmo

empobrecido”.26 Nos processos inquisitoriais

estudados por Révah, dois acusados confessaram

ter sido convertidos à fé judaica por Uriel;27

por sua vez, sua irmã, Maria da Costa, que

não acompanhara a família rumo a Amsterdã,

declarou ter sido iniciada pela mãe, Branca. Além

desses, outros nomes maculados pela acusação

de criptojudaísmo entrecruzam-se na família do

português, inclusive o caso trágico de Guiomar

Rodrigues, tia de Branca da Costa, queimada

em Coimbra, no auto-de-fé de 1568. Firmado

em copiosa documentação, Révah concluiu uma

arraigada tradição marrana no ramo materno

de Uriel: “nesta família, sobretudo entre as

mulheres, o marranismo devia perpetuar-se no

estado ‘potencial’ e Gabriel da Costa terá sido o

catalisador do criptojudaísmo familiar, quando

a morte eliminou o obstáculo que constituía

seu pai, o verdadeiro católico Bento da Costa

Brandão.”28

Será que o quadro dá conta de explicar

de modo plausível a conversão de Uriel,

assegurando-lhe um lugar numa tendência

25 Cf. Révah, “La religion d’Uriel da Costa”, art. cit.26 Idem, p. 60.27 São eles: Leonor de Pina, aprisionada em 1618, parente distante de Branca da Costa; o cunhado Álvaro Gomes Bravo, marido de Maria da Costa, encarcerado no mesmo ano. Cf. Révah, “La religion d’Uriel da Costa”, art. cit., pp. 53-55.28 Révah, “La religion d’Uriel da Costa”, art. cit., p. 73.

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48 Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

SANTIAGO, HOmerO. O filósOfO Uriel da COsta. p. 43-65.

generalizada?29 Dois problemas aparecem e,

embora nada intentemos concluir sobre eles

(passo abusivo, haja vista a complexidade

do tema), não seria de bom alvitre deixar de

referi-los. Primeiro, se o Exemplar, por um

lado, afirma: “meus progenitores, pessoas bem

nascidas, descendiam de judeus, que em tempo

haviam sido forçados neste reino a abraçar a

religião cristã”;30 por outro lado, Uriel é firme

ao dizer que “instruiu” os familiares na lei

mosaica.31 O segundo problema, esse de maior

envergadura, é metodológico. Em Inquisição e cristãos-novos, António José Saraiva bateu-se com

os pesquisadores que se servem dos processos

inquisitoriais para a reconstituição do mundo

cristão-novo, especialmente Révah. Argumenta

Saraiva a artificialidade dos testemunhos e

confissões; no “labirinto infernal” que eram os

processos da Inquisição havia um único meio de

não ser relaxado e entregue ao braço secular,

ou seja, dado às chamas: tudo confessar, o real

e o forjado, a todos acusar, os cúmplices e os

inocentes. A acusação de Maria da Costa contra

sua mãe, por exemplo, tem lugar no dia mesmo

de sua condenação à fogueira.32 Verdade ou

desespero? No entender de Saraiva, Uriel não

foi um judaizante, tampouco conhecia algo do

29 Révah ressalta que “a tendência a retornar a uma espécie de judaísmo era bastante comum entre os cristãos-novos do Porto”; cf. “La religion d’Uriel da Costa”, art. cit., p. 73.30 Exemplar, p. 37.31 Em seu belo estudo, afirma Albiac dando razão a Révah: “Sob o signo da inominada mãe, que [...] foi a verdadeira mantenedora do fogo judaico na família, Gabriel faz sua entrada na Lei de Moisés. Quando crê dirigir, é dirigido”; cf. Albiac, ob. cit., p. 208.32 “Detida em 19 de setembro de 1618, ela negou durante três anos qualquer relação com o criptojudaísmo. É então condenada a ser relaxada ao braço secular, isto é, queimada. Em 26 de novembro de 1621 a sentença lhe é notificada, e como se fazia com todos os condenados à morte, prenderam-se-lhe as mãos. Na mesma hora ela pediu audiência com os inquisidores e confessou ter sido iniciada no marranismo pela sua mãe, Branca da Costa”; cf. Révah, “La religion d’Uriel da Costa”, art. cit., p. 53.

judaísmo; seria tão-somente um espírito cético

preocupado com o problema da salvação da alma,

por isso pusera-se a estudar a Bíblia, findara por

negar o cristianismo e, num judaísmo “imaginário”,

buscar uma alternativa; a tradição judaica familiar

seria uma fraude. Um cético tout court.33

A metrópole em que a família Costa

Brandão aporta é uma cidade excepcional.

A República das Províncias Unidas era o

contraponto de uma Europa ainda dominada

pelas instituições religiosas. Terra florescente,

pelo comércio enriquecida, onde reorientavam-

se as artes e a tolerância religiosa era instituída;

situação ímpar – apesar das idas e vindas políticas

– num continente em que ardiam as fogueiras

inquisitoriais. A florescência intelectual fazia de

Amsterdã ponto de convergência de pensadores

e praça em que pululavam incontáveis seitas e

grupos religiosos maiores e menores, advogando

desde a negação da trindade e o fim da religião

institucional até a pena de morte para descrentes.

Aí se instalam, desde fins do século XVI, judeus

provindos da península ibérica, e, quando da

chegada de Uriel, a comunidade sefardita –

dividida em três sinagogas – já demonstra grande

vigor. Poder econômico, alto nível cultural,

imprensa ativa, uma mundivivência própria a

pessoas que se haviam dedicado com afinco às

artes, ao pensamento e ao comércio e assimilado

importantes tópicos da Reforma. O substrato da

aventura sefardita, no entanto, é outro: o desafio

é possibilitar o retorno ao judaísmo ortodoxo

à massa de gente que chegava das “terras de

idolatria” e invariavelmente havia esquecido a

religião tradicional – quando muito mantinham

aquela sorte de culto marrano, judaísmo

empobrecido, de que nos fala Révah. Na notória

fórmula de um erudito alemão, o marrano é

“um católico sem fé e judeu sem conhecimento,

33 Saraiva, ob. cit., pp. 155-157.

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SANTIAGO, HOmerO. O filósOfO Uriel da COsta. p. 43-65.

se bem que judeu por vontade própria”;34 a

constante da vida judaica à margem do Amstel,

por conseguinte, será um esforço doutrinário em

que o aprendizado dos ignorantes é capitaneado

pelos detentores do judaísmo tradicional:

“El medio unico para saber es sujetarse a ser

enseãado, es humillarse a recivir doctrina de

quien puede comunicarla.”35

Regras rígidas, profusão de livros

pedagógicos, rotineira tradução de textos

hebraicos para as línguas ibéricas; mão forte sobre

os que em Espanha e Portugal eram tidos como

judeus e, em Amsterdã, não raro são tomados

por católicos. Esta é a receita para fazer renascer

a religião judaica, ou, se se preferir, redefinir o

judaísmo, recriá-lo ex nihilo36 Posto ser esta a regra,

amiúde a ortodoxia e o despotismo doutrinário

produziram seu reverso: a heterodoxia, sempre

camuflada sob as designações de saduceísmo

e epicurismo, dúvida e soberba doentias.

Embora o personagem mais conhecido dentre

os heremizados pela comunidade amsterdamesa

evidentemente seja Espinosa, deve-se observar

que o caso mais estrondoso foi o de Uriel,

inclusive por seu desfecho. Já em 1618 Uriel é

declarado herege pelas comunidades judaicas

de Hamburgo e Veneza; em 1623, depois de

vários entreveros, pertinaz nos questionamentos

e sempre ameaçado, ele é enfim heremizado e

apartado da comunidade de Amsterdã. Eis o teor

do anátema:

34 Carl Gebhardt, “Le déchirement de la conscience”, extrato da introdução a Die Schriften des Uriels da Costa (1922), traduzido por J.-P. Osier nos Cahiers Spinoza, n. 3, inverno de 1979-1980, pp. 135-141.35 Oróbio de Castro, prólogo da Epistola invectiva. Parte da obra foi publicada como anexo em I. S. RÉVAH, Spinoza et le Dr. Juan de Prado, Paris-Haia, Mouton & Co, 1959, pp. 86-129.36 Nesses termos Yosef Kaplan resume a situação a ser enfrentada pelas autoridades comunitárias; cf. Kaplan, “A comunidade portuguesa de Amesterdão no século XVII, entre tradição e mudança” em Portugueses em Amesterdão: 1600-1680, Amsterdã, Amsterdams Historisch Museum/De Bataajsch Leeuw, 1988, p. 44.

Os snnores Deputados da naçaõ fazem saber a Vsms. como tenmdo noticia que hera vindo a esta Cidade hũ home que se pôs por nome Uriel Abadot. E que trazia m.tas opinioes erradas, falsas e hereticas cõtra nossa santissima lei pellas quais já em Amburgo e Veneza foi declarado por herege e excomungado e dezejando reduzilo á verdade fizeraõ todas as dilig.as necessarias por vezes cõ toda suavidade e brandura por meo de Hahamin e Velhos de nossa naçaõ, a q ditos snnrs. deputados se acharaõ prezentes. E vendo q por pura pertinacia e arrogancia persiste em sua maldade e falsas opinioes ordenaõ cõ os Mahamadot dos ehilot. E cos de ditos hahamim apartalo como homeja enhermado, e maldito da L. del Dio, e que lhe naõ fale pessoa algũa de nenhũa qualidade, në home në molher, në parente në estranho, në entre na casa onde estiver, në lhe dem fauor algũ, në o comuniquem cõ pena de ser comprehendido no mesmo herem e de ser apartado de nossa comunicaçaõ. E a seus Irmaõs por bons resp.tos se concedeu termo de outo dias p.a apartarem delle. Amsterdam 30 del homer 5383 [30 de Janeiro de1623].

Samuel Abarvanel, Binhamin Israel, Abraham Curiel, Joseph Abeniacar, Rafael Jesurum, Jacob Franco.

No mesmo ano Uriel prepara uma

justificação, o Exame de tradições fariseas, a

qual, entregue ao impressor, é confiscada pelas

autoridades comunitárias.37 Do texto, somente

os capítulos XXIII-XXV foram transcritos no

Tratado da imortalidade da alma de Semuel da

Silva, escolhido pelo rabinato para responder a

Uriel e à afirmação da mortalidade da alma.38

37 Sobre alguns aspectos da censura na comunidade judaica, ver I. S. Révah, “Les écrivains Manuel de Pina et Miguel de Barrios et la censure de la communaute judeo-portugaise d’Amsterdam”, Tesoro de los judíos sefardíes, v. 8, 1965, pp. 74-91.38 Tratado/ da/ Imortalidade:/ Da alma/ composto pelo Doutor Semuel da Silva, em/ que também se mostra a ignorância de certo contra-riador de nosso tempo que entre outros muytos erros deu neste delirio de ter para si & publicar que/ a alma de homem acaba juntamen-/te com o corpo// A Amsterdam, Impresso em casa de Paulo Ravesteyn. / Anno da criação do mundo 5383. O texto dos capítulos XXIII-XXV do Exame pode ser consultado em Uriel da Costa, Três Escritos; C. M. de Vasconcellos, Uriel da Costa; e na tradução francesa anotada de Osier, D’Uriel da Costa à Spinoza, ob. cit.

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SANTIAGO, HOmerO. O filósOfO Uriel da COsta. p. 43-65.

Reformulado, o volume ganha o prelo em 1624

sob o título de Examem das Tradiçoens phariseas conferidas con a Ley escrita por Vriel Jurista Hebreo cum reposta a hum Semuel da Silva seu falso calumniador. Por esta publicação Uriel é

encarcerado pelo Magistrado holandês, mediante

acusação formal das autoridades judaicas, que

denunciam o livro como contrário à religião

cristã; ao cabo de alguns dias ele é solto, após o

pagamento de uma multa, e os exemplares do

livro são apreendidos e queimados por ordem do

mesmo magistrado.39

Afastado do meio comunitário, Uriel

aprofundou-se na meditação e, conta, pôs-

se a perguntar-se acerca da lei mosaica e de

seu fundamento divino, do seu acordo com

a natureza, da sacralidade das Escrituras. O

leitor do Exemplar humane vitæ acompanha um

crescendo que culmina na naquilo que para os

contemporâneos do autor merecia o nome de

deísmo, ateísmo, saduceísmo ou epicurismo,

todos estigmas de idêntico naipe:

Assentei por fim que a Lei de Moisés não era de Deus, mas somente invenção humana, como outras sem conto que têm havido no mundo. É que muitos pontos brigavam com a lei na Natureza, e Deus, autor da Natureza, não podia estar em contradição consigo mesmo, e estar-lo-ia se propusesse aos homens praticarem atos contrários à Natureza, de que se dizia autor.40

Infelizmente não tivemos acesso ao texto integral de Samuel da Silva, que consta ter sido reeditado na década passada: Tratado da Imortalidade da alma, fixação do texto, prefácio e notas de Pinharanda Gomes, Lisboa, Coleção Pensamento Português, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982.39 Consoante Henry Méchoulan, “La mort comme enjeu théologique, philosophique et politique à Amsterdam au XVIIe siècle”, XVIIe siècle, n. 183, abril-junho de 1994, p. 344, nota 23, o texto completo do primeiro Exame foi redescoberto por H. P. Salomon, que o deu à impressão: Uriel da Costa, Examination of Pharisaic Traditions, supplemented by Semuel da Silva’s Treatise on the Immortality of the soul, Leiden-Nova York-Colônia, Brill, 1993. Infelizmente, não consultamos esta edição.40 Exemplar, p. 45.

Não obstante, alegando a solidão e o

desconhecimento da língua holandesa, Uriel

reconciliou-se com a Sinagoga e retornou ao

seu seio. Logo em seguida, porém, em 1633, em

virtude de novas denúncias sobre sua impiedade,

é mais uma vez heremizado – não possuímos

o texto desse segundo anátema – e fulminado

pela turba e pelo rabinato, ao menos nos

dizeres de Uriel, segundo quem eles bradavam:

“crucificai-o, crucificai-o”.41 Este novo período

de separação durou sete anos; ao fim do qual,

espoliado pelos irmãos, velho, doente (conforme

a letra do Exemplar), Uriel cedeu às pressões da

autoridade comunitária (desde 1639 unificada

sob o nome de Talmud Tora) e concordou com

a reconciliação: “Cumprirei tudo quanto me

impuserdes”.42 Para a suspensão do herem de 33,

Uriel teve de submeter-se ao ritual de retratação:

Entrei na Sinagoga, que estava cheia de homens e mulheres, e quando foi tempo, subi ao taburno de madeira que está no meio da Sinagoga para o serviço dos sermões e demais atos do culto; li em voz alta o escrito, redigido por eles, em que eu confessava que merecia morre mil vezes pelos pecados por mim cometidos [...] e que em satisfação de tais culpas eu queria obedecer ao que me ordenassem e cumprir as penas que me impusessem, prometendo não tornar a cair de futuro em semelhantes iniquidades e malfeitorias. Acabada a leitura, desci do taburno e acercou-se de mim o venerando presidente, dizendo-me ao ouvido que fosse para um outro canto da Sinagoga. Assim fiz; então o porteiro ordenou-me que me despisse. Despi-me até à cintura, atei um lenço à cabeça, descalcei os sapatos e ergui os braços, pondo as mãos em uma espécie de coluna. Chegou-se a mim o porteiro atou-me as mãos à coluna com uma faixa. Depois veio o precentor e, pegando de um couro, deu-me trinta e nove tagantes conforme à prática tradicional – a Lei prescreve que não sejam mais de quarenta, e sendo então varões tão escrupulosos observadores das leis, guardam-se de cair em pecar por excesso.43 Durante a flagelação

41 Idem, p. 47.42 Idem, p. 51.43 A lei referida provém do Deuteronômio, 25, 2-3: “Se o

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SANTIAGO, HOmerO. O filósOfO Uriel da COsta. p. 43-65.

cantava-se um salmo. No fim assentei-me no chão, o grão-rabino – que ridículas que são as cousas do gênero humano! – chegando-se à minha beira, levantou-me a excomunhão; destarte, já me estava aberta a porta do Céu, que antes disto, de valentemente trancada, me impedia de entrar. Depois tornei a vestir-me e fui para entrada da Sinagoga. Prostrei-me no chão, amparando-me o guarda a cabeça. Então todos quantos desciam, passavam por cima de mim. [...] Isto praticavam todos, moços e velhos [...] No fim, quando já não restava mais ninguém, ergui-me, e tendo-me limpado do pó, com a ajuda daquele que estava ao meu lado, voltei para casa.44

Nos dias seguintes ao suplício, Uriel da Costa teria redigido o Exemplar humanæ vitæ, autobiografia e denúncia dos algozes, e logo na sequência tirado a própria vida com um tiro.

II

DENTRE aS DESCulpaS quE OS INTElECTuaIS ENCONTRaRam paRa OS CaRRaSCOS [...] a maIS DEplORáVEl é a DESCulpa

DE quE O pENSamENTO Da VÍTIma,RESpONSáVEl pOR SEu aSSaSSINaTO,FORa um ERRO.

aDORNO E hORkhEImER, dialética do ESclarEcimEnto.

Por vezes somos tocados pela sensação de

que Uriel não encontrou leitores. Não produziu

um sistema, nem se alinhou aos grandes de seu

tempo, nem foi mártir de sua religião; seus escritos

não foram difundidos (antes foram confiscados,

queimados e serviram ao proselitismo religioso)

e a pecha de renegado sem religião ainda

o persegue.45 Deve-se pesar o fato de que a

culpado merecer açoites, o juiz o fará deitar-se e mandará açoitá-lo em sua presença, com um número de açoites proporcional à sua culpa. Fa-lo-á açoitar quarenta vezes, não mais; não aconteça que, caso seja açoitado mais vezes, a ferida se torne grave e o teu irmão fique aviltado a teus olhos”. Para todas as citações bíblicas, utilizaremos a Bíblia de Jerusalém, São Paulo, Paulinas, 1993.44 Exemplar, pp. 51-53.45 Para que o leitor tenha ideia do estigma que paira sobre a figura de Uriel da Costa, transcrevemos o relato de uma curiosa conversa entre Gabriel Albiac e um ancião sefardita sobre o caso Espinosa, em outubro de 1982, na biblioteca Ets Haim em Amsterdam (cf. Albiac, ob. cit., p. 187): “Recordo ter introduzido em nossa calma conversa o

intensificação dos estudos dedicados ao judaísmo

amsterdamês seiscentista e ao fenômeno

marrano por vezes tendeu à condenação dos

que não teriam compreendido as especificidades

dos problemas comunitários, fosse questionando

a tradição, fosse afundado-se na heterodoxia,

de tal sorte que Uriel seja retratado ora como o

monstro terrível da irreligiosidade, ora insensível

perturbador e polemista desmedido; certos

modernos parecem ser a antístrofe daqueles

que horrorizaram Uriel da Costa e refutaram-

no através dos séculos. Como então ler Uriel e

como resgatar-lhe o itinerário? De que modo

avaliar-lhe o pensamento? Há o judaizante de

Révah, cujo destino, embora excepcional, ao

menos de início esteve alinhado às práticas

familiares marranas; o ser aberrante pintado por

Limborch, malgrado a compaixão despertada

pelo trágico suicídio; o Uriel de Bayle, fruto da

inexorabilidade de um caráter pervertido pelas

más ideias e que, com o tempo, desembocaria

no ateísmo; o do ceticismo mundano de Saraiva,

plasmado pela maquinaria inquisitorial e pela

mundivivência-incroyance de sua época; há a

conversão impossível de Osier; o Uriel referido

por Voltaire como sujeito que trocou a religião

pela filosofia. Outros ainda, como se herdeiros de

Semuel da Silva, reduziram o caso e a polêmica

em torno de questões como a imortalidade da

alma e a sacralidade das Escrituras a uma opção

– evidentemente equivocada – pelo saduceísmo,

fórmula que tudo reduz a um mero conflito

nome de Uriel da Costa. O rosto e o ar de meu interlocutor mudaram bruscamente. Seu charmoso castelhano (era um dos últimos a conservá-lo, explicara-me, numa sociedade agonizante após o extermínio nazista e a posterior imigração para Israel dos sobreviventes mais jovens) tornou-se duro. ‘É outro caso’, disse-me, ‘Uriel estava louco’.– Mas o Exemplar humanæ vitæ – tratei só de objetar – dá uma imagem tão terrível da comunidade na primeira metade do XVII...– O Exemplar humanæ vitæ – sentenciou secamente – é um apócrifo, uma invenção dos inimigos de Israel.”

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SANTIAGO, HOmerO. O filósOfO Uriel da COsta. p. 43-65.

interno ao judaísmo e a um confronto de seitas.46

Em suma, não faltam perspectivas para todos os

gostos. Sobre três delas, gostaríamos de tecer

considerações.

limborch E o Extraordinário

A refutação do Exemplar preparada pelo

protestante Philippe von Limborch é conduzida,

prioritariamente, pela afirmação da superioridade

da moral cristã em relação à lei natural defendida

por Uriel. Segundo este, a observação dos sete

mandamentos comunicados a Noé, portanto

anteriores à lei mosaica e ao pacto da nação

israelita com Iaweh, seria suficiente à salvação,

uma vez que transmitidos à guisa de lei racional

universal.47 Ao proclamar a universalidade de

46 A título de curiosidade, vale ressaltar ainda a atoleimada fraseologia de certo proselitismo cristão hodierno: “Se nos fora permitido, à base da Psicologia Moderna recorrer aos testes para avaliar o comportamento moral, político e econômico desses homens [os judeus], verificaríamos, sem dúvida, que notória porção deles vive numa angústia profunda e sem serenidade de consciência. Se ainda nos fora dado realizar esses testes, encontraríamos, certamente, muitos deles, quer no campo religioso, quer no campo econômico, quer até nas relações político-sociais, que constituiriam a prova evidente da revivescência da mentalidade de Uriel, encarnada no espírito judaico dos nossos dias. Com efeito, a personalidade individual ou coletiva dos judeus (salvo honrosas exceções) mostra bem que neles não existe crença convicta, procedimento estável. Nesta instabilidade vive escondido o tal demônio que empurrou Uriel para o judaísmo e depois o não deixou renegar esse judaísmo, quando francamente reconheceu o passo em falso que tinha dado. Não terá nascido daí aquele momento de desespero que o levou ao suicídio? [...] Meditem os judeus, espalhados por todo o mundo, na essência das verdades do cristianismo, pois só elas os poderão libertar da angústia de consciência em que possam viver, proporcionar-lhes tranquilidade espiritual e uma eficaz colaboração humana para a união cristã.” Cf. J. A. Pinto Ferreira, “Uriel da Costa (pensador quinhentista e portuense): redivivo no séc. XX?”, Revista Portuguesa de Filosofia, n. 25, 1969, pp. 341-342.47 Cf. Exemplar, p. 61: “Digo pois, que esta lei é comum a todos os homens e neles inatas pelo fato de serem homens. Liga a todos uns aos outros pelos laços de mútuo amor, desconhecendo divisões [...] Tudo quanto há excelente na lei de Moisés ou em qualquer outra, a lei natural encerra-o integralmente na perfeição”. A discussão em torno de um

tais princípios e sua suficiência, o judeu Uriel

da Costa (não nos esqueçamos de que, mesmo

heremizado, permanece um filho de Israel)

confronta-se, por um lado, com a eleição do

povo hebreu, por outro, com as particularidades

de cada religião; este é o campo de batalha em

que se move o Exemplar. Destarte, Uriel participa

do amplo debate iniciado no século XVI, que

atravessa o XVII e atinge seu apogeu no XVIII,

acerca duma religião natural; inerente a todos os

homens, sobrepor-se-ia ela aos particularismos

de cada religião e seria capaz de entre todas

estabelecer a paz. No caso de Uriel, tais princípios

se assentam numa razão nativa que determinaria

o que é fundamental em qualquer religião e

da qual, portanto, homem nenhum poderia

afastar-se sem perder sua condição humana;

nela descobriríamos uma norma de conduta

credo minimum levou à busca de um núcleo de preceitos que seriam universais; o fito era desvelar o que é essencial à qualquer crença e o que é indiferente e particular a cada religião. A religião de Noé seria uma das alternativas; posição assumida por Uriel e Grotius, dentre outros. Os princípios noaquitas teriam sido comunicados a Noé depois do dilúvio e marcado a aliança entre os homens, todos eles, e Deus: “Eis que estabeleço minha aliança convosco e com os vossos descendentes depois de vós, e com todos os seres animados que estão convosco: aves, animais, todas as feras, tudo o que saiu da arca convosco, todos os animais da terra” (Gênesis, 9, 9-10). De modo geral, os preceitos reduziam-se à afirmação da existência de Deus e da providência, da necessidade de um culto, da recompensa e da punição. Esta universalidade da aliança deve ser confrontada com a particularidade da outra aliança selada no Sinai quando da entrega a Moisés das tábuas da Lei; então fala Deus à “casa de Jacó” e aos “filhos de Israel” e arremata: “vós sereis para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa” (Êxodo 19, 3-8). A aliança é particular e assinala a eleição do povo hebreu; de sorte que, argumentam no XVII, tais leis designariam uma particularidade do povo judaico, dizem respeito não a todos os homens (obrigados com Deus apenas pela primeira aliança), mas só aos filhos de Israel (eleitos na segunda aliança). Cf. Jacqueline Lagrée, La raison ardente. Religion naturelle et raison au XVIIe siècle, Paris, Vrin, 1991, pp. 31-33; e a última nota de Espinosa ao capítulo V do Tratado teológico-político (Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1988, p. 188): “Os judeus pensam que Deus deu sete mandamentos a Noé, os únicos a que estariam sujeitos todas as nações, mas que teria dado muitos mais ao povo hebreu, a fim de o tornar superior aos outros em beatitude.”

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SANTIAGO, HOmerO. O filósOfO Uriel da COsta. p. 43-65.

universal, tanto princípio moral como princípio

ordenador da vida.

Piedoso cristão, não podia Limborch

admitir tais considerações, que forçosamente

selariam a sorte de seu credo revelado. “É

verdadeiro dizer que uma lei comum a todos

os homens é inata: seus primeiros princípios

aparecem com evidência própria à sua luz, são

deduzidos da razão humana.”48 O erro de Uriel,

ajuizará Limborch, é querer como desnecessário

para a salvação e, pior, como antinatural tudo

o que não está englobado nessa lei inata. Com

efeito, “Deus não pode ser contrário a si próprio;

ora, dar-se-ia tal caso se ele ordenasse por via de

revelação o que interdita a lei da natureza ou se

interditasse o que ela prescreve”.49 Obviamente,

o caso é outro. Como argumentar com aquele

que não crê na revelação, ou quando muito crê

numa revelação de sete princípios universais,

jamais numa revelação particularizante, a um

só povo ou um grupo de homens?

Alega Limborch que os mandamentos

cristãos ajuntam-se à lei natural “a título de

virtude extraordinária e verdadeiramente

heroica”.50 Atos permitidos pela natureza, revides

ao agressor, por exemplo, são proibidos pela

moral cristã, como figurado pelo lugar-comum

do esbofeteado que oferece a outra face. “Sobre

este ponto a religião cristã é mais perfeita que

a lei de natureza, visto que tal comportamento

defeituoso a lei da natureza tolera e aprova

como estando de acordo com ela; aquela [a

religião cristã] disso se apropria, para condenar

severamente como um pecado contrário à

caridade, [...] Por conseguinte, não é permitido

na religião cristã vingar-se das injustiças”.51 A

argumentação do pastor reformado é clássica;

48 Limborch, loc. cit., p. 172.49 Idem, ibidem.50 Idem, p. 174.51 Idem, ibidem.

para lembrarmo-nos de um antecedente notório,

basta mencionar o Livre-arbítrio de Agostinho,

em que se dá a distinção entre o poder matar o

agressor e o dever de não matá-lo; o homicídio

legal, justificado perante a lei humana, é crime

perante a corte celeste.52 Os termos em questão

num e noutro, Limborch e Agostinho, e nisso

sem restrição ao âmbito religioso, cristalizam

uma moral do dever-ser contraposta ao que

o homem é ou tende a ser naturalmente. A fé

exige a piedade, o perdão e o amor; posto que

a natureza, a vingança. Logo, “a religião que

ordena o amor aos inimigos é mais perfeita que

a religião da natureza”.53 O cristianismo e seus

mandamentos seriam um acréscimo à natureza

humana, aperfeiçoando-a, processo obviamente

mediado pelo código de remuneração que tem

como corolário a “esperança da vida eterna”,

âmago da abnegação de todo crente; refreando

os impulsos naturais, “obedeceremos a Deus e

obteremos por recompensa desta obediência a

coroa da vida eterna.”54

Grosso modo, tal núcleo básico está

presente em grande parte dos credos, e justamente

contra ele se bate o Exemplar:

Alguém dirá que a lei de Moisés ou a lei do Evangelho contém alguma cousa mais alevantada e perfeita, e vem a ser o amarmos os nossos inimigos, preceito que não se contém na lei natural. Respondo-lhe como acima disse. Se nos apartamos da Natureza e pretendemos descobrir alguma cousa mais levantada, para logo surge a luta, perturba-se o sossego. De que serve ordenarem-se-me impossíveis que eu não tenho forças para cumprir?55

Uriel prossegue com a lembrança do

passo do Gênesis em que, chamado à prova por

52 Cf. Agostinho, O livre-arbítrio, São Paulo, Paulus, 1995, pp. 36 e seg.53 Idem, ibidem.54 Idem, p. 175.55 Exemplar, pp. 61-63.

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54 Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

SANTIAGO, HOmerO. O filósOfO Uriel da COsta. p. 43-65.

Deus, Abraão decide-se pelo sacrifício de seu

filho. “Uma lei assim quer uma cousa superior

ao que pode ser efetuado por criaturas humanas,

e que, se se efetuasse, seria o maior atentado

contra a Natureza sendo que a Natureza

tem horror a semelhantes atos”.56 A altivez

propugnada pela lei revelada seria em verdade

o afastamento, travestido de aperfeiçoamento,

da natureza humana. O mundo das religiões

reveladas tal como ideado por Limborch (a

terra dos heróis zelosos pelo céu, e que tal praça

somente alcançam pela negação de sua própria

natureza), a morte do filho pelo pai, não são

“virtudes extraordinárias”, antes são a perversão

de nossa natureza, bizarrias dos que ostentam a

sacralidade. É o ponto preciso das objeções de

Uriel. O que mais pode resultar ao homem desse

processo de rejeição de sua natureza que não

a tristeza do espírito? Ao passo que Limborch

afirma “a maldade do gênero humano”, a força

de sua concupiscência”,57 para concluir a precisão

duma lei religiosa suprema e transcendente,

a imanência do universo de Uriel, avesso aos

prêmios pela virtude e crente na ação conforme

à razão universal, propugna também um dever-

ser, mas aquele instaurado na condição racional

humana. Aos que não creem na só lei natural

e afirmam a necessidade das penas eternas, o

Exemplar responde:

Mas conceda-se que é grande a malícia humana [...] procurai então remédios de grande eficácia, que sem maior dano façam desaparecer esta doença de todos os homens em geral, e deixai-vos de papões, que só têm efeito em crianças e tolos. Se, porém, esta enfermidade é incurável no gênero humano, deixai-vos de mentiras e não prometais, à guisa de médicos charlatães, a saúde que não podeis dar. Contentai-vos com estabelecer entre vós leis justas e racionais, premiar os bons, punir devidamente os maus, livrar de violências os que padecem

56 Idem, p. 63.57 Limborch, loc. cit., p. 178.

violências, para que não bradem que neste mundo não se faz justiça e que não há quem salve o fraco das garras do forte. [...] Proceder de modo contrário é proceder contrariamente à natureza humana; e se muitos destes atos se praticam, é porque os homens têm inventado diversas leis opostas à Natureza, e uma pessoa irrita a outra com as suas malfeitorias. Muitos há que andam hipocritamente, fingindo-se por extremos religiosos, e iludem os incautos cobrindo-se com a capa da religião para apanharem os que podem. Semelhante gente pode bem comparar-se ao ratoneiro noturno, que insidiosamente acomete quem está adormecido e não espera por tal.58

Nesse caminho racional aposta Uriel; nele a fé na razão e na justiça terrena

substituem o fideísmo judaico-cristão, a

justiça terrena toma o lugar dos castigos post mortem, a universalidade e a autodeterminação

desfazem as dissensões e põem a humanidade

em seu devido lugar, lugar consoante à sua

dignidade.

baylE E a filoSofia pErigoSa

Grande referência do pensamento de

sua época, o Dictionnaire historique et critique de Pierre Bayle, publicado em 1696, trazia um

curioso artigo Acosta; todo calcado no texto do Exemplar humanæ vitæ, que ganhara o prelo

9 anos antes, o texto de Bayle merece nossa

atenção, tanto pelas suas considerações quanto

por esse prócere da Republique des Lettres ser

das figuras mais influentes na opinião do século

XVIII. Na esteira das acusações da comunidade

judaica, Bayle enxergou em Uriel aquele que “não

era nem judeu, nem cristão, nem maometano”,59

e não pestanejou em asseverar: “eis um exemplo

que favorece os que condenam a liberdade de

filosofar sobre as matérias de Religião, pois

58 Exemplar, p. 67.59 Bayle, verbete “Acosta”, Dictionnaire historique et critique, em anexo a D’Uriel da Costa à Spinoza, ob. cit., pp. 191-199.

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55Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

SANTIAGO, HOmerO. O filósOfO Uriel da COsta. p. 43-65.

argumentam que tal método conduz pouco a

pouco ao Ateísmo ou ao Deísmo.”60

O esquema de irreligiosidade proposto

pelo artigo Acosta é marcado pela rigidez das

categorizações e pela descrição de etapas, bem

como pela tenacidade de suas conclusões. O

movimento de Uriel seria o seguinte: 1) não

aquiescência à fé católica, que não estaria de

acordo com a sua razão; 2) entrada no judaísmo;

3) crítica das tradições judaicas, rejeição da

imortalidade da alma; 4) negação da divindade

da lei de Moisés; 5) adesão à religião natural,

mais conforme ao divino legislador. “Se ele

tivesse vivido ainda seis ou sete anos, talvez

negasse a Religião natural, porque sua miserável

razão ter-lhe-ia feito encontrar dificuldades

na hipótese da providência e do livre-arbítrio

do Ser eterno e necessário.”61 Pobre Uriel,

atormentado e sem assento em lugar nenhum!

De credo em credo; adesão e rejeição perfilam-se

num itinerário atravessado por certo elemento

que, embora não expressamente designado por

Bayle, estaria no cerne da trajetória do autor do

Exemplar: a dúvida. Descrevendo a situação do

português aos 22 anos, Bayle acerta a mão: “eis

o estado em que ele se encontrou: ele duvidou

(il douta).”62 A dúvida seria o elemento propulsor

e promotor dos elos entre uma e outra fase.

Uma observação de Jean-Pierre Osier sobre a

prodigalidade da adjetivação possessiva de Bayle

ao se referir a Uriel é sintomática: “sua razão (sa raison)”, “suas luzes (ses lumières)”;63 o recurso a

tal caracterização de entendimento e razão como

absolutamente individuais serve ao confronto,

destrói a argumentação do Exemplar, que intenta

justamente alicerçar-se numa razão universal. À

particularização, pois, cabe a demonstração da

60 Bayle, loc. cit., p. 194.61 Idem, p. 198.62 Idem, p. 192.63 Cf. Osier, ob. cit., p. 20.

excepcionalidade do caso de Uriel, atribuindo-o

a uma inteligência perturbada, individualista e

embriagada pela dúvida pertinaz.

Deixemos Bayle por um instante e façamos

um pequeno excurso.

Ao longo da leitura dos vários textos

disponíveis que de uma forma ou outra ligam-

se à comunidade judaica de Amsterdã, o que

mais nos impressiona é a cristalização de dois

campos opostos. O primeiro, formado pelas

idéias de soberba, dúvida, futilidade, saber

idólatra, contaminação; o segundo, por certeza,

disposição para aprender, obediência, esperança.

Da oposição entre esses grupos, porém, é a

dúvida que sobressai; explicitamente, e aliás com

freqüência espantosa, ou camuflada sob outras

expressões: nos “ataques frívolos”, nas várias

formulações dos herens, etc.

Num trecho do terceiro discurso de sua

Epistola invectiva, Oróbio de Castro esboça um

quadro classificatório interessantíssimo. Ele,

um dos principais intelectuais da comunidade,

divide “en tres clases los sequaces de la impiedad,

opugnadores de la virtud, amigos de su propio

entender”:

Los primeros y de peor calidad son los infandos Atheistas que osaron negar la Sagrada Escritura, aunque mas se excusen con confessar la Primera Causa; Los segundos son Isrraelitas, creen en Dios, assienten al Sagrado Texto, y abominan la explicacion que el mesmo Dios, con summa providencia, concedió a la Ley; [...]resta la tercera en que se constituyen los que son verdadeiros observantes de la Ley de Moseh, que creen no solo lo Escrito, sino tambien la Sagrada Tradicion o Ley Mental que recivieron y observaron nuestros mayores, mas descaecen miserablemente en la observancia de los sagrados preceptos, juzgando la mayor imperfeccion por excusable, teniendo las persuaciones precaucionam de la prevaricacion por inutiles. Y passa a mas la confianza propia, que osan calumniar los medios que para este fin inventó la piedad y la sabiduria de nuestros Doctores, no solo como

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56 Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

SANTIAGO, HOmerO. O filósOfO Uriel da COsta. p. 43-65.

superfluos, mas por contrarios a lo escrito en la Ley; y creen que se deroga el divino precepto de no quitar ni añadir a sus decretos con la providencia de los llamados bien propiamente “Vallados”, pareciendoles que se multiplican las ordenanzas y se acrecientan los estatutos contra la voluntad de Dios, haciendo obligatorio en el fuero interior lo que nació de la disposicion humana.64

A escala gradativa de Oróbio refere-

se a um só elemento, sentimento pernicioso:

a dúvida. Esta determina a gradação e a

mobilidade entre os três estágios. Um grupo de

ateus convictos, um segundo crente em Deus e

na Sagrada Escritura mas que nega a lei oral, um

último grupo de crentes que consideram Deus,

as Escritura, a lei oral, mas que pouco a pouco

começam a questionar esta última. Neste grupo

já está alojada a perigosa semente da descrença,

sempre alimentada pelos desmandos ocasionais

dos Doutores da Lei, os rabinos e, com mais

propriedade no dizer, dos que detinham o poder

na comunidade amsterdamesa, os parnassim do

Mahamad. E o mais curioso nessa gradação é

a possibilidade daquilo que o texto denomina

“infelice viage”, ou seja, o salto do ínfimo

questionar à mais alta certeza ateia, sempre

carregando no bojo a semente da dúvida.

Ora, o il douta do artigo de Bayle n”ao

deixa de ser idêntico ao philosopho medico que dudava, fórmula com que Oróbio refere-se ao

herético Juan de Prado. Alguns anos separam

as formulações e, sobretudo, a incrível distância

entre um intelectual judeu guardião da ortodoxia

e o avatar da Europa culta, às vezes tido por

iluminista avant la lettre, contribuinte do

pensamento do XVIII.65 Sa raison/ses lumières/

64 Oróbio de Castro, loc.cit., pp. 126-127.65 “Tendo consagrado sua vida ao estudo e suas forças à luta pela tolerância e pela liberdade de consciência, que ele não para de defender – o que faz ver nele já um homem do século XVIII”; Françoise Charles-Daubert e Pierre-François Moreau, “Biographie de Pierre Bayle” em Pierre Bayle, Écrits sur Spinoza, Paris, Berg International, 1983.

amigo de su propio entender... dúvida. Decerto

Uriel duvidava, e a dúvida acompanhou-o

por todo o itinerário; o problema é a junção

entre dúvida e fidelidade a si mesmo, soberba,

individualismo continuamente levada a cabo.

Esta armação é que precisa ser desmontada.

Outro passo da argumentação de Bayle

também pode ser compreendido a partir do

mesmo Oróbio de Castro. Onde situar a dúvida?

Se o judeu ajuntava filosofia e dúvida, Bayle, por

seu turno, não faz diferente: “Quem quer que seja,

não há ninguém que, servindo-se da razão, não

tenha necessidade da assistência de Deus, pois,

sem isso, ela é um guia que se desencaminha: e

se pode comparar a Filosofia à poeira corrosiva

[...] a Filosofia refuta de início os erros, mas, se

se não a detém aí, ela ataca as verdades.”66

Como a maioria dos adversários de Uriel

da Costa, Pierre Bayle é presa dum fideísmo

atroz: a filosofia termina onde encontra verdades

incontestes; insistir na investigação é incorrer

na monstruosidade; deter-se é filosofar. O caso

de Uriel seria só um produto desse processo

destrutivo, ou, como Oróbio dizia, “infelice

viage”. À filosofia o limite é a fé, uma regula fidei, e por isso mesmo, diz o artigo Acosta, estamos perante um trajeto que dá motivo

suficiente para aventar-se o controle da atividade

filosofante. Seu espírito irrequieto e imbuído de

dúvida já negara Cristo e Moisés, humanizara

o texto bíblico; deixemo-lo por sua própria

conta e o estrago será maior. Bayle apregoa,

tal qual o sacerdote kantiano: “não raciocineis,

mas crede”;67 em praça oposta estão Uriel e o

66 Bayle, loc. cit., p. 198. O leitor deve notar a semelhança deste trecho de Bayle com fragmento 259 dos Pensamentos de Pascal (São Paulo, Nova Cultural, 1998): “há os que não podem deixar, assim, de pensar e pensar tanto mais quanto lho proíbem. Esses desfazem-se das falsas religiões, e até da verdadeira, se não encontram razões sólidas”.67 Immanuel Kant, “Resposta à pergunta: que é esclarecimento” em Kant, Textos seletos, Petrópolis, Vozes, 1985, p. 104.

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57Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

SANTIAGO, HOmerO. O filósOfO Uriel da COsta. p. 43-65.

Exemplar: “tem coragem de fazer uso de teu

próprio entendimento”.68

oSiEr E o rESSôo da comUnidadE

O primeiro capítulo do estudo de Jean-

Pierre Osier esforça-se, desde a abertura, em

contrapor-se ao esquema de Pierre Bayle, o qual

vai dar lugar a outro, o da “impossível conversão”

ou “conversão única”. Vejamos:

Em Uriel a desilusão e a conversão fazem-se também, por assim dizer, instantaneamente: não descobre ele, tão logo circuncidado, mais exatamente “alguns dias depois”, que o judaísmo amsterdamês não responde ao que esperava? A questão que se coloca, infinitamente mais admirável, ainda que desprovida do elemento maravilhoso, parece antes ser esta: à ideia de uma sucessão de conversões não será preciso substituir uma conversão única que comandaria todas as outras, as quais não seriam senão manifestação confirmada daquela? [...] Não se pode considerar, com efeito, que tudo se passa como se Uriel confrontasse uma sorte de escolha fundamental, feita de uma vez por todas e correspondendo a certos valores éticos bastante simples (sobretudo o amor ao próximo) com diversas realidades produzidas pelas instituições religiosas, no caso a Igreja romana e a Sinagoga?69

Recém-chegado a Amsterdã, de fato, ao

que tudo indica logo Uriel desencantou-se com

a comunidade judaica. Na letra do Exemplar, “ao cabo de alguns dias tinha-me a experiência

mostrado que os costumes e ordenações (mores et ordinationes) dos judeus estavam longe de casar-

se com os preceitos de Moisés. Ora se cumpria

observar a Lei com pureza, segundo ela própria

requer, mal andaram os chamados Doutores dos

judeus com tantas invenções que de todo o ponto

destoam da Lei. Assim que não pude acabar comigo

que me contivesse, antes entendi que faria coisa do

agrado de Deus, se defendesse a Lei com isenção.”70

68 Kant, art. cit., p. 100.69 Osier, ob. cit., p. 22.70 Exemplar, p. 41.

Da desilusão imediata teria provindo o

germe que gradativamente plasmou o Exame das tradições phariseas, no qual a lei escrita,

interpretada ipsis litteris, é confrontada à

realidade comunitária e à lei oral, isto é, a

tradição interpretativa dos primeiros textos

sagrados, que no judaísmo determinam a vida

social e religiosa. O que Osier denomina em

1983, ano da edição de D’Uriel da Costa à Spinoza, conversão única é o mesmo que três

anos antes, em 1980, chamara de “judaísmo

individualista”;71 em passagens de seu livro as

palavras honor e hidalguia ganham especial

relevo e Uriel é dito homem “de identidade

e fidelidade a si mesmo”.72 Talvez esse apego

exagerado ao próprio eu demonstre que, na

verdade, Uriel pouco se importava com a

comunidade e seus problemas maiores (os

quais certamente não podem ser diminuídos);

igualmente, desconheceria ele as funções da lei

oral e da tradição interpretativa, encarregada

de fazer com que a “cada opinião nova, em

função das circunstâncias, o sentido do versículo

recomece”.73 A lei oral é a maneira de manter

viva e adaptável à história um núcleo básico de

textos sagrados, relidos a cada geração; Uriel

não sabia disso e intentara a cristalização dum

judaísmo mosaico em pleno XVII; de modo tal

que as acusações de saduceísmo, provindas

do rabinato, traduziriam “de maneira hostil

um desconhecimento, por Uriel, de uma das

especificidades da tradição judaica tanto como

uma certa simplicidade, quase simplista, em

matéria de hermenêutica.”74

71 Cf. Osier, “Um aspect du judaïsme individualiste d’Uriel da Costa”, Cahiers Spinoza, n. 3, inverno de 1979-1980, pp. 101-110.72 Osier, ob. cit., p. 24.73 Idem, p. 49.74 Idem, p. 54. Para uma introdução aos problemas da lei oral, ver Maurice Ruben Hayoun, La littérature rabbinique, Paris, PUF 1990.

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58 Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

SANTIAGO, HOmerO. O filósOfO Uriel da COsta. p. 43-65.

Tais considerações são ponderáveis. No

entanto, aceitando-as sem mais corremos o risco

de tão-somente fazer repercutir as acusações

da comunidade e, pior, calar os textos de Uriel.

Lançar a pecha de judeu individualista, hidalgo, desenraizar uma “fidelidade a si mesmo” é

não ir muito além da letra dos documentos

comunitários que a todo contendor qualificavam

de pertinaz “amigo de su propio entender”,

atribuindo descontentamentos e polêmicas à

falta de humildade, à soberba e ao orgulho. É

necessário observar que de soberbo para hidalgo, de “amigo de su propio entender” a individualista,

fica à impressão de que os argumentos somente

assumiram uma forma diversa, quiçá científica.

A pertinácia denunciada pelo herem cedeu lugar

ao “ato irredutível de uma liberdade afetada.”75

Porventura até fosse verdade dizer do

português que não dos maiores conhecedores da

tradição judaica; entretanto, tal desconhecimento

não pode implicar em plena justificação da lei

oral, combatida por ele, nem em irrelevar o

espírito de suas críticas. Todo pelo contrário,

convém acentuar o mores et ordinationes que

Uriel diz terem-no espantado e a isso acrescentar

a constatação do Exemplar, já mencionada:

“muitos há que andam hipocritamente, fingindo-

se por extremo religiosos, e iludem os incautos.”

Ele apercebe-se da função cumprida pela lei

oral como instrumento de dominação: em

certo momento histórico dela se apossara um

grupo e por ela institucionalizara a vida duma

comunidade; no caso amsterdamês, esse grupo

pode ser identificado ao círculo do Mahamad. O

sistema de reeducação é um exemplo disso e a

Epistola invectiva de Oróbio de Castro é um dos

muitos documentos que se pode referir como

fruto desse processo que na subserviência punha

a maior parte dos que, fugindo da Inquisição,

75 Idem, p. 23.

aportavam em Amsterdã em busca de abrigo. O

cárcere inquisitorial ou a pedagogia do rabinato:

a última escolha, obviamente, era a mais comum.

Ademais, é preciso dizer que Uriel não

estava “na situação desconfortável de quem

está contra todos”,76 nem seu entrevero com

o rabinato podem ser qualificados de “mal-

entendido”.77 Não estava só porque no próprio

meio judaico já houvera problemas de divisão

interna; em 1618, por exemplo, a criação da

terceira sinagoga de Amsterdã resultara de um

conflito em torno das tradições alimentares e,

na década de 30, outra controvérsia dividira a

comunidade opondo partidários e adversários

da tese da eternidade dos castigos, colocando na

ordem do dia a discussão sobre o uso dos textos

cabalísticos.78 Do mesmo modo, Uriel também

não estava só porque seus temas estão no seio da

discussão sobre a religião natural e os abusos da

religião revelada, os mesmos que terão enorme

ressonância no XVIII francês.

Em certos momentos o polemista Uriel

serve-se de esquemas cristãos para demonstrar

suas teses, como apregoa Osier? “Este recurso

[acusar de farisaica a comunidade que ele

imaginara judaica] é de fato um retorno a um

esquema cristão. Não que [...] Uriel volte a ser o

apologista do cristianismo, mas ele retorna por

sua conta à riquíssima panóplia das acusações

sustentadas pelos Pais e Doutores da Igreja no

que concerne à falsificação ou manipulação

dos textos pelos fariseus”.79 Tal despraçamento

– incapacidade de discernimento? – não seria

76 Idem, p. 54.77 Idem, p. 55.78 Cf. M. Kayserling, “Un conflit dans la communauté hispano-portugaise d’Amsterdam – ses conséquences”, Revue des études Juives, n. 43, 1901, pp. 275-276; Alexander Altmann, “Eternality of punishment: a theological controversy within the Amsterdam rabbinate in the thirties of the seventeenth century”, American Academy for Jewish Research Proceedings, Nova York, XL, 1972-1973, pp.1-88.79 Osier, ob. cit., p. 54.

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59Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

SANTIAGO, HOmerO. O filósOfO Uriel da COsta. p. 43-65.

todavia motivo para absolvermos os chefes

comunitários que condenaram Uriel da Costa. A

confusa mistura de elementos cristãos e judaicos

não era rara e encontramo-la abundantemente,

por exemplo, num texto como La certeza del camino, do ortodoxo Abraham Pereyra, em

que páginas inteiras de tratadistas cristãos

espanhóis –antissemitas inclusive – são utilizados

exaustivamente, e até mesmo as formas de

tratamento judaicas dão lugar às da Bíblia

cristã.80 Gerações de marranos promoveram o

sincretismo, mas este não era atacado quando,

como no caso de Pereyra, servia aos interesses do

Mahamad e à pedagogia do terror-esperança por

ele levada a cabo. No fundo, em meio a esquemas

cristãos e judaicos, a verdadeira questão parece

ser a do poder e da obediência, jamais o aventado

“fetichismo da lei escrita”.81

Move Uriel, ao menos no Exame das tradições phariseas, o abrupto confronto entre a

lei escrita e a realidade do judaísmo amsterdamês.

O texto é preservado, bem como sua verdade

revelada, e condenados os maus intérpretes que

dele se apropriaram; de algum modo, pois, Osier

está correto ao afirmar que o “fideísmo guarda

então todos os seus direitos”.82 Entretanto, no

Exemplar humanæ vitæ o texto bíblico surge nada

mais que obra de mãos humanas – e por isso

mesmo o fundamento moral é posto na razão e nos

simplíssimos sete preceitos noaquitas, universais

e livres das particularidades de cada seita. Assim,

afirmar que o portuense “ignora a filosofia ou a

recusa em razão de sua permanência no interior

de uma esfera de crença jamais confrontada com

seu outro, o conhecimento científico”,83 é um

80 Cf. Henry Méchoulan, Hispanidad y Judaismo en tiempos de Espinoza, edición de La certeza del camino de Abrahan Pereyra, Salamanca, Ediciones de la Universidad de Salamanca, 1987.81 Osier, ob. cit., p. 55.82 Idem, p. 43.83 Idem, p. 89.

tanto estranho, tanto mais se dessa maneira ele

é inteiramente desqualificado como pensador.

Aqui, ao contrário do que encontramos em Bayle,

é por contentar-se com uma crença que se torna

impossível a Uriel o filosofar.84

UriEl E a filoSofia

Seria Uriel da Costa um filósofo? É tarefa

difícil descobrir nele uma “filosofia moral”,

como quer Carolina M. Vasconcellos; seus

textos não são atravessados pelas fórmulas da

filosofia escolástica ou as do grande racionalismo

seiscentista. Se confinarmos a filosofia a tais

formatos, Uriel não é filósofo; falta-lhe a

cientificidade, recusada por Osier, e também a

profundidade especulativa. Uriel não é pensador

de sistemas metafísicos nem pesquisador da

filosofia da natureza; mesmo sua interpretação

bíblica seria pobre se comparada àquela lograda

pelo Tratado teológico-político de Espinosa.

Talvez questione o leitor: então, por que filósofo?

Não tratamos, quando muito, de um personagem

de puro interesse histórico? Ora, para negarmos o

status filosófico ao pensamento de Uriel, teríamos

de bem definir o que é designado pelo adjetivo;

somente assim poderíamos com certeza nomear

o filósofo e o não-filósofo e ir além da mera

atribuição tradicional. Na ausência de definições

tão estritas, não nos parece abusivo designar Uriel

como filósofo e sua filosofia como portadora dum

antifideísmo corajoso. Se no Exame o português

parecer ter mantido a fé inquebrantável na

verdade bíblica, por ela guiando a argumentação,

no Exemplar a razão universal ganhou lugar e o

pensamento desfez os laços que o prendiam à

autoridade transcendente e à ilusão.

Por que ler os textos de um judeu português

suicida? Ainda mais, por que o nomear filósofo?

Talvez possamos justificar nosso ponto de vista

84 Idem, ibidem.

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60 Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

SANTIAGO, HOmerO. O filósOfO Uriel da COsta. p. 43-65.

apelando ao belo estudo de Jacqueline Lagrée. Em

La raison ardente, a estudiosa propõe-se a estudar

homens cultivados que não formaram sistemas

filosóficos mas discutiram questões vivas de sua

época. Fossem ou não científicos ou filosóficos

seus textos, no XVII homens escreveram sobre

coisas que interessavam a outros homens; eram

médicos, políticos, etc., mas foi como filósofos

que intervieram nas questões mais relevantes de

sua época e, uns mais, outros menos, influíram

na opinião pública do tempo lançando as bases

de sustentação do século vindouro.

Mais de um século antes do evento que se chamou o pensamento das Luzes, podemos constatar a entrada em cena dos laicos no campo teológico-filosófico. Isto corresponde sem dúvida a um efeito da Reforma protestante, mas a extravasa largamente; além do que responde a uma lição do humanismo do Renascimento, que difundiu amplamente os grandes textos da cultura antiga para oferecer a cada um as chaves de uma reflexão pessoal e não dispensou ninguém do cuidado filosófico consigo, do cuidado de pensar, e, mais particularmente, de pensar sua vida. Esta última exigência é eminentemente uma exigência filosófica, é aquela também que permite ao homem viver verdadeiramente, cumprir sua natureza de homem, como se sabe desde Sócrates ou Aristóteles.”85

Dentre esses homens pomos Uriel. Nesse

sentido específico, ele é um filósofo e merece,

como tal, ser lido.

póS-EScrito

Este artigo foi originalmente publicado

em 1996 na revista Dissenso, organizada por um

grupo de estudantes de filosofia da USP. Naquela

oportunidade, trazia em rodapé a seguinte

apresentação:

Este texto é parte de uma pesquisa mais ampla acerca da comunidade judaica de Amsterdã e seus aspectos políticos, religiosos e culturais; as notas de trabalho ganharam a forma de

85 Jacqueline Lagrée, ob. cit., pp. 11-12.

artigo porque aos poucos franquearam seus limites originais e já não mais cabiam num rodapé. O leitor não deve perder de vista tais observações, de modo que seja compreensivo com as lacunas (inicialmente os temas aqui tratados pressupunham a descrição do universo judaico amsterdamês do XVII) e mesmo as digressões (tenha-se em conta que não intentam mais que sanar aquelas primeiras deficiências). Toda a primeira parte do texto cabe na última categoria, a das digressões, meramente documental mas imprescindível para a maioria dos leitores, desconhecedores do judaísmo seiscentista e, principalmente, da figura de Uriel da Costa; segue, pois, esta parte, a título de apresentação sumária; por isso mesmo dei-me a liberdade de citar abundantemente.

A referida investigação foi levada a cabo

entre os anos de 1994 e 1996, na maior parte

do tempo no âmbito do programa de iniciação

científica do Departamento de Filosofia da

FFLCH-USP e com o apoio de uma bolsa do

CNPq. Como sói ocorrer em tais circunstâncias,

a partir das leituras muito foi produzido para

consumo interno (apontamentos, fichamentos,

relatórios, etc.) e com os anos ganharam o seu

devido lugar em gavetas; uma ou outra coisa,

porém, foi aos poucos ganhando uma forma mais

elaborada, transformando-se verdadeiramente

em textos (ou com vistas à publicação ou para

serem apresentados sob a forma de seminários e

comunicações). É este último grupo de trabalhos

que, a certa altura, pareceu-nos valer a pena

oferecê-lo em parte aos leitores, já que à exceção

do artigo sobre Uriel todo o restante permaneceu

inédito. A distância temporal faz que aqueles

textos revelem, com desagradável frequência, a

sua condição de materiais de estudo; ainda assim,

pensamos que possam ser de alguma utilidade,

por abordar assuntos que não são tão correntes

nos estudos espinosanos brasileiros e nem que

seja apenas pelas citações de documentos,

pelos resumos de teses, pelas hipóteses aqui e

ali ventiladas. Ao leitor caberá decidir. A nós

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61Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

SANTIAGO, HOmerO. O filósOfO Uriel da COsta. p. 43-65.

resta apenas pedir sua benevolência por certos

trejeitos juvenis que não quisemos amputar

dos textos (e nem teríamos paciência para

tal); igualmente, para o fato de que, de modo

geral, eles preservam seu formato primeiro e

quase nunca houve correções ou atualização

bibliográfica, as exceções ficando por conta da

necessária revisão e do uso de algumas traduções

à época inexistentes.

O plano de publicação envolve cinco trabalhos:

1) A tradução de um artigo de Henri Méchoulan,

aparecida no último número da revista Conatus. Ainda que as teses desse estudioso não sejam

consensuais, o estudo interessa pela análise ampla

dos meandros do instrumento legal particular, o

herem, que se abateu sobre o jovem Espinosa;

2) O texto sobre Uriel da Costa e o Exemplar humanæ vitæ ora apresentado e com relação ao

qual insistimos que o leitor reporte-se às linhas

que virão mais abaixo;

3) Uma apresentação sumária da formação

e funcionamento da Inquisição moderna,

especialmente a ibérica, inicialmente esboçada

como um livrinho paradidático;

4) Uma análise do problema da ruptura

espinosana com a comunidade judaica, a partir

sobretudo dos clássicos trabalhos de I. S. Révah

e buscando pôr em xeque a imagem, difundida

a partir de Y. Yovel, de um “marrana da razão”;

5) Por fim, um texto que aparentemente foge

ao núcleo inicial de preocupações, mas que

se justifica aqui incluir-se na medida em que

aborda desdobramentos da imagem de Espinosa

cujos fundamentos (se é que precisa existir

fundamentos para uma imagem) formam-

se a partir do herem de 1657 e por isso nos

interessaram. Tendo em conta as imagens de ateu

de sistema e ateu virtuoso, devidas sobretudo a

Pierre Bayle, trata-se de algumas considerações

acerca das proximidades e distâncias entre

Espinosa e Diderot (e por extensão alguns outros

nomes das ditas Luzes).

Estes três últimos itens aparecerão em edições

sucessivas da revista Conatus.

k

Ao cogitar publicar textos tão antigos

prontamente afastamos a tentação de atualizá-los

ou corrigi-los, como dito há pouco. Não obstante,

no caso específico deste trabalho sobre Uriel da

Costa, ser-nos-ia impossível calar inteiramente os

ganhos que a interpretação dacostiana conheceu

nas duas últimas décadas. Com efeito, são de

primeira ordem e mudam substancialmente

o objeto principal de nosso estudo, ou seja, o

Exemplar humanæ vitæ, na medida em que vêm

corroborar a antiga desconfiança de que o texto

do opúsculo não é da própria lavra de Uriel.

O título chave para tal ponderação é

o importantíssimo estudo de Omero Proietti

sobre o Exemplar publicado em 2005.86 Com a

erudição e rigor habituais nos seus trabalhos,

o italiano nos fornece um amplo balanço da

problemática que cerca o Exemplar: apresentação

do problema, investigação da trajetória de

Uriel, avaliação de seus escritos e da história

editorial deles, importantes ponderações acerca

das conexões entre Uriel e Espinosa. O dado

que permite ao autor inovar decisivamente na

discussão foi a descoberta, ao início da década

de 90, de um texto de Uriel até então perdido,

o Exame das tradições phariseas – “talvez a obra

mais censurada da história humana”.87 O texto

perdera-se já na primeira metade do século XVII

e dele não se conheciam senão os três capítulos

incluídos no Tratado da immortalidade da alma de

Semuel da Silva publicado em 1623. Só em 1990

o erudito H. P. Salomon anunciou ter encontrado

86 Omero Proietti, Uriel da Costa e l’“Exemplar humanæ vitæ”, Macerata, Quodlibet, 2005.87 Idem, p. 38.

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62 Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

SANTIAGO, HOmerO. O filósOfO Uriel da COsta. p. 43-65.

na Biblioteca real de Copenhague um exemplar

do Exame, e três anos depois o deu a lume em:

Examination of Pharisaic traditions / Exame das tradições phariseas, facsimile of the unique copy in

the Royal Library of Copenhagen, supplemented

by Semuel da Silva’s Treatise of the Immortality of the Soul, translation, notes and introduction

by H.P. Salomon and I. S. D. Sassoon, Leiden,

Brill, 1993. Nós mesmos, quando da aparição

deste artigo, trazíamos ao leitor essa informação,

alertando porém não termos podido consultar

a referida edição (ver aqui a nota 39). O caso

é que, a partir da redescoberta de uma obra

de Uriel cuja autoria é indiscutível, conforme

argumenta Proietti, toda uma reviravolta faz-

se inevitável. É o que ele realiza em seu livro.

Tomando o Exame das tradições phariseas como

ponto arquimédico, põe-se a reavaliar todo o

córpus dacostiano e especialmente a questão da

autenticidade do Exemplar; é ainda o que lhe

permite retomar com novas armas o nexo Uriel-

Espinosa e avançar afirmações e hipóteses de

grande valor para a interpretação espinosana.

Tendo em mãos o Exame completo, por exemplo,

pode afirmar que “Espinosa conhecia o caso Uriel

da Costa, e que a sua batalha foi também uma

valorização da ‘herança’ dacostiana”.88 De fato,

sob muitos aspectos, o Exame revela um autor

que com uma presteza que não se imaginava

sabe servir-se de Flávio Josefo e trabalhar com

rigor histórico e filológico, ao mesmo tempo em

que enfrenta teses polêmicas e empenha-se em

refutar o livro de Daniel, opondo-se assim a toda

forma de messianismo. Em suma, um autor bem

mais profundo e radical que o pretenso narrador

Exemplar; ao contrário, note-se bem, do que

sugeria parte esmagadora da bibliografia sobre

que nos apoiamos ao redigir nosso artigo.

Bem, não é nosso propósito elaborar aqui

88 Idem, p. 24.

uma resenha completa do estudo de Omero

Proietti. Desejamos apenas, por honestidade

intelectual, admitir que a nosso ver essa obra vem

enfim confirmar a inautenticidade do Exemplar. É

até possível que Uriel tenha em algum momento

redigido um texto de intenções semelhantes,

mas seguro é que não o conhecemos e que o

que conhecemos (texto de que Proietti oferece

uma acuradíssima edição crítica) não provém

das mãos de Uriel, ao menos não tal qual. A

conclusão funda-se numa série de argumentos

mobilizados. Um primeiro refere-se em geral à

própria existência de um original latino. Uriel

sempre escrevera em português, por que num

momento de extrema intensidade (à beira do

suicídio ou desejoso de vingança) iria buscar

outra língua? Ademais, por que tal latim

apresenta torneios tão semelhantes aos do pastor

Philippe van Limborch, quem primeiro o deu

à luz? Outras razões ainda, bem mais fortes,

concernem diretamente ao conteúdo do opúsculo

e, resumidamente, são as seguintes:

1. Entre 1640 e 1643 circula um texto que se

declara a “verdadeira” autobiografia de Gabriel/

Uriel da Costa. Já em 1643, há duas cópias,

independentes e divergentes, particularmente

neste ponto: uma afirma o texto redigido quando

o autor está prestes a suicidar-se; a outra nega

a lei natural, invocada no próprio Exemplar, e

clama por vingança contra seus agressores.

2. O autor do Exemplar é bem informado:

conhece detalhes da vida de Uriel, utiliza o

Tratado da immortalidade da alma de Semuel da

Silva, cita o Exame; contudo ignora pormenores

fundamentais que são hoje demonstráveis por

meio de documentos, principalmente o período

de residência de Uriel em Hamburgo antes de

aportar em Amsterdã.

3. Os silêncios, lacunas, escamoteios do Exemplar não podem ser atribuídos à sensibilidade e à

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63Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

SANTIAGO, HOmerO. O filósOfO Uriel da COsta. p. 43-65.

dissimulação costumeiramente atribuídas aos

marranos; o autor não está na Espanha nem em

Portugal, além do que, pelo contrário, o próprio

autor declara escrever numa “cidade livre”,

Amsterdã.

4. O texto é composto por uma “trama de

criptocitações neotestamentárias (da Versio sixto-clementina)”, que forçadamente tenta assimilar o

personagem Uriel à figura de Cristo: perseguido,

chicoteado, quase crucificado.

5. A figura do fariseu no Exame é tomada a Flávio

Josefo e em nada coincide com o fariseu tal como

pintado no Exemplar.

6. A finalidade do Exemplar não é narrar a

vida de Uriel, mas conseguir que se retirem

das comunidades hebraicas qualquer tipo de

jurisdição penal.

Todos esses argumentos são exaustivamente

tratados no capítulo III do livro de Proietti, ao

lado de uma gama enorme de informações

sobre todos os outros aspectos relevantes da

vida de Uriel da Costa. Aqui, vale reiterar, os

apresentamos apenas em forma resumida a fim

de informar minimamente o leitor acerca do

estatuto atual do Exemplar humanæ vitæ.

Explanado isso, resta dirigirmo-nos a uma

questão que deve imediatamente sobrevir ao

leitor: por que ainda assim republicar o nosso

estudo de 1996? Não fica ele flagrantemente

“ultrapassado”, uma vez que seu objeto principal

é agora dado como não sendo de Uriel? Três

razões nos movem a pensar que o texto ainda

vale algo e, portanto, merece a republicação.

Primeiramente, cumpre ter em mente algumas

palavras de Proietti: o Exemplar, por sua história

e recepção, assemelha-se a uma “narrativa das

heroicas travessias do livre pensamento”.89

Proveniente ou não das mãos do Uriel, é certo

89 Idem, p. 14.

que o texto assumiu ao longo do tempo uma

função que não se reduzia apenas às tribulações

de seu pretenso autor; é um documento que, seja

de quem for, remete a um problema fundamental

da história do pensamento e que merece atenta

consideração. Em segundo lugar, o texto foi

recebido por séculos como sendo de Uriel e todos

os autores de que tratamos realmente davam

o texto como tal, inclusive Jean-Pierre Osier

adentrados os anos 80; quer dizer, na medida

em que o que mais nos interessou foi analisar

um pouco da recepção do Exemplar, parece-nos

que tal recepção é um fato que não se transforma

significativamente pela comprovação hodierna

da inautenticidade do texto. Por fim, ainda que

as razões anteriores não convençam, cremos que

o estudo possa valer ao menos pelas informações

que oferece ao leitor acerca de alguns aspectos

da história da comunidade judaica de Amsterdã

e sobre a vida desse personagem apaixonante

que foi Uriel da Costa; quanto Proietti nos ensina

sobre a consistência e a radicalidade do Exame das tradições phariseas não faz, ao menos para

nós, senão confirmar a validade do proposto à

época da redação deste estudo: o interesse de ler

filosoficamente Uriel da Costa.

Dezembro de 2014.

k k k

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64 Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

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67Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

(1) o aSno E a aStúcia inútil

Jean Buridan, mestre e reitor da Universidade

de Paris na primeira metade do século

XIV, tornou-se famoso por dar nome a um

asno. A anedota acerca do asno que, posto

entre dois feixes iguais de feno1, morre de

fome antes de conseguir resolver qual dos

dois deveria comer, aponta para algumas

questões fundamentais da história da filosofia.

Espinosa é um dos autores que trata dos temas

presentes na anedota, e o faz, como pretendo

mostrar, à revelia de influentes tradições do

pensamento.

Volto ao asno e ao reitor, antes de ir à

tradição e a Espinosa. Dizem os dicionários de

filosofia2 que a anedota não está, diretamente,

nos escr i tos de Jean Buridan. Mas os

argumentos que a ensejam lá estão. E a tese

é a seguinte3. Buridan afirma que a vontade

segue, necessariamente, o juízo do intelecto.

A vontade seguiria a posição do bem maior.

Entretanto, quando os bens são idênticos,

como no caso do feno, em igual quantidade

e qualidade e à mesma distância do asno, o

intelecto julga que ambos são iguais e a vontade,

que seguiria o intelecto, queda-se incapaz de

decidir. Ou seja, a escolha não ocorre. E o

asno, por seguir o juízo da inteligência, que

corretamente atesta a igualdade dos feixes

de feno, paradoxalmente age de modo, por

assim dizer, pouco inteligente. Por fim, o asno

morre em razão de não ser capaz de decidir.

O homem, porém, segundo Buridan, não

morreria de fome por ser capaz de suspender

o juízo do intelecto e julgar por outro bem

maior, a saber, a vida4.

Eis a questão de fundo do artigo, a qual

chega a Jean Buridan e se torna, a partir de

seus exemplos com asnos5, famosa por sua

comicidade. Procurarei mostrar como duas

filosofias, uma anterior e outra posterior a

Jean Buridan, tratam da questão, para, depois,

mostrar como Espinosa a aborda.

3 Sigo a versão de Abbagnano e de Robert Audi para a anedota.4 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia, op. cit., p. 83.5 AUDI, Robert. The Cambridge Dictionary of Philosophy, op. cit., p. 108. Buridan teria dado vários exemplos com asnos, ainda que o da anedota não apareça em sua obra. Ficou a anedota, entretanto, a ele atribuída.

luIz CaRlOS mONTaNS BRaga *

ESpinoSa E o aSno dE bUridan

* Doutorando em Filosofia pela PUCSP. Bolsista CAPES. Mestre pelo Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP. Bacharel e licenciado em Filosofia (USP) e bacharel em Direito (PUCSP).1 Há duas versões para a narrativa. Uma, que reproduzo acima, indica que o asno estaria entre dois feixes iguais de feno. Morre o asno por não ser capaz de decidir entre os dois feixes iguais. A outra diz que o asno estaria entre um feixe de feno e um pote de água, sedento e faminto. Entre beber água e comer, por não ser capaz de decidir, morre. A primeira versão está em: ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Vários tradutores. Revisão técnica de Alfredo Bosi e Ivone Castilho Bennedetti. 7ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 83. Também está em AUDI, Robert. The Cambridge Dictionary of Philosophy. Second Edition. Cambridge : Cambridge University Press, 1999. A segunda versão se encontra em: JAPIASSÚ, Hilton & MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 5ª edição. São Paulo: Zahar, 2008, p. 77.2 Ibid.. p. 77 para o dicionário de Japiassú; p. 83 para o dicionário de Abbagnano, p. 108 para o dicionário de Audi.

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68 Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

BRAGA, Luiz CARLos MontAns. Espinosa E o asno dE Buridan. p. 67-76.

(2) dUaS notaS SobrE a tradição

Tomo dois exemplos da tradição filosófica

para tratar do tema, a saber, Aristóteles e

Descartes. É claro que não intento, neste esboço

do que aqui chamei de tradição, dar conta, em

profundidade, da questão, tanto em Aristóteles

quanto em Descartes. Há bibliotecas sobre o tema.

O objetivo é, por contraste em face da tradição

aqui exemplificada por Aristóteles e Descartes,

mostrar como Espinosa aborda o tema levantado

pela anedota do asno de Buridan. A questão, em

suma, passa por entender como, nos três autores,

se relacionam intelecto e desejo ou vontade.

O intuito do livro VI da Ética a Nicômaco,

segundo um versado comentador, seria o de

completar o estudo da virtude moral com a

elucidação do conceito de prudência (phronesis)6.

No capítulo 1, como introdução ao tema geral,

Aristóteles relembra a doutrina do justo meio. Se

este seria agir conforme ordena a reta regra, seria

preciso iniciar o estudo pela noção de reta regra7.

A reta regra determina o justo meio e é obra da

prudência. A alma racional, para Aristóteles, tem

duas funções. Uma que sabe sobre o contingente

- parte calculadora -, a outra que sabe sobre o

necessário - parte científica. Eis, neste último caso,

o estado habitual do intelecto especulativo, o qual

trata do necessário, do que sempre é idêntico a si

mesmo. O estado habitual do intelecto prático, isto

é, da alma calculadora, é o que pode conhecer o

contingente. O que interessa nesta parte da obra

para Aristóteles é o que faz e como faz o intelecto

prático, o qual interessa à ação moral8. Trata-se

da função da alma que é capaz de conhecer o

contingente para melhor agir.

6 Sigo aqui, para a Ética a Nicômaco e a questão da phronesis, a interpretação de: PERINE, Marcelo. Phronesis: um conceito inoportuno? In: PERINE, Marcelo. Quatro Lições sobre a Ética de Aristóteles. São Paulo: Loyola, 2006, pp. 17-49, p. 21.7 Ibid. p. 23.8 Ibid. p. 23.

Aristóteles mostra, na ação moral, três

elementos dominantes9, a saber, a sensação, o

intelecto e o desejo (1139 a17-18). A sensação

não é causa e o intelecto, por si só, não move à

ação. Na Ética a Nicômaco10, afirma: “Portanto

a escolha ou é raciocínio desejante ou desejo

raciocinativo, e a origem de uma ação dessa

espécie é um homem.” (1139 b 5)11. Ou seja,

tal complexidade de desejo que raciocina e

raciocínio que deseja é o homem. O princípio ou

causa da ação é a decisão, a qual inclui desejo

de um fim e cálculo de meios para que seja

alcançado12.

Mas para que a ação seja moralmente

virtuosa, é preciso que os meios sejam os

adequados, bem como os fins. Portanto, a

doutrina aristotélica da prudência no decidir

não autoriza nenhuma separação entre meios

e fins na ação humana13. Compreende, como

afirma um comentador, “[...] os meios-para-

o-fim e o fim-para-os-meios como um todo,

para que a decisão seja virtuosa, isto é, fruto

de um pensamento verdadeiro e de um desejo

reto.”14

A definição de phronesis pode ser dada

como “[...] um estado habitual cognitivo, isto é,

racional e, por isso, é uma virtude intelectual, que,

contudo, pressupõe seja um estado desiderativo,

portanto, não racional, seja um estado cognitivo

não-racional, que é, justamente, a experiência.”15

9 Ibid.p. 23.10 Uso duas edições, cotejadas entre si: ARISTOTLE. The Nicomachean Ethics. New York: Penguin Books, [1976] 2004. _______. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1984. Uso, ao citar, a numeração universal.11 Na versão em inglês, acima indicada: “Hence choice is either appetitive intellect or intellectual appetition; and man is a principle of this kind”.12 PERINE, Marcelo. Phronesis: um conceito inoportuno?, op. cit., p. 23.13 Ibid. p. 24.14 Ibid. p. 24.15 Ibid. p. 28.

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69Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

BRAGA, Luiz CARLos MontAns. Espinosa E o asno dE Buridan. p. 67-76.

Conclui Perine que, sendo os objetos da phronesis os bens humanos, ou seja, aqueles que podem ser

submetidos à deliberação, o phronimos somente

pode ser um deliberador, cuja função é deliberar

bem (Ética a Nicômaco, 1141 b 10)16. Assim, a

deliberação tem um campo bem preciso, a saber,

não versa sobre as coisas que não podem ser

diferentes do que são (necessárias), nem sobre

coisas que não sejam ordenadas a um fim que

não seja um bem, o qual é objeto da ação17.

Em Aristóteles, portanto, há uma recíproca

influência do desejo no intelecto e deste no

desejo, ambos considerando fins e meios como

um todo, para que a ação possa ser considerada

moralmente boa. O homem, como diz o autor na

Ética a Nicômaco, é esta complexidade desejo-

intelecto (1139 b 5). A sabedoria prática, capaz

de conhecer a melhor decisão no campo do

contingente, é a phronesis, a qual, como visto

em panorama, é a união mesma entre desejo que

raciocina e intelecto que deseja.

k

Em Descartes, outro exemplo da tradição a

ser refutada por Espinosa, tem-se o que segue acerca

dos conceitos de vontade e entendimento. Afirma

o autor, na quarta das Meditações, precisamente

a que trata do tema ‘Do Verdadeiro e do Falso’, e

envereda pela questão da vontade livre:

E, em seguida, olhando-me de mais perto e considerando quais são meus erros (que apenas testemunham haver imperfeição em mim), descubro que dependem do concurso de duas causas, a saber, do poder de conhecer que existe em mim e do poder de escolher, ou seja, meu livre-arbítrio; isto é, de meu entendimento e conjuntamente de minha

16 Ibid. p. 28. Diz Aristóteles na Ética a Nicômaco: “A sabedoria prática [phronesis] [...] versa sobre coisas humanas, e coisas que podem ser objeto de deliberação [diferentemente das coisas necessárias, que são objeto de ciência, epistéme]; pois dizemos que essa é acima de tudo a obra do homem dotado de sabedoria prática: deliberar bem.” (1141 b 5-10).17 Ibid. p. 28.

vontade. Isto porque, só pelo entendimento, não asseguro nem nego coisa alguma, mas apenas concebo as ideias das coisas que posso assegurar ou negar. [...] Não posso tampouco me lastimar de que Deus não me tenha dado um livre-arbítrio ou uma vontade bastante ampla e perfeita, visto que, com efeito, eu a experimento tão vaga e tão extensa que ela não está encerrada em quaisquer limites. [...] Pois, por exemplo, se considero a faculdade de conceber que há em mim, acho que ela é de uma extensão muito pequena e grandemente limitada e, ao mesmo tempo, eu me represento a ideia de uma outra faculdade mais ampla e mesmo infinita; [...] Resta tão-somente a vontade, que eu sinto ser em mim tão grande, que não concebo absolutamente a ideia de nenhuma outra mais ampla e mais extensa: de sorte que é principalmente ela que me faz conhecer que eu trago a imagem e a semelhança de Deus.18

O que aponta o excerto quanto às questões

do intelecto e da vontade? Primeiro ponto:

o entendimento, para o homem, é limitado.

Não é possível conhecer tudo. E, ainda, não

é a faculdade do entendimento que leva à

ação. É outra, a saber, a da vontade. E esta,

segundo aponta Descartes, é entendida como

livre-arbítrio, a qual Descartes entende como

sendo ampla e perfeita, sem qualquer limite. A

vontade, no homem, por ser tão ampla, mostraria

a semelhança entre o homem e Deus, segundo

o autor, uma vez que em Deus a vontade e o

entendimento são infinitos e ilimitados, ao passo

que no homem apenas a vontade está próxima

a este ilimitado, diferentemente do que ocorre

com o entendimento. Outro ponto que o excerto

destaca é o de que o poder de escolher não

depende do intelecto, mas da vontade, entendida

como livre e ilimitada. Em suma, a faculdade

18 DESCARTES. Meditações. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Nova Cultural, 1996 (Coleção Os Pensadores), pp. 300-302. Descartes também trata da questão na Carta a Mesland, de 09 de fevereiro de 1645. DESCARTES. Correspondance: julho de 1643 - abril de 1647. Ed. Adam et Tannery. Paris: Vrin, 1989, vol. IV, p. 173-175. Tradução em KRITERION, Belo Horizonte, nº 117, jun./2008, pp. 235-242.

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BRAGA, Luiz CARLos MontAns. Espinosa E o asno dE Buridan. p. 67-76.

do intelecto é o poder de conhecer, ao passo que

a faculdade da vontade é o poder de escolher.

Aquela, limitada; esta, ilimitada. Por não conhecer

bem, o homem pode ser levado ao erro.

Em As Paixões da Alma, por seu turno, a

vontade é conceituada como uma das funções da

alma19. E esta função, que Descartes chama de

ações da alma, equivale a “[...] todas as nossas

vontades [...]” 20. A outra função (as paixões)

define-se pelas espécies de percepções ou

conhecimentos existentes em nós21. A vontade,

acrescenta Descartes, é de duas espécies. Umas

terminam na alma mesma, como “[...] quando

queremos amar a Deus [...]” 22, outras “[...] são

ações que terminam em nosso corpo [...]” 23.

O exemplo de Descartes é o de que isso ocorre

quando temos vontade de passear. Ou seja, pelo

fato de termos vontade de passear, as pernas

se mexem como resultado dessa vontade. Na

mesma linha conceitual das Meditações, a

vontade é entendida como “[...] de tal modo livre

que nunca pode ser compelida [...]” 24.

Ambos os autores focam na qualidade do

entendimento e no desejo ou na vontade como

mote da ação para tratar da questão da escolha.

Aristóteles postula a existência do contingente,

que é o campo do que é diferente de si mesmo

(pois igual a si mesmo é o necessário), e propõe

a virtude da prudência ou phronesis como sendo

aquela responsável pela melhor escolha. O

phronimos é o homem capaz de deliberar acerca

dos meios mais adequados para que se alcance o

fim adequado, ou seja, o bem. Para isso, há uma

mútua influência entre duas instâncias da alma

19 DESCARTES. As Paixões da Alma. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Nova Cultural, 1996 (Coleção Os Pensadores), p. 143 (artigo 17).20 Ibid. p. 143 (artigo 17).21 Ibid. p. 143 (artigo 17).22 Ibid. p. 143 (artigo 18).23 Ibid. p. 143 (artigo 18).24 Ibid. p. 155 (artigo 41).

que cuidam do cálculo deliberativo, a saber, o

desejo e o raciocínio. Este complexo é o homem

ao agir, o qual é tão mais prudente quanto mais

é capaz de escolher os melhores meios para

o melhor fim neste terreno do incerto que é

o contingente. Descartes, no que se refere ao

entendimento e à vontade, conclui que apenas

o entendimento pode conhecer, e é limitado

no homem, ao passo que a vontade, que leva

à ação, é ilimitada. O arbítrio é, em Descartes,

livre-arbítrio; o querer faz do homem imagem

de Deus, que tudo pode.

(3) dESEjo, vontadE E conhEcimEnto Em ESpinoSa

O tema da anedota do asno está presente

na filosofia espinosana. Mas, em face da tradição,

a solução espinosana demanda reformulações

conceituais bastante amplas. Nas linhas abaixo,

gostaria de lançar algumas notas sobre a posição

espinosana acerca da relação entre desejo,

vontade e conhecimento.

O primeiro ponto a ser compreendido em

Espinosa é sua completa reformulação do pano

de fundo da questão. Não casualmente seu livro

acerca da conduta, a Ética, tem como objeto da

primeira parte Deus (De Deo). Tema teológico

para a tradição, que Espinosa reformula de tal

maneira que o Deus judaico-cristão, se a Ética

fosse um espelho, nela não se reconheceria.

Com efeito, e para ser muitíssimo sumário, Deus

equivale à substância única e se identifica à

natureza, potência absoluta em que tudo o que

há se dá, ou melhor, tudo o que há é expressão25

da potência absolutamente infinita da substância

única (E I P 15 p. 31).

25 Para a questão do problema da passagem do infinito (Deus ou substância) ao finito (homem como modo finito da e na substância), ver: DELEUZE, Gilles. Spinoza et le problème de l’expression. Paris: Les éditions de Minuit, 1968.

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BRAGA, Luiz CARLos MontAns. Espinosa E o asno dE Buridan. p. 67-76.

O que tal tese implica para a questão

do homem, da vontade e da conduta? Analiso

partes da Ética III para lançar luz na questão. A

substância opera por estrita necessidade (E I P 33

p. 57; E I P 33 Dem p.57). Daí que não haja, do

ponto de vista da substância única, o contingente.

O homem sábio ou prudente (o phronimos) não

será, portanto, o de Aristóteles, uma vez que para

o estagirita este é o que age da melhor maneira

no terreno escorregadio do possível. Não havendo

contingência para Espinosa - a não ser como

vivência mental para cada homem26 -, a conduta

do homem somente pode ser determinada de

uma maneira definida. Esta posição implica várias

reconceitualizações no campo das teses filosóficas

acerca da conduta. De fato, como mostrarei a

seguir, não há livre-arbítrio em Espinosa, o que

não implica que não haja outras maneiras de

compreender a liberdade do homem. Esta não

será, como em Descartes, livre escolha nem,

como em Aristóteles, junção entre os conceitos

de desejo, intelecto, meios e fins.

A parte III da Ética pode auxiliar a

análise da questão. Em seu prefácio, Espinosa

se contrapõe às tradições que analisei acima,

sobretudo a cartesiana, ao afirmar que os que

escreveram “[...] sobre os afetos, e o modo de

vida dos homens parecem, em sua maioria, ter

tratado não de coisas naturais, que seguem as leis

comuns da natureza [communes naturae leges],

mas de coisas que estão fora dela.” (E III Pref

p. 161). E complementa: “Ou melhor, parecem

conceber o homem na natureza como um império

num império [imperium in imperio].” (E III Pref

26 Para a questão, ver: CHAUI, Marilena. Sobre o medo. In: Desejo, paixão e ação na Ética de Espinosa. São Paulo: Cia das Letras, 2011, pp. 133-172. Diz a autora: “Assim, embora a realidade seja constituída por uma ordem intrinsecamente necessária, nossa experiência não a percebe como tal e se realiza numa ordem imaginária em que prevalece a contingência de tudo o que é e de tudo o que acontece” p. 152.

p. 161). O pano de fundo acima indicado, a

saber, o da substância única, apresentado na

Ética I, aqui se apresenta com todas as suas

implicações. De fato, a substância equivale à

potência absoluta e à natureza. Deus sive natura.

Portanto, o homem, como modificação finita da

e na natureza, opera ou age de acordo com as

leis inscritas nesta mesma e única substância.

Por conseguinte, age e opera de acordo com as

leis de sua natureza mesma, entendida como

modificação da e na substância, uma vez que o

homem é concebido como um modo finito da

substância, uma intensidade de potência (E I P

28 p. 51; E I P 28 Dem p. 51).

De fato, contrapondo-se à tese da vontade

no homem como espelhando a vontade em Deus,

como ilimitada - a tese cartesiana -, Espinosa a

concebe como exercício, por assim dizer, das

leis da natureza humana na substância. Em

suma, a vontade não é livre, é determinada.

Como entender esta tese sem flertar com o

determinismo? Antes de aprofundar a questão,

aponto que Espinosa finda o prefácio à Ética III afirmando que tratará “[...] da natureza e da

virtude [viribus, força] dos afetos [...] por meio

do mesmo método pelo qual tratei [...] de Deus

e da mente. E considerarei as ações e os apetites

[appetitus] humanos exatamente como se fossem

uma questão de linhas, de superfícies ou de

corpos.” (E III Pref p. 163). Cito o fim do prefácio

uma vez que, como mostrarei a seguir, o desejo,

que é um dos afetos primários, será identificado

à vontade, e Espinosa procurará desvendar o

mecanismo de funcionamento dos afetos por

meio do mesmo método utilizado para conhecer

a natureza da substância única na Ética I.Fica claro, pois, pelo referido prefácio lido

à luz da Ética I, que Espinosa apresenta novos

meios para analisar a velha questão. Não mais

trabalha com os conceitos, para ele equívocos,

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BRAGA, Luiz CARLos MontAns. Espinosa E o asno dE Buridan. p. 67-76.

de vontade livre27, contingência, dentro e fora da

natureza, intelecto separado da vontade, etc., ou

seja, conceitos da tradição filosófica em face da

qual se contrapõe com reviravoltas conceituais

de alta voltagem. Substância única, homem como

parte da natureza, afetos como coisas naturais e

ação determinada de certo e determinado modo

dão o novo chão conceitual a partir do qual

Espinosa reconfigurará os antigos temas.

Tomo, para continuar a análise do desmonte

espinosano das teses da tradição, o veio do desejo,

que é, segundo Espinosa, um dos afetos primários,

ao lado da alegria e da tristeza (E III P 11 Esc pp.

177-179). Por meio desse caminho, será possível

verificar tanto a reformulação dos conceitos que

Espinosa utiliza para tratar da questão presente na

anedota do asno de Buridan, como a apresentação

de soluções ao campo da ação que se distanciam

daquelas propostas pela tradição. Em vez de rir

de um intelecto que, de tão astuto, queda-se

inerte e leva seu portador à morte por inanição,

o que Espinosa propõe com seus conceitos é

uma filosofia prática28, fundada na vida como vis (força) e entendida como modificação da potência

da substância expressa em cada homem como

tomando parte nela.

O desejo deve ser analisado à luz do

conceito de conatus (E III P 7 p. 175). De fato,

Espinosa, como decorrência da tese da natureza

de potência auto produtora da substância única,

concebe as coisas singulares como “[...] esforço

(conatus) pelo qual cada coisa se esforça para

perseverar em seu ser [...]” (E III P 7 p. 175). Ou

seja, é próprio de tudo o que há na substância

esforçar-se para perseverar em seu ser (in suo esse perseverare - E III P 7 p. 174). O homem,

como coisa singular, esforça-se, é conatus. Mas

27 A vontade livre não existe. Apenas a causa livre, entendida como Deus ou substância (E I P 32 e P 32 Dem p. 55).28 O termo é tomado de: DELEUZE, Gilles. Spinoza - Philosophie pratique. Paris: Les Éditions de Minuit, 1981.

Espinosa, ao tratar do esforço do homem, indica

que tal esforço é o mesmo que desejo, o qual

seria a própria essência atual de cada homem

(E III P 9 Esc p. 177). Appetitus e cupiditas (apetite e desejo) são a mesma coisa, com a

diferença de que este é o apetite de que se tem

consciência. E, então, Espinosa apresenta uma

de suas mais surpreendentes teses, a saber, a de

que “[...] não é por julgarmos uma coisa boa que

nos esforçamos por ela, que a queremos, que a

apetecemos, que a desejamos, mas, ao contrário,

é por nos esforçarmos por ela, por querê-la, por

apetecê-la, por desejá-la, que a julgamos boa.”

(E III P 9 Esc p. 177). Isto é, conatus (esforço), vontade, apetite e desejo são sinônimos para

Espinosa. E, ainda, o desejo é causa do que cada

homem julga ser bom. Não há um bom exterior

ao homem, a ser perseguido, mas é o que o desejo

julga bom que tem a natureza de bom para este

mesmo desejo. O bom é o útil, o que aumenta

a potência do homem, isto é, do homem como

desejo. Espinosa confirma a tese da identidade

entre desejo, apetite, vontade e conatus humano

na explicação da definição de desejo. Lá, afirma

não ver qualquer diferença entre apetite e desejo

(dando pouca importância à questão de o homem

estar consciente ou não do esforço), e diz que

procurou dar ao desejo uma definição “[...]

que abrangesse todos os esforços [conatus] da

natureza humana que designamos pelos nomes

de apetite [appetitus], vontade [voluntatis],

desejo [cupiditatis] ou impulso [impetus].” (E III

Def af 1 Explic p. 239).

Antes, na definição 1 dos afetos, ao

tratar do desejo, Espinosa o definiu como “[...]

a própria essência do homem, enquanto esta é

concebida como determinada, em virtude de uma

dada afecção qualquer de si própria, a agir de

alguma maneira.” (E III Def af 1 p. 237). Logo a

seguir, define a alegria como “[...] a passagem

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BRAGA, Luiz CARLos MontAns. Espinosa E o asno dE Buridan. p. 67-76.

[transitio] do homem de uma perfeição menor

para uma maior” e a tristeza como “[...] a

passagem [transitio] do homem de uma perfeição

maior para uma menor.” (E III Def af 2-3 p.

239). Ou seja, Espinosa está usando na Ética III a definição de substância como potência da

qual o homem é modificação, e tal modificação é

desejo. E tal desejo é transição de maior a menor

e de menor a maior potência, o que configura

a alegria como aumento da vis, da força ou da

potência, e a tristeza como diminuição da vis, da

força ou da potência de cada homem. Ou seja, a

transição do desejo é o mesmo que transição da

vontade, que é o mesmo que transição do apetite

ou do impulso.

Como, pelo aparato conceitual acima

desenhado, não pode haver no sistema espinosano

conceitos com os quais a tradição operava, a saber,

escolha entre possíveis, vontade livre separada do

entendimento, o qual seria finito, etc., a solução

espinosana para a questão do exercício do desejo

passa por outros conceitos, acima indicados.

Procurarei costurá-los abaixo, para mostrar, ainda

que muito sumariamente, como Espinosa concebe

a ação do homem na substância.

O homem é desejo, como visto. E o

desejo transita entre mais e menos potência,

configurando afetos de alegria e de tristeza.

O mundo afetivo de cada homem é a variação

ilimitada desses afetos primários, que são

manifestação do esforço (conatus) de cada

homem para manter sua situação de ser singular

ou modo finito da substância - manter sua ratio

de movimento e repouso. O homem é, portanto,

uma espécie de Janus multifronte, com janelas

pelas quais recebe influências afetivas de outros

homens e do mundo. Nesse caso, o do mundo

afetando o homem, o que existe são os afetos

passivos, segundo Espinosa. Os afetos passivos

podem aumentar a potência do homem quando

a coisa que o afeta com ele compõe. Há uma

espécie de união. Trata-se do bom encontro. Por

exemplo, o alimento que aumenta a potência do

corpo, ou o encontro com um amigo que causa

alegria. Podem, entretanto, diminuir a potência

do homem. O mau encontro com o veneno que

leva à dissolução do corpo, bem como o mau

encontro com o tirano ou com um inimigo29.

Mas há os afetos ativos, que Espinosa chama de

ações. Eles ocorrem quando o homem é capaz

de ser causa adequada de alguma das afecções

do corpo (E III Def 3 Explic p. 163), quando é

capaz, para isso, de conhecer adequadamente.

Entendo, na linha de Deleuze30, que as

maneiras de conhecer que Espinosa propõe (E

II P 40 Esc 2 pp. 133-135) são estruturalmente

ligadas à vis, à força e à potência e, portanto,

aos afetos. A capacidade do homem de ser

causa adequada de suas ações, por meio de

conhecimento do segundo e do terceiro gênero,

faz que o homem possa ser uma espécie de

caçador de bons encontros, isto é, aqueles que

levam à composição e ao aumento de potência.

É bom lembrar, nesse sentido do conceito

de conhecimento para Espinosa, que mesmo

o conhecimento do bom, seja por meio do

raciocínio (segundo gênero), seja por meio da

intuição (terceiro gênero) é, simultaneamente,

um afeto de alegria. Espinosa afirma, nesse

29 Os exemplos se inspiram em: DELEUZE, Gilles. Spinoza - Philosophie pratique. Paris: Les Éditions de Minuit, 1981, pp. 33-34.30 Ver, para este ponto: DELEUZE, Gilles. Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Seleção e Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Hélio Rebello Cardoso Júnior. Tradução Emanuel Angelo da Rocha Fragoso; Francisca E. B. de Castro, Hélio R. C. Júnior, Jefferson A. de Aquino. Fortaleza: ed. UECE, 2009, pp. 44-49. Os modos de conhecimento, propõe Deleuze, não são abstrações, mas maneiras de levar aos bons encontros. Há vida e vis (força) nos modos de conhecer que Espinosa concebe. E quanto mais o homem for capaz de conhecimento do segundo gênero e do terceiro (intuitivo), tanto mais será capaz de aumento de potência, de realidade, de bons encontros, de boas composições.

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sentido, sem rodeios: “[...] essa ideia [de alegria

ou de tristeza] está unida ao afeto da mesma

maneira que a mente está unida ao corpo [...],

isto é, ela não se distingue efetivamente do

próprio afeto [...] senão conceitualmente. Logo,

o conhecimento do bom e do mau nada mais é do

que o próprio afeto, à medida que dele estamos

conscientes.” (E IV P 8 Dem p. 277)31.

Portanto, o conhecimento está, em Espinosa,

estruturalmente ligado ao desejo como variação

positiva, para mais, da potência do homem. Ou

seja, o conhecimento do bom é simultaneamente

um afeto de alegria e um aumento da transição

da potência para um grau maior.

Espinosa reformula, desse modo, toda

uma tradição de pensamento. As filosofias

da consciência (como a cartesiana e as daí

derivadas), vistas pelas lentes espinosanas,

tocam apenas em uma ponta da questão. Com

efeito, o homem é, para além da consciência,

apetite, potência, e a consciência do que é bom ao

desejo – como conhecimento do bom –, não pode

ser separada do afeto de alegria e do aumento

de potência daí decorrentes.

O asno de Buridan, espinosanamente

falando, não morre em razão da indecisão

fundada na astúcia máxima, de efeito mínimo,

de um intelecto que informa a vontade. A vida

se impõe e o desejo define o que é mais útil à

coisa singular. No caso do homem, seja este

sábio ou ignorante, o desejo se impõe para que

aquela disposição de movimento e repouso que

caracteriza a coisa singular humana persevere no

ser. Porém, o homem capaz de conhecer o que

aumenta seu desejo, por meio do conhecimento

do segundo ou do terceiro gênero, melhor

compõe com seu semelhante e melhor exerce

31 Tomaz Tadeu, na edição que ora utilizo e indicada nas referências bibliográficas, ao final, traduz por ‘bem’ e ‘mal’. Alterei para ‘bom’ e ‘mau’.

sua natureza de intensidade de potência. Em

suma, desejo, vontade, conhecimento do bom

e exercício do conatus são conceitos que se

articulam. Uma filosofia da força da vida é a

proposta espinosana. Sem ilusões – como a do

livre-arbítrio ou a do intelecto separado dos

afetos –, as quais ainda são bastante eficazes

e presentes tanto nas filosofias quanto no

cotidiano.

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77Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

A discussão presente neste artigo depende

de um debate anterior, sobre a autonomia

dos atributos, passando pela crítica à

interpretação paralelista da proposição E2 P7.

No entanto, como dedicamos a este tema um

outro artigo1 desta mesma revista, remetemos o

leitor a ele, dispensando-nos de repeti-lo aqui, e

nos concentraremos no contexto em que se situa

a famosa frase “a experiência não ensinou o que

pode o corpo”. Esta surge no escólio da prop.

E3 P2, numa discussão baseada na experiência

(seja ingênua ou ensinante, como veremos

daqui a pouco), mais do que nas demonstrações

anteriores, que em si mesmas são suficientes

e não precisariam de outras explicações. Para

caracterizar este contexto, vamos apresentar

detalhadamente a referida proposição e seu

escólio, analisando as respectivas argumentações:

Nem o Corpo pode determinar a Mente a pensar, nem a Mente pode determinar o Corpo ao movimento, ao repouso ou a alguma outra coisa (se isso existe).(E3P22).

Esta proposição dirige-se, ao que tudo

indica, a Descartes, que abre o Tratado das Paixões da Alma dizendo que a paixão em um

sujeito corresponde sempre à ação em outro, e

que portanto as paixões na alma são uma ação do

sujeito que mais imediatamente age sobre ela, o

corpo3. Posteriormente, Descartes mostrará que a

mente, embora não produza movimento novo no

corpo, pode redirecionar livremente o movimento

que está nele. Se isto já era problemático na própria

filosofia cartesiana, devido à independência das

substâncias pensante e extensa, é simplesmente

impossível na filosofia espinosana, a qual mostrou

longamente a total autonomia dos atributos na

produção dos respectivos modos. Sendo assim, em

princípio, nem sequer seria necessário demonstrar

E3 P2, cuja evidência é patente. Espinosa, porém,

não só a demonstra como ainda lhe acrescenta

um longo escólio; não porque houvesse dúvidas

sobre a demonstração, mas devido à resistência

passional do leitor à evidência das demonstrações,

como aliás em o caso na maior parte dos escólios

da Ética.

Em si mesma, a demonstração de E3

P2 é muito simples e, em suas duas partes

(impossibilidade de o Corpo determinar a

Mente e impossibilidade de a Mente determinar

o Corpo), baseia-se em E2 P6 (Os modos de qualquer atributo têm como causa Deus enquanto considerado apenas sob aquele atributo de que são modos, e não enquanto considerado sob algum

3 “Depois, também considero que não notamos que haja algum sujeito que atue mais imediatamente contra nossa alma do que o corpo ao qual está unida, e que, por conseguinte, devemos pensar que aquilo que nela é uma paixão é comumente nele uma ação”. Descartes, R. As Paixões da Alma, art. 2, in Os Pensadores. São Paulo, Nova Cultural, 1987, vol. 1, pág. 77.

luÍS CéSaR guImaRÃES OlIVa *

dESpErtando do Sonho:a rEfUtação ExpErimEntal do império da mEntE SobrE o corpo

* Professor de História da Filosofia Moderna da USP e pesquisador do Grupo de Estudos Espinosanos da mesma universidade.1 Oliva, Luís César, Da independência dos atributos à ordenação das coisas in Revista Conatus, vol. 5, num. 9 – julho – 2011, Fortaleza, EDUECE, 2011.2 As citações da Ética seguirão a tradução coletiva desta obra pelo Grupo de Estudos Espinosanos da USP, tradução que está no prelo pela EDUSP.

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OLIVA, Luís CésAr GuImArães. DespertanDo Do sonho: a refutação experimental Do império Da mente sobre o corpo. p. 77-85.

outro), que já discutimos bastante no artigo

antes mencionado. Se a causa de um modo é

Deus considerado sob o atributo daquele modo,

o que é consequência direta do fato de que

todo atributo é concebido por si, sem os outros,

então a determinação do modo a agir deve dar-

se por intermédio da série causal no interior

do respectivo atributo, e nunca por um modo

de outro atributo. O que determina a Mente a

seu agir próprio, o pensar, deve ser outro modo

de pensar. O que determina o Corpo a seu agir

próprio, o movimento ou o repouso, deve ser

outro modo da extensão. Logo, a Mente não pode

determinar o corpo e, vice-versa, o corpo não

pode determinar a mente. Esta impossibilidade

é ontológica. Simples assim.

Ou não tão simples assim, daí a

necessidade de Espinosa prolongar a discussão no

escólio. Este escólio vai buscar, como dissemos,

conquistar a confiança do leitor para que avalie

equanimemente as proposições já demonstradas

sobre o tema. Seu início, porém, parece continuar

a demonstração:

Isto é mais claramente entendido pelo que foi dito no Escólio da Proposição 7 da parte 2, a saber, que a Mente e o Corpo são uma só e a mesma coisa que é concebida ora sob o atributo do Pensamento, ora sob o da Extensão. Donde ocorre que a ordem, ou seja, a concatenação das coisas, seja uma só, quer a natureza seja concebida sob um quer sob o outro atributo, e que, consequentemente, a ordem das ações e paixões de nosso Corpo seja, por natureza, simultânea com a ordem das ações e paixões da Mente. O que também é patente pela maneira como demonstramos a Proposição 12 da parte 2.

Este início explicita o lado positivo do enunciado

negativo da proposição 2. Se a proposição afirma

que o corpo não pode determinar a mente e

vice-versa, o escólio destaca que isto representa

a simultaneidade da ordem das ações e paixões

da mente e do corpo, derrubando com isso a

tese cartesiana do início do Tratado das Paixões: o que é paixão na alma é ação no corpo. A

remissão ao escólio de E2 P7 (que analisamos

longamente no artigo mencionado) ressalta a

unidade substancial, que produz a mesma ordem

em todos os atributos, sem que seja necessária

uma interação causal entre eles. Isto consolida

ontologicamente a simultaneidade do que

acontece à Mente e ao corpo, o que Espinosa

reforça com o apelo a E2 P12 (O que quer que aconteça no objeto da ideia que constitui a Mente humana deve ser percebido pela Mente humana, ou seja, dessa coisa dar-se-á necessariamente na Mente a ideia, isto é, se o objeto da ideia que constitui a Mente humana for corpo, nada poderá acontecer nesse corpo que não seja percebido pela Mente). Afinal, este conhecimento não se dá

posteriormente ao evento corporal, como se

este tocasse causalmente a mente humana. Ao

contrário, o que E2 P12 indica é a simultaneidade

dos acontecimentos corporais e mentais, e o

prova por meio do conhecimento divino do que

se passa no corpo. Este conhecimento não se

dá em Deus enquanto é infinito, mas enquanto

constitui a ideia do corpo em questão, ou seja,

a mente desse corpo, o que significa que a

própria mente humana, como ideia do corpo,

sabe o que se passa nele. Em suma, ou bem

por meio da unidade substancial invocada no

escólio de E2 P7, isto é, pelo ser formal da ideia

(mental) e do ideado (corporal), que constituem

um indivíduo por estarem no mesmo ponto

das respectivas cadeias, ou bem por meio do

conhecimento divino invocado em E2 P12,

isto é, pelo ser objetivo do evento corporal

que constitui a mente humana como parte do

intelecto divino; em ambos os casos temos a

simultaneidade, e não a interação causal. Como

vimos no referido artigo, essa simultaneidade

implica o que o corolário de E2 P7 chama de

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OLIVA, Luís CésAr GuImArães. DespertanDo Do sonho: a refutação experimental Do império Da mente sobre o corpo. p. 77-85.

igualdade da potência de pensar e da potência

de agir em Deus, mas não necessariamente a

correspondência biunívoca, termo a termo, dos

modos do pensamento e da extensão, o que

convencionou-se chamar de paralelismo. Todavia

esta é uma discussão da tradição interpretativa,

não do próprio Espinosa, que no escólio de E3 P2

está mais preocupado com o fato de que o senso

comum, e também o cartesianismo, mantêm a

ideia de uma interação alma-corpo, contra toda

a exaustiva demonstração geométrica da parte

2. Daí a necessidade de mudar o registro da

argumentação

A demonstração racional, como vimos,

não comove o interlocutor:

Ora, embora estas coisas se deem de tal maneira que não resta nenhuma razão de duvidar, contudo não creio, se não comprovar pela experiência, que eu possa induzir os homens a sopesá-las de ânimo imparcial, tão persuadidos estão de que o Corpo se move ou repousa pelo só comando da Mente e faz muitíssimas coisas que dependem da só vontade da Mente e da arte de excogitar.

A intenção de Espinosa é, portanto, comprovar

sua tese pela experiência, já que a demonstração

não bastou. Esta comprovação, porém, não é

uma demonstração positiva, mas a indicação,

pela própria experiência, de contra-argumentos

também experimentais aos preconceitos

do adversário supostamente baseados na

experiência. Daí que Espinosa oponha aos

falsos testemunhos da experiência a expressão

“a experiência ensina”. Isto mostra que a

demonstração racional não implica a pura e

simples exclusão da experiência como um modo

de percepção “perigoso”, pois isto só seria possível

eliminando uma parte da natureza humana, o que

Espinosa não cogita fazer. Cabe agora reavaliar a

experiência vaga, que Espinosa chamou na parte

2 de primeiro gênero de conhecimento, por meio

de casos de experiências que a contradigam, e

estabelecer assim uma experiência “ensinante”,

a qual, porém, nunca substitui a demonstração,

apenas lhe tira os obstáculos. Afinal, se uma

demonstração é verdadeira, a experiência

também deverá confirmá-la. Ou melhor, nem

tudo que é demonstrável é experimentável,

mas, havendo experiência, ela não pode estar

em desacordo com as conclusões demonstradas.

Assim começa esse processo de contrapor

a experiência à experiência, e aqui veremos a

questão que serve de tema a esse trabalho:

Com efeito, ninguém até aqui determinou o que o Corpo pode, isto é, a ninguém até aqui a experiência ensinou o que o Corpo pode fazer só pelas leis da natureza enquanto considerada apenas corpórea, e o que não pode fazer senão determinado pela Mente. Pois até aqui ninguém conheceu a estrutura do Corpo tão acuradamente que pudesse explicar todas as suas funções, para não mencionar o fato de que nos Animais são observadas muitas coisas que de longe superam a sagacidade humana, e que os sonâmbulos fazem no sono muitíssimas coisas que não ousariam na vigília; o que mostra suficientemente que o próprio Corpo, só pelas leis de sua natureza, pode fazer muitas coisas que deixam sua Mente admirada.

O que a experiência supostamente mostrou a

todos, ainda que não tenha ensinado de fato

a ninguém? Que o corpo se move ou repousa

conforme o comando da Mente, seja por meio

da vontade, entendida como faculdade absoluta

de querer ou não querer, seja pela chamada

arte de excogitar, entendida como a capacidade

absolutamente indeterminada de formar ideias.

A experiência, porém, não ensina isto e, para

poder fazê-lo, teria de nos revelar tudo que o

corpo pode fazer sozinho, sem a mente, e o que

ele só pode fazer sob o comando da Mente. Este

ensinamento dependeria de um conhecimento

acurado da estrutura do corpo, que desse

conta de todas as suas funções, o que ninguém

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OLIVA, Luís CésAr GuImArães. DespertanDo Do sonho: a refutação experimental Do império Da mente sobre o corpo. p. 77-85.

ofereceu até agora, nem mesmo Descartes, que

no Tratado das Paixões pretendeu explorar as

funções da alma e do corpo separadamente4.

Prova disso é a admiração da mente diante de

certas ações dos animais (segundo Descartes,

meros autômatos sem alma), que não podem

ser explicadas pelo conhecimento atual sobre os

corpos, ao mesmo tempo em que não podem ser

explicadas pela existência de uma mente, que

eles, pelo menos na perspectiva cartesiana, não

têm. Mas a admiração da Mente não se limita aos

corpos dos animais, mas estende-se também ao

próprio corpo humano em situações como a do

sonambulismo, em que os homens, sem a decisão

da mente, fazem coisas que os surpreendem

depois que acordam. Ao fazer, contra a decisão

da Mente acordada, coisas que habitualmente

fazemos por decisão, o sonâmbulo pode não

servir de argumento para a exclusão total da

possibilidade de que a Mente intervenha sobre

o corpo, mesmo durante o sono, porém basta

para pôr em xeque a ideia de que há um império

absoluto da Mente sobre o corpo, deixando em

aberto ainda a possibilidade, atestada antes

pelo caso dos animais, de que o próprio corpo

faça isto sozinho. É suficiente, para os fins do

escólio, mostrar que o preconceito inicial não é

totalmente corroborado pela experiência.

Por outro lado, mesmo no caso dos

movimentos voluntários não há como dizer que a

experiência garanta que há um império absoluto

da Mente:

Ademais, ninguém sabe de que maneira e por quais meios a Mente move o corpo, nem quantos graus de movimento pode atribuir ao corpo, nem com que rapidez pode movê-lo. Donde segue que quando os homens dizem

4 “De modo que não existe melhor caminho para chegar ao conhecimento de nossas paixões do que examinar a diferença que há entre a alma e o corpo, a fim de saber a qual dos dois se deve atribuir cada uma das funções existentes em nós.” Descartes, R. Op. Cit., art. 2, pág. 77.

que esta ou aquela ação se origina da Mente, a qual tem império sobre o Corpo, não sabem o que dizem, e nada outro fazem senão confessar, por belas palavras, que ignoram a causa daquela ação sem admirar-se disso.

A experiência não mostra como a Mente moveria

o corpo nas ações voluntárias, o que leva

Descartes a apelar para a problemática hipótese

da glândula pineal, quando na verdade há total

ignorância sobre esta suposta ação da Mente

sobre o corpo, bem como sobre a Mente e o corpo

em separado. A diferença com relação ao caso

dos animais e dos sonâmbulos é apenas a falta de

admiração a respeito, devido à familiaridade que

temos com estas ações, pois de fato a ignorância

das causas em todos esses casos é semelhante. É

curioso comparar esse trecho com outro famoso

excerto, agora do apêndice da parte 1:

E disso decorre que quem indaga as verdadeiras causas dos milagres e se empenha em entender as coisas naturais como o douto, e não em admirá-las como o estulto, é em toda parte tido como herético e ímpio e [assim] proclamado por aqueles que o vulgar adora como intérpretes da natureza e dos Deuses. Pois sabem que, suprimida a ignorância, é suprimido o estupor, isto é, o único meio que têm para argumentar e manter sua autoridade.(E1 AP.)

O que o escólio de E3 P2 apresenta é um novo

tipo de estultícia, para além da admiração

embasbacada dos que se refugiam na vontade

divina, o asilo da ignorância. Se a busca das

verdadeiras causas suprime esse estupor, fazendo

do sábio uma ameaça aos poderes constituídos,

por outro lado a eleição de falsas causas, como

o império da mente sobre o corpo, suprime o

mesmo estupor ocultando a ignorância. Trata-

se de estultícia ainda maior, pois atrás dessa

ausência de admiração está uma ignorância mais

arraigada, que ignora não apenas a natureza do

corpo, mas a si mesma.

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OLIVA, Luís CésAr GuImArães. DespertanDo Do sonho: a refutação experimental Do império Da mente sobre o corpo. p. 77-85.

Voltando ao escólio de E3 P2, vemos

na sequência a contra-argumentação, também

experimental, dos adversários:

Ora, dirão que, quer saibam quer não saibam por quais meios a Mente move o Corpo, contudo experimentam que o Corpo seria inerte caso a Mente não fosse apta a excogitar. Em seguida, dirão que experimentam estar no só poder da Mente tanto falar quanto calar e muitas outras coisas que por isso creem depender do decreto da Mente.

Supostamente sabemos por experiência

que o corpo ficaria inerte sem a intervenção dos

decretos da Mente, e sabemos mesmo que em

questões mais simples, como falar ou calar a boca,

é uma decisão da Mente que determina o corpo.

Se os casos anteriores apontavam uma certa

exterioridade em relação ao filósofo e ao leitor

que discutem sobre situações que ambos veem de

fora, agora lidamos com um sentimento interno

(diria Descartes: uma inclinação inevitável de

nossa natureza). Sentimos que a Mente nos

comanda.

Como confrontar tal experiência? Espinosa

começa pelo exemplo do corpo inerte sem a

mente:

Todavia, quanto ao primeiro, pergunto-lhes se a experiência também não ensina que, inversamente, se o Corpo fosse inerte, a Mente seria simultaneamente inepta para pensar. Pois, quando o Corpo repousa no sono, a Mente permanece adormecida junto com ele e não tem o poder de excogitar, como na vigília. Em seguida, creio que todos experimentaram que a Mente não é sempre igualmente apta a pensar sobre o mesmo objeto; porém, conforme o Corpo é mais apto para que nele se excite a imagem deste ou daquele objeto, assim a Mente será mais apta a contemplar um ou outro.

O que a experiência de fato nos ensina

é que a Mente seria também inerte sem o

corpo, pois no sono temos um poder limitado

de pensar o que quisermos, ficando limitados

por determinações que não compreendemos

perfeitamente. Neste sentido, a mente, pelo

menos quanto a seu suposto poder absoluto de

excogitar, fica tão adormecida quanto o corpo.

Além disso, a experiência nos ensina que é

tão mais fácil pensar sobre um objeto quanto

mais o imaginamos, ou seja, quanto mais o

corpo recebeu imagens deste objeto. Logo,

não se pode dizer que a Mente, pelo menos na

sua atividade imaginativa, não seja também

simultânea à atividade no corpo, aumentando

proporcionalmente seu poder junto com o dele.

O sentimento do império da mente é assim

questionado pela própria experiência, tanto no

sono quanto na vigília.

Os adversários, então, vêm com nova carga:

Ora, dirão que só das leis da natureza enquanto considerada apenas corpórea não podem ser deduzidas as causas dos edifícios, pinturas e outras coisas deste tipo, as quais se fazem somente pela arte humana, e que o Corpo humano, se não fosse determinado e conduzido pela Mente, não seria capaz de edificar um templo.

Há obras supostamente desproporcionais

às capacidades do corpo, portanto não poderiam

ser causadas só pelas leis da natureza corpórea,

fazendo necessário o apelo ao comando da Mente

sobre ele.

A resposta de Espinosa retoma, em parte,

os argumentos anteriores:

Na verdade, já mostrei que eles não sabem o que pode o Corpo e o que pode ser deduzido da só contemplação de sua natureza, e que experimentam ocorrer só pelas leis da natureza muitíssimas coisas que jamais teriam acreditado poder ocorrer senão pela direção da Mente, como são aquelas que fazem os sonâmbulos durante o sono e que os deixam admirados na vigília. Acrescento aqui a própria estrutura do Corpo humano, que de muito longe supera em artifício tudo o que é fabricado pela arte humana, para não mencionar, como mostrei acima, que da natureza considerada sob qualquer atributo seguem infinitas coisas.

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OLIVA, Luís CésAr GuImArães. DespertanDo Do sonho: a refutação experimental Do império Da mente sobre o corpo. p. 77-85.

Se os templos e as pinturas são admiráveis e

aparentemente desproporcionais às capacidades

da natureza corpórea, também o são as citadas

ações dos animais e dos sonâmbulos, seja

pela inexistência de Mente (no caso dos

animais, se tomados cartesianamente), seja por

contradizerem a Mente (no caso dos atos do

sonâmbulo que ele não faria desperto). Mas,

além disso, o próprio corpo não é resultado da

arte humana, portanto não pode reivindicar o

privilégio da mente, e é muito mais complexo e

sofisticado que qualquer obra humana. Assim não

há por que negar à natureza corpórea capacidades

na construção de templos ou pinturas, sendo

que ela pode construir algo muito mais difícil.

Mais uma vez vemos, por experiência, que a

experiência não ensina tudo o que pode o corpo.

E quanto à razão? Esta, demonstrativamente,

não impõe limites à natureza corpórea, cuja

potência é tão infinita quanto a do pensamento,

embora imponha limites aos corpos singulares,

necessariamente finitos. Afinal, da natureza, sob

qualquer atributo, foi demonstrado que seguem

infinitas coisas. A ignorância não nos autoriza,

portanto, a apelar para outro atributo.

Dito isto, Espinosa passa para o suposto

império da mente sobre o falar e o calar:

Além disso, quanto ao segundo, as coisas humanas dar-se-iam muito mais felizmente se nos homens estivesse igualmente o poder tanto de calar quanto de falar. Ora, a experiência ensina mais que suficientemente que os homens nada têm menos em seu poder do que a língua, e que nada podem menos do que moderar seus apetites; daí decorre que a maioria creia que fazemos livremente apenas o que apetecemos de leve, já que o apetite destas coisas pode ser facilmente diminuído pela memória de outra coisa que frequentemente recordamos; mas de jeito nenhum crê que fazemos livremente aquilo que apetecemos com um grande afeto e que não pode ser acalmado pela memória de outra coisa.

Ao contrário do que diziam os adversários, a

experiência ensina que os homens não têm total

império sobre a língua, e muito menos sobre os

apetites, que comandam a língua e outras operações

ditas voluntárias. Daí que frequentemente se creia

que as ações livres são aquelas comandadas por

apetites fracos, não porque elas se desvinculem

dos apetites, mas porque podem ser indiretamente

controladas pela memória de outras coisas, que

despertam apetites contrários aos primeiros. Mais

uma vez, a “maioria” é uma alusão ao próprio

Descartes no Tratado das Paixões:

Nossas paixões também não podem ser diretamente excitadas nem suprimidas pela ação de nossa vontade, mas podem sê-lo, indiretamente, pela representação das coisas que costumam estar unidas às paixões que queremos ter, e que são contrárias às que queremos rejeitar. (art.45)...E como a alma, tornando-se muito atenta a qualquer outra coisa, pode impedir-se de ouvir um pequeno ruído ou de sentir uma pequena dor, mas não pode impedir-se, do mesmo modo, de ouvir o trovão ou de sentir o fogo que queima a mão, assim pode sobrepujar facilmente as paixões menores, mas não as mais violentas e as mais fortes, a não ser depois que se apaziguou a emoção do sangue e dos espíritos(art. 46)5.

Não há, portanto, total independência da mente

diante dos apetites. Nem pelo que nossa experiência

nos mostra, nem pelo que diz o próprio Descartes,

que paradoxalmente afirmará pouco depois o poder

absoluto da alma sobre as paixões.

Por outro lado, mesmo esta percepção

parcial da limitação do império da Mente não

ocorreria e todos os homens creriam na liberdade

absoluta, não fosse por outra experiência

fundamental: o arrependimento.

A bem da verdade, se não tivessem experimentado que fazemos muitas coisas das quais depois nos arrependemos, e que frequentemente, ao nos defrontarmos com afetos contrários, vemos o melhor e seguimos

5 Descartes, R. Op. Cit., pág. 94.

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OLIVA, Luís CésAr GuImArães. DespertanDo Do sonho: a refutação experimental Do império Da mente sobre o corpo. p. 77-85.

o pior, nada os impediria de crer que tudo fazemos livremente. Assim o bebê crê apetecer livremente o leite, o menino irritado, querer vingança, e o medroso, a fuga. Por sua vez, o embriagado crê que fala por livre decreto da Mente aquilo que depois de sóbrio preferiria ter calado; assim o delirante, a tagarela, o menino e muitos outros de mesma farinha creem que falam por livre decreto da Mente, quando na verdade não podem conter o ímpeto que têm de falar, de tal maneira que a própria experiência, não menos claramente do que a razão, ensina que os homens creem-se livres só por causa disto: são cônscios de suas ações e ignorantes das causas pelas quais são determinados; e, além disso, ensina que os decretos da Mente não são nada outro que os próprios apetites, os quais, por isso, são variáveis de acordo com a variável disposição do Corpo.

A inconsciência dos apetites que os

movem leva os homens a afirmar a inexistência

de causas, o que, imaginariamente, é traduzido

como a existência de uma faculdade absoluta

e indeterminada de querer. Assim o bebê crê

apetecer livremente o leite porque não há afetos

contrários que lhe despertem a flutuação de um

lado a outro e, posteriormente, o arrependimento

(pela 27ª def. dos afetos: O arrependimento é a tristeza conjuntamente à ideia de um feito que cremos ter realizado por um livre decreto da Mente). Se há arrependimento no caso do

bêbado é porque julgava falar por livre decreto

da Mente e depois percebeu ter agido por

impulso. Os apetites, neste caso, são contrários

antes e depois da ação, porque a condição do

corpo mudou passado o efeito do álcool, o

que explicita ao sábio a verdadeira causa do

falar. Nem sempre isso ocorre com a tagarela

e o menino, cujas constituições corporais não

mudam tão rapidamente. Por isso, a experiência

ensina (ao invés de apenas “mostrar”) que esta

suposta liberdade não passa da consciência

das ações, associada à ignorância das causas

determinantes delas. A razão nos ensina isto

demonstrando que a volição, como modo

singular, é necessariamente determinada (E2

P48). A experiência nô-lo ensina revelando a

causalidade dos apetites, aos quais se reduzem

os chamados decretos da Mente. Mas tanto a

razão como a experiência do arrependimento

contradizem o suposto sentimento “irrefutável”

do império da mente sobre o falar.

E quanto ao caso daqueles que não são

tomados por um só afeto e oscilam antes do

decreto? Estariam mais libertos dos apetites?

Pelo contrário, estes ficam na flutuação do ânimo

pelas mesmas razões que tiram da flutuação

o bêbado e a tagarela: Pois cada um modera tudo por seu afeto, e aqueles que se defrontam com afetos contrários não sabem o que querem, ao passo que os que não lidam com nenhum são impelidos para um lado ou outro pelo menor impulso. Se a experiência confirma a verdade da

sentença de Ovídio (“Vejo o melhor e o aprovo,

sigo o pior”), é porque, entre afetos contrários,

o homem não sai da flutuação por uma decisão

racional desvinculada dos apetites. Ainda que

menos iludido que o bebê, que é dominado

por um só afeto, o homem que flutua crê-se

detentor da liberdade absoluta de escolher entre

os dois caminhos possíveis. A percepção de que

seguiu o pior, mesmo tendo compreendido

que o outro caminho era melhor, escancara o

poder dos apetites, simultâneos a um dos afetos

contrários que em dado momento se mostrou

mais forte, para além de todas as razões. Daí que

o arrependimento venha neste caso, tanto quanto

para o bêbado. Donde a conclusão:

Sem dúvida, tudo isso mostra com clareza que tanto o decreto da Mente quanto o apetite e a determinação do Corpo são simultâneos por natureza, ou melhor, são uma só e a mesma coisa que, quando considerada sob o atributo Pensamento e por ele explicada, denominamos decreto e, quando considerada sob o atributo Extensão e deduzida das leis do movimento e do repouso, chamamos determinação.

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OLIVA, Luís CésAr GuImArães. DespertanDo Do sonho: a refutação experimental Do império Da mente sobre o corpo. p. 77-85.

A simultaneidade entre as modificações dos

atributos extensão e pensamento, garantida

demonstrativamente em E2 P7, é assim

confirmada pela experiência, destruindo a ideia

de um império absoluto da Mente.

Porém há uma última cartada de Espinosa:

Pois há outra coisa que eu aqui gostaria de observar antes de tudo: nada podemos fazer por decreto da Mente se não o recordamos. P. ex. não podemos falar uma palavra se não a recordamos. Ademais, não está no livre poder da Mente lembrar-se ou esquecer-se de uma coisa. Portanto crê-se estar no poder da Mente apenas isto: podemos, pelo só decreto da Mente, falar ou calar sobre a coisa que recordamos.

Falar ou calar dependem de um acontecimento

mental, a recordação. Embora mental, este

acontecimento não é objeto de livre decisão da

mente, pois não escolhemos lembrar ou esquecer.

Ao contrário, a recordação é pré-condição da

decisão, de modo que a suposta manifestação

do império absoluto da mente fica condicionada

por algo que não comporta tal decisão. Ademais,

sabemos pelas proposições E2 P17 e P18 que a

imaginação e a memória dependem da ordem

das afecções do Corpo, o que serviria de pá de

cal para as pretensões de soberania da Mente,

que só decide se puder recordar.

Todavia não é esse o caminho que o

escólio toma, talvez por não querer basear-se

em demonstrações anteriores, mas só sobre a

experiência:

Entretanto, quando sonhamos falar, cremos fazê-lo por livre decreto da Mente, e contudo não falamos, ou, se falamos, é pelo movimento espontâneo do Corpo. Também sonhamos ocultar algo aos homens, e isso pelo mesmo decreto da Mente pelo qual, na vigília, calamos sobre o que sabemos. Enfim, sonhamos fazer por decreto da Mente algumas coisas que não ousamos na vigília, e por isso eu bem gostaria de saber se na Mente dão-se dois gêneros de decretos, os Fantásticos e os Livres. Porque, se não queremos enlouquecer a este ponto, cumpre necessariamente conceder que este

decreto da Mente tido por livre não se distingue da própria imaginação, ou seja, da memória, e não é nada além daquela afirmação que a ideia, enquanto é ideia, necessariamente envolve (ver Prop. 49 da parte 2). E, por conseguinte, estes decretos da Mente se originam nela com a mesma necessidade que as ideias das coisas existentes em ato. Por isso aqueles que creem que falam, ou calam, ou fazem o que quer que seja, por livre decreto da Mente, sonham de olhos abertos.

À experiência da decisão puramente

mental de falar ou calar, contrapõe-se a

experiência da decisão onírica. Enquanto

experiências, são iguais, exceto pelo fato de que,

no sonho, de fato não falamos, ou falamos algo

pelo movimento espontâneo do Corpo, seja no

caso de sonharmos que falamos ou calamos. Mas

estes decretos, oníricos ou reais, podem ir em

sentidos diferentes: podemos decidir em sonho

o que nunca aceitaríamos na vigília. Qual deles

é livre? Nenhum. Ambos surgem na dependência

da formação das imaginações na mente, a qual,

mesmo na vigília, é necessária e não livre, como

mostramos ao falar do vínculo entre decisão

e recordação. Deste ponto de vista, não há

diferença de natureza entre sonho e vigília: em

ambos há a formação necessária das imaginações

na Mente conforme a disposição do corpo. Esta

ideia imaginativa, como mostrou E2 P49, é uma

afirmação, que chamamos de decreto. Portanto, a

experiência indica que os decretos da Mente são

simultâneos, mas não causadores, dos apetites

e disposições do corpo, e, como estes, não são

livres, e sim necessários.

Ao crer em decretos livres, os homens

sonham de olhos abertos. Esta mesma expressão

aparece no Tratado da Correção do Intelecto,

quando Espinosa vai distinguir a ideia falsa da

ideia meramente fictícia: “pois entre elas não há nenhuma diferença senão que aquela (a falsa) supõe o assentimento, isto é, como já notamos, que nenhuma causa se oferece, enquanto se lhe

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deparam as representações, pela qual, como o que finge, possa inferir que elas não vêm das coisas de fora, o que quase nada mais é do que sonhar de olhos abertos, ou em estado de vigília.”6. Diferentemente da ideia fictícia, a

ideia falsa supõe assentimento; entenda-se:

há ignorância das causas que fazem daquelas

representações meras ficções, e por isso são

tomadas por verdadeiras. O sonho não revela as

causas que indicam que aquelas representações

oníricas não são verdadeiras, causas que se

desvendam quando acordamos. Crer em decretos

livres é ignorar as causas que os produzem,

fazendo das imaginações e recordações (que

operam tanto em sonho quanto em vigília)

realidades autodeterminadas. É razoável que

ignoremos as causas das imagens enquanto

sonhamos, mas não enquanto despertos, visto

que a própria experiência contradiz a ideia de

liberdade absoluta. Enquanto recusarmos a

razão e a experiência em prol do sentimento de

que a Mente domina absolutamente o corpo,

sonharemos de olhos abertos.

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6 Espinosa, B. Tratado da correção do intelecto. In Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1973, par. 66, pág. 66.

rEfErênciaS bibliográficaS

ESPINOSA, B. Ética. Tradução do grupo de

estudos espinosanos da USP, no prelo pela EDUSP.

Tratado da correção do intelecto. In Os

Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1973.

DESCARTES, R. As Paixões da Alma. In Os

Pensadores. São Paulo, Nova Cultural, 1987.

OLIVA, Luís César, Da independência dos atributos à ordenação das coisas in Revista Conatus, vol. 5,

num. 9 – julho – 2011, Fortaleza, EdUECE, 2011.

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87Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

Eu sempre vivi1 paralelamente duas

vidas, – uma, a da personagem que as

combinações dos elementos hereditários

fizeram com que eu me revestisse, num lugar

do espaço e numa hora do tempo, – a outra, a

do Ser sem rosto, sem nome, sem lugar, sem

século, que é a própria substância e o sopro de

cada vida. Mas destas duas consciências, distintas

e conjugadas, – uma epidérmica e fugaz, – a

outra, durável e profunda, – a primeira, como

é natural, recobriu a segunda, durante a maior

parte de minha infância, de minha juventude e,

até mesmo, de minha vida ativa e passional. É

apenas através de repentinas explosões que a

consciência subterrânea, conseguindo perfurar

a crosta dos dias, jorra como um jato ardente

de poço artesiano – só por alguns segundos –

para novamente desaparecer e ser sugada pelos

lábios da terra. Até mesmo nos chegados tempos

da maturidade, em que os golpes repetidos das

feridas da vida alargam as fissuras da crosta, a

pressão da alma interior abre ao Ser escondido

a trilha de seu thalweg e de seu leito de rio na

planície.

Antes de chegar neste estado de comunhão

direta, em que estou hoje, com a Vida universal,

eu vivi separado e próximo dela, ouvindo-a

caminhar comigo sob o rochedo – e, de repente,

de longe em longe, nos instantes que eu menos

esperava, eu era vivificado por estas irrupções

de jorros artesianos que batiam em meu rosto e

me derrubavam.

Eu constatei três destes jatos da alma, três

destas Cintilações, que encheram minhas veias com

o fogo que faz o coração do universo bater. A marca

da queimadura permaneceu tão viva em meu velho

corpo, que a prova, depois, rolou como um seixo,

até o minuto distante no qual ela se imprimia na

carne delicada e febril do adolescente.

Eu apenas deixarei aqui o relato da

segunda destas Cintilações: – as palavras de fogo

de Espinosa.

Entre dezesseis e dezoito anos.

Dois trágicos anos. Insignificantes, aos

olhos de quem veria ali apenas o estofo, a vida

familiar e escolar de um incerto adolescente.

Mas eles abrigavam os monstros devoradores do

desespero mortal. Foram nestes dias e não em

outros que eu toquei o fundo do nada.

– “Ó, amada juventude!” disse-me

amargamente Spitteler2 pensando na sua...

2 NT: O autor se refere ao escritor suíço alemão Carl Friedrich Georg Spiteller, Nobel de literatura em 1919.

a cintilação dE ESpinoSa*ROmaIN ROllaND

TRaDuçÃO E NOTaS DE aDRIaNa BaRIN DE azEVEDO E guIlhERmE IVO

tradUção

* ROLLAND, Romain. L’Éclair de Spinoza in Empédocle d’Agrigente suivi de L’Éclair de Spinoza. Paris: Éditions du Sablier, 1931, pp. 105-131.1 Estas páginas sobre Espinosa, que fazem parte de um capítulo de Confissões inéditas, intituladas: A Viagem Interior, nunca foram publicadas senão em uma longínqua revista da Ásia, em língua bengali: Prabasi (1926), pelo meu amigo, o professor Kalidas Nag. E, a respeito disso, quero contar um fato emocionante, que mostra, uma vez mais, o parentesco dos espíritos do Oriente e do Ocidente. Algumas semanas após a publicação, Kalidas Nag recebeu, de uma prisão da Índia, uma carta censurada de um jovem bengali, preso político. O prisioneiro, que havia lido o relato extasiante do adolescente francês, vendo filtrar através das grades de sua jaula o sol branco do Ser, havia se reconhecido no jovem irmão da Europa. E, de sua prisão desconhecida da Ásia, estendia a ele suas mãos, arrebatado. R. R.

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88 Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

ROLLAND, ROmAiN. A CintilAção de espinosA. (TRADuçãO De ADRiANA BARiN De AzeveDO e GuiLheRme ivO), p. 87-91.

Em algum lugar eu aí retornaria...

Sozinha, enquanto afundava, a tempestade de

Shakespeare, sublevando as camadas profundas

do morno oceano, trazia à superfície, por

redemoinhos, meus destroços, para mais uma

vez mergulhá-los na noite. Então eu direi o

companheiro que pra mim fora Hamlet, e o

comentário, grudado como uma hera a cada

palavra, que eu lhe consagrei...

Mas, no espírito operava-se uma

metamorfose. Potente e dilacerante. Eu

trocava de corpo e de alma, de voz como

de pensamento. Aos dezesseis anos, minha

inteligência estava ainda fechada às ideias

abstratas. Eu atravessava, às cegas, a aula de

filosofia, no liceu Saint-Louis, com Evelyn e

Darlu. Diante destas palavras sem rosto, sem

cor, sem cheiro, que as mãos não podiam

apalpar, que a boca não podia morder, que

se recusavam tanto à carícia quanto à ferida

dos sentidos, estas palavras-máquinas da

metafísica e das matemáticas, instrumentos

de gênio criados pelo cérebro, eu ficava sem

fôlego e hostil... “Fuori Barbari!...” – Ora,

em menos de um ano depois, na aula de filô

que eu estava repetindo em Louis-le-Grand,

para me preparar para a Normale3, eu me

tornara o primeiro da classe; e o excelente

Senhor Charpentier, meu mestre, alto e

gordo, alegrava-se ao ler para a sua turma

minhas dissertações em alto e bom tom: nelas,

aliás, traiçoeiramente, como um encenador,

eu fazia Malebranche dialogar com seu

cão... A porta estava aberta e eu alcançava

o limiar do reino do Informe, – sem dúvida

antropomorfizando-o – mas quantos filósofos

(e eu me refiro aos maiores) foram menos

ingênuos ou mais audaciosos!

3 NT: Referência ao estabelecimento de ensino superior e pesquisa francês: École Normale Supérieure.

O círculo filosófico era relativamente

restrito na classe de Filô A do Louis-le-Grand4.

Entretanto, cuidadosamente remexido e revirado.

Ele permanecia confinado entre as altas cercas do

jardim de Descartes, Versalhes do pensamento.

Eu fui substancialmente nutrido da medula

cartesiana, de dois a três anos. Acrescentei a

este pensamento o que eu havia surrupiado nos

cantos vizinhos (Filô B), na vinha de Burdeau,

as fantasmagorias pré-socráticas. Alguns grãos

caídos dos bicos destes grandes pássaros,

Jônicos e Trinácios, germinaram desde meu

“Empédocles de Agrigento”. – Mas o caminho

natural do espírito me conduzia àqueles que,

vindo do majestoso jardim murado de Descartes,

haviam aberto ali, por uma brecha, perspectivas

ilimitadas. Ele me conduzira diretamente, pelo

instinto, como um cão guiado pelo faro de duas

ou três palavras – até Espinosa.

Eu guardei preciosamente a edição que

virara rara, comprada sob as galerias do Odéon,

– que fora, nestes anos, meu elixir de vida eterna:

Obras de Espinosa, traduzidas por Émile Saisset, – com uma introdução crítica, – nova edição revista e aumentada, – Charpentier, 1872,

3 volumes in-12, encadernados de verde.

Embora meu pensamento esteja agora

emancipado do estrito racionalismo do mestre

Bento e que nele tenha reconhecido numerosos

paralogismos, para mim, Espinosa se mantém

sagrado, assim como são sagrados os Livros

Santos para quem neles creia; e eu não toco

nestes três volumes a não ser com um amor

piedoso. Eu nunca esquecerei que durante o

ciclone de minha adolescência, encontrei meu

refúgio no ninho profundo da Ética.

São quatro horas. Inverno. O dia cai. O

terno dia de um céu cinza e gelado. Estou sentado

4 NT: Liceu francês de ensino secundário, cuja origem remonta ao século XVI.

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89Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

ROLLAND, ROmAiN. A CintilAção de espinosA. (TRADuçãO De ADRiANA BARiN De AzeveDO e GuiLheRme ivO), p. 87-91.

diante de minha mesa encostada na parede,

perto da janela. Lá fora, a rua Michelet, deserta,

onde a borrasca se engolfa, e, separado por uma

grade, o fúnebre jardim da Escola de farmácia,

onde os raros visitantes parecem rezar diante

dos túmulos das plantas5. Mas eu nada vejo do

lado de fora. Estou murado. Murado no quarto

fechado. Murado em minha carapaça arrepiada

pelo frio, que penetra no cômodo não aquecido

e por baixo do sobretudo em que se encarquilha

meu corpo gelado. Murado na contemplação

do livro apoiado em meus dedos dormentes. Ao

redor de mim, sinto, morno halo, o triste dia que

morre, a implacável natureza, a morça da cidade

de pedra, e a dos meus pensamentos. O eterno

prisioneiro, amarrado a seu cárcere, arrasta co’

pé o balaço da preocupação, da luta pela vida,

a obsessão obstinada do exame, que envenena

tantas existências jovens, os fracassos repetidos,

a necessidade de crispar todas as suas forças

para o combate, a obrigação moral de vencer,

não apenas para viver, para salvar sua vida,

mas para salvar a vida dos seus, para responder

ao sacrifício absoluto deles, que colocaram

toda a sua sorte sobre uma carta, sobre minha

sorte. Infeliz criança debilitada, sobre quem

recai uma responsabilidade pesada demais, que

ela não pediu! Responsabilidade que sufoca e,

no entanto, lhe serve também de armadura;

esmagando seus ombros, ela lhe obriga a se

entesar. Sem ela, a criança se abandonaria ao

Sonho incessante que zune do fundo da colmeia

fechada. Mas sob a capa que a recobre, sua frágil

e nervosa energia se concentra, se tenciona,

angustiada na direção de um clarão que escapa

pelo estreito respiradouro...

O clarão escapa. Eu o fixo na noite de

meu porão. Eu o fixo entre as grades negras das

5 Depois, o verdor cresceu. Agora, o jardim tinha acabado de se abrir; todo ele pedregoso.

linhas do livro encadernado de verde. E sob a

fixidez perturbada de meu olhar alucinado, eis

que as grades se afastam e que surge o sol branco

da Substância. Metal em fusão que transborda

a taça de meus olhos e escorre em meu ser,

consumindo-o; e meu ser, como uma fonte, jorra

novamente na cuba.

Bastou uma página, a primeira, – de

quatro Definições, e de algumas centelhas de

fogo que saltaram, ao choque das sílex da Ética6.

Nenhuma ilusão tenho eu e não quero

fazer com que outros tenham. Não pretendo,

nem que essa virtude de milagre seja inerente

a palavras mágicas, nem que eu então tenha

apreendido o verdadeiro pensamento de

Espinosa. Da mesma maneira que eu, lendo o

longo primeiro volume da Introdução, honesta

e timorata, de Émile Saisset, não me atinha aos

argumentos amedrontados deste espiritualista,

e saltava alegremente por cima do seu guarda-

fogo no braseiro de que seu labor tinha por

objetivo defender-me – (Ingênuos contraditores!

É a eles que nos é devido conhecer e amar os

gênios proibidos!) – assim, no próprio texto

de Espinosa, eu descobria não a ele, mas a

mim mesmo ignorado. Na inscrição traçada no

portal da Ética, naquelas Definições em letras

flamejantes, eu decifrava, não o que ele dissera,

mas o que eu queria dizer, as palavras que meu

próprio pensamento de criança, em sua língua

inarticulada, se esforçava para soletrar. A gente

nunca lê um livro. A gente se lê através dos livros,

seja para se descobrir, seja para se controlar. E

os mais objetivos são os mais iludidos. O maior

livro não é aquele de uma comunicação que se

imprimiria no cérebro, tal como a mensagem

telegráfica sobre o rolo de papel, mas aquele

6 Ética, I, Definições 3, 4, 5, 6 e a Explicação que se segue. Centelhas arrancadas das proposições 15 e 16 da parte I, até o escólio do lema 7 da parte II.

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ROLLAND, ROmAiN. A CintilAção de espinosA. (TRADuçãO De ADRiANA BARiN De AzeveDO e GuiLheRme ivO), p. 87-91.

cujo choque vital desperta outras vidas e, de

uma à outra, propaga seu fogo que se alimenta

das essências diversas e, devindo incêndio, de

floresta em floresta se alastra.

Não tentarei aqui explicar o sentido libertador

do verdadeiro pensamento de Espinosa, mas aquele

que eu ali encontrei, pois desde a infância minha

obscura paixão, tateando, o buscava.

E não é, certamente, o mestre da ordem

geométrica – “Ethica ordine geometrico demonstrata” – tampouco o racionalista o que me conquistou em

Espinosa – algum gozo estético que me dão os jogos

magníficos da razão: – é o realista.

Como é estranho que este aspecto da

grande figura seja recoberto, até virar invisível,

pelo pesado verbalismo intelectual dos filósofos

de profissão! Como, ao primeiro olhar, não

captam eles este olhar, esta voz, embriagados

pelo Real!

É absolutamente necessário tirar todas as nossas ideias das coisas físicas, isto é, dos seres reais, indo, segundo a série das causas, de um ser real a um outro ser real, sem passar pelas coisas abstratas e universais, nem para concluir delas algo de real, nem para concluí-las de algum ser real: pois um e outro interrompem a verdadeira marcha do entendimento.

Não é um princípio de realismo alucinado,

que o Tratado do Entendimento dirige nestas

palavras, acrescentando logo depois, com a

imperturbável segurança do visionário:

… Mas é preciso observar que, pela série das causas e dos seres reais, não entendo aqui a série das coisas particulares e cambiantes, mas apenas a série das coisas fixas e eternas.7

“As coisas fixas e eternas” são “reais”.

Elas são o mais real. E tudo o que é real é

individual. “As coisas fixas e eternas” são

7 “Per realitatem et perfectionem idem intelligo” [“O mesmo entendo por realidade e perfeição”] (E., II, def. 6).

“particulares” 8. Nada de abstrações. Nada de

Essências. Nada de Seres. Tudo é ser: – e os

Modos inumeráveis e finitos; e a infinidade dos

Atributos infinitos; e o Ser dos seres, a Substância,

“o Ser único, infinito, o ser que é todo o ser, e fora do qual nada há” 9

Vertigem!... Vinho de fogo!... Minha prisão

se abre. Eis, portanto, a resposta, obscuramente

concebida na dor e no desespero, invocada por

gritos de paixão de asas quebradas, obstinadamente

buscada, querida, nas mortificações e nas lágrimas

de sangue, ei-la radiante, a resposta ao enigma

da Esfinge, que me abraça desde a infância – à

antinomia opressora entre a imensidão de meu ser

interior e a masmorra de meu indivíduo, que me

humilha e que me sufoca! “Natureza Naturante” e

“natureza naturada”10... É a mesma. “Tudo o que é, é em Deus”11. – E eu também, eu sou em Deus! Do

meu quarto gelado, onde cai a noite de inverno,

evado-me no abismo da Substância, no sol branco

do Ser.

Horizontes inauditos! Meu sonho, mesmo

em seus voos mais delirantes, foi ultrapassado.

Não somente meu corpo e meu espírito, meu

universo, banham-se em mares sem beiras,

também a Extensão, o Pensamento, cujo

entorno nenhuma caravela poderá dar a

volta. Porém, na insondável imensidão, ouço

rumorejarem, ao infinito, outros mares, outros

mares desconhecidos, Atributos inomináveis,

inconcebíveis, ao infinito. E todos estão

contidos no Oceano do Ser. Entre seu polegar

e o mindinho, eles estão à larga. A intuição

de Espinosa abre os céus fechados, – de dois

séculos adiante, pioneira dos conquistadores da

ciência moderna. E se, nestes Novos Mundos, ela

sabe e nos diz que, sob a nossa forma humana,

8 P. 329.9 P.329.10 E., I, esc. até 29.11 E., I, 15.

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ROLLAND, ROmAiN. A CintilAção de espinosA. (TRADuçãO De ADRiANA BARiN De AzeveDO e GuiLheRme ivO), p. 87-91.

jamais nos aprochegaremos, ela nos comunica a

embriaguez da certeza que eles existem, que lá

estão, perto de nós: isso não é apenas um fato

do conhecimento, mas a batida do coração de

uma coexistência. Enriquecimento prodigioso

de meu universo, há apenas um instante

estrangulado na gaiola de meu frágil peito! E

meu coração não sofre pela sua enormidade. As

asas estendidas, planando sobre estes espaços,

sopro a sopro, cara a cara, fixando o olhar,

sem pestanejar, da Face onipresente – “Facies totius universi”12 – eu me sinto sustentado pela

infalível mão da Livre Necessidade, que emana

do Deus. Não vou tombar. Pois sou dele. Minha

queda será a dele...

Si una pars materiae annihilaretur, simul tota Extensio evanesceret...13

É tão somente Nele que posso tombar.

Estou calmo. Tudo está calmo. Eu gozo de minha

plenitude e de minha harmonia...

… Possuindo, por uma espécie de necessidade eterna, o conhecimento de mim mesmo e de Deus e das coisas, jamais cesso de ser; e a verdadeira paz da alma, eu a possuo para sempre.

Mas estas últimas linhas da Ética, não é

preciso lê-las – e eu não as lia – com os olhos frios

da inteligência. É necessário levar a elas a paixão

de seu coração e o ardor de seus sentidos. É

preciso participar do espasmo desta “Beatitude”,

assim como ele a nomeia, nosso Krishna da

Europa, e que é “um amor”14 e uma volúpia – o

mais voluptuoso dos gozos humanos:

Æternitatem, hoc est, infinitam existendi, sive, invita latinitate, essendi fruitionem.15

12 Carta XLIV a Schuller. [Em português, “Figura do universo inteiro”; e a carta, na verdade, é a de número LXIV.].13 Carta IV a Oldenburg. [Em português, “Se uma única parte da matéria se aniquilasse, ao mesmo tempo toda a Extensão desapareceria”.].14 “O amor divino ou a beatitude...”.15 Carta XII a L. Mayer [Em português, “Eternidade, isto é, fruição infinita do existir ou, malgrado o latinismo, do ser.”].

Degustem o sabor sensual deste latim

bárbaro; “essendi fruitio”!... Com meus olhos,

com minhas mãos, com minha língua, com todos

os poros de meu pensamento, eu o saboreei. Eu

abracei o Ser.

Ó riso de Zaratustra! Eu não esperei

Nietzsche pra te conhecer. Aqui tu ressoas, mas

em que harmonias mais belas e mais plenas!

E como elas são próximas daquelas da Ode à Alegria!...

A alegria é uma paixão que aumenta ou favorece a potência do corpo... A alegria é boa... O contentamento não pode ter excessos e ele é sempre bom ... O riso é um puro sentimento de alegria, e ele não pode ter excessos, e ele é bom... Quanto mais temos alegria, mais temos perfeição...16

... Desfrutar da comida, dos perfumes,

das cores, das belas vestimentas, da música, dos

jogos, dos espetáculos e de todos os divertimentos

que cada um pode dar a si mesmo, sem prejuízo

alheio...

... Servir-se das coisas da vida, e delas deleitar-se o quanto possível... Unir-se aos outros

e se empenhar na tarefa de uni-los, – pois tudo aquilo que tende a uni-los é bom... – esforçar-se por partilhar sua alegria com os outros...17 – Unir-se, em pleno conhecimento, com toda a natureza...18

Seid umschlungen, Millionem!...

Abracemo-nos, milhares de seres!

Julho de 1924

(Agradecemos a EVaNDRO maCIEl por interceder junto ao Instituto Romain Rolland solicitando um

exemplar deste texto já esgotado e, consequentemente, agradecemos ao Instituto por ter acolhido e autorizado

esta tradução. Além disso, gostaríamos também de agradecer à sensível contribuição de luIz ORlaNDI ao

longo de toda a tradução por suas sugestões quanto a termos e quanto ao estilo.)

16 Ética: IV, 41, 42, 45, escólio.17 Ética, IV, 40. 18 Reforma do Entendimento.

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Spinoza and thE paradox of political frEEdom

aNDRé SaNTOS CampOS

Abstract

According to the ‘Paradox of Freedom’, individuals are free only if they participate

in the making of a political community, which requires obedience to a sovereign;

the sovereign, in turn, can only be and remain a sovereign insofar as he is obeyed;

and obedience is more and more assured the freer individuals are in the making

of their political community. The paradox is that freedom can only be achieved

by obedience, which is usually regarded as the contrary of freedom. I will try to

show that Spinoza tackles this problem directly in both his political treatises, and

that both seem to express one same theoretical vision of what political freedom is,

albeit through different formulations. Spinoza’s solution combines a set of different

criteria for assessing political freedom, both from the viewpoint of the individual

citizen and of the State, thus presenting a complex scale for measuring freedom

in degrees. He is able thus to make different types of freedom compatible with

different types of obedience.

Keywords

Spinoza. Freedom. Paradox. Political Treatise. Theological-Political Treatise.

Resumo

Segundo o paradoxo da liberdade, os indivíduos são livres apenas na medida

em que participam de alguma maneira na atividade política da comunidade,

o que requer obediência a um soberano; o soberano, por seu turno, apenas

se mantém soberano enquanto for obedecido; e a obediência é tanto mais

reforçada quão mais livres forem os cidadãos na sua participação política.

Assim, a liberdade só é atingida através de um reforço da obediência a outrem,

a qual é vista numa certa tradição como o oposto da liberdade. Tentar-se-á

demonstrar aqui que Spinoza aborda este problema em ambos os seus tratados

políticos e que ambos, apesar das suas inúmeras diferenças, parecem exprimir

uma mesma posição teórica sobre a liberdade. A solução spinozana combina

diferentes critérios para a aferição da liberdade política, quer do ponto de vista

resumos dos artiGos

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do cidadão, quer do ponto de vista do Estado, no que constitui uma escala

complexa de medição da liberdade em graus. Consegue assim compatibilizar

diferentes tipos de liberdade com diferentes tipos de obediência.

Palavras-Chave

Spinoza. Liberdade. Paradoxo. Tratado Político. Tratado Teológico-Político.

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a libErdadE Em Spinoza

aNTONIO BapTISTa gONçalVES

Resumo

A liberdade inexiste para Baruch Spinoza. O autor é um racionalista e, portanto,

se preocupa com as novas noções em sua época acerca do universo. Com isso para

sua teoria acerca de uma substância única igual à natureza, isto é, Deus, funcione,

não poderá haver liberdade e livre arbítrio. Veremos como tal ideia se desenvolve

a partir da relação de Spinoza com os racionalistas, em especial, Descartes.

Palavras-Chave

Spinoza. Liberdade. Descartes.

k k k

o fEnômEno do nada Em Spinoza

gIONaTaN CaRlOS paChECO

Resumo

No presente trabalho será apresentado um exercício que terá como base teórica

o pensamento de Espinosa, ao passo que terá por meta uma relação deste com

textos de Heidegger, como “O que é Metafísica?” e “Introdução a Metafísica”

com a pretensão de realizar apontamentos acerca de um suposto fenômeno do

nada no pensamento de Spinoza. Será feito também aproximações conceituais

entre estes dois filósofos tal como a proximidade do conceito spinosiano de

“potência” e o conceito heideggeriano de “situação”, ou ainda a concepção de

modo/substância de Spinoza relacionada a concepção ente/Ser de Heidegger.

Palavras-chave

Spinoza. Heidegger. Potência. Situação. Nada.

Abstract

In the present paper an exercise will be presented where we have Spinoza’s

theoretical basis associated with Heidegger’s texts. We will perform some notes

about the nothingness phenomenon of Spinoza’s thought. At the same time, also

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will be made some conceptual approaches between these two philosophers. For

example: between Spinoza’s concept of “conatus’ and Heidegger’s concept of

“situation”. Another example is the relationship between Spinoza’s conception

of mode/substance and Heidegger’s conception of Seiende/Sein.

Keywords: Spinoza. Heidegger. Conatus. Situation. Nothingness.

k k k

ESpinoSa E o aSno dE bUridan

luIz CaRlOS mONTaNS BRaga

Resumo

A anedota do asno de Buridan levanta alguns temas comuns à tradição filosófica

e a Espinosa. O objetivo do artigo é, num primeiro momento, o de esboçar o

rol conceitual presente na narrativa pela pena de duas linhagens da tradição

filosófica, a saber, a aristotélica e a cartesiana. Dado este panorama, pretendo

mostrar, num segundo momento, como Espinosa opera o desmonte das teses

da tradição e propõe outras relações para os conceitos de vontade, desejo e

conhecimento.

Palavras-chave

Vontade. Desejo. Livre-arbítrio. Conatus. Conhecimento.

Abstract

Buridan’s ass indicates some philosophical issues present both in tradition as in

Spinoza. The first aim of this article is to present the concepts of the narrative

by using Aristotle and Descartes. In second place, I’d like to present Spinoza’s

thesis about the issue and indicate how Spinoza deconstructs the arguments and

thesis of the tradition. I’d like also to point the relations that Spinoza indicates

among the following concepts: will, desire and knowledge.

Keywords

Will. Desire. Free will. Conatus. knowledge.

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dESpErtando do Sonho:

a rEfUtação ExpErimEntal do império da mEntE SobrE o corpo

luÍS CéSaR guImaRÃES OlIVa

Resumo

Este artigo pretende examinar o famoso escólio da proposição 2 da parte 3 da

Ética de Espinosa, no qual o autor refuta a suposta evidência experimental do

poder absoluto da alma sobre o corpo. Tal tese já havia sido demonstrativamente

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Resumo dos ARtigos. p. 93-96.

derrubada na segunda parte da Ética, mas resiste na mente do leitor devido à

ilusão do livre-arbítrio. Com o escólio, Espinosa desmente esta ilusão no próprio

nível da experiência. Procuraremos mostrar que, por trás desta refutação de

um delírio do senso comum, está também uma denúncia da fragilidade do

pensamento de Descartes sobre as relações alma-corpo.

Palavras-chave

Espinosa. Descartes. Alma. Corpo.

La fin du rêve: la réfutation experimentale de l´empire de l’esprit

sur le corps

Résumé

Cet article examine le célèbre scolie de la proposition 2 de la partie 3 de l’Éthique

de Spinoza, dans lequel l’auteur réfute la soi disant évidence expérimentale

de la puissance absolue de l’âme sur le corps. Cette thèse avait déjá été

démonstrativement réfusée dans la deuxième partie de l’Éthique, mais résiste

toujours dans l’esprit du lecteur en raison de l’illusion du libre arbitre. Dans

le scolie, Spinoza nie cette illusion au niveau même de l’expérience. Nous

essayerons de montrer que derrière cette réfutation d’une illusion du sens

commun est également une critique de la fragilité de la pensée de Descartes

sur la relation corps-âme.

Mots-clés

Spinoza. Descartes. Âme. Corps.

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97Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 8 - númeRo 16 - dezembRo 2014

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como publicar

A revista Conatus destina-se a publicar textos originais de qualidade sobre a filosofia de bEnEdictUS dE Spinoza, ou de algum tema por ele abordado em suas obras, ou ainda de Autor que com ele tenha

dialogado, escrito nas principais línguas ocidentais: francês, inglês, espanhol, alemão e italiano, além do português, obviamente.

Sempre que possível, procuraremos garantir um percentual mínimo de 70% dos textos publicados serem originais e produzidos por autores de instituições diferentes da que edita a Revista.

Os textos a publicar podem ser ensaios, artigos originais ou resenhas de obras acerca de Spinoza ou de temas por ele abordados, bem como de traduções destas ou de comentadores de sua obra. Excepcionalmente, podemos publicar artigos já publicados noutras revistas que não sejam de fácil acesso, ou que estejam esgotadas.

No caso de ensaios, artigos ou resenhas originais, ou ainda traduções inéditas em português ou castelhano, os Direitos Autorais para os textos publicados na revista Conatus permanecem com o autor, havendo apenas a cessão do direito de primeira publicação à revista Conatus. No caso do texto ser publicado noutras revistas ou livros, solicitamos que o autor cite a revista Conatus como local original de publicação.

No caso de traduções solicitamos que sejam observados os dispositivos legais pertinentes, aplicados no país do tradutor, para os Direitos Autorais do autor a ser traduzido, evitando com isto o desrespeito aos direitos do autor. No caso do Brasil, deve-se consultar a lEi 9610, dE 19 dE fEvErEiro dE 1998, que prevê no Capítulo III, Artigo 29, inciso IV a necessidade de autorização prévia e expressa do autor para a utilização da obra, por quaisquer modalidades, como por exemplo, a tradução para qualquer idioma. O Artigo 41, do mesmo Capítulo III, prescreve que os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subsequente ao de seu falecimento, obedecida a ordem sucessória da lei civil.

Como os textos da revista Conatus são integralmente disponibilizados ao público, solicita-se que os mesmos sejam utilizados apenas em aplicações educativas, de pesquisa e absolutamente não-comerciais. Além disso, solicita-se também que seja sempre citada a fonte, bem como o(s) autor(es).

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pERIODICIDaDE E pRazOS paRa SuBmISSÃO DE TExTOS

A revista Conatus será editada semestralmente, no mês de julho e de dezembro. Os prazos para submissão de textos serão:

Para o primeiro número do ano: Até o dia 31 de julho

Para o segundo número do ano: Até o dia 30 de novembro

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procESSo dE SUbmiSSão dE artigoS/tradUçõES/rESEnhaS/EnSaioS

Os textos devem ser enviados à revista Conatus exclusivamente pelos e-mails seguintes: ([email protected] ou [email protected]), em anexo no formato .doc, .TXT ou .RTF (maS não .pdf). As submissões serão enviadas pelo Editor, após análise prévia pela COmISSÃO EDITORIal, aos membros do CONSElhO EDITORIal, que irão ler, podendo recomendar a sua publicação, com correções ou não, ou a sua rejeição.

Adotamos o sistema duplo-cego como critério para a avaliação dos textos enviados para publicação, por ser o mais democrático e com maior possibilidade de imparcialidade. Neste sistema, o texto é enviado sem nenhuma identificação do seu autor a dois pareceristas. A aprovação para publicar ocorrerá após o retorno de no mínimo um parecer favorável à publicação. No caso de pareceres contrários, o texto será enviado para um terceiro parecerista analisar.

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formatação do tExto a SEr SUbmEtido

Visando seguir uma padronização nacional, e facilitar o trabalho de editoração final da Comissão Editorial, solicitamos aos autores que irão submeter seus textos à Revista Conatus, que adequem seus artigos às seguintes orientações, conforme preconizam as Normas da ABNT:

1. Solicitamos aos autores/tradutores adequarem seus textos às novas regras da ortografia para a língua portuguesa.

2. Os textos devem estar digitados no formato A4, em espaço 1,5, fonte chartEr bt (prEfErEncialmEntE), Times new-roman ou Garamond, tamanho 12 para o corpo do texto, 11 para as citações de mais de três linhas (dEvEm EStar SEm aSpaS) e 10 para as notas de rodapé (Utilizar oS rEcUrSoS do próprio word). As entradas dos parágrafos devem ser automáticas e estarem tabuladas em 1,25 cm. Na dúvida quanto aos espaços, margens, citações, etc., porventura empregados, deve-se consultar as normas da ABNT pertinentes.

3. Os artigos não devem exceder as 20 páginas e devem incluir na primeira página um RESumO INDICaTIVO (NBR 6028 - ABNT), com no máximo 300 caracteres com espaço e cinco palaVRaS-ChaVE, separadas entre si por ponto e finalizadas também por ponto, no idioma do texto. Além disso, deve-se incluir um aBSTRaCT e kEywORDS com as mesmas formatações.

4. Deve-se incluir uma pequena apresentação do autor e de sua área de atuação e seus vínculos institucionais, bem como de seus projetos atuais.

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5. Para a citação das obras de bEnEdictUS dE Spinoza recomendamos para a éTICa indicar as Partes em algarismos arábicos 1, 2, 3, 4 ou 5, seguida pela abreviatura das divisões internas destas, como por exemplo, DEF para definições, ax para axiomas, p para proposição, S para escólio, C para corolário, etc. acompanhado dos números das mesmas também em algarismos arábicos. Para as outras obras de Spinoza, recomenda-se citar o número dos capítulos e/ou dos parágrafos, conforme o caso. Por exemplo, para citar o escólio 2 da proposição 40 da parte três da éTICa, citamos entre aspas (menos de três linhas), com a referência logo após entre parenteses: “O esforço por fazer o mal a quem odiamos chama-se ira, enquanto o esforço por devolver o mal que nos foi infligido, chama-se vingança.” (E3p40S2).

6. Deve-se também acrescentar as rEfErênciaS bibliográficaS, conforme os modelos a seguir:

6.1 LivroFREUDENTHAL, Jacob. Die Lebensgeschichte Spinoza’s. Leipzig: Verlag von Veit & Comp., 1899.

6.2 Artigos em periódicosFERREIRA, Maria Luisa Ribeiro. Espinosa a partir de um poema. Revista Conatus - Filosofia de Spinoza, Fortaleza, v. 1, n. 2, p. 61-68, Dez. 2007.

6.3 Livros Organizados ou ColetâneasTATIÁN, Diego (Comp.). Círculo Spinociano de la Argentina - Spinoza: Segundo Coloquio. Córdoba (Argentina): Altamira, 2006.

6.4 Capítulo de livros sem autor específicoDELEUZE, Gilles. Spinoza e as Três Éticas. In: ______ . Crítica e Clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. 1. ed. Rio de Janeiro: 34, 1997. (Coleção Trans). p. 156-170.

6.5 Capítulos de livro com autor específicoFERREIRA, Maria Luísa Ribeiro. Spinoza, Descartes y Elisabeth. Una misma pregunta sobre el gobierno de los afectos. In: FERNÁNDEZ, Eugenio; CÁMARA, María Luisa de la (Edición de). El gobierno de los afectos en Baruj Spinoza. prólogo de Juan Manuel Navarro Cordón. Madrid: Editorial Trotta, 2007. (Colección Estructuras y Procesos). p. 495-508.

6.6 Textos consultados na InternetCOLERUS, Jean. Vida de Spinoza: por Colerus. Tradução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso. Disponível em: <http://benedictusdespinoza.pro.br/biografias-de-spinoza-colerus.html>. Acesso em: 14 jul. 2016.

6.7 Prefácio e outras partes com autor específicoKOYRÉ, Alexandre. Prefácio e Notas. In: SPINOZA, B. Tratado da Reforma do Entendimento. Edição Bilíngue Latim-Português. Tradução de Abílio Queirós. Lisboa: Edições 70, 1987. (Textos Filosóficos). p. 11-19.

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esta oBra foi composta pela argentum nostrum em antique no 14, caslon open face, davys dingBats 1, charter Bt, pcornaments e signs mt, impressa em papel reciclado 75 g/m2 da ripasa ® para o gt Benedictus de spinoza em julho de 2016.

Tiragem:300 Exemplares