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UNIDADE DE ENSINO SUPERIOR DE FEIRA DE SANTANA CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL FRANCISCO OTÁVIO LIMA FERREIRA CRÔNICAS RUPESTRES: O caráter informativo / noticioso da arte parietal pré-histórica. FEIRA DE SANTANA Maio de 2008 Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

CRÔNICAS RUPESTRES

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monografia do Curso de Comunicação Social, apresentado na UNEF, Feira de Santana, Bahia em junho / 2008."Cronicas Rupestres: O caráter informativo / noticioso da arte parietal pré-histórica.Contém imagens de pinturas rupestres e pesquisa sobre a comunicação no período da pré-história brasileira.The present work monographic proposes a reflection on the paper carried out by thepaintings prehistoric rupestres, in the social life of the human groups that they werethey contemporary. To research and to analyze the parietal representations as amanifestation that extrapolates the aesthetic and artistic concept, going for the utilityfield, as an education form, historical and informative registration, is the motivationthat orientates this study. Along the research, referring subjects to prehistoryconcepts, colonization and national identity, they are brought to fire for bettercontextualization of the partner-historical factors that determined the disappearanceof the races that produced the pictorial panels. The semiotics was the principal itcontributes theoretical for the development of that research; a scientific tool capablethe wide and complex field of the signs and symbols that permeate therepresentations rupestres to light up.Key Word: paintings rupestres; prehistory; semiotic.

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UNIDADE DE ENSINO SUPERIOR DE FEIRA DE SANTANA CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

FRANCISCO OTÁVIO LIMA FERREIRA

CRÔNICAS RUPESTRES:

O caráter informativo / noticioso da arte parietal pré-histórica.

FEIRA DE SANTANA Maio de 2008

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FRANCISCO OTÁVIO LIMA FERREIRA

CRÔNICAS RUPESTRES:

O caráter informativo/noticioso da arte parietal pré-histórica.

Monografia apresentada à Unidade de Ensino Superior de Feira de Santana como requisito parcial para obtenção do título de bacharel em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo.

Orientador: José Hermógenes Moura da

Costa

FEIRA DE SANTANA Maio de 2008

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FRANCISCO OTÁVIO LIMA FERREIRA

CRÔNICAS RUPESTRES: O caráter informativo/noticioso da arte parietal pré-histórica.

Aprovado em: _____/______/ 2008.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________________

Emanuel Simões – Unidade de Ensino Superior de Feira de Santana

___________________________________________________________________

Marly Caldas – Unidade de Ensino Superior de Feira de Santana

__________________________________________________________________

José H. M. da Costa – Unidade de Ensino Superior de Feira de Santana

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Dedico este estudo:

Aos meus pais, Antonio e Célia pelos 52 anos de paciente espera; À Edna, Kátia, Cláudia, Chiquinho e Alex; por acreditarem em mim mais que

eu mesmo; À professora Esterlina Lustosa de Araújo, pelas primeiras letras (In

memoriam). Ao índio Tapuia “João Caboclo”, meu trisavô (In memoriam)

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AGRADECIMENTOS

A superação de mais um desafio, aos 52 anos, não seria possível sem apoio,

amizade e ajuda de pessoas que me foram caras ao longo desses quatro anos.

Meus sinceros agradecimentos...

...a Rodrigo Osório Pereira, pelas horas que me dedicou na ideação dessa

monografia, e pelas valiosas sugestões;

...a Thiago Britto, pela companhia e auxílio nas diversas pesquisas de campo;

... a Alex Daniel, filho e fiel parceiro de andanças pela chapada Diamantina;

...a Laize Mendes, colega e amiga querida; filha pelo coração;

... A Marly Caldas, mestra, amiga e exemplo de dignidade;

...ao professor Emmanoel Simões, inspirador dessa monografia, pelo respeito

às diferenças culturais;

... ao professor José Hermógenes por aceitar a orientação deste estudo e

conduzi-lo com serenidade, acreditando e apoiando minhas idéias;

... aos colegas que, ao longo do curso, optaram por outros caminhos, porém

deixaram suas pegadas na estrada do meu coração;

... aos colegas Maria Gislândia, Fred Abreu, Érica Martins pela tolerância e

amizade que demonstraram nestes quatro anos de co-estudos.

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“O homem em suas ações práticas, bem como em suas ficções, é, essencialmente, um animal contador de histórias".

(Alasdair MacIntyre)

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RESUMO

O presente trabalho monográfico propõe uma reflexão sobre o papel desempenhado pelas pinturas rupestres pré-históricas na vida social dos grupos humanos que lhes foram contemporâneos. Pesquisar e analisar as representações parietais como uma manifestação que extrapola o conceito estético e artístico, imbricando pelo campo utilitarista, como uma forma de educação, registro histórico e informativo, é a motivação que norteia este estudo. Ao longo da pesquisa, questões referentes a conceitos de pré-história, colonização e identidade nacional são trazidas à lume para melhor contextualização dos fatores sócio-históricos que determinaram o desaparecimento das etnias que produziram os painéis pictóricos. A semiótica foi o principal aporte teórico para o desenvolvimento dessa pesquisa; uma ferramenta científica capaz de iluminar o amplo e complexo campo dos signos e símbolos que permeiam as representações rupestres.

Palavras-chave: pinturas rupestres; pré-história; semiótica.

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ABSTRACT

The present work monographic proposes a reflection on the paper carried out by the paintings prehistoric rupestres, in the social life of the human groups that they were they contemporary. To research and to analyze the parietal representations as a manifestation that extrapolates the aesthetic and artistic concept, going for the utility field, as an education form, historical and informative registration, is the motivation that orientates this study. Along the research, referring subjects to prehistory concepts, colonization and national identity, they are brought to fire for better contextualization of the partner-historical factors that determined the disappearance of the races that produced the pictorial panels. The semiotics was the principal it contributes theoretical for the development of that research; a scientific tool capable the wide and complex field of the signs and symbols that permeate the representations rupestres to light up.

Key Word: paintings rupestres; prehistory; semiotic.

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LISTA DE FOTOGRAFIAS

Fotografia 1- Área da pesquisa de campo, em Morro do Chapéu - Bahia

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Fotografia 2- Pintura rupestre que lembra mitos da cultura Ocidental 33 Fotografia 3- Cervídeo pintado em paredão 39 Fotografia 4- Painel rupestre visível à distância 41 Fotografia 5- Suporte rochoso contribui para composição da cena 44 Fotografia 6- Caçador 46 Fotografia 7- Ritual 46 Fotografia 8- Cena da árvore 47 Fotografia 9- Cena da árvore 47 Fotografia 10- Tradição Agreste 48 Fotografia 11- Palma de mão 48 Fotografia 12- Figura geométrica que sugere sensualidade 59 Fotografia 13- Cena de batalha e estupro de mulheres 54

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 10

1 HISTÓRIA DE CAÇADORES 15 1.1. CAÇADORES DE VESTÍGIOS 16 1.2. OS VESTÍGIOS FALAM 17 1.3. A LINGUAGEM DO CONTEXTO AMBIENTAL 20 2 HISTÓRIAS QUE BEM SE CONTAM E OUTRAS MAL CONTADAS 22 2.1. ANDARILHOS INTERCONTINENTAIS 23 2.2. COLONIZADORES DAS AMÉRICAS 25 2.3. COLONOS DO BRASIL 26 2.4. UMA RADIOGRAFIA SOCIAL DOS NORDESTINOS PRIMEVOS 28 2.5. A DEPOPULAÇÃO (OU LIMPEZA ÉTNICA) DO BRASIL 30 2.6. VELHOS E PERSISTENTES, QUASE DOGMÁTICOS CONCEITOS 33 3 HISTÓRIAS ESCRITAS NA PEDRA 37 3.1. PINTURAS RUPESTRES: UMA VISÃO SEMIÓTICA 37 3.2. UM PROJETO GRÁFICO 42 3.3. O PARADIGMA IMAGÉTICO 46 3.4 CRÔNICAS RUPESTRES 51

CONCLUSÃO 57

REFERÊNCIAS 59

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INTRODUÇÃO

A inquietação motivadora para a realização deste trabalho monográfico adveio

do seguinte questionamento: qual o papel das Representações Rupestres na vida

social dos grupos humanos no período da pré-história brasileira? A busca por uma

resposta que desmitificasse as pinturas parietais pré-históricas como simples

manifestação artística de sociedades simples permeou e conduziu a presente

pesquisa.

Geralmente analisam-se as pinturas rupestres através do reconhecimento

visual, tendo como parâmetro os valores culturais dos intérpretes. Essa apreciação

dedutiva não leva em conta a carga simbólica e conotativa dos signos, ao tempo em

que foi produzido, ou o universo cultural de quem os produziu. São análises que

inflectem para o etnocentrismo, desconsiderando valores e conhecimentos de outras

sociedades diversa do universo cultural do exegeta.

Oferecer uma resposta que afirme a capacidade dos primeiros colonizadores

do Brasil, de produzir não apenas arte, mas também conhecimento, e transmiti-lo

através das pinturas rupestres, há muito que passou a ser uma preocupação de

estudiosos e pesquisadores das culturas pretéritas.

O importante e substancioso material bibliográfico consultado, ao longo do

presente trabalho, per si, possivelmente teria conteúdo suficiente para que se

tentasse dar sustentação à hipótese aqui aventada. No entanto, a decisão de efetuar

pesquisas de campo pareceu uma iniciativa acertada.

O contato direto com formação geológica da Chapada Diamantina

Setentrional, a ocasião de observar a força simbólica da paisagem; subsistir por

vários dias com recursos materiais básicos à sobrevivência; mais do que uma

aventura, foi um exercício de imersão cultural. Apesar das alterações no clima, fauna

e flora provocadas pelo distanciamento cronológico, foi possível ter uma idéia, ainda

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que pálida, do meio ambiente que foi o habitat, proveu e, muitas vezes, deve ter

sido hostil a homens, mulheres, crianças que nele e dele sobreviveram.

Acredita-se que o ensejo de observar os painéis rupestres, in loco, integrados

ao entorno geológico e climático, foi fundamental para entender o contexto cultural

em que as pinturas rupestres foram produzidas. Mais que isso. Essa pesquisa de

campo deu subsídios e segurança para continuar defendendo a tese de um caráter

noticioso e informativo para as pinturas rupestres.

Uma delimitação geográfica da região a ser utilizada como campo de estudo e

apreciações se fez fundamental. Ainda assim, mesmo fazendo restrições espaciais,

a grande quantidade de sítios arqueológicos disponíveis na área delimitada,

infelizmente, provocou mais um recorte, desta vez, no número de sítios pesquisados.

Assim, a pesquisa de campo foi realizada em seis sítios arqueológicos, localizados

no complexo de serras denominado de Isabel Dias, Chapada Diamantina

Setentrional, no município de Morro do Chapéu, Bahia.

A maioria dos sítios, alvos da presente pesquisa, não possuía ainda uma

denominação quando da viagem de reconhecimento ao local. Então, para facilitar o

referenciamento geográfico, algumas denominações foram atribuídas contando com

o auxílio da população autóctone.

Para melhor desenvolver este trabalho, e comprovar as hipóteses

estabelecidas, dividiu-se metodologicamente em três capítulos, de forma que

houvesse uma interação e complementaridade entre fatos e pressupostos teóricos.

O primeiro capítulo faz um breve relato sobre o trabalho desenvolvido por

arqueólogos na busca de respostas a partir de fragmentos e resíduos encontrados

nas tocas e abrigos rochosos onde habitaram, ou viveram temporariamente, os

grupos sociais pré-históricos. Evidencia a importância da Arqueologia na

investigação do modus vivendi do homem pré-histórico, sendo capaz de produzir

respostas que, associadas a outras ferramentas de pesquisa, expandem o

conhecimento sobre a origem, raça e cultura dos primeiros colonizadores das

Américas.

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No segundo capítulo, conta-se a longa aventura intercontinental que os

ancestrais do Homem empreenderam, a partir da África, até se depararem com um

corredor estreito e frio e, então, atravessá-lo para chegar ao Novo Mundo. Relata-

se também como possivelmente chegaram a solo nordestino e ali habitaram, durante

milhares de anos, alheios aos perigos que invasores, em vistosas caravelas, trariam

para seus descendentes. Esse poderia ser designado como um capítulo que narra

vida e morte de uma cultura ímpar.

Completando este estudo, no terceiro capítulo, buscam-se referências na

semiótica, disciplina capaz de explicar o campo da simbologia e suas

especificidades, para fundamentar os pressupostos defendidos nessa monografia.

Inicia-se por traçar paralelos entre as representações rupestres e o universo sígnico.

Em seguida, bebe-se na fonte de arqueólogos e pesquisadores que se debruçaram

no estudo da arte parietal pré-histórica durante décadas. São saberes fundamentais

para entendimento do objeto de pesquisa.

Com o objetivo de contribuir com pesquisadores que no futuro pretendam

ampliar as informações contidas nessa monografia, registram-se aqui as

coordenadas geográficas onde se situam os sítios pesquisados; todos localizados no

perímetro indicado na Figura 01. Para a marcação destes pontos de interesse, foi

utilizado um aparelho de GPS portátil, marca Garmin, modelo “Legend”, cujo

fabricante indica uma margem de erro entre 20 e 50 metros.

• Toca da Cruz – lat.=-11.4158382339, long.=-41.3336390226

• Toca Grande - lat.=-11.4152774289, long.=-41.3254844259

• Toca de Robério Dias - lat.=-11.425184066, long.=-41.324517378

• Lajedo do Caçador – lat.=-11.463064105, long.=-41.3286192839

• Toca da Tartaruga – lat.=-11.4661388889, long.=-41.3277777778

• Toca da Serra Nua – lat.=-11.4664157923, long.=-41.3261290467

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Fotografia 1: Área da pesquisa, em Morro do Chapéu - Bahia. Fonte: Google Earth (2008)

Ao final do estudo, espera-se ter contribuído para a revisão de velhos, e já

inapropriados conceitos, como por exemplo, a premissa histórica que os primeiros

registros sobre os nativos brasileiros e seus costumes, advieram da carta escrita por

Pero Vaz de Caminha. Uma visão histórica que dialoga com o pensamento

etnocentrista do Velho Mundo e relega a produção cultural do brasileiro pré-histórico

à condição de grafismos sem importância.

Heráclito de Éfeso, filósofo grego, nascido há dois mil e quatrocentos anos

antes do presente1, dizia que ninguém consegue tomar banho duas vezes no

mesmo rio. Considerava ele, que ao retornar à água, mesmo que após uma fração

de segundos, o homem, e tampouco o rio terão sido mais os mesmos; ambos

mudaram de alguma forma; e um contribuiu para a mudança do outro.

1 No estudo da pré-história, Antes do Presente (AP) tem por convenção o ano de 1950; referência, aproximada, ao período em que foi descoberta a técnica de datação conhecida como Carbono 14. Na verdade, essa técnica foi desenvolvida em 1952.

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As pessoas envolvidas nesta pesquisa não têm a pretensão de mudar idéias

institucionalizadas, visões culturais impregnadas como nódoas, porém, o banho no

rio da arte rupestre alterou a concepção de cultura do autor.

A segunda visita ao mesmo sítio, sempre revelava novas nuances, detalhes

instigadores; a leitura de livros sobre o tema mudou algumas idéias pré-concebidas

sobre o mundo dos grafismos rupestres. Seria gratificante, se após a leitura deste

trabalho, o leitor se dispusesse, tal como o pesquisador, a rever conceitos, deixar-se

mudar e também ser agente de mudanças.

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1 HISTÓRIA DE CAÇADORES

Seria interdito para um estudo que se propõe discutir a significação das

representações rupestres, e possíveis intencionalidades de seus autores, não tratar

inicialmente da produção de conhecimentos realizada pela Arqueologia ao longo de

quase dois séculos de pesquisas e estudos.

Conforme ensina Pessis (1992), para se avançar na pesquisa de pinturas

rupestres é fundamental que os grafismos sejam confrontados com outros dados

fornecidos pelas escavações arqueológicas. Esse cotejamento permite assim, que

hipóteses possam ser cientificamente formuladas. Em virtude das pesquisas

arqueológicas, muito hoje se pode deduzir a respeito dos grupos humanos que

habitaram o Continente americano em épocas remotas.

De fato, sem o concurso da Arqueologia a humanidade ainda estaria na

obscuridade a respeito do seu passado mais remoto. Entretanto, em muitos casos,

em diversos lugares do planeta, o trabalho de pesquisa, estudo e identificação de

vestígios arqueológicos, só começou a ser executado por cientistas, depois que um

determinado tipo humano de característica aventureira e predatória já havia

destruído preciosas pistas para o entendimento das sociedades e culturas pretéritas.

Até fins do Século XVIII e início do século XIX, pouco ou quase nada se sabia

sobre o homem pré-histórico, suas viagens migratórias, costumes e hábitos. Nas

Américas, África e Ásia, uma legião de violadores de tumbas, à procura de fortunas

supostamente escondidas pelos nativos, rapinou um incalculável acervo cultural e

quase levaram à total destruição importantes monumentos arquitetônicos.

As representações rupestres, os vestígios materiais da presença humana em

sítios arqueológicos e sua cultura, pouca importância tinham para os caçadores de

tesouros em seu afã de encontrar ouro e jóias.

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1.1 CAÇADORES DE VESTÍGIOS

Ainda no Século XIX, em sua última metade, ocorreram profundas mudanças

naquele cenário caótico. Segundo Funari (2003, p. 24) aquele foi um Século

marcado pela afirmação dos Estados Nacionais, dando origem a uma ideologia

nacionalista que buscava consolidar nações pela busca ou resgate de valores

arcaicos. Por conta desta necessidade de pertencimento, de buscar vínculos

atávicos, é que surge uma nova Ciência: a Arqueologia.

Em 1859, é publicado o livro A Origem das espécies2, de Charles Darwin,

obra marcante por explicar a origem do homem sem recorrer a argumentos

sobrenaturais. O livro tinha ainda o mérito de sugerir um passado muito mais

longínquo para a espécie humana do que aquele atribuído pela Bíblia. Para Funari

(2003), a partir das idéias Darwinianas é que a pesquisa arqueológica entra em uma

nova fase.

A busca de novos conhecimentos, de saberes científicos, se traduz então num

rápido desenvolvimento e consolidação da Arqueologia. Entrava em gestação uma

nova categoria de caçadores. Não mais aventureiros em busca de tesouros, mas

caçadores da riqueza histórica contida nos vestígios deixados pela ação humana e

sua interferência no meio ambiente em que viveu temporária ou duradouramente.

Ainda de acordo com Funari (2003), na Europa, a Arqueologia derivou da

Filologia e da História. Era, basicamente, voltada para estudos de vestígios materiais

da civilização ocidental; ficando conhecida como Arqueologia Clássica. Já nos

Estados Unidos do Século XIX, a civilização ocidental era estudada pelos

historiadores, enquanto a pesquisa e estudo de outras civilizações, inclusive as

ameríndias, ficaram sob os encargos da antropologia. Para esse autor, esta

2 Teoria fundamentada nas idéias do naturalista inglês Charles Robert Darwin (1809-1882), na qual são propostos mecanismos baseados na seleção natural, para explicar a origem, a transformação e a perpetuação das espécies ao longo do tempo.

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diferenciação de origem entre a Arqueologia americana e européia resultou em duas

tradições arqueológicas com procedimentos metodológicos diversos. Cada um

destes Continentes desenvolveu metodologia e técnicas de investigação que se

assemelhavam numa perspectiva macro e distinguiam-se nos métodos. Ainda hoje,

estas duas vertentes científicas guardam diferenças epistemológicas entre si.

O modelo americano de exploração arqueológica dá preferência pela técnica

do salvamento extensivo, efetuando a escavação a partir de cortes estratigráficos

(em camadas) e recolhimento de todo o material para análise. O modelo europeu,

que teve a França como berço, opta pela decapagem, (remoção de impurezas), que

consiste em recuperar o solo de um momento da história de uma comunidade,

respeitando a disposição das peças tal como foi deixada.

Funari (2003) considera que, no Brasil, há arqueólogos influenciados

indistintamente pelas duas técnicas e ainda há outros que se apropriam, em suas

diligências, daquilo que consideram o melhor de cada modelo, adaptando-os para a

realidade brasileira. De forma geral, os estudos das representações rupestres, objeto

de estudo desta monografia, foram desenvolvidos no Brasil sob influência da

metodologia francesa.

1.2 OS VESTÍGIOS FALAM

Martin (2005) explica que a Arqueologia é uma Ciência de caráter vestigial,

onde os pesquisadores se movem por um campo fragmentário e lacunar. Essa

conceituação é evidenciada em se tratando de investigação pré-histórica, onde

textos escritos pelos atores sociais, em alfabeto decodificável, inexistem; e aqueles

deixados pelos colonizadores podem apresentar distorções, voluntárias ou mesmo

involuntárias, refletindo certa visão etnocentrista.

Segundo Prous (2007), estudos etnológicos estabelecendo paralelos entre a

cultura das sociedades indígenas que sobreviveram até hoje, e aquelas sociedades

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que existiram outrora, pode não trazer bons resultados quando se trata de pré-

história. Ele adverte que as populações remanescentes são poucas e se

modificaram demasiadamente durante os milênios que as separam dos habitantes

primevos.

Assim, para Funari e Noeli (2006), diante da carência de subsídios históricos

e sociais absolutamente confiáveis, resta, pois, aos arqueólogos, a tarefa de buscar

respostas aos questionamentos históricos através de outras fontes de informações:

os vestígios materiais.

Registrar, coletar, avaliar, depurar e interpretar as informações contidas em

camadas sedimentares, nos registros parietais e no meio ambiente, num lento e

minucioso ofício de reconstrução de fatos a partir de fragmentos e indícios deixados

pelo homem pré-histórico; é, grosso modo, a metodologia utilizada por arqueólogos

em busca de evidências que apontem para uma verdade, ainda que não absoluta.

Resume Funari:

A Arqueologia nada mais é que uma leitura, ainda que um tipo particular de leitura, na medida em que o “texto” sobre o qual se debruça não é composto de palavras, mas de objetos concretos, em geral mutilados e deslocados do seu local de utilização original (FUNARI, 2007, p. 32).

Prous (2007) enfatiza que a linguagem dos vestígios é complexa e rica, mas,

para que respostas científicas sejam dadas, a Arqueologia depende da colaboração

de outras ciências.

Técnicas, laboratoriais são fundamentais para a pesquisa arqueológica. Sem

elas, não se poderia afirmar, por exemplo, que determinado sítio foi habitado há

10.000 anos por humanos que ali fizeram fogueiras, processaram alimentos,

enterraram seus mortos, produziram utensílios e deixaram inscritas, na pedra, suas

histórias, crenças e saberes.

Os ossos humanos informam sobre idade, sexo, características físicas tanto individuais quanto diagnósticas do tipo de população, posturas freqüentes, tipos de esforços mecânicos, doenças [eventualmente, causa mortis] e alimentação. Os restos de animais caçados sobre as escolhas e os hábitos

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de preparo alimentar. [...] Os instrumentos de pedra, de osso ou cerâmica informam sobre as tecnologias conhecidas pelos grupos que os fabricou. [...] Os grafismos (pinturas, gravuras) deixadas em paredões (a chamada arte rupestre) ou em pequenos objetos, assim como as esculturas e modelagens, permitem abordar a esfera do pensamento simbólico por meio de temas formas e ritmos privilegiados pelas populações (PROUS, 2007, p. 14).

Um exemplo ilustrativo, com referência à importância dos vestígios

arqueológicos, diz respeito ao povoamento do Brasil. Exames recentes, em material

lítico, indicam a presença de Homo sapiens nas Américas por volta de 100.000 anos

antes do presente (MARTIN, 2005, p.13). No Brasil, estudos já sugerem a passagem

de grupos humanos no Nordeste, por volta de 50.000 A.P.(antes do presente).

Contudo, esta opinião não é partilhada unanimemente pela comunidade científica

internacional.

Estudiosos, principalmente norte-americanos, ainda são resistentes às

datações anteriores há 10.000 anos para a chegada do homem pré-histórico à

América do Sul. Eles pedem como comprovação definitiva, ossos humanos que

possam ter sua antiguidade atestada através do método do Carbono 14. Até o

momento, tais vestígios não foram encontrados pela Arqueologia brasileira

(MARTIN, 2005, p. 49). Entretanto, mesmo quando achados vestígios, nem sempre

os resultados conseguidos são aceitos por outros pesquisadores. As dúvidas

suscitadas geralmente dizem respeito à interpretação dos dados obtidos.

Um pouco de carvão pode ser interpretado como restos de uma fogueira feita pelo homem, assim como pode ser considerado simples resquícios de um incêndio natural, sem intervenção humana. Se o carvão está ao lado de instrumentos de pedra, perto de vestígios de uma habitação, esse contexto arqueológico permite supor que se trata de uma fogueira feita pelo homem. Se, ao lado do carvão, só encontramos restos de vegetação, podemos supor que se trata de uma fogueira natural. [...] Diante dos mesmos elementos, diferentes estudiosos podem chegar a conclusões opostas. [...] Devemos concluir, portanto, que as próprias fontes de informação só podem ser interpretadas com o auxílio de metodologias inevitavelmente marcadas por certa dose de subjetividade (FUNARI; NOELLI, 2006, p. 22).

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Funari (2003) esclarece ainda, que a Arqueologia não deve ser vista como

uma Ciência voltada exclusivamente para o estudo dos artefatos. Ele considera de

fundamental importância o estudo do que chama “ecofatos” e “biofatos”; aqueles, se

referindo a vestígios do meio ambiente, estes, aludindo a restos de animais

associados a um agrupamento humano. Para esse autor, “a Arqueologia estuda,

diretamente, a totalidade de material apropriado pelas sociedades humanas, como

parte de uma cultura total, material e imaterial, sem limitações de caráter

cronológico” (FUNARI, 2003, p.14).

1.3 A LINGUAGEM DO CONTEXTO AMBIENTAL

Em seus estudos, Etchevarne (2007) afirma que um fator importante a ser

considerado no exame arqueológico é o meio ambiente onde houve assentamentos

humanos. O ecossistema é capaz de responder, por exemplo, por que as

sociedades caçadoras e coletoras do Nordeste brasileiro não utilizavam o interior

das dolinas e grutas profundas como habitação de longo tempo.

Segundo Martin (2005), cientistas estimam que, no início do Holoceno3, o

clima nordestino, apresentava temperaturas 6°C inferiores aos dias atuais, período

denominado de “ótimo climático”, tornando a temperatura bastante amena, sendo

desnecessária a habitação em ambientes escuros e insalubres. Já os abrigos sob

rochas, geralmente ventilados e claros, já se comprovou que foram usados com fins

ritualísticos, socializantes e como habitação temporária. Resultado deste tipo de

moradia, ou centros de convivência, foi o legado das pinturas rupestres.

Com referência à importância do meio-ambiente sobre as relações sociais do

humano pré-histórico, o arqueólogo Carlos Etchevarne é bastante enfático:

3 Período pós-glacial iniciado aproximadamente há 10.000 anos e compreende os dias atuais.

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[...] Os processos sócio-históricos estão marcados pela interação homem-natureza. Isto significa que a história de um grupo humano se desenvolve no interior de um ambiente natural determinado, mediante o estabelecimento de uma relação de reciprocidade entre a sociedade humana e o meio natural, relação na qual cada uma das partes é condição sine qua non para a dinâmica de um específico sistema cultural (ETCHEVARNE, 2007, p. 79).

Martin (2005) denomina alguns paleoambientes encontrados no Nordeste de

“santuários ecológicos”, por conta de sua habitabilidade, oferecendo condições

climáticas, hídricas e geográficas ideais para a habitação dos povos pretéritos.

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2 HISTÓRIAS QUE BEM SE CONTAM E OUTRAS MAL CONTADAS

Iniciar uma investigação sobre pinturas rupestres, seu caráter simbólico, além

de um possível utilitarismo como elemento informativo e/ou noticioso, não se

apresentava como uma tarefa impossível. Atualmente, a bibliografia que versa sobre

representações rupestres não é extensa, mas relevante e substancial. Contudo, no

decorrer da pesquisa, justamente na etapa bibliográfica, é que surgiram algumas

questões inquietadoras que motivaram esse presente capítulo.

Autores como Prous (2007), Pessis (1992), Martin (2005), Funari; Noelli

(2006) e Etchevarne (2007) levantam questionamentos de tamanha importância

sócio-histórica, que seria impraticável não trazê-las a lume, nesta monografia, sem

deixar se perder a essência, a causa primeira, cujo empenho pela compreensão e

preservação da arte rupestre brasileira se justifica: o resgate histórico-cultural.

As representações rupestres são, possivelmente, os únicos relatos produzidos

intencionalmente por paleoíndios. Essas pictografias são ainda, testemunhas

pétreas e prova indelével da extinção, senão biológica, mas, seguramente étnica,

dos verdadeiros colonizadores4 das Américas.

Por conta dessas questões suscitadas, um dos objetivos desse segundo

capítulo é narrar a saga das sociedades arcaicas, desde a África, até sua chegada

ao território que se convencionou chamar Brasil.

Além desse entrecho narrativo, com o auxílio bibliográfico, reflete-se aqui

sobre conceitos como colonização, pré-história, religiosidade e outras manifestações

culturais do Brasil quinhentista. Objetiva-se, assim, contextualizar o leitor sobre a

relevância das representações rupestres, suas prováveis significações e herança

cultural legada, pelos grupos humanos pretéritos, às sociedades presentes.

4 Aquele que emigra para povoar e/ou explorar uma terra estranha (Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, versão 2.0.- Abril – 2007).

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2.1 ANDARILHOS INTERCONTINENTAIS

Acredita Blainey (2007) que, há cerca de um milhão e meio de anos, a

espécie Homo havia descido das árvores nas florestas tropicais africanas,

desgarrando-se de seus ancestrais, os macacos, e vivia nas savanas. Andavam

eretos, alimentavam-se do que a terra oferecia e sua dieta era o resultado de uma

série de descobertas como, por exemplo, saber se uma planta era comestível ou

venenosa. Alguns devem ter perecido por envenenamento colaborando,

involuntariamente, para o aprendizado de outros.

Moviam-se em pequenos grupos, em cada nova região que chegavam tinham

de adaptar-se a novos alimentos e enfrentar outros animais até então

desconhecidos. Nesta viagem migratória, provavelmente foram atacados por

predadores e muitos morreram. Apesar dos percalços, esses hominídeos, de origem

tropical, continuaram avançando por territórios inexplorados, regiões desérticas ou

geladas, aprimorando estratégias adaptativas e conquistando vitórias na brutal luta

pela sobrevivência.

Era mais uma corrida de revezamento do que uma longa caminhada. É possível que um grupo de talvez 06 ou 12 pessoas avançasse uma pequena distância e decidisse se estabelecer naquele lugar. Outros vinham, passavam por cima delas ou impeliam-nas para outro lugar. O avanço pela Ásia pode ter levado de 10 mil a 200 mil anos (BLAINEY, 2007, p. 9).

Funari e Noelli (2006) admitem que, por volta de um milhão de anos antes do

presente (AP), humanóides já tinham um cérebro cujo volume aproximava-se

daquele do homem moderno atual, e já haviam realizado a maior conquista da

espécie humana no decurso da pré-história: o domínio do fogo. Também já eram

capazes de fabricar utensílios. Estas duas habilidades lhes permitiram se aventurar

por lugares mais longínquos e frios. Foram denominados Homo habilis.

Para Blainey (2007), entre 500 ou 200 mil anos, em mais uma mudança

biológica, o cérebro dos humanos alcançou outro crescimento notável e a estrutura

já possuía uma área de fala. Como isso aconteceu, porém, é um grande mistério;

uma das causas prováveis foi o uso cada vez maior de carne na alimentação. É

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possível que com o decorrer do tempo, os ácidos graxos encontrados na carne

tenham sofisticado o cérebro e seu funcionamento. Surge então o Homo sapiens.

Segundo Funari e Noelli (2006), entre 60 e 40 mil anos AP, teriam surgido a

maioria das manifestações e habilidades humanas, tais como a arte, os enfeites do

corpo, os enterramentos dos mortos, as viagens marítimas e a linguagem falada.

Blainey (2007) denomina aquele período como o “Grande Salto” ou “Explosão

Cultural”. Diz ele: “A linguagem falada adquiria mais palavras e maior precisão. As

belas-artes surgiram juntamente com o ato de comunicar-se através da fala,

apoiando-se no uso de símbolos” (p. 14).

Apesar do avanço biológico, as sociedades antigas continuaram levando uma

vida seminômade. Estavam sempre à mercê das estações climáticas, pois não

armazenavam alimentos com que pudessem enfrentar períodos de escassez.

Grupos pequenos ocupando uma vasta área, com recursos naturais em abundância,

poderiam viver por algum tempo num mesmo lugar.

Ainda segundo Blainey (2007), é possível que antes de 20.000 anos AP,

nenhum grupo de 500 pessoas tenha se reunido em uma mesma localidade. Como

não cultivavam ou criavam animais, não podiam prover com alimentos uma grande

parcela populacional. Porém, esta vida errática favoreceu de modo insuspeito os

grupos pré-históricos:

Os nômades, sem saber, levaram vantagens em termos de saúde. Por usarem pouca roupa, ou até mesmo nenhuma, em climas tropicais, ficavam mais expostos à luz solar, o que impedia a proliferação de germes. Por não possuírem animais, eram alvo de menor número de doenças (BLAINEY, 2007, p. 17).

Depois de esgotados os recursos, ou com as mudanças de estações, a

migração se fazia necessária. Os doentes e mais idosos, que já não podiam andar,

eram deixados para trás. Uma sociedade em movimento não tinha alternativas.

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2.2 COLONIZADORES DAS AMÉRICAS

É visão predominante entre pré-historiadores e arqueólogos, que após a

conquista dos quatro outros Continentes, por volta de 30 mil anos AP, os humanos

chegaram ao Estreito de Bering, um frio corredor de terra entre a Sibéria e o Alasca

e portão de entrada das Américas. Esta passagem deve ter acontecido num

momento em que as águas oceânicas baixaram de nível devido a uma das quatro

glaciações:

No quaternário existiram pelo menos quatro momentos de esfriamento planetário, que provocaram acumulação de gelo sobre o continente, os chamados glaciares, e a descida do nível das águas oceânicas. Essas glaciações marcaram todo o período geológico denominado Pleistoceno. O aquecimento gradual de aproximadamente 12.000 a 10.000 anos atrás marca o início de um novo período, o Holoceno (ETCHEVARNE, 2000, p. 118).

Nos períodos denominados de glaciares, houve a formação de grandes

geleiras, a água do mar ficou presa no alto dos Andes, no norte da Europa e na

América do Norte. Esse processo diminuiu o nível do mar em até 100 metros.

Segundo Fausto (2006), a paisagem era muito diferente e a linha da praia estava a

dezenas de quilômetros de onde ela está hoje em dia. Nesse cenário, transpor o

Estreito de Bering e ingressar no Continente Americano não deve ter sido uma tarefa

muito difícil para quem já dominava o fogo e produzia utensílios.

Blainey (2007) supõe que grupos de caçadores cruzaram esse corredor

gélido com suas famílias à caça de animais, e tornaram-se assim, sem o saberem,

os colonizadores do Novo Mundo. Já em território norte-americano, levas humanas,

gradativamente, desceram pela Costa Oeste até o México, onde encontraram um

clima mais quente, e muita caça. Pesquisas arqueológicas confirmam que há 22 mil

anos, o homem já estava presente no México.

Há cerca de 11.000 mil anos, atravessando o istmo do Panamá, os primeiros

grupos humanos, em diferentes ondas migratórias, chegaram à América do Sul.

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Martin (2005) presume que as duas grandes bacias hidrográficas, a Amazônica e a

Platina, teriam sido os caminhos naturais para penetração em território sul-

americano.

2.3 COLONOS DO BRASIL

Martin (2005) acredita que a penetração em território brasileiro se deu por

meio dos corredores andinos e seguindo os cursos dos rios que nascem na

Cordilheira dos Andes. Funari e Noelli (2006) acrescentam que, ao descerem pelos

Andes, os povos primevos buscaram os habitats abertos, de clima temperado, e

vastas planícies onde pudessem caçar os grandes animais terrestres, a chamada

megafauna. Todavia, essas são apenas suposições, porque o atual estágio do

conhecimento ainda não permite afirmar com exatidão científica esse pressuposto.

As vias mais antigas do povoamento na pré-história do Nordeste são ainda

desconhecidas. No entanto, os caminhos seguidos até chegar ao semi-árido

brasileiro, supostamente, também foram fortemente influenciados pelas águas,

conforme Martin (2005): “Os indícios parecem indicar as terras altas do tipo savana

de Goiás, e as bacias do São Francisco e do Parnaíba”.

Da ocupação do litoral, poucas informações existem. Presume-se apenas que

grupos de pescadores e coletores formaram uma segunda frente de expansão,

diversa daquela que penetrou pela cordilheira andina, que avançou pelas costas do

Atlântico e Pacífico.

A falta de dados científicos sobre as sociedades pescadoras e coletoras

decorre de um evento geológico inverso à glaciação: o degelo. Funari e Noelli (2006)

presumem que, entre 10.000 e 12.000 anos AP, no Pleistoceno, as calotas polares

retiveram as águas baixando o nível dos oceanos em aproximadamente 120 metros;

foi quando então o Estreito de Bering permitiu a passagem de grupos humanos para

as Américas.

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Tal fenômeno, para Blainey (2007), provocou ainda o recuo das águas em

zonas litorâneas. No Brasil, por exemplo, arqueólogos calculam que as terras onde

hoje estão assentadas cidades como Salvador e Rio de Janeiro, deviam estar há

muitos quilômetros do mar, portanto, não seriam áreas costeiras.

Contudo, entre 9.000 ou 11.000 anos AP, adveio o Holoceno, que compreende

o período atual. No Holoceno ocorreu o degelo das calotas polares aumentando o

nível das águas oceânicas. Inversamente à glaciação, o novo fenômeno provocou a

inundação de grandes superfícies da terra. Entre outras conseqüências, foi fechada

a passagem por via terrestre entre Ásia e Américas, através do Estreito de Bering.

Com o aumento do nível do mar, as antigas faixas litorâneas também ficaram

submersas, mudando novamente a paisagem em muitas partes do globo terrestre,

inclusive no Brasil. Em decorrência, as áreas que porventura foram habitadas por

povos antigos, atualmente estão sob águas, dificultando, no estágio científico atual,

pesquisas arqueológicas.

Daqueles grupos de pescadores e coletores, restaram, como campo de

pesquisas arqueológicas, os sambaquis; que são, grosso modo, elevações

encontradas nas áreas próximas às praias, formadas por acúmulos de conchas e

restos alimentares. Sob essas formações, são encontrados materiais líticos e restos

esqueletais daquelas populações costeiras.

Nos estudos de Funari e Noelli (2006), as resultantes sócio-culturais da

deglaciação ocorrida no Holoceno, foram e ainda são motivo de muita polêmica no

meio científico. Muitos pesquisadores da comunidade internacional chegaram a

admitir que o fechamento da passagem natural pela Beríngia provocou o isolamento

dos povos americanos em relação ao restante do mundo. Conseqüentemente, a

ausência de comunicação pode ter provocado o atraso tecnológico e até mesmo

cultural dos grupos ameríndios.

Esta visão, entretanto, não é partilhada por Funari (2003) e Martin (2005).

Ambos concordam que a tecnologia não pode determinar o grau de evolução de

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uma sociedade, pois cada grupo social possui estratégias próprias de sobrevivência

e também, concepção peculiar do mundo que o rodeia.

2.4 UMA RADIOGRAFIA SOCIAL DOS NORDESTINOS PRIMEVOS

Os habitantes pretéritos do semi-árido brasileiro, assim como seus

antepassados asiáticos, de quem herdaram as características mongolóides5·, viviam

em pequenos grupos. Sua dieta era baseada na coleta do que dispunha a natureza,

tais como frutas, ovos de pássaros, mel de abelhas, caça de pequenos animais e

pesca.

Não obstante a convivência cronológica com a megafauna composta por

Gliptdontes (tatus gigantes), Megatérios (preguiças gigantes), Mastodontes (espécie

de elefantes) e, eventualmente tê-los caçado, animais de grande porte, na dieta

alimentar do paleoíndio era uma exceção, não a regra.

Para Blainey (2007), é provável que esse tipo de captura só acontecesse nos

raros momentos em que havia um grupo maior de caçadores reunidos, e estes

conseguiam encurralar a caça em alguma espécie de cânion. Há ainda a

possibilidade dos grupos arcaicos terem se alimentado das sobras deixadas por

predadores naturais.

Martin (2005) acredita que imaginar o homem pré-histórico brasileiro como um

caçador por excelência do Tigre-dentes-de-sabre é uma caracterização romanceada.

De uma maneira geral, os restos alimentares coletados em escavações

arqueológicas indicam que os primeiros nordestinos eram consumidores da micro-

fauna: roedores, répteis e moluscos.

5 Características morfológicas semelhantes à das populações norte - asiáticas, como os chineses e japoneses, observadas até hoje na população indígena brasileira.

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Sobre os grupos humanos que habitavam o Nordeste do Brasil, seus hábitos

e cultura, a arqueóloga Gabriela Martin é bastante didática:

O indígena do Nordeste, antes da colonização européia, no seu nível cultural mais avançado, nunca ultrapassou o estágio neolítico primário pré-urbano. Sua habitação não era permanente, não trabalhou a pedra para construção de moradias, nem soube fazer o tijolo ou adobe. Não conheceu metais, a roda nem o torno de oleiro e não domesticou nenhum animal economicamente rentável. Sua organização social não estava dividida em classes. Sempre andou nu ou seminu (MARTIN, 2005, p.151).

Logo adiante, é ainda Gabriela Martin que define a motivação em estudar

aquelas sociedades simples6 do Nordeste brasileiro:

Apesar disso, o grande interesse no estudo da pré-história brasileira, especialmente a das regiões mais inóspitas do sertão nordestino, está em observar a grande capacidade de adaptação do homem a uma natureza particularmente adversa. Também constatar que, nesse meio hostil, ele foi capaz de criar e desenvolver uma arte expressiva e bela, como são as pinturas rupestres situadas nos domínios do semi-árido (MARTIN, 2005, p. 151).

Contudo, a adaptabilidade ao meio-ambiente; sua tecnologia rudimentar, mas

eficiente para atender as necessidades e adversidades que lhe eram impostas pela

natureza, não lhe foram de valia frente a um inimigo tecnologicamente preparado

para a guerra e com larga experiência em dominação: o europeu.

2.5 A DEPOPULAÇÃO (OU LIMPEZA ÉTNICA) DO BRASIL

Até o ano de 1.500 não havia Brasil, apenas um terra livre, habitada por

descendentes dos primeiros colonos; possuidores de cultura e ideologias próprias. A

6 Não hierarquizadas, inverso das sociedades complexas marcadas por forte hierarquia social. Não confundir com primitivismo (GASPAR, 2003, p. 10).

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partir de 1500, o Brasil, ainda sem definição territorial, passou a fazer parte do

Império Luso, que se espalhava por quatro continentes (Ásia, Europa, África e

América). Com o Tratado de Madri, em 1750, entre Espanha e Portugal, os limites

territoriais viriam a ser fixados, aproximando-se do que é hoje.

Porém, o atual Estado Nacional jurisdicionado e autônomo, não existia até

1822 e, quando se fala em Brasil colonial, estamos reproduzindo um conceito

etnocêntrico; enxergando o Brasil com a mesma lente cultural do autodenominado

“colonizador”, ou seja, o Império Português.

Funari e Noelli (2006) informam que cálculos demográficos, baseados em

estimativas conservadoras, realizados e publicados em 1949, deram conta que, no

ano de 1500, quando os portugueses chegaram às terras que depois batizariam de

Brasil, os descendentes dos primeiros colonos já perfaziam uma população de oito

milhões de habitantes.

Quem antes se identificava por sua família ou aldeia, passou genericamente a

ser chamado de “índio” e redistribuído em “nações indígenas”, definidas e

classificadas pelos (re) colonizadores. Era como se nada houvesse existido antes e

nada restasse a ser feito depois. Essa situação unívoca é assim definida pelo

etnólogo Carlos Fausto (2006): “O colonizador acreditava ter chegado ao paraíso, e

como um novo Adão, nominou coisas, acidentes geográficos e habitantes nativos.

Criou simbolicamente o Brasil e dele se apossou”.

O fato é que, três séculos após o descobrimento, o país já tinha ficado órfão

de quase 70% de sua população primeva. Em meados do século XVIII, o invasor

europeu já havia dizimado, a tiros ou passando pelo fio da espada, grande parte dos

grupos sociais pretéritos. Ainda de acordo com Fausto (2006) “O Brasil não foi

povoado, foi despovoado para ser em seguida repovoado por uma população

totalmente diferente daquela que existia aqui em 1500”.

Indígenas que escaparam à brutalidade dos novos donos da terra

sucumbiram às doenças trazidas pelos europeus, para as quais não possuíam

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Page 32: CRÔNICAS RUPESTRES

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defesa biológica. Os remanescentes foram aprisionados, feitos escravos ou

enviados para missões católicas onde se pretendia evangelizá-los. A evangelização,

da forma como foi perpetrada, se configurou como mais um perverso crime cometido

contra os nativos brasileiros: o etnocídio cultural.

Relata Martin (2005) que, apenas 45 anos após o descobrimento da América

e 37 do Brasil, quando já estava em curso o processo de dizimação dos nativos do

continente americano, é que o Papa Paulo III editou a bula Sublimes Deus,

reconhecendo os índios como humanos, legítimos filhos de Deus, e redimidos pelo

pecado original.

A presença de humanos no Novo Mundo, reconhecidos como tal pelo papa,

provoca uma avalanche de interrogações, seguidas de explicações mágicas para

enquadrar esses povos na descendência de Noé; já que não se registrava a ida de

qualquer dos seus três filhos Cam, Sem e Jafet, para o Continente americano.

Ainda de acordo com os relatos de Martin (2005), buscaram-se então

referências em passagens bíblicas do Antigo Testamento, onde se falava de

navegações a lugares não satisfatoriamente identificados. Terminaram por concluir

que os índios eram descendentes de gregos fenícios ou até mesmo israelitas, só

que em processo de regressão cultural. Urgia, então, uma nova ação

evangelizadora.

Aos índios do século XVII, incertos descendentes daqueles povos que

audaciosamente conquistaram o continente americano, considerados um povo

culturalmente degenerado, naquele período, e até meados do século XX,7 só restava

uma opção: acatar a superioridade temporal e espiritual dos dominadores e abdicar

de suas crenças e costumes milenares.

7 Até os anos 70 do Século XX, antropólogos como Darcy Ribeiro e órgãos governamentais como a FUNAI, acreditavam na tese do degeneracionismo, supostamente capaz de levar os povos indígenas à extinção (FUNARI; NOELLI, 2006, p. 33).

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Page 33: CRÔNICAS RUPESTRES

32

Pompa (2003) confirma que aqueles que resistissem ao processo

evangelizador, e não se submetessem a nova ordem social, seriam enviados para

áreas de apresamento afastadas de seus territórios de origem. Geralmente, os

aborígenes duravam pouco tempo vivo nestas reservas.

Naquele contexto, os nativos passaram a mediar sua própria sobrevivência,

chegando ao paroxismo de buscar referências entre suas crenças e a doutrina cristã.

Procuravam os catequistas e davam sua própria versão das histórias sagradas,

fazendo co-relação com os ditames bíblicos, em um contínuo processo de reajuste e

rearticulação, cujo objetivo final era não serem levados ao confinamento por ordem

da Coroa portuguesa.

Diz a pesquisadora Cristina Pompa (2003, p. 12): “Os índios “Tapuia” se

aproximaram dos padres para pedir o batismo, único meio para escapar às

expedições de apresamento. Com este interesse, eles “devolveram” aos

missionários sua versão da doutrina cristã”.

Ainda segundo Pompa, os padres procuraram incessantemente nos índios as

“noções confusas” de cristandade, inserindo as narrativas dos aborígenes no

sistema significativo bíblico, que os selvagens também deviam conhecer; tendo

como parâmetro uma suposta passagem pela América dos apóstolos; ou de que os

silvícolas fossem os descendentes das tribos perdidas de Israel: “Eles dizem que

São Tomé, que chamam Zomé, passou por aqui. Isto lhes foi dito por seus

antepassados. E que suas pegadas estão marcadas na boca de um rio, as quais eu

fui ver para ter certeza da verdade” (NÓBREGA, 1625, apud POMPA 2003).

Desta forma, uma pintura rupestre como a que pode ser observada na

fotografia 02 podia ser intencionalmente correlacionada, pelos indígenas, a eventos

da mitologia cristã, prestando-se, pois, à mediação religiosa e, conseqüentemente, à

reconfiguração cultural.

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Fotografia 2: Pintura rupestre que lembra mitos da cultura Ocidental. Fonte: acervo do autor.

2.6 VELHOS E PERSISTENTES, QUASE DOGMÁTICOS CONCEITOS

Dois fatores foram preponderantes para que as informações de origem

imaterial das sociedades antigas desaparecessem e hoje só possam ser refeitas,

como uma colcha de retalhos, graças à Arqueologia. Em virtude do quase

aniquilamento étnico e cultural imposto pelos colonizadores aos descendentes do

paleoíndio, não restou muito no âmbito da antropologia cultural e social para que se

possa fazer uma apreciação analítica e comparativa das culturas.

O segundo fator, mas não menos importante, está relacionado a crenças

religiosas e seus conceitos ideológicos8. Um desses princípios com caráter

8 Sistema de idéias (crenças, tradições, princípios e mitos) interdependentes, sustentadas por um

grupo social de qualquer natureza ou dimensão, as quais refletem, racionalizam e defendem os próprios interesses e compromissos institucionais, sejam estes morais, religiosos, políticos ou econômicos (Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, versão 2.0.- Abril – 2007).

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Page 35: CRÔNICAS RUPESTRES

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dogmático se refere à teoria do criacionismo9. Para as comunidades religiosas, em

especial aquelas de origem judaico-cristã, o universo e todos os seres vivos têm

pouco mais de 8.000 anos de existência. Portanto, a teoria da evolução das

espécies, idealizada por Charles Darwin, no século XVIII, não encontra abrigo no

seio desses líderes, e seus prosélitos, que continuam defendendo o criacionismo.

Assim, a negação da Ciência em benefício dos dogmas a respeito da origem

humana foi uma das razões pelas quais os estudos científicos das sociedades

arcaicas encontraram, no passado, forte oposição e, atualmente, ainda a encontra,

só que de forma silente e sub-reptícia. É também com muitas dificuldades que

pesquisadores conseguem espaço midiático para divulgação de novas e

insofismáveis descobertas que venham a contradizer convicções enraizadas.

Funari e Noelli (2006) dizem que, no Século XVIII, após a ascensão do

capitalismo e sua identificação com o termo “civilização”, a elite européia passou a

considerar, por contraposição, a expressão “barbárie” para designar as sociedades

diferentes culturalmente, em especial aquelas não envolvidas com o modo de

produção capitalista. Os povos, fora do eixo dito “civilizado”, buscaram então se

adequar aos novos costumes ou pareceriam “bárbaros”. O Marquês de Pombal, que

entre outras ações administrativas proibiu que se falasse a Língua Geral, ou

nenhengatu, no Brasil, foi quem melhor simbolizou esse período de aculturação

nacional.

O Brasil, “inventado” no Século XVI, e consolidado após 1822, tornou-se um

país com geopolítica, hábitos e cultura adequados aos ditames do Velho Mundo.

Desde então, muitas concepções, principalmente culturais, se estabeleceram como

verdade inquestionável e até hoje continuam sendo reproduzidos no meio

acadêmico. Um desses conceitos refere-se à pré-história.

9 Para a Igreja católica e outras instituições religiosas, doutrina baseada no Gênese bíblico, segundo

a qual o mundo foi criado por Deus a partir do nada, e todos os seres vivos tiveram criação independente e se mantêm biologicamente imutáveis (Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, versão 2.0.- Abril – 2007).

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Page 36: CRÔNICAS RUPESTRES

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Explicam Funari e Noelli (2006), que a definição de pré-história é uma

quando se trata do europeu e sua própria cultura, e outra quando relaciona o

europeu à cultura ameríndia. Estabelecido no Século XIX que a história é construída

a partir de documentos escritos, convencionou-se na Europa que a invenção da

escrita seria o início da sua história. As escritas gregas, egípcias e mesopotâmicas,

na falta de melhor conceituação, ficaram definidas como proto-história, ou primeira

manifestação histórica.

Não obstante que os maias usassem, principalmente no contexto religioso,

uma escrita bastante elaborada; ainda que os incas registrassem os acontecimentos

por um sistema de cordas chamado quipo; mesmo que as representações rupestres

do Brasil tragam semelhança com o simbolismo contido nos hieróglifos egípcios;

para o europeu, as Américas não possuíam história, ou sequer proto-história, até o

dia 12 de novembro de 1492.

O motivo de tal conceituação é muito bem esclarecido por Funari e Noelli

(2006, p. 13): “Os europeus chamaram a sua presença na América de “história” e

reservaram para todo o período que veio antes, o termo “pré-história””.

Durante quatro séculos, a arte parietal brasileira foi pouco ou mal estudada.

Mal estudada porque tinha como ponto de partida lendas de além-mar, ou o

pressuposto que se tratava de arte primitiva sem qualquer valor. Somente em

meados do século XX é que o enfoque dado ao estudo da pré-história brasileira

mudou.

A contribuição de pesquisadores como Pedro Paulo Funari, André Prous,

Anne-Marie Pessis, Niede Guidon, Gabriela Martin e Carlos Etchevarne, entre

outros, deram visibilidade merecida à Arqueologia pré-histórica e especialmente a

arte rupestre do Brasil, quebrando paradigmas e apontando novos caminhos.

Sem o contributo desses pioneiros trazendo uma nova visão, distanciada de

dogmas desgastados e bolorentos, não seria possível defender a tese que será

delineada no decorrer do próximo capítulo.

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3 HISTÓRIAS ESCRITAS NA PEDRA

Dado que o cerne da presente monografia é a análise das representações

rupestres, enquanto veículo narrativo e ideológico, os dois primeiros capítulos se

justificam como ferramenta de contextualização para o leitor. O objetivo é que depois

de ter lido os capítulos precedentes, já liberto das amarras do pré-conceito

eurocentrista, o leitor possa aceitar uma discussão mais ampla; estender um olhar

mais arguto sobre os signos e significados dos registros feitos sobre suportes

rochosos; um espaço democrático que o homem pré-histórico utilizou para narrar

histórias e deixar, gravado na pedra, sua visão de mundo:

Como premissa básica, deve se considerar que a arte rupestre constitui uma forma muito particular de compreender o ambiente, tanto natural quanto social, posto que ela aponta diretamente para um aspecto essencial das representações mentais das populações pretéritas; o simbolismo. (ETCHEVARNE, 2007, p.19)

Porém, ao passo que fascina bela beleza das imagens e grafismos pintados,

o simbolismo, linguagem só compreensível para quem conhece o código, se torna a

grande incógnita das pinturas rupestres. Não havendo parâmetros para descobrir o

que as inscrições significavam para seus autores e os grupos sociais que lhes foram

contemporâneos, toda apreciação é conjectural e traz, subjacente, a óptica do

analista.

3.1 PINTURAS RUPESTRES: UMA VISÃO SEMIÓTICA

De acordo com Pereira (2005, p. 29), “A mensagem pode ser definida como

ordenação ou combinação de signos visando transmitir informação”. Código é a

linguagem na qual a mensagem é transmitida. Toda mensagem é expressa numa

linguagem qualquer, ou seja, é codificada.

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Para que haja comunicação é preciso que o emissor use um código

conhecido pelo receptor. A língua conhecida por determinado grupo social é

constituída por signos que se inter-relacionam para formar uma regra lingüística; a

mensagem é a fala. O objetivo da mensagem é passar informações; um conteúdo.

Informação é, pois, o nome técnico que se dá ao conteúdo da mensagem.

Pereira (2005) ainda afirma que, de uma maneira bastante generalizante,

poder-se-ia resumir dizendo que comunicação, tecnicamente, é um processo

intelectual e físico, pelo qual uma mensagem contendo informação, e constituídas de

signos, é transmitida de um emissor para um receptor, através de um canal, sob

forma de sinais.

Há, entretanto, códigos “abertos”, em que a mensagem pode ser interpretada

de forma diferente por cada receptor. As pinturas rupestres são compostas por

pictografias10 e a chave para decifrá-las literalmente é considerada irrecuperável.

Assim, as representações rupestres são um exemplo de mensagem cujo leque de

interpretações é bastante amplo.

Esse conceito é esclarecido em Pereira (2005, p. 96): “A arte do desenho é

uma linguagem, as diversas habilitações do desenho, geométrico, caricatura, charge

artístico ou quadrinhos, são línguas (códigos de estilos) e cada desenho em

particular é uma mensagem”.

A escrita é uma linguagem verbal, mas também simbólica dado que ela não

tem semelhança alguma com o seu referente. Quando escrevemos o vocábulo

“árvore”, sabemos do que se trata por convenção, pois a palavra não retrata o

referente:

Os primórdios da escrita podem ser recuados até as gravuras e pinturas que o homem paleolítico deixou nas rochas e no fundo das cavernas há pelo menos 15 mil anos, pois, escrita é desenho, só que simbólico não figurativo (PEREIRA, 2005, p. 22).

10 Sistema primitivo de escrita em que se exprimiam as idéias por meio de cenas figuradas ou simbólicas (Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, versão 2.0.- Abril – 2007)

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É de se imaginar que no período pré-histórico o repertório lingüístico estaria

restrito a algumas dezenas, ou centenas de vocábulos. Neste caso, a narrativa

imagética, mais do que as palavras, constituiu-se em uma alternativa repleta de

recursos, um exponencial às interpretações. Por essa razão, ao invés de usar a

pictografia como ilustração a um texto, naturalmente inexistente, aplicava-se a

narrativa verbal como um complemento à narrativa imagética.

A utilização da imagem como elemento de composição de um relato é assim

circunstanciada por Etchevarne (2007, p. 21): “Desse modo, a arte rupestre deve ser

entendida como uma diversidade de sistemas de representações gráficas, com

regras próprias, em que as imagens se articulam para compor mensagens”.

Os signos se relacionam com seus referentes de três maneiras: física, por

semelhança ou convenção. Esta relação define os signos em três tipos: Índices,

ícones e símbolos. Um signo é icônico quando a qualidade da aparência é

semelhante à qualidade da aparência do objeto que representa. Assim a pintura de

um cervídeo, quando identificado como tal, é um signo icônico.

Quando o homem pré-histórico desenhou num paredão rochoso um cervídeo,

há possivelmente aí, além do caráter icônico, uma relação indicial, pois o cervídeo

não é a totalidade dos animais que habitam aquele ecossistema. Além disso, ainda

existe a possibilidade do uso simbólico da imagem. Para o intérprete da mensagem

contida nos grafismos parietais, as três configurações sígnicas podem ser

instrumentalizadas. A análise é subjetiva, porque intangível também pode ser a

mensagem, conforme ilustra Martin (2005, p. 239): “A imaginação humana e sua

capacidade de criar o pensamento abstrato nascem com a arte pré-histórica”.

A fotografia 3 é um bom arquétipo da riqueza sígnica contida em uma pintura.

Ela é uma imagem icônica porque perfeitamente identificável; indicial se o autor

pretendia sugerir que naquele entorno geográfico havia muitos animais daquela

espécie; simbólica, porque pode representar não o cervídeo, mas um seu atributo, à

exemplo da mobilidade, fazendo uma correlação com uma possível peculiaridade do

grupo social a que ele, o autor, pertencia.

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Fotografia 3: Cervídeo pintado em paredão. Fonte: Acervo do autor.

Convém ressaltar que os símbolos só possuem significados dentro de um

determinado contexto cultural. Importa dizer que só significam algo para quem detém

o conhecimento colateral e pode correlacioná-los com o seu referente. As pinturas

rupestres, se observadas individualmente, fora do contexto histórico-cultural, podem

conduzir o observador contemporâneo a fazer deduções tendo como parâmetro a

própria lente cultural:

Na maioria das vezes analisam-se as pinturas rupestres através do reconhecimento do mundo sensível, tendo como parâmetro a identificação icônica e os valores culturais de quem as interpretam. Essa análise dedutiva, não leva em conta a carga simbólica do signo, ao tempo em que foi produzido, ou o universo cultural de seus autores (PESSIS, 1984, p. 52).

Diante de qualquer imagem, evidencia-se, em primeiro lugar, o sentido

imediato, explícito, literal, denotativo. Mas pode haver os sentidos ocultos, implícitos,

metafóricos ou simbólicos da mensagem, que são os conotativos.

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Há uma constante busca de novos significantes para veicular significados. É

muito difícil traduzir em imagens significações abstratas tais como: amor, ódio,

felicidade e prazer. Para a maior parte destas situações, utilizam-se as

representações simbólicas. Não deve ter sido diferente com o homem pré-histórico e

sua tecnologia gráfica rudimentar. Diz Rocha (1985, p. 2): “O que marca o ser

humano é justamente sua particularidade de possuir e organizar símbolos que se

tornam linguagens articuladas, aptas a produzir qualquer tipo de narrativa”.

Partindo-se da premissa que as representações parietais são pictografias,

portanto, um sistema de escrita utilizando como suporte o pictograma, pode-se então

afirmar, bebendo na fonte da semiótica, que elas foram, e ainda é, uma forma de

comunicação visual indireta, pois o receptor não interage; tem a característica

unidirecional, dado que existe uma emissão de mensagem sem a contrapartida de

uma realimentação. Também é pública; logo, disponível à visualização de todos.

Pesquisadores já admitem que, no tempo em que foram produzidas, essas pinturas

ofereciam a seus contemporâneos a oportunidade de “leitura”:

Conseqüentemente, a arte rupestre apresenta como traço diferenciador com relação aos outros vestígios arqueológicos, a intencionalidade, isto é, o propósito deliberado de deixar mensagens gráficas em superfícies pétreas de forma a perdurarem no tempo a ponto de poderem ser lidas por grupos contemporâneos ou sucessores de quem a executou (ETCHEVARNE, 2007, p. 22).

Em face dos conceitos enunciados por pesquisadores e estudiosos, não seria

impróprio supor, por analogia, que as pinturas rupestres, da forma como se

dispunham à observação do público, tinha, em sua época, a mesma funcionalidade

informativa que hoje possui um outdoor ou uma mensagem grafitada em espaços

urbanos. Veja, por exemplo, a fotografia 04.

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Fotografia 4: Painel rupestre visível à distância. Fonte: Acervo do autor

Quando se fala em signos, sejam eles icônicos, indicais ou simbólicos,

sempre se procura evidenciar o seu caráter representativo. O signo, invariavelmente,

representa alguma coisa. Os grafismos registrados nas rochas, paredões e tocas

são denominados por pesquisadores como “Representações Rupestres”. Esta

designação deixa claro que cientistas acreditam na intencionalidade do homem

pretérito em legar à posteridade uma obra de arte, mas também uma concepção de

mundo, sua ideologia representada, de modo indelével, na pedra.

3.2 UM PROJETO GRÁFICO

Atualmente se contesta a adjetivação de “arte” para os grafismos rupestres;

considera-se que, para além do conceito artístico, as pinturas eram um meio pelo

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qual mensagens eram transmitidas. Entretanto, para a maioria dos arqueólogos, o

conceito de arte pode ser aceito desde que não implique em considerar as pinturas

rupestres apenas como uma manifestação artística:

O pintor que retratou nas rochas os fatos mais relevantes da sua existência tinha, indubitavelmente, um conceito estético do seu mundo e da sua circunstância. A intenção prática da sua pintura podia ser diversificada, variando desde a magia ao desejo de historiar a vida do seu grupo, porém, de qualquer forma, o pintor certamente desejava que o desenho fosse "belo" segundo seus próprios padrões estéticos. Ao realizar sua obra, estava criando Arte (MARTIN, 2005, p. 240).

As palavras “arte” e “artista” têm a mesma raiz latina que é “artesão”, sendo

arte o perfeito conhecimento de regras que permitem realizar uma obra adequada a

sua finalidade. Para Gaspar (2006), Do mesmo modo que um artista

contemporâneo, seja ele um cantor, coreógrafo, escritor ou pintor, pretende que sua

arte, além de encantar os sentidos, leve uma mensagem ao público, não era outro o

objetivo final do homem que, há 9.000 anos, desenhou na pedra os sinais pictóricos.

Embora apresente padrões repetitivos, nos moldes de uma linguagem

reconhecível, reproduzir o pensamento abstrato, operar com qualidades e não

apenas com a realidade sensível é, reconhecidamente, uma característica da pintura

rupestre:

Da mesma forma que não há duas obras de arte iguais, a não ser quando se trata de cópia ou plágio, não há também dois painéis rupestres repetidos, pois o que se repete são as idéias e os comportamentos, plasmados graficamente e de forma subjetiva. (MARTIN, 2005, p. 238).

Uma frase da maior importância, para que se possa entender a inter-relação

entre o homem e a ferramenta que usa para veicular uma informação, foi

sentenciada por McLuhan (1996): “O meio é a mensagem”. O autor aponta uma

equivalência entre forma e conteúdo na transmissão da informação. Essa paridade

coloca em evidência que o humano modela ferramentas que também o modelam. O

homem dá forma a novos instrumentos e novas ferramentas que lhe serão úteis para

transmitir informação e conhecimento. Não apenas o produto, mas, igualmente, os

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meios utilizados. A pintura rupestre é um meio de comunicação que delineia o

homem e seu horizonte cultural.

Os registros rupestres, tendo como suporte gráfico a rocha, compõem o que

Martin (2005) denomina de “painel gráfico”. Segundo a arqueóloga, a forma como as

pinturas eram dispostas nos paredões, a escolha de determinadas figuras, a seleção

de um local em detrimento de outro no mesmo sítio arqueológico, faziam parte do

código comunicacional e eram fator preponderante para perfeito entendimento da

mensagem. Há, no entanto, quem vá além e qualifique esse arranjo estético como

parte integrante de um projeto gráfico.

As formas arquitetônicas do suporte rochoso (elementos naturais como parede, teto e piso) são partes compositivas do projeto gráfico. [...] Assim a combinação entre o suporte e os temas pintados pode resultar, em certos casos, em composições de grandes efeitos visuais. [...] Com isso pode-se imaginar que houve por parte dos autores do grafismo uma planificação que incorporasse os elementos topográficos de tal modo que os motivos resultantes pudessem provocar a sensação ótica de profundidade (ETCHEVARNE, 2007, p. 108).

A rocha enquanto veículo informativo, o tema retratado, os pigmentos, a

obtenção e preparação dos minerais; os instrumentos e habilidade manual no

exercício do traço foram componentes primordiais, e levados em consideração, no

momento em que o homem pré-histórico idealizou um projeto gráfico. Sua

tecnologia, ainda que precária, considerando os padrões atuais, não foram

impeditivas para a execução da obra. Desde o suporte até os materiais empregados,

tudo foi devidamente apropriado pelo artista, formando um único corpus, onde o

meio também é a mensagem.

O exemplo da fotografia 05 é bastante demonstrativo deste planejamento

estratégico. Basta observar que o autor da pintura, ao idealizar o projeto gráfico,

valeu-se da inclinação e protuberância do suporte rochoso para transmitir a

impressão visual que as aves estão em movimento descendente e, a primeira delas,

da esquerda para a direita, na iminência de efetuar um salto.

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Fotografia 5: Suporte rochoso contribui para composição da cena. Fonte: Acervo do autor.

A engenhosidade do autor dessa pintura, sugerindo uma idéia de movimento,

é apenas um dos aspectos das pinturas rupestres. Há padrões estilísticos. Tal

padronização reforça a hipótese da existência de um código imagético capaz de

alçar as representações rupestres à semelhança de texto lingüístico:

Ainda que não possam ser identificadas as circunstâncias sociais específicas em que as pinturas e gravuras foram executadas, os dados conseguidos permitem pensar que esses códigos imagéticos poderiam ser acionados nas mais diversas situações. [...] Isso significa que os motivos pintados, ou gravados, englobados na denominação de arte rupestre teriam sido aplicados com funções variadas da maneira que se emprega a escrita na sociedade moderna (ETCHEVARNE, 2007, p.11).

A disposição espacial das pinturas, as espécies específicas de animais

representados em detrimento de outros, cores e movimentos; essa conjunção de

fatores leva o observador dos painéis rupestres a supor que está diante de um livro

cujo texto lhe foge à compreensão.

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3.3. O PARADIGMA IMAGÉTICO

Diz Pessis (1992) que em sítios arqueológicos disseminados por quase todo o

território brasileiro, com maior ênfase na Região Nordeste, cientistas e

pesquisadores têm identificado padrões estilísticos e estéticos nas representações

rupestres. Essa similitude de estilo, pigmentação, temática; tipo, estatismo ou

movimento das figuras dentro de um painel, faz com que arqueólogos identifiquem

três classes principais de pinturas, designando-as com o termo “tradição”: Nordeste,

Agreste e Geométrica.

O que se procura estabelecendo tradições é a integração de obras gráficas

pertencente a um mesmo grupo cultural independentemente de unidade cronológica.

Segundo Martin (2005, p. 234): “O conceito de tradição compreende a representação

visual de todo um universo simbólico primitivo que pode ter sido transmitido durante

milênios”. As tradições são definidas conforme os tipos de figuras presentes e as

proporções relativas que existem entre os diferentes grafismos que compõem um

painel; confirmando assim, a existência de um sistema coerente, um código

comunicacional, nas representações rupestres.

Para Etchevarne (2007), na Tradição Nordeste, a mais antiga das tradições,

com aproximadamente 8.000 anos, predomina figuras humanas e de animais,

formando conjunto com grande expressividade narrativa e riqueza cênica. Seu

estudo permite a reconstrução de aspectos da vida das comunidades humanas na

pré-história. O dinamismo das figuras, apresentadas em múltiplas atividades sociais,

parece haver a intenção de retratar, da forma mais identificadora possível, situações

coletivas de caça, coleta, lutas, sexo, dança, brincadeiras e rituais.

Nessa tradição, as figuras estão sempre em movimento, às vezes possuídas

de uma grande agitação, com o rosto de perfil e como se gritassem. Os

antropomorfos são bem elaborados com traços finos, firmes e definidos. As

fotografias 06 e 07, capturadas no sítio arqueológico denominado Toca da Tartaruga,

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em Morro do Chapéu, Bahia, demonstram alguns dos traços peculiares a essa

tradição.

Fotografia 6: Caçador. Fonte: Acervo do Autor Fotografia 7: Ritual. Fonte: Acervo do autor

Entre as características identificadoras das tradições, uma das mais

importantes é a temática. Há alguns temas que se repetem no tempo e espaço,

podendo ser encontrados desde o Piauí até a Bahia:

Podemos afirmar que, todavia, há unanimidade em reconhecer como elementos chave identificatórios de uma tradição a temática e como essa temática vem a ser representada, identificando-se nela certos grafismos emblemáticos ou “heráldicos” que representam uma ação não reconhecível que se repete em numerosos sítios (MARTIN, 2005, p. 235).

Os grafismos “heráldicos” estão presentes em vários sítios, às vezes

afastados por distâncias superiores a mil quilômetros e são paradigmáticos. Tais

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grafismos “padronizados” seriam como gavetas que contêm imagens semelhantes

entre si, uma linguagem estilizada, produzida a partir de uma “enciclopédia

imagética”. O autor buscará, de forma subjetiva, aquelas que mais se aproximam de

sua ideologia e, combinando-as, produzirá um sentido, um sintagma, que dentro de

um determinado contexto, transmitirá uma mensagem, bem como suas conotações.

A fotografia 08 é de um desenho localizado no Piauí. Já a imagem 09, foi fotografada

na Bahia. É possível notar o alto grau de semelhança entre elas. Os dois desenhos

compreendem a Tradição Nordeste e são denominados, por pesquisadores e

arqueólogos, de “Cena da árvore”, no que parece um ritual de adoração a um

vegetal.

Fotografia 8: Cena da árvore. Fotografia 9: Cena da árvore Fonte: Acervo Fundação Museu do Homem Fonte: acervo do Autor Americano (FUMDHAM)

Na Tradição Agreste, os motivos zoomorfos ou antropomorfos, isolados ou

agrupados, não compõem cenas com ações reconhecíveis. A extensão territorial

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onde são encontrados inclui também a Bahia. São figuras cheias, ou com contornos

de traços largos nas quais se reconhecem as partes principais dos corpos: cabeças,

troncos e extremidades. Algumas são de grande tamanho. Há ainda palmas de mãos

pintadas, ou tipo carimbo.

Para Etchevarne (2007), o caráter mais recente desta tradição pode ser

comprovado através das superposições sobre a Tradição Nordeste. As fotografias 10

e 11 exemplificam essa tradição pictórica.

Figura 10: Tradição Agreste Figura 11: Palma de mão Fonte: Acervo do autor Fonte: Acervo do autor

A Tradição Geométrica, também encontrada na Bahia, é marcada pelo caráter

geometrizante e chega a predominar nos painéis. Podem estar presentes zoomorfos

e antropomorfos estilizados, porém identificáveis, como lagartos e tartarugas. A

fotografia 12 constitui um exemplo dessa tradição.

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Para Etchevarne (2007, p. 31) “A Bahia foi um meeting point, ou seja, um

local de encontro, de tradições culturais diferentes, no período pré-histórico”. Num

exercício de abstração, é possível supor que, desde épocas pretéritas, o que hoje

designamos de Estado da Bahia, foi um ponto de convergência de diversidades

étnica e racial, característica que ainda hoje permanece como referência cultural.

Fotografia 12- Figura geométrica que sugere sensualidade. Fonte: Acervo do autor

Tendo como ponto de partida as asserções, já enunciadas por pesquisadores,

que as representações rupestres são uma linguagem imagética, ainda que

intraduzível; que tinham como função transmitir mensagens, ou seja, informações

através da arte pictórica, não há como obstar que os grafismos parietais, exerceram

funções estéticas, mas, principalmente, reforçaram práticas educativas e utilitaristas:

A capacidade de contar também leva o homem a fazer riscos nas pedras e nas paredes rochosas numa fase pré-estética. Lembro aqui Johann Winkelmann na sua clássica obra “História da Arte na Antiguidade”, escrita em 1763, quando afirma que as artes que dependem do desenho começaram pelo utilitário para passar depois ao supérfluo. Comentário que também é válido para reflexão sobre as origens da arte pré-histórica (MARTIN, 2005, p.240).

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Page 51: CRÔNICAS RUPESTRES

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As pinturas também tinham como função informar aquilo que a linguagem

verbal não conseguia; como ocorre ainda hoje, onde nem tudo que nos transmitem e

apreendemos é recebido por meio exclusivamente, verbal. Além disso, era ainda

uma forma de perpetuar um ensinamento ou ideologia.

3.4 CRÔNICAS11 RUPESTRES

A prática de escrever em superfícies pétreas não se extinguiu junto com a

cultura dita pré-histórica. Os milênios seguintes continuaram a ver o homem

utilizando paredões, rochas, paredes e muros para transmitir informações. O hábito

de registrar o pensamento em pedras e paredões tem longa duração e diferentes

significados. Avisos institucionais ainda são escritos nos chão das rodovias com

intuito de orientar os motoristas; tribos urbanas grafitam fachadas de prédios e

muros para demarcar território. Segundo Gaspar (2006), essas sinalizações

possuem em comum a necessidade humana de transmitir doutrinas pertinentes ao

grupo que as realizou e seus contemporâneos.

Atualmente, para além do suporte rochoso e muros existem outros veículos,

que a tecnologia e engenhosidade humana criaram para transmitir mensagens. Há

produtos impressos em geral, outdoors, sistemas de radiodifusão e redes virtuais.

Porém, a finalidade continua a mesma ao longo dos séculos, ou seja: educar,

instituir, narrar, reportar, promover e entreter. Numa única palavra: informar.

O arqueólogo Carlos Etchevarne não tem dúvidas de que as pinturas

rupestres objetivavam transmitir mensagens de múltiplas finalidades:

11 Texto jornalístico redigido de forma livre e pessoal, e que tem como temas fatos ou idéias da atualidade, de teor artístico, político, esportivo, etc., ou simplesmente relativos à vida cotidiana (Novo Dicionário Eletrônico Aurélio versão 5.0, 2004).

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Assim, a escolha de um determinado setor da paisagem para representar graficamente poderia estar relacionado com as necessidades práticas ou ideológicas de um grupo, que faria uso das imagens para um bom número de funções tais como registrar acontecimentos (cotidianos ou extraordinários); transmitir experiências; delimitar territórios; ritualizar, com fins propiciatórios ou funerários; comemorar eventos, individuais ou coletivos; homenagear personagens; narrar fatos históricos ou míticos; sistematizar contagens; indicar vias de percurso; assinalar ciclos sazonais ou outros períodos; classificar e hierarquizar o ambiente envolvente (ETCHEVARNE, 2007, p. 21).

Ora, considerando o que assevera Etchevarne, na epígrafe acima, é possível

inferir que dentre as finalidades das pinturas rupestres, algumas se enquadram

numa configuração social contemporânea, abrangendo a noção de evento noticioso

e agente noticiador, cujo produto final é denominado notícia.

A narrativa, registro dos acontecimentos para conhecimento público, é uma

ação noticiadora. Mesmo em um período cronológico que tais conceitos não se

definiam, não obsta a sua ocorrência ainda que de modo inconsciente, mas com

finalidade precisa, independentemente de qualquer conhecimento institucionalizado.

Ouvir histórias e reproduzi-las para outrem é inerente ao humano, razão da

existência do jornalismo, onde sempre há o fato, o agente divulgador e aquele que

anseia pela informação:

Feiticeiros, pajés ou simplesmente contadores de estórias, podem ter sido os responsáveis pela transmissão do conhecimento e dos mitos depois representados nas pedras [...] quantas vezes os grafismos, que depois serão registrados nas pedras durante milênios, não foram antes esboçados na areia por algum “contador de estórias”? (MARTIN, 2005, p. 301).

Considerando ainda que o presente estudo intenta identificar um viés

noticioso nas pinturas rupestres, poder-se-ia questionar que, para dar rigor científico

a esses pressupostos, seriam necessários parâmetros que enquadrem as

representações parietais e conduta de seus autores em quaisquer das Teorias do

Jornalismo. Não obstante a distância cronológica e histórico-cultural entre as

manifestações culturais pré-históricas e os dias atuais, ainda é possível conjeturar

sobre os conceitos de notícia, critérios de noticiabilidade e Teoria Organizacional.

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Para Traquina ( 2001, p. 94), “As notícias são o resultado de um processo de

produção definido como a percepção, a seleção e a transformação de uma matéria-

prima (principalmente os acontecimentos) num produto”. É possível contextualizar

“produto” como algo que passou por um processo de elaboração que valorou o

acontecimento e tornou-o atraente. A matéria prima (acontecimento), convertida em

relato imagético, por exemplo, é um produto.

Lage (2001) relaciona algumas das principais causas determinantes de uma

notícia enquanto valor; são elas: novidade, qualidade, proximidade geográfica,

proeminência, negativismo, atualidade, impacto, conseqüência, identificação social e

identificação humana. Dentro desse quadro de valores, é possível imaginar que os

quesitos identificação social, proeminência, impacto e identificação humana estariam

entre os critérios de noticiabilidade de um cronista ou contador de histórias em

qualquer tempo.

Para a pintura rupestre, o critério de novidade podia, em muitos casos, não se

adequar como valor-notícia; entretanto, se enquadrava perfeitamente como

atualidade; intrínseco ao tempo, espaço e cultura dos autores e intérpretes da

mensagem:

As pinturas, ainda, indicavam o mundo em que os artistas e seus receptores viviam. Transmitindo as posições políticas e estéticas dos grupos em suas imagens. Os valores filosóficos, morais e religiosos a serem seguidos pelas sociedades. Visto que nas imagens observamos caminhadas, cerimoniais, rituais, sexo, trocas, entre outros motivos sociais dos grupos (MARCONDES, 1997, p. 64).

O fundamento de proximidade geográfica não se aplica ao caso das pinturas

rupestres porque é impossível, atualmente, mensurar o público “leitor” e sua

localização espacial. Vale lembrar também que a crônica é um gênero jornalístico

atemporal; e esse talvez seja o gênero que mais adequado às representações

rupestres, haja vista que são narrativas do cotidiano, inerentes ao autor, sua cultura

e seu meio social.

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Page 54: CRÔNICAS RUPESTRES

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Relacionar o ato de produção de mensagens imagéticas pré-históricas à

Teoria Organizacional, cinqüenta ou sessenta séculos antes de ela ter sido

formulada, pode parecer despropositado. E realmente seria; caso se tentasse

estabelecer paralelos entre construções sócio-culturais dessemelhantes. As

sociedades pré-históricas, como esclarecido por Martin (2005), não estavam

divididas em classes, não eram hierarquizadas; ao passo que as sociedades atuais,

em sua maioria, são hierarquizadas e envolvidas com o modo de produção

capitalista, portanto, sujeitas aos ditames e constrangimentos organizacionais.

Todavia, se num exercício de abstração e alteridade, o leitor, distanciando-se

do meio envolvente, observar as relações sociais pré-históricas verá que alguns dos

conceitos inerentes à Teoria Organizacional são aplicáveis àquele contexto sócio-

cultural pretérito. Basta que o vocábulo “organização” seja compreendido como as

limitações envolvendo o autor das pinturas e as relações interpessoais que

mantinha. Traquina ( 2001) aponta o que interfere na produção noticiosa:

Antes de produzir uma notícia, o repórter leva em conta os constrangimentos organizacionais, as convenções culturais, necessidade de continuar bem relacionado com as fontes, desejo de audiência e até condições favorecedoras ou limitantes para o desempenho da tarefa (tecnologia disponível) (TRAQUINA, 2001, p.95).

Ora, convenções culturais, necessidade de agradar os indivíduos porventura

retratados nos grafismos, limitações tecnológicas e desejo de audiência seriam

condições restritivas também para o cronista pré-histórico. Muito provavelmente,

pessoas do mesmo grupo social, ou familiar, não seriam retratadas em posturas ou

ações desfavoráveis. Essas referências desabonadoras deviam estar reservadas a

inimigos. Assim, poder-se-ia dizer que a Teoria Organizacional, guardando a devida

proporção tempo-cultural, também se aplica ao autor das representações rupestres.

Ele sabia que as imagens produzidas eram compartilhadas socialmente e

necessitava da aprovação de seus pares.

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Os artistas das pinturas já tinham uma ideologia formada a respeito de como agir, pensar e reagir neste mundo. Isto porque eles transmitiam seus intuitos por meio destas imagens. Imagens que eram socialmente compartilhadas (MARCONDES, 1997, p.65).

Igualmente, o próprio conceito de notícia, imaginado por Alsina (1996 p. 185),

já indica a existência de algum tipo de constrangimento social: “Notícia é uma

representação social da realidade cotidiana produzida institucionalmente e que se

manifesta na construção de um mundo possível”.

A fotografia 13 retrata o que Martin (2005) considera um provável relato de

combate intertribal, onde os inimigos são mortos e suas mulheres estupradas. O

detalhamento das imagens realmente permite que se faça a leitura, embora

extemporânea, de um evento singular.

Fotografia 23- Cena de batalha e estupro de mulheres: Fonte: FUMDHAM

Uma definição sobre o caráter institucional dos grafismos rupestres, que mais

parece fazer referência a uma organização jornalística, pode ser lida em Etchevarne

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55

(2007. p. 23): “[...] a arte rupestre fica entendida como um sistema de representação

gráfica, o que implica o reconhecimento que se trata de um veículo visual

estruturado e socializado.”

Assim como no jornalismo e seus critérios de noticiabilidade, os autores das

pinturas rupestres apenas nos fizeram conhecer os acontecimentos que

consideravam relevantes, passíveis de ter um valor informativo e também que

estavam de acordo com os seus valores e crenças. Registraram na pedra,

conscientemente e de forma indelével, a história de seu tempo, sua gente e cultura.

E muito provavelmente, de forma irrefletida, também produziram as primeiras

experiências noticiosas em terras brasileiras.

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CONCLUSÃO

Para fundamentar a hipótese que permeia esta monografia, fez-se

necessária uma pesquisa, ainda que superficial, sobre a origem dos primeiros

habitantes do Brasil e etnias que os sucederam. À medida que algumas camadas

superficiais da história eram removidas e conseguia-se apropriar das verdades

subjacentes às versões institucionalizadas, o tema se apresentou tão inquietante

que fez jus a referências no segundo capítulo da monografia. Porém, tanto quanto

os eventos passados, inquietante também é a morosidade de ações corretoras no

presente.

Até mesmo por necessidade de afirmar a posse e domínio das novas terras

além-mar, é compreensível que os europeus definissem o conceito de História do

Brasil a partir de sua chegada às terras recém ocupadas. Também é sabido que

valores religiosos e humanitários diferem com o tempo, e as etapas culturais que

dele resultam, num processo contínuo de reconfiguração social.

Sem intenções reducionistas para uma questão passível de ampla discussão,

é possível alongar um olhar ao passado e buscar entender outro tempo, outra

cultura. Contudo, urge que o meio acadêmico nacional acelere o processo de

quebra de paradigmas, e desqualifique os velhos conceitos sobre pré-história e

história brasileira. A ausência de uma profunda revisão da historiografia brasileira

reflete negativamente nos sítios arqueológicos: um patrimônio cultural brasileiro que

sofre um processo implacável de degradação provocada por intempéries, ou ação

danosa de pessoas que desconhecem o seu valor enquanto elementos de

reafirmação da identidade nacional.

A leitura semiológica apontou, no decorrer da pesquisa, para um universo de

signos, significantes e significados capazes de justificar os grafismos rupestres como

uma linguagem simbólica portadora de mensagens consistentes e passíveis de

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leitura pelos contemporâneos de quem as escreveu. Palavras, gestos e desenho,

por exemplo, são signos primários, pois foram criados pelo homem com este

objetivo. Entretanto, coisas podem ganhar status de signo: o arroz é um alimento,

mas usado nas cerimônias de casamento como símbolo da fertilidade. Uma árvore

pode ser transformada em símbolo da natureza, e assim, passa a ser um signo

secundário, transmissor de uma mensagem dentro de determinado contexto cultural.

A mensagem imagética tem como característica ser mais emocional do que

referencial; mais subjetiva do que objetiva. É polissêmica e conotativa por natureza,

e como tal depende muito da interpretação. No que concerne às representações

rupestres, faltam parâmetros para interpretá-las em sua inteireza, mas, mesmo

assim, é possível identificá-las como um meio, um instrumento comunicacional.

Entende-se que as pinturas rupestres foram uma importante ferramenta

social, capaz de garantir a transmissão cultural e pedagógica da época, além de

contribuir para a interação e a relação entre humanos, e destes com a natureza. Por

isso, este estudo buscou representar e documentar tais pinturas, relacionando seu

caráter pictórico e imagético à necessidade de comunicação do homem.

Por fim, espera-se que os resultados colhidos com a pesquisa bibliográfica e

a profícua pesquisa de campo não deixem dúvidas de que os primeiros

colonizadores do solo brasileiro, em especial da Região Nordeste, deixaram um

legado, registrado na pedra, que transcende a arte, o utilitarismo, o religioso e o

educativo. As representações rupestres são, sobretudo, um documento histórico-

noticioso. Crônicas sobre os hábitos, costumes e ideologias de uma sociedade sem

hierarcas. São relatos anônimos, de contadores de histórias, que descreveram esta

terra e sua gente, muito antes do português Pero Vaz de Caminha lavrar a suposta

“certidão de nascimento” do Brasil.

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