173
GISELLE DE AMARO E FRANÇA O PODER JUDICIÁRIO E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PREVIDENCIÁRIAS Universidade de São Paulo Faculdade de Direito São Paulo - 2010

Dissertacao o Poder Judiciario e as Politicas Publicas Prev (1)

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Trata sobre o judiciários e as políticas públicas

Citation preview

  • GISELLE DE AMARO E FRANA

    O PODER JUDICIRIO E AS POLTICAS PBLICAS PREVIDENCIRIAS

    Universidade de So Paulo Faculdade de Direito

    So Paulo - 2010

  • 2

    GISELLE DE AMARO E FRANA

    O PODER JUDICIRIO E AS POLTICAS PBLICAS PREVIDENCIRIAS

    Dissertao apresentada ao Departamento de Direito do Trabalho e Seguridade Social da Universidade de So Paulo como exigncia parcial para

    obteno do grau de mestre em Direito do Trabalho e Seguridade Social, sob a orientao do Professor Associado Marcus Orione Gonalves Correia.

    Universidade de So Paulo Faculdade de Direito

    So Paulo 2010

  • 3

    GISELLE DE AMARO E FRANA

    O PODER JUDICIRIO E AS POLTICAS PBLICAS PREVIDENCIRIAS

    Universidade de So Paulo Faculdade de Direito

    So Paulo - 2010

    BANCA EXAMINADORA

    __________________________________________

    __________________________________________

    __________________________________________

    __________________________________________

  • 4

    DEDICATRIA memria da minha irm, Karin Frana, anjo da guarda que sempre me ilumina,

    aos meus pais, Shirley e Waldris, pela fora e compreenso nos momentos difceis e pelo exemplo de superao nos embates da vida,

    e aos meus sobrinhos Gabriela e Rafael, pela alegria de viver,

    dedico este trabalho.

  • 5

    AGRADECIMENTOS

    Ao Professor Marcus Orione Gonalves Correia, agradeo a confiana, a orientao firme e constante e, sobretudo, por novamente despertar em mim, pelo seu exemplo como Professor e Juiz, a vontade incessante de estudar.

    Aos Professores Maria Paula Dallari Bucci e Paulo Eduardo Vieira de Oliveira, agradeo a gentileza da participao na banca de qualificao e as valiosas contribuies ao aprimoramento do trabalho.

    minha prima Kelen Luza Giordano Amaro e ao amigo Jos Eduardo de Almeida Leonel Ferreira, por toda fora e ajuda, agradeo de corao.

    Aos colegas do programa de ps-graduao da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo Fernando Marques de Campos, Flvio Roberto Batista, Jos Antonio Savaris, Lucyla Tellez Merino, Marco Aurlio Serau Jnior, Renato Negretti Cruz, Ricardo Pires Calciolari e Thiago Barison de Oliveira, agradeo pela convivncia e pelo estudo conjunto durante todo este perodo.

    Aos colegas do Tribunal Regional Federal da 3 Regio, desembargadores, juzes e servidores, agradeo por toda a ajuda e, especialmente, aos Desembargadores Federais Srgio Nascimento, Carlos Andr de Castro Guerra e Jediael Galvo Miranda (in memoriam), pela oportunidade de vivenciar o Direito Previdencirio e pelas lies de vida contidas nos seus julgados.

  • 6

    RESUMO

    O estudo das polticas pblicas recentemente tem despertado a ateno da doutrina no mbito do Direito. O presente trabalho busca apresentar um quadro geral das polticas pblicas previdencirias, demonstrando a interseco existente entre o Direito e a Cincia Poltica, as contribuies de cada disciplina e as tnues fronteiras que as separam.

    A esfera do Direito, sob a perspectiva do Poder Judicirio, estabelece os parmetros e limites do controle dos atos editados pelos outros Poderes, luz dos instrumentos jurdicos previstos no ordenamento, tendo como objetivo a efetivao do direito fundamental previdncia social.

    A anlise de casos concretos, colhidos da jurisprudncia ptria, revela alguma oscilao do Poder Judicirio na defesa do direito fundamental em questo, especialmente em decorrncia de argumentos de natureza econmica, introduzidos no texto constitucional por meio das reformas de 1998 e 2003.

    Palavras-chave: Polticas pblicas; Direito Previdencirio; Controle Judicial.

  • 7

    ABSTRACT

    The analysis of public policies has recently raised the attention in the scope of law. This study has the purpose of presenting a comprehensive view of the public policies on Social Security, by demonstrating the intersection between Law and Political Science, the contributions of each area of study as well as the tenuous frontiers separating them.

    The scope of law, under the perspective of the Judiciary, establishes the patterns and the limits to regulate the measures taken by Executive and Legislative Power, having as reference the juridical instruments stated by the legal system, whose purpose is to safeguard the right to social security.

    The analysis of concrete cases, gathered from the Brazilian case law, reveals a lack of coherence and consistency of the Judiciary to uphold the right to social security. This incoherence and inconsistency are mainly due to economic arguments, which were introduced in the Constitution by the time of the reforms carried out in 1998 and 2003.

    Keywords: Public Policies; Social Security Act; Judicial Review.

  • 8

    SUMRIO

    INTRODUO, 11

    1 O DIREITO FUNDAMENTAL PREVIDNCIA SOCIAL E AS POLTICAS PBLICAS PREVIDENCIRIAS, 15

    1.1. Polticas pblicas: uma abordagem interdisciplinar, 15 1.2. Polticas de Estado e Polticas de Governo, 17 1.3. A questo democrtica, 22 1.4. Direitos fundamentais sociais, 28 1.4.1. A justiciabilidade dos direitos fundamentais sociais, 30 1.4.2. Restries, 33 1.5. O direito fundamental previdncia social e as polticas pblicas previdencirias, 35 1.5.1. Uma breve anlise histrica, 36 1.5.2. Estado de Bem-Estar Social no Brasil, 40 1.5.3. A influncia dos postulados neoliberais, 45 1.5.3.1. Emenda Constitucional n 20/1998, 50 1.5.3.2. Emenda Constitucional n 41/2003, 55 1.5.3.3. Projeto de Emenda Constitucional n 341/2009, 56 1.5.3.4. Dois outros significativos exemplos da influncia neoliberal na Constituio Federal: o equilbrio financeiro e atuarial e a desvinculao das receitas da Unio, 58 1.5.3.4.1. Equilbrio financeiro e atuarial, 58 1.5.3.4.2. Desvinculao das Receitas da Unio, 62 1.5.4. Limites possveis das reformas previdencirias, 64 1.6. Polticas pblicas previdencirias, 67 1.6.1. Poltica de Estado, 67 1.6.2. Polticas de Governo, 68

    2 O PODER JUDICIRIO, 70

    2.1. O Judicirio como Poder de Estado, 70

  • 9

    2.2. O Judicirio como ator poltico, 72 2.3. A legitimidade do Poder Judicirio e a questo democrtica, 76 2.4. Ativismo judicial, 79 2.5. Controle judicial de polticas pblicas, 82 2.5.1. Aspectos gerais do controle de constitucionalidade no direito brasileiro, 82 2.5.2. Objeto, 83 2.5.3. Parmetros do controle judicial, 85 2.5.3.1. Princpios e regras, 85 2.5.3.2. Alguns princpios de conotao especial em matria previdenciria, 88 2.5.3.2.1. Princpio da solidariedade, 89 2.5.3.2.2. Princpio da unidade da Constituio, 90 2.5.3.2.3. Princpio da vedao do retrocesso, 91 2.5.3.2.4. Princpio da razoabilidade, 92 2.5.3.2.5. Proporcionalidade, 94 2.5.3.2.6. Eficincia, 96 2.5.4. Limites, 97 2.6. Reserva do possvel, 103 2.7. Polticas pblicas e aes coletivas, 110

    3 O CONTROLE JUDICIAL DAS POLTICAS PBLICAS PREVIDENCIRIAS, 113

    3.1. Anlise de casos, 113 3.1.1. Valor do benefcio: clculo da renda mensal inicial, 113 3.1.1.1. Fator previdencirio, 116 3.1.2. Beneficirios: companheiros homossexuais, 121 3.1.3. Beneficirios: menor sob guarda, 125 3.1.4. Benefcio de auxlio-doena: Programa de Cobertura Previdenciria Estimada (COPES) Alta Programada, 130 3.1.5. Custeio Regime Geral de Previdncia Social: obrigatoriedade de recolhimento de contribuies previdencirias pelo segurado aposentado que volta a trabalhar, 134 3.1.6. Custeio Regime Prprio de Previdncia Social: contribuio previdenciria dos servidores pblicos inativos, 137

  • 10

    3.1.7. Omisso legislativa Regime Prprio de Previdncia Social: servio pblico exercido em condies penosas, insalubres ou perigosas, 143 3.2. O Poder Judicirio e as aes coletivas em questes previdencirias, 146 3.3. Algumas concluses, 150

    CONCLUSO, 154

    BIBLIOGRAFIA, 159

  • 11

    INTRODUO

    A Constituio Federal de 1988 consolidou um importante avano no mbito dos direitos sociais. Pela primeira vez na histria constitucional brasileira, eles foram expressamente inseridos na classe dos direitos fundamentais, passando a usufruir do mesmo status conferido aos direitos individuais, quer em relao sua salvaguarda por clusula ptrea, quer quanto ao estabelecimento de garantias e instrumentos necessrios a concretiz-los.

    Sade, Previdncia Social e Assistncia Social tornaram-se os pilares da Seguridade Social, regida por princpios especficos e realizada com um oramento prprio.

    O sistema de proteo social desenhado pelo legislador constituinte de 1988 caracterstico do Estado de Bem-Estar Social, fundado, essencialmente, na forte e prioritria atuao estatal na busca do bem-estar da coletividade, em seu grau mximo.

    Tal avano, bom dizer, ocorreu tardiamente no Brasil j que a partir da dcada de 70 vrios pases (como a Inglaterra, os Estados Unidos, o Chile, etc.) trilhavam o caminho oposto, mediante a reduo da atuao estatal em algumas de suas tarefas tpicas, sob o embalo da onda neoliberal.

    A conquista firmada na Constituio Federal, no entanto, nem sequer chegou a ser concretizada em toda a sua extenso. Passada uma dcada da sua promulgao, o texto originrio sofreu vrias alteraes que refletem a influncia das ideias neoliberais, inclusive no mbito da Previdncia Social.

    Assistimos a uma mudana no projeto original de Seguridade Social gravado em sede constitucional e regulamentado pela legislao infraconstitucional. Em outros termos: mudaram as diretrizes e mudaram as aes voltadas a concretiz-las.

    Falamos aqui de poltica de Estado e polticas de Governo, espcies do gnero polticas pblicas, como ser desenvolvido ao longo do Captulo 1.

    Para os fins deste trabalho, em que se pretende fixar as linhas gerais da evoluo do modelo de Previdncia Social no Brasil, o termo polticas pblicas ser abordado em sua dupla conotao.

    Embora parea redundante, fundamental fixar a premissa de que as polticas pblicas se formam no mbito da Poltica, mediante a interao de inmeros fatores de

  • 12

    ordem social, poltica, econmica, financeira, internacional, entre outros. Trata-se, por tal razo, de uma questo interdisciplinar.

    Uma vez elaboradas no universo prprio, elas ingressam no ordenamento jurdico, sendo por ele conformadas, de acordo com os seus parmetros. Algumas delas demandam a alterao do texto constitucional por se mostrarem incompatveis com as deliberaes polticas anteriores; outras so introduzidas na ordem jurdica por meio da legislao infraconstitucional, vez que em suposta consonncia com o regramento constitucional j existente.

    A alterao das normas constitucionais permitida, desde que atendidas duas condies: (i) preservao das clusulas ptreas, inscritas no 4 do artigo 60; (ii) observncia de procedimento legislativo especial.

    Os direitos fundamentais, individuais e sociais, esto acobertados por clusulas ptreas, pelo que nenhuma reforma constitucional tem o condo de reduzi-los ou suprimi-los. Tarefa necessria, ento, buscar o contedo do direito fundamental em toda a sua extenso, pressuposto essencial para tornar possvel a sua preservao.

    Estabelecido o que o direito fundamental previdncia social e, em consequncia, o que est a salvo de qualquer alterao reducionista posterior, o item final do Captulo 1 se destina a analisar se as mudanas feitas na Constituio Federal, sobretudo a partir de 1998, ferem o contedo do direito social em questo.

    Desta forma, tanto a poltica de Estado (prevista no texto originrio e posteriormente modificada) como as polticas de Governo (definidas como arranjos institucionais complexos, expressos em estratgias ou programas de ao governamental, que resultam de processos juridicamente regulados, visando adequar meios e fins1) devem estar em conformidade com o direito fundamental que pretendem realizar, cada qual na sua prpria dimenso.

    A anlise da pertinncia e da compatibilidade entre a poltica de Estado originria e as alteraes introduzidas posteriormente, bem como entre as polticas de Governo e a poltica de Estado, sempre tendo como referncia o direito fundamental, atribuio tpica do Poder Judicirio, rgo estatal que deve dizer o direito, por desejo expresso do prprio legislador constituinte. Este o objeto do Captulo 2.

    1 Confira-se o artigo de BUCCI, Maria Paula Dallari. Notas para uma metodologia jurdica de anlise de

    polticas pblicas. In FORTINI, Cristiana; ESTEVES, Jlio Csar dos Santos; DIAS, Maria Tereza Fonseca (orgs.). Polticas pblicas: possibilidades e limites. Belo Horizonte: Editora Frum, 2008. p. 251.

  • 13

    De se ressaltar que tambm nesta seara foi grande o passo dado em 1988, pois o Judicirio foi dotado de poderes e atribuies suficientes a caracteriz-lo como verdadeiro ator poltico, participando das decises polticas fundamentais.

    No estamos com isso querendo dizer que o Poder Judicirio o rgo responsvel pela tomada das decises polticas, mesmo porque ele no tem legitimao constitucional para tanto, mas sim que a ele compete dizer se a opo poltica est ou no em consonncia com a ordem jurdica.

    certo, contudo, que no exerccio de suas funes o Judicirio acaba por participar do jogo poltico na medida em que a preservao da ordem jurdica, especialmente do contedo das clusulas ptreas, pode barrar a concretizao de novas polticas pblicas, em razo de sua incompatibilidade com o sistema jurdico.

    Buscaremos elucidar as discusses mais relevantes acerca da legitimidade da atuao judicial e dos limites impostos ao Poder Judicirio no controle dos atos praticados pelos demais Poderes, tambm no exerccio de suas funes tpicas, procurando estabelecer as tnues fronteiras entre um e outro, de forma que preserve a independncia e a harmonia entre eles, como determina o artigo 2 da Constituio Federal. Para tanto, sero abordados alguns dos princpios que consideramos essenciais anlise judicial, na medida em que possibilitam uma interpretao eminentemente social, a nica a realizar, em toda a sua extenso, os objetivos do Estado democrtico brasileiro, nos termos dos artigos 1 e 3 da Constituio Federal.

    Ainda no Captulo 2, ser destacada a importncia das aes coletivas como instrumento processual adequado para veicular os conflitos envolvendo o direito fundamental previdncia social e as polticas pblicas. Duas so, ao menos, as vantagens apresentadas: (i) possibilitar o acesso justia aos desprovidos de recursos (que representam a grande parte dos beneficirios segurados e dependentes da Previdncia), legitimando rgos dotados de estrutura e capacidade suficientes a ajuizar tais demandas, tendo por objeto a defesa de interesses difusos, coletivos e individuais homogneos; (ii) racionalizar a prestao jurisdicional, ensejando que conflitos envolvendo questes da mesma natureza sejam resolvidos mediante a mais ampla dilao probatria e de forma equitativa para os que se encontram na mesma situao, trazendo a necessria segurana jurdica e, qui, alguma pacificao social.

    Definidos os contornos do direito fundamental previdncia social, as polticas pblicas previdencirias e os parmetros de atuao do Poder Judicirio no seu controle, sero abordados no Captulo 3 alguns casos concretos levantados na jurisprudncia

  • 14

    brasileira, aptos a demonstrar a interao entre Direitos Fundamentais Polticas Pblicas Controle Judicial.

    O trabalho proposto se mostra rduo pelo menos por duas razes. Em primeiro lugar, bom ser dito que apenas recentemente o estudo das polticas

    pblicas chamou a ateno dos doutrinadores, sendo poucas as obras editadas sobre o assunto, especialmente na rea do Direito. Talvez uma das respostas possveis para esta constatao j tenha sido mencionada: como se trata de um tema interdisciplinar, reconhecer as fronteiras entre o Direito e os demais ramos envolvidos nem sempre fcil. Para alm disso, o Direito se inter-relaciona com a questo das polticas pblicas em alguns pontos, mas no consegue abarc-las em sua inteireza. A ns, operadores do Direito, cumpre identificar referido campo de interseco e utilizar as ferramentas existentes para a preservao da ordem jurdica, respeitando, contudo, as deliberaes tomadas nas outras esferas.

    Em segundo lugar, o objeto de nosso estudo polticas pblicas previdencirias no nos ajuda muito em termos de organicidade e sistematizao. De um lado, assistimos a uma alterao da poltica previdenciria de Estado, antes mesmo de integralmente regulamentada e efetivada; de outro lado, a legislao infraconstitucional ora se dedica a regulamentar as diretrizes constitucionais em sentido absolutamente contrrio ou de forma incompleta, ora nem sequer o faz; em alguns casos, certo, atende aos parmetros preestabelecidos. Alm do que, tanto uma quanto a outra devem ser cotejadas com o direito fundamental previdncia social, cujo contedo no est definido em um nico dispositivo, mas deve ser apreendido entre os vrios que cuidam da matria, cabendo ao intrprete, antes de tudo, definir qual a sua real extenso.

    Cientes das dificuldades envolvidas no estudo, passamos ento a discutir algumas questes que consideramos importantes ao estudo do controle judicial das polticas pblicas previdencirias.

  • 15

    1

    O DIREITO FUNDAMENTAL PREVIDNCIA SOCIAL E AS POLTICAS PBLICAS PREVIDENCIRIAS

    1.1. Polticas pblicas: uma abordagem interdisciplinar

    A expresso polticas pblicas um termo polissmico que, por si s, j denota seu vasto campo de abrangncia. Envolve questes polticas, questes de interesse pblico, gesto da coisa pblica, em suma, abarca as principais discusses acerca das opes polticas realizadas para a satisfao dos interesses gerais da coletividade, mediante utilizao dos recursos pblicos.

    Por a j se percebe que a sua anlise exige sejam considerados institutos pertencentes a ramos diversos da cincia e sejam ultrapassados os limites do conhecimento tcnico e especfico, voltando-se os olhos para o todo. por isso que se trata, essencialmente, de um estudo interdisciplinar.2

    No possvel entender como se formam, como se executam e como se controlam as polticas pblicas sem saber, entre outros: (i) qual o grau de democracia da sociedade em questo (Cincia Poltica e Sociologia); (ii) quais so os Poderes de Estado e como so divididas suas competncias (Cincia Poltica e Direito); (iii) quais so os valores fundamentais eleitos pela coletividade a nortear suas aes (Filosofia e Direito); (iv) como se ordenam os comandos constitucionais, os atos legislativos infraconstitucionais e as eventuais limitaes consecuo dos direitos fundamentais (Cincia Poltica, Direito e Economia); (v) por que razes determinados temas so objetos de polticas pblicas e outros no, onde esto e quais so os limites de discricionariedade do administrador pblico (Cincia Poltica, Direito e Economia); (vi) qual o mbito de interveno do Poder Judicirio nesta seara, considerando a independncia entre os Poderes (Cincia Poltica e Direito).

    2 No h um conceito nico para o termo interdisciplinaridade, mas todas as definies apresentadas giram

    em torno do mesmo princpio, qual seja, a intensidade das trocas entre os especialistas e a integrao das disciplinas num mesmo projeto de pesquisa. A tendncia mais acentuada a utilizao de quatro conceitos (pluri, multi, inter e transdisciplinaridade), graus diversos de uma mesma escala, a depender da esfera de coordenao e cooperao entre as disciplinas (FAZENDA, Ivani. Interdisciplinaridade: um projeto em parceria. So Paulo: Edies Loyola, 2002. p. 31).

  • 16

    Bem adverte Maria Paula Dallari Bucci que

    definir as polticas pblicas como campo de estudo jurdico um movimento que faz parte de uma abertura do direito para a interdisciplinaridade. Alguns institutos e categorias jurdicas tradicionais, hoje despidos de seu sentido legitimador original, buscam novo sentido ou nova fora restabelecendo contato com outras reas do conhecimento, das quais vinha se apartando desde a caminhada positivista que se iniciou no sculo XIX. Ter-se firmado como campo autnomo, dotado de objetividade e cientificidade desafios do positivismo jurdico , um objetivo at certo ponto realizado pelo Direito, o que permite a seus pesquisadores voltar os olhos s demandas sociais que fundamentam a construo das formas jurdicas.3/4

    Esta abertura para outros campos do conhecimento no significa, para qualquer deles, a perda de sua identidade original.

    Pelo contrrio.

    essencial que cada ramo do saber no deixe de lado suas caractersticas bsicas, que na troca de conhecimentos com outras disciplinas saiba doar e receber sem se desfigurar. justamente a que reside a riqueza do estudo interdisciplinar.

    A interdisciplinaridade exige uma nova postura do observador, de forma que reconhea sua limitao de abarcar, sozinho, todas as questes envolvidas. Significa admitir, em suma, que o seu olhar apenas um dos olhares possveis.

    Gilberto Bercovici, com amparo em Lourdes Sola, demonstra de maneira bastante feliz os riscos de uma anlise compartimentada. Afirma que

    um equvoco comum nas anlises polticas a incorporao do erro cometido pelos economistas, que atribuem o fracasso das polticas econmicas aos equvocos de teoria econmica em sua elaborao. Falta, em sua opinio, a incluso de outra causalidade: a poltica institucional (e jurdica, incluiramos). Os resultados das polticas econmicas no dependem apenas de sua coerncia econmica, mas tambm de sua viabilidade poltica e das opes institucionais.

    3 BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de poltica pblica em direito. In: BUCCI, Maria Paula Dallari

    (org.). Polticas Pblicas: reflexes sobre o conceito jurdico. So Paulo: Saraiva, 2006. p. 2. 4 Para Hilton Japiassu, o positivismo foi o grande responsvel por essa situao de fragmentao das

    cincias do homem, na medida em que seus mtodos apresentam srias lacunas. Com efeito, dado que essa filosofia das cincias limita enormemente o campo das disciplinas e que reduz seu domnio nica e exclusivamente aos fenmenos observveis, portanto, descrio e ao processo de relacionar fatos, torna-se patente que no consegue outra coisa seno descobrir um conjunto de leis funcionais. O resultado que ela fragmenta o real num determinado nmero de territrios separados, numa srie de estgios superpostos, s podendo corresponder a domnios por demais delimitados das diversas disciplinas. Uma consequncia dessa atitude intelectual que fica excluda, de antemo, toda e qualquer metodologia interdisciplinar, cujo princpio mesmo o contraditrio com o das fronteiras consideradas como definitivas. O fenmeno humano no mais conhecido na plenitude de sua significao. Uma disciplina qualquer, cujo estatuto permanece fixo uma vez por todas, mesmo que pretenda interessar-se pelo homem, jamais poder encontr-lo, sempre fornecendo dele um conhecimento parcial e truncado, j que aborda os fatos humanos sob o ngulo de um determinismo particular, extremamente restritivo (Interdisciplinaridade e Patologia do Saber. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1976. p. 61-62).

  • 17

    Isto ainda mais facilmente perceptvel no caso das polticas de desenvolvimento de longo prazo cujo objetivo seja a melhoria das condies sociais da populao. E a anlise do caso brasileiro revela que o processo de desenvolvimento funda-se em decises polticas.5

    Portanto, antes de adentrar no campo jurdico, objeto deste trabalho, necessrio buscar na esfera da Cincia Poltica os institutos que integram o conceito de polticas pblicas.

    1.2. Polticas de Estado e Polticas de Governo

    A expresso polticas pblicas comporta duas dimenses. A primeira delas trata das opes polticas relacionadas estrutura do Estado,

    dispondo sobre as formas de organizao e funcionamento do aparelho estatal, os valores fundamentais positivados e as diretrizes que devem nortear a efetivao dos objetivos lanados. So as denominadas polticas de Estado, opes polticas que indicam e orientam o modelo de ao estatal a longo prazo, independentemente do programa de governo x ou y.

    Embora geralmente as polticas de Estado se encontrem inscritas no texto constitucional, no correto afirmar que se trata de polticas de Estado apenas e to somente porque ali esto. Existem inmeros dispositivos constitucionais que no guardam qualquer relao com tais diretrizes de atuao estatal, no traduzindo assim nenhuma opo poltica relativa a um valor fundamental ou estrutura do Estado. De outro lado, possvel que algumas polticas de Estado delineadas na Constituio Federal sejam regulamentadas por lei (ordinria e complementar), que desta forma tambm se caracteriza como poltica de Estado, em conjunto com a diretriz constitucional.

    De acordo com Fernando Aith,

    quando a poltica pblica tiver como objetivos a consolidao institucional da organizao poltica do Estado, a consolidao do Estado Democrtico de Direito e a garantia da soberania nacional e da ordem pblica, ela poder ser considerada poltica de Estado. Dentro desse quadro, pode-se afirmar, ainda, que uma poltica de Estado quando voltada a estruturar o Estado para que este

    5 BERCOVICI, Gilberto. Planejamento e polticas pblicas: por uma nova compreenso do papel do Estado.

    In BUCCI, Maria Paula Dallari (org.). Polticas Pblicas: Reflexes sobre o Conceito Jurdico. So Paulo: Saraiva, 2006. p. 144.

  • 18

    tenha as condies mnimas para a execuo de polticas de promoo e proteo dos direitos humanos.6

    A doutrina tambm utiliza o termo Poltica constitucional (Polity) para designar a poltica de Estado.7

    J a segunda dimenso contempla as opes polticas mais concretas e especficas, voltadas a resolver questes definidas, mediante a utilizao de meios previamente estabelecidos e em espao de tempo delimitado. Trata-se do sentido estrito da expresso polticas pblicas, tambm denominadas polticas de Governo ou policies.

    Ainda de acordo com Fernando Aith,

    as polticas de governo podem ser polticas pontuais, voltadas promoo dos direitos humanos, dotadas de uma maior flexibilizao e de maior especificidade em seus objetivos. Os objetivos das polticas de governo so o de aumentar a eficcia e a efetividade das aes de promoo e proteo dos direitos humanos, atravs da estrutura estatal j existente e utilizando-se dos mecanismos democrticos j estabelecidos.

    Em suma:

    a poltica de Estado voltada a organiz-lo, de modo que ele tenha as bases estruturais mnimas para a execuo de polticas de promoo e proteo dos direitos humanos. J as polticas de governo, utilizando-se dessas bases estruturais j consolidadas, so implementadas para promover aes pontuais de proteo e promoo aos direitos humanos especficos expressos em nossa Carta.8/9

    No sentido estrito, polticas pblicas so um conjunto de processos, incluindo, ao menos: a definio da agenda; a elaborao de alternativas que sero objeto de escolha;

    6 AITH, Fernando. Polticas pblicas de Estado e de governo: instrumentos de consolidao do Estado de

    Direito e de promoo dos direitos humanos. In BUCCI, Maria Paula Dallari (org.). Polticas Pblicas: Reflexes sobre o Conceito Jurdico. So Paulo: Saraiva, 2006. p. 235. 7 A poltica constitucional define a estruturao bsica do Estado, a sua conformao normativa

    fundamental, que expressa a correlao de foras sociais e polticas vigentes, assim como os valores e crenas fundamentais e politicamente relevantes de uma dada sociedade (COUTO, Cludio Gonalves. Poltica constitucional, poltica competitiva e polticas pblicas. In: BUCCI, Maria Paula Dallari (org.). Polticas Pblicas: reflexes sobre o conceito jurdico. So Paulo: Saraiva, 2006. p. 98). Concordamos parcialmente com a afirmao, visto que nem toda norma inscrita na Constituio est relacionada com as escolhas polticas mencionadas pelo Autor. 8 AITH, Fernando. Polticas pblicas de Estado e de governo: instrumentos de consolidao do Estado de

    Direito e de promoo dos direitos humanos. In BUCCI, Maria Paula Dallari (org.). Op. cit., p. 236. 9 Para o Autor (Op. cit.), as polticas de Estado e de Governo se diferenciam em trs questes: (i) nos

    objetivos perseguidos; (ii) na forma de elaborao, planejamento e execuo (as polticas de Estado so necessariamente elaboradas, planejadas e executadas pelo Estado, no sendo passveis de delegao ou terceirizao salvo de forma subsidiria e subordinada ou de quebra de continuidade, ao passo que as polticas de Governo podem ser delegadas ou terceirizadas, alm de serem interrompidas ou substitudas por outra); (iii) na forma de financiamento (as polticas de Estado so sempre financiadas com recursos pblicos, oriundos da arrecadao tributria, e as polticas de Governo podem contar com recursos privados em sua implementao, desde que sob a fiscalizao do Poder Pblico).

  • 19

    uma escolha confivel, respeitvel e irrefutvel entre as alternativas postas, como no caso

    de um voto legislativo ou de uma deciso presidencial; e a execuo da deciso.10 O carter temporal e especfico das polticas de governo recomenda que elas no

    sejam inscritas no texto constitucional, no mnimo por duas razes: (i) dificultam, e muito, qualquer possibilidade de alterao do plano traado, ainda que comprovadamente insuficiente, pois como toda regra constitucional exige processo legislativo diferenciado de reforma (artigo 60 da Constituio Federal); (ii) embora conceitualmente se tratem de programas voltados a resolver questes especficas, visando o bem-estar da coletividade, acabam por engessar as geraes futuras, causando um verdadeiro dficit de democracia por inibir que a maioria, em dado momento, tome as decises que julgar mais favorveis.

    A Professora Maria Paula Dallari Bucci, uma das precursoras no estudo das polticas pblicas no Brasil, utiliza o termo no sentido restrito acima indicado e as define como arranjos institucionais complexos, expressos em estratgias ou programas de ao governamental, que resultam de processos juridicamente regulados, visando adequar meios e fins. 11

    Merece ser aqui registrada a evoluo do conceito apresentado pela Autora. Inicialmente, foi utilizada uma definio mais restrita, considerando as polticas

    pblicas como programas de ao governamental visando a coordenar os meios disposio do Estado e as atividades privadas, para a realizao de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados12. Neste primeiro conceito no foi abordado o aspecto processual, ou seja, a poltica pblica vista como conjunto ordenado de atos.

    Mais a seguir, no texto O conceito de poltica pblica em direito13, foi introduzida a questo processual, definindo-se poltica pblica como

    o programa de ao governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo oramentrio, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial visando coordenar os meios disposio do Estado e as atividades privadas, para a realizao de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados.

    10 Nas palavras do Autor: Though a drastic oversimplification, public policy making can be considered to a

    set a processes, including at least (1) the setting of the agenda, (2) the specification of alternatives from wich a choice is to be made, (3) an authoritative choice among those specified alternatives, as in a legislative vote or a presidencial decision, and (4) the implementation of the decision (KINGDON, John W. Agendas, alternatives, and public policies. 2. ed. New York: Longman, 1995. p. 2-3). 11

    Confira-se o artigo Notas para uma metodologia jurdica de anlise de polticas pblicas. In FORTINI, Cristiana; ESTEVES, Jlio Csar dos Santos; DIAS, Maria Tereza Fonseca (orgs.). Op. cit., p. 251. 12

    Direito administrativo e polticas pblicas. So Paulo: Saraiva, 2002. p. 241. 13

    In BUCCI, Maria Paula Dallari (org.). Op. cit., p. 39.

  • 20

    Como tipo ideal, a poltica pblica deve visar a realizao de objetivos definidos, expressando a seleo de prioridades, a reserva de meios necessrios sua consecuo e o intervalo de tempo em que se espera o atingimento dos resultados.

    Aps percorrer tal trajetria, conclui a Autora que mais importante do que o conceito em si o estabelecimento de uma metodologia de anlise jurdica, em razo do carter interdisciplinar da poltica pblica, posio com a qual compartilhamos.

    na esfera da Cincia Poltica que se encontram os elementos necessrios para a formulao do conceito em sua inteireza, j que a opo por um ou outro caminho eminentemente poltica e no jurdica.

    Por tal razo, por mais completo que se pretenda o conceito jurdico do termo, dificilmente ter o condo de englobar todas as questes envolvidas.

    Desta forma, ao Direito cabe conformar as deliberaes polticas tomadas em mbito prprio, mediante os contornos jurdicos admitidos. Aos operadores do Direito, por sua vez, compete verificar a consonncia das opes polticas com as normas j existentes, mantendo a integridade da ordem jurdica.14

    Admitida, pois, a insuficincia do Direito em disciplinar todas as fases do processo poltico decisrio, vamos buscar na teoria poltica as principais explicaes invocadas para justificar a tomada de uma deciso ou outra.15

    Na obra Agendas, alternatives, and public policies, John Kingdon apresenta o modelo dos mltiplos fluxos (Multiple Streams Model)16, apontando a existncia de quatro processos na formao das polticas pblicas: (i) o estabelecimento de uma agenda de polticas pblicas (agenda setting); (ii) a considerao das alternativas para a formulao de polticas pblicas (policy stream); (iii) a escolha dominante entre o conjunto de alternativas disponveis; e (iv) a implementao da deciso.17

    14 Esta discusso ser objeto do Captulo 2, cujo foco o controle judicial das polticas pblicas.

    15 Como o objeto deste trabalho no o estudo das polticas pblicas em sua fase de formao, mas sim sob a

    tica do controle judicial, no se debruar sobre a exposio detalhada das principais teorias elaboradas na rea da Cincia Poltica para a explicao do fenmeno, considerando suficiente aquela formulada por John Kingdon, amplamente aceita e utilizada pelos estudiosos da esfera poltica. 16

    O modelo de John Kingdon foi formulado em 2003 para analisar as polticas pblicas nas reas de sade e transporte do governo federal norte-americano e adotado como referncia nos estudos do tema. Ele caracteriza o governo federal norte-americano como uma anarquia organizada, identificando a ocorrncia de trs fluxos decisrios, que seguem seu curso de forma relativamente independente e convergem em momentos crticos, ocasies em que se d a mudana de agenda (CAPELLA, Ana Cludia N. Perspectivas Tericas sobre o Processo de Formulao de Polticas Pblicas. In HOCHMAN, Gilberto; ARRETCHE, Marta; MARQUES, Eduardo (orgs.). Polticas pblicas no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007, p. 89). 17

    CAPELLA, Ana Cludia N. Perspectivas Tericas sobre o Processo de Formulao de Polticas Pblicas. In HOCHMAN, Gilberto; ARRETCHE, Marta; MARQUES, Eduardo (orgs.). Polticas pblicas no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007. p. 88.

  • 21

    O modelo identifica a existncia de trs fluxos decisrios (streams), que seguem seu curso de forma autnoma:

    a) 1 fluxo agenda setting: nesta fase, o modelo analisa por que determinadas questes so reconhecidas como problemas e por que determinados problemas passam a ocupar a agenda governamental. Uma questo (condition) uma situao social percebida, mas que no demanda, necessariamente, uma resposta estatal. No entanto, quando os formuladores de polticas consideram que ela deve ser cuidada, ela se torna um problema (problem). de fundamental importncia, nesta fase, a percepo destes atores que avaliam trs fatores: (i) indicadores; (ii) eventos (focusing events), crises e smbolos; (iii) feedback das aes governamentais.

    b) 2 fluxo policy stream: neste momento, so identificadas as alternativas e solues existentes (policy alternatives), ainda que no relacionadas especificamente a determinados problemas. As alternativas so elaboradas por especialistas (pesquisadores, assessores parlamentares, acadmicos, funcionrios pblicos, analistas pertencentes a grupos de interesses, etc.), interessados naquela rea especfica. Quando alguma soluo reconhecida como vivel, ela difundida e passa a ser encampada pelos diversos atores, ainda que inicialmente com ela no concordassem. O processo lento e depende do poder de persuaso do interlocutor.

    c) 3 fluxo politics stream: a fase da dimenso poltica propriamente dita, com dinmica e regras prprias. Aqui, o processo caracterizado por barganhas e negociaes polticas. Trs elementos so destacados: (i) o clima ou humor nacional national mood (situao na qual diversas pessoas compartilham as mesmas questes durante um determinado perodo de tempo) proporciona que determinadas ideias ganhem fora e sejam colocadas na agenda; (ii) a influncia das foras polticas organizadas, exercida principalmente pelos grupos de presso, permite avaliar se o ambiente propcio ou no s reformas; (iii) as mudanas dentro do prprio governo turnover (mudana de funcionrios em posies estratgicas, mudana de gesto, etc.) podem desencadear alteraes na agenda, quer reforando, quer retirando determinadas questes da pauta.

    Em regra, estes trs fluxos (problemas, solues e dinmica poltica) seguem seus cursos de forma independente. No entanto, em algumas circunstncias raras eles convergem, possibilitando uma oportunidade de mudana na agenda. Segundo Capella, nesse momento, um problema reconhecido, uma soluo est disponvel e as condies polticas tornam o momento propcio para a mudana, permitindo a convergncia entre os

  • 22

    trs fluxos e permitindo que questes ascendam agenda.18 A essas circunstncias Kingdon denomina janelas de oportunidades (policy windows), influenciadas especialmente pelo fluxo de problemas e pelo fluxo poltico. Quando h convergncia entre os trs fluxos, o denominado coupling (juno dos fluxos), que se verifica a mudana de agenda. Como dito nas linhas acima, estes momentos so raros e passageiros e a deciso deve ser tomada a tempo, sob pena de fechar as janelas e ter de aguardar uma nova conjuno.

    1.3. A Questo Democrtica

    Como decises polticas, as polticas pblicas so tanto mais legtimas quanto mais prximas estiverem da vontade da maioria da coletividade a que so dirigidas. Da por que esto estritamente relacionadas com a questo democrtica, sendo de grande importncia a anlise acerca do grau e do tipo de participao popular nas decises polticas.

    Tambm aqui o cerne da discusso objeto da Cincia Poltica, embora devam ser buscadas no Direito as normas estabelecendo as formas e em que ocasies o povo ser chamado a participar da tomada de decises.

    De maneira bastante resumida, democracia designa a forma de governo na qual o poder poltico exercido pelo povo19 ou um processo de convivncia social em que o poder emana do povo, h de ser exercido direta ou indiretamente pelo povo e em proveito do povo.20

    Povo, no sentido jurdico, exprime o conjunto de pessoas vinculadas de forma institucional e estvel a um determinado ordenamento jurdico, ou, segundo Raneletti, o conjunto de indivduos que pertencem ao Estado, isto , o conjunto de cidados.21

    A depender da forma com que o povo exerce o poder poltico, a democracia classificada em direta, indireta (ou representativa) ou semidireta.

    A democracia direta aquela em que o povo exerce, por si, os poderes governamentais, fazendo leis, administrando e julgando, o que uma reminiscncia histrica22.

    18 CAPELLA, Ana Cludia N. Op. cit., p. 95.

    19 BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade Para uma teoria geral da poltica. 14. ed. So

    Paulo: Paz e Terra, 2007. p. 135. 20

    SILVA, Jos Afonso da. Poder Constituinte e Poder Popular (estudos sobre a Constituio). 1. ed., 3. tir. So Paulo: Malheiros Editores, 2007. p. 45. 21

    BONAVIDES, Paulo. Cincia Poltica. 10. ed., 3. tir. So Paulo: Malheiros Editores, 1996. p. 76. 22

    SILVA, Jos Afonso da. Op. cit., 2007, p. 47.

  • 23

    J a democracia indireta ou representativa aquela em que o povo, fonte primria do poder, no podendo dirigir os negcios do Estado diretamente, por si, outorga as funes de governo aos seus representantes, que elege periodicamente.23 Democracia representativa, para Norberto Bobbio, significa genericamente que as deliberaes coletivas, isto , as deliberaes que dizem respeito coletividade inteira, so tomadas no diretamente por aqueles que dela fazem parte mas por pessoas eleitas para esta finalidade24. Para o Autor, so apenas dois os institutos de democracia direta no sentido prprio da palavra: a assembleia dos cidados deliberantes sem intermedirios e o referendum.

    Por fim, democracia semidireta , na verdade, democracia representativa, com alguns institutos de participao direta do povo nas funes do governo.25

    Para alguns, a ideia de democracia direta s possvel nos pequenos Estados. No entanto, a consolidao da democracia representativa no exclui a democracia direta.26

    No atual estgio da democracia brasileira, a vontade popular se manifesta de duas formas: (i) indireta: atravs da eleio dos seus representantes no mbito do Poder

    23 SILVA, Jos Afonso da. Op. cit., 2007, p. 47.

    24 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. 10. ed. So Paulo: Paz e Terra, 2006. p. 56.

    25 SILVA, Jos Afonso da. Op. cit., 2007, p. 47.

    26 De acordo com Bobbio, A consolidao da democracia representativa, porm, no impediu o retorno

    democracia direta, embora sob formas secundrias. Ao contrrio, o ideal da democracia direta como a nica verdadeira democracia jamais desapareceu, tendo sido mantido em vida por grupos polticos radicais, que sempre tenderam a considerar a democracia representativa no como uma inevitvel adaptao do princpio da soberania popular aos grandes Estados, mas como um condenvel ou errneo desvio da ideia originria do governo do povo, pelo povo e atravs do povo. Como bem conhecido, Marx acreditou encontrar alguns traos de democracia direta na breve experincia de direo poltica feita pela Comuna de Paris entre maro e abril de 1871. Lnin retomou com fora o tema em Estado e revoluo (1917), o ensaio que haveria de guiar a mente e a ao dos construtores do novo Estado que estava surgindo das cinzas da autocracia czarista. Frequentemente a democracia direta foi contraposta, como forma prpria da futura democracia socialista, democracia representativa, condenada como forma imperfeita, reduzida e ilusria de democracia, mas, ao mesmo tempo, como a nica forma possvel de democracia num Estado de classe tal qual o Estado burgus. Sob o nome genrico de democracia direta entendem-se todas as formas de participao no poder, que no se resolvem numa ou noutra forma de representao (nem a representao de interesses gerais ou poltica, nem a representao dos interesses particulares ou orgnica): a) o governo do povo atravs de delegados investidos de mandato imperativo e portanto revogvel; b) o governo de assembleia, isto , o governo no s sem representantes irrevogveis ou fiducirios, mas tambm sem delegados; c) o referendum. (...) Destas trs formas de democracia direta, a segunda e a terceira no podem por si s substituir, e de fato jamais substituram, as vrias formas de democracia representativa praticveis num Estado democrtico, assim como de resto as vrias formas de democracia representativa jamais pretenderam substituir, e de fato jamais substituram, as formas autoritrias do exerccio do poder, como so, por exemplo, em todos os Estados que mesmo assim so chamados de democrticos, as formas prprias do aparato burocrtico. Portanto, no podem por si ss constituir uma verdadeira alternativa ao Estado representativo: a segunda porque aplicvel apenas nas pequenas comunidades, a terceira porque aplicvel apenas em circunstncias excepcionais e de particular relevo. Quanto primeira, com a formao dos grandes partidos organizados que impem uma disciplina de voto, s vezes frrea, aos representantes eleitos em suas listas, a diferena entre representao com mandato e representao sem mandato torna-se cada vez mais evanescente. O deputado eleito atravs da organizao do partido torna-se um mandatrio, seno dos eleitores, ao menos do partido, que o penaliza retirando-lhe a confiana toda vez que ele se subtrai disciplina, a qual converte-se assim num sucedneo funcional do mandato imperativo por parte dos eleitores (Op. cit., 2007, p. 154-155).

  • 24

    Executivo e Legislativo; (ii) direta: atravs da participao nos Conselhos, por meio do plebiscito, referendo e participao popular.

    No obstante a figura dos conselhos (ainda que com outras denominaes) no seja uma inovao da Constituio Federal de 198827/28, o fato que a Carta Constitucional deu novos e importantes contornos a estes rgos.

    Patrcia Mazza Arzabe destaca a figura dos conselhos nos seguintes termos:

    no mbito dos conselhos de polticas pblicas, tambm denominados conselhos de direitos ou conselhos gestores de polticas setoriais, que a participao institucionalizada mais marcante. Esses conselhos so rgos colegiados, permanentes e deliberativos, legalmente incumbidos da formulao, superviso e avaliao das polticas pblicas, em cada uma das esferas de governo. (...) Os conselhos de polticas pblicas vm constituir o que Vera Silva Telles reconhece como uma nova institucionalidade pblica e democrtica no pas. Trata-se de fato de uma nova institucionalidade da perspectiva de sua constituio, no sentido de configurar um arranjo institucional com feies novas, porque eles no so meramente comunitrios so distintos dos fruns congregadores de entidades e associaes da sociedade civil e no so meramente estatais. Sua novidade ainda mais significativa pelo carter compartilhado na formulao, gesto, controle e avaliao das polticas pblicas. Esta participao com igualdade de poderes inteiramente nova para o Estado, em especial para a Administrao Pblica, habituada centralizao das decises e pelo uso deslocado do argumento do poder discricionrio mesmo em matria de direitos humanos, especialmente de direitos sociais. Em suma, ela transformadora da democracia representativa.29

    Os conselhos gestores tm o potencial de transformar a democracia representativa, aumentando qualitativamente a participao popular na tomada das decises polticas importantes. Este potencial, no entanto, pode no florescer e os conselhos tornarem-se meras instituies burocrticas, formadas por representantes dos grupos dominantes com o objetivo nico de se perpetuar naquela situao, alimentando-se da mquina estatal e sem qualquer preocupao concreta com o cumprimento de sua misso constitucional.

    27 De acordo com Maria da Glria Gohn, No Brasil, houve experincias histricas como conselhos

    comunitrios nos anos 60 e no final dos anos 70, ainda na fase do regime militar, ou os conselhos de notveis que atuavam junto s instncias governamentais. Nos anos 80 os conselhos populares foram a novidade no cenrio poltico. Nos anos 90, foram criados os conselhos gestores interinstitucionais, previstos a partir da Constituio de 88 (Os Conselhos de Educao e a Reforma do Estado. In CARVALHO, Maria do Carmo A. A.; TEIXEIRA, Ana Cludia C. (orgs.). Conselhos Gestores de Polticas Pblicas. So Paulo: Polis, 2000. p. 35). 28

    Os Conselhos de Trabalhadores e Econmicos foram expressamente previstos pela Constituio de Weimar (artigo 165), com o objetivo de conciliar os interesses dos capitalistas e dos trabalhadores. Para alguns estudiosos, representavam o pensamento mais original da Constituio (Hermann Heller apud BERCOVICI, Gilberto. Constituio e Estado de exceo permanente: atualidade de Weimar. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004. p. 48). 29

    O direito proteo contra a pobreza e a excluso social. Tese de doutorado, apresentada no ano de 2001, na Universidade de So Paulo Faculdade de Direito, p. 177-178.

  • 25

    Apesar de j terem passado mais de duas dcadas desde a promulgao da Constituio Federal de 1988, o fato que a atuao dos Conselhos e a influncia de suas deliberaes nas decises polticas importantes ainda se mostram bastante tmidas, no tendo conseguido, at o presente momento, despertar na sociedade o real desejo de participar da vida poltica do pas.

    Vivemos um momento de crise da democracia, fruto do individualismo caracterstico da era capitalista, de tal forma que as matrias de ordem pblica se mostram distantes e sem qualquer relao com o dia a dia de cada um.30

    Existe, atualmente, uma enorme dificuldade dos cidados em reconhecer as questes pblicas, j que o pblico foi colonizado pelo privado. Segundo Bauman,

    o interesse pblico reduzido curiosidade a respeito das vidas privadas das figuras pblicas, limitando a arte da vida pblica exposio pblica dos casos privados e das confisses pblicas de sentimentos privados (quanto mais ntimos melhor). As questes pblicas que resistem a tal reduo se tornam incompreensveis.31

    No mundo de hoje, o indivduo inimigo do cidado.32 preciso regressar aos cidados, tomar a srio os cidados difceis, como alerta o

    Professor Jos Joaquim Gomes Canotilho:

    (...) A nosso ver, as transformaes da poltica s so visveis se levarem a srio os cidados difceis. Escola, cidade, territrio, universidade, estado, democracia, nenhum destes lugares clssicos da civilidade e da poltica (civilis/polis) hoje politicamente simptico. E demoramos a compreender porque que o cidado ao confrontar-se com as ideias, os interesses e as instituies da vida poltica se transforma ele prprio em cidado difcil. As manifestaes de cidadania difcil dinamizada por cidados difceis esto a: rejeio da poltica, desconfiana relativamente s instituies, aceitao de paradigmas da antipoltica. Em instituies difceis e com cidados difceis tambm o pensamento difcil, sobretudo num mundo em que a democracia parlante e a democracia danante procuram o jogo das imagens em desfavor de qualquer suspenso reflexiva. (...) O Estado Social difcil. Aquilo que foi outrora um esquema organizatrio de milagres com as suas escolas pblicas, os seus servios sociais, as polticas de pleno emprego e a redistribuio de rendimentos atravs

    30 De acordo com Nelson Rodrigues dos Santos, todos os estudos e estimativas deduzem que a sociedade

    brasileira organizada no representa mais que 15% da populao do pas. Ou seja, 85% da populao brasileira sociedade desorganizada. um dado comparativo importante, pois, por mais urbanizada que seja nossa populao e por mais que tenham crescido nossos movimentos sociais, uma porcentagem baixa comparada com sociedades mais desenvolvidas. Na Europa, por exemplo, 80% ou mais da populao est ligada a uma forma de organizao (Implantao e funcionamento dos Conselhos de Sade no Brasil. In CARVALHO, Maria do Carmo A. A.; TEIXEIRA, Ana Cludia C. (orgs.). Conselhos Gestores de Polticas Pblicas. So Paulo: Plis, 2000. p. 20). 31

    BAUMAN, Zygmunt. A sociedade individualizada: vidas contadas e histrias vividas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. p. 68. 32

    Idem, ibidem, p. 140.

  • 26

    de impostos confronta-se hoje com as crises da socialidade. No tem dinheiro para o dficit spending, no sabe como sustentar as polticas sociais, privatiza servios pblicos, racionaliza os esquemas da administrao pblica. A democracia difcil. A democracia representativa passou para democracia delegativa. Juntamente com as sondagens de opinio os fruns televisivos de prs e contras furtam-se participao activa e a prticas deliberativas sustentadas. No meio de tudo isto h pessoas, h normas, h valores. Muitas das dificuldades conduzem tambm ao silencio do cidado e do profano. Silncio que deve ser quebrado, desde logo, pela possibilidade dos diversos atores interessados e incomodados demonstrarem a pertinncia das diferentes perspectivas contextuais.33

    A discusso acerca do grau de democracia (previsto e realizado) tem estrita relao com o objeto do presente estudo, pois a edio de polticas pblicas em desconformidade com a vontade dos cidados aos quais se aplicam acaba por aumentar a litigiosidade e transferir ao Poder Judicirio a tarefa de resolv-la. Em regra, o debate acaba se concentrando, apenas e to somente, nas questes jurdicas envolvidas e o Poder Judicirio se transformando, na maioria das vezes, no grande vilo da histria, de um lado ou de outro, pela visibilidade decorrente de sua interveno.

    No pretendemos com tal afirmao sugerir a reduo do mbito de atuao judicial, mas destacar que defeso ao Poder Judicirio discutir todas as questes envolvidas nas polticas pblicas, detendo-se somente aos aspectos jurdicos. As demais discusses no devem ser descuidadas e apenas uma maior participao dos cidados na vida poltica, especialmente na tomada das decises importantes, dar cabo ao problema ou pelo menos o reduzir.

    Para Maria Paula Dallari Bucci,

    cria-se uma sobrecarga de expectativas em relao s reais possibilidades da enunciao constitucional dos direitos, em detrimento das condicionantes tambm constitucionais ligadas ao processo poltico, s estruturas regionais do poder, permanncia das condies de exerccio das foras econmicas dominantes etc.34

    Desta forma, no basta uma abundncia de leis e uma abundncia de aes judiciais a discuti-las; necessrio cuidar da fase anterior promulgao do ato legislativo: o

    33 CANOTILHO, Joaquim Jos Gomes. Tomemos a srio os cidados difceis. In BENEVIDES, Maria

    Victoria de Mesquita; BERCOVICI, Gilberto; MELO, Claudineu de. Direitos Humanos, Democracia e Repblica Homenagem a Fbio Konder Comparato. So Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 593-594. 34

    Destaca a Autora que o exerccio do poder poltico entre ns est muito longe de um padro racional, apreensvel pelo direito. A poltica brasileira, dizia um professor de direito familiarizado com o ambiente parlamentar, est mais perto de ser explicada pela antropologia, com seus conhecimentos sobre tribos, cls e famlias no poder (BUCCI, Maria Paula Dallari. Controle Judicial de Polticas Pblicas: Possibilidades e Limites. In BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita; BERCOVICI, Gilberto; MELO, Claudineu de. Direitos Humanos, Democracia e Repblica Homenagem a Fbio Konder Comparato. So Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 695 e 697).

  • 27

    momento da deliberao, direta (atravs da participao nos conselhos, da realizao de plebiscito e referendo e da iniciativa popular35) e indireta (atravs da eleio e fiscalizao dos representantes junto aos Poderes Legislativo e Executivo).

    preciso, mais que tudo, resgatar a vida em sociedade, despertar a responsabilidade de cada um com o todo, quebrando as barreiras da individualidade e descobrindo (ou redescobrindo) a satisfao de participar da construo do bem-estar social.

    Estas reflexes muito importam ao estudo das polticas pblicas, pois exigem que os olhares se voltem no apenas para os efeitos (descontentamento com as polticas pblicas que no refletem os verdadeiros valores e anseios da coletividade e aumento da litigiosidade), mas especialmente para as causas do fenmeno (falta de interesse e participao popular na gesto da coisa pblica).

    Desta forma, embora no iremos tratar, ao longo deste trabalho, da efetiva participao popular por meio dos Conselhos na formulao e controle das polticas pblicas previdencirias, no descuidamos da sua importncia especialmente para que se estabeleam as fronteiras do controle judicial de forma que se respeitem os atos praticados nas outras esferas.36

    At aqui, nossa abordagem cuidou de buscar na Cincia Poltica os elementos necessrios para a fixao do conceito de polticas pblicas.

    Frise-se que para os fins deste trabalho a expresso polticas pblicas ser utilizada em sua dupla conotao (poltica de Estado e poltica de Governo), j que a anlise de

    35 Vide artigo 14, incisos I, II e III da CFR.

    36 No mbito da Previdncia Social, o artigo 194, pargrafo nico, inciso VII foi regulamentado pela Lei n

    8.213/91, que criou o Conselho Nacional de Previdncia Social. Os Conselhos de Previdncia Social, por sua vez, foram institudos pelo Decreto n 4.874/2003. A Lei n 8.213/91, em seu artigo 3, criou o Conselho Nacional de Previdncia Social (CNPS), formado por representantes do Governo Federal e da sociedade civil (representantes dos aposentados e pensionistas, representantes dos trabalhadores em atividade e representantes dos empregadores), cujas decises tm carter deliberativo. Seus membros tm mandato de dois anos, prorrogvel por igual perodo, e possuem estabilidade no emprego, da nomeao at um ano aps o trmino do mandato de representao, somente podendo ser demitidos por motivo de falta grave, regularmente comprovada atravs de processo judicial. Suas atribuies esto expressamente indicadas no artigo 4 da Lei n 8.213/91, destacando-se, especialmente, a funo de deliberar sobre a poltica de Previdncia Social e sobre a gesto do sistema previdencirio. O Decreto n 4.874, de 11 de novembro de 2003, instituiu como unidades descentralizadas do Conselho Nacional de Previdncia Social (CNPS) os Conselhos de Previdncia Social (CPS). Suas funes esto inscritas no artigo 296-A do Decreto n 3.048/99, com a redao dada pelo Decreto n 5.699/2006. Tais rgos so subordinados ao CNPS e vinculados s Gerncias Executivas do INSS. No so mais rgos estaduais ou municipais e esto organizados de acordo com a estrutura do INSS. Atualmente, o INSS possui (5) cinco Gerncias Regionais, localizadas nas cidades de Belo Horizonte, Braslia, Recife, Santa Catarina e So Paulo. Estas, por sua vez, abrangem 100 (cem) Gerncias Executivas e 1.107 (um mil, cento e sete) agncias da Previdncia Social. Em regra, cada Gerncia Executiva possui um Conselho de Previdncia Social na sua estrutura, com exceo da cidade do Rio de Janeiro e So Paulo. Ao todo, existem 96 (noventa e seis) Conselhos de Previdncia Social. As manifestaes dos CPS tm natureza consultiva.

  • 28

    qualquer poltica de Governo (poltica pblica em sentido estrito) pelo Poder Judicirio est centrada, essencialmente, na sua pertinncia com a poltica de Estado e na preservao, por parte de uma e de outra, do direito fundamental que se pretende concretizar.

    Estabelecida tal premissa, j possvel adentrar na rbita jurdica a fim de estabelecer qual a poltica de Estado desenhada em matria previdenciria que deve dar suporte s polticas de Governo necessrias a concretiz-la.

    O primeiro passo, assim, definir o que o contedo do direito fundamental previdncia social.

    1.4. Direitos Fundamentais Sociais

    Fundamentais so os direitos relativos ao ser humano, reconhecidos e positivados na Constituio, distinguindo-os, assim, dos direitos do homem, relacionados s posies jurdicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculao com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequvoco carter supranacional (internacional).37

    So tambm fundamentais os direitos inscritos em tratados internacionais de que o Brasil faa parte, como determina o 2 do artigo 5 da Constituio Federal.

    Para os fins deste trabalho, optamos por utilizar a expresso direitos fundamentais, buscando nas normas constitucionais os seus contornos, a partir dos quais sero analisadas as polticas pblicas editadas com o fim de concretiz-los.

    Os direitos fundamentais constituem a base e o fundamento do Estado Democrtico de Direito e, como resultado da personalizao e positivao constitucional de determinados valores bsicos, integram o ncleo substancial da ordem normativa.38

    A atual concepo de direitos fundamentais quer em relao ao seu contedo, quer quanto sua titularidade, eficcia e efetivao fruto de uma longa evoluo histrica, retratada pela doutrina como geraes ou dimenses de direitos.

    37 SARLET, Ingo. A eficcia dos direitos fundamentais. 9. ed., rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria

    do Advogado Editora, 2007b. p. 35-36. No mesmo sentido a distino apresentada por Canotilho (2003, p. 393): direitos do homem so direitos vlidos para todos os povos e em todos os tempos (dimenso jusnaturalista-universalista); direitos fundamentais so os direitos do homem, jurdico-institucionalmente garantidos e limitados espacio-temporalmente (grifos do Autor). 38

    SARLET, Ingo. Op. cit., 2007b, p. 70.

  • 29

    O termo dimenses, utilizado pelo Professor Ingo Sarlet39, ser aqui por ns adotado na medida em que retrata o processo de cumulao ocorrido, incorporando-se s garantias j existentes as novas conquistas.

    Em apertada sntese, os direitos de primeira dimenso ou direitos de liberdade correspondem aos direitos civis e polticos e possuem uma matriz manifestamente liberal, frutos do pensamento liberal-burgus do sculo XVIII. So os direitos individuais ante o Estado, direitos de defesa no sentido de no interveno estatal em relao autonomia individual.

    Os direitos de segunda dimenso, denominados direitos sociais, econmicos e culturais so aqueles relacionados ao bem-estar da coletividade, como o direito educao, sade, previdncia, trabalho. Esto relacionados aos fenmenos ocorridos no final do sculo XIX (graves problemas sociais e econmicos gerados pela industrializao), ensejando uma efetiva participao estatal na realizao da justia social. Por tal razo, possuem um cunho predominantemente positivo, ou seja, so direitos a prestaes estatais.40

    Os direitos de terceira dimenso, por fim, tm como fundamento a solidariedade e a fraternidade e se referem a bens e interesses sem titularidade definida, como o meio ambiente saudvel, a paz, o desenvolvimento, entre outros. Destacaram-se, sobretudo, aps o trmino da 2 Guerra Mundial e resultam de

    novas reivindicaes fundamentais do ser humano, geradas, dentre outros fatores, pelo impacto tecnolgico, pelo estado crnico de beligerncia, bem como pelo processo de descolonizao do segundo ps-guerra e suas contundentes consequncias, acarretando profundos reflexos na esfera dos direitos fundamentais.41

    Alguns doutrinadores, como o Professor Paulo Bonavides, ainda vislumbram a existncia de uma quarta dimenso de direitos fundamentais (direito democracia direta, informao e ao pluralismo).

    O processo cumulativo a que nos referimos nas linhas acima confere aos direitos fundamentais o contedo das vrias dimenses, englobando os direitos individuais, sociais

    39 Op. cit., 2007b, p. 60.

    40 Embora os direitos sociais se caracterizem por demandar uma atuao estatal positiva, certo que em

    alguns casos exigem do Estado um no fazer, nas hipteses das liberdades sociais, como a liberdade de sindicalizao, o direito de greve, etc. (SARLET, Ingo. Op. cit., 2007b, p. 55). 41

    Op. cit., 2007b, p. 56.

  • 30

    e de natureza coletiva, incorporando as demais dimenses que vo sendo consolidadas de tempos em tempos.

    1.4.1. A justiciabilidade dos Direitos Fundamentais Sociais

    Os direitos sociais possuem dupla dimenso: a dimenso objetiva e a dimenso subjetiva.42

    A dimenso objetiva revela quais so as decises valorativas de natureza jurdico-objetiva inscritas no texto constitucional, com eficcia em todo ordenamento jurdico e que fornecem diretrizes para os Poderes Legislativo, Executivo e Judicirio. Tambm representa uma espcie de mais-valia jurdica, no sentido de reforo da juridicidade das normas de direitos fundamentais.43 Por traduzir as opes axiolgicas feitas pela coletividade, a todos vincula, sendo possvel falar de uma responsabilidade comunitria dos indivduos.44

    A dimenso subjetiva possibilita que o titular do direito fundamental exija seu interesse juridicamente tutelado em face de quem deve prest-lo. Nossa tradio jurdica, estruturada em bases liberais, ainda resiste em reconhecer o carter subjetivo dos direitos fundamentais sociais. Admite-se, sem grandes controvrsias, o efeito impeditivo de criao de normas infraconstitucionais em desacordo com os postulados constitucionais. Para alm deste ponto, iniciam-se as mais variadas discusses doutrinrias e jurisprudenciais, restando em aberto quais as solues cabveis na hiptese de no efetivao do direito social pelo rgo competente. Em outros termos: qual a garantia assegurada ao titular do direito ante a no edio da poltica pblica necessria a concretiz-lo?

    Os Direitos Fundamentais Sociais no so direitos contra o Estado, mas sim direitos atravs do Estado, exigindo do poder pblico certas prestaes materiais. So os Direitos Fundamentais do homem-social dentro de um modelo de Estado que tende cada vez mais a ser social, dando prevalncia aos interesses coletivos antes que aos individuais. O Estado, mediante leis parlamentares, atos administrativos e a criao real de instalaes de servios pblicos, deve definir, executar e implementar, conforme as circunstncias, as chamadas polticas pblicas (de educao, sade, assistncia, previdncia, trabalho, educao) que facilitem o gozo dos direitos constitucionalmente protegidos.45

    42 O Professor Ingo Sarlet utiliza o termo perspectiva ao invs de dimenso (Op. cit., 2007b, p. 158, nota de

    rodap 397). 43

    SARLET, Ingo. Op. cit., 2007b, p. 160. 44

    Ibidem, p. 162. 45

    KRELL, Andreas J. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional comparado. Porto Alegre: Srgio Antonio Fabris Editor, 2002. p. 19-20.

  • 31

    Os direitos fundamentais sociais no so polticas pblicas, mas se realizam atravs delas, quando sua efetivao no puder ser extrada diretamente do texto constitucional. De acordo com Maria Paula Dallari Bucci,

    os direitos sociais no so polticas pblicas nem devem ser confundidos com elas. So direitos fundamentais, cuja satisfao integral requer programas, recursos pblicos, os quais, em circunstncias de escassez, so alocados segundo a dinmica poltica, que combina tempo e definio de prioridades.46

    Desde logo, importante ressaltar que a Constituio Federal brasileira de 1988 outorga o mesmo tratamento aos direitos fundamentais individuais e sociais, na medida em que no contm qualquer clusula restritiva em relao a qualquer deles.47 Conclui-se, da, que a norma inscrita no 1 do artigo 5 da Constituio Federal (As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais tm aplicao imediata) aplicvel aos direitos individuais e sociais, vez que fundamentais. Portanto, em um e outro caso, a mesma nfase conferida categoria dos direitos deve ser dada em igual dimenso categoria dos deveres, j que a todo direito corresponde uma ao que o assegura, nos termos do artigo 75 do Cdigo Civil.

    porque a Constituio previu determinados direitos como fundamentais, atribuindo obrigaes ao Estado e aos particulares (como o caso dos direitos fundamentais sociais dos trabalhadores) que eles so exigveis judicialmente, e portanto, corresponderiam a direitos subjetivos. A exigibilidade no condio de existncia do direito, ele no existe porque exigvel. Ele existe, razo pela qual deve ser exigvel.48

    Se assim , a obrigao em efetivar o direito a regra e o seu descumprimento s pode ser aceito desde que devidamente justificado, pois imposto por norma constitucional.

    46 BUCCI, Maria Paula Dallari. Controle Judicial de Polticas Pblicas: Possibilidades e Limites. In Op. cit.,

    p. 702. 47

    Tal distino feita pela Constituio de Portugal de 1976, com as revises constitucionais ocorridas posteriormente, sobretudo a de 1982. Segundo Sarlet (Op. cit., 2007b, p. 177-178), os direitos fundamentais podem ser divididos em dois grandes grupos formados, respectivamente, pelos direitos, liberdades e garantias (Ttulo II), e pelos direitos econmicos, sociais e culturais (Ttulo III). Tal classificao se justifica pelo fato de o Constituinte ter previsto regimes jurdicos diferenciados para ambos os grupos, reservando uma fora jurdica privilegiada aos direitos, liberdades e garantias, que, ao contrrio dos direitos sociais, foram includos nas clusulas ptreas da Constituio (art. 288, letra d, da CRP), alm de serem considerados diretamente aplicveis, vinculando todas as entidades pblicas e privadas (art. 18, n 1, da CRP), princpio que no se aplica aos direitos sociais do Ttulo III. 48

    OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos Fundamentais Sociais: Efetividade frente reserva do possvel. Curitiba: Juru Editora, 2008. p. 96.

  • 32

    Os direitos, como ressalta Ingo Sarlet, no podem ter uma existncia pautada pela desconsiderao recproca.49

    Buscamos responder a questo com amparo na teoria elaborada por Robert Alexy, que mais guarda pertinncia com o entendimento aqui adotado.50

    Alexy classifica os direitos subjetivos de acordo com as posies que o seu titular ocupa: (i) direitos a algo; (ii) liberdades e (iii) competncias.51

    Os direitos a algo se dividem em direitos de defesa (direitos a aes negativas) e direitos a prestaes (direitos a aes positivas).

    Os direitos de defesa subdividem-se em trs tipos:

    o primeiro grupo composto por direitos a que o Estado no impea ou no dificulte determinadas aes do titular do direito; o segundo grupo, de direitos a que o Estado no afete determinadas caractersticas ou situaes do titular do direito; o terceiro grupo, de direitos a que o Estado no elimine determinadas posies jurdicas do titular do direito.52

    J os direitos a prestaes tanto podem se referir a uma ao ftica estatal (direitos a prestaes em sentido estrito) como a uma ao normativa (direitos a prestaes em sentido amplo). Ressalta Alexy que em muitos casos de direitos fundamentais sociais, h um feixe de posies que dizem respeito em parte a prestaes fticas e em parte a prestaes normativas53, motivo pelo qual o termo deve englobar as duas perspectivas. Em suas palavras:

    Em virtude de normas de direitos fundamentais, todos encontram-se em posies de direitos a prestaes que so, do ponto de vista do direito constitucional, to importantes que a deciso sobre elas no possa ser simplesmente deixada para a maioria parlamentar simples.54

    49 SARLET, Ingo. Op. cit., 2007b, p. 240.

    50 Concordamos com Ingo Sarlet ao afirmar que a classificao no deve ser supervalorizada, quer pela

    diversidade de funes exercidas pelos direitos fundamentais, quer pelas especificidades de cada ordem constitucional. De toda forma, ela importante para a teoria dos direitos fundamentais, na medida em que fornece uma viso global e sistemtica sobre o conjunto dos direitos fundamentais e parmetros objetivos para sua interpretao, enquadramento funcional e at mesmo a determinao do regime jurdico aplicvel (SARLET, Ingo. Op. cit., 2007b, p. 176). 51

    No iremos abordar as questes relativas s liberdades e competncias, vez que no relacionadas diretamente ao objeto deste trabalho. Por certo que a discusso acerca das polticas pblicas a serem editadas para a concretizao dos direitos fundamentais abrange o tema da competncia, mas no se mostra necessrio maior aprofundamento j que o pressuposto adotado que o rgo pblico competente, de acordo com as regras estruturais, no agiu ou agiu mal. 52

    ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. So Paulo: Malheiros Editores, 2008. p. 196. Grifos do Autor. 53

    Ibidem, p. 442-443. 54

    Idem, ibidem, p. 450.

  • 33

    Os direitos a prestaes em sentido amplo englobam os direitos a proteo, os direitos a organizao e procedimento e os direitos a prestaes em sentido estrito.

    Interessa-nos, aqui, a categoria dos direitos a prestaes em sentido estrito, definidos por Alexy como os direitos do indivduo, em face do Estado, a algo que o indivduo, se dispusesse de meios financeiros suficientes e se houvesse uma oferta suficiente no mercado, poderia tambm obter de particulares.55 o caso do direito fundamental previdncia social.56

    Os custos envolvidos na realizao destas prestaes estatais so usualmente invocados para sustentar a tese da impossibilidade do cumprimento da obrigao pelo rgo pblico responsvel, impondo verificar se a ordem jurdica comporta tal restrio.

    1.4.2. Restries

    Atualmente assente na doutrina a noo de que tanto os direitos individuais como os direitos sociais acarretam custos, na medida em que tambm a garantia dos direitos de liberdade e dos direitos de defesa exigem do Estado medidas que implicam alocao significativa de recursos materiais e humanos para a sua proteo e implementao57. certo, contudo, que os direitos sociais a prestaes, em alguns casos, podem impor maiores despesas ao rgo estatal.58

    Para saber em que medida os custos podem ou no impedir a concretizao dos direitos fundamentais, necessrio esclarecer duas questes: (i) se os direitos fundamentais so absolutos; e (ii) em caso negativo, em que circunstncias so admitidas restries.

    Sem querer antecipar a anlise que ser feita no Captulo 2 (subitem 2.5.3.1), entendemos que as normas de direito fundamental se revelam por meio de princpios e regras, nos termos da teoria formulada por Alexy. Sendo os princpios mandamentos de otimizao, que podem ser satisfeitos em graus variados, de acordo com o caso concreto,

    55 Ibidem, p. 499.

    56 Embora Alexy tenha apresentado como exemplos os direitos assistncia, sade, trabalho, moradia e

    educao, entendemos que o direito previdncia tambm faz parte desta relao, especialmente no caso brasileiro, em que assistncia, previdncia e sade constituem o sistema de Seguridade Social. 57

    SARLET, Ingo. Op. cit., 2007b, p. 305. 58

    Ingo Sarlet (2007b, p. 305) cita corrente doutrinria que vislumbra a existncia de direitos sociais a prestaes economicamente neutras (que no implicam a alocao de recursos para sua implementao), no sentido de que h prestaes materiais condicionadas ao pagamento de taxas e tarifas pblicas, alm de outras que se restringem ao acesso aos recursos j disponveis. Para Sarlet, no entanto, mesmo nestas situaes h uma repercusso econmica ao menos indireta, vez que at o j disponvel resultou da alocao e aplicao de recursos (materiais, humanos ou financeiros) oriundos, em regra, da receita tributria e outras formas de arrecadao do Estado.

  • 34

    dentro das possibilidades jurdicas e fticas existentes, resta claro que eles no possuem natureza absoluta; se assim fosse eles no poderiam ser cotejados com outros, revestindo ento a natureza de regras.59

    Partindo da premissa de que os direitos fundamentais no so absolutos, cabe verificar de que formas podem ser restringidos.

    Duas teorias se propem a explicar a hiptese.

    A teoria externa vislumbra a existncia do direito e sua restrio, duas coisas distintas que guardam uma relao de restrio. Ou seja: h, em primeiro lugar, o direito em si, no restringido, e, em segundo lugar, aquilo que resta do direito aps a ocorrncia de uma restrio, o direito restringido.60

    A teoria interna, por sua vez, identifica na mesma figura o direito com um determinado contedo, substituindo o conceito de restrio pelo conceito de limite. Desta forma, dvidas acerca dos limites do direito no so dvidas sobre quo extensa pode ser sua restrio, mas dvidas sobre seu contedo. Quando eventualmente se fala em restries no lugar de limites, ento se fala em restries imanentes.61

    Apenas a teoria externa compatvel com a adoo do modelo de regras e princpios, caracterstico da Constituio Federal de 1988, donde se conclui que as restries no integram o ncleo do direito fundamental e so admitidas no ordenamento jurdico. De acordo com Alexy, so normas que restringem uma posio prima facie de direito fundamental.62 A admisso das restries exige que elas sejam compatveis com a Constituio.

    Tanto as regras como os princpios podem conter restries a direitos fundamentais. Segundo Alexy, uma regra (compatvel com a Constituio) uma restrio a um

    direito fundamental se, com sua vigncia, no lugar de uma liberdade prima facie ou de um

    59 Segundo Alexy (Op. cit., p. 111), fcil argumentar contra a existncia de princpios absolutos em um

    ordenamento jurdico que inclua direitos fundamentais. Princpios podem se referir a interesses coletivos ou a direitos individuais. Se um princpio se refere a interesses coletivos e absoluto, as normas de direitos fundamentais no podem estabelecer limites jurdicos a ele. Assim, at onde o princpio absoluto alcanar, no pode haver direitos fundamentais. Se o princpio absoluto garante direitos individuais, a ausncia de limites desse princpio levaria seguinte situao contraditria: em caso de coliso, os direitos de cada indivduo, fundamentados pelo princpio absoluto, teriam que ceder em favor dos direitos de todos os indivduos, tambm fundamentados pelo princpio absoluto. Diante disso, ou os princpios absolutos no so compatveis com direitos individuais, ou os direitos individuais que sejam fundamentados pelos princpios absolutos no podem ser garantidos a mais de um sujeito de direito. 60

    ALEXY, Robert. Op. cit., p. 277. Itlico do Autor. 61

    ALEXY, Robert. Op. cit., p. 278. 62

    Ibidem, p. 281.

  • 35

    direito fundamental prima facie, surge uma no liberdade definitiva ou um no direito definitivo de igual contedo.63

    J os princpios restringidores no so suficientes, por si s, para colocar o indivduo em determinadas posies definitivamente restringidas. Para tanto, necessrio um sopesamento entre o princpio constitucional atingido e o(s) princpio(s) que o restringe(m).64 Conclui Alexy que um princpio uma restrio a um direito fundamental se h casos em que ele uma razo para que, no lugar de uma liberdade fundamental prima facie ou de um direito fundamental prima facie, surja uma no liberdade definitiva ou um no direito definitivo de igual contedo.65

    A questo do sopesamento dos princpios ser abordada no Captulo 2, por se constituir na tcnica utilizada pelo Poder Judicirio para realizar o controle das polticas pblicas em face do direito fundamental.

    O que importa por ora registrar a possibilidade de o direito fundamental ser restringido.

    1.5. O Direito Fundamental Previdncia Social e as polticas pblicas previdencirias

    A Previdncia Social um dos pilares do Sistema de Seguridade Social, ao lado da Sade e da Assistncia Social (artigo 194 da CFR).

    A evoluo histrica da Seguridade Social no Brasil demonstra que tal distino nem sempre foi to clara e apenas a partir da Constituio Federal de 1988 que a questo restou devidamente assentada, estabelecendo-se textualmente normas comuns Previdncia, Assistncia e Sade, alm das normas especficas de cada ramo.

    O grande passo dado em 1988 foi a consagrao expressa do direito previdncia social (assim como dos demais direitos sociais previstos no artigo 6, caput, da CFR) como direito fundamental. 66

    63 Ibidem, p. 283. O Autor cita como exemplo o caso dos motociclistas que, enquanto no existir o dever de

    usar capacete, tm uma liberdade fundamental prima facie para usar ou no o capacete. A partir do momento em que a restrio surgir, os motociclistas no tero mais uma liberdade prima facie, mas uma no liberdade definitiva de igual contedo. 64

    Idem, ibidem, p. 284. 65

    Idem, p. 284-285. Itlico do Autor. 66

    De acordo com Ingo Sarlet (Op. cit., 2007b, p. 77), a prpria utilizao da terminologia direitos e garantias fundamentais constitui novidade, j que nas Constituies anteriores costumava utilizar-se a denominao direitos e garantias individuais, desde muito superada e manifestamente anacrnica, alm de desafinada em relao evoluo recente no mbito do direito constitucional e internacional. A acolhida dos direitos fundamentais sociais em captulo prprio no catlogo dos direitos fundamentais ressalta, por sua vez,

  • 36

    1.5.1. Uma breve anlise histrica

    Antes de adentrar na anlise do sistema brasileiro, breves anotaes se fazem necessrias acerca dos principais fatos ocorridos mundo afora e que de alguma forma influenciaram o modelo aqui concebido.

    A definio de um marco temporal inicial da Seguridade Social no possvel, dada a existncia de normas esparsas dispondo sobre a proteo social desde a Antiguidade, embora sem os contornos suficientes a caracterizar o sistema de seguridade social, fato apenas ocorrido em 1942, com a implantao do Plano Beveridge, na Inglaterra.67

    O regramento anterior mesclava categorias da previdncia e da assistncia, ora atribuindo Igreja, ora ao Estado, ora aos empregadores, a obrigao de prestar o socorro. Cite-se, a propsito, a assistncia aos pobres na Idade Mdia (estabelecida por Carlos Magno), as cooperativas criadas por Robert Owen, o Poor Law Act (1601), a criao da Cooperativa dos Probos Pioneiros de Rochdale em 1844, o nascimento da Caixa Econmica (em Hamburgo/Alemanha no ano de 1778, na Inglaterra e nos Estados Unidos em 1816), o estabelecimento do projeto de seguro operrio de Bismarck (1869) que ocasionou a instituio do seguro-doena-maternidade (1883), do seguro de acidentes do trabalho (1884), do seguro invalidez-velhice (1889) e finalmente do Regulamento de Seguro do Reich (1911).

    Aps a Primeira Grande Guerra, verificou-se a expanso do seguro social obrigatrio por todo o mundo, exceto nos Estados Unidos.

    O xito verificado no mbito da Previdncia no ocorreu no campo da Assistncia, o grande desafio ainda a vencer.

    Neste contexto foi firmada a Carta do Atlntico pelo Presidente dos Estados Unidos (Franklin Roosevelt) e pelo Primeiro-Ministro da Inglaterra (Winston Churchill), estabelecendo entre outros o compromisso de buscar a segurana social e a garantia de os homens viverem livres do medo e da necessidade.68

    de forma incontestvel sua condio de autnticos direitos fundamentais, j que nas Cartas anteriores os direitos sociais se encontravam positivados no captulo da ordem econmica e social, sendo-lhes, ao menos em princpio e ressalvadas algumas excees, reconhecido carter meramente programtico, enquadrando-se na categoria das normas de eficcia limitada. 67

    Confira-se, sobre o tema, a obra de Marcus Orione Gonalves Correia e rica Paula Barcha Correia (Curso de Direito da Seguridade Social. 3. ed. So Paulo: Saraiva, 2007. p. 1-11). 68

    Idem, ibidem, p. 7.

  • 37

    Willian Beveridge foi escolhido pelo governo para formular o plano de reconstruo social inglesa. Ele o fez e estabeleceu cinco gigantes na estrada da reconstruo: necessidade, doena, ignorncia, carncia (desamparo) e desemprego. As metas seriam alcanadas mediante a cooperao entre o Estado e o indivduo, nos seguintes termos:

    O Estado proveria a seguridade social, mediante a contribuio dos indivduos, que acobertaria a eles e a sua famlia. Para acabar com as necessidades da populao, era preciso findar com a viso vitoriana de caridade, passando a existir uma atuao mais efetiva e consistente do Estado. Para isso, seis princpios foram implantados: benefcios adequados; benefcios cujos valores fossem divididos de forma justa; contribuies em quotas justas; unificao da responsabilidade administrativa; acobertamento das necessidades bsicas da populao; classificao das necessidades.69

    A aplicao do Plano Beveridge encontrou fortes resistncias do Partido Conservador e at do prprio Churchill, que o havia encomendado.

    Foi ento substitudo por medidas tmidas e finalmente aplicado pelo Governo Trabalhista que assumiu o poder no perodo de 1944 a 1949, uma grande incoerncia:

    Percebe-se que, a despeito de talhado por um liberal para liberais, o Plano acabou por ser utilizado por socialistas rumo ao socialismo. Na origem, portanto, a Previdncia Social se adequava perfeitamente ao Estado Socialista, sendo que o Welfare State se apoderou da ideia, adaptando-se s suas necessidades.70

    No Brasil, sua primeira Constituio (1824) apenas determinava a garantia dos socorros pblicos, sem qualquer outra especificao (artigo 179, XXXVI), regra que tem sido interpretada pela doutrina ptria como o dever do Imperador de prestar assistncia social, pouco se sabendo, no entanto, sobre sua efetividade.

    A legislao infraconstitucional, por sua vez, estabeleceu alguns institutos de natureza previdenciria e relativos apenas aos funcionrios pblicos, como por exemplo a Caixa de Socorros em cada uma das estradas de ferro do Estado (Lei n 3.397, de 24/11/1888), o Fundo de Penses do Pessoal das Oficinas da Imprensa Nacional (Decreto n 10.269, de 20/07/1889) e a aposentadoria para os empregados da Estrada de Ferro do Brasil (Decreto n 221, de 26/02/1890).71 Afirma Paulo Mrcio Cruz que:

    69 Idem, ibidem, p. 8.

    70 Idem, ibidem, p. 10.

    71 Idem, ibidem, p. 13.

  • 38

    A Lei 3.397, de 24.11.1888, determinava a criao de uma caixa de socorros para os trabalhadores das estradas de ferro de propriedade do Estado. Depois, sobrevieram o Decreto 9.212-A, de 26.03.1889, tratando do montepio obrigatrio dos empregados dos correios, e o Decreto 10.269, de 20 de julho do mesmo ano, criando o fundo especial de penses dos trabalhadores das oficinas da Imprensa Rgia. Para os servidores pblicos, o conjunto dos benefcios era um direito que decorria do exerccio da funo, enquanto a previdncia dos trabalhadores da iniciativa privada ser criada exigindo-se o recolhimento de contribuies, como leciona Mozart Victor RUSSOMANO, em seu Curso de Previdncia Social, p. 29-30.72

    Sob a gide da Constituio de 1891, foi editada a Lei Eloy Chaves (Decreto Legislativo n 4.682/1923), que estendeu a previdncia social urbana aos trabalhadores da iniciativa privada, sendo autorizada a criao de Caixas de Aposentadorias e Penses (CAPs).73 Referido ato normativo usualmente invocado como o marco inicial da Previdncia Social no Brasil.

    No entanto, h quem defenda j estar configurada a noo de Previdncia em 15/01/1919, quando foi editada a Lei n 3.724, dispondo sobre o seguro de acidentes do trabalho, a cargo das empresas, que deveriam contrat-lo obrigatoriamente com seguradoras privadas.74

    A Constituio de 1934 foi promulgada no Governo de Getlio Vargas e no contexto mundial do Ps-Guerra e Ps-Crise de 1929.

    Os direitos trabalhistas foram expressa e minuciosamente reconhecidos e assegurados no Ttulo relativo Ordem Econmica e Social. O direito Previdncia, disciplinado na alnea h do 1 do artigo 121, era umbilicalmente ligado ao direito do Trabalho e de cunho contributivo.

    A Constituio de 1934 recebeu forte influncia da Constituio de Weimar de 1919 e pela primeira vez na histria constitucional brasileira conferiu destaque aos direitos sociais. Tambm de forma indita, instituiu a obrigao do Estado de contribuir, ao lado do empregador e do empregado, para a Previdncia Social.

    72 CRUZ, Paulo Mrcio. Fundamentos Histricos, Polticos e Jurdicos da Seguridade Social. In ROCHA,

    Daniel Machado; SAVARIS, Jos Antonio (coords.). Curso de Especializao em Direito Previdencirio volume I Direito Previdencirio Constitucional. 1. ed. (2005), 2. tir. Curitiba: Juru Editora, 2006. p. 73, nota de rodap 123. 73

    bom destacar que no havia qualquer contribuio estatal em favor das CAPs, mas to somente por parte das empresas, responsveis pelo recolhimento de suas prprias contribuies, de seus trabalhadores e dos usurios de seus servios. 74

    ROCHA, Daniel Machado. O Direito Fundamental Previdncia Social na perspectiva dos princpios constitucionais diretivos do sistema previdencirio brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004. p. 52.

  • 39

    O texto constitucional de 1937 tratou dos direitos sociais (trabalhista e previdencirio) no Ttulo relativo Ordem Econmica, mas pouco representou em termos de avano.

    J a Constituio de 1946 estabeleceu expressamente que a ordem econmica deveria ser organizada de acordo com princpios da justia social, conciliando a liberdade de iniciativa com a valorizao do trabalho humano (artigo 145), embora tenha mantido os direitos sociais no Ttulo da Ordem Econmica.

    Durante sua vigncia, foi editada a Lei Orgnica da Previdncia Social (LOPS Lei n 3.807/60), que unificou a legislao esparsa at ento existente. Tambm foi criado o FUNRURAL Fundo de Assistncia ao Trabalhador Rural (Lei 4.214/63), possibilitando a concesso de benefcios previdencirios aos trabalhadores rurais e o INPS Instituto Nacional de Previdncia Social (Decreto-Lei n 72/66).

    Por fim, na Constituio promulgada no perodo da ditadura militar (Constituio de 1967 e Emenda Constitucional n 01/1969), os direitos trabalhistas sofreram fortes restries, ao passo que o direito Previdncia Social foi estendido a categorias de beneficirios at ento no contempladas (empregados domsticos, trabalhadores rurais e autnomos).

    Leis infraconstitucionais, especialmente as Leis Complementares ns. 11/71 e 16/73, em complemento legislao j existente (FUNRURAL Lei 4.214/63), asseguraram aos trabalhadores rurais direitos a benefcios previdencirios.

    Em 01/09/1977 foi criado o SINPAS Sistema Naciona