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Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 8, N. 2, 2017, p. 1356-1388. Flávia Piovesan DOI: 10.12957/dep.2017.28029| ISSN: 2179-8966 1356 Ius constitutionale commune latino-americano em Direitos Humanos e o Sistema Interamericano: perspectivas e desafios Latin American Human Rights Ius constitutionale comune and the Inter- American Human Rights System: Perspectives and Challenges Flávia Piovesan Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected]. Recebido e aceito em março de 2017.

Ius constitutionale commune latino-americano em Direitos ......Flávia Piovesan DOI: 10.12957/dep.2017.28029| ISSN: 2179-8966 1356 Ius constitutionale commune latino-americano em Direitos

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Ius constitutionale commune latino-americano emDireitos Humanos e o Sistema Interamericano:perspectivasedesafiosLatin American Human Rights Ius constitutionale comune and the Inter-AmericanHumanRightsSystem:PerspectivesandChallengesFláviaPiovesanPontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil. E-mail:[email protected]çode2017.

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Resumo

Objetiva este artigo enfocar o impacto do sistema interamericano de direitos

humanos na composição de um ius constitutionale commune latino-americano.

Considerando o contexto social e político latino-americano, será estudado

inicialmente o impacto transformador do sistema interamericano na região, a

partir de uma tipologia de casos emblemáticos da jurisprudência da Corte

Interamericana.Àestaanálisesoma-seoexamedocrescenteempoderamentodo

sistemainteramericanoesuaforçacatalizadoranaregião,frutodaefetividadedo

diálogo jurisdicional em um sistema multinível. Por fim, pretende-se avaliar o

impacto do sistema interamericano na pavimentação de um ius constitutionale

communelatino-americanoemmatériadedireitoshumanos,comênfaseemseus

riscos,potencialidadesedesafios.

Palavras-chaves: Sistema interamericano; direitos humanos; jurisprudência

interamericana;iusconstitutionalecommune;sistemamultinivel.

Abstract

Themain purpose of this paper is to focus on the impact of the inter-american

system inthecreationofa IusConstitutionaleCommune inLatinAmerica. In the

light of the social and political latin-american context, the paper will study the

transformative impact of the inter-american system on the region, adopting a

tipologyofemblematiccasesfromthejurisprudenceoftheInter-AmericanCourt.

In addition, the paper will deal with the growing empowerment of the inter-

americanhumanrightssystemanditsspecial impactintheregion,whichderives

fromajudicialdialogueinamulti level legalsystem.Finally,thestudyintendsto

evaluate the impact ot the inter-american system in the consolidation of a ius

constitutionale commune in LatinAmerica inhuman rights,emphasizing its risks,

potencialitiesandchallenges.

Keywords:Inter-americansystem;humanrights;inter-americanjurisprudence;ius

constitutionalecommune;multilevelsystem.

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1. Introdução

Objetiva este artigo enfocar o impacto do sistema interamericano de direitos

humanos na composição de um ius constitutionale commune latino-americano,

com destaque às transformações fomentadas na região, com vistas ao

fortalecimento do Estado de Direito, da democracia e dos direitos humanos na

região.

Considerando o desafiador contexto latino-americano, sob asmarcas da

acentuadadesigualdade,violênciasistêmicaecentralismodopoderpolítico,será

estudado inicialmente o impacto transformador do sistema interamericano na

região,apartirdeumatipologiadecasosemblemáticosdajurisprudênciadaCorte

Interamericana.

Àestaanálisesoma-seoexamedocrescenteempoderamentodosistema

interamericanoesuaforçacatalizadoranaregião,frutodaefetividadedodiálogo

jurisdicional em um sistema multinível. É sob esta perspectiva multinível que

emergemduasvertentesdodiálogojurisdicional,acompreenderodiálogocomos

sistemasnacionais(aabrangerocontroledaconvencionalidade)eodiálogocoma

sociedade civil (a emprestar ao sistema interamericano crescente legitimação

social).

Por fim, pretende-se avaliar o impacto do sistema interamericano na

pavimentação de um ius constitutionale commune latino-americano emmatéria

dedireitoshumanos,comênfaseemseusriscos,potencialidadesedesafios.

2. Desenvolvimento

2.1. Desafios do Contexto latino-americano: violência, desigualdade e

centralismodopoderpolítico

AAméricaLatinaostentaomaiorgraudedesigualdadedomundo.Apobrezana

região diminuiu do patamar de 48,3% a 33,2%, no período de 1990 e 2008.

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Todavia,cincodosdezpaísesmaisdesiguaisdomundoestãonaAméricaLatina,

dentre eles o Brasil1. Na América Latina, 40,5% das crianças e adolescentes são

pobres.

Sob o prisma étnico-racial, de acordo com o International Development

Bank, a população afro-descendente corresponde a aproximadamente 25% da

população latino-americana. No que se refere à população indígena, estima-se

corresponder a 8% da população latino-americana. Indicadores sociais

demonstram o sistemático padrão de discriminação, exclusão e violência a

acometer as populações afro-descendentes e indígenas na região, sendo que

mulheres e crianças são alvo de formasmúltiplas de discriminação (overlapping

discrimination). Conclui-se, assim, que em média 33% da população latino-

americana enfrenta um grave padrão de violação a direitos. Povos indígenas e

afro-descendentesestãodesproporcionalmenterepresentadosentreapopulação

emsituaçãodepobrezaemiséria,sendoqueasmulheressofremaindamaiorgrau

devulnerabilidade,pormeiodaetnizaçãoedafeminizaçãodapobreza.

Não bastando o acentuado grau de desigualdade, a região ainda se

destacaporseramaisviolentadomundo.Concentra27%doshomicídios,tendo

apenas 9% da população mundial. Dez dos vinte países com maiores taxas de

homicídiodomundosãolatino-americanos2.

Na pesquisa Latinobarômetro 2013 sobre o apoio à democracia na

América Latina, embora 56% dos entrevistados considerarem a democracia

preferívelaqualqueroutra formadegoverno,a respostaafirmativaencontrano

Brasiloendossodeapenas49%enoMéxico37%.Deacordocomapesquisa,31%

consideramquepodehaverdemocraciasempartidospolíticose27%consideram

queademocraciapodefuncionarsemCongressoNacional.

Aregiãolatino-americanamarcadaporsociedadespós-coloniaistemassim

sido caracterizada por elevado grau de exclusão e violência ao qual se somam

democracias em fase de consolidação. A região sofre com um centralismo

1MartaLagoseLucíaDammert,LaSeguridadCiudadana:ElproblemaprincipaldeAméricaLatina,Latinobarómetro,9demaiode2012,p.3.

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autoritáriodepoder,oquevemageraro fenômenodo“hiperpresidencialismo”

ouformasde“democraciadelegativa”.Ademocratizaçãofortaleceuaproteçãode

direitos, sem, contudo, efetivar reformas institucionais profundas necessárias à

consolidação do Estado Democrático de Direito. A região ainda convive com as

reminiscênciasdolegadodosregimesautoritáriosditatoriais,comumaculturade

violênciaedeimpunidade,comabaixadensidadedeEstadosdeDireitosecoma

precáriatradiçãoderespeitoaosdireitoshumanosnoâmbitodoméstico.

Énestecontextopolítico,socialecultural,porcompartilhardeproblemas,

desafios, dilemas e tensões similares, que se justifica a defesa de um ius

constitutionalecommunelatino-americano.

2.2. Impacto transformador do Sistema Interamericano no contexto latino-

americano

A criação de um ius constitutionale commune latino-americano em matéria de

direitoshumanosdecorredacombinaçãode3(três)importantesfatoresaolongo

doprocessodedemocratizaçãonaregião:

1) o crescente empoderamento do sistema interamericano deproteção dos direitos humanos e seu impacto transformador naregião;2) a emergência de Constituições latino-americanas que, naqualidade de marcos jurídicos de transições democráticas e dainstitucionalização de direitos, apresentam cláusulas de aberturaconstitucional, a propiciarmaior diálogo e interação entre o DireitointernoeoDireitoInternacionaldosDiretosHumanos;3) o fortalecimento da sociedade civil na luta por direitos e porjustiça.

Énestecenárioqueosistemainteramericanogradativamenteselegitima

comoimportanteeeficazinstrumentoparaaproteçãodosdireitoshumanos.Com

aatuaçãodasociedadecivil,apartirdearticuladasecompetentesestratégiasde

2MartaLagoseLucíaDammert,LaSeguridadCiudadana:ElproblemaprincipaldeAméricaLatina,

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litigância, o sistema interamericano tem tido a força catalizadora de promover

avançosnoregimededireitoshumanos.

Permitiu a desestabilizaçãodos regimesditatoriais; exigiu justiça e o fim

da impunidade nas transições democráticas; e agora demanda o fortalecimento

das instituiçõesdemocráticas comonecessário combateàsviolaçõesdedireitos

humanoseproteçãoaosgruposmaisvulneráveis.

Dois períodos demarcam o contexto latino-americano: o período dos

regimes ditatoriais; e o período da transição política aos regimes democráticos,

marcadopelofimdasditadurasmilitaresnadécadade80,naArgentina,noChile,

noUruguaienoBrasil.

Em1978,quandoaConvençãoAmericanadeDireitosHumanosentrouem

vigor, muitos dos Estados da América Central e do Sul eram governados por

ditaduras. Dos 11 Estados-partes da Convenção à época, menos que a metade

tinha governos eleitos democraticamente, ao passoquehoje quase a totalidade

dosEstadoslatino-americanosnaregiãotemgovernoseleitosdemocraticamente3.

Diversamente do sistema regional europeu que teve como fonte inspiradora a

tríade indissociávelEstadodeDireito,DemocraciaeDireitosHumanos,osistema

regional interamericano tem em sua origem o paradoxo de nascer em um

ambiente acentuadamente autoritário, que não permitia qualquer associação

direta e imediata entre Democracia, Estado de Direito e Direitos Humanos.

Ademais,nestecontexto,osdireitoshumanoseramtradicionalmenteconcebidos

comoumaagendacontraoEstado.Diversamentedosistemaeuropeu,quesurge

como fruto do processo de integração européia e tem servido como relevante

instrumentoparafortaleceresteprocessode integração,nocaso interamericano

haviatãosomenteummovimentoaindaembrionáriodeintegraçãoregional.

Latinobarómetro,9demaiode2012,p.3.3 Como observa Thomas Buergenthal: “O fato de hoje quase a totalidade dos Estados latino-americanos na região, com exceção de Cuba, terem governos eleitos democraticamente temproduzido significativos avanços na situação dos direitos humanos nesses Estados. Estes EstadosratificaramaConvençãoereconheceramacompetênciajurisdicionaldaCorte”.(PrefáciodeThomasBuergenthal,JoM.Pasqualucci,ThePracticeandProcedureoftheInter-AmericanCourtonHumanRights, Cambridge, Cambridge University Press, 2003, p. XV). Em 2012, 22 Estados haviamreconhecido a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. De acordo com:http://www.cidh.oas.org/Basicos/English/Basic4.Amer.Conv.Ratif.htm(acessoem06/01/12).

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Considerando a atuação da Corte Interamericana, é possível criar uma

tipologia de casos baseada em decisões concernentes a 6 (seis) diferentes

categoriasdeviolaçãoadireitoshumanos:

1) Violaçõesquerefletemolegadodoregimeautoritárioditatorial

Esta categoria compreende a maioria significativa das decisões da Corte

Interamericana, que tem por objetivo prevenir arbitrariedades e controlar o

excessivousodaforça,impondolimitesaopoderpunitivodoEstado.

A título de exemplo, destaca-se o leading case – Velasquez Rodriguez

versus Honduras concernente a desaparecimento forçado. Em 1989 a Corte

condenou o Estado de Honduras a pagar uma compensação aos familiares da

vítima,bemcomoaodeverdeprevenir, investigar,processar,punire repararas

violaçõescometidas4.

Adicionem-se ainda decisões da Corte que condenaramEstados em face

de precárias e cruéis condições de detenção e da violação à integridade física,

psíquicaemoraldepessoasdetidas;ouemfacedapráticadeexecuçãosumáriae

extrajudicial; ou tortura. Estas decisões enfatizaram o dever do Estado de

investigar,processarepunirosresponsáveispelasviolações,bemcomodeefetuar

opagamentodeindenizações.

No plano consultivo, merecem menção as opiniões a respeito da

impossibilidade de adoção da pena de morte pelo Estado da Guatemala5 e da

impossibilidadede suspensãoda garantia judicial dehabeas corpus inclusiveem

situaçõesdeemergência,deacordocomoartigo27daConvençãoAmericana6.

4VelasquezRodriguezCase,Inter-AmericanCourtofHumanRights,1988,Ser.C,No.4.5AdvisoryOpinionNo.3/83,of8September1983.6AdvisoryOpinionNo.08/87,of30January1987.

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2)Violaçõesquerefletemquestõesdajustiçadetransição(transitionaljustice)

Nestacategoriadecasosestãoasdecisõesrelativasaocombateàimpunidade,às

leisdeanistiaeaodireitoàverdade.

NocasoBarriosAltos (massacrequeenvolveuaexecuçãode15pessoas

por agentes policiais), em virtude da promulgação e aplicação de leis de anistia

(umaqueconcedeanistiageralaosmilitares,policiaisecivis,eoutraquedispõe

sobre a interpretação e alcance da anistia), o Peru foi condenado a reabrir

investigações judiciais sobre os fatos em questão, relativos ao “massacre de

Barrios Altos”, de forma a derrogar ou a tornar sem efeito as leis de anistia

mencionadas.OPerufoicondenado,ainda,àreparação integraleadequadados

danosmateriaisemoraissofridospelosfamiliaresdasvítimas7.

Estadecisãoapresentouumelevadoimpactonaanulaçãodeleisdeanistia

e na consolidação do direito à verdade, pelo qual os familiares das vítimas e a

sociedadecomoumtododevemserinformadosdasviolações,realçandoodever

doEstadodeinvestigar,processar,punirerepararviolaçõesaosdireitoshumanos.

Concluiu a Corte que as leis de “auto-anistia” perpetuam a impunidade,

propiciamuma injustiça continuada, impedemàs vítimase aos seus familiareso

acesso à justiça e o direito de conhecer a verdade e de receber a reparação

correspondente, o que constituiria uma manifesta afronta à Convenção

Americana.Asleisdeanistiamconfigurariam,assim,umilícitointernacionalesua

revogaçãoumaformadereparaçãonãopecuniária.

No mesmo sentido, destaca-se o caso Almonacid Arellano versus Chile8

cujo objeto era a validade do decreto-lei 2191/78 -- que perdoava os crimes

cometidos entre1973e1978duranteo regimePinochet -- à luzdasobrigações

decorrentesdaConvençãoAmericanadeDireitosHumanos.DecidiuaCortepela

invalidadedomencionadodecretoleide“auto-anistia”,porimplicaradenegação

de justiçaàsvítimas,bemcomoporafrontarosdeveresdoEstadode investigar,

7BarriosAltoscase(ChumbipumaAguirreandothersvs.Peru).Judgmentof14March2001.8CasoAlmonacidArellanoandothersvs.Chile.Judgmentof26September2006.

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processar, punir e reparar graves violaçõesdedireitoshumanosque constituem

crimesdelesahumanidade.

Cite-se, ainda, o caso argentino, em que decisão da Corte Suprema de

Justiçade2005anulouas leisdepontofinal (Lei23.492/86)eobediênciadevida

(Lei23.521/87),adotandocomoprecedenteocasoBarriosAltos.

Em 2010, no caso Gomes Lund e outros versus Brasil, a Corte

InteramericanacondenouoBrasilemvirtudedodesaparecimentodeintegrantes

da guerrilhadoAraguaia durante as operaçõesmilitares ocorridasnadécadade

709. A Corte realçou que as disposições da lei de anistia de 1979 são

manifestamente incompatíveis comaConvençãoAmericana, carecemde efeitos

jurídicosenãopodemseguirrepresentandoumobstáculoparaainvestigaçãode

graves violações de direitos humanos, nem para a identificação e punição dos

responsáveis.Enfatizouque leisdeanistiarelativasagravesviolaçõesdedireitos

humanossão incompatíveis comoDireito Internacionaleasobrigações jurídicas

internacionais contraídas pelos Estados. Concluiu, uma vez mais, que as leis de

anistia violam o dever internacional do Estado de investigar e punir graves

violaçõesadireitoshumanos10.

Namesma direção, em 2011, no caso Gelman versusUruguai11, a Corte

Interamericanadecidiu que a “Lei deCaducidadedaPretensãoPunitiva” carecia

deefeitosjurídicosporsuaincompatibilidadecomaConvençãoAmericanaecom

a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, não

podendo impedir ou obstar a investigação dos fatos, a identificação e eventual

sançãodosresponsáveisporgravesviolaçõesadireitoshumanos.

9CasoGomesLundandothersversusBrasil,Judgmentof24November2010.OcasofoisubmetidoàCorte pela Comissão Interamericana, ao reconhecer que o caso “representava uma oportunidadeimportante para consolidar a jurisprudência interamericana sobre leis de anistia em relação aosdesaparecimentosforçadoseàsexecuçõesextrajudiciais,comaconsequenteobrigaçãodosEstadosde assegurar o conhecimento da verdade, bem como de investigar, processar e punir gravesviolaçõesdedireitoshumanos”.10Sobreo impactodadecisão,veja-se:MarceloTorelly,GomesLundvs.Brasilcincoanosdepois–histórico, impacto, evolução jurisprudencial e críticas. Em: Flávia Piovesan e Inês Virginia PradoSoares (orgs). O Impacto das Decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos naJurisprudênciaoSTF.Salvador:JusPodium,2016,525-560.11CasoGelmanversusUruguai,Judgmentof24February2011.

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3)Violaçõesquerefletemdesafiosacercadofortalecimentodeinstituiçõeseda

consolidaçãodoEstadodeDireito(ruleoflaw)

Esta terceira categoria de casos remete ao desafio do fortalecimento de

instituiçõesedaconsolidaçãodoruleoflaw,particularmentenoqueserefereao

acesso à justiça, proteção judicial e fortalecimento e independência do Poder

Judiciário.

Destaca-se o caso do Tribunal Constitucional contra o Peru (2001)12,

envolvendoadestituiçãodejuízes,emqueaCortereconheceunecessáriogarantir

a independência de qualquer juiz em um Estado de Direito, especialmente em

Cortesconstitucionais,oquedemanda:a)umadequadoprocessodenomeação;

b)ummandatocomprazocerto;ec)garantiascontrapressõesexternas.

Taldecisãocontribuiudecisivamenteparaofortalecimentodeinstituições

nacionaiseparaaconsolidaçãodoEstadodeDireito.

4) Violaçõesdedireitosdegruposvulneráveis

Esta quarta categoria de casos atém-se a decisões que afirmam a proteção de

direitosdegrupossocialmentevulneráveis,comoospovosindígenas,ascrianças,

osmigrantes,ospresos,dentreoutros.

Quantoaosdireitosdospovos indígenas, destaca-seo relevante casoda

comunidadeindígenaMayagnaAwasTingnicontraaNicarágua(2001)13,emquea

Cortereconheceuodireitosdospovos indígenasàpropriedadecoletivadaterra,

comouma tradição comunitária, e comoumdireito fundamental e básico à sua

cultura,àsuavidaespiritual,àsua integridadeeàsuasobrevivênciaeconômica.

Acrescentou que para os povos indígenas a relação com a terra não é somente

umaquestãodepossessãoeprodução,masumelementomaterialeespiritualde

12AguirreRocaandothersvs.Perucase(ConstitutionalCourtCase).Judgmentof31January2001.13Mayagna (Sumo)AwasTingniCommunity vs.Nicaragua, Inter-AmericanCourt, 2001, Ser.C,No.79.

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que devem gozar plenamente, inclusive para preservar seu legado cultural e

transmiti-loàsgeraçõesfuturas.

Emoutrocaso–casodacomunidadeindígenaYakyeAxacontraoParaguai

(2005)14 --, a Corte sustentou que os povos indígenas têm direito a medidas

específicas que garantam o acesso aos serviços de saúde, que devem ser

apropriados sob a perspectiva cultural, incluindo cuidados preventivos, práticas

curativasemedicinastradicionais.Adicionouqueparaospovosindígenasasaúde

apresentaumadimensãocoletiva,sendoquearupturadesuarelaçãosimbiótica

comaterraexerceumefeitoprejudicialsobreasaúdedestaspopulações.

No caso da comunidade indígena Xákmok Kásek v. Paraguai15, a Corte

InteramericanacondenouoEstadodoParaguaipelaafrontaaosdireitosàvida,à

propriedadecomunitáriaeàproteção judicial (artigos4º,21e25daConvenção

Americana,respectivamente),dentreoutrosdireitos,emfacedanãogarantiado

direitodepropriedadeancestral àaludida comunidade indígena,oqueestariaa

afetar seudireito à identidade cultural.Aomotivar a sentença, destacouqueos

conceitos tradicionais de propriedade privada e de possessão não se aplicam às

comunidades indígenas, pelo significado coletivo da terra, eis que a relação de

pertença não se centra no indivíduo, senão no grupo e na comunidade.

Acrescentou que o direito à propriedade coletiva estaria ainda a merecer igual

proteção pelo artigo 21 da Convenção (concernente ao direito `a propriedade

privada). Afirmou o dever do Estado em assegurar especial proteção às

comunidades indígenas, à luz de suas particularidades próprias, suas

características econômicas e sociais e suas especiais vulnerabilidades,

considerando o direito consuetudinário, os valores, os usos e os costumes dos

povosindígenas,deformaaassegurar-lhesodireitoàvidadigna,contemplandoo

acessoàáguapotável,alimentação,saúde,educação,dentreoutros.

14YakyeAxaCommunityvs.Paraguay,Inter-AmericanCourt,2005,Ser.C,No.125.15CorteInteramericanadeDireitosHumanos,CasoComunidadIndígenaXákmokKásek.vs.Paraguay,Fondo,ReparacionesyCostas.Sentenciade24deagostode2010SerieCN.214.Note-seque,nosistemaafricano,merecemençãoumcasoemblemáticoque,ineditamente,emnomedodireitoaodesenvolvimento, assegurou a proteção de povos indígenas às suas terras. Em 2010, a ComissãoAfricanadosDireitosHumanosedosPovosconsiderouqueomodopeloqualacomunidadeEndorois

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Nocasodosdireitosdascrianças,cabemençãoaocasoVillagranMorales

contra aGuatemala (1999)16, emque este Estado foi condenadopela Corte, em

virtude da impunidade relativa à morte de 5 meninos de rua, brutalmente

torturados e assassinados por 2 policiais nacionais da Guatemala. Dentre as

medidasde reparaçãoordenadaspelaCorteestão:opagamentode indenização

pecuniáriaaosfamiliaresdasvítimas;areformanoordenamentojurídicointerno

visandoàmaiorproteçãodosdireitosdascriançaseadolescentesguatemaltecos;

eaconstruçãodeumaescolaemmemóriadasdasvítimas.

Adicione-se, ainda, asopiniões consultivas sobrea condição jurídicaeos

direitoshumanosdascrianças(OC17,emitidaemagostode2002,porsolicitação

daComissãoInteramericanadeDireitosHumanos)esobreacondiçãojurídicaeos

direitosdemigrantessemdocumentos(OC18,emitidaemsetembrode2003,por

solicitaçãodoMéxico).

Mencione-se, também, o parecer emitido, por solicitação do México

(OC16,de01deoutubrode1999),emqueaCorteconsiderouvioladoodireitoao

devidoprocessolegal,quandoumEstadonãonotificaumpresoestrangeirodeseu

direito à assistência consular. Na hipótese, se o preso foi condenado à pena de

morte,issoconstituiriaprivaçãoarbitráriadodireitoàvida.Note-sequeoMéxico

embasou seu pedido de consulta nos vários casos de presos mexicanos

condenadosàpenademortenosEstadosUnidos.

Comrelaçãoaosdireitosdasmulheres,destacam-serelevantesdecisõesdo

sistema interamericano sobre discriminação e violência contra mulheres, o que

fomentouareformadoCódigoCivildaGuatemala,aadoçãodeumaleideviolência

domésticanoChileenoBrasil,dentreoutrosavanços17.NocasoGonzálezeoutras

contraoMéxico(caso“CampoAlgodonero”),aCorteInteramericanacondenouo

MéxicoemvirtudedodesaparecimentoemortedemulheresemCiudad Juarez,

sobo argumentodequeaomissãoestatal estava a contribuir para a culturada

no Kenya foi privada de suas terras tradicionais, tendo negado acesso a recursos, constitui umaviolaçãoadireitoshumanos,especialmenteaodireitoaodesenvolvimento.16 Villagran Morales et al versus Guatemala (The Street Children Case), Inter-American Court, 19November1999,Ser.C,No.63.17Arespeito,vercasoMaríaEugeniaversusGuatemalaecasoMariadaPenhaversusBrasildecididos

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violênciaedadiscriminaçãocontraamulher.Noperíodode1993a2003,estima-

se que de 260 a 370mulheres tenham sido vítimas de assassinatos, em Ciudad

Juarez.AsentençadaCortecondenouoEstadodoMéxicoaodeverdeinvestigar,

sobaperspectivadegênero,asgravesviolaçõesocorridas,garantindodireitose

adotandomedidaspreventivasnecessáriasde formaacombateradiscriminação

contraamulher18.

Ineditamente, em 24 de fevereiro de 2012, a Corte Interamericana

reconheceu a responsabilidade internacional do Estado do Chile em face do

tratamentodiscriminatórioe interferência indevidana vidaprivadae familiarda

vítimaKarenAtaladevidoàsuaorientaçãosexual19.Ocasofoiobjetode intenso

litígio judicialnoChile,queculminoucomadecisãodaCorteSupremadeJustiça

emdeterminar a custódia das três filhas aopai, sobo argumentodeque a Sra.

Atala não deveriamanter a custódia por conviver com pessoa domesmo sexo,

apósodivórcio.NoentenderunânimedaCorteInteramericana,oChileviolouos

artigos1º,parágrafo1ºe14daConvençãoAmericana,porafrontaroprincípioda

igualdadeedaproibiçãodadiscriminação.

5) Violaçõesadireitossociais

Nesta quinta categoria de casos emergem decisões da Corte que protegem

direitossociais.ImportareiterarqueaConvençãoAmericanadeDireitosHumanos

estabelecedireitoscivisepolíticos,contemplandoapenasaaplicaçãoprogressiva

dos direitos sociais (artigo 26). Já o Protocolo de San Salvador, ao dispor sobre

direitoseconômicos,sociaiseculturais,prevêquesomenteosdireitosàeducação

eàliberdadesindicalseriamtuteláveispelosistemadepetiçõesindividuais(artigo

19,parágrafo6º).

pelaComissãoInteramericana.18 Ver sentença de 16 de novembro de 2009. Disponível em:www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_205_esp.pdf.19CasoAtalaRiffoanddaughtersvs.Chile,Inter-AmericanCourt,24February2012,SeriesCN.239.

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À luz de uma interpretação dinâmica e evolutiva, compreendendo a

Convenção Americana como um living instrument, no já citado caso Villagran

MoralescontraaGuatemala20,aCorteafirmouqueodireitoàvidanãopodeser

concebidorestritivamente.Introduziuavisãodequeodireitoàvidacompreende

não apenas uma dimensão negativa – o direito a não ser privado da vida

arbitrariamente --, mas uma dimensão positiva, que demanda dos Estados

medidaspositivasapropriadasparaprotegerodireitoàvidadigna–o“direitoa

criaredesenvolverumprojetodevida”.Estainterpretaçãolançouumimportante

horizonteparaproteçãodosdireitossociais.

Emoutros julgados, aCorte temendossadoodever jurídicodosEstados

de conferir aplicaçãoprogressivaaosdireitos sociais, com fundamentonoartigo

26daConvençãoAmericanadeDireitosHumanos,especialmenteemsetratando

degrupossocialmentevulneráveis.NocasoniñasYeanyBosicoversusRepublica

Dominicana, a Corte enfatizou o dever dos Estados no tocante à aplicação

progressiva dos direitos sociais, a fim de assegurar o direito à educação, com

destaqueàespecialvulnerabilidadedemeninas.Sustentouque:

en relación con el deber de desarrollo progresivo contenido en elartículo 26 de la Convención, el Estado debe prover educaciónprimariagratuitaatodoslosmenores,enunambienteycondicionespropiciasparasuplenodesarrollointelectual.21

Há,ademais,umconjuntodedecisõesqueconsagramaproteçãoindireta

dedireitossociais,medianteaproteçãodedireitoscivis,oqueconfirmaaidéiada

indivisibilidadeedainterdependênciadosdireitoshumanos.

No caso Albán Cornejo y otros versus Equador22 referente à suposta

negligênciamédicaemhospitalparticular--mulherdeuentradanohospitalcom

quadrodemeningitebacterianae foimedicada, vindoa falecernodia seguinte,

provavelmente em decorrência do medicamento prescrito --, a Corte decidiu o

20 Villagran Morales et al versus Guatemala (The Street Children Case), Inter-American Court, 19November1999,Ser.C,No.63.21 Caso de las ninas Yean y Bosico v. Republica Dominicana, Inter-American Court, 08 November2005,Ser.C,N.130.

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caso com fundamento na proteção ao direito à integridade pessoal e não no

direito à saúde. No mesmo sentido, no caso Myrna Mack Chang versus

Guatemala23,concernenteadanosàsaúdedecorrentesdecondiçõesdedetenção,

umavezmaisaproteçãoaodireitoàsaúdedeu-sesoboargumentodaproteção

dodireitoàintegridadefísica.

Outros casosdeproteção indiretadedireitos sociais atêm-seàproteção

aodireitoaotrabalho,tendocomofundamentoodireitoaodevidoprocessolegal

eaproteção judicial.A respeito,destaca-seocasoBaenaRicardoyotrosversus

Panamá24, envolvendo a demissão arbitrária de 270 funcionários públicos que

participaramdemanifestação(greve).ACortecondenouoEstadodoPanamápela

violaçãodagarantiadodevidoprocessolegaleproteçãojudicial,determinandoo

pagamento de indenização e a reintegração dos 270 trabalhadores. No caso

Trabajadores cesados del congreso (Aguado Alfaro y otros) versus Peru25,

envolvendo a despedida arbitrária de 257 trabalhadores, a Corte condenou o

EstadodoPerutambémpelaafrontaaodevidoprocessolegaleproteçãojudicial.

Em ambos os casos, a condenação dos Estados teve como argumento central a

violação à garantia do devido processo legal e não a violação ao direito do

trabalho.

Umoutro casoemblemáticoéo caso “cincopensionistas” versusPeru26,

envolvendo a modificação do regime de pensão no Peru, em que a Corte

condenou o Estado com fundamento na violação ao direito de propriedade

privadaenãocomfundamentonaafrontaaodireitodeseguridadesocial,emface

dosdanossofridospelos5pensionistas.

No casoAcevedoBuendiavs. Peru27, aCorte reconheceuqueosdireitos

humanos devem ser interpretados sob a perspectiva de sua integralidade e

interdependência, a conjugar direitos civis e políticos e direitos econômicos,

22AlbánCornejoyotrosv.Ecuador,Inter-AmericanCourt,22November2007,serieCn.171.23MyrnaMackChangv.Guatemala,Inter-AmericanCourt,25November2003,serieCn.101.24BaenaRicardoyotrosv.Panamá,Inter-AmericanCourt,02February2001,serieCn.72.25CasoTrabajadorescesadosdelcongreso(AguadoAlfaroyotros)v.Peru,Inter-AmericanCourt,24November2006,serieCn.158.26Caso“cincopensionistas”v.Peru,Inter-AmericanCourt,28February2003,serieCn.98.

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sociais e culturais, inexistindo hierarquia entre eles e sendo todos direitos

exigíveis. Realçou ser a aplicação progressiva dos direitos sociais suscetível de

controle e fiscalização pelas instâncias competentes, destacando o dever dos

Estadosdenão-regressividadeemmatériadedireitossociais.

6)Violaçõesanovosdireitosdaagendacontemporânea

Finalmente, esta sexta categoriade casos compreendenovosdireitosdaagenda

contemporânea,comespecialdestaqueaosdireitosreprodutivos.

Em sentença proferida em 28 de novembro de 2012, a Corte

Interamericana de Direitos Humanos, no caso ArtaviaMurillo e outros contra a

CostaRica28,enfrentou,deformainédita,atemáticadafecundação“invitro”sob

aóticadosdireitoshumanos.OcasofoisubmetidopelaComissãoInteramericana,

soboargumentodequeaproibiçãogeraleabsolutadepraticara“fecundaçãoin

vitro” na Costa Rica desde 2000 estaria a implicar violação a direitos humanos.

Comefeito,pordecisãodaSalaConstitucionaldaCorteSupremadeJustiçade15

demarçode2000,apráticadafertilizaçãoinvitroatentariaclaramentecontraa

vida e a dignidade do ser humano. Todavia, no entender da Comissão, tal

proibiçãoestariaaconstituirumaingerênciaarbitráriacomrelaçãoaosdireitosà

vidaprivadae familiar,bemcomoaodireitode formaruma família.Aproibição

estariaaindaaafetarodireitodeigualdadedasvítimas,eisqueoEstadoestariaa

impedir o acesso a tratamento que permitiria superar uma situação de

desvantagem relativamente a ter filhas e filhos biológicos, com impacto

desproporcionalnasmulheres.OargumentodaComissãoédequeaproibiçãoda

fertilização in vitro afrontaria os direitos à vida privada e familiar; à integridade

pessoal;àsaúdesexualereprodutiva;bemcomoodireitodegozardosbenefícios

doprogressocientíficoetecnológicoeoprincípiodanãodiscriminação.

27CasoAcevedoBuendíayotros(“CesantesyJubiladosde laContraloría”)contraoPeru,sentençaprolatadaem01dejulhode2009.

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A partir de uma interpretação sistemática e histórica, com destaque à

normatividade e à jurisprudência dos sistemas universal, europeu e africano,

concluiuaCorte Interamericananão serpossível sustentarqueoembriãopossa

ser considerado pessoa. Recorrendo a uma interpretação evolutiva, a Corte

observou que o procedimento da fertilização in vitro não existia quando a

Convenção foi elaborada, conferindo especial relevância ao Direito Comparado,

por meio do diálogo com a experiência jurídica latino-americana e de outros

países,comoosEUAeaAlemanha,arespeitodamatéria.Concluiuqueterfilhos

biológicos, por meio de técnica de reprodução assistida, decorre dos direitos à

integridadepessoal,liberdadeevidaprivadaefamiliar.Argumentouqueodireito

absolutoà vidadoembrião -- comobasepara restringir direitos –nãoencontra

respaldonaConvençãoAmericana.Condenou,assim,aCostaRicaporviolaçãoaos

artigos 5º, parágrafo 1º, 7º, 11, parágrafo 2º e 17, parágrafo 2º da Convenção

Americana, determinando ao Estado adotar com a maior celeridade possível

medidas apropriadas para que fique sem efeito a proibição de praticar a

fertilização “in vitro”, assegurando às pessoas a possibilidade de valer-se deste

procedimento sem impedimentos. Determinou também ao Estado a

implementaçãodafertilização“invitro”, tornandodisponíveisosprogramaseos

tratamentos de infertilidade, com base no princípio da não discriminação.

AdicionouodeverdoEstadodeproporcionaràsvítimasatendimentopsicológico

de forma imediata, fomentando, ademais, programas e cursos de educação e

capacitaçãoemdireitoshumanos,nocampodosdireitosreprodutivos,sobretudo

aosfuncionáriosjudiciais.

Ainda no campo dos direitos reprodutivos, em 29 de maio de 2013,

ineditamente,aCorteconcedeumedidasprovisóriasemfacedeElSalvador29,em

conformidadecomosartigos63.2daConvençãoAmericanadeDireitosHumanos

e27doRegulamentodaCorte,emcasoenvolvendo interrupçãodegravidezem

28 Caso Artavia Murillo e outros (“fecundación in vitro”) vs. Costa Rica, Corte Interamericana deDireitosHumanos,sentençaproferidaem28denovembrode2012.29MedidasprovisóriasemfacedoEstadodeElSalvador,CorteInteramericanadeDireitosHumanos,29demaiode2013.

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virtudedeanencefaliafetal.Nahipótese,aSenhora“B”30encontrava-sena26ªde

gravidezdeumfetoanencefálico,portadordeanomalia incompatívelcomavida

extra-uterina. A Senhora “B” apresentava enfermidadematerna grave com risco

demortematerna.

A Corte determinou ao Estado de El Salvador a concessão de medidas

necessáriasparaprotegeravida,aintegridadepessoaleasaúdedaSenhora“B”,

considerando o urgente e iminente risco de dano irreparável. Endossou a

necessidadedoEstadodeElSalvadordeadotaregarantir,comurgência,todasas

medidasquesejamnecessáriaseefetivasparaqueaequipemédicaresponsável

pela Senhora “B” possa adotar, semqualquer interferência, asmedidasmédicas

paraasseguraradevidaproteçãoaosdireitosconsagradosnosartigos4ºe5ºda

Convenção Americana, evitando, assim, danos que possam ser irreparáveis aos

direitosàvida,àintegridadepessoaleàsaúdedaSenhora“B”.

2.3. O empoderamentodoSistema interamericanomedianteaefetividade

dodiálogojurisdicionalecrescentelegitimaçãosocial

Osistemainteramericanoécapazderevelaraspeculiariedadeseespecificidades

das lutasemancipatóriaspordireitosepor justiçana região latino-americana.O

sistema apresenta uma particular institucionalidademarcada pelo protagonismo

dediversosatores,emumpalcoemqueinteragemEstados,vítimas,organizações

dasociedadecivilnacionaiseinternacionais,aComissãoeaCorteInteramericana

noâmbitodaOrganizaçãodosEstadosAmericanos.

Neste contexto, o sistema interamericano gradativamente se empodera,

mediante diálogos a permitir o fortalecimento dos direitos humanos em um

sistemamultinível.Ésobestaperspectivamultinívelqueemergemduasvertentes

do diálogo jurisdicional, a compreender o diálogo com os sistemas nacionais (a

30PorsolicitaçãodaComissãoInteramericana,emrespeitoàidentidadeeàprivacidadedavítima,amesmaéidentificadacomoSenhora“B“.

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abranger o controle da convencionalidade) e o diálogo com a sociedade civil (a

emprestaraosistemainteramericanocrescentelegitimaçãosocial).

Arespeitododiálogocomossistemasnacionaisconsolida-seochamado

“controledeconvencionalidade”31.Talcontroleéreflexodeumnovoparadigmaa

nortear a cultura jurídica latino-americananaatualidade:daherméticapirâmide

centrada no State approach à permeabilidade do trapézio centrado no Human

rightsapproach.

Isto é, aos parâmetros constitucionais somam-se os parâmetros

convencionais, na composição de um trapézio juridico aberto ao diálogo, aos

empréstimos e à interdisciplinariedade, a resignificar o fenômeno jurídico sob a

inspiraçãodohumanrightsapproach.

No caso latino-americano, o processo de democratização na região,

deflagrado na década de 80, é que propiciou a incorporação de importantes

instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos pelos Estados

latino-americanos. Hoje constata-se que os países latino-americanos

subscreveram os principais tratados de direitos humanos adotados pela ONU e

pelaOEA.

De um lado, despontam Constituições latino-americanas com cláusulas

constitucionais abertas, com destaque à hierarquia especial dos tratados de

direitos humanos, à sua incorporação automática e às regras interpretativas

alicerçadasnoprincípiopropersona.

Com efeito, as Constituições latino-americanas estabelecem cláusulas

constitucionaisabertas,quepermitemaintegraçãoentreaordemconstitucionale

aordeminternacional,especialmentenocampodosdireitoshumanos,ampliando

eexpandindooblocodeconstitucionalidade.Aoprocessodeconstitucionalização

doDireito Internacional conjuga-se o processo de internacionalização doDireito

Constitucional. A título exemplificativo, a Constituição da Argentina, após a

reformaconstitucionalde1994,dispõe,noartigo75,inciso22,que,enquantoos

tratadosemgeraltêmhierarquiainfra-constitucional,massupra-legal,ostratados

31Umadescriçãodaevoluçãodoconceitoencontra-sedisponívelem:MarceloTorelly,GovernançaTransversaldosDireitosFundamentais,RiodeJaneiro:LumenJuris,2016,pp.236-258.

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de proteção dos direitos humanos têm hierarquia constitucional,

complementando os direitos e garantias constitucionalmente reconhecidos. A

Constituição Brasileira de 1988, no artigo 5º, parágrafo 2º, consagra que os

direitosegarantiasexpressosnaConstituiçãonãoexcluemosdireitosdecorrentes

dos princípios e do regime a ela aplicável e os direitos enunciados em tratados

internacionais ratificados peloBrasil, permitindo, assim, a expansãodoblocode

constitucionalidade. A então Constituição do Peru de 1979, no mesmo sentido,

determinava, no artigo 105, que os preceitos contidos nos tratados de direitos

humanostêmhierarquiaconstitucionalenãopodemsermodificadossenãopelo

procedimentoqueregeareformadaprópriaConstituição.JáaatualConstituição

do Peru de 1993 consagra que os direitos constitucionalmente reconhecidos

devemserinterpretadosemconformidadecomaDeclaraçãoUniversaldeDireitos

Humanos e com os tratados de direitos humanos ratificados pelo Peru. Decisão

proferida em 2005 pelo Tribunal Constitucional do Peru endossou a hierarquia

constitucional dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos,

adicionando que os direitos humanos enunciados nos tratados conformam a

ordem jurídica e vinculam os poderes públicos. A Constituição da Colômbia de

1991,reformadaem1997,confere,noartigo93,hierarquiaespecialaostratados

dedireitoshumanos,determinandoqueestesprevalecemnaordeminternaeque

os direitos humanos constitucionalmente consagrados serão interpretados em

conformidadecomostratadosdedireitoshumanosratificadospelopaís.Também

a Constituição do Chile de 1980, em decorrência da reforma constitucional de

1989,passouaconsagrarodeverdosórgãosdoEstadoderespeitarepromoveros

direitos garantidos pelos tratados internacionais ratificados por aquele país.

Acrescente-seaConstituiçãodaBolíviade2009,aoestabelecerqueosdireitose

deveresreconhecidosconstitucionalmenteserão interpretadosemconformidade

comostratadosdedireitoshumanosratificadospelaBolívia,queprevalecerãoem

relação à própria Constituição se enunciarem direitos mais favoráveis (artigos

13,IVe256).Namesmadireção,destaca-seaConstituiçãodoEquadorde2008,ao

consagrar que a Constituição e os tratados de direitos humanos ratificados pelo

Estado que reconheçam direitosmais favoráveis aos previstos pela Constituição

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têm prevalência em relação a qualquer outra norma jurídica ou ato do Poder

Público (artigo 424), adicionando que serão aplicados os princípios pro ser

humano, de não restrição de direitos, de aplicabilidade direta e de cláusula

constitucional aberta (artigo 416). A Constituição doMéxico, com a reforma de

junhode2011, passou a contemplar a hierarquia constitucional dos tratadosde

direitoshumanosearegrainterpretativafundadanoprincipiopropersona.

Por outro lado, o sistema interamericano revela permeabilidade e

aberturaaodiálogomedianteasregrasinterpretativasdoartigo29daConvenção

Americana, em especial as que asseguram o princípio da prevalência da norma

mais benéfica, mais favorável e mais protetiva à vítima. Ressalte-se que os

tratadosdedireitoshumanosfixamparâmetrosprotetivosmínimos,constituindo

umpisomínimodeproteçãoenãoumtetoprotetivomáximo.Daíahermenêutica

dostratadosdedireitoshumanosendossaroprincípioproserhumano.Àsregras

interpretativas consagradasnoartigo29daConvençãoAmericana, somem-seos

tratados de direitos humanos do sistema global – que, por sua vez, também

enunciamoprincípiopropersonafundadonaprevalênciadanormamaisbenéfica,

como ilustram o artigo 23 da Convenção sobre a Eliminação da Discriminação

contraaMulher,oartigo41daConvençãosobreosDireitosdaCriança,oartigo

16, parágrafo 2º da Convenção contra a Tortura e o artigo 4º, parágrafo 4º da

ConvençãosobreosDireitosdasPessoascomDeficiência.

Cláusulas de abertura constitucional e o princípio pro ser humano

inspiradordostratadosdedireitoshumanoscompõemosdoisvértices-nacionale

internacional-afomentarodiálogoemmatériadedireitoshumanos.Nosistema

interamericano este diálogo é caracterizado pelo fenômeno do “controle da

convencionalidade”,nasuaformadifusaeconcentrada.

ComoenfatizaaCorteInteramericana:

Quando um Estado ratifica um tratado internacional como aConvençãoAmericana,seusjuízes,comopartedoaparatodoEstado,tambémestãosubmetidosaela,oquelhesobrigaazelarparaqueosefeitos dos dispositivos da Convenção não se vejammitigados pelaaplicaçãodeleiscontráriasaseuobjeto,equedesdeoiníciocarecemdeefeitos jurídicos.(...)opoderJudiciáriodeveexercerumaespécie

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de“controledaconvencionalidadedasleis.entreasnormasjurídicasinternasqueaplicamnos casos concretose aConvençãoAmericanasobreDireitosHumanos.Nestatarefa,oPoderJudiciáriodeveteremconta não somente o tratado,mas também a interpretação que domesmo tem feito a Corte Interamericana, intérprete última daConvençãoAmericana.32

Como sustenta Eduardo Ferrer Mac-Gregor33, o juiz nacional agora é

também juiz interamericano, tendo como mandato exercer o controle de

convencionalidadenamodalidadedifusa.Cortesnacionaisexercemocontroleda

convencionalidade na esfera doméstica, mediante a incorporação da

normatividade,principiologiae jurisprudênciaprotetiva internacionalemmatéria

de direitos humanos no contexto latino-americano. Frise-se: quando um Estado

ratifica um tratado, todos os órgãos do poder estatal a ele se vinculam,

compromentendo-seacumpri-lodeboafé.

A Corte Interamericana exerce o controle da convencionalidade na

modalidade concentrada, tendo a ultima palavra sobre a interpretação da

Convenção Americana. Na realização do controle de convencionalidade, a Corte

Interamericanaguia-sepeloprincípiopropersona,conferindoprevalênciaànorma

mais benéfica, destacando, em diversas sentenças, decisões judiciais proferidas

pelasCortes constitucionais latino-americanas, bemcomomençãoadispositivos

das Constituições latino-americanas, como podem revelar os casos Pueblo

IndígenaKichwadeSarayakuvs.Equador(sentençaproferidaem27dejunhode

2012),AtalaRiffoyninasvs.Chile(sentençaproferidaem24defevereirode2012)

eGelmanvs.Uruguai(sentençaproferidaem24defevereirode2012).34

32VercasoAlmonacidArellanoandothersvs.Chile.Judgmentof26September2006.33 Eduardo Ferrer Mac-Gregor, Interpretación conforme y control difuso de convencionalidad: ElNuevoparadigmaparaeljuezmexicano,In:ArminvonBogdandy,FlaviaPiovesaneMarielaMoralesAntoniazzi,EstudosAvançadosdeDireitosHumanos–DemocraciaeIntegraçãoJurídica:EmergênciadeumnovoDireitoPúblico,SãoPaulo,ed.CampusElsevier,2013,p.627-705.34Atítulo ilustrativo,cabemençãoàsentençaproferidapelaCorte InteramericananocasoPuebloIndígena Kichwa de Sarayaku vs. Equador, de 27 de junho de 2012, em que a Corte incorporaprecedentesjudiciaisemmatériaindígenadaCorteConstitucionalColombiana(sentenciaC-169/01),no que se refere ao direito à consulta prévia dos povos indígenas, bem como ao pluralismo.Empresta ainda destaque às Constituições da Argentina, da Bolívia, do Brasil, do Peru e do Chile.Outroexemploatém-seàsentençadocasoAtalaRiffoyninasvs.Chile,de24defevereirode2012,emqueaCorteInteramericanafazalusãoàjurisprudênciadaSupremaCortedeJusticiadelaNacióndoMéxico,naAI2/2010,concernenteàproibiçãodadiscriminaçãopororientaçãosexual.Nocaso

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Por fim,adicione-seoprofícuodiálogodo sistema interamericanocoma

sociedade civil, o que lhe confere gradativa legitimação social e crescente

empoderamento.Osistemaenfrentaoparadoxodesuaorigem–nasceuemum

ambientemarcadopeloarbítrioderegimesautoritárioscomaexpectativaestatal

deseureduzidoimpacto–epassaaganharcredibilidade,confiabilidadeeelevado

impacto. A força motriz do sistema interamericano tem sido a sociedade civil

organizadapormeiodeumtransnationalnetwork,aempreenderexitososlitígios

estratégicos.

Na experiência brasileira, por exemplo, 100% dos casos submetidos à

Comissão Interamericana foram fruto de uma articulação a reunir vítimas e

organizações não governamentais locais e internacionais35, com intenso

protagonismo na seleção de um caso paradigmático, na litigância do mesmo

(aliando estratégias jurídicas e políticas) e na implementação doméstica de

eventuaisganhosinternacionais.

NapercepçãodeKathrynSikkink:

OtrabalhodasONGstornamaspráticasrepressivasdosEstadosmaisvisíveis e públicas, exigindo deles, que se manteriam calados, umaresposta. Ao enfrentar pressões crescentes, os Estados repressivosbuscamapresentarjustificativas.(...)QuandoumEstadoreconhecealegitimidadedas intervenções internacionaisnaquestãodosdireitoshumanose,emrespostaapressõesinternacionais,alterasuapráticacom relação à matéria, fica reconstituída a relação entre Estado,cidadãoseatoresinternacionais.36

Adicionaaautora:

pressões e políticas transnacionais no campo dos direitos humanos,incluindonetworkdeONGs,têmexercidoumasignificativadiferençanosentidodepermitiravançosnaspráticasdosdireitoshumanosem

Guelman vs. Uruguai, por sua vez, a Corte destaca a jurisprudência da Venezuela, doMéxico, doChile,daArgentinaedaBolivia reconhecendoanaturezapluriofensivaepermanentedodelitodedesaparecimentoforçado,bemcomoajurisprudêncialatino-americanainvalidandoleisdeanistia.35 Flávia Piovesan, Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, 14ª ed. revista eatualizada,ed.Saraiva,SãoPaulo,2014,p.431.36VerKathrynSikkink,Humanrights,principledissue-networks,andsovereigntyinLatinAmerica,In:International Organizations, Massachusetts, IO Foundation and the Massacussetts Institute ofTechnology,1993,p.414-415.

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diversospaísesdomundo.Semosregimesinternacionaisdeproteçãodosdireitoshumanose suasnormas, bemcomo sema atuaçãodasnetworks transnacionais que operam para efetivar tais normas,transformações na esfera dos direitos humanos não teriamocorrido37.

Osucessodosistemainteramericanorefleteointensocomprometimento

dasONGs(envolvendomovimentossociaiseestratégiasdemídia),aboaresposta

do sistema e a implementação de suas decisões pelo Estado, propiciando

transformaçõeseavançosnoregimeinternodeproteçãodosdireitoshumanos.

Transita-se, por fim, ao enfoque do sistema interamericano na

pavimentaçãodeum ius constitutionale commune latino-americano, comênfase

emsuaspotencialidadesedesafios.

3.Conclusão

A partir da análise do impacto da jurisprudência da Corte Interamericana de

Direitos Humanos na região latino-americana, sob a perspectiva de um sistema

multinível e dialógico a envolver as esferas regional e local, tendo ainda como

força impulsionadora o ativismo transnacional da sociedade civil, vislumbra-se a

pavimentação de um ius constitutionale commune latino-americano em direitos

humanos.

Éàluzdestadinâmicaqueemergemtrêsdesafioscentraisàpavimentação

desteconstitucionalismolatino-americanoemdireitoshumanos:

37KathrynSikkinkeThomasRisse,Conclusions,In:ThomasRisse,StephenC.RoppeKathrynSikkink,The Power of Human Rights: International Norms and Domestic Change, Cambridge, CambridgeUniversityPress,1999,p.275.

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1380

i) Fomentarumacultura jurídica inspiradaemnovosparadigmas jurídicos

e na emergência de um novo Direito Público: estatalidade aberta, diálogo

jurisdicionaleprevalênciadadignidadehumanaemumsistemamultinivel38

A existência de cláusulas constitucionais abertas a propiciar o diálogo entre as

ordens jurídicas local, regional e global, por si só, nãoassegura a efetividadedo

diálogo jurisdicional em direitos humanos. Se, de um lado, constata-se o maior

refinamentodascláusulasdeaberturaconstitucional–acontemplarahierarquia,

a incorporação e as regras interpretativas de instrumentos internacionais de

direitos humanos – por outro lado, esta tendência latino-americana não é

suficienteparaoêxitododiálogojurisdicionalemmatériadedireitoshumanos.

Istoporque interpretações jurídicasreducionistaserestritivasdasordens

constitucionais podem comprometer o avanço e a potencialidade de cláusulas

abertas.

Daí a necessidade de fomentar uma doutrina e uma jurisprudência

emancipatórias no campo dos direitos humanos inspiradas na prevalência da

dignidade humana39 e na emergência de um novoDireito Públicomarcado pela

estatalidadeabertaemumsistema jurídicomultinível.A formaçãodeumanova

cultura jurídica, baseada em uma nova racionalidade e ideologia, surge como

medida imperativa à afirmação de um ius constitutionale commune latino-

americano.

38 Ver Armin von Bogdandy, Flavia Piovesan e Mariela Morales Antoniazzi (coord.), EstudosAvançadosdeDireitosHumanos--democraciaeintegraçãojurídica:emergênciadeumnovoDireitoPúblico,SãoPaulo,CampusElsevier,2013.39ParaHabermas,oprincípiodadignidadehumanaéafontemoraldaqualosdireitosfundamentaisextraemseuconteúdo.AdicionaHabermas:“Theappealtohumanrightsfeedsofftheoutrageofthehumiliatedat theviolationof theirhumandignity (…)Theoriginofhuman rightshasalwaysbeenresistance to despotism, oppression and humiliation (...)”. (Jurgen Habermas, The Crisis of theEuropeanUnion:AResponse,Cambridge,PolityPress,2012,p.75).

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1381

ii) Fortalecer o sistema interamericano de proteção de direitos humanos:

universalidade,institucionalidade,independência,sustentabilidadeeefetividade

Outro importante desafio à consolidação de um ius constitutionale commune

latino-americano atém-se ao aprimoramento do sistema interamericano,

considerandoaagendadereformasdosistema40.

Comrelaçãoàuniversalidadedosistemainteramericanoháseexpandiro

universo de Estados-partes da Convenção Americana (que contava com 24

Estados-partesem2014)esobretudodoProtocolodeSanSalvadoremmatériade

direitos econômicos, sociais e culturais (que contava apenas com 16 Estados-

partesem2014).Outramedidaessencialéampliarograudereconhecimentoda

jurisdiçãodaCorteInteramericanadeDireitosHumanos,acontarcomoaceitede

21Estados,em2014.Observa-sequeaOEAcompreende34Estadosmembros.

Outrarelevantemedidaéasseguraraelevadaindependênciaeautonomia

dos membros integrantes da Comissão e da Corte Interamericana, que devem

atuar a título pessoal e não governamental. Faz-se necessário densificar a

participaçãodasociedadecivilnomonitoramentodoprocessodeindicaçãodetais

membros,doando-lhemaiorpublicidade,transparênciaeaccountability.

Também fundamental é fortalecer a efetividade do sistema

interamericano, seja no que se refere à supervisão das decisões da Corte e da

Comissão. 41 Diversamente do sistema europeu, no sistema interamericano são

seus próprios órgãos que realizam o follow up das decisões que eles próprios

proferem. Isto porque a Convenção Americana não estabelece mecanismo

específico para supervisionar o cumprimento das decisões da Comissão ou da

40Nodebateacercadareformadosistemainteramericano,hácontrovertidaspropostasformuladaspor Estados visando à restrição do poder da Comissão Interamericana em conceder medidascautelares e à limitação de relatorias especiais, como a relatoria especial sobre a liberdade deexpressãoeacessoàinformação.Paraumenfoquecríticodestaspropostas,verDeisyVentura,FláviaPiovesaneJuanaKweitel,SistemaInteramericanosobForteAtaque,FolhadeSãoPaulo,p.A3,07deagostode2012.41Nosistemaeuropeu,atítuloexemplificativo,oComitêdeMinistros(órgãopolítico)temafunçãode supervisionar a execuçãodasdecisõesdaCorte Européia, atuando coletivamente emnomedoConselho da Europa. Para uma análise comparativa dos sistemas regionais, ver Flávia Piovesan,DireitosHumanos e Justiça Internacional:Umestudo comparativodos sistemas regionais europeu,interamericanoeafricano,SãoPaulo,5ªediçãorevista,ampliadaeatualizada,ed.Saraiva,2014.

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Corte, embora a Assembléia Geral da OEA tenha o mandato genérico a este

respeito, nos termos do artigo 65 da Convenção Americana42. Na avaliação de

AntônioAugustoCançadoTrindade:

(...) a Corte Interamericana tem atualmente uma especialpreocupaçãoquantoaocumprimentodesuassentenças.OsEstados,emgeral, cumpremas reparaçõesquese referema indenizaçõesdecaráterpecuniário,masomesmonãoocorrenecessariamentecomasreparaçõesdecaráternãopecuniário,emespecialasquesereferemàsinvestigaçõesefetivasdosfatosqueoriginaramtaisviolações,bemcomo à identificação e sanção dos responsáveis, – imprescindíveispara por fim à impunidade (e suas consequências negativas para otecido social como um todo). (...) Atualmente, dada a carênciainstitucional do sistema interamericano de proteção dos direitoshumanos nesta área específica, a Corte Interamericana vemexercendomotupropioasupervisãodaexecuçãodesuassentenças,dedicando-lhe um ou dois dias de cada período de sessões. Mas asupervisão– comoexercíciodegarantia coletiva– da fiel execuçãodas sentenças e decisões da Corte é uma tarefa que recai sobre oconjuntodosEstados-partesdaConvenção43.

Ademais, as decisões internacionais em matéria de direitos humanos

devem produzir eficácia jurídica direta, imediata e obrigatória no âmbito do

ordenamento jurídico interno, cabendo aos Estados sua fiel execução e

cumprimento,emconformidadecomoprincípiodaboa fé,queorientaaordem

internacional. Para Antonio Augusto Cançado Trindade: “O futuro do sistema

internacional de proteção dos direitos humanos está condicionado aos

42Deacordocomoartigo65daConvenção:“ACortesubmeteráàconsideraçãodaAssembléiaGeraldaOEA,emcadaperíodoordináriodesessões,umrelatóriosobreassuasatividadesnoanoanterior.Demaneiraespecial,ecomasrecomendaçõespertinentes,indicaráoscasosemqueumEstadonãotenhadadocumprimentoasuassentenças”.43 Antônio Augusto Cançado Trindade e Manuel E. Ventura Robles, El Futuro de la CorteInteramericana de Derechos humanos, 2a ed. atualizada e ampliada, San José/Costa Rica, CorteInteramericana de Direitos Humanos e ACNUR, 2004, p.434. Propõe o autor: “Para assegurar omonitoramentocontínuodofielcumprimentodetodasasobrigaçõesconvencionaisdeproteção,emparticular das decisões da Corte, deve ser acrescentado ao final do artigo 65 da ConvençãoAmericana, a seguinte frase: “A Assembléia Geral os remeterá ao Conselho Permanente, paraestudaramatériaeelaboraruminforme,afimdequeaAssembléiaGeraldeliberearespeito.”Destemodo, se supre uma lacuna com relação a ummecanismo, a operar embase permanente (e nãoapenasumavezporano,anteaAssembléiaGeraldaOEA),parasupervisionara fielexecução,portodososEstados-partesdemandados,dassentençasdaCorte”.(op.cit.p.91-92).

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mecanismosnacionaisdeimplementação.”44

Outra medida emergencial atém-se à sustentabilidade do sistema

interamericano,medianteofuncionamentopermanentedaComissãoedaCorte,

comrecursosfinanceiros45,técnicoseadministrativossuficientes.

iii) Avançarnaproteçãodosdireitoshumanos,dademocraciaedoEstado

deDireitonaregião

Finalmente, considerando o contexto latino-americanomarcado por acentuada

desigualdadesocialeviolênciasistêmica,fundamentaléavançarnaafirmaçãodos

direitoshumanos,dademocraciaedoEstadodeDireitonaregião.

Ao enfrentar os desafios de sociedades pós coloniais latino-americanas -

em que direitos humanos tradicionalmente constituíam uma agenda contra o

Estado-osistemainteramericanoempodera-seecomsuaforçainvasivacontribui

paraofortalecimentodosdireitoshumanos,dademocraciaedoEstadodeDireito

naregião.

Osistemainteramericanorompecomoparadoxodesuaorigem.Nascido

emumcontexto regionalmarcadopor regimesditatoriais – seguramente coma

expectativa de reduzido impacto por parte dos então Estados autoritários – o

sistemaseconsolidaesefortalececomoatorregionaldemocratizante,provocado

porcompetentesestratégiasde litigânciadasociedadecivilemumtransnational

networkalheconferirelevadacargadelegitimaçãosocial.

Como evidenciado por este artigo, o sistema interamericano permitiu a

desestabilizaçãodosregimesditatoriais;exigiu justiçaeofimda impunidadenas

44 Antônio Augusto Cançado Trindade e Manuel E. Ventura Robles, El Futuro de la CorteInteramericana de Derechos humanos, 2ª ed., revista e atualizada, San José/Costa Rica, CorteInteramericanadeDireitosHumanoseUNHCR,2004,p.91.45 A título ilustrativo, o orçamento da Corte Européia corresponde aproximadamente a 20% doorçamento do Conselho da Europa, envolvendo 41milhões de euros, enquanto que o orçamentoconjuntodaComissãoedaCorteInteramericanacorrespondeaproximadamentea5%doorçamentodaOEA,envolvendoapenas4milhõesdedólaresnorte-americanos.Observe-se,ainda,queos5%deorçamentodaOEAcobretãosomente55%dasdespesasdaComissãoe46%dasdespesasdaCorteInteramericana.

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transições democráticas; e agora demanda o fortalecimento das instituições

democráticas com o necessário combate às violações de direitos humanos e

proteçãoaosgruposmaisvulneráveis.

Oseuimpactotransformadornaregião–frutosobretudodopapelvitalda

sociedade civil organizada em sua luta por justiça e por direitos – é fomentado

pelaefetividadedodiálogoregional-localemumsistemamultinívelcomabertura

e permeabilidade mútuas. De um lado, o sistema interamericano se inspira no

princípioproserhumano,medianteregrasconvencionaisinterpretativasbaseadas

noprincípiodanormamaisprotetivaefavorávelàvítima,endossandocontemplar

parâmetros protetivos mínimos. Por outro lado, as Constituições latino-

americanasestabelecemcláusulasdeaberturaconstitucionalapropiciarodiálogo

em matéria de direitos humanos, concernentes à hierarquia, incorporação e

impacto dos tratados de direitos humanos. No sistema interamericano este

diálogoéaindacaracterizadopelofenômenodo“controledaconvencionalidade”,

nasuaformadifusaeconcentrada.Constata-setambémacrescenteaberturada

Corte Interamericana ao incorporar em suas decisões a normatividade e a

jurisprudência latino-americana em direitos humanos, com alusão a dispositivos

de Constituições latino-americanas e à jurisprudência das Cortes Constitucionais

latino-americanas. O diálogo jurisdicional se desenvolve em dupla via: movido

pelosvérticesdecláusulasconstitucionaisabertasedoprincípioproserhumano.

É neste contexto que o sistema interamericano tem a potencialidade de

exercer um extraordinário impacto na pavimentação de um ius constitutionale

commune latino-americano, contribuindo para o fortalecimento dos direitos

humanos,dademocraciaedoEstadodeDireitonaregiãomaisdesigualeviolenta

domundo.

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_______.CasoAcevedoBuendíayotros(“CesantesyJubiladosdelaContraloría”)

vs.Peru,sentençade01dejulhode2009.

_______.CasoGonzálezyotras(caso“CampoAlgodonero”)vs.México,sentença

de16denovembrode2009.

_______. CasoComunidad IndígenaXákmokKásek. vs. Paraguai, sentençade24

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_______. CasoGomes Lunde outros vs. Brasil, sentençade 24denovembrode

2010.

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Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Atala Riffo y hijas vs. Chile,

sentençade24defevereirode2012.

_______. Caso Artavia Murillo y otros (“fecundación in vitro”) vs. Costa Rica,

sentençaproferidaem28denovembrode2012.

SobreaautoraFláviaPiovesanProfessora doutora em Direito Constitucional e Direitos Humanos da PontifíciaUniversidadeCatólicade SãoPaulo; visiting fellowdoHumanRightsProgramdaHarvardLawSchool(1995e2000);visitingfellowdoCentreforBrazilianStudiesdaUniversity of Oxford (2005); visiting fellow do Max Planck Institute forComparativePublicLawandInternationalLaw(Heidelberg–2007;2008;2015;e2016); Humboldt Foundation Georg Forster Research Fellow no Max PlanckInstitute (Heidelberg – 20009-2014); e membro do OAS Working Group para omonitoramentodoProtocolodeSanSalvadoremmatériadedireitoseconômicos,sociaiseculturais.E-mail:[email protected]éaúnicaresponsávelpelaredaçãodoartigo.