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6/1/2018 JacquesLGoff-HistoriaEMemoria-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/jacques-l-goff-historia-e-memoria 1/288 JACQUES LE GOFF História e memória http://groups.google.com.br/group/digitalsource FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL-UNICAMP L525h Le Goff, Jacques, 1924 História e memória / Jacques Le Goff; tradução Bernardo Leitão ... [et al.] -- as, SP Editora da UNICAMP, 1990. (Coleção Repertórios) Tradução de: Storia e memoria. 1. Historiografia. I. Título. ISBN 85-268-0180-5 20. CDD  907.2Índice para catálogo sistemático: 1. Historiografia 907.2 Coleção Repertórios Copyright©1990 Storia e Memória Giulio Einaudi Editora; Sp. A Projeto Gráfico Camila Cesarino Costa Eliana Kestenbaum Editoração Sandra Vieira Alves Adaptação da Edição Portuguesa Maria Clarice Samnpaio Villac Revisão Alzira Dias Sterque Marta Maria Hanser Composição Gimar Nascimento Saraiva Montagem Nelson Norte Pinto 1990 Editora da Unicamp Rua Cecíllio Feltrin, 253 Cidade Universitária  Barão Geraldo CEP 13083  Campinas  SP  Brasil

Jacques L Goff - Historia E Memoria

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JACQUES LE GOFFHistria e memriahttp://groups.google.com.br/group/digitalsourceFICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELABIBLIOTECA CENTRAL-UNICAMPL525hLe Goff, Jacques, 1924 Histria e memria / Jacques Le Goff; traduo Bernardo Leito ... [et al.] -- Campinas, SP Editora da UNICAMP, 1990.(Coleo Repertrios)Traduo de: Storia e memoria.1. Historiografia. I. Ttulo.ISBN 85-268-0180-5 20. CDD 907.2ndice para catlogo sistemtico:1. Historiografia 907.2Coleo RepertriosCopyright1990 Storia e Memria Giulio EinaudiEditora; Sp. AProjeto GrficoCamila Cesarino Costa Eliana KestenbaumEditoraoSandra Vieira AlvesAdaptao da Edio PortuguesaMaria Clarice Samnpaio VillacRevisoAlzira Dias Sterque Marta Maria HanserComposioGimar Nascimento SaraivaMontagemNelson Norte Pinto1990Editora da UnicampRua Cecllio Feltrin, 253Cidade Universitria Baro GeraldoCEP 13083 Campinas SP BrasilTel.: (0192) 39.3157SUMRIOPrefcio ............................................................................................. 04 Histria ............................................................................................. 13 Antigo/Moderno ............................................................................. 149 Passado/Presente ............................................................................ 179 Progresso/Reao ........................................................................... 204 Idades Mticas ................................................................................ 246 Escatologia ..................................................................................... 281 Decadncia ..................................................................................... 325 Memria ......................................................................................... 366 Calendrio ...................................................................................... 420 Documento/Monumento ................................................................. 462 . Esta obra foi digitalizada pelo grupo Digital Source para proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefcio de sua leitura queles que no podem compr-la ou queles que necessitam de meios eletrnicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-book ou at mesmo a sua troca por qualquer contraprestao totalmente condenvel em qualquer circunstncia. A generosidade e a humildade a marca da distribuio, portanto distribua este livro livremente. Aps sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original, pois assim voc estar incentivando o autor e a publicao de novas obras.http://groups.google.com.br/group/digitalsourcehttp://groups.google.com/group/Viciados_em_LivrosPREFCIO [pg. 006] Pgina em branco [pg. 007] O conceito de histria parece colocar hoje seis tipos de problemas: 1. Que relaes existem entre a histria vivida, a histria "natural", seno "objetiva", das sociedades humanas, e o esforo cientfico para descrever, pensar e explicar esta evoluo, a cincia histrica? O afastamento de ambas tem, em especial, permitido a existncia de uma disciplina ambgua: a filosofia da histria. Desde o incio do sculo, e sobretudo nos ltimos vinte anos, vem se desenvolvendo um ramo da cincia histrica que estuda a evoluo da prpria cincia histrica no interior do desenvolvimento histrico global: a historiografia, ou histria da histria. 2. Que relaes tem a histria com o tempo, com a durao, tanto com o tempo "natural' e cclico do clima e das estaes quanto com o tempo vivido e naturalmente registrado dos indivduos e das sociedades? Por um lado, para domesticar o tempo natural, as diversas sociedades e culturas inventaram um instrumento fundamental, que tambm um dado essencial da histria: o calendrio; por outro, hoje os historiadores se interessam cada vez mais pelas relaes entre histria e memria. 3. A dialtica da histria parece resumir-se numa oposio ou num dilogo passado/presente (e/ou presente/passado). [pg. 008] Em geral, esta oposio no neutra mas subentende, ou exprime, um sistema de atribuio de valores, como por exemplo nos pares antigo/moderno, progresso/reao. Da Antiguidade ao sculo XVIII desenvolveu-se, ao redor do conceito de decadncia, uma viso pessimista da histria, que voltou a apresentar-se em algumas ideologias da histria no sculo XX. J com o Iluminismo afirmou-se uma viso otimista da histria a partir da idia de progresso, que agora conhece, na segunda metade do sculo XX, uma crise. Tem, pois, a histria um sentido? E existe um sentido da histria? 4. A histria incapaz de prever e de predizer o futuro. Ento como se coloca ela em relao a uma nova "cincia", a futurologia? Na realidade, a histria deixa de ser cientfica quando se trata do incio e do fim da histria do mundo e da humanidade. Quanto origem, ela tende ao mito: a idade de ouro, as pocas mticas ou, sob aparncia cientfica, a recente teoria do big bang. Quanto ao final, ela cede o lugar religio e, em particular, s religies de salvao que construram um "saber dos fins ltimos" a escatologia , ou s utopias do progresso, sendo a principal o marxismo, que justape uma ideologia do sentido e do fim da histria (o comunismo, a sociedade sem classes, o internacionalismo). Todavia, no nvel da prxis dos historiadores, vem sendo desenvolvida uma crtica do conceito de origens e a noo de gnese tende a substituir a idia de origem. 5. Em contato com outras cincias sociais, o historiador tende hoje a distinguir diferentes duraes histricas. Existe um renascer do interesse pelo evento, embora seduza mais a perspectiva da longa durao. Esta conduziu alguns historiadores, tanto atravs do uso da noo de estrutura quanto mediante b dilogo com a antropologia, a elaborar a hiptese da existncia de uma histria "quase imvel". Mas pode existir uma histria imvel? E que relaes tem a histria com o estruturalismo (ou os estruturalismos)? E no existir tambm um movimento mais amplo de "recusa da histria"? 6. A idia da histria como histria do homem foi substituda pela idia da histria como histria dos homens em sociedade. Mas ser que existe, se que pode existir, somente uma [pg. 009] histria do homem? J se desenvolveu uma histria do clima no se deveria escrever tambm uma histria da natureza? 1) Desde o seu nascimento nas sociedades ocidentais nascimento tradicionalmente situado na Antiguidade grega (Herdoto, no sculo V. a.C., seria, seno o primeiro historiador, pelo menos o "pai da histria"), mas que remonta a um passado ainda mais remoto, nos imprios do Prximo e do Extremo Oriente , a cincia histrica se define em relao a uma realidade que no nem construda nem observada como na matemtica, nas cincias da natureza e nas cincias da vida, mas sobre a qual se "indaga", se "testemunha". Tal o significado do termo grego e da sua raiz indo-europia wid-, weid- "ver". Assim, histria comeou como um relato, a narrao daquele que pode dizer "Eu vi, senti". Este aspecto da histria-relato, da histria-testemunho, jamais deixou de estar presente no desenvolvimento da cincia histrica. Paradoxalmente, hoje se assiste crtica deste tipo de histria pela vontade de colocar a explicao no lugar da narrao, mas tambm, ao mesmo tempo, presencia-se o renascimento da histria-testemunho atravs do "retorno do evento' (Nora) ligado aos novos media, ao surgimento de jornalistas entre os historiadores e ao desenvolvimento da "histria imediata". Contudo, desde a Antiguidade, a cincia histrica, reunindo documentos escritos e fazendo deles testemunhos, superou o limite do meio sculo ou do sculo abrangido pelos historiadores que dele foram testemunhas oculares e auriculares. Ela ultrapassou tambm as limitaes impostas pela transmisso oral do passado. A constituio de bibliotecas e de arquivos forneceu assim os materiais da histria. Foram elaborados mtodos de crtica cientfica, conferindo histria um dos seus aspectos de cincia em sentido tcnico, a partir dos primeiros e incertos passos da Idade Mdia (Guene), mas sobretudo depois do final do sculo. XVII com Du Cange, Mabillon e os beneditinos de Saint-Maur, Muratori, etc. Portanto, no se tem histria sem erudio. Mas do mesmo modo que se fez no sculo XX a crtica da noo de fato histrico, que no um objeto dado e acabado, pois resulta da construo do historiador, tambm se faz hoje a crtica da noo de documento, que no um material bruto, objetivo e [pg. 010] inocente, mas que exprime o poder da sociedade do passado sobre a memria e o futuro: o documento monumento (Foucault e Le Goff). Ao mesmo tempo ampliou-se a rea dos documentos, que a histria tradicional reduzia aos textos e aos produtos da arqueologia, de uma arqueologia muitas vezes separada da histria. Hoje os documentos chegam a abranger a palavra, o gesto. Constituem-se arquivos orais; so coletados etnotextos. Enfim, o prprio processo de arquivar os documentos foi revolucionado pelo computador. A histria quantitativa,, da demografia economia at o cultural, est ligada aos progressos dos mtodos estatsticos e da informtica aplicada s cincias sociais. O afastamento existente entre a "realidade histrica" e a cincia histrica permitiu a filsofos e historiadores propor da Antiguidade at hoje sistemas de explicao global da histria (para o sculo XX, e em sentidos extremamente diferentes, podem ser lembrados Spengler, Weber, Croce, Gramsci, Toynbee, Aron, etc.). A maior parte dos historiadores manifesta uma desconfiana mais ou menos marcada em relao filosofia da histria; porm, no obstante isso, eles no se voltam para o positivismo, triunfante na historiografia alem (Ranke) ou francesa (Langlois e Seignobos) no final do sculo XIX e incio do XX. Entre a ideologia e o pagamento eles so os defensores de uma histria-problema (Febvre). Para captar o desenrolar da histria e fazer dela o objeto de uma verdadeira cincia, historiadores e filsofos, desde a Antiguidade, esforaram-se por encontrar e definir as leis da histria. As tentativas mais estimulantes e que sofreram a falncia estrondosa so as velhas teorias crists do providencialismo (Bossuet) e o marxismo vulgar, que insiste no obstante Marx no falar de leis da histria (como acontece cem Lnin), em fazer do materialismo histrico uma pseudocincia do determinismo histrico, cada vez mais desmentida pelos fatos e pela reflexo histrica. Em compensao, a possibilidade de unia leitura racional a posteriori da histria, o reconhecimento de certas regularidades no seu decurso (fundamento de um comparatismo da histria das diversas sociedades e das diferentes estruturas), a elaborao [pg. 011] de modelos que excluem a existncia de um modelo nico (o alargamento da histria do mundo no seu conjunto, a influncia da etnologia, a sensibilidade para as diferenas e em relao ao outro caminham neste sentido) permitem excluir o retorno da histria a um mero relato. As condies nas quais trabalha o historiador explicam ademais por que se tenha colocado e se ponha sempre o problema da objetividade do historiador. A tomada de conscincia da construo do fato histrico, da no-inocncia do documento, lanou uma luz reveladora sobre os processos de manipulao que se manifestam em todos os nveis da constituio do saber histrico. Mas esta constatao no deve desembocar num ceticismo de fundo a propsito da objetividade histrica e num abandono da noo de verdade em histria; pelo contrrio, os contnuos xitos no desmascaramento e na denncia das mistificaes e das falsificaes da histria permitem um relativo otimismo a esse respeito. Isso no impede que o horizonte da objetividade que deve ser o do historiador no deva ocultar o fato de que a histria tambm uma prtica social (Certeau) e que, se devem ser condenadas as posies que, na linha de um marxismo vulgar ou de um reacionarismo igualmente vulgar, confundem cincia histrica e empenho poltico, legtimo observar que a leitura da histria do mundo se articula sobre uma vontade de transform-lo (por exemplo, na tradio revolucionria marxista, mas tambm em outras perspectivas, como aquelas dos herdeiros de Tocqueville e de Weber, que associam estreitamente anlise histrica e liberalismo poltico). A crtica da noo de fato histrico tem, alm disso, provocado o reconhecimento de "realidades" histricas negligenciadas por muito tempo pelos historiadores. Junto histria poltica, histria econmica e social, histria cultural, nasceu uma hist das representaes. Esta assumiu formas diversas: histria das concepes globais da sociedade ou histria das ideologias; histria das estruturas mentais comuns a uma categoria social, a uma sociedade, a uma poca, ou histria das mentalidades; histria das produes do esprito ligadas no ao texto, palavra, ao gesto, mas imagem, ou histria do imaginrio, [pg. 012] que permite tratar o documento literrio e o artstico como documentos histricos de pleno direito, sob a condio de respeitar sua especificidade; histria das condutas, das prticas, dos rituais, que remete a uma realidade oculta, subjacente, ou histria do simblico, que talvez conduza um dia a uma histria psicanaltica, cujas provas de estatuto cientfico no parecem ainda reunidas. Enfim, a prpria cincia histrica, com o desenvolvimento da historiografia, ou histria da histria, colocada numa perspectiva histrica. Todos os novos setores da histria representam um enriquecimento notvel, desde que sejam evitados dois erros: antes de mais nada, subordinar a histria das representaes a outras realidades, as nicas s quais caberia um status de causas primeiras (realidade materiais, econmicas) renunciar, portanto, falsa problemtica da infra-estrutura e da superestrutura. Mas tambm no privilegiar as novas realidades, no lhes conferir, por sua vez, um papel exclusivo de motor da histria. Uma explicao histrica eficaz deve reconhecer a existncia do simblico no interior de toda realidade histrica (includa a econmica), mas tambm confrontar as representaes histricas com as realidades que elas representam e que o historiador apreende mediante outros documentos e mtodos por exemplo, confrontar a ideologia poltica com a prxis e os eventos polticos. E toda histria deve ser uma histria social. Por fim, o carter "nico" dos eventos histricos, a necessidade do historiador de misturar relato e explicao fizeram da histria um gnero literrio, uma arte ao mesmo tempo que uma cincia. Se isso foi vlido da Antiguidade at o sculo XIX, de Tucdides a Michelet, menos verdadeiro para o sculo XX. O crescente tecnicismo da cincia histrica tornou mais difcil para o historiador parecer tambm escritor. Mas existe sempre uma escritura da histria. 2) Matria fundamental da histria o tempo; portanto, no de hoje que a cronologia desempenha um papel essencial como fio condutor e cincia auxiliar da histria. O instrumento principal da cronologia o calendrio, que vai muito alm do mbito do histrico, sendo mais que nada o quadro temporal do funcionamento da sociedade. O calendrio revela o esforo realizado [pg. 013] pelas sociedades humanas para domesticar o tempo natural, utilizar o movimento natural da lua ou do sol, do ciclo das estaes, da alternncia do dia e da noite. Porm, suas articulaes mais eficazes a hora e a semana esto ligadas cultura e no natureza. O calendrio o produto e expresso da histria: est ligado s origens mticas e religiosas da humanidade (festas), aos progressos tecnolgicos e cientficos (medida do tempo), evoluo econmica, social e cultural (tempo do trabalho e tempo de lazer). Ele manifesta o esforo das sociedades humanas para transformar o tempo cclico da natureza e dos mitos, do eterno retomo, num tempo linear escandido por grupos de anos: lustro, olimpadas, sculo, eras, etc. histria esto intimamente conectados dois progressos essenciais: a definio de pontos de partida cronolgicos (fundao de Roma, era crist, hgira e assim por diante) e a busca de uma periodizao, a criao de unidades iguais, mensurveis, de tempo: dia de vinte e quatro horas, sculo, etc. Hoje, a aplicao histria dos dados da filosofia, da cincia, da experincia individual e coletiva tende a introduzir, junto destes quadros mensurveis do tempo histrico, a noo de durao, de tempo vivido, de tempos mltiplos e relativos, de tempos subjetivos ou simblicos. O tempo histrico encontra, num nvel muito sofisticado, o velho tempo da memria, que atravessa a histria e a alimenta. 3-4) A oposio passado/presente essencial na aquisio da conscincia do tempo. Para a criana, "compreender o tempo significa libertar-se do presente" (Piaget), mas o tempo da histria no nem o do psiclogo nem o do lingista. Todavia o exame da temporalidade nestas duas cincias refora o fato de que a oposio presente/passado no um dado natural mas sim uma construo. Por outro lado, a constatao de que a viso de um mesmo passado muda segundo as pocas e que o historiador est submetido ao tempo em que vive, conduziu tanto ao ceticismo sobre a possibilidade de conhecer o passado quanto a um esforo para eliminar qualquer referncia ao presente (iluso da histria romntica maneira de Michelet "a ressurreio integral do passado' ou da histria positivista Ranke "aquilo que realmente aconteceu'). Com efeito, o interesse do passado [pg. 014] est em esclarecer o presente; o passado atingido a partir do presente (mtodo regressivo de Bloch). At o Renascimento e mesmo at o final do sculo XVIII, as sociedades ocidentais valorizaram o passado, o tempo das origens e dos ancestrais surgindo para eles como uma poca de inocncia e felicidade. Imaginaram-se eras mticas: idades-do-ouro, o paraso terrestre... a histria do mundo e da humanidade aparecia como uma longa decadncia. Esta idia de decadncia foi retomada para exprimir a fase final da histria das sociedades e das civilizaes; ela se insere num pensamento mais ou menos cclico da histria (Vico, Montesquieu, Gibbon, Spengler, Toynbee) e em geral o produto de uma filosofia reacionria da histria, um conceito de escassa utilidade para a cincia histrica. Na Europa do final do sculo XVII e primeira metade do XVIII, a polmica sobre a oposio antigo/moderno, surgida a propsito da cincia, da literatura e da arte, manifestou uma tendncia reviravolta da valorizao do passado: antigo tornou-se sinnimo de superado, e moderno de progressista. Na realidade, a idia de progresso triunfou com o Iluminismo e desenvolveu-se no sculo XIX e incio do XX, considerando sobretudo os progressos cientficos e tecnolgicos. Depois da Revoluo Francesa, ideologia do progresso foi contraposto um esforo de reao, cuja expresso foi sobretudo poltica, mas que se baseou numa leitura "reacionria" da histria. Em meados do sculo XX, os fracassos do marxismo e a revelao do mundo stalinista e do gulag, os horrores do fascismo e principalmente do nazismo e dos campos de concentrao, os mortos e as destruies da Segunda Guerra Mundial, a bomba atmica primeira encarnao histrica "objetiva" de um possvel apocalipse , a descoberta de culturas diversas do ocidente conduziram a uma crtica da idia de progresso (recorde-se La crise du progrs, de Friedmann, de 1936). A crena num progresso linear, contnuo, irreversvel, que se desenvolve segundo um modelo em todas as sociedades, j quase no existe. A histria que no domina o futuro passa a defrontar-se com crenas que conhecem hoje um grande revival: profecias, vises em geral catastrficas do fim do mundo ou, pelo contrrio, revolues iluminadas, como as invocadas pelos milenarismos tanto nas seitas das sociedades ocidentais quanto em certas sociedades do Terceiro Mundo. o retomo da escatologia. [pg. 015] Mas a cincia da natureza e, em particular, a biologia mantm uma' concepo positiva, se bem que atenuada, do desenvolvimento enquanto progresso. Estas perspectivas podem aplicar-se s cincias sociais e histria. Assim, a gentica tende a recuperar a idia de evoluo e progresso, porm, dando mais espao ao evento e -s catstrofes (Thom): a histria tem todo o interesse em inserir na sua problemtica a idia de gnese -'dinmica no lugar daquela, passiva, das origens, que Bloch j criticava. 5) Na atual renovao da cincia histrica, que se acelera, quanto mais no seja ao menos na difuso (o incremento essencial veio com a revista 'Annales', fundada por Bloch e Febvre em 1929), um papel importante desempenhado por uma nova concepo do tempo histrico. A histria seria feita segundo ritmos diferentes e a tarefa do historiador seria, primordialmente, reconhecer tais ritmos. Em vez do estrato superficial, o tempo rpido dos eventos, mais importante seria o nvel mais profundo das realidades que mudam devagar (geografia, cultura material, mentalidades: em linhas gerais, as estruturas) trata-se do nvel das "longas duraes" (Braudel). O dilogo dos historiadores da longa durao com as outras cincias sociais e com as cincias da natureza e da vida a economia e a geografia ontem, a antropologia, a demografia e a biologia hoje conduziu alguns deles idia de uma histria "quase imvel" (Braudel, Le Roy Ladurie). Colocou-se ento a hiptese de uma histria imvel. Mas a antropologia histrica caminha no sentido contrrio da idia de que o movimento, a evoluo se encontrem em todos os objetos de todas as cincias sociais, pois seu objeto comum so as sociedades humanas (sociologia, economia mas tambm antropologia). Quanto histria, ela s pode ser uma cincia da mutao e da explicao da mudana. Com os diversos estruturalismos, a histria pode ter relaes frutferas sob duas condies: a) no esquecer que as estruturas por ela estudadas so dinmicas; b) aplicar certos mtodos estruturalistas ao estudo dos documentos histricos, anlise dos textos (em sentido amplo), no explicao histrica propriamente dita. Todavia podemos perguntar-nos se a moda do estruturalismo no est ligada a uma certa recusa da histria concebida como ditadura do passado, justificativa da "reproduo" (Bourdieu), poder de [pg. 016] represso. Mas tambm na extrema esquerda reconheceu-se que seria perigoso fazer "tbula rasa do passado" (Chesneaux). O "fardo da histria" no sentido "objetivo" do termo (Hegel), pode e deve encontrar o seu contrapeso na cincia histrica como "meio de libertao do passado" (Arnaldi). 6) Ao fazer a histria de suas cidades, povos, imprios, os historiadores da Antiguidade pensavam fazer a histria da humanidade. Os historiadores cristos, os historiadores do Renascimento e do Iluminismo (no obstante reconhecessem a diversidade dos "costumes") pensavam estar fazendo a histria do homem. Os historiadores modernos observam que a histria a cincia da evoluo das sociedades humanas. Mas a evoluo das cincias levou a pr-se o problema de saber se no poderia existir uma histria diferente daquela do homem. J se desenvolveu uma histria do clima; contudo, ela apresenta um certo interesse para a histria s na medida em que esclarece certos fenmenos da histria das sociedades humanas (modificao das culturas, do habitat, etc.). Agora se pensa numa histria da natureza (Romano), mas ela reforar sem dvida o carter "cultural" portanto, histrico da noo de natureza. Assim, atravs d ampliaes do seu mbito,,a histria se torna sempre co-extensiva em relao ao homem. Hoje, o paradoxo da cincia histrica que justamente quando, sob suas diversas formas (incluindo o romance histrico), ela conhece uma popularidade sem par nas sociedades ocidentais, e logo quando as naes do Terceiro Mundo se preocupam antes de mais nada em dotar-se de uma histria o que de resto talvez permita tipos de histria extremamente diferentes daqueles que os ocidentais definem como tal , se a histria tornou-se, portanto, um elemento essencial da necessidade de identidade individual e coletiva, logo agora a cincia histrica sofre uma crise (de crescimento?): no dilogo com as outras cincias sociais, no alargamento considervel de seus problemas, mtodos, objetos, ela pergunta se no comea a perder-se. Traduo: Nilson Moulin Louzada Os ensaios aqui reunidos foram originalmente publicados nos volumes I, II, IV, V, VIII, X, XI, XIII, XV da Enciclopdia Einaudi.HISTRIA [pg. 017] Estamos quase todos convencidos de que a histria no uma cincia como as outras sem contar com aqueles que no a consideram uma cincia. Falar de histria no fcil, mas estas dificuldades de linguagem introduzem-nos no prprio mago das ambigidades da histria. Neste ensaio, tentaremos centrar a reflexo sobre a histria na temporalidade, situar a prpria cincia histrica nas periodizaes da histria e no a reduzir viso europia, ocidental, mesmo que, por ignorncia e em virtude de deficincias importantes de documentao, sejamos levados a falar sobretudo da cincia histrica europia. A palavra 'histria' (em todas as lnguas romnicas e em ingls) vem do grego antigo historie, em dialeto jnico [Keuck, 1934]. Esta forma deriva da raiz indo-europia wid-, weid 'ver'. Da o snscrito vettas 'testemunha' e o grego histor 'testemunha' no sentido de 'aquele que v'. Esta concepo da viso como fonte essencial de conhecimento leva-nos idia que histor 'aquele que v' tambm aquele que sabe; historein em grego antigo 'procurar saber', 'informar-se'. Historie significa pois "procurar". este o sentido da palavra em Herdoto, no incio das suas Histrias, que so "investigaes", "procuras" [cf. Benveniste, 1969, t. II, pp. 173-74; Hartog, 1980]. Ver, logo saber, um primeiro problema. [pg. 018] Mas nas lnguas romnicas (e noutras), 'histria' exprime dois, seno trs, conceitos diferentes. Significa: 1) esta "procura das aes realizadas pelos homens" (Herdoto) que se esfora por se constituir em cincia, a cincia histrica; 2) o objeto de procura o que os homens realizaram. Como diz Paul Veyne, "a histria quer uma srie de acontecimentos, quer a narrao desta srie de acontecimentos" [1968, p. 423]. Mas a histria pode ter ainda um terceiro sentido, o de narrao. Uma histria uma narrao, verdadeira ou falsa, com base na "realidade histrica" ou puramente imaginria pode ser uma narrao histrica ou uma fbula. O ingls escapa a esta ltima confuso porque distingue entre history e story (histria e conto). As outras lnguas europias esforam-se por evitar esta ambigidade. O italiano tem tendncia para designar se no a cincia histrica, pelo menos as produes desta cincia pela palavra 'storiografia'; o alemo estabelece a diferena entre a atividade "cientfica", Geschichtschreibung, e a cincia histrica propriamente dita, Geschichtswissenschaft. Este jogo de espelhos e de equvocos manteve-se ao longo das pocas. O sculo XIX, sculo da histria, inventa ao mesmo tempo as doutrinas que privilegiam a histria dentro do saber falando, como veremos, de 'historismo' ou de 'historicismo' e uma funo, ou melhor, uma categoria do real, a 'historicidade' (a palavra aparece em 1872, em francs). Charles Moraz define-a assim: "Devemos procurar para alm da geopoltica, do comrcio, das artes e da prpria cincia, aquilo que justifica a atitude de obscura certeza dos homens que se unem, arrastados pelo enorme fluxo do progresso que os especifica, opondo-os. Sente-se que esta solidariedade est ligada existncia implcita que cada um experimenta em si, duma certa funo comum a todos. Chamamos a esta funo historicidade" [1967, p. 59]. O conceito de historicidade desligou-se das suas origens "histricas", ligadas ao historicismo do sculo XIX, para desempenhar um papel de primeiro plano na renovao epistemolgica da segunda metade do sculo XX. A 'historicidade' permite, por exemplo, refutar no plano terico a noo de "sociedade sem histria", refutada por outro lado pelo estudo emprico das sociedades estudadas pela etnologia [Lefort, 1952]. Ela [pg. 019] obriga a inserir a prpria histria numa perspectiva histrica: "H uma historicidade da histria que implica o movimento que liga uma prtica interpretativa a uma prxis social" [Certeau, 1970, p. 484]. Um filsofo como Paul Ricoeur v na supresso da historicidade atravs da histria da filosofia o paradoxo do fundamento epistemolgico da histria. De fato, segundo Ricoeur, o discurso filosfico faz desdobrar a histria em dois modelos de inteligibilidade, um modelo de acontecimentos (vnementiel) e um modelo estrutural, o que leva ao desaparecimento da historicidade: "O sistema o fim da histria porque ela se anula na lgica; a singularidade tambm o fim da histria porque toda a histria se nega nela. Chegamos a este resultado paradoxal: sempre na fronteira da histria, no fim da histria que se compreendem os traos mais gerais da historicidade" [1961, pp. 224-25]. Finalmente, Paul Veyne tira uma dupla lio do fundamento do conceito de historicidade. A historicidade permite a incluso no campo da cincia histrica de novos objetos da histria: o non-vnementiel; trata-se de acontecimentos ainda no reconhecidos como tais: histria rural, das mentalidades, da loucura ou da procura de segurana atravs das pocas. Chamaremos non-vnementiel historicidade de que no temos conscincia enquanto tal [1971, p. 31]. Por outro' lado, a historicidade exclui a idealizao da histria, a existncia da Histria com H maisculo: "Tudo histrico,ogo a histria no existe". Temos porm de viver e pensar com este duplo ou triplo sentido de 'histria'. Lutar contra as confuses grosseiras e mistificadoras entre os diferentes significados, no confundir cincia histrica e filosofia da histria. Partilho a desconfiana da maior parte dos historiadores de ofcio, perante essa filosofia da histria "tenaz e insidiosa" [Lefebvre, 1945-46] que tem tendncia, nas suas diversas formas, para levar a explicao histrica descoberta ou aplicao de uma causa nica e original, para substituir o estudo pelas tcnicas cientficas de evoluo das sociedades, sendo essa evoluo concebida como abstrao baseada no apriorismo ou num conhecimento muito sumrio dos trabalhos cientficos. para mim surpreendente a ressonncia que teve fora dos ambientes histricos, certo o panfleto de [pg. 020] Karl Popper The Poverty of Historicism [1966]. Nem um s historiador profissional nele citado. Esta desconfiana perante a filosofia da histria no deve servir de justificao para recusar este tipo de reflexo. A prpria ambigidade do vocabulrio revela que a fronteira entre as duas disciplinas, as duas orientaes, no est estritamente traada nem travel (em ltima hiptese). O historiador no pode conc que deve evitar uma reflexo terica, necessria ao trabalho histrico. fcil ver que os historiadores mais inclinados a reclamarem-se dos fatos no s ignoram que um fato histrico resulta duma montagem e que estabelec-lo exige um trabalho tcnico e terico, mas tambm esto, acima de tudo, cegos por uma filosofia da histria.inconsciente, muitas vezes sumria e incoerente. certo, repito-o, que a ignorncia dos trabalhos histricos pela maior parte dos filsofos da histria correspondente ao desprezo dos historiadores pela filosofia no facilitou o dilogo. Mas a existncia de uma revista de grande qualidade como "History and Theory Studies in the philosophy of History", publicada desde 1960 pela Wesleyan University em Middletown (Connecticut, U.S.A.) prova a possibilidade e o interesse duma reflexo comum de filsofos e historiadores, assim como da formao de especialistas informados, no campo da reflexo terica sobre a histria. Penso pois que a brilhante demonstrao de Paul Veyne ultrapassa um pouco a realidade. Ele pensa que no se trata dum gnero morto ou que apenas sobrevive "nos epgonos de tom um tanto popular" ou que seja um "falso gnero". De fato, "a menos que seja uma filosofia revelada, uma filosofia da histria ser um duplo da explicao concreta dos fatos e remeter para as leis e mecanismos que explicam esses fatos. S os dois extremos so viveis: o providencialismo da Cidade de Deus ou ento a epistemologia histrica. Todo o resto bastardo" [1971, p. 40]. Sem chegar ao ponto de dizer, com Raymond Aron, que "a ausncia e a necessidade de uma filosofia da histria so elementos igualmente caractersticos do nosso tempo" [1961a, p. 38], diremos que legtimo que nas margens da cincia histrica se desenvolva uma filosofia da histria, como outro ramo do saber. Ser desejvel que ela no ignore a histria dos historiadores [pg. 021] da mesma maneira que estes devem admitir que ela possa ter como o objeto da histria relaes de conhecimento diferentes das suas. A dualidade da histria como histria-realidade e histria-estudo desta realidade explica, segundo me parece, as ambigidades de algumas declaraes de Lvi-Strauss sobre a histria. Assim, numa discusso com Maurice Godelier, o qual, tendo declarado que a homenagem prestada, em Du miel aux cendres, histria como contingncia, irredutvel, se voltava contra a prpria histria e que equivalia a "dar cincia da histria um estatuto... impossvel, conduzi-la a um impasse", Lvi-Strauss replicou: "No sei a que chamais cincia da histria. Contentarme-ei em dizer simplesmente a histria; e a histria algo que no podemos dispensar, precisamente porque esta histria nos pe constantemente perante fenmenos irredutveis" [Lvi-Strauss, Aug e Godelier, 1975, pp. 182-83]. Toda a ambigidade da palavra 'histria' est contida nesta declarao. Irei pois abordar a histria pedindo a um filsofo a idia de base: "A histria s histria na medida em que no consente nem no discurso absoluto, nem na singularidade absoluta, na medida em que o seu sentido se mantm confuso, misturado... A histria essencialmente equvoca, no sentido de que virtualmente vnementielle e virtualmente estrutural. A histria na verdade o reino do inexato. Esta descoberta no intil; justifica o historiador. Justifica todas as suas incertezas. O mtodo histrico s pode ser um mtodo inexato... A histria quer ser objetiva e no pode s-lo. Quer fazer reviver e s pode reconstruir. Ela quer tomar as coisas contemporneas, mas ao mesmo tempo tem de reconstituir a distncia e a profundidade da lonjura histrica. Finalmente, esta reflexo procura justificar todas as aporias do ofcio de historiador, as que Marc Bloch tinha assinalado na sua apologia da histria e do ofcio de historiador. Estas dificuldades no so vcios do mtodo, so equvocos bem fundamentados" [Ricoeur, 1961, p. 226]. Este discurso, excessivamente pessimista sob certos aspectos, parece-me no entanto verdadeiro. [pg. 022] Apresentarei em primeiro lugar os paradoxos e ambigidades da histria, para melhor a definir como cincia, cincia original, mas fundamental. Tratarei em seguida dos aspectos fundamentais da histria, muitas vezes misturados, mas que necessrio distinguir: a cultura histrica, a filosofia da histria, o ofcio de historiador. Fa-lo-ei numa perspectiva histrica, no sentido cronolgico do termo. A crtica feita na primeira parte, da concepo linear e teleolgica da histria, afastar a suposio de que identifico a cronologia e o progresso qualitativo, mesmo que sublinhe efeitos cumulativos do conhecimento e aquilo a que Incio Meyerson chamou o "aumento de conscincia histrica" [1956, p. 354]. No tentarei ser exaustivo. O que importa mostrar, na primeira perspectiva, atravs de alguns exemplos, o tipo de relaes que as sociedades histricas mantiveram com o seu passado e o lugar que a histria ocupa no seu presente. Na tica da filosofia da histria gostaria de mostrar, atravs de alguns grandes espritos e de algumas correntes de pensamento importantes, como, para alm ou fora da prtica disciplinar da histria, em certos meios e em certas pocas, a histria se conceituou e ideologizou. O horizonte profissional da histria dar, paradoxalmente, maior lugar noo de evoluo e aperfeioamento. que, colocando-se na perspectiva da tecnologia e da cincia, a encontrar a inevitvel idia do progresso tcnico. A ltima parte, consagrada situao atual da histria, retomar alguns dos temas fundamentais deste artigo e alguns aspectos novos. A cincia histrica conheceu, desde h meio sculo, um avano prodigioso: renovao, enriquecimento das tcnicas e dos mtodos, dos horizontes e dos domnios. Mas, mantendo com as sociedades globais relaes mais intensas que nunca, a histria profissional e cientfica vive uma crise profunda. O saber da histria tanto mais confuso quanto mais o seu poder aumenta. [pg. 023] 1. Paradoxos e ambigidades da histria 1.1 A histria uma cincia do passado ou "s h histria contempornea"? Marc Bloch no gostava da definio "A histria a cincia do passado" e considerava absurda "a prpria idia de que o passado, enquanto-tal, possa ser objeto da cincia" [1941-42, pp. 32-331. Ele propunha que se definisse a histria como "a cincia dos homens no tempo" [ibid.]. Pretendia com isso sublinhar trs caracteres da histria. O primeiro o seu carter humano. Embora a investigao histrica englobe hoje alguns domnios da natureza [cf. Le Roy Ladurie, 1967], admite-se geralmente que a histria a histria humana e Paul Veyne sublinhou que uma "enorme diferena" separa a histria humana da histria natural: "O homem delibera, a natureza no; a histria humana tornar-se-ia sem sentido se negligencissemos o fato de os homens terem objetivos, fins, intenes" [1968, p. 424]. Esta concepo da histria humana convida muitos historiadores a pensarem que a parte central e essencial da histria a histria social. Charles-Edmond Perrin escreveu sobre Marc Bloch: " histria ele atribui como objeto o estudo do homem, enquanto integrado num grupo social" [em Labrousse, 1967, p. 3]; e Lucien Febvre acrescenta: "No o homem, mais uma vez, no o homem, nunca o homem. As sociedades humanas, os grupos organizados" [ibid.]. Em seguida, Marc Bloch pensava nas relaes que o passado e o presente entretecem ao longo da histria. Considerava que a histria no s deve permitir compreender o "presente pelo passado" atitude tradicional mas tambm compreender o "passado pelo presente" [1941, p. 44-50]. Confirmando resolutamente o carter cientfico e abstrato do trabalho histrico, Marc Bloch no aceitava que esse trabalho fosse estritamente tributrio da cronologia: seria um erro grave pensar que a ordem adotada pelos historiadores nas suas investigaes devesse necessariamente modelar-se pela dos acontecimentos. Para restiturem histria o seu movimento verdadeiro, seria muitas vezes vantajoso lerem-na, como dizia [pg. 024] Maitland, "ao contrrio" [ibid., pp. 48-49]. Da o interesse de "um mtodo prudentemente regressivo" [ibid., p. 55]. Prudentemente, isto , que no transporte ingenuamente o presente para o passado e que no procure por outras vias um trajeto linear que seria to ilusrio como o sentido contrrio. H rupturas e descontinuidades inultrapassveis quer num sentido quer noutro. A idia da histria dominada pelo presente baseia-se numa clebre frase de Benedetto Croce em La stone come pensiero e cone azione,, que considera que "toda a histria" "histria contempornea". Croce entende por isso que "por mais afastados no tempo que paream os acontecimentos de que trata, na realidade, a histria liga-se s necessidades e s situaes presentes nas quais esses acontecimentos tm ressonncia" [1938, p. 5]. De fato, Croce pensa que, a partir do momento em que os acontecimentos histricos podem ser repensados constantemente, deixam de estar "no tempo"; a histria o "conhecimento do eterno presente" [Gardiner, 1952]. Esta forma extrema de idealismo a negao da histria. Como E.H. Carr notou, Croce inspirou a tese de Collingwood em The Idea of History [1932], recolha de artigos pstuma, onde o historiador britnico afirma misturando os dois sentidos de histria, a investigao do historiador e as sries de acontecimentos passados, sobre os quais investiga que ia "histria no trata nem "do passado enquanto tal" nem, das "concepes do historiador enquanto tais", mas da "inter-relao entre os dois aspectos" [Carr, 1961, pp. 15-16]. Concepo simultaneamente fecunda e perigosa. Fecunda, porque verdade que o historiador parte do presente para pr questes ao passado. Perigosa, porque se o passado tem, apesar de tudo, uma existncia na sua relao com o presente, intil acreditar num passado independente daquele que o historiador constri (veja-se o suplemento 16 de "History and Theory", The constitution of the historical past, 1977). Esta considerao condena todas as concepes dum passado "ontolgico" como expresso, por exemplo, na definio de histria de mile Callot: "Uma narrao inteligvel de um passado definitivamente esgotado" [1962, p. 32]. O passado uma construo e uma reinterpretao constante e tem um futuro que parte integrante e significativa da histria. Isto verdadeiro em dois sentidos. Primeiro, [pg. 025] porque o progresso dos mtodos e das tcnicas permite pensar que uma parte importante dos documentos do passado est ainda por se descobrir. Parte material: a arqueologia decorre sem cessar dos monumentos desconhecidos do passado; os arquivos do passado continuam incessantemente a enriquecer-se. Novas leituras de documentos, frutos de um presente que nascer no futuro, devem tambm assegurar ao passado uma sobrevivncia ou melhor, uma vida , que deixa de ser "definitivamente passado". relao essencial presente-passado devemos pois acrescentar o horizonte do futuro. Ainda aqui os sentidos so mltiplos. As teologias da histria subordinaram-na a um objetivo definido como o seu fim, o seu cumprimento e a sua revelao. Isto verdadeiro na histria crist, absorvida pela escatologia; mas tambm o no materialismo histrico (na sua verso ideolgica) que se baseia numa cincia do passado, um desejo de futuro no dependente apenas da fuso duma anlise cientfica da histria passada e duma prtica revolucionria, esclarecida por essa anlise. Uma das tarefas da cincia histrica consiste em introduzir, por outras vias que no a ideologia e respeitando-a imprevisibilidade do futuro, o horizonte do futuro na sua reflexo [Erdmann, 1964; Schulin, 1973]. Pense-se simplesmente nesta constatao banal mas cheia de conseqncias um elemento fundamental dos historiadores dos perodos antigos o fato de saberem o que se passou depois. Os historiadores do contemporneo, do tempo presente, ignoram-no. A histria contempornea difere assim (h outras razes para esta diferena) da histria das pocas anteriores. Esta dependncia da histria do passado em relao ao presente deve levar o historiador a tomar certas precaues. Ela inevitvel e legitima, na medida em que o passado no deixa de viver e de se tomar presente. Esta longa durao do passado no deve, no entanto, impedir o historiador de se distanciar do passado, uma distncia reverente, necessria para o respeitar e evitar o anacronismo. Penso que a histria bem a cincia do passado, com a condio de saber que este passado se torna objeto da histria, por uma reconstruo incessantemente reposta em causa no podemos falar das cruzadas como o teramos feito antes do colonialismo [pg. 026] do sculo XIX, mas devemos interrogar-nos sobre se, e em que perspectivas, o termo "colonialismo" pode ser aplicado instalao dos Cruzados da Idade Mdia, na Palestina [Prawer, 1969-701. Esta interao entre passado e presente aquilo a que se chamou a funo social do passado ou da histria. Tambm Lucien Febvre [1949]: "A histria recolhe sistematicamente, classificando e agrupando os fatos passados, em funo das suas necessidades atuais. em funo da vida que ela interroga a morte. Organizar o passado em funo do presente: assim se poderia definira funo social da histria' (1949, p. 438). E Eric Hobsbawm interrogou-se sobre a "funo social do passado" [1972; veja-se tambm o artigo "Passado/presente" neste volume da Enciclopdia]. Daremos ainda alguns exemplos de como cada poca fabrica mentalmente a sua representao do passado histrico. Georges Duby [ 1973] ressuscitou, recriou a batalha de Bouvines (27 de julho de 1214), vitria decisiva do rei da Frana Filipe Augusto sobre o imperador Oto IV e os seus aliados. Orquestrada pelos historigrafos franceses e tornada lendria, a batalha, depois do sculo XIII, caiu no esquecimento; conheceu depois uma ressurreio no sculo XVII, porque exaltava a recordao da monarquia francesa, sob a Monarquia de Julho, porque os historiadores liberais e burgueses (Guizot, Augustin Thierry) vem nela uma aliana benfica entre a realeza e o povo, e entre 1871 e 1914, como uma primeira vitria dos franceses sobre os alemes"! Depois de 1945, Bouvines cai no desprezo da histria-batalha. Nicole Loraux e Pierre Vidal-Naquet mostraram como na Frana, de 1750 a 1850, de Montesquieu a Victor Duruy, se monta uma imagem "burguesa" de Atenas antiga,cujas principais pais caractersticas teriam sido o "respeito pela propriedade, respeito pela vida privada, expanso do comrcio, do trabalho e da indstria" e onde se reencontram as mesmas hesitaes da burguesia do sculo XIX: "Repblica ou Imprio? Imprio autoritrio? Imprio liberal? Atenas assume simultaneamente todas estas figuraes" [Loraux e Vidal-Naquet, 1979, pp. 207-8, 222]. Entretanto, Zvi Yavetz, interrogando-se sobre as razes [pg. 027] pelas quais Roma teria sido o modelo histrico da Alemanha no incio do sculo XIX respondia: "Porque o conflito entre senhores e camponeses prussianos arbitrado depois de Jena (1806) pela interveno reformista do Estado, sob o controle de estadistas prussianos, fornecia um modelo que se julgava reencontrar na histria de Roma antiga: Niebuhr, autor da Rmische Geschichte, aparecida em 1811-12, era ntimo colaborador do ministro prussiano Stein" [1976, pp. 289-90]. Philippe Joutard [ 1977] seguiu a par e passo a memria do levantamento popular dos camisards huguenotes nas Cevenas, no incio do sculo XVIII. Na historiografia escrita apareceu, em 1840, uma viragem. At ento, os historiadores, catlicos ou protestantes, s nutriam desprezo por esta revolta de camponeses. Mas com a Histoire des pasteurs du dsert de Napolon Peyrat (1843), Les Prophtes protestants de Ami Bost (1842) e depois com a Histoire de France de Michelet (1833-67), desenvolveu-se a lenda dourada dos "Camisards", qual se ope uma lenda catlica. Esta oposio alimenta-se explicitamente com as paixes polticas da segunda metade do sculo XIX, levando ao confronto entre partidrios do movimento e defensores da ordem, erigindo estes os "camisards" em antepassados de todas as revoltas do sculo XIX, pioneiros do "eterno exrcito da desordem", "os primeiros precursores dos demolidores da Bastilha", os precursores dos "Convnunards" (partidrios da Comuna de Paris) e dos "atuais socialistas, os seus descendentes diretos", com os quais "teriam aprendido o direito pilhagem, ao homicdio e ao incndio, em nome da liberdade da greve". Entretanto, num outro registro de memria, transmitida pela tradio oral e segregada por uma "outra histria", Philippe Joutard encontrou uma lenda positiva e viva dos "Camisards", mas que tambm funciona em relao ao presente e faz dos revoltosos de 1702 "os laicos e os republicanos" do final do reinado de Lus XIV. Mais tarde, o despertar regionalista transforma-os em rebeldes occitanos e a Resistncia, em maquisards. Foi tambm em funo de posies e idias contemporneas que nasceu na Itlia, aps a Pria Guerra Mundial, uma polmica sobre a Idade Mdia (Falco, Severino). Ainda recentemente, o medievalista Ovidio Capitani evocou a distncia e a [pg. 028] proximidade da Idade Mdia, numa recolha de ensaios com um ttulo significativo, Medioevo passato prossimo: "A atualidade da Idade Mdia esta: saber que nada pode fazer, exceto procurar Deus l onde ele no se encontra... A Idade Mdia "atual", porque passado: mas passado enquanto elemento que se ligou nossa histria de maneira definitiva, para sempre, e que obriga a ter em conta, grande complexo de respostas que o homem j deu e das quais no pode esquecer-se, mesmo que tenha verificado a sua inadequao. A nica seria abolir a histria..." [1979, p. 276]. Dessa forma, a historiografia surge como seqncia de novas leituras do passado, plena de perdas e ressurreies, falhas de memria e revises. Estas atualizaes tambm podem afetar o vocabulrio do historiador, introduzindo-lhe anacronismos conceituais e verbais, que falseiam gravemente a qualidade do seu trabalho. o que acontece em exemplos relativos histria inglesa e europia entre 1450 e 1650 e, a propsito de termos como "partido", "classe", etc., Hexter reclamou uma grande e rigorosa reviso do vocabulrio histrico. Collingwood viu nesta relao entre passado e presente o objeto privilegiado da reflexo do historiador sobre o seu trabalho: "O passado um aspecto ou uma funo do presente; sempre assim que ele deve aparecer ao historiador que reflete inteligentemente sobre o seu prprio trabalho ou, dito de outro modo, visa uma filosofia da histria" [cf. Debbins, 1965, p. 139]. Esta relao entre presente e passado no discurso sobre a histria sempre um aspecto essencial do problema tradicional da objetividade em histria. 1.2 Saber e poder: objetividade e manipulao do passado Segundo Heidegger, a histria seria no s a projeo que o homem faz do presente no passado, mas a projeo da parte mais imaginria do seu presente, a projeo no passado do futuro que ele escolheu, uma histria-fico, uma histria-desejo s [pg. 029] avessas. Paul Veyne tem razo em condenar este ponto de vista e em dizer que Heidegger "mais no faz do que erigir em filosofia antiintelectualista a historiografia nacionalista do sculo passado". Mas no revela grande otimismo ao acrescentar: "Entretanto, tal como a ave de Minerva, despertou um pouco tarde demais" [1968, p. 424]? Em primeiro lugar, porque h pelo menos duas histrias e voltarei a este ponto: a da memria coletiva e a dos historiadores. A primeira essencialmente mtica, deformada, anacrnica, mas constitui o vivido desta relao nunca acabada entre o presente e o passado. desejvel que a informao histrica, fornecida pelos historiadores de ofcio, vulgarizada pela escola (ou pelo menos deveria s-lo) e os mass media, corrija esta histria tradicional falseada. A histria deve esclarecer a memria e ajud-la a retificar os seus erros. Mas estar o historiador imunizado contra uma doena seno do passado, pelo menos do presente e, talvez, uma imagem inconsciente de um futuro sonhado? Deve estabelecer-se uma primeira distino entre objetividade e imparcialidade: "A imparcialidade deliberada, a objetividade inconsciente. O historiador no tem o direito de prosseguir uma demonstrao, de defender uma causa, seja ela qual, for, a despeito dos testemunhos. Deve estabelecer e evidenciar a verdade ou o que julga' ser a verdade. Mas -lhe impossvel ser objetivo, abstrair das suas concepes de homem, nomeadamente quando se trata de avaliar a importncia dos fatos e as suas relaes causais" [Gnicot, 1980, p. 112]. preciso ir mais longe. Se esta distino bastasse, o problema da objetividade no seria, segundo a expresso de Carr, a "famous crux" que fez correr muita tinta. [Veja-se especialmente Junker e Reisinger, 1974; Leff, 1969; Passmore, 1598; Blake, 1959]. Assinalemos para comear as incidncias do meio social sobre as idias e mtodos do historiador. Wolfgang Mommsen destacou trs elementos desta presso social: 1) A imagem que tem de si prprio (self-image) o grupo social que o historiador interpreta, ao qual pertence ou est enfeudado; 2) A sua concepo das causas da mudana social; 3) A perspectiva de mudanas [pg. 030] sociais futuras que o historiador julga provveis ou'possveis e que orientam'a sua interpretao histrica" [1978, p. 23]. Mas se no podemos evitar todo o "pressentimento" toda a influncia deformante do presente na leitura do passado , podemos limitar as conseqncias nefastas para a objetividade. Primeiro e voltarei a este fato capital porque existe um corpo de especialistas habilitados a examinar e a julgar a produo dos seus colegas "Tucdides no um colega", disse judiciosamente Nicole Loraux mostrando que a Guerra do Peloponeso, embora se nos apresente como um documento que d todas as garantias de seriedade ao discurso histrico, no um documento no sentido moderno do termo, mas um texto, um texto antigo, que , antes de mais nada, um discurso e que pertence ao domnio da retrica [Loraux, 1980]. Mostrarei mais tarde como Nicole Loraux bem sabe que todo o documento um monumento ou um texto, e nunca "puro", isto , puramente objetivo. Falta referir que desde que h histria, h entrada no mundo de profissionais, exposio crtica dos outros historiadores. Quando um pintor diz do quadro de um outro pintor: "est mal feito", um escritor da obra de um outro escritor: "est mal escrito", ningum se engana com esse comentrio, que significa: "no gosto disso". Mas quando um historiador critica a obra de um "colega" pode certamente enganar-se a si mesmo e uma parte do seu juzo pode ter origem no seu gosto pessoal, mas a sua crtica dever basear-se, pelo menos em parte, em critrios "cientficos". Desde o alvorecer da histria que se julga o historiador pela medida da verdade. Com razo ou sem ela, Herdoto passa durante muito tempo por "mentiroso" [Momigliano, 1958; cf. tambm Hartog, 1980] e Polbio, no livro XII das suas Histrias, ataca sobretudo um confrade, Timeu. Como disse Wolfgang Mommsen, as obras histricas, os juzos histricos so "intersubjetivamente compreensveis" e "intersubjetivamente verificveis". Esta intersubjetividade constituda pelo juzo dos outros e, em primeiro lugar, dos historiadores. Mommsen indica trs modos de verificao: a) Foram as fontes pertinentes utilizadas e o ltimo estgio de investigao foi tomado em considerao? b) At que ponto estes juzos htricos se aproximaram de uma integrao tima de todos os [pg. 031] dados histricos possveis? c) Os modelos explcitos ou subjacentes de explicao so rigorosos, coerentes e no-contraditrios?" [1978, p. 33]. Poder-se-ia encontrar outros critrios, mas a possibilidade de um largo acordo entre os especialistas sobre o valor de uma grande parte de toda a obra histrica a primeira prova da "cientificidade" da histria e a pedra de toque da objetividade histrica. No entanto, se quisermos aplicar histria a mxima do grande jornalista liberal, Scott: "os fatos so sagrados, a opinio livre" [citado em Carr, 1961, p. 4], devemos fazer duas observaes. A primeira que em histria o campo de opinio menos vasto do que o profano julga, se nos mantivermos no campo da histria cientfica (falarei posteriormente da histria dos amadores). A segunda que, em contrapartida, os fatos so por vezes menos sagrados do que se pensa, pois, se fatos bem-estabelecidos no podem ser negados (por exemplo, a morte de Joana d'Arc na fogueira em Rouen em 1431, de que s duvidam os mistificadores e os ignorantes inqualificveis), o fato no em histria a base essencial de objetividade ao mesmo tempo porque os fatos histricos so fabricados e no dados e porque, em histria, a objetividade no a pura submisso aos fatos. Sobre a construo do fato histrico encontraremos esclarecimentos em todos os tratados de metodologia histrica [por exemplo, Salmon, 1969, ed. 1976, pp. 46-48; Carr, 1961, pp. 1-24; Topolski, 1973, parte V]. Citarei apenas Lucien Febvre na sua clebre sesso inaugural no Collge de France, a 13 de dezembro de 1933: "Dado? No, criado pelo historiador e, quantas vezes? Inventado e fabricado, com a ajuda de hipteses e conjecturas, por um trabalho delicado e apaixonante... Elaborar um fato constru-lo. Se quisermos, uma questo d-nos uma resposta. E, se no h questo, nfica mais que o nada" [1933, pp. 7-91. S h fato ou fato histrico no interior de uma histria-problema. Daremos em seguida dois testemunhos de que a objetividade histrica no a pura submisso aos fatos: "Toda a tentativa de compreender a realidade (histrica) sem hipteses subjetivas s conseguiria chegar a um caos de "juzos existenciais" sobre inmeros acontecimentos isolados" [Max Weber, 1904, 3 ed., 1958, p. 177]. [pg. 032] Carr fala com humor do "fetichismo dos fatos" dos historiadores positivistas do sculo XIX: "Ranke acreditava piamente que a divina Providncia cuidaria do sentido da Histria, se ele prprio cuidasse dos fatos... A concepo liberal da histria do sculo XIX tinha uma estrita afinidade com a doutrina econmica do laissez faire... Estava-se na idade da inocncia e os historiadores passeavam-se no Jardim do den... nus e sem vergonha, perante o deus da histria. Depois, conhecemos o Pecado e fizemos a experincia da queda e os historiadores que hoje pretendem dispensar uma filosofia da histria (tomada aqui no sentido de uma reflexo crtica sobre a prtica histrica) tentam simplesmente e em vo, como os membros duma colnia de nudistas, recriar o Jardim do den, no seu jardim de arrabalde" [1961, pp. 13-14]. Se a imparcialidade s exige do historiador honestidade, a objetividade supe mais. Se a memria faz parte do jogo do poder, se autoriza manipulaes conscientes ou inconscientes, se obedece aos interesses individuais ou coletivos, a histria, como todas as cincias, tem como norma a verdade. Os abusos da histria s so um fato do historiador, quando este se torna um partidrio, um poltico ou um lacaio do poder poltico [Schieder, 1978; Faber, 1978]. Quando Paul Valry declara: "A histria o ,produto mais perigoso que a qumica do intelecto elaborou... A histria justifica o que se quiser. No ensina rigorosamente nada, pois tudo contm e de tudo d exemplos" [1931, pp. 63-64]. Este esprito, alis to agudo, confunde a histria humana com a histria cientfica e revela a sua ignorncia sobre o trabalho histrico. Embora sendo um pouco otimista, Paul Veyne tem razo ao escrever: " no compreender nada do conhecimento histrico e da cincia em geral no ver que nela est subentendida uma norma de veracidade... Identificar a histria cientfica com as recordaes nacionais de onde ela veio confundir a essncia de uma coisa com a sua origem; j no distinguir a alquimia da qumica, a astronomia da astrologia... Desde o primeiro momento... que a histria dos historiadores se define contra a funo social das recordaes histricas e se considera a si mesma [pg. 033] como participando de um ideal de verdade e de um interesse de pura curiosidade" [1968, p. 424]. A objetividade histrica objetivo ambicioso constri-se pouco a pouco atravs de revises incessantes do trabalho histrico, laboriosas verificaes sucessivas e acumulao de verdades parciais. Quem talvez tenha exprimido melhor esta lenta marcha da histria para a objetividade foram dois filsofos. Paul Ricoeur na Histoire et Vrit: "Esperamos da histria uma certa objetividade, a objetividade que lhe compete; a maneira como a histria nasce e renasce, no-lo demonstra; ela procede sempre pela retificao das sistematizaes oficiais e pragmticas do seu passado, operadas pelas sociedades tradicionais. Esta retificao tem o mesmo esprito que a das cincias fsicas no confronto das suas primeiras sistematizaes com a aparncia da percepo e com as cosmologias que ainda lhe so tributrias [1955, pp. 24-25]. E Adam Schaft: "O nosso conhecimento adquiriu necessariamente a forma de um processo infinito que, aperfeioando o saber sobre diversos aspectos da realidade, analisada sob diferentes prismas e acumulando verdades parciais, no produz uma simples soma de conhecimentos, nem modificaes puramente quantitativas do saber, mas transformaes qualitativas da nossa viso da histria" [1970, pp. 338 ss.]. 1.3 O singular e o universal: generalizaes e singularidades da histria A contradio mais flagrante da histria sem dvida o fato do seu objeto ser singular, um acontecimento, uma srie de acontecimentos, de personagens que s existem uma vez, enquanto que o seu objetivo, como o de todas as cincias, atingir o universal, o geral, o regular. J Aristteles tinha afastado a histria do mundo das cincias, precisamente porque ela se ocupa do particular que no um objeto da cincia cada fato histrico s aconteceu e s [pg. 034] acontecer uma vez. Esta singularidade constitui, para muitos, produtores ou consumidores de histria, a sua principal atrao: "Amar o que nunca se ver duas vezes". A explicao histrica deve tratar dos objetos "nicos" [Gardiner, 1952, II, 3]. As conseqncias deste reconhecimento da singularidade do fato histrico podem ser reduzidas a trs que tiveram um enorme papel na histria da histria. A primeira a primazia do acontecimento. Se pensamos que, de fato, o trabalho histrico consiste em estabelecer acontecimentos, basta aplicar aos documentos um mtodo que deles os faa sair. Assim, Dibble [1963] distinguiu quatro tipos de inferncias, que levam dos documentos aos acontecimentos, em funo da natureza dos documentos que possam existir: testemunhos individuais (testimony), fontes coletivas (social bookkeeping), indicadores diretos (direct indicators), correlatos (correlates). Este mtodo excelente s tem o defeito de definir um objetivo contestvel. Em primeiro lugar, confunde acontecimento e fato histrico e sabemos hoje que o fim da histria no estabelecer esses dados falsamente "reais" batizados de acontecimentos ou fatos histricos. A segunda conseqncia da limitao da histria ao singular consiste em privilegiar o papel dos indivduos e, em especial, dos grandes homens. Edward H. Carr mostrou como, na tradio ocidental, esta tendncia remonta aos Gregos, que atriburam as suas mais antigas epopias e as suas primeiras leis a indivduos hipotticos (Homero, Licurgo e Slon), renovou-se no Renascimento com a voga de Plutarco; Carr reencontra o que chama jocosamente "a teoria da histria do "mau rei Joo" [Sem Terra]" (the bad king John theory of history) na obra de Isaiah Berlin Historical Inevitability (1954) [Carr, 1961]. Esta concepo, que desapareceu praticamente da histria cientfica, infelizmente continua a ser espalhada por vulgarizadores e pelos media, a comear pelos editores. No confundo esta explicao vulgar da histria feita por indivduos, com o gnero biogrfico que apesar dos seus erros e mediocridades um gnero maior da histria e produziu obras-primas historiogrficas como o Frederico II (Kaiser Friedrich der Zweite) de Ernest Kantorowicz (1927-31). Carr tem razo em lembrar o que Hegel [pg. 035] dizia dos grandes homens: "Os indivduos histricos so os que cumpriram e quiseram, no um objeto imaginado e presumido, mas uma realidade justa e necessria e que a cumpriram porque tiveram a revelao interior do que pertence realmente ao tempo e s necessidades" [Hegel, 1805-31]. De fato, como Michel de Certeau bem disse [19751, a especialidade da histria o particular, mas o particular, como o mostrou Elton [1967], diferente do individual e o particular especifica quer a ateno, quer a investigao histrica, no enquanto objeto pensado, mas, pelo contrrio, porque o limite do pensvel. A terceira conseqncia abusiva que se extraiu do papel do particular em histria consiste em reduzi-la a uma narrao, a um conto. Augustin Thierry, como nos recorda Roland Barthes, foi um dos defensores aparentemente dos mais ingnuos desta crena nas virtudes do conto histrico: "Disse-se que o objeto da histria era contar, no provar; no o sei, mas estou certo de que, em histria, o melhor gnero de prova, o mais capaz de tocar e convencer os espritos, o que inspira menor desconfiana e deixa menos dvidas, a narrao completa..." [1840, ed. 1851, II, p. 227]. Mas o que significa completa? Passemos por cima do fato de um conto histrico ou no ser uma construo e, sob a sua aparncia honesta e objetiva, proceder a toda uma srie de escolhas no-explcitas. Toda a concepo da histria que a identifica com o conto afigura-se-me hoje como inaceitvel. Certamente que a sucessividade que constitui o estofo do material histrico obriga a dar ao conto um lugar que me parece fundamentalmente de ordem pedaggica. Corresponde simplesmente necessidade que h, em histria, de expor o como, antes de procurar o porqu, o que coloca o conto na base da lgica do trabalho histrico. O conto no mais que uma fase preliminar, mesmo tendo exigido um longo trabalho prvio por parte do historiador. Mas este reconhecimento de uma retrica indispensvel em histria no deve conduzir-nos negao do carter cientfico da histria. Num livro sedutor, Hayden White [1973] estudou a obra dos principais historiadores do sculo XIX, entendendo-a como uma pura forma retrica, um discurso narrativo em prosa. Para [pg. 036] conseguirem explicar, ou melhor, para obterem um "efeito de explicao", os historiadores podem escolher entre trs estratgias: explicao por argumento formal, por intriga (emplotment) ou por implicao ideolgica. No interior dessas trs estratgias h quatro modos possveis de articulao, para atingir o efeito explicativo: para os argumentos h o formalismo, o organicismo, o mecanicismo e o contextualismo; para as intrigas h o romance, a comdia, a tragdia e a stira; para a implicao ideolgica h o anarquismo, o conservadorismo, o radicalismo e o liberalismo. A combinao especfica dos modos de articulao tem como resultado o "style" historiogrfico dos autores individuais. Este estilo atingido por um ato essencialmente potico, no qual Hayden White utiliza as categorias aristotlicas da metfora, da metonmia, da sindoque e da ironia. Aplicou esta trama a quatro historiadores: Michelet, Ranke, Tocqueville e Burckhardt e a quatro filsofos da histria: Hegel, Marx, Nietzsche e Croce. O resultado desta investigao , em primeiro lugar, a constatao que as obras dos principais filsofos da histria do sculo XIX s diferem das dos seus correspondentes no campo da "histria propriamente dita", pela nfase e no pelo contedo. Responderei de imediato a esta constatao que Hayden White mais no fez que descobrir a relativa unidade de estilo de uma poca e reencontrar o que Taine tinha posto em relevo numa perspectiva ainda mais vasta, relativamente ao sculo XVII: "Entre uma alia de Versailles, um raciocnio filosfico de Malebranche, uma regra de verificao de Boileau, uma lei de Colbert sobre as hipotecas, uma mxima de Bossuet sobre o reino de Deus, parece existir uma distncia infinita. Os fatos so to diferentes entre si que primeira vista os julgamos isolados e separados. Mas os fatos comunicam entre si pela definio dos grupos em que esto integrados" [citado em Ehrard e Palmade, 1964, p. 72]. Segue-se a caracterizao dos oito autores escolhidos da seguinte maneira: Michelet o realismo histrico, entendido como romance; Ranke, o realismo histrico, como comdia; Tocqueville, o realismo histrico, como tragdia; Burckhardt, o realismo histrico, como stira; Hegel, a potica da histria, e [pg. 037] da vida para alm da ironia; Marx, a defesa filosfica da histria em termos metonmicos; Nietzsche, a defesa potica da histria em termos metafsicos; e Croce, a defesa filosfica da histria em termos irnicos. As sete concluses gerais sobre a conscincia histrica no sculo XIX, propostas por Hayden White, podem resumir-se em trs idias: 1) No existe diferena fundamental entre histria e filosofia da histria; 2) A escolha das estratgias de explicao histrica mais de ordem moral ou esttica do que epistemolgica; 3) A reivindicao duma cientificidade da histria no mais que o disfarce de uma preferncia por esta ou aquela modalidade de conceitualizao histrica. E por fim, a concluso mais geral mesmo para alm da concepo de histria no sculo XIX que a obra do historiador uma forma de atividade simultaneamente potica, cientfica e filosfica. Seria demasiado fcil ironizar sobretudo a partir do esqueltico resumo que dei de um livro recheado de sugestivas anlises detalhadas sobre esta concepo de "meta-histria", os seus a priori e os seus simplismos. Vejo aqui duas possibilidades interessantes de reflexo. A primeira a que contribui para esclarecer a crise do historicismo no fim do sculo XIX, da qual falarei mais adiante. A segunda que ele permite pr com base num exemplo histrico o problema das relaes entre a histria como cincia, como arte e como filosofia. Parece-me que estas relaes se exprimem antes de mais nada historicamente e que, onde Hayden White v uma espcie de natureza intrnseca, h a situao histrica de uma disciplina; podemos dizer, em resumo, que a histria, intimamente misturada at o fim do sculo XIX com a arte e com a filosofia, se esfora (o que consegue parcialmente) por se tornar mais especfica, tcnica e cientfica e menos literria e filosfica. Devemos no entanto notar que alguns dos maiores historiadores contemporneos reivindicam ainda para a histria o carter de arte. Para Georges Duby, "a histria acima de tudo [pg. 038] uma arte, uma arte essencialmente literria. A histria s existe pelo discurso. Para que seja boa, preciso que o discurso seja bom" [Duby e Lardreau, 1980, p. 50]. Mas, como ele prprio afirma: "A histria, se deve existir, no deve ser livre: ela pode muito bem ser um modo do discurso poltico, mas no deve ser propaganda; pode muito bem ser um gnero literrio, mas no deve ser literatura" [ibid., pp. 15-16]. Torna-se pois claro que a obra histrica no uma obra de arte como as outras, que o discurso histrico tem a sua especificidade. A questo foi bem posta por Roland Barthes: "A narrao dos acontecimentos passados, submetida vulgarmente, na nossa cultura, desde os Gregos, sano da "cincia" histrica, colocada sob a cauo imperiosa do "real", justificada por princpios de exposio "racional", diferir esta narrao realmente, por algum trao especfico, por uma indubitvel pertinncia, da narrao imaginria, tal como a podemos encontrar na epopia, o romance ou o drama?" [1967, p. 65]. Tambm mile Benveniste tinha respondido a esta questo, insistindo na inteno do historiador: "O enunciado histrico dos acontecimentos independente da sua verdade "objetiva". S conta o desgnio "histrico" do escritor" [1959, p. 240]. A resposta de Roland Banhes, em termos lingsticos, que "na histria "objetiva" o "real" no mais que um significado no-formulado, abrigado sombra da aparente onipotncia do referente. Essa situao define aquilo a que se poderia chamar o efeito do real.... o discurso histrico no segue o real, apenas o significa, sem deixar de repetir aconteceu, sem que esta assero possa ser mais que o significado inverso de toda a narrao histrica" [1967, p. 74]. Barthes acaba o seu estudo esclarecendo a atual decadncia da histria-conto pela procura de uma maior cientificidade: "Assim se compreende que o esbater (seno o desaparecer) da narrao na cincia histrica atual, que procura falar mais de estruturas que de cronologias, mais que uma simples mudana de escola, implica uma verdadeira transformao ideolgica: a narrao histrica morre porque o signo da histria , daqui em diante, menos o real que o inteligvel" [ibid., p. 75]. Sobre uma outra ambigidade do termo "histria" que, na maior parte das lnguas designa a cincia histrica e um conto [pg. 039] imaginrio, a histria e uma histria (o ingls distingue story e history [cf. Gallie, 1963, pp. 150-72]), Paul Veyne estabeleceu uma viso original da histria. Para ele a histria um conto, uma narrao, mas "um conto de acontecimentos verdadeiros" [1971, p. 16]. Ela interessa-se por uma forma particular de singularidade, de individualidade, que o especfico: "A histria interessa-se por acontecimentos individualizados dos quais nenhum a intil repetio do outro, mas no a sua individualidade enquanto tal que a interessa: ela procura compreend-los, isto , reencontrar neles uma espcie de generalidade ou mais precisamente de especificidade" [ibid., p. 72]. E ainda: "A histria a descrio do que especfico, isto , compreensvel,os acontecimentos humanos" [ibid., p. 75]. A histria assemelha-se ento a um romance. feita de intrigas. Vemos o que esta noo tem de interessante, na medida em que preserva a singularidade sem a fazer cair na desordem, que recusa o determinismo mas implica uma certa lgica, que valoriza o papel do historiador que "constri" o seu estudo histrico, como um romancista constri a sua "histria". Esta noo tem, aos meus olhos, o defeito de fazer crer que o historiador tem a mesma liberdade que o romancista e que a histria no uma cincia, mas por muitas precaues que Veyne tome um gnero literrio; enquanto que ela me aparece como uma cincia o que banal, mas deve ser dito que tem ao mesmo tempo o carter de todas as cincias e caracteres especficos. Uma primeira preciso. Face aos defensores da histria positivista que julgam poder banir toda a imaginao e, at, toda a "idia" do trabalho histrico, muitos historiadores e tericos da histria reivindicaram e continuam a reivindicar o direito imaginao. William Dray definiu a "representao imaginativa" (imaginative re-enactment) do passado como uma forma de explicao racional. A "simpatia" que permite sentir e fazer sentir um fenmeno histrico no seria mais que uma tcnica de exposio [Dray, 1957; cf. Beer, 1963]. Gordon Leff ops a reconstruo imaginativa do historiador ao procedimento do especialista das cincias da natureza: "O historiador, ao contrrio do "natural scientist", deve criar o seu prprio quadro para avaliar [pg. 040] os acontecimentos de que trata; ele deve fazer uma reconstruo imaginativa do que, por natureza, no era real, mas estava contido em acontecimentos individuais. Deve abstrair do complexo de atitudes, valores, intenes e convenes que faz parte das nossas aes, para lhe apreender a significao" [1969, pp. 117- 18]. Esta apreciao da imaginao do historiador parece-me insuficiente. H duas espcies de imaginao a que o historiador pode recorrer: a que consiste em animar o que est morto nos documentos e faz parte do trabalho histrico, pois que este mostra e explica as aes dos homens. desejvel encontar esta capacidade de imaginao que torna o passado concreto tal como Georges Duby desejava encontrar talento literrio no historiador. Mas ainda mais desejvel, pois necessrio que o historiador revele essa outra forma de imaginao, a imaginao cientfica que, pelo contrrio, se manifesta pelo poder de abstrao. Nada aqui distingue, nem deve distinguir, o historiador dos outros homens de cincia. Ele deve trabalhar nos seus documentos com a mesma imaginao que o matemtico nos seus clculos, ou o fsico e o qumico nas suas experincias. uma questo de estado de esprito e resta-nos aqui seguir Huizinga quando declara que a histria no apenas um ramo do saber, mas tambm "uma forma intelectual para compreender o mundo" [1936]. Em contrapartida, deploro que um esprito to fino como Raymond Aron, na sua paixo empirista, tenha afirmado que os conceitos do historiador so vagos porque "na medida em que nos ligamos ao concreto eliminamos a generalidade" [1938a, p. 206]. Os conceitos do historiador so, com efeito, no vagos, mas por vezes metafricos, precisamente porque devem remeter ao mesmo tempo para o concreto e para o abstrato, sendo a histria como as outras cincias humanas ou sociais uma cincia, no tanto do complexo, como se gosta de dizer, mas do especfico, como o diz com razo Paul Veyne. A histria, como todas as cincias, deve generalizar e explicar. Faz isso de modo original. Como diz Gordon Leff, tal como muitos outros, o mtodo de explicao em histria essencialmente dedutivo. [pg. 041] "No haveria histria nem discurso conceitual sem generalizao... A compreenso histrica no difere pelos processos mentais que so inerentes a qualquer raciocnio humano, mas pelo seu estatuto que mais o de um saber dedutivo que demonstrvel" [1969, pp. 79-80]. A significao em histria tanto se faz tornando inteligvel um conjunto de dados inicialmente separados, como atravs da lgica interna de cada elemento: "A significao em histria essencialmente contextual" [ibid., p. 57]. Finalmente, em histria as explicaes so mais avaliaes do que demonstraes, mas inclm a opinio do historiador em termos racionais, inerentes ao processo intelectual de explicao: "Algumas formas de anlise causal so nitidamente indispensveis para qualquer tentativa de estabelecer relaes entre acontecimentos; tal como temos de distinguir entre acaso e necessidade, o historiador tem de decidir se cada situao regulada por fatores de longo termo ou curto termo. Mas, tal como as suas categorias, esses fatores so conceituais. No correspondem a entidades empiricamente confirmadas ou infirmadas. E, por isso, as explicaes da histria so avaliaes" [ibid., pp. 97-98]. Os tericos da histria esforaram-se, ao longo dos sculos, por introduzir grandes princpios suscetveis de fornecer chaves gerais da evoluo histrica. As duas principais noes avanadas foram, por um lado, a do sentido da histria e, por outro, a das leis da histria. A noo de um sentido da histria pode decompor-se em trs tipos de explicao: a crena em grandes m0ovimentos cclicos, a idia de um fim da histria consistindo na perfeio deste mundo, a teoria de um fim da histria situado fora dela [Beglar, 1975]. Podemos considerar que as concepes astecas ou, de certo modo, as de Arnold Toynbee, se integram na primeira opinio, o marxismo na segunda e o cristianismo na terceira. No interior do Cristianismo estabelece-se uma grande clivagem entre os que, com Santo Agostinho e a ortodoxia catlica, baseados na idia das duas cidades, a terrestre e a celeste, exposta na De civitate Dei, sublinham a ambivalncia do tempo da histria, presente tanto no caos aparente da histria humana [pg. 042] (Roma no eterna e no o fim da histria) como no fluxo escatolgico da histria divina e os que, com os milenaristas e Joaquim da Fiore, procuram conciliar a segunda e a terceira concepes do sentido da histria. A histria acabaria uma primeira vez com o aparecimento de uma terceira idade, reino dos santos na terra, antes de acabar com a ressurreio da carne e o juzo final. esta, no sculo XIII, a opinio de Joaquim da Fiore e dos seus discpulos que, no s nos faz sair da teoria da histria, como tambm da filosofia da histria, para nos fazer entrar na teologia da histria. No sculo XX, a renovao religiosa gerou em alguns pensadores uma recuperao da teologia da histria. O russo Berdjaev [1923] profetizou que as contradies da histria contempornea dariam lugar a uma nova criao conjunta do homem e de Deus. O protestantismo do sculo XX viu defrontarem-se diversas correntes escatolgicas: a da "escatologia conseqente" de Schweizer, a da "escatologia desmitificada" de Baltmann, a da "escatologia realizada" de Dodd, a da "escatologia antecipada" de Cullmann, entre outras (veja-se o artigo "Escatologia", neste volume da Enciclopdia). Retomando a anlise de Santo Agostinho, o historiador catlico Henri-Irne Marrou [1968] desenvolveu a idia da ambigidade do tempo da histria: "O tempo da histria est carregado de uma ambigidade, de uma ambivalncia radical: ele certamente, mas no s, como o imaginava uma doutrina superficial, um "fator de progresso"; a histria tem tambm uma face sinistra e sombria: este acontecimento que se cumpre misteriosamente, traa um caminho atravs do sofrimento, da morte, e da degradao" [1968]. Sobre a concepo cclica e a idia de decadncia, j escrevi noutro lado (veja-se o artigo "Decadncia", neste volume da Enciclopdia) e exporei mais adiante uma amostragem desta concepo, a filosofia da histria de Spengler. Sobre a idia do fim da histria, consistindo na perfeio deste mundo, a lei mais coerente que foi avanada foi a de progresso (ver artigo "Progresso/reao", neste volume da Enciclopdia. Nesse artigo mostrei o nascimento, triunfo e crtica da noo de progresso; apenas exporei aqui algumas observaes sobre o progresso tecnolgico) [cf. Gallie, 1963, pp. 191-93]. [pg. 043] Gordon Childe, depois de ter afirmado que o trabalho do historiador consistia em encontrar uma ordem no processo da histria humana [1953, p. 5] e defendido que no havia leis em histria mas uma "seqncia de ordem", tomou como exemplo desta ordem a tecnologia. Para ele, h um progresso tecnolgico "desde a Pr-histria Idade do Carvo", que consiste numa seqncia ordenada de acontecimentos histricos. Mas Gordon Childe lembra que, em cada fase, o progresso tcnico um "produto social" e, se procurarmos analis-lo desse ponto de vista, apercebemo-nos que o que parecia linear irregular (erratic) e, para explicar estas "irregularidades e estas flutuaes", temos de nos voltar para as instituies sociais, econmicas, polticas, jurdicas, teolgicas, mgicas, os costumes e as crenas que agiram como estmulos ou como freios em resumo, para toda a histria na sua complexidade. Mas ser legtimo isolar o domnio da tecnologia e considerar que o resto da histria no age sobre ele seno do exterior? No a tecnologia uma componente de um conjunto mais vasto, cujas partes s existem pela decomposio mais ou menos arbitrria feita pelo historiador? Este problema foi posto de uma maneira notvel por Bertrand Gille [1978, pp. VIII ss.], que d a noo de sistema tcnico, como um conjunto coerente de estruturas compatveis umas com as outras. Os sistemas tcnicos histricos revelam uma ordem tcnica. Este "modo de abordar o fenmeno tcnico" obriga a um dilogo com os especialistas dos outros sistemas: o economista, o lingista, o socilogo, o poltico, o jurista, o sbio, o filsofo... Desta concepo sai a necessidade de uma periodizao, no momento em que os sistemas tcnicos se sucedem uns aos outros, sendo o mais importante compreender, seno explicar totalmente, a passagem de um sistema tcnico a outro. Assim, pe-se o problema do progresso tcnico, no qual Gille distingue "progresso da tcnica" e "progresso tcnico", iniciando-se este com a entrada das invenes na vida industrial ou cotidiana. Gille nota ainda que "a dinmica dos sistemas", assim concebida, d um novo valor quilo a que se chama (expresso simultaneamente vaga e ambgua) as "revolues industriais". [pg. 044] Assim fica posto o problema a que chamarei, mais geralmente de o problema da revoluo em histria. Ele ps-se historiografia quer no domnio cultural (revoluo da imprensa [cf. McLuhan, 1962; Eisenstein, 1966], revoluo cientfica [cf. Kuhn, 1957]), quer na historiografia [Fussner, 1962; cf. Nadel, 1963], quer no campo poltico (Revolues: Inglesa de 1940, Francesa de 1789, Russa de 1917). Estes acontecimentos e a prpria noo de revoluo foram ainda recentemente objeto de vivas controvrsias. Parece-me que a tendncia atual consiste por um lado em repor o problema em correlao com a problemtica da longa durao [Voyelle, 1978] e, por outro, ver nas controvrsias em tomo "da" revoluo ou "das" revolues um campo privilegiado para os pressupostos ideolgicos e as escolhas polticas do presente. " um dos terrenos mais "sensveis" de toda a historiografia" [Chartier, 1978, p. 497]. A minha opinio que no h em histria leis comparveis s que foram descobertas no domio das cincias da natureza opinio largamente divulgada hoje com a refutao do historicismo e do marxismo vulgar e a desconfiana perante os filsofos da histria. Muito depende, alis, do sentido que se atribui s palavras. Reconhece-se hoje, por exemplo, que Marx no formulou leis gerais da histria mas que apenas conceitualizou o processo histrico, unificando teoria (crtica) e prtica (revolucionria) [Lichtheim, 1973]. Runciman disse, com justia, que a histria, tal como a sociologia e a antropologia, "uma consumidora e no uma produtora de leis" [1970, p. 10]. Mas, face s acusaes muitas vezes mais provocatrias que convincentes da irracionalidade da histria, a minha convico que o trabalho histrico tem por fim tomar inteligvel o processo histrico e que esta inteligibilidade conduz ao reconhecimento da regularidade na evoluo histrica. o que reconhecem os marxistas abertos mesmo se tm tendncia para fazer pender o termo 'regularidades' para o termo 'leis' [cf. Topolski, 1973, pp. 275-304]. Estas regularidades devem ser reconhecidas primeiro no interior de cada srie estudada pelo historiador, que a toma inteligvel descobrindo nela uma lgica, um sistema, termo que [pg. 045] prefiro a intriga, pois ele insiste mais no carter objetivo da operao histrica. H um provrbio que diz "Comparao no razo", mas o carter cientfico da histria reside tanto na valorizao das diferenas como das semelhanas, enquanto que as cincias da natureza procuram eliminar as diferenas. O acaso tem naturalmente um lugar no processo da histria e no perturba as regularidades, pois que o acaso um elemento constitutivo do processo histrico e da sua inteligibilidade. Montesquieu declarou que "se uma causa particular, como o resultado acidental de uma batalha, conduziu um estado runa, porque existia uma causa geral que fez com que a queda desse estado dependesse duma s batalha"; e Marx escreveu numa carta: "A histria universal teria um carter muito mstico se exclusse o acaso. Este acaso, bem entendido, faz parte do processo geral de desenvolvimento e compensado por outras formas de acaso. Mas a acelerao ou o atraso do processo dependem desses "acidentes", incluindo o carter "fortuito" dos indivduos que esto cabea do movimento na sua fase inicial" [citado em Carr, 1961, p. 95]. Recentemente, tentou-se avaliar a parte do acaso em certos episdios histricos. Assim, Jorge Basadre [1973] estudou a srie de probabilidades na emancipao do Peru. Utilizou os trabalhos de Vendrys [1952] e de Bousquet [1967]. Este ltimo defende que o esforo para matematizar o acaso exclui quer o providencialismo, quer a crena num determinismo universal. Segundo ele, o acaso no participa nem no processo cientfico, nem na evoluo econmica, e manifesta-se como tendncia para um equilbrio que elimina, no o prprio acaso mas as suas conseqncias. As formas de acaso mais "eficazes" em histria seriam o acaso meteorolgico, o assassinato, o nascimento de gnios. Esboada assim a questo das regularidades e da racionalidade em histria, resta-me evocar os problemas da unidade e da diversidade, da continuidade e da descontinuidade em histria. Como estes problemas esto no mago da crise atual da histria, voltarei a eles no final deste ensaio. Limitar-me-ei a dizer que, se o objetivo da verdadeira histria foi sempre o de ser uma histria global ou total integral, [pg. 046] perfeita como diziam os grandes historiadores do fim do sculo XVI , a histria, medida que se constitui como corpo de disciplina cientfica e escolar, deve encarnar-se em categorias que, pragmaticamente, a fracionam. Estas categorias dependem da prpria evoluo histrica: a primeira parte do sculo XX viu nascer a histria econmica e social, a segunda, a histria das mentalidades. Alguns, como Perelman [1969, p. 13], privilegiam a histria periodolgica, outros, as categorias sistemticas. Cada uma tem a sua utilidade, a sua necessidade. So instrumentos de trabalho e exposio. No tm qualquer realidade objetiva, substancial. Por isso, a aspirao dos historiadores totalidade histrica pode e deve adquirir formas diferentes que, tambm elas, evoluem com o tempo. O quadro pode ser constitudo por uma realidade geogrfica ou por um conceito: assim fez Fernand Braudel, primeiro, com o Mediterrneo no tempo de Filipe II e, depois, com a civilizao material e o capitalismo. Jacques Le Goff e Pierre Toubert [1975] procuraram, no quadro da histria medieval, mostrar como o objetivo de uma histria total parece hoje acessvel, de modo pertinente, atravs de objetos globalizantes, construdos pelo historiador; por exemplo, o incastellamento, a pobreza, a marginalidade, a idia de trabalho, etc. No penso que o mtodo das aproximaes mltiplas se no se alimentar de uma ideologia ecltica superada eja prejudicial ao trabalho do historiador. Ele por vezes mais ou menos imposto pelo estado da documentao, dado que cada tipo de fonte exige um tratamento diferente, no interior de uma problemtica de conjunto. Ao estudar o nascimento do Purgatrio dos sculos III e XIV no Ocidente, procurei em textos teolgicos, em histrias de vises e em exempla, de uso litrgico ou de prticas de devoo; e teria recorrido iconografia, se o Purgatrio no tivesse estado tanto tempo ausente dela. Analisei algumas vezes pensamentos individuais, outras mentalidades coletivas, ou ainda a mentalidade dos poderosos e das massas. Mas tive sempre presente que, sem determinismo nem fatalidade, com lentides, perdas, desvios, a crena no Purgatrio se tinha encamado no seio de um sistema e que este sistema s tinha sentido pelo seu funcionamento numa sociedade global [cf. Le Goff, 1981]. [pg. 047] Um estudo monogrfico, limitado no espao e no tempo, pode ser um excelente trabalho histrico, se levantar um problema e se se prestar comparao, se for conduzido como um case study. S me parece condenada a monografia fechada em si mesma, sem horizontes, que foi a filha dileta do positivismo e no est completamente morta. No que se refere continuidade e descontinuidade, j falei do conceito de revoluo. Gostaria de acabar a primeira parte deste ensaio insistindo no fato de que o historiador deve respeitar o tempo que, de diversas formas, a condio da histria e que deve fazer corresponder os seus quadros de explicao cronolgica durao do vivido. Datar e ser sempre uma das tarefas fundamentais do historiador, mas deve fazer-se acompanhar de outra manipulao necessria da durao a periodizao para que a datao se torne historicamente pensvel. Gordon Leff recordou com veemncia: "A periodizao indispensvel a qualquer forma de compreenso histrica" [1969, p. 130], acrescentando com pertinncia: "A periodizao, como a prpria histria, um processo emprico, delineado pelo historiador" [ibid., p. 150]. Acrescentarei apenas que no h histria imvel e que a histria tambm no a pura mudana, mas sim o estado das mudanas significativas. A periodizao o principal instrumento de inteligibilidade das mudanas significativas. 2. A mentalidade histrica os homens e o passado Anteriormente citei alguns exemplos do modo como os homens constroem e reconstroem o seu passado. , em geral, o lugar que o passado ocupa nas sociedades, o que aqui me interessa. Adoto, neste ensaio, a expresso 'cultura histrica', usada por Bernard Guene [1980]. Sob este termo, Guene rene a bagagem profissional do historiador, a sua biblioteca de obras histricas, o pblico e a audincia dos historiadores. Acrescento-lhes a relao que uma sociedade, na sua psicologia coletiva, [pg. 048] mantm com o passado. A minha concepo no est muito afastada daquilo a que os anglo-saxnicos chamam historical mindedness. Conheo os riscos desta reflexo. Considerar como unidade uma realidade complexa e estruturada em classes ou, pelo menos, em categorias sociais distintas pelos seus interesses e cultura ou supor um "esprito do tempo" (