212
E-STRATEGICA Número 2, 2018 ISSN 2530-9951 REVISTA DE LA ASOCIACIÓN IBÉRICA DE HISTORIA MILITAR (SIGLOS IV-XVI) REVISTA DA ASSOCIAÇÃO IBÉRICA DE HISTÓRIA MILITAR (SÉCULOS IV-XVI) JOURNAL OF THE IBERIAN ASSOCIATION OF MILITARY HISTORY (4TH-16TH CENTURIES)

e-Strategica ISSN 2530-9951 - journal-estrategica.com · Journal of the Iberian Association of Military History (4th-16th centuries). e-Strategica es una revista especializada en

  • Upload
    others

  • View
    2

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

  • e-StrategicaNúmero 2, 2018ISSN 2530-9951

    • reviSta de la aSociación ibérica de HiStoria Militar (SigloS iv-Xvi) •• reviSta da aSSociação ibérica de HiStória Militar (SéculoS iv-Xvi) •

    • Journal of tHe iberian aSSociation of Military HiStory (4tH-16tH centurieS) •

  • e-StrategicaRevista da Associação Ibérica de História militar (séculos IV-XVI).Revista de la Asociación Ibérica de Historia Militar (siglos IV-XVI).

    Journal of the Iberian Association of Military History (4th-16th centuries).

    e-Strategica es una revista especializada en temas relacionados con la historia militar de la Península Ibérica entre los siglos IV y XVI. Publicada por la Asociación Ibérica de

    Historia Militar (siglos IV-XVI), con una periodicidad anual

    DIRECTORFrancisco García Fitz (Universidad de Extremadura)

    SECRETARIOSMario Lafuente Gómez (Universidad de Zaragoza)

    Miguel Gomes Martins (Instituto de Estudios Medievales, Universidade Nova de Lisboa)

    CONSEJO DE REDACCIÓNMartín Alvira Cabrer (Universidad Complutense, Madrid)

    Nicolás Agrait (Long Island University)Carlos de Ayala Martínez (Universidad Autónoma, Madrid)

    Mário Jorge Barroca (Universidad de Oporto)João Gouveia Monteiro (Universidad de Coimbra)

    Philippe Josserand (Universidad de Nantes)Carla Margarida Rosa (Universidad de Coimbra)

    Alexandre Sousa Pinto (Comissão Portuguesa de História Militar)José Varandas (Universidad de Lisboa)

    Kurt Villads Jensen (Universidad de Estocolmo)

    COMITÉ CIENTÍFICOLuís de Albuquerque (Museu Militar de Lisboa)Pedro Gomes Barbosa (Universidad de Lisboa)

    Isabel Cristina Fernandes (Museu Municipal de Palmela)Manuel García Fernández (Universidad de Sevilla)

    Luís Filipe Oliveira (Universidade do Algarve)Rafael Peinado Santaella (Universidad de Granada)

    Matthew Strickland (Universidad de Glasgow)Vítor Gaspar Rodrigues (Universidade de Lisboa)

    Luís Sousa (Centro de História da Universidade de Lisboa)

    Asociación Ibérica de Historia Militar (siglos IV-XVI)Rua do Tirado, nº 125, 3040-806 Cernache. Portugal

    C/ San Pertersburgo, nº 9, 4º D Cáceres 10005. Españahttp://aihmilitar.wixsite.com/site

    http://www.journal-estrategica.com/

    ISSN 2530-9951Composición: Compobell, S.L. Murcia

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, pp. 3-4 3

    ÍNDICE

    O abastecimento militar ao tempo do Bloqueio de Sevilha (1369-1370) ................................................................................ 7-23

    Elise Cardoso

    D. Duarte de Meneses (1414-1464): o sangue e as armas no final da Idade Média ............................................................................. 25-47

    António Martins Costa

    O caminho de Alcácer Quibir: Plano, marcha e batalha, ou a dinâmica da forma militar .......................................................... 49-61

    Luis Filipe Guerreiro da Costa e Sousa

    Guadalmesí y Palmones: la influencia de dos batallas en la conquista de Algeciras (1342-1343) ............................................. 63-88

    Manuel López Fernández

    The Scars of War in the Portuguese Border Zone (1250-1450) ... 89-140

    João Gouveia Monteiro & Miguel Gomes Martins

    Juan de Mena y las guerras del Laberinto ................................... 141-164

    Feliciano Novoa Portela

    Cristóvão de Mendonça, navegador no Oriente e capitão de Ormuz – Um desconhecido comendador de Arenilha ................ 165-203

    Fernando Pessanha

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, pp. 3-44

    Reseña

    Medieval Warfare, vol. VII, Issue 6, Jan/Feb 2018: “The beginning of the Reconquista of Iberia, 1000-1100. Rodrigo Díaz: el Cid. The man and the legend” ............................................................. 205-211

    David Porrinas González

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, p. 5 5

    INDEX

    Military supply in times of the Blockade of Seville (1369-1370) 7-23

    Elise Cardoso

    Duarte de Meneses (1414-1464): lineage and arms in the late Middle Ages .................................................................................. 25-47

    António Martins Costa

    The road to Alcácer Quibir: planning, marching and fighting, or the dynamics of the military form ......................................... 49-61

    Luis Filipe Guerreiro da Costa e Sousa

    Guadalmesí and Palmones: the influence of two battles in the conquest of Algeciras (1342-1343) ............................................... 63-88

    Manuel López Fernández

    The Scars of War in the Portuguese Border Zone (1250-1450) ... 89-140

    João Gouveia Monteiro & Miguel Gomes Martins

    The wars of Juan de Mena’s Labyrinth of Fortune ...................... 141-164

    Feliciano Novoa Portela

    Cristóvão de Mendonça, navigator in the Orient and captain of Ormuz — an unknown comendador of Arenilha ....................... 165-203

    Fernando Pessanha

    Review

    Medieval Warfare, vol. VII, Issue 6, Jan/Feb 2018: “The beginning of the Reconquista of Iberia, 1000-1100. Rodrigo Díaz: el Cid. The man and the legend” ............................................................. 205-211

    David Porrinas González

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, pp. 7-23 7

    O abastecimento militar ao tempo do Bloqueio de Sevilha

    (1369-1370)

    Military supply in times of the Blockade of Seville (1369-1370)

    Elise Cardoso∗Universidad de Coimbra

    Resumo

    O seguinte artigo debruça-se sobre um episódio que decorreu durante a Primei-ra Guerra Fernandina: o bloqueio realizado pela frota portuguesa a Sevilha em 1369-1370. O principal objectivo será expor as condições adversas nas quais a frota portuguesa sobreviveu ao inverno estacionada no Guadalquivir, o que nos leva a olhar para a questão da logística de todo este empreendimento. Como se abastecia uma frota? Que tipo de alimentos seria consumido? Como conseguiu a frota sobreviver tanto tempo parada no mesmo local? Percebemos que existia uma linha de abastecimentos entre a frota e o reino; uma embarcação viria ao Algarve e a Lisboa recolher viveres e regressava ao Guadalquivir para abastecer a ansiosa frota. Através da descrição de Fernão Lopes, verificamos que, mesmo assim, a frota portuguesa passou diversas dificuldades, muito possivelmente, devido ao facto de os víveres não terem sido levados em quantidades suficien-tes, resultando em doenças e diversas deserções. De igual modo, o facto de ser inverno não terá ajudado a situação portuguesa. Terminamos relatando a fuga

    * Estudante de Doutoramento em História vertente História Medieval, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Integra o Centro de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa bem como o Centro de História da Sociedade e da Cultura da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, é igualmente membro da Associação Ibérica de História Militar (AIHM). Correo electrónico: [email protected]

    http://www.journal-estrategica.com/

    http://http://www.journal-estrategica.com/

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, pp. 7-238

    ElisE Cardoso

    da frota portuguesa em resposta ao aparecimento de galés castelhanas. Espera-mos que com este artigo possamos chamar a atenção para este episódio tão in-teressante, bem como para as questões ligadas à logística militar, tão relevantes para o sucesso de uma expedição.

    Palavras-Chave

    Logística; Abastecimento; Frotas; Guerras Fernandinas; Bloqueio Naval; Sevilha.

    Abstract

    The following article regards an episode that occurred during the First Fernandine War: the Portuguese naval blockade to the city of Seville in 1369-1370. The main objective will be to expose the adverse conditions in which the Portuguese fleet survived the winter stationed in the Guadalquivir River. That will lead us to look at the logistics of this whole enterprise. How did the fleet get supplied? What kind of diet would be consumed? How did the fleet survive so long anchored in the same place? I realized that there was a supply line between the fleet and the kingdom; a vessel would come to the Algarve, as well as to Lisbon in order to collect food and return to Guadalquivir to supply the anxious fleet. Through the description of Fernão Lopes, it was possible to verify that even then, the Portuguese fleet went through several difficulties, quite possibly due to the fact that food was not brought in sufficient quantities, resulting in diseases and several desertions. That fact that winter was coming helped worsening the fleet’s situation. Finally the blockage was lifted up by the escape of the Portuguese fleet due to the appearance of the Castilian galleys. I hope that with this article I can draw attention to this interesting episode, as well as to the study of the military logistics issue, so relevant to the success of an expedition.

    Keywords

    Logistics; Supplies; Fleets; Fernandinae Wars; Naval Blockade; Seville.

    1. Introdução/Contextualização

    A Primeira Guerra Fernandina teve na sua base a conturbada situa-ção interna em que se encontrava o trono castelhano. D. Pedro I, rei de Castela, viu-se obrigado, entre 1366 e 1369, a enfrentar o seu meio-irmão bastardo, Henrique de Trastâmara, que, com o apoio de França, tentava usurpar-lhe o trono. Em 1367, em Nájera, com o apoio militar inglês con-seguiu derrotar o seu meio-irmão Henrique, que contava com o apoio de tropas francesas1. De notar que nos encontramos no contexto da Guerra

    1 MONTEIRO, Aljubarrota, p. 12

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, pp. 7-23 9

    O abastecimentO militar aO tempO dO blOqueiO de sevilha (1369-1370)

    dos Cem Anos, que irá estender o seu palco à Península Ibérica2. No en-tanto, em março de 1369, após a Batalha de Montiel, D. Henrique coloca um ponto final no conflito, ao assassinar o seu meio-irmão, inaugurando assim um novo ciclo na vida política castelhana3. Será neste contexto que D. Fernando4 se apresenta como candidato ao trono de Castela, na qualidade de neto legítimo de D. Sancho IV5. O monarca português, após reforçar a defesa do reino, realiza uma campanha pela Galiza, onde era apoiado por diversas cidades. O objetivo seria controlar alguns caste-los, que naquela região, lhe mostravam resistência. Assim, em junho de 1369 montou cerco a Monterrey6. Será sensivelmente nesta altura que a frota portuguesa a mando de D. Fernando se encaminhou para o local que irá ocupar durante mais de um ano, no rio Guadalquivir, de modo a exercer um bloqueio naval sobre a cidade de Sevilha.

    2. O Bloqueio de Sevilha

    Em finais de maio/inícios de julho (em simultâneo com a campa-nha da Galiza) D. Fernando enviou na direção de Sevilha uma armada constituída por trinta e duas galés e trinta naus. Estas seguiam sob o comando do almirante Lançarote Pessanha e do capitão-mor João Fo-cim, cavaleiro castelhano exilado em Portugal7. O principal objetivo se-ria imobilizar a frota castelhana, bem como bloquear o abastecimento a Sevilha. A armada portuguesa empreendeu a devastação de diversas co-munidades andaluzas, ficando as naus ancoradas em frente a Sanlúcar de Barrameda e as galés mais para dentro do rio, onde permaneceram durante mais de um ano, entre junho/julho de 1369 e outono de 13708. Fernão Lopes diz-nos que, durante todos estes meses, as embarcações revezavam-se nas viagens a Lisboa e ao Algarve, para se reabastecerem de mantimentos, refrescos, roupas, e também levarem o soldo aos seus homens9.

    2 COELHO, D. João I, p.33.3 MARTINS, De Ourique a Aljubarrota, pp. 271-272 e GOMES, D. Fernando, p. 85. 4 Sobre o monarca, vide igualmente GOMES, D. Fernando. 5 MARQUES, História de Portugal, vol. 1, p. 207.6 MARTINS, De Ourique a Aljubarrota, pp. 271-2727 LOPES, Crónica de D. Fernando, Cap. XLII, p. 137.8 DUARTE, “A Marinha de Guerra Portuguesa”, pp. 333-335 e MONTEIRO, Batalhas e

    Combates da Marinha Portuguesa, vol. 1, p. 29.9 LOPES, Crónica de D. Fernando, Cap. XLII, pp. 137-139.

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, pp. 7-2310

    ElisE Cardoso

    Figure 1.

    João Gouveia, MONTEIRO, “As Campanhas que fizeram a História” in Nova

    História Militar de Portugal, (dir.) de Manuel Themudo Barata e Nuno Severiano

    Teixeira, vol. 1, Círculo de Leitores, Rio de Mouro, 2003, p. 252.

    No entanto, com a chegada do inverno as condições na frota compli-caram-se e consta que os mantimentos, mesmo que regularmente envi-ados, não eram suficientes para os homens, que adoeceram, originando assim diversas mortes e deserções. Podemos apenas conjeturar os moti-vos pelos quais, apesar da existência de linhas de abastecimento, a frota terá sofrido da falta de víveres. Com o inverno, os mantimentos trazidos do reino poderiam não ser suficientes para todos os homens ou pode-riam demorar mais tempo a chegar junto da frota. Condições adversas para a navegação poderiam impedir o sistema de reabastecimento es-tabelecido, resultando na falta de alimento que terá conduzido à fome, à doença (como escorbuto, entre outras doenças derivadas da falta de higiene e de uma adequada alimentação) e às deserções que podemos observar na seguinte passagem das crónicas:

    “Passado o Veraão e vindo o inverno, começou a gente de adoecer e os

    mantimentos de mingoar (...) e posto que lhe el-rrei mandasse navios

    com bizcoito que sse fazia no Algarve e em Lixboa e outros mantiimen-

    tos e cousas que lhe mester faziam, nom era a avondança tanta que

    lhe satirfazer podesse; em guisa que per frio e fame e comer desacostu-

    mados viandas veherom muitos morte e fraqueza e continuadas doores

    (...) E mandava el-rrei muito burel e panos de linho e de coor e vestires

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, pp. 7-23 11

    O abastecimentO militar aO tempO dO blOqueiO de sevilha (1369-1370)

    feitos pera alguũ’s que andavom mall vestidos (...) Parte daas naaos e

    galles viinham ao Algarve e a Lixboa, e em estes logares lhe pagavom

    aas vezes seu soldo, e tomavom refresco e mantiimentos (...) mui longo

    tempo que conthinuamente alli jouverom, que foi huũ’ ano e onze meses,

    passando muita fame e frio e outras dores (...) ca lhe cahiam os dentes e

    os dedos dos pees e das maãos, e outras tribullaçoões (...)”10.

    Além disso, as operações não terão corrido como o esperado, tendo a frota portuguesa apenas capturado uma galé (denominada de Bem-Ganhada) e um baixel com azeite11. É certo que os efeitos do bloqueio se faziam sentir em Sevilha, no entanto o inverno foi desolador para a frota portuguesa estacionada no Guadalquivir, como acima referimos. Nos piores momentos, a armada portuguesa viu-se reduzida a dezasseis galés e vinte e quatro naus12. Poderemos tentar associar esta diminuição do número de embarcações na frota estacionada no Guadalquivir com a necessidade de reabastecimento dos homens, isto é, estas galés e naus em falta estariam a realizar uma das muitas viagens ao reino em busca dos mantimentos necessários para a manutenção do bloqueio.

    Ao chegar a Sevilha, no outono de 1370, D. Henrique de Trastâmara resolve mandar armar vinte galés13; porém havia um problema: falta-vam remos, porque durante a guerra civil D. Pedro levara muitos remos para Carmona14. A solução encontrada foi dividir por um número igual os remos pelos barcos (cem remos a cada galé, ficando a faltar oiten-ta)15; este défice reduzia-lhes, no entanto, a mobilidade. Apesar deste problema, a frota castelhana apresentava-se mais fresca e repousada, se comparada com a frota portuguesa, sendo apoiada por terra por D. Henrique. Os portugueses decidiram então recuar para o mar alto, onde as galés castelhanas, devido à falta de remos, não os poderiam perse-guir16. D. Henrique decidiu então dividir a frota e, durante a noite, sete galés, comandadas pelo almirante genovês Ambrosio Bocanegra, esca-pam-se para a Biscaia em busca de auxílio (remos e naus), enquanto

    10 LOPES, Crónica de D. Fernando, Cap. XLII, pp. 137-139.11 LOPES, Crónica de D. Fernando, Cap. XLII, p. 138.12 LOPES, Crónica de D. Fernando Cap. XLIV, p. 143.13 LÓPEZ DE AYALA, Crónicas de los Reyes de Castilla, Cap. IV, p. 15.14 LOPES, Crónica de D. Fernando, Cap. XLIV, p. 143.15 LÓPEZ DE AYALA, Cronicas de los Reyes de Castilla, Cap. IV, p. 16.16 Ibidem, cap. IV, pp. 16-17.

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, pp. 7-2312

    ElisE Cardoso

    as outras treze regressam a Sevilha17. Por seu lado, a frota portuguesa volta a ocupar o lugar que elegera para o bloqueio (as naus em Sanlucar de Barrameda e as galés dentro do rio). Por seu turno a frota castelha-na regressa da Biscaia acompanhada de naus armadas em Santander e Castro Urdiales, e bloqueia a saída para o mar18. Encurralada, a frota portuguesa recorre a um estratagema: põe fogo a dois barcos cheios de azeite e larga-os em direção à frota castelhana, que é obrigada a afastar-se, permitindo assim a fuga das embarcações portuguesas para o mar alto e de volta ao reino, no outono de 137019.

    Não existiu nenhuma batalha naval, ganha ou perdida, bem como nenhum ganho em termos estratégicos para Portugal, no entanto o bloqueio resultou num severo desgaste de Sevilha, bem como da frota portuguesa.

    3. O Abastecimento

    Tendo observado as diversas dificuldades sentidas pela frota portu-guesa durante o bloqueio a Sevilha, temos agora de focar a nossa aten-ção nos diversos meios utilizados para abastecer uma armada antes da sua partida.

    Numa campanha medieval, tal como em qualquer outra época, o pro-blema do abastecimento era muito relevante, pois com a falta de ali-mento a expedição poderia ficar comprometida. A questão dos abaste-cimentos era uma das maiores limitações dos exércitos medievais, pois estômagos vazios não constituíam prenúncio de sucesso. No entanto, existiam diversas possibilidades para garantir o abastecimento de um exército em campanha. Iremos de seguida analisar com mais profundi-dade cada um destes diferentes métodos de obtenção de vitualhas. Se é certo que para o presente artigo nos interessa mais compreender de que forma as tropas conseguiam obter recursos, julgamos ser pertinente in-corporar aqui, para uma melhor visão de conjunto, igualmente algumas notas relativas à obtenção de provisões também em terra.

    Uma das formas de abastecimento que se encontra mais presente nas crónicas é o “viver do que o país dá”. Isto é, os homens, aquando de uma expedição em território inimigo, comiam o que encontravam nos cam-

    17 LOPES, Crónica de D. Fernando, Cap. XLIV, pp. 143-144. 18 MONTEIRO, Batalhas e Combates da Marinha Portuguesa, vol. 1, p. 31. 19 DUARTE, “A Marinha de Guerra Portuguesa”, pp. 333-335.

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, pp. 7-23 13

    O abastecimentO militar aO tempO dO blOqueiO de sevilha (1369-1370)

    pos pelos quais passavam; empreendiam raides em busca de mantimen-tos para nutrir a coluna de marcha, ou até mesmo em situação de cerco, para abastecer o acampamento20. Ou seja, de forma a obterem forragens e alimento, recorriam sobretudo no saque e no roubo das populações inimigas (e, por vezes, até das populações amigas).

    Um contingente movimentando-se rapidamente por terreno inimigo não teria muita dificuldade em alimentar-se, mas a imobilidade, essa sim, poderia ser um problema (veja-se o caso dos cercos), pois os re-cursos que se encontravam em redor da praça assediada rapidamente se esgotavam21. Confiar no saque indiscriminado da região envolvente acabava por ser, no entanto, extremamente arriscado, pois os proprietá-rios das terras em questão poderiam adotar uma política de “terra quei-mada”, refugiando-se no interior das suas fortalezas e não deixando nos campos nada de que o exército invasor se pudesse alimentar22. Além dis-so, mesmo para um exército em movimento, as vitualhas da região em causa poderiam ser insuficientes, e os proprietários, para além de quei-marem os seus campos, também escondiam o seu gado e tudo aquilo que pudessem, de modo a dificultar o abastecimento pelo inimigo23. No caso das frotas, registámos mais acima que, a caminho de Sevilha, a ar-mada portuguesa foi causando alguma destruição, podendo igualmente ter aproveitado para colher alguns víveres que pudessem estar em falta.

    Como exemplo de um roubo para efeitos de abastecimento de uma hoste, podemos observar o que se passou em 1384, aquando de uma incursão por Castela de diversos nobres portugueses. Segundo Fernão Lopes, eles...

    20 De modo a ilustrar melhor este tema, Philippe Contamine diz-nos, em jeito de exemplo: “Lors de leurs grandes chevauchées à travers le royaume de France, les Anglais pre-naient soin de consommer le moins possible les vivres dont ils s’étaient pourvus au dé-part et qu’ils transportaient dans leurs chariots; ils préféraient se ravitailler sur place, aux dépens des populations locales. Pour exploiter une plus large bande de territoire, ils divisaient leur armée en trois corps, progressant parallèlement, sur une distance d’une vingtaine de kilomètres et à une vitesse de déplacement comprise entre dix et vingt kilomètres par jour”. O que gostávamos de sublinhar neste extrato é a divisão em três partes da hoste, de modo a explorarem o máximo de terreno possível e a reco-lherem a maior quantidade de mantimentos possível. Cf. CONTAMINE, Guerre État et société, p. 123.

    21 PRESTWICH, Armies and Warfare, pp. 259-260.22 STRICKLAND, War and Chivalry, pp. 264-265.23 CONTAMINE, Guerre, État et société, p. 123.

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, pp. 7-2314

    ElisE Cardoso

    “(...) fezerom presa em dous fatos de vacas de Garçia Gomçallvez de

    Grisallva; e tomarom quatorze vaqueiros e arramearom as temdas e

    carregarõ os fatos com todos seus aparelhos. E assi trouverom vacas

    e novilhos e egoas com seus pastores (...) E acharom em aquella presa

    seteçemtos novilhos que andavom apartados em huũ dos fatos; e as

    vacas eram mil e quatro cemtas; e viimte e seis eguas, e nove poldros

    (...)” 24.

    Em 1398, quando o Condestável Nuno Álvares Pereira entrou por Castela, chegou até Vila Alva, e diz-nos o cronista que os portugueses...

    ...“nam podiam aver augua que os abastecesse, porque o tempo era muy

    seco; e porque as gentes dos castellaãos eram muytas, e estendiam-sse

    pella terra a myrar a hoste, e punhão fogo aos mantimentos por se não

    prestar deles, o Comde mandou diante correr e disse: Hij-vos e avey vis-

    ta e limgoa da terra, e trazei alguns boys e vacas, se os poderdes aver,

    pera mantimento destas gentes (...)25”.

    Através desta última passagem, podemos reconhecer uma das grandes dificuldades pelas quais um exército que decidia “viver do país inimigo” poderia deparar-se: a política de “terra queimada”, que suprarreferido.

    Também verificamos que, no processo de busca de alimento, era nor-mal a coluna enviar alguns homens à frente, com a missão de percor-rerem diversos quilómetros, até encontrarem forragens. O exemplo de 1384, atrás citado, mostra uma incursão por Castela que implicou diver-sos roubos de mantimentos vitais para a hoste portuguesa.

    A Coroa podia encarregar-se, igualmente, da compra, com alguma antecedência, dos mantimentos que considerava necessários para uma determinada expedição26. Os mantimentos comprados seriam depois revendidos aos combatentes da hoste, muitas vezes sob a forma de des-conto nos respetivos soldos27. A aquisição, por parte da Coroa, destes mantimentos era feita a preços mais baixos do que o normal, por ser em grandes quantidades e por o rei assim o determinar, originando muitas

    24 LOPES, Crónica del Rei dom João I da boa memória. Parte Primeira, cap. XCVII, pp. 163-164.

    25 LOPES, Crónica del Rei dom João I da boa memória. Parte Segunda, cap. CLXIII, p. 344.26 LAMBERT, Shipping the Medieval Military, p. 5427 FERRER I MALLOL, “La organización militar en Cataluña”, p. 211

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, pp. 7-23 15

    O abastecimentO militar aO tempO dO blOqueiO de sevilha (1369-1370)

    vezes queixas por parte dos fornecedores. Este método de ‘compra por atacado’ era sobretudo utilizado pela monarquia para abastecer as for-talezas e as frotas. Este procedimento terá sido, muito possivelmente, um dos métodos escolhidos para o abastecimento da frota portuguesa aquando do Bloqueio de Sevilha. Na Crónica do Conde D. Pedro de Me-neses, encontramos um caso no qual era necessária a compra de biscoito para algumas embarcações, pois este havia terminado:

    “Onde avees de saber, que avendo o Conde novas, que as Fustas dos

    Mouros aviam de hir a hum salto a Castella, e dahy ao Regno do Al-

    garve, fez armar tres Fustas suas, a saber, huma em que hia Andres

    Martim, e outra que trazia Alvaro Affonso d’Aguiar, e outra de que era

    Patrao Alvaro Fernandes do Cadaval, e per que nom tinha tanto biscoito

    que lhes podesse avondar aquelles dias, que lhes ordenava que lá andas-

    sem, mandou a Alvaro, que o fosse comprar a Santa Maria del Porto

    pera sy, e pera os outros. (...) e porque em Santa Maria nom acharom

    assy prestes, quem lhes vendesse o biscoito, encarregarom o feito a hum

    Genoês, e forom-se a Callez (...)”28.

    Philippe Contamine afirma que o exército francês utilizava com frequência esta solução da compra de mercadorias, mas salienta que tam-bém recorria à requisição de mercadores para acompanharem a hoste29. Para aliciar tais mercadores, a Coroa concedia determinados privilégios, tais como a isenção das taxas de circulação e de outros impostos, salvo-condutos, entre outros. Ao mesmo tempo, a monarquia tentava imple-mentar um tabelamento dos preços, de modo a impedir a inflação dos bens alimentares, pelo menos dos de primeira necessidade30.

    Outra solução, bastante utilizada pela Coroa, era o uso do direito de requisição de alimentos entre as populações mais próximas. No entan-to, o pagamento feito a essas populações acabava, muitas vezes, por não se concretizar, ou então por sofrer um atraso considerável31. Estes mantimentos seriam posteriormente vendidos pela própria monarquia aos combatentes que integravam a hoste: tal como observou Michael

    28 ZURARA, Crónica do Conde D. Pedro de Meneses, livro II, cap. XIX, p. 305.29 CONTAMINE, Guerre, État et société, p. 127. 30 MONTEIRO, A Guerra em Portugal nos finais da Idade Média, p. 249.31 CONTAMINE, Guerre, État et société, p. 125 e MONTEIRO, “Estratégia e Táctica Milita-

    res”, p. 222.

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, pp. 7-2316

    ElisE Cardoso

    Prestwich, ao analisar o caso dos exércitos medievais ingleses, não se-ria normal a Coroa providenciar alimento gratuito aos seus homens de armas32.

    O monarca poderia, igualmente, exigir que os seus senhores abas-tecessem as suas gentes, e as cidades as suas milícias. A quantidade de mantimentos que teriam de levar consigo poderia variar de campanha para campanha, podendo ir de três dias até três meses. No entanto, quando estes víveres trazidos de casa pelos homens de armas chegas-sem ao fim, caberia à Coroa reunir as vitualhas necessárias ao bom su-cesso do empreendimento33.

    Deve, entretanto, sublinhar-se que as crónicas quatrocentistas por-tuguesas aludem sobretudo a casos de operações rápidas, em busca de forragens e seguindo a regra do ‘viver do que a terra dá’34.

    No caso do bloqueio de Sevilha, sabemos que a frota se mantinha abastecida devido à existência de uma linha de abastecimento constan-te entre a armada e o reino. As embarcações iam e vinham trazendo mantimentos, armas, vestuário e os respetivos soldos para os homens de armas. O que nos leva a questionar: onde se abasteciam estas embar-cações em Portugal? Era nas chamadas taracenas, que se caracterizam por ser estaleiros ligados à construção e à reparação naval, bem como à preparação do seu abastecimento35. Existiam estaleiros em todas as povoações com atividade marítima e fluvial. Os mais importantes situ-avam-se em Lisboa e no Porto, onde nesta última, podem ter chegado a funcionar, em simultâneo, três taracenas. Nestas, existiam armazéns onde guardar remos, lemes, mastros e velas, bem como os fornos onde se cozia o biscoito36.

    32 PRESTWICH, Armies and Warfare, p. 252.33 BACHRACH-BACHRACH, Warfare in Medieval Europe, pp. 200-201 e GARCÍA FITZ, “La

    Organización Militar en Castilla y León”, p. 11734 Veja-se as seguintes passagens das crónicas que comprovam este fator: LOPES, Crónica

    del Rei dom João I..., Parte Segunda, cap. LXXV, p.174; cap. CV, pp. 220-221; cap. CLXX-XIV, p. 397.

    35 Podemos observar isto mesmo numa carta de privilégios concedida por D. João I “(...) aos carpinteiros das taracenas (...)” de 1388 e numa outra carta de 1396 igualmente dedicada “(...) aos nossos carpinteiros e calafates e pitintaães que nos seruem e stam prestes pera nos serujr nas nossas galees e taracenas da cidade de lixboa (...)”. Chance-larias Portuguesas - D. João I, volume II-1, doc. II-326, p. 180 e volume II-2, p. 217, doc. II-1010.

    36 DUARTE, “A Marinha de Guerra Portuguesa”, pp. 318-320.

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, pp. 7-23 17

    O abastecimentO militar aO tempO dO blOqueiO de sevilha (1369-1370)

    4. A alimentação

    A alimentação, na Idade Média, tinha por base os cereais, a carne, e o vinho37. Carecia das vitaminas A, C e D, o que se traduzia numa débil resistência face a infeções e a epidemias, bem como em diversas doen-ças dos olhos, dos rins (devido a deficiência em vitamina A) e no tris-temente célebre escorbuto (devido à falta de vitamina C)38. No que diz respeito à carne, era sobretudo consumida a de vaca, a de porco, a de carneiro e a de cabrito, bem como as carnes provenientes da caça39. No caso do peixe, consumia-se de mar e de rio, mas sobretudo a pescada, bem como diversas outras variedades (como moluscos, crustáceos, tru-tas, sardinha, entre outros); uma das formas habituais de consumo de peixe era salgado ou defumado40. O pão era por norma feito de trigo, no entanto, à falta deste cereal, poderia utilizar-se a castanha, a fava, a cevada, o centeio ou a bolota. O vinho bebia-se, normalmente, mistu-rado com água. Também o sal (essencial para conservar alimentos)41, o vinagre e, claro está, a água seriam muito importantes.

    Para o mantimento de uma frota, seria sobretudo utilizado o biscoi-to ou pão-coito42, uma vitualha que deveria ser feita com trigo de boa qualidade, em detrimento do centeio e da cevada, os quais, sendo mais húmidos e frios, rapidamente apodreciam e ganhavam bolor43. Além disso, o centeio era menos energético que o trigo, pelo que os homens teriam tendência a comer mais. O vinho deveria ser forte, de modo a ser misturado com água. Dava-se preferência à ingestão de vinho e cerveja em detrimento da água que muitas vezes poderia estar conta-minada originando problemas de doenças, como o caso da disenteria44. Quanto à carne e ao peixe, de modo a não aumentar a sede, deveriam ser curados sem sal, ou seja secos, simplesmente. Deveria haver queijo e manteiga entre os víveres, bem como legumes, sobretudo as favas e o feijão, que alimentavam mais45. Podemos notar, no entanto, uma gran-

    37 GONÇALVES, “A Alimentação”, pp. 226-227.38 MARQUES, A Sociedade Medieval Portuguesa, p. 27.39 ARNAUT, A Arte de Comer, pp. 13-15.40 MARQUES, A Sociedade Medieval, pp. 28-31.41 Ibidem, p. 3342 O biscoito é um pão sem levedura, cozido pelo menos duas vezes, de modo a ficar seco

    e a durar mais tempo. 43 MARQUES, Nova História da Expansão Portuguesa, Vol. II, pp. 143-144.44 STRICKLAND, War and Chivalry, p. 264.45 DUARTE, “A Marinha de Guerra Portuguesa”, pp. 320-321

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, pp. 7-2318

    ElisE Cardoso

    de carência em legumes e frutas frescas na alimentação dos homens, o que os deixava vulneráveis ao aparecimento de certas doenças, como o escorbuto46.

    Todos estes alimentos precisariam, no entanto, de ser cuidadosa-mente racionados pela hoste. Associadas à falta de alimento estava a doença e as deserções, o que poderia colocar a expedição em risco. As-sim, a hoste teria de controlar muito bem o seu consumo de vitualhas. Os víveres deveriam ser bem geridos, para durarem até ao final da campanha, e por isso mesmo se punia severamente qualquer tentativa de furto. Podemos observar no seguinte excerto das Ordenações Afon-sinas as consequências a que estariam votados os infratores.

    “Que nom seja alguum tam ousado de roubar, nem filhar bitalhas, nem

    outras cousas, que primeiro per outrem forem filhadas, sob pena de lhe

    cortarem a cabeça; nem outro fy nenhuas outras mercadarias, ou cou-

    sas quaeesquer que venham pera refrescamento da hoste, sob a pena

    fufo dita: e aquelle, que o fezer saber ao Conde-estabre, ou ao Marichal

    de taaes roubadores, ou filhadores, haverá mil reis por seu trabalho.”47

    Quanto a estimativas sobre o valor calórico dos alimentos consumi-dos, apenas podemos recordar cálculos apresentados na bibliografia estrangeira da especialidade. No caso francês, através da ingestão de pão, de carne, de ovos e de manteiga, chegou-se à conclusão de que um exército em marcha consumiria (por dia e por homem) cerca de 4.360 calorias, enquanto uma guarnição numa cidade sitiada consu-miria cerca de 2.955 calorias e uma frota perto de 3.95648. Contamine chega igualmente à conclusão de que a origem destes valores calóricos advém de uma percentagem de cerca de 67% de consumo de glúcidos, de 16.5% de lípidos, bem como de 16.5% de proteínas49. Os homens de guerra franceses possuíam, portanto, uma alimentação aceitável, que carecia no entanto de lípidos e que possuía um teor demasiado elevado de glúcidos.

    Após observarmos as necessidades calóricas dos homens de armas, temos de nos questionar sobre o peso e a quantidade de alimento ne-

    46 MARQUES, Nova História da Expansão Portuguesa, p. 146.47 Ordenações Afonsinas, Livro I, Título LI, Regimento de Guerra, p. 29948 CONTAMINE, Guerre, État et société, p. 652. 49 Ibidem, p. 653.

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, pp. 7-23 19

    O abastecimentO militar aO tempO dO blOqueiO de sevilha (1369-1370)

    cessários para alimentar uma hoste. Segundo Michael Prestwich, as quantidades de comida necessárias para alimentar um exército medi-eval inglês eram elevadíssimas: uma hoste de 30 000 homens necessi-taria de cerca de 5 000 kg50 de cereais por semana; se juntarmos 5 000 mil cavalos, estima-se que cerca de 2000 kg de aveia fossem requisita-dos todas as semanas; para uma campanha que durasse cerca de dois meses, uma hoste britânica necessitaria, assim, de cerca de 56 000 kg de cereais51!

    Se esmiuçarmos estes dados, descobrimos que um quilograma de pão, cozinhado nos diversos tipos de cereais produzidos na Europa Medieval, equivalia a cerca de 2000 calorias52. O mesmo número de calorias será providenciado por 750 gramas de biscoito. A diferença de peso entre o biscoito e o pão deve-se ao facto de o primeiro per-der a água durante a segunda cozedura. Um quilograma de carne fresca representava 2500 calorias, enquanto o mesmo peso de carne seca fornece cerca de 3200 calorias. Novamente o processo de seca-gem eliminava a água existente, mantendo as calorias53. As bebidas representavam igualmente uma fonte de calorias considerável para os homens de armas. Um litro de cerveja teria cerca de 300 a 600 calorias, dependendo do álcool que continha, e um litro de vinho deteria cerca de 825 calorias, sendo o tinto ligeiramente menos calórico do que o vinho branco. Ora, um litro de cada uma destas bebidas pesava cerca de um quilograma. Segundo Bernard Bachrach e David Bachrach, um soldado que consumisse cerca de 3600 calorias por dia deveria ingerir 1,2 quilogramas de pão, 200 gramas de carne seca, 100 gramas de er-vilhas secas e 1 litro de cerveja. O peso total das rações deste homem de armas por dia será o de 2,5 quilogramas, excluindo o consumo de água fresca. Contas feitas, para alimentar um exército de mil homens seriam necessários 2500 quilogramas de víveres por dia54. Estes valo-res deixam entrever o esforço logístico necessário para uma hoste reu-nir e transportar toda esta quantidade de mantimentos. Devido à falta de informação mais concreta, no entanto, é-nos impossível comparar

    50 A medida que é utilizada na obra de Prestwich é o “quarter”, que tentámos converter em quilogramas, para melhor entendimento. No entanto, estes valores são apenas es-timativas.

    51 PRESTWICH, Armies and Warfare, pp. 247-248. 52 BACHRACH-BACHRACH, Warfare in Medieval Europe, p. 157.53 Ibidem, p. 157.54 BACHRACH-BACHRACH, Warfare in Medieval Europe, pp. 157-158.

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, pp. 7-2320

    ElisE Cardoso

    estes dados com aquela que teria sido a alimentação realizada pelos homens presentes na frota aquando do bloqueio de Sevilha. Podemos depreender, todavia, que devido às privações passadas pelos homens estacionados no Guadalquivir as porções de mantimentos que detinham seriam menores relativamente aos dados apresentados acima. Ficamos porém, com uma noção de toda a quantidade ideal de vitualhas necessá-rias para a alimentação de uma hoste.

    5. Conclusão

    Concluímos dizendo que o bloqueio a Sevilha teve, apesar das difi-culdades trazidas pelo inverno, um bom sistema de abastecimento. Os soldados receberam sempre o seu soldo, roupa, e víveres. É certo que os alimentos nem sempre foram suficientes, e o inverno rigoroso trouxe consigo a doença (em especial o escorbuto) e as deserções55. No entan-to, não deixa de existir uma organização que durante alguns meses de facto resultou, e conseguiu manter a frota na sua missão. Este conflito bélico acabou por não se traduzir em grandes benefícios estratégicos para Portugal, no entanto, cumpriu o seu objectivo no que diz respeito ao desgaste sofrido pela cidade de Sevilha, e no bloqueio exercido à sua frota. De referir, igualmente, o elevado esforço realizado pelo reino para manter a armada portuguesa na sua missão.

    Quanto à guerra na qual se insere este episódio bélico, termina com a assinatura do Tratado de Alcoutim, em 1371, no qual D. Fernando reco-nhece D. Henrique como rei, renunciando a qualquer pretensão ao tro-no castelhano. Neste acordo, ficou ainda previsto o matrimónio do mo-narca português com Leonor, filha de D. Henrique56. Chegava assim ao fim aquela que ficará conhecida como a Primeira Guerra Fernandina.

    No que diz respeito aos meios utilizados pela coroa para fornecer mantimentos à sua frota, podemos concluir que se terá recorrido a re-quisições ou ao sistema de ‘compra por atacado’. Tais víveres seriam guardados nas chamadas taracenas, onde igualmente se cozia o famo-so biscoito, prontos a serem enviados para os homens estacionados no Guadalquivir. Os barcos revezavam-se no transporte de vitualhas para a frota entre o reino e o local escolhido para o bloqueio. Todos estes aspectos nos deixam entrever o enorme processo logístico existente por

    55 LOPES, Crónica de D. Fernando, Cap. XLII, pp. 137-139.56 COELHO, D. João I, p. 34.

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, pp. 7-23 21

    O abastecimentO militar aO tempO dO blOqueiO de sevilha (1369-1370)

    detrás de tal empreendimento. Acrescentamos ainda que a alimentação dos homens de armas era constituída sobretudo por trigo, vinho e car-ne, carecendo de algumas vitaminas e proteínas essenciais para evitar o surgimento de doenças.

    Fuentes y Bibliografía

    1. Fontes

    Chancelarias Portuguesas - D. João I, edição preparada por João José Al-ves Dias, I.N.I.C./Centro de estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2004

    LOPES, Fernão, Crónica de D. Fernando. Edição crítica por Giuliano Mac-chi, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1975.

    LOPES, Fernão, Crónica del Rei dom João I da boa memória. Parte Primei-ra, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1977 (reprodução da edição do Arquivo Histórico Português, de 1915 preparada por Ansel-mo Braamcamp Freire).

    LOPES, Fernão, Crónica del Rei dom João I da boa memória. Parte Segun-da. Edição preparada por William J. Entwistle, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1977.

    LÓPEZ DE AYALA, Pedro, Cronicas de los Reyes de Castilla, Tomo II, Im-prensa de D. António de Sancha, Madrid, 1779.

    Ordenações Afonsinas, nota de apresentação de Mário Júlio de Almeida Costa; nota textológica de Eduardo Borges Nunes. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, 5 vols. (reprod. fac-simile da edição feita na Real Imprensa da Universidade de Coimbra, em 1792).

    ZURARA, Gomes Eanes de, Crónica do Conde D. Pedro de Meneses. Nota de apresentação de José Adriano de Freitas Carvalho. Porto, Progra-ma Nacional de Edições Comemorativas dos Descobrimentos Portu-gueses, 1988 (reprodução fac-similada da “Collecção de Livros Inedi-tos de Historia Portuguesa da Academia Real das Sciencias de Lisboa, vol.2, 1792).

    2. Estudos

    ARNAUT, Salvador Dias, A Arte de Comer em Portugal na Idade Média, Colares Editora.

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, pp. 7-2322

    ElisE Cardoso

    BACHRACH, Bernard, S.,; BACHRACH, David, S., Warfare in Medieval Eu-rope c.400 – c.1453, Routledge, 2017.

    COELHO, Maria Helena da Cruz, D. João I, Temas e Debates, Rio de Mou-ro, 2008.

    CONTAMINE, Philippe, Guerre État et Société à la Fin du Moyen Âge, La Haye, Paris, 1972.

    DUARTE, Luís Miguel, “A Marinha de Guerra Portuguesa” in Nova His-tória Militar de Portugal, (dir.) de Manuel Themudo Barata e Nuno Severiano Teixeira, vol. 1, Círculo de Leitores, Rio de Mouro, 2003.

    FERRER I MALLOL, María Teresa, “La organización militar en Cataluña en la Edad Media”, Revista de História Militar, Instituto de História y Cultura Militar, 2001.

    GARCIA FITZ, Francisco, “La Organización Militar en Castilla Y León” Revista de História Militar, Instituto de História y Cultura Militar, 2001.

    GOMES, Rita Costa, D. Fernando, Temas e Debates, Rio de Mouro, 2009.

    GONÇALVES, Iria, “A Alimentação” in História da Vida Privada em Portu-gal, (dir.) de José Mattoso, Círculo de Leitores e Temas e Debates, 2011.

    LAMBERT, Craig L., Shipping the Medieval Military, The Boydell Press, Woodbridge, 2011

    MARQUES, A. H. Oliveira, A Sociedade Medieval Portuguesa, A Esfera dos Livros, 2010.

    MARQUES, A. H. Oliveira, História de Portugal, vol. 1, Editorial Presença, Lisboa, 2010.

    MARQUES, A. H. Oliveira, Nova História da Expansão Portuguesa – A Ex-pansão Quatrocentista, Vol. II, Editorial Estampa, Lisboa, 1998.

    MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota – A Guerra na Idade Média, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2011.

    MONTEIRO, João Gouveia, A Guerra em Portugal nos finais da Idade Mé-dia, Notícias Editorial, Lisboa, 1998.

    MONTEIRO, João Gouveia, “Estratégia e Táctica Militares”, in Nova His-tória Militar de Portugal, (dir.) de Manuel Themudo Barata e Nuno Severiano Teixeira, vol. 1, Círculo de Leitores, Rio de Mouro, 2003.

    MONTEIRO, João Gouveia, Aljubarrota - 1385 – A Batalha Real, Tribuna da História, 2007.

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, pp. 7-23 23

    O abastecimentO militar aO tempO dO blOqueiO de sevilha (1369-1370)

    MONTEIRO, Saturnino, Batalhas e Combates da Marinha Portuguesa, vol. 1, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa 1989.

    PRESTWICH, Michael, Armies and Warfare in the Middle Ages, Yale Uni-versity Press, New Haven and London, 1996.

    STRICKLAND, Matthew, War and Chivalry: the conduct and perception of war in England and Normandy, 1066-1217, Cambridge University Press, Cambridge, 1996.

    Fecha de recepción: 22-05-2018

    Fecha de aceptación: 16-10-2018

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, pp. 25-47 25

    D. Duarte de Meneses (1414-1464): o sangue e as armas no final

    da Idade Média

    Duarte de Meneses (1414-1464): lineage and arms in the late Middle Ages

    António Martins Costa∗

    Universidade de Lisboa

    Resumo

    Este artigo procura observar, numa perspectiva panorâmica, o percurso de um dos mais notáveis guerreiros dos finais da Idade Média: D. Duarte de Meneses. Com base num conjunto diversificado de fontes, somos convidados a revisi-tar, na perspectiva deste combatente, alguns dos aspectos mais interessantes da história militar portuguesa de Quatrocentos. Entre os palcos peninsular e marroquino, caracterizados por formas distintas de fazer a guerra, D. Duarte desenvolve até ao fim dos seus dias uma intensa carreira das armas que lhe proporciona uma não menos espectacular ascensão social, de filho bastardo de alferes do infante herdeiro de D. João I a uma das personagens centrais da Corte de D. Afonso V, cumulando sucessivamente diversas honras, cargos e mercês.

    Palavras-chave

    História Militar Medieval; Marrocos; século XV; nobreza; D. Duarte de Meneses.

    * Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e investigador no Centro de História da Universidade de Lisboa. Correo electrónico: [email protected]

    http://www.journal-estrategica.com/

    http://http://www.journal-estrategica.com/

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, pp. 25-4726

    António MArtins CostA

    Abstract

    This article aims to observe, in a panoramic perspective, the course of one of the most notable warriors of the late Middle Ages: Duarte de Meneses. Based on a diverse set of sources, we are invited to revisit, from this combatant’s perspective, some of the most interesting aspects of the Portuguese military history of fifteen century. Between the Iberian and Moroccan spaces, characterized by distinct types of warfare, Duarte develops until the end of his days an intense martial career that provides him a spectacular social ascension, which transform a bastard’s son of alferes of the prince heir of João I in one of the central personages of the Court of Afonso V, after getting successively diverse honors, offices and riches.

    Keywords

    Medieval Military History; Morocco; XV century; nobility; Duarte de Meneses.

    Introdução

    O artigo que aqui publicamos resultou de uma comunicação apre-sentada na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, a 4 de No-vembro de 2016, por ocasião do primeiro colóquio da Associação Ibéri-ca de História Militar (séculos IV-XVI). Subordinado ao tema «Grandes Comandantes: carreiras, mentalidades, modelos de actuação bélica», o evento deu-nos o pretexto ideal para nos debruçarmos sobre um dos mais emblemáticos chefes guerreiros do século XV português. Trata-se de D. Duarte, o filho ilegítimo de D. Pedro de Meneses que chegou a ca-pitão de Alcácer-Ceguer e a conde de Viana após uma carreira marcial nos palcos de Portugal, de Castela mas, sobretudo, de Marrocos. Tomar como objecto de estudo o seu percurso permitir-nos-á conhecer alguns dos aspectos mais interessantes de como se preparava, se fazia e se vi-via da guerra, na perspectiva do combatente, entre a Idade Média e a Modernidade. Ao mesmo tempo, este olhar panorâmico sobre a carreira daquele comandante, nas suas diferentes fases, conduzir-nos-á a uma observação dos acontecimentos à luz da renovação da história militar, que, mais do que uma “história das batalhas”, pretende analisar o uni-verso bélico em articulação com os seus contextos sociais, políticos, eco-nómicos, técnicos e culturais1.

    A lacuna historiográfica foi o principal factor que nos levou a ele-ger a figura do guerreiro D. Duarte de Meneses. Mesmo sem uma pes-

    1 MONTEIRO - MARTINS, “The Medieval Military History”, pp. 459-481.

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, pp. 25-47 27

    D. Duarte De Meneses (1414-1464): o sangue e as arMas no final Da iDaDe MéDia

    quisa exaustiva, logo constámos que foram poucos e com objectivos peculiares os trabalhos que se debruçaram sobre o primeiro capitão de Alcácer-Ceguer, dos quais nos permitimos destacar: a Crónica do Conde D. Duarte de Meneses2, que o cronista régio Gomes Eanes de Zu-rara redigiu logo após a morte do biografado, entre 1464 e 1468, para cantar os seus feitos, um relato bastante completo que levou o autor a deslocar-se ao Norte de África para interrogar as gentes e conhecer os territórios3; a Vida de Don Duarte de Meneses4, que Agostinho Manu-el de Vasconcelos compôs num tom laudatório durante a monarquia dual, em 1627, para o seu amo e conde de Tarouca, descendente do fronteiro; o brevíssimo Esboço Biographico5, escrito em 1875 pelo es-critor João Augusto Marques Gomes para elogiar perante a sociedade os feitos do esquecido conde de Viana; a separata D. Duarte de Meneses e D. Isabel de Castro6, uma abordagem social dada à estampa em 1901 por José Fernandes Costa; o estudo diplomático do franciscano António Dias Dinis sobre os capítulos truncados da Crónica do Conde D. Duarte de Meneses7, datado de 1949; o artigo de Luís Miguel Duarte «A morte do capitão (veteranos e “maçaricos” na guerra marroquina do século XV)», que serviu de pretexto para identificar as diferentes posturas de maturidade da cavalaria portuguesa8; por fim, de 2012, o artigo «Mode-los de ação bélica na Crónica de D. Duarte de Meneses: texto, contexto e representação»9, no qual André Bertoli destacou a construção da fi-gura do conde a partir do ideal cavaleiresco.

    Partindo de escassos estudos, o nosso trabalho heurístico levou-nos ao encontro de uma plêiade de fontes de distintas tipologias e prove-niências que procurámos questionar e relacionar com o maior sentido hermenêutico. Desde logo, recorreremos às fontes narrativas, a começar pela já citada Crónica do Conde D. Duarte de Meneses, a principal fonte sobre o nosso fronteiro, seguindo-se a obra que o mesmo autor compu-sera (pouco antes) acerca do pai do biografado, a Crónica do Conde D.

    2 ZURARA, Crónica do Conde D. Duarte de Meneses.3 GOMES, “Zurara, Gomes Eanes de”, pp. 687-690.4 VASCONCELOS, Vida de Don Duarte de Meneses. 5 GOMES, D. Duarte de Menezes.6 COSTA, D. Duarte de Meneses e D. Isabel de Castro.7 DINIS, Crónica do Conde D. Duarte de Meneses.8 DUARTE, “A morte do capitão (veteranos e “maçaricos” na guerra marroquina do sécu-

    lo XV)”, pp. 93-109.9 BERTOLI, “Modelos de ação bêlica na Crónica de D. Duarte de Meneses”, pp. 171-201.

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, pp. 25-4728

    António MArtins CostA

    Pedro de Meneses10, isto para além das crónicas régias que Rui de Pina redigiu, na viragem para o século XVI, relativamente aos reinados de D. Duarte11 e D. Afonso V12. Por outro lado, considerámos alguma documen-tação das chancelarias de D. João I, D. Duarte e D. Afonso V, bem como certos diplomas dos fundos da Leitura Nova e das Gavetas da Torre do Tombo13. Finalmente, ainda de forma subsidiária, observámos o túmulo com jacente de D. Duarte de Meneses, com o seu epitáfio, que procurou imortalizar na pedra os feitos do guerreiro.

    1. Do reino para Ceuta: o despontar para as armas (1414-1438)

    Recuar a 1414 corresponde, como em tantos outros anos do fim da

    Idade Média, a mergulhar num ciclo de crise marcado pela escassez

    alimentar, pelos surtos de peste e pelos conflitos na Cristandade, ainda

    fracturada pelo Cisma Papal14. Em Portugal, a jovem dinastia de Avis

    prepara uma grande armada de destino enigmático quando nasce um

    filho bastardo de D. Pedro de Meneses que recebe o nome de Duarte,

    talvez em homenagem ao infante herdeiro, de quem o pai é alferes15.

    Se acerca da mãe da criança16 – sobre a qual alguns trabalhos genea-

    lógicos sugerem o nome de Isabel Domingues – quase nada sabemos a

    não ser de que se trata de uma criada solteira da casa de D. Pedro, ao

    invés, conhecemos bem a linhagem do progenitor no estado da cava-

    laria, uma vez que descende da família condal dos Teles de Meneses e,

    mais atrás, dos próprios reis de Castela17. Mas o nascimento deste ilegí-

    timo nada tem de especial num tempo em que na nobreza são comuns

    os filhos à margem do casamento18. Entregue pelo pai ao cuidado do

    10 ZURARA, Crónica do Conde D. Pedro de Meneses.11 PINA, “Crónica do Senhor Rey D. Duarte”, Crónicas de Rui de Pina, pp. 477-575.12 IDEM, “Crónica do Senhor Rey D. Affonso V”, Ibidem, pp. 577-881.13 As fontes documentais não publicadas (de diversos fundos) que aqui utilizamos são

    todas oriundas do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, doravante abreviado com a sigla ANTT.

    14 LE GOFF, A Civilização do Ocidente Medieval, vol. 1, pp. 141-145.15 ZURARA, Crónica do Conde D. Duarte..., cap. IIII, p. 51. 16 FREIRE, Brasões da Sala de Sintra, livro 1, p. 123.17 ZURARA, Crónica do Conde D. Pedro..., primeiro livro, cap. III, p. 182. A respeito da

    figura de D. Pedro de Meneses, em particular, leia-se o seguinte estudo: CAMPOS, D. Pedro de Meneses e a construção da Casa de Vila Real (1415-1437).

    18 MARQUES, “A vida quotidiana - afecto”, Nova História de Portugal, vol. 4, pp. 484-490.

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, pp. 25-47 29

    D. Duarte De Meneses (1414-1464): o sangue e as arMas no final Da iDaDe MéDia

    seu amigo João Álvares Pereira sendo ainda “menino de mama”19, no dizer de Zurara, este bebé de meses parece condenado a um futuro na sombra. Porém, a roda da fortuna jogaria a seu favor.

    Em 21 de Agosto de 1415, a armada de D. João I conquista Ceuta ao reino de Fez através de uma acção bem-sucedida de desembarque e de conquista de posições na cidade20. D. Pedro de Meneses, que havia combatido o rei português ao lado de Juan I e passado anos no exílio de Castela, aposta na reconciliação plena com a Coroa ao oferecer-se para o difícil cargo de capitão da praça marroquina, prontamente recusado por fidalgos como D. Nuno Álvares Pereira, Gonçalo Vaz Coutinho ou Martim Afonso de Melo21. À frente de uma guarnição de cerca de 3 000 homens, o Meneses não tarda em dar provas do seu valor perante os violentos e repetidos cercos muçulmanos de 1416, 1418 e 141922. Daí que seja sem surpresa que na viragem para a década de 1420, já viúvo de D. Margarida de Miranda, consegue autorização do rei para trazer para a cidade do Estreito o pequeno D. Duarte, o seu único va-rão, que por essa altura parece destinado à carreira eclesiástica – a fazer fé nas palavras do cronista Zurara23 e como sugere uma carta de Martinho V datada de 13 de Abril de 142224, na qual o Papa dispensa o então escolar da diocese de Coimbra do impedimento da ilegitimidade para ingressar no clero, ascender a ordens sacras e receber benefíci-os eclesiásticos. Contudo, Ceuta testemunha uma volta a 180 graus na vida do bastardo do seu capitão. Quer tenha sido ou não por vontade da criança que na sua puerilidade roga constantemente ao pai para acompanhar as surtidas em terra de mouros e que não fala “senom em cauallos e armas”25, como pretende Zurara, a verdade é que D. Pedro redireciona o futuro daquele filho. Afinal, o capitão da praça decerto que se encontra consciente da janela de oportunidades que se abre

    19 ZURARA, Crónica do Conde D. Duarte, cap. IIII, p. 51.20 A propósito da conquista de Ceuta pelos portugueses em 1415, de que se assinalou

    recentemente o VI centenário, leia-se: DUARTE, Ceuta, 1415; MONTEIRO - COSTA, 1415 – A conquista de Ceuta.

    21 ZURARA, Crónica do Conde D. Pedro, primeiro livro, cap. V, pp. 196-200.22 MONTEIRO - COSTA, 1415 – A conquista de Ceuta, pp. 125-137.23 ZURARA, Crónica do Conde D. Duarte..., cap. IIII, p. 51.24 Monumenta Henricina, vol. 3, Doc. 23, pp. 39-40. 25 ZURARA, Crónica do Conde D. Duarte, cap. IIII, p. 51.

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, pp. 25-4730

    António MArtins CostA

    para a nobreza guerreira no Norte de África26 e, em particular, do esta-do de graça que ele próprio alcança junto da Coroa, de que são prova a obtenção no ano de 1424 da parte de D. João I, respectivamente, do condado de Vila Real27 e da carta que legitima o jovem D. Duarte28.

    Sobre a formação marcial do nosso guerreiro até ser armado cava-leiro em 1429, prestes a completar os 15 anos, a Crónica do Conde D. Duarte de Meneses somente nos dá a entender a preocupação do pai com a sua equitação e com a escolha da gente para o acompanhar no exercício das armas29 – a estas duas disciplinas consideradas basilares na aprendizagem do guerreiro medieval, segundo Miguel Gomes Mar-tins, somar-se-iam àquele tempo paulatinamente outras actividades próprias do treino, como a caça e as justas30. No plano da formação teórica, é legítimo admitir que por esses anos, à luz da cultura mili-tar da nobreza, o conhecimento do jovem vá sendo influenciado mais ou menos directamente pelos romances de cavalaria e pelos tratados militares (com o clássico Epitoma Rei Militaris de Vegécio à cabeça), tão valorizados pela Corte de Avis – numa altura em que a própria re-aleza começa a produzir certa literatura didática vocacionada para a preparação guerreira31; pelos ecos chegados pela boca dos mercadores estrangeiros que aportam na praça sobre a distante guerra que opõe franceses e ingleses e os ameaçadores avanços turcos sobre a Cristan-dade; e seguramente pela memória das gerações mais velhas acerca das lutas com Castela, sob a liderança daquele carismático condestá-vel agora retirado no convento de Santa Maria do Carmo, em Lisboa32.

    26 FARINHA, Os Portugueses em Marrocos, pp. 11-12.27 ZURARA, Crónica do Conde D. Pedro..., segundo livro, Cap. XI, pp. 581-584.28 ANTT, Chancelaria de D. João I, Livro 4, fls. 74-75 v.29 ZURARA, Crónica do Conde D. Duarte..., cap. IIII, p. 52.30 MARTINS, Guerreiros medievais portugueses, pp. 19-25.31 Terá sido na viragem entre as décadas de 1420 de 1430 que foram escritos o Livro da

    Montaria, atribuído a D. João I e que versa sobre a caça ao porco montês, assim como o Livro da ensinança da arte de bem cavalgar toda a sela, de seu filho D. Duarte, que procurou redigir uma espécie de tratado de equitação, com instruções da luta corpo a corpo e da arte das justas e dos torneios. Veja-se: João Gouveia MONTEIRO, “A forma-ção militar”, en AAVV, Nova História Militar de Portugal, pp. 212-215.

    32 Note-se que D. Nuno Álvares Pereira havia ingressado em 1423 na Ordem dos Carmeli-tas, à qual havia entregue formalmente o Mosteiro de Santa Maria do Carmo. Leia-se: MARTINS, “Nuno Álvares Pereira”, Guerreiros medievais portugueses, p. 264.

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, pp. 25-47 31

    D. Duarte De Meneses (1414-1464): o sangue e as arMas no final Da iDaDe MéDia

    Figura 1.

    Representação de Ceuta no século XVI, por George Braunio.

    Fonte: Universtats Bibliotek Heidelberg, Beschreibung and Confractur der

    vornembster Stat der Welt (Band 1), Koln, 1582 [VD16B7188], p. 57 v.

    Como quer que tenha sido, certo é que, na transição para a década de 1430, D. Duarte cresce tirocinando no agreste e montanhoso Rife, onde os portugueses se encontram num processo de aprendizagem face a uma nova realidade militar, de resto bem diferente daquela a que es-tavam habituados. É ali que o nosso fronteiro, sob uma moral de serviço à Coroa e à Igreja, vai conhecendo as diferentes motivações dos seus “camaradas de armas” – uns por vocação, outros por obrigação. Afinal, a guarnição de Ceuta, que se converte num verdadeiro embrião de exérci-to permanente, compõe-se de forças tão distintas como: as milícias con-celhias (de besteiros e de aquantiados de cavalo e de pé), arrancadas aos mesteres e à lavoura, que se mostram geralmente contrariadas naquele serviço; os nobres, que ali procuram honra e proveito, de tal maneira que não raras vezes se expõem aos perigos ao arrepio das vozes de co-mando; e, em menor número, grupos de homiziados, de ordens milita-res e, mesmo, de alguns cavaleiros estrangeiros33.

    É, pois, rodeado por estes homens que o filho de D. Pedro de Meneses vai tomando contacto com as forças do reino de Fez, tendencialmente mais numerosas que as portuguesas e dotadas de boa cavalaria ligeira, exímios atiradores e muita artilharia, apesar das distorções das fontes que engrandecem o exército muçulmano. Naquele clima de guerra per-

    33 MONTEIRO - COSTA, 1415 – A conquista de Ceuta..., pp. 153-167.

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, pp. 25-4732

    António MArtins CostA

    manente, D. Duarte aprende, por um lado, as normas da exigente defesa da praça, que passam pelo estabelecimento de uma rede de vigias do campo que detecta as movimentações, pela coordenação dos besteiros e da artilharia nos pontos mais convenientes da barreira e pelo comando de forças de choque na perseguição do inimigo em retirada, onde a dis-ciplina é vital para não cair nas ciladas frequentemente armadas pelos muçulmanos. Por outro lado, o jovem guerreiro é iniciado na prática das almogavarias, as arriscadas incursões em território inimigo em que as montadas são vitais para a mobilidade dos combatentes, que destroem aldeias, saqueiam alfaias e gado e raptam moradores na expectativa do seu resgate34.

    Nas crónicas que Zurara dedica a D. Pedro e D. Duarte de Meneses conseguimos vislumbrar, por vezes com algum exagero do autor, a li-derança em operações que o nosso fronteiro vai assumindo à medida que amadurece, como seja o caso da defesa de Ceuta de 143235, quando fica interinamente por capitão da praça durante a vinda do seu pai ao reino, ou da expedição a Tetuão em 1436, que resulta na sua tomada e destruição36. Certo é que a notoriedade do jovem leva o conde D. Pedro de Meneses, “cada vez mais enfermo”37, a confiar-lhe a sua representa-ção enquanto alferes do rei e o comando da guarnição de Ceuta que, em meados de 1437, se prepara para participar na expedição a Tânger38. Tal como estabelecido, em Agosto daquele ano D. Duarte junta-se à força expedicionária liderada pelo infante D. Henrique39, em cujo conselho de guerra o vemos tomar assento durante o assédio40. Porém, naquele fim do Verão, ao mesmo tempo que o exército português passa de sitiante a sitiado em frente aos muros de Tânger e desespera no palanque por um acordo de rendição, tem lugar outra infelicidade em Ceuta: o velho capitão, sexagenário, fecha os olhos pela última vez e abre as portas do

    34 Luís Miguel DUARTE, “A guerra em Marrocos: aprender tudo de novo”, en AAVV, Nova História Militar de Portugal, pp. 409-417.

    35 ZURARA, Crónica do Conde D. Pedro..., segundo livro, cap. XXVII, pp. 656-659.36 ZURARA, Crónica do Conde D. Duarte..., cap. XXII, pp. 103-106.37 Ibidem, cap. XXIII, p. 106. 38 Sobre o cerco de Tânger de 1437, leia-se: MOREIRA, A campanha militar de Tânger

    (1433-1437).39 ZURARA, Crónica do Conde D. Duarte..., cap. XXIII, p. 106.40 D. Duarte de Meneses foi um dos signatários do auto de capitulação assinado a 17 de

    Outubro de 1437 entre o infante D. Henrique e Salah-bem-Salah, alcaide de Tânger, acordo esse que fixou as condições para a retirada do exército português. Veja-se: Mo-numenta Henricina..., 1964, vol. 6, doc. 64, pp. 210-212.

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, pp. 25-47 33

    D. Duarte De Meneses (1414-1464): o sangue e as arMas no final Da iDaDe MéDia

    governo da praça ao seu genro D. Fernando de Noronha, o novo conde de Vila Real, por via do casamento com a sua filha legítima D. Beatriz41.

    2. Entre as agitações peninsulares: a afirmação do alferes-mor (1438-1458)

    Com o cunhado na capitania de Ceuta, D. Duarte inicia um novo ciclo na sua vida. Provavelmente por perder espaço na praça, como deixa perceber a narrativa de Rui de Pina42, o filho de D. Pedro de Meneses re-gressa ao reino ao cabo de poucos meses e, na Primavera de 1438, é rece-bido pelo monarca na vila de Avis, onde a Corte se acolhe devido a surto de peste em Évora. A chegada a Portugal dá-se em plena discussão acer-ca da possibilidade da entrega de Ceuta aos mouros de Fez em troca da libertação do infante D. Fernando, cativo desde o cerco de Tânger. Com o peso da decisão sobre os ombros, o rei consultara, havia meses, as Cor-tes de Leiria, onde o reino se mostrara profundamente dividido, e ago-ra escreve a pedir opinião ao Papa e a outros monarcas estrangeiros43. Num momento especialmente delicado, o soberano aprecia os conselhos daquele fronteiro com grande conhecimento da realidade africana, pois apesar de “muy mancebo (...) ho achou de bom siso e descripçom”44, ge-rando-se aproximação entre ambos ao ponto de as crónicas de Gomes Eanes de Zurara45 e de Rui de Pina46 serem unânimes numa confissão de arrependimento do rei por o não ter nomeado sucessor do pai na capitania de Ceuta.

    Fosse para compensar D. Duarte de Meneses por não ter sido nomea-do capitão de Ceuta, segundo os dois cronistas, ou apenas para agraciar os seus serviços, certo é que o monarca, no curto espaço de meses até à sua morte, cumula de mercês e honrarias o jovem guerreiro, prestes a completar 24 anos: promove o seu casamento com a afortunada D. Isabel de Melo, filha de Martim Afonso de Melo (antigo guarda-mor de D. João I) e recentemente viúva de João Rodrigues Coutinho47; doa-lhe o

    41 ZURARA, Crónica do Conde D. Pedro..., segundo livro, cap. XL, pp. 716-717.42 PINA, “Crónica do Senhor Rey D. Duarte”, Crónicas de Rui de Pina..., cap. XLIII, pp. 572.43 DUARTE, D. Duarte: requiem por um rei triste, pp. 249-251.44 PINA, “Crónica do Senhor Rey D. Duarte”, Crónicas de Rui de Pina..., cap. XLIII, p. 572.45 ZURARA, Crónica do Conde D. Duarte..., cap. XXIIII, pp. 107-108. 46 PINA, “Crónica do Senhor Rey D. Duarte”, Crónicas de Rui de Pina..., cap. XLIII, pp. 572-

    573.47 Ibidem..., cap. XLIII, pp. 572-573.

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, pp. 25-4734

    António MArtins CostA

    casal de Comedeiras, no termo da Guarda, assim como a alcaidaria de Beja com todos os seus direitos e rendas, tal como o seu pai a detivera48; faz dele seu conselheiro e alferes-mor49, um alto cargo do oficialato régio que, embora já suplantado na hierarquia militar pelos postos de con-destável e de marechal, compreende ainda grande prestígio simbólico e cerimonial50.

    É, de resto, na qualidade de alferes-mor que após a morte do monar-ca (vítima de peste), poucos meses volvidos, D. Duarte de Meneses trans-porta a bandeira real e grita arraial no auto de juramento do pequeno D. Afonso V que tem lugar, na alcáçova de Tomar, no dia 10 de Setembro51. O jovem fronteiro torna-se então num dos actores principais da cena po-lítica do reino ao ser escolhido nas Cortes que reúnem em Torres Novas, dois meses depois, para integrar o conselho real que teria por missão assistir ao regimento do reino partilhado entre o infante D. Pedro, irmão mais velho do defunto monarca, e a rainha D. Leonor52. Porém, a gover-nança bicéfala e a tutela do rei menino, então com 6 anos, é progressiva-mente posta em causa pelos partidos que se radicalizam entre o duque de Coimbra e a viúva de D. Duarte53. É nesse quadro de confronto civil que o alferes nos desvenda a sua mentalidade senhorial ao oscilar entre os dois bandos para manter o seu status quo: se em 1439 corresponde ao apelo da rainha para não comparecer nas Cortes de Lisboa54, onde lhe seria retirada a corregência, já no ano seguinte surge de pazes feitas com o infante D. Pedro, que através de uma carta datada de 3 de Maio de 1440 lhe confirma a posse da alcaidaria de Beja, além do respectivo paço e coutada55.

    48 Carta régia de 15 de Junho de 1438. ANTT, Chancelaria de D. Duarte, Livro 1, fol. 236v.49 ZURARA, Crónica do Conde D. Duarte..., cap. XXIIII, p. 108. 50 O cargo de alferes-mor terá sido o mais importante na hoste régia em Portugal até

    1382, quando D. Fernando cria os ofícios de condestável e de marechal. Quase reduzi-do à função de porta-estandarte, o alferes-mor passa a representar um papel essencial-mente cerimonial e simbólico. Nas Ordenações Afonsinas, recomenda-se que o alferes, para reunir as características de honra e lealdade, seja “homem de nobre linhagem”, de modo a que “as gentes da hoste hajam razam de o terem em grande conta” (Ordenações Afonsinas, livro 1, título LVI, pp. 333-335). Veja-se, a respeito de cargos militares medi-evais em Portugal: João Gouveia MONTEIRO, “A cadeia de comando”, en AAVV, Nova História Militar de Portugal, pp. 217-218.

    51 PINA, “Crónica do Senhor Rey D. Affonso V”, Crónicas de Rui de Pina..., cap. II, pp. 589.52 Monumenta Henricina..., 1964, vol. 6, doc. 96, pp. 264-279.53 RODRIGUES, As tristes rainhas. Leonor de Aragão. Isabel de Coimbra, pp. 182-196.54 PINA, “Crónica do Senhor Rey D. Affonso V”, Crónicas de Rui de Pina..., cap. XL, p. 630.55 ANTT, Leitura Nova, Livro 4 de Odiana, fol. 267 v.

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, pp. 25-47 35

    D. Duarte De Meneses (1414-1464): o sangue e as arMas no final Da iDaDe MéDia

    De facto, a confiança da regência abre uma nova porta a D. Duarte. Com a cunhada exilada em Castela desde o final de 1440, o duque de Coimbra decide apoiar o rei Juan II e o condestável Álvaro de Luna na guerra civil em Castela contra os chamados infantes de Aragão, irmãos da rainha viúva, a qual não cessa de insistir junto destes seus familiares para intervir em Portugal a seu favor, de modo a recuperar a regência e a tutoria dos filhos56. O Meneses prepara-se então para tornar a vestir as armas naquelas campanhas peninsulares, mais próximas da forma de fazer a guerra no Ocidente europeu – cuja arte militar atravessa en-tão uma certa transformação, entre continuidades e rupturas, ao ponto de alguns historiadores discutirem a existência de traços da chamada “Revolução Militar”, caracterizada pelo prolongamento das campanhas, pelo crescimento dos exércitos (onde se destacam corpos permanentes), pela afirmação da infantaria sobre a cavalaria e pelo emprego progres-sivo de armas de fogo (ligeiras e pesadas)57.

    A expedição que conhecemos melhor tem início logo em Julho de 1441, quando o próprio D. Duarte é encarregado pelo regente do coman-do de uma hoste de socorro ao mestre de Alcântara, Gutierre de Soto-maior. Acolitado por Gonçalo Rodrigues de Sousa, Martim de Távora e Lopo de Almeida, o Meneses parte para a Estremadura no comando de um exército de cerca de 2 000 homens, nos quais se contam da pró-pria mesnada “CXX escudeiros seus bem encavalgados e armados e CC homens de pé e besteiros”58. Já em campanha, se por um lado vemos D. Duarte prover a logística da hoste nas comarcas leais ao rei de Castela de forma pacífica, “a contentamento de seus donos”, por outro encontra-mo-lo a imprimir uma prudente ordenança de marcha à sua coluna nos territórios adversos, levando “suas espias diante”, as quais o auxiliam a detectar e desbaratar num breve recontro as tropas do alcaide de Mon-

    56 ARAÚJO, Portugal e Castela na Idade Média, pp. 169-179. 57 Ao conceito de “Revolução Militar” inicial – proposto por Michael Roberts, em 1955,

    para as mudanças espectaculares introduzidas na arte da guerra pelo exército holan-dês no XVII – alguns historiadores têm retocado os seus conteúdos e a sua cronologia, discutindo-se já as suas raízes tardo-medievais. Relativizando a ideia de uma mudança abrupta na forma de combater, Clifford Rogers é um dos medievalistas que identifica uma sucessão de “pequenas revoluções” (infantaria, artilharia, entre outras) sobre o pano de fundo da Guerra dos Cem Anos que, no seu conjunto, produzem uma alte-ração significativa na transição para a Modernidade. Veja-se: ROGERS, “The Military Revolutions of the Hundred Years War”, 1995, pp. 55-93.

    58 ZURARA, Crónica do Conde D. Duarte..., cap. XXVI, p. 113.

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, pp. 25-4736

    António MArtins CostA

    tachez59. Abastecidos os castelos de Magacela e Benquerencia, as opera-ções têm ainda um assédio pela frente. Chegado a Zalamea ao lado do mestre de Alcântara, que perdera a praça, D. Duarte ordena a instalação de um cerco, em que, após tomar o arraial da povoação, combate inten-samente a fortaleza, a qual acaba assaltada e destruída para tristeza do seu aliado Gutierre de Sotomaior60.

    Figura 2.

    A Península Ibérica em meados do século XV

    Fonte: João Gouveia MONTEIRO e António Martins COSTA, A conquista de

    Ceuta..., p. 19.

    Embora sem nova missão de comando, o Meneses diz presente na cha-mada às armas para as duas empresas castelhanas que se seguem, ambas em resposta a pedidos de auxílio do rei Juan II. Na primeira, que tem lugar no início da Primavera de 1444, integra a força de 600 cavaleiros que parte de Évora às ordens do mestre de Alcântara para ter um papel crucial no levantamento do assédio de Henrique de Aragão a Sevilha, ao atacar as praças rebeldes de Carmona e de Alcalá de Guadaira, após o que

    59 Ibidem, cap. XXVI, p. 113.60 Ibidem, cap. XXVI, p. 113-114.

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, pp. 25-47 37

    D. Duarte De Meneses (1414-1464): o sangue e as arMas no final Da iDaDe MéDia

    o próprio D. Duarte oferece os seus serviços ao rei Juan II para combater na fronteira com Granada – onde é possível que tenha passado alguns meses, como deixa em aberto o capítulo XXVII da crónica que o biografa, a qual sofre então de um truncamento até ao ano de 145861. Como quer que tenha sido, em Maio seguinte o alferes-mor encontra-se (de novo) em Portugal, onde incorpora a hoste de 1 900 cavaleiros e 3 000 peões chefia-da pelo jovem condestável D. Pedro que acaba por se reunir ao rei Juan II, em Olmedo, já após a vitória deste sobre D. João e D. Henrique de Aragão, regressando assim ao reino sem terçar armas62.

    Apesar do hiato na nossa principal fonte sobre D. Duarte, consegui-mos situá-lo logo de seguida entre os protagonistas militares no conflito civil que marca o início do governo de D. Afonso V. Com a tensão entre o rei e o ex-regente ao rubro, o Meneses é nomeado em Maio de 1449 fronteiro de Pombal63, um castelo estratégico para vigiar os movimentos do duque de Coimbra, que então se prepara para deixar a cidade do Mondego com o seu exército de cerca de 1 000 cavaleiros e 5 000 peões. Sem surpresa, o alferes-mor encontra-se no dia 20 daquele mês no Vale de Alfarrobeira64, provavelmente próximo de D. Afonso V, quando tem lugar o ataque da numerosa hoste régia à posição apalancada do infante D. Pedro, que acaba morto e as suas tropas derrotadas65.

    Mas a fidelidade D. Duarte de Meneses ao poder régio traduz-se no pós-Alfarrobeira, segundo Baquero Moreno, no incremento da sua posi-ção socioeconómica66: ainda em 1449, obtém a confirmação da parte do monarca de, em caso de seu falecimento, o seu filho primogénito herdar todos os castelos e terras que trazia, bem como o cargo de alferes67; no mesmo ano, são-lhe ampliadas as prerrogativas na jurisdição sobre Fer-reira do Ave68; em 1450, é-lhe estabelecida uma tença anual de 15 000

    61 Ibidem, cap. XXVI, p. 114.62 PINA, “Crónica do Senhor Rey D. Affonso V”, Crónicas de Rui de Pina..., cap. LXXXV, pp.

    693-695. Sobre as campanhas de auxílio no reino vizinho durante o governo do infante D. Pedro, leia-se a síntese: João Gouveia MONTEIRO, “As três expedições de socorro a Castela durante a regência (1441, 1444 e 1445)”, en MARQUES, Nova História Militar de Portugal, pp. 283-284.

    63 PINA, “Crónica do Senhor Rey D. Affonso V”, Crónicas de Rui de Pina..., cap. CXVI, p. 738.64 ANTT, Chancelaria de D. Afonso V, Livro 12, fol. 136. 65 João Gouveia MONTEIRO, “A Batalha de Alfarrobeira (20 de Maio de 1449)”, en AAVV,

    Nova História Militar de Portugal..., pp. 284-285.66 MORENO, A Batalha de Alfarrobeira: antecedentes e significado histórico, vol. 2, p. 877.67 Carta régia de 20 de Julho de 1449. ANTT, Chancelaria de D. Afonso V, Livro 12, fol. 34.68 Carta régia de 20 de Julho de 1449. ANTT, Leitura Nova, Livro 1 da Beira, fol. 273 v.

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, pp. 25-4738

    António MArtins CostA

    reais pagos pela alfândega de Lisboa ou em qualquer outro sítio69; e, em 1453, é-lhe confirmada uma outra no valor de 60 000 reais, obtida do assentamento do infante D. Henrique por uma dívida que este havia contraído há 13 anos70. Sem surpresas, o Meneses confirma assim por estes anos a faceta de nobre guerreiro ambicioso, de que as queixas de procuradores beirões sobre diversos abusos da sua autoridade senho-rial vinham já dando indícios em Cortes como as de Lisboa (1439)71, de Torres Vedras (1441)72 ou de Évora (1447)73.

    Casado em segundas núpcias, desde 1442, com D. Isabel de Castro74, filha de D. Fernando de Castro, governador da casa do infante D. Hen-rique (provavelmente um dos seus “protectores” no seio da família real), D. Duarte é uma das figuras centrais da Corte na entrada para a década de 1450. De facto, é ali que, na qualidade de alferes e com uma evidente proximidade ao rei, o encontramos (em destaque) em ceri-mónias como sejam: o baptizado do príncipe D. João, que tem lugar na Sé de Lisboa a 28 de Maio de 1455, em que transporta simbolicamente o gomil e o bacio75; ou mesmo no auto de juramento do herdeiro de D. Afonso V que ocorre na mesma cidade a 25 de Junho daquele ano76.

    3. Na capitania de Alcácer-Ceguer: a consagração do fronteiro (1458-1464)

    Mas enquanto D. Duarte de Meneses consolida influência e a ri-queza à sombra da paz, sopram já ventos de guerra. A 29 de Maio de 1453 o sultão otomano Maomé II toma Constantinopla e põe fim

    69 Carta régia de 18 de Dezembro de 1450. ANTT, Chancelaria de D. Afonso V, Livro 11, fol. 38v.

    70 Carta régia de 17 de Maio de 1453. ANTT, Chancelaria de D. Afonso V, Livro 10, fol. 7v.71 Trata-se de queixas do concelho de Ribacoa contra os abusos praticados pelos seus alcai-

    des nas vilas e aldeias da região. ANTT, Chancelaria de D. Afonso V, Livro 24, fol. 12v.72 Neste caso, estão em causa protestos de procuradores da Guarda e de Viseu, respecti-

    vamente, por D. Duarte de Meneses ter grande número de acostados que se furtavam aos serviços concelhios nas cidades em causa. ANTT, Chancelaria de D. Afonso V, Livro 2, fols. 88v-89; fol. 22v.

    73 São apontadas queixas diversas sobre a o facto deste fidalgo, no seu senhorio da Bei-ra, ocupar indevidamente terras de lavradores que as tinham recebido por herança. ANTT, Leitura Nova, Livro 2 da Beira, fols. 125-125v.

    74 Este casamento é confirmado por carta régia de 28 de Julho de 1442. ANTT, Chancelaria de D. Afonso V, Livro 23, fol. 10v.

    75 ANTT, Gaveta XX, maço 6, nº 15.76 SOUSA, Provas da História Genealógica da Casa Real Portuguesa, tomo 2, 2ª parte, p.

    105.

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, pp. 25-47 39

    D. Duarte De Meneses (1414-1464): o sangue e as arMas no final Da iDaDe MéDia

    ao Império Bizantino. Apesar de ser uma morte anunciada, o fim do território romano do Oriente causa uma grande comoção numa Cris-tandade agora mais exposta ao perigo turco, contra o qual o Papa Ca-listo III, entronizado em 1455, procura responder com a pregação da Cruzada. D. Afonso V, que no ano seguinte profere votos cruzadísticos, investe em preparativos, amealha bulas e desdobra-se em cartas para reis cristãos, que de uma forma geral se mostram quase indiferentes ao projecto77.

    Mas sem apoios de outros príncipes e com novas de que Ceuta se-ria colocada em perigo, o rei português decide, em 1458, canalizar os meios que vinha concentrando para apontar armas ao reino de Fez. Ali poderia conquistar uma nova fortaleza que viesse aliviar a pressão sobre a cidade do Estreito. E apesar da sua inclinação sobre o velho sonho de Tânger, D. Afonso V é aconselhado, por menor exigência de meios, a atacar a vizinha praça de Alcácer-Ceguer, topónimo que em árabe significa castelo pequeno. É assim que, em meados de Outubro, o alferes-mor embarca na armada régia de volta ao norte de África, onde no dia 23 vem a participar no desembarque e no cerco à vila, cujos defensores se rendem na mesma noite perante acção contínua das bombardas78.

    No dia seguinte segue-se a praxe das conquistas ao Islão: os muçul-manos deixam Alcácer-Ceguer com as suas mulheres, filhos e haveres; os cristãos fazem a sua entrada solene na vila; a mesquita é convertida em igreja e é celebrada uma missa de acção de graças pela vitória79. Falta indicar quem mande. Diz-nos Rui de Pina que então o rei “de muytos e muy principais homens foy requerido sobre a capitania da vila” – a governança de uma praça norte-africana é apetecível para a nobre-za –, mas a nomeação imediata (e aparentemente única) de D. Duarte de Meneses dá a ideia de já vir decidida na sua cabeça – senão mesmo prometida ao próprio, como se afirma na Crónica de D. Afonso V80.

    77 GOMES, D. Afonso V, o Africano, pp. 177-179.78 Luís Miguel DUARTE, “A conquista de Alcácer Ceguer em 1458”, en AAVV, Nova Histó-

    ria Militar de Portugal, pp. 424-426.79 PINA, “Crónica do Senhor Rey D. Affonso V”, Crónicas de Rui de Pina..., cap. CXXXVIII,

    p. 778.80 Ibidem, cap. CXXXVIII, p. 778.

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, pp. 25-4740

    António MArtins CostA

    Figura 3.

    Ruínas da couraça de Alcácer Ceguer

    Fonte: Fotografia de António Martins Costa (2015)

    A escolha do rei nada tem de surpreendente. Afinal, trata-se de um homem da sua confiança, mas também de um militar experiente na-quele contexto, conhecedor do clima, da geografia e, acima de tudo, das manhas da guerra dos muçulmanos. E é esse saber que logo o Meneses, à frente de uma guarnição que não deve atingir os 1 000 homens, se vê obrigado a pôr em prática ao sofrer dois cercos no espaço de dez meses, o intervalo de tempo em que assistimos a algumas das acções mais reve-ladoras do comandante81.

    Logo que toma posse, D. Duarte põe em marcha um plano de reforço da arquitectura militar da praça ao mandar construir uma cava, ao re-forçar as muralhas (onde desde logo organiza cuidadas rondas e vigias) e instalar artilharia para, meses depois, superintender a construção de uma couraça que permite receber reforços e vitualhas do lado do mar. Já com o inimigo diante dos muros de Alcácer, vemo-lo organizar na barbacã besteiros e espingardeiros (que vão despontando timidamente ao lado dos anteriores); conduzir surtidas de homens de armas sobre

    81 Luís Miguel DUARTE, “A conquista de Alcácer Ceguer em 1458”, en AAVV, Nova Histó-ria Militar de Portugal..., p. 426.

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, pp. 25-47 41

    D. Duarte De Meneses (1414-1464): o sangue e as arMas no final Da iDaDe MéDia

    as estâncias onde os muçulmanos assestam os seus trons; racionar cri-teriosamente os alimentos da guarnição e das montadas (cujo abate ja-mais permite, mesmo nas circunstâncias logísticas mais adversas para os seus combatentes); e exibir bem à vista dos seus inimigos, certo do impacto psicológico que lhes causava, os cavalos bem tratados que tinha na praça ou mesmo o desembarque da sua mulher e dos seus filhos atra-vés da couraça entretanto erigida82.

    Os feitos do Meneses não passam despercebidos a D. Afonso V, que em Abril de 1460, na companhia de toda a Corte, o recebe como um herói83. É a antecâmara da sua consagração, a qual vem a ter lugar a 6 de Julho do mesmo ano numa cerimónia solene em Santarém. Então, à semelhança do primeiro capitão de Ceuta, seu pai, D. Duarte é feito con-de, desta feita da terra – nada despicienda – de Viana, que recebe com senhorio, jurisdição e alcaidaria da vila, além de direitos de padroado e de dízima do pescado84.

    No auge do seu percurso, o experiente fronteiro volta a Marrocos. Ali conduz uma estratégia arrojada de almogavarias a partir de Alcácer-Ce-guer, cuja carta de capitão, a par dos poderes e jurisdição cível e crime (alta e baixa) e do soldo e mantimento, lhe garante o lucrativo quinto das cavalgadas e presas do mar e da terra85, que por sua vez partilha com os seus companheiros de armas para os recompensar. Se exceptuarmos o assalto que dirige a Gibraltar em 1462, o Meneses comanda sobretu-do expedições terrestres que atacam, roubam e incendeiam povoações num grande raio à volta de Alcácer-Ceguer, desde as povoações nas cer-canias de Tânger às terras de Guadarez, cujos direitos de conquista e tri-butação são disputados com o capitão de Ceuta, o seu sobrinho D. Pedro de Meneses (filho de sua irmã D. Beatriz de Meneses e de D. Fernando de Noronha), ao ponto de obrigar à intervenção do rei86. Nessas cavalga-das do início da década de 1460 o capitão de Alcácer Ceguer conta não só com a sua experimentada guarnição. Por vezes, acorrem de Portugal alguns nobres que vão tirocinar consigo, como D. Fernando, marquês

    82 PINA, “Crónica do Senhor Rey D. Affonso V”, Crónicas de Rui de Pina..., cap. CXXXIX-CX-LII, pp. 778-789; Gomes Eanes de ZURARA, Crónica do Conde D. Duarte..., cap. XXXVI- LRV, pp. 121-233.

    83 PINA, “Crónica do Senhor Rey D. Affonso V”, Crónicas de Rui de Pina..., cap. CXLIII, p. 790.84 ZURARA, Crónica do Conde D. Duarte..., pp. 358-361.85 Monumenta Henricina..., 1972, vol. 13, doc. 108, pp. 176-178.86 Descobrimentos portugueses: documentos para a sua história, vol. 3, doc. 27, pp. 38-39.

  • e-Stratégica, 2, 2018 • ISSN 2530-9951, pp. 25-4742

    António MArtins CostA

    de Vila Viçosa87, ou mesmo alguns cavaleiros estrangeiros, como o dina-marquês Loland, que D. Afonso V tanto vem a recomendar ao seu rei, Cristiano I88.

    Na viragem para 1464 volta a Marrocos D. Afonso V, com quem D. Duarte, em Janeiro, se reúne em Ceuta para despacho. Porém, frustra-do pelo insucesso do recente escalamento de Tânger e contagiado pelo sentimento dos cavaleiros que anseiam por voltar ao reino com uma “coroa de louros”89, o rei arrasta consigo o experiente Meneses, que se-gue contrariado e privado dos seus homens para uma cavalgada na Ser-ra de Benacofu, onde segundo Rui de Pina vive a “mais guerreira jente d’Africa”90. Internado num território que não domina, e após despedir imprudentemente peonagem, besteiros e espingardeiros, o soberano de-pressa se vê atacado de surpresa por uma força de cavaleiros mouros. Encarrega então D. Duarte de cobrir a sua retirada, a qual, na descrição detalhada de Gomes Eanes de Zurara, se converte numa acção modelar de heroísmo em que, após a queda de um segundo cavalo, o conde de Viana, já ferido, dá a vida pelo rei91.

    A morte deste ilustre comandante, prestes a completar 50 anos, é amplamente sentida, a começar pelo rei, que logo protege a sua des-cendência, como os filhos D. Henrique (sucessor no título e na capita-nia da praça) e D. Garcia (futuro bispo-soldado de Évora)92. Mas rápida é também a exaltação da memória do nobre guerreiro quatrocentista. Para além da cronística que a Coroa se encarrega de promover, po-demos ainda hoje contemplar o túmulo que a sua viúva,