11
1 CRIMINOLOGIA, POLÍTICA CRIMINAL E SEGURANÇA PÚBLICA Cursos de Pós-Graduação Lato Sensu | 2013 Pós-Graduação 2013 CRIMINOLOGIA, POLÍTICA CRIMINAL E SEGURANÇA PÚBLICA NOÇÕES BÁSICAS DE CRIMINOLOGIA LEITURA OBRIGATÓRIA 2 AULA 2 GERALDO JOSÉ BALLONE © DIREITOS RESERVADOS Proibida a reprodução total ou parcial desta publicação sem o prévio consentimento, por escrito, pelos autores. Publicação: Março de 2013

DISC_01_LO2-AULA_02

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: DISC_01_LO2-AULA_02

1

CRIMINOLOGIA, POLÍTICA CRIMINAL E SEGURANÇA PÚBLICA Cursos de Pós-Graduação

Lato Sensu | 2013

Pós-Graduação – 2013 CRIMINOLOGIA, POLÍTICA CRIMINAL E SEGURANÇA PÚBLICA

NOÇÕES BÁSICAS DE CRIMINOLOGIA LEITURA OBRIGATÓRIA 2 – AULA 2

GERALDO JOSÉ BALLONE

© DIREITOS RESERVADOS

Proibida a reprodução total ou parcial desta publicação sem o prévio consentimento, por escrito, pelos autores.

Publicação: Março de 2013

Page 2: DISC_01_LO2-AULA_02

Universidade Anhanguera-Uniderp

PÓS-GRADUAÇÃO Unidade de Transmissão

2

A criminalidade atual tem constatado violações cada vez mais peculiares da lei, da moral e da ética, tem se surpreendido pela produção de delitos em faixas etárias cada vez menores, pela atitude criminosa cada vez mais presente em pessoas "normais", do ponto de vista sociocultural, por delitos motivados cada vez mais por questões de di-fícil compreensão. Isso tudo exige novas reflexões sobre as relações entre a psicopa-tologia e o ato delituoso.

Cogitar sobre a existência de uma personalidade propensa ao crime e ao delito sem-pre foi uma preocupação de muitos autores da sociologia, psiquiatria e antropologia. Alguns identificam nessas pessoas naturalmente más, portadores de Transtorno Antis-social da Personalidade, ou Sociopatas, ou Psicopatas e coisas assim. Vamos refletir sobre algumas questões dessa natureza.

Será o criminoso responsável pelos seus atos ou vítima de um estado doentio? A sociedade em geral e, em particular, a justiça penal, carecem de noções mais pre-cisas corroborando ou contestando da forma mais clara possível, a ideia de Traços de Personalidade ou de uma Personalidade Criminosa determinante de comportamentos delinquentes. Essa também é a grande dúvida da psiquiatria.

Especular sobre o grau de noção ou de juízo crítico que o criminoso tem de seu ato, e até que ponto ele seria senhor absoluto de suas ações ou servo submisso de sua natu-reza biológica, social ou vivencial, sempre foi preocupação da sociologia, antropologia e psiquiatria. Isso se aplica aos inúmeros casos de assassinos seriais, estupradores contumazes, gangues de delinquentes, traficantes, estelionatários, etc, etc. Como veremos nessa revisão, dois pontos se destacam na literatura mundial; primei-ro, é que parece aceito, unanimemente, a existência de determinada personalidade marcantemente criminosa ou, ao menos, inclinada significativamente para o crime. Em segundo, que a diferença principal entre as várias tendências doutrinárias diz res-peito à flexibilidade ou inflexibilidade dessa personalidade criminosa, atribuindo ora uma predominância de fatores genéticos, ora de fatores emocionais e afetivos e, ora ainda, fatores sociais e vivenciais. E essa última questão estará diretamente relacio-nada ao arbítrio, juízo e punibilidade do infrator.

A ocasião faz o ladrão ou existe o Livre Arbítrio?

Monomania Homicida, um termo curioso, foi proposto por Esquirol em 1838 para de-signar certas formas de loucura, cujo único sintoma evidente seria uma desordem éti-ca e moral, propensa à prática de crimes. Talvez se tratasse de uma exigência mais social que médica, numa tentativa da sociedade segregar as duas figuras mais temidas do desvio da conduta humana; o louco alienado e o criminoso cruel. Esta posição no-sográfica foi reforçada por Prichard, alguns anos depois de Esquirol, com seus traba-lhos sobre uma tal Loucura Moral.

Hoje, séculos e nomenclaturas depois, existem na CID.10 critérios de diagnóstico para aPersonalidade Dissocial, caracterizada por um desprezo das obrigações sociais, falta de empatia para com os outros e por um desvio considerável entre o comportamento e as normas sociais.

Neste tipo de personalidade há uma baixa tolerância à frustração e baixo limiar de descarga da agressividade, inclusive da violência, existe também uma tendência a

Page 3: DISC_01_LO2-AULA_02

Universidade Anhanguera-Uniderp

PÓS-GRADUAÇÃO Unidade de Transmissão

3

culpar os outros ou a fornecer racionalizações duvidosas para explicar um comporta-mento de conflito com a sociedade. Seriam sinônimos dessa Personalidade Dissoci-al:

Personalidade Amoral, Personalidade Anti-social, Personalidade Associal, Personalidade Psicopática e a Personalidade Sociopática.

No DSM.IV, por sua vez, a característica essencial do transtorno da Personalidade Antissocial seria um padrão de desrespeito e violação dos direitos dos outros, padrão este também conhecido como psicopatia, sociopatia ou transtorno da personalidade dissocial. O engodo e a manipulação maquiavélica das outras pessoas são aspectos centrais neste transtorno da Personalidade, no qual ocorre também violação de nor-mas ou regras sociais importantes. Os comportamentos criminosos ou delinquenciais característicos desse transtorno de personalidade englobam a agressão a pessoas e animais, destruição de propriedade, defraudação ou furto e séria violação de regras. As pessoas com transtorno da Personalidade Antissocial não se conformam às nor-mas legais, desrespeitam os direitos ou sentimentos alheios, enganam ou manipulam os outros a fim de obter vantagens pessoais, mentem repetidamente, ludibriam e fin-gem. Esses indivíduos costumam ainda ser irritáveis ou agressivos.

A dúvida que costuma acometer a maioria dos psiquiatras diz respeito à existência ou não de um real componente psicopatológico atrelado a Sociopatia. Michel Foucault, por exemplo, contestava essa entidade estranha e paradoxal inventada pela psiquia-tria do Século XIX, que era a Monomania Homicida ou a Loucura Moral, e que caracte-rizava crimes que não eram senão uma forma de loucura ou, mais grave ainda, uma loucura que não se revela senão através do crime.

A discussão que sempre existiu sobre a conduta humana se dá entre dois argumentos causais: o Livre Arbítrio da pessoa, o qual implica na consequência e eventual punibi-lidade dos atos de todas as pessoas e, por outro lado, na Constituição Biológica, como uma fatalidade orgânica que empurra a pessoa a agir dessa ou daquela forma (mani-queistamente).

O reconhecimento da existência de uma personalidade em estado perigoso (periculo-sidade), fez com que a sociedade não se preocupasse mais, e exclusivamente, com a gravidade do ato criminoso mas, sobretudo, com a incômoda e problemática natureza do criminoso. A noção de Periculosidade, então, nasceu da conceituação de alguma patologia incrustada na personalidade do criminoso, tal como a antigaMonomania Homicida, atenuando assim a responsabilidade plena dos atos cometidos e, ao mesmo tempo, prevenindo a sociedade da presença incômoda desses mutilados éticos através da segregação manicomial. Apesar de hoje em dia não ser mais aceita a noção simplória da Monomania Homicida, antes de ser abandonada essa ideia estimulou a esdrúxula Teoria da Degenerescên-cia, desenvolvida por Morel em 1857 e embasada por outros autores de grande ex-pressão. Na realidade, foi a partir da Degenerescência da espécie humana, de Morel, através de seus simpatizantes ou contestadores, que se desenvolveram as mais varia-

Page 4: DISC_01_LO2-AULA_02

Universidade Anhanguera-Uniderp

PÓS-GRADUAÇÃO Unidade de Transmissão

4

das teorias biológicas, psicológicas, sociológicas e antropológicas sobre o crime, cri-minalidade e criminoso que hoje conhecemos. Inicialmente tivemos as conhecidas ideias de Lombroso, através de seus estudos mor-fológicos e anatômicos, na tentativa de conhecer mais profundamente a natureza do ser humano criminoso. Ele pressupunha um conjunto de estigmas biológicos e anatô-micos que caracterizariam o criminoso e revelariam nele a reminiscência de um nível inferior da escala do desenvolvimento humano. Era uma espécie de determinismo bio-lógico que marcava profundamente essas pessoas tidas como sub-humanas.

Nessa época distinguia-se apenas dois tipos de criminosos; o criminoso ocasional, representado por uma pessoa normal e fortuitamente criminosa sob influência de di-versas circunstâncias e o criminoso nato, de natureza diferente da do homem nor-mal, instintivo e cuja inclinação para o crime resultava de uma organização própria de sua biologia. Esse conceito em nada difere o Louco Moral do atual Sociopata.

Em seguida, Lombroso passou a classificar os criminosos em 5 tipos:

1. O Criminoso Nato, segundo ele representado pela maioria dos casos era, como o próprio nome indica, portador de um patrimônio genético cau-sador de sua criminalidade. Ele é seria o resquício do Homem Selvagem, uma espécie de subtipo humano, enfim, um ser degenerado. 2. O Criminoso Louco ou Alienado, no qual existia uma perturbação mental associada ao comportamento delinquente, considerado como um Louco Moral ou um Perverso Constitucional. 3. O Criminoso Profissional, que não possui os estigmas biológicos inatos, como os anteriores, mas que se tornava criminoso por forças e pressões do seu meio. Este criminoso começa por um crime ocasional e pode reincidir. 4. O Criminoso Primário, que cometerá um ou outro delito por força de um conjunto de fatores circunstanciais do meio, mas não tenderia para a reinci-dência. De acordo com Lombroso, estes eram ainda predispostos por heredi-tariedade para o crime, mas não possuíam uma tendência genética para ele (?). Para Ferri (Peixoto), seriam, ao contrário do ditado que diz "a ocasião faz o ladrão", ladrões já prontos e aguardando a melhor ocasião para roubar.

5. O Criminoso por Paixão, vítima de um humor exaltado, de uma sensibi-lidade exagerada, "nervoso", explosivo e inconsequente, a quem a contrarie-dade dos sentimentos leva por vezes a cometer atos criminosos, impulsivos e violentos, como solução para as suas crises emocionais.

O que é determinismo criminoso ?

Apesar dos estudos de Lombroso terem se limitado às relações entre anatomia e cri-me, entendendo-se este como uma espécie de anomalia morfológica, sua contribuição foi fundamental para o enriquecimento do conceito holístico do ser huma-no. Garofalo, na mesma linha das concepções genéticas e constitucionais, atribuía maior importância aos aspectos morais e psicológicos do que aos elementos anatômi-cos. Ele passou a defender o ponto de vista, segundo o qual, os criminosos possuiriam uma anomalia moral e psíquica, uma espécie de lesão ética, responsável pela prática da delinquência. A predeterminação da personalidade ao crime caminhou, então, da

Page 5: DISC_01_LO2-AULA_02

Universidade Anhanguera-Uniderp

PÓS-GRADUAÇÃO Unidade de Transmissão

5

anatomia defeituosa à lesão ética. De qualquer forma, não se falava em livre arbítrio do criminoso.

Foi nesta ocasião que Colajanni, defendendo também a predisposição psíquica do de-linquente, sugeriu à criminologia o conceito de periculosidade; uma perversidade constitucional e ativa no delinquente, bem como uma certa quantidade de maldades que se podia esperar dele, quase automaticamente. Nesta mesma época, partindo ainda das concepções biológicas de Lombroso, Enrico Ferri, elaborou um dos primei-ros modelos integrativo do direito com a psiquiatria e com a sociologia, valorizando como um importante fator na determinação do crime, além da predisposição psíquica, também o meio social onde se inseria o criminoso. Ainda assim não se falava em juízo crítico e arbítrio do contraventor; ora era a biologia a responsável pelo delito, ora a tal Lesão Ética, ora a psicologia claudicante do criminoso e, finalmente, poderia ser também omeio social propício ao crime.

Se Lombroso despertou uma série de conceitos posteriores baseados na importância da constituição biológica, não lhe faltaram opositores. Os autores mais modernos a-chavam demasiadamente retrógrada a ideia do determinismo biológico de Lombroso, e alguns preferiam o determinismo social.

Embora essa nova migração das influências criminais, do biológico para o social, dava a impressão de chique avanço intelectual, continuava sendo determinista do mesmo jeito. O criminoso continuava objeto de forças emancipadas de seu arbítrio e decisão. Este determinismo social, concebido por autores da moda, não era menos radical que o determinismo biológico de Lombroso. Alguns até defendiam que "cada sociedade tem os criminosos que merece", e que os fatores sociais e geográficos, por si só, já seriam suficientes para explicar a criminalidade. Dessa forma, a intenção, motivo ou personalidade do delinquente, ficavam em segundo plano.

Apesar de todas estas movimentações doutrinárias, a figura do Criminoso Nato e Constitucional dominou os estudos de criminologia no séc. XIX e início do séc. XX, progressivamente substituindo a predominância da constituição biológica em favor de uma natureza psicológica, moral e até social. Com base nestas várias teorias, conside-ra-se a possibilidade de alguma alteração psíquica relacionada com a criminalidade. Inicialmente tem-se em mente a figura do Perverso Constitucional e, posteriormen-te, a figura do Sociopata e do Psicopata, atualmente, fala-se naPersonalidade Anti-Social dos manuais de diagnóstico DSM.IV e CID.10.

Na realidade, ao longo de mais de um século houve apenas um deslocamento das teo-rias deterministas; inicialmente falava-se no determinismo biológico, onde as consti-tuições genéticas e hereditárias eram determinantes absolutas. Posteriormente foi a vez do determinismo moral, onde o indivíduo podia já nascer degenerado ou normal. Em seguida, foi a vez do determinismo psicológico, onde as maneiras da pessoa reagir psicologicamente à vida eram inatas, absolutas e invariáveis e, finalmente, veio o de-terminismo social, reconhecendo circunstâncias sociais que empurravam invariavel-mente a pessoa para o crime. Com tantos determinismos, de qualquer forma o delinquente continuava sempre sen-do vítima de alguma circunstância, interna ou externa, a qual eximia a responsabili-dade plena por seu ato, como se, por sua constituição, fosse ela biológica, moral ou psicológica, ou ainda pelas adversidades sociais e culturais ou, simplesmente pelo modismo, não lhe restasse outra opção senão o crime.

Page 6: DISC_01_LO2-AULA_02

Universidade Anhanguera-Uniderp

PÓS-GRADUAÇÃO Unidade de Transmissão

6

Quem acredita no Livre Arbítrio do criminoso?

Se, do século XIX até atualmente, acreditava-se que elementos ou fatores, internos ou externos, determinavam inexoravelmente uma espécie de Homem Criminoso, re-centemente surgiu uma nova corrente fenomenológica de DeGreeff. Trata-se de uma tendência que procura compreender as vivências interiores do delinquente e o proces-so do ato criminoso, partindo dum pressuposto de que o delinquente não é um ser diferente, por natureza ou qualidade, das outras pessoas. Em natureza e qualidade, o hipotético. Homem Criminoso seria igual ao indivíduo dito normal, diferindo deste apenas em relação a um certo número de características, as quais facilitam nele a execução do ato criminoso. Com De Greeff deixamos o constitucional ou degenerado comprometedor da espécie humana, e passamos a considerar a pessoa com sua história pessoal, a considerar o conjunto de processos psicológicos, afetivos, morais, sociais, etc, eventualmente ca-pazes de conduzir à criminalidade. E esse "certo número de características, as quais facilitam nele a execução do ato criminoso", parece tratar-se de algo relacionado à escala de valores, ou seja, um atributo muito mais arbitrário e eletivo das pessoas do que os determinismos estigmatizantes até então considerados.

As ideias de DeGreeff despertaram a necessidade de encarar o delinquente como qualquer outra pessoa, possuidor de uma história particular e opções pessoais realiza-das em função desta história. Tal posição pode ser considerada "fenomenológica", e atenuou, sobremaneira, a hipótese de uma incontrolável predeterminação biológica, psicológica e social para a criminalidade. Essa fenomenologia valorizava sim a condu-ta geral da pessoa, seu caráter, seus motivos, instintos, afetos e antecedentes pesso-ais. A partir de agora, há necessidade de se conhecer profundamente o criminoso na-quilo que ele tem de mais específico: sua personalidade específica pessoal e não mais uma personalidade geral e própria dos Homens Criminosos.

Livrar-se da ideia de Personalidade Criminosa não é tão simples assim.

Surgiu então o Conceito de Periculosidade. O conceito de periculosidade, tal como refere Debuyst, incluía três elementos: a personalidade criminosa, a situação perigosa e a importância sociocultural do ato cometido. Segundo este autor, através da pericu-losidade seria possível fazer um diagnóstico dos traços de personalidade e definir a-dequadas medidas de intervenção. Assim sendo, com o conceito de periculosidade volta à tona a ideia de personalidade criminosa, como dissemos, difícil de se livrar.

O conceito de periculosidade se mantém indissociável do conceito de personalidade (criminosa), e ambos seriam conceitos fundamentais para o desenvolvimento da cri-minologia clínica. Através desta, acredita-se poder concentrar esforços na procura de índices capazes de identificar características de risco e fatores desencadeantes. Aqui ficam patentes a avaliação da periculosidade do sujeito e a eventual arguição de seu potencial de socialização. Determinismo à parte, não se consegue esquecer o fato do conceito de personalidade ser, por si próprio, problemático. As principais teorias psicológicas da criminalidade que hoje em dia dominam a investigação nesta área poderão ser agrupadas em duas grandes linhas gerais. Uma delas, centrada na pesquisa das diferenças que caracteri-

Page 7: DISC_01_LO2-AULA_02

Universidade Anhanguera-Uniderp

PÓS-GRADUAÇÃO Unidade de Transmissão

7

zam a dita. Personalidade Criminosa, específica do criminoso e determinadora do ato delinquente (Pinatel, Le Blanc), e uma outra linha, a de investigação, mais ligada à análise do vivido do criminoso e de seu percurso na criminalidade, partindo de uma abordagem fenomenológica do autor da ação delituosa (Debuyst).

Pinatel, defende a criminologia clínica como o meio de se estudar os fatores que con-duzem ao ato delinquente e a identificar dos traços psicológicos subjacentes a este. Defende o ponto de vista segundo o qual, não haveria nos criminosos em geral, tipos psicopatológicos classificáveis dentro das categorias psiquiátricas tradicionais mas, no máximo, conjugações de traços de personalidade, agrupados de uma forma específi-ca. Esses traços é que definiriam a tal Personalidade Criminosa e, esta sim, seria determinadora do comportamento delinquente. Poderemos sintetizar essa posição nos seguintes pontos:

(a) o criminoso é um homem como outro qualquer, só se diferenciando por uma maior aptidão para ato criminoso; (b) a personalidade criminosa seria descrita através de traços psicológicos a-grupados numa determinada característica; (c) essa característica englobaria os traços de agressividade, egocentrismo, labilidade e indiferença afetiva, sendo estes os elementos responsáveis pelo ato delituoso, enquanto as variáveis, tais como o temperamento, as aptidões físicas, intelectuais e profissionais, as razões aparentes, e as necessidades seriam responsáveis pelas diferentes modalidades desse ato; (d) a personalidade criminosa, considerada na sua globalidade, seria dinâmica em relação aos seus diferentes traços constitutivos e adaptabilidade social.

Partindo dessa noção de Personalidade Criminosa, específica de cada delinquente ou do criminoso e composta por um conjunto de traços em atuação dinâmica, diferen-tes investigadores chegarão a resultados diversos e, por vezes, contraditórios. Assim, por exemplo, LeBlanc e Fréchette, estudando a personalidade delinquente ao longo da infância e adolescência, concluem pela existência de uma Síndrome da Personali-dade Delinquente. Esta comportaria uma estrutura específica com os seguintes sintomas: inclinação cri-minosa, anti-sociabilidade e egocentrismo, cada um deles sofrendo desenvolvimentos diversos ao longo do tempo. De acordo com esses autores, estes traços psicológicos específicos do delinquente seriam responsáveis pela maneira como eles valorizariam o impacto que as circunstâncias sociais lhes causarão.

Numa perspectiva pouco diferente, Eysenck defende que o comportamento criminoso é o resultado da interação entre fatores ambientais e características hereditárias, o que todo mundo já sabe há tempos. Porém, ele atribui uma importância fundamental a estas últimas, as hereditárias, e desenvolve uma teoria bio-psicológica da personali-dade. De qualquer forma, também Eysenck acaba defendendo a existência de uma Personalidade Criminosa, composta por um conjunto variável de traços psicológicos característicos do delinquente e responsáveis pelos seus atos transgressivos.

Entretanto, Ch. Debuyst, apesar de contestar o conceito da Personalidade Crimino-sa, tal como era definido, e apesar de alegar que este conceito é uma visão ingênua da realidade por ser estática e determinista, não consegue se desvencilhar da ideia de

Page 8: DISC_01_LO2-AULA_02

Universidade Anhanguera-Uniderp

PÓS-GRADUAÇÃO Unidade de Transmissão

8

uma personalidade inclinada à contravenção, como todos os outros. Ele recomenda analisarmos a delinquência a partir de três aspectos fundamentais; a posição que o sujeito delinquente ocupa na sociedade, os processos que resultam de suas múltiplas interações sociais e, finalmente, as características de sua personalidade.

A diferença é que ele aceita, com mais facilidade, um aspecto dinâmico da personali-dade, consequentemente, acaba considerando que a criminalidade não é um fenôme-no estático e nem obrigatório. Acha que seria ingênuo acreditar que um conjunto fixo de elementos, sejam esses elementos os traços, estilos ou qualquer outro conceito determinista, estivesse na base de todo o comportamento transgressivo indistinta-mente.

Finalmente, dando um passo além do aspecto dinâmico da personalidade proposto por Debuyst, tal como um devir não totalmente determinado por circunstâncias várias, surge F. Digneffe defendendo a ideia de que o indivíduo é sim responsável, depen-dendo dele a construção do seu próprio mundo e projetos. Digneffe dedica-se ao es-tudo das maneiras como o sujeito faz a gestão da sua vida, como elabora seus aspec-tos relativos à ética, aos valores e ao desenvolvimento moral, acabando por adquirir uma característica pessoal de acordo com a adoção de seu próprio modelo existenci-al. A autora se detém, sobretudo, nos casos onde a delinqüência é a forma de gestão de vida escolhida pelo indivíduo. Se a Personalidade é responsável pelo crime, quem é responsável pela Personali-dade?

A criminalidade moderna, entretanto, particularmente considerando-se crimes curio-sos entre escolares, franco-atiradores, ideológicos, religiosos e outros, exige o desen-volvimento de outros modelos criminais. Alguns autores partem da constatação de que não existem diferenças de personalidade entre delinquentes e não delinquentes. A pesquisa atual se orienta cada vez mais para a compreensão dos processos comple-xos pelos quais uma pessoa se envolve numa conduta delinquente, adquire uma iden-tidade criminosa e adota, finalmente, um modo de vida delinquente (Yochelsom).

Desta forma, não estaríamos diante um conjunto de traços de personalidade determi-nantes de uma conduta criminosa, mas diante de uma ação delituosa resultante da interação entre determinados contextos e situações do meio, juntamente com um conjunto de processos cognitivos pessoais, afetivos e vivenciais, os quais acabariam por levar a pessoa a interpretar a situação de uma forma particular e a agir (crimino-samente) de acordo com o sentido que lhe atribui.

Aqui também se pensa numa determinada Personalidade Criminosa, entretanto, per-sonalidade esta produzida não apenas pelo arranjo genético mas, sobretudo, pelo de-senvolvimento pessoal. De acordo com novas teorias da personalidade (Agra, Guida-no), seriam sete os sistemas que a constituem:

� neuro-psicológico � psico-sensorial � expressivo � afetivo � cognitivo

Page 9: DISC_01_LO2-AULA_02

Universidade Anhanguera-Uniderp

PÓS-GRADUAÇÃO Unidade de Transmissão

9

� vivencial � político. Essa nova tendência reconhece que a personalidade e o ato são inter-relacionados da seguinte forma: a personalidade é a matriz de produção da ação e define as condições e modalidades do agir, enquanto o ato seria o processo de materialização dessa per-sonalidade. Hoje em dia, alguns autores que pesquisam crimes e delinquências comuns do cotidi-ano perpetrados por delinquentes primários e reincidentes, não têm encontrado entre eles déficits ou psicopatologias relevantes o suficiente para se associar ao que se en-tende por Personalidade Criminosa ou comportamento criminal, verificando-se, pelo contrário, que esses sujeitos não se distinguem significativamente dos indivíduos ditos normais. Tem sido simpática a ideia de que os comportamentos transgressivos não resultam da incapacidade para agir de outra forma que não a criminosa, como pretendiam os posi-tivistas, nem de uma determinação biológica para só agir desta forma, como acredi-tavam os deterministas. Os atos, delituosos ou não, estariam relacionados com pro-cessos da personalidade ao nível da construção de significados e de valores da reali-dade, bem como com as opções de relacionamento da pessoa com essa realidade. Tal conceito implica na existência de uma estrutura da personalidade que determina cer-tos padrões de ação e certos padrões de inter-relação particular do indivíduo com a realidade, fazendo com que ela aja em conformidade com a visão pessoal que tem da realidade. Atualmente é difícil aceitar-se a existência de uma personalidade tipicamente crimi-nosa, composta por traços imutáveis e pré-definidos. Defende-se sim a existência de diferentes formas de organização e estruturação da personalidade, de diferentes ma-neiras de integrar os estímulos do meio e os processos psíquicos e de diferentes ma-neiras de relação com o mundo exterior. Essa estruturação típica e própria da perso-nalidade é que produziria diferentes representações da realidade nas diferentes pes-soas e, em função dessa personalidade, as pessoas definirão também suas diferentes formas de agir e de se relacionar com os outros e com o mundo. Seguindo esse raciocínio, o criminoso, como qualquer pessoa, estabelece uma repre-sentação da realidade, desenvolve uma ordem de valores e significados, na qual a transgressão adquire um determinado sentido e se torna, em dado momento da sua história de vida, uma modalidade de vida. Não se pretende negar aqui, peremptoriamente, as valiosas teorias da personalidade, notadamente a ideia de uma eventual Personalidade Criminosa, como advogaram inúmeros autores. Nossa ideia é apenas demonstrar que a criminalidade pode ser de-masiadamente complexa para se supor um modelo teórico relativamente simples e fixo como, por exemplo, o dos traços de personalidade ou da característica biológica criminosa (Kreitler). Pelas mesmas razões, somos obrigados também a não considerar aceitável o conceito de periculosidade, tal como tem sido definido, facultando um prognóstico definido e uma argüição hipotética sobre o devir da pessoa dita criminosa. Estaríamos, se acei-tássemos isso tudo, novamente nos confrontando com abordagens deterministas da Personalidade Criminosa.

Page 10: DISC_01_LO2-AULA_02

Universidade Anhanguera-Uniderp

PÓS-GRADUAÇÃO Unidade de Transmissão

10

No entanto, a grande questão que se impõe é sabermos: a partir de qual momento, negamos à pessoa a capacidade de ser, ela mesma, produtora de si mesma e determi-nadora de seus percursos? Ou, de outra forma: quando podemos confinar a pessoa numa análise reducionista que a transforma num objeto de conceitos como o de Per-sonalidade Criminosa, portanto, objeto de estratégias de intervenção terapêutica concordante com esse modelo? Este artigo é inspirado no trabalho de Celina Manita; "Personalidade Criminal e peri-gosidade: da perigosidade do sujeito criminoso ao(s) perigo(s) de se tornar objecto duma personalidade criminal." Assistente da Faculdade de Psicologia e de Ciências de Educação da Universidade do Porto e Membro do Centro de Ciências do Comportamento Desviante

Referências Bibliográficas 1. Agra, C. M. (1986). Adolescência, comportamento desviante e auto-organizado: modelo de psicologia epistemanalítica. Cadernos de Consulta Psicológica, 2, 81-87. 2. Agra, C. M. (1990). Sujet autopoiétique et transgression. In Acteur social et délin-quance - hommage à Christian Debuyst. Bruxelas: Pierre Mardaga, Ed. 3. Debuyst, Ch. (1977). Le concept de dangerosité et un de ses éléments constitutifs: la personnalité (criminelle). Déviance et Société, 1/4, 363-388. 4. Debuyst, Ch. (1981). Le concept de personnalité dangereuse considéré comme ex-pression d un point de vue. In Debuyst (Ed.), Dangerosité et Justice Pénale. Genève: Masson. 5. Debuyst, Ch. (1989). Criminologie clinique et invantaire de personnalité. Utilisati-on quantitative ou qualitative. Déviance et Société, 13, 1, 1-21. 6. De Greeff, E. (1946). Introduction à la Criminologie - vol.1. Bruxelas: Van der Plas. 7. Digneffe, F. (1989). Éthique et Délinquance. La délinquance comme gestion de sa vie. Genève: Ed. Médecine et Hygiène. 8. Digneffe, F. (1991). Le concept d acteur social et les sens de son utilisation dans les théories criminologiques. In Acteur social et délinquance - hommage à Christian Debuyst. Bruxelas: Pierre Mardaga, Ed., pp. 351-374. 9. Eysenck, H. J. (1977). Crime and personality. London: Grenade.(1.ª Ed, 1964). 10. Foucault, M. (1961). História da Loucura, Editora Perspectiva. S.Paulo, 1972. 11. Guidano, V. (1987). Complexity of the self: a developmental approach to psycho-pathology and therapy. New York: The Guilford Press. 12. Kreitler, S. & Kreitler, H. (1990). The cognitive foundations of personality traits. New York: Plenum Press. 13. LeBlanc, M. & Fréchette, M. (1987). Le syndrome de personnalité délinquante. Revue Internationale de Criminologie et de Police Technique, 2, 133146. 14. LeBlanc, M. & Fréchette, M. (1988). Les mécanismes du développement de l ac-tivité délictueuse. Revue Internationale de Criminologie et de Police Technique, 2, 143-164. 15. Peixoto, A. (1936). Criminologia. São Paulo: Companhia Editora Nacional (3.ª Ed.). 16. Pinatel, J. (1963). Criminologie - Tome III: Traité de Droit Pénal et de Criminolo-gie. Paris: Dalloz. 17. Pinatel, J. (1991). Criminologie clinique et personnalité criminelle. In Cario & Favard (Eds), La personnalité criminelle, pp. 187-197.

Page 11: DISC_01_LO2-AULA_02

Universidade Anhanguera-Uniderp

PÓS-GRADUAÇÃO Unidade de Transmissão

11

18. Yochelsom, S. & Samenow, S. (1989). The criminal personality(I): a profile for change. London: Jason, Aronson, Inc. (1.ª ed. em 1976).

Currículo Resumido

GERALDO JOSÉ BALLONE

Médico psiquiatra e escritor, nascido em Paulínia, interior do estado de São Paulo. Foi o 5° prefeito dessa cidade, de 5 de julho de 1979 à 29 de setembro de 1983, e profes-sor de psiquiatria da Faculdade de Medicina da PUC-Campinas (SP) de 1980 à 2002.

É coautor dos livros Sinopse de Psiquiatria (Cultura Médica, 1990), Da Emoção à Le-são (Manole, 2002, 2a. ed. 2004), Psiquiatria e Psicopatologia Básicas (Vetor, 2003) e Histórias de Ciúme Patológico (Manole, 2010). Ballone é criador e coordenador do site PsiqWeb.[1]

Como citar este texto: Ballone,Geraldo José. Personalidade Criminosa. Disponível em: http://www.psiqweb.med.br/site/?area=NO/LerNoticia&idNoticia=185. Acessado em

22.01.2013. Material da 2ª aula da disciplina Noções Básicas de Criminologia, minis-

trada no curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Criminologia, Política Criminal e Se-

gurança Pública – Anhanguera-Uniderp|Rede LFG, 2013.