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IMPRESSÕES DE “BARROCO”: A PRODUÇÃO EDITORIAL DO INSTITUTO DO PATRIMÔNIO
HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL (1937-1978)
Felipe Esteves Lima Maciel
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História.
Orientador(a): Andrea Daher
Rio de Janeiro Abril de 2009
ii
IMPRESSÕES DE “BARROCO”: A PRODUÇÃO EDITORIAL DO INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HIS TÓRICO
E ARTÍSTICO NACIONAL (1937-1978)
Felipe Esteves Lima Maciel
Orientador(a) : Andrea Daher Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em História Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História. Aprovada por: _______________________________ Presidente, Prof. Dr. Andrea Daher _______________________________ Prof. Dr. Maria Aparecida Rezende Mota _______________________________ Prof. Dr. José Reginaldo Santos Gonçalves
Rio de Janeiro Abril de 2009
iii
MACIEL, Felipe Esteves Lima. Impressões de “barroco”: a produção editorial
do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico (1937-1978). / Felipe Esteves Lima Maciel. Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS/ PPGHIS, 2009.
xi, 138 f.; 31cm. Orientadora: Andrea Daher Dissertação (Mestrado) – UFRJ/ IFCS/
PPGHIS, 2009. Referências bibliográficas: f. 133-138. 1. Barroco. 2. Patrimônio. 3. IPHAN. 4.
Modernismo. I. DAHER, Andrea. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/ PPGHIS. III. Título.
iv
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer primeiramente à FAPERJ, pelo auxílio financeiro prestado para a execução deste trabalho, tornando-o possível. Que muitas outras pesquisas tenham a mesma fortuna. Agradeço imensamente à minha orientadora, Andrea Daher. Não só pela orientação fornecida, mas por todo o apoio, compreensão e incentivo que recebo. À professora Maria Aparecida Mota: pelo aprendizado em sala de aula, pela correção impecável que lhe é característica, pela experiência de organizar eventos e trabalhar em equipe. Agradeço também aos professores Manoel Salgado Guimarães e Ricardo Benzaquen Araújo pelos cursos oferecidos e a oportunidade de aprender sempre um pouco mais. Aos funcionários do Arquivo Central e Biblioteca Noronha Santos do IPHAN, sempre muito prestativos. Aos funcionários da COPEDOC. Ao belo grupo que se formou da convivência nesse tempo de mestrado: André de Lemos, Ivan Norberto e Márcio Romão. Nossas trocas acadêmicas, literárias, musicais e outras tornam essa vida um pouco mais interessante. Aos amigos Kimon Speciale e novamente André de Lemos, presentes desde o primeiro ano de graduação. Quase uma década depois, é um enorme prazer tê-los ainda a meu lado. A todos os amigos queridos desse caminho já percorrido no IFCS: Cláudio Vasconcellos, Henrique Gusmão, Joanna de Vasconcelos, Lainister Esteves, Maria Cristina Martins, Maria Eugenia Gay, Paulo Duarte, Priscila Falci, Renata Borges, Régis Argüelles, Tatiana Lomba, Thiago Porto. Se esqueci de alguém, me desculpem. Ao amigo Eduardo Derbli, irmão pela longa amizade construída e por estar sempre presente. Ao amigo Lourenço Astua, pelas conversas as mais improváveis. Mas gostaria de agradecer, acima de tudo, à minha família, pelo apoio que encontrei quando mais precisava, pelo amor que sempre recebi. Entre os meus, sempre encontrei pouso. Aos primos Bruno Lima e Aroldo Esteves, especialemente, pelas experiências musicais e apresentações cidade afora. Sem a MystiCow tudo seria mais difícil, tenho certeza. É preciso criar e improvisar para manter a sanidade. E por último agradeço à Fernanda, amada companheira que acompanhou de perto essa jornada. Obrigado pela força e pelas palavras e gestos de conforto.
v
RESUMO
IMPRESSÕES DE “BARROCO”: A PRODUÇÂO EDITORIAL DO INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E
ARTÍSTICO NACIONAL (1937-1978)
Felipe Esteves Lima Maciel
Orientador(a): Andrea Daher
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação
em História Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História.
Esta pesquisa analisa a apropriação do conceito de “barroco” feita pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, entre os anos de 1937 e 1978, na constituição de um patrimônio da nação brasileira, isto é, a seleção de um passado e de uma origem para a nação. Se durante o século XIX brasileiro o conceito de “barroco” era visto em geral de maneira negativa, a criação do IPHAN inseriu-se num processo de revalorização do passado colonial e do próprio conceito. Para a análise dos discursos produzidos acerca de “barroco”, foi selecionada a produção editorial do IPHAN, locus de definição, análises e divulgação dos exemplares de uma “arte barroca brasileira”. Assim, o objetivo aqui proposto é a descrição dos usos desse conceito em um projeto conduzido por uma instituição que, por um lado, possui uma visão romântica da nação brasileira, formulando mitos de origem e criando heróis, no que se destaca o Aleijadinho. Por outro lado, os quadros do IPHAN são preenchidos majoritariamente por modernistas, o que produz uma visão particular desse passado e sua relação com o presente, o que pode ser observado no discurso de Lúcio Costa, importante teórico do IPHAN e reconhecido arquiteto modernista. Palavras-chave: Barroco; Patrimônio; IPHAN; Modernismo
Rio de Janeiro Abril de 2009
vi
ABSTRACT
“BAROQUE” IMPRESSIONS: THE EDITORIAL PRODUCTION OF INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO
E ARTÍSTICO NACIONAL (1937-1978)
Felipe Esteves Lima Maciel
Orientador(a): Andrea Daher
Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação
em História Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História. This research examines the appropriation of the term “baroque” by the Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico – IPHAN, between the years 1937 and 1978, in the development of a heritage for Brazilian nation, it is, the selection of a past and a source for the nation. If during the Brazilian nineteenth century the concept of “baroque” was generally seen in a negative way, the creation of IPHAN is part of a process of revalorization of the colonial past and the very concept. For the analysis of discourses produced about “baroque” was selected the editorial production of IPHAN, locus of definition, analysis and dissemination of models of a “Brazilian baroque art”. The objective proposed here is the description of the uses of that concept in a project led by an institution which, on one hand, has a romantic vision of the Brazilian nation, making myths of origin and creating heroes, as it highlights the Aleijadinho. On the other hand, the tables of IPHAN are populated mostly by modernists, which produces a particular vision of the past and its relation to the present, as we can observe in the speech of Lúcio Costa, an important theoretical of IPHAN and recognized modernist architect. Key-words: Baroque; Heritage; IPHAN; Modernism
Rio de Janeiro Abril de 2009
vii
SUMÁRIO
Introdução 9 1 A via “barroca” 14 1.1 Juízos de “barroco” 14 1.2. Neocolonial e Modernismo 35 1.3 A criação do IPHAN 47 2 Representações do “barroco” na produção editorial do IPHAN (1937 – 1978) 54 2.1 A Revista do IPHAN 54 2.1.1 Tipologia: criação, objetivos, autores e público 54 2.1.2 “Barroco” como mito de origem e “barroco” como “boa tradição” 58 2.2 A série Publicações do IPHAN 84 2.2.1 Tipologia: criação, objetivos, autores e público 84 2.2.2 Inventário do patrimônio barroco: Minas Gerais do século XVIII 93 3 A biografia de Aleijadinho 3.1 Representações do Aleijadinho nas páginas da Revista 104 3.2 A biografia de Rodrigo Bretas 109
9
Introdução
O conceito de “barroco” foi usado de maneiras as mais diversas na cultura
brasileira, orbitando em torno da questão do nacional. Um caso exemplar, e polêmico,
diz respeito à definição de literatura brasileira; particularmente a partir da obra
Formação da Literatura Brasileira, de Antonio Candido1. Nesta, Candido afirmava que
a “literatura propriamente dita” surge apenas após 1750, quando se configura o
triângulo autor-obra-público, classificando a produção letrada anterior como
“manifestações literárias”, aspectos da literatura portuguesa, o que invalida sua
participação nos “momentos decisivos” de formação da literatura brasileira. De certa
forma, despreza o papel, por exemplo, de Gregório de Matos, personagem-chave nas
construções do “literatura barroca brasileira”. Contras as concepções acerca de
“barroco” ali expostas, manifestaram-se Afrânio Coutinho2 e Haroldo de Campos3.
Para Coutinho, um homem novo estabelece-se no território da colônia brasileira,
“desde o primeiro instante em que o europeu aqui pôs o pé”4. Dessa forma, desde o
princípio da colonização, pelo contato com esse mundo novo, esse homem novo teria
produzido uma literatura nova, vale dizer brasileira. Estabelece-se, assim, uma visão
teleológica da nação brasileira, que embora se consolide como tal apenas no século
XIX, já o era desde o início da ocupação portuguesa.
Para Campos, a literatura brasileira teria sua “origem vertiginosa” em Gregório
de Mattos, origem “barroca”, “início pronto”. Constrói a imagem de um poeta de
vanguarda, maldito, através da qual estabelece uma linhagem, que caberia à poesia
1 CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira (momentos decisivos). 2vols. São Paulo: Livraria Martins, 1959. 2 COUTINHO, Afrânio. Conceito de literatura brasileira - ensaio. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1960. 3 CAMPOS, Haroldo de. O seqüestro do barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório de Matos. Salvador: Fundação Casa Jorge Amado, 1989. 4 COUTINHO, Afrânio. Op. Cit. p.18
10
concretista – da qual fazia parte o próprio Campos – recuperar. Mais à frente, Campos
entraria em nova polêmica, agora com João Adolfo Hansen, por ocasião da publicação
da tese deste último sobre a poesia satírica produzida na Bahia durante o século XVII, A
sátira e o engenho5.
A polêmica teve como cenário o jornal Folha de São Paulo, especificamente o
suplemento literário Mais!. O texto de Hansen, intitulado “Floretes agudos e porretes
grossos”6, em torno do livro A Sátira e o Engenho, aborda o tema a partir de uma
arqueologia das práticas de representação, produção e recepção coloniais, recusando a
universalidade transistórica de “barroco” e apropriações exteriores e anacrônicas, como
afirma a seguir:
Hoje, apropriações de “Gregório de Matos”, classificação de um
corpus poético colonial, ainda fazem o nome reencarnar-se
retrospectivamente no seu tempo, o século 17, como um indivíduo
liberal-libertino-libertário a profetizar o advento do “Barroco” e dos
“neo-Neo” no retrô geral desse fim de século. 7
Haroldo de Campos, em artigo intitulado “Original e revolucionário”8, critica a
posição de Hansen retomando sua teoria de “seqüestro do barroco”9, anteriormente
aplicada a Antonio Candido. Segundo Campos, Candido retirava o barroco da história
da literatura brasileira10, e Hansen cometia crime análogo:
Só mesmo a contingência de terem permanecido os poemas de Gregório em estado de apógrafo pode explicar a ligeireza, a facilidade com que o mais recente necrologista gregoriano reduz o poeta à condição espectral de ‘etiqueta’ nominativa. 11
5 HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho. Gregório de Matos e a Bahia do Século XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 6 Publicado em 20 de outubro de 1996 7 Trecho extraído da matéria publicada. 8 Publicada em 20 de novembro de 1996 9 Cf. CAMPOS, Haroldo de. O seqüestro do barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório de Matos. 10 Cf. CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira (momentos decisivos). 11 Trecho extraído da matéria publicada.
11
A crítica de Campos baseava-se, assim, na suposta negação de uma
individualidade “genial e revolucionária” – presente desde o título do artigo – do poeta.
Hansen, no entanto, passa ao largo deste tipo de crítica: seu texto discute justamente
como o presente naturaliza apropriações a posteriori da produção do século XVII, no
caso específico, Gregório de Mattos, desconsiderando as condições de produção e
recepção então vigentes.12
A pesquisa de Hansen é, dessa forma, motivação central para essa dissertação.
Através dos seus estudos, “barroco” é retirado de uma tradição de apropriações livres e
compreendido como etiqueta classificatória para descrever os resíduos de um passado
que nos chegam atualmente. Assim, se não buscamos uma definição dos sistemas de
representação vigentes nas artes selecionadas como patrimônio pelo IPHAN, as
reflexões de Hansen produzem o estranhamento necessário que orienta o trabalho
descritivo aqui realizado.
Recentemente, Marcelo Moreschi, na análise que fez dos catálogos de algumas
exposições comemorativas sobre o “barroco” brasileiro13, descreve as diferentes
significações atribuídas ao conceito, tidas por “significações brasileiras de barroco”,
demonstrando assim a aplicação anacrônica do significado nacional conferido aos
objetos coloniais classificados como “barrocos”, no interior de determinados programas
de construção da nacionalidade. Dessa forma, esse trabalho serve como modelo para
essa dissertação, que se aplica porém a outro locus.
O objetivo visado aqui é o de demonstrar, portanto, em um locus específico, uma
apropriação do conceito de “barroco” que consideramos exemplar.
12 DAHER, A. Histoire culturelle comme histoire des pratiques lettrées au Brésil . in POIRRIER, Philippe (org.). L'Histoire culturelle: un "tournant mondial" dans l'historiographie? Postface de Roger Chartier. Dijon : Editions Universitaires de Dijon, 2008, p. 175-187. 13 MORESCHI, Marcelo Seravali. A inclusão de “Barroco” no Brasil: o caso dos catálogos. Campinas, Universidade Estadual de Campinas, 2004.
12
A escolha pelo IPHAN14 como locus de observação desta apropriação, desde sua
criação em 1937 até o início da década de 1980, aproximadamente, relaciona-se à
posição privilegiada exercida por esta instituição na constituição da concepção de
patrimônio histórico e artístico no Brasil. Observar os critérios que regularam sua
produção textual, publicada em séries como a Revista do IPHAN e Publicações do
IPHAN, constitui os meios para se pensar o desenvolvimento da questão do patrimônio
em âmbito nacional.
Pensar o patrimônio significa um esforço de tentar compreender como um
conjunto de símbolos e ícones foi construído como representante de uma nação. Nesse
sentido, pode-se dizer que são a materialidade de uma memória construída, selecionada
de acordo com pressupostos específicos. O patrimônio é algo que afeta um povo, dá-lhe
uma tradição na qual se insere, promove identificação, quando bem-sucedido.
Nesta dissertação, escolhemos o patrimônio brasileiro, especificamente o
barroco, como corpus por excelência desse repertório de símbolos da nação.
Se o patrimônio reivindicado pelo IPHAN é majoritariamente classificado como
“barroco”, então se pode dizer que as significações atribuídas ao conceito nos permitem
pensar também como constroem uma idéia de nação brasileira e, principalmente, a
formulação de uma origem para o Brasil.
Conforme veremos, o conceito de “barroco” no século XIX brasileiro era algo
desprezado ou valorizado de forma negativa, mas pouco a pouco adquire importância
até vir a relacionar-se à construção da própria identidade nacional brasileira. A opção
feita pelo IHGB, instituição oficial que buscou dar conta deste projeto, é a de reafirmar
a herança portuguesa, portanto européia e civilizada, como o elemento constitutivo da
“nossa” nacionalidade, ainda que de forma diferenciada, devido a uma capacidade de
14 Para fins práticos, será utilizada sempre a sigla IPHAN, portanto Instituto. O mesmo vale para a Revista e a série Publicações. A despeito das diversas mudanças no órgão, que já foi chamado Serviço, Diretoria e Secretaria, não é o interesse dessa pesquisa analisar este aspecto.
13
invenção e renovação próprias ao “nosso” país. Desta maneira, o Brasil é inserido no
moderno “Concerto das Nações” através de sua descendência européia, sem deixar de
reafirmar sua especificidade.
Transferindo essa concepção para o patrimônio histórico e artístico, pensando a
arquitetura, a opção é clara: por uma lado, trata-se da valorização das construções
coloniais portuguesas, como momento de origem da arte nacional brasileira. Por outro
lado, a constituição de um estilo arquitetônico diferenciado como o barroco mineiro
confere a especificidade necessária para o desenho da nação. No IPHAN, este projeto
será construído nas suas séries editoriais, e reafirmado nas práticas de preservação e
restauro.
Conforme afirma José Reginaldo Gonçalves:
Durante o período que se estende de 1937 a 1979, a maioria dos
monumentos e obras de arte tombados como ‘patrimônio cultural’ era
considerada como representativa do chamado barroco brasileiro.
Desde os anos trinta, o barroco tem sido oficialmente usado como
signo totêmico da expressão estética da identidade nacional brasileira.
Outros estilos, como o neoclássico, foram colocados de lado. Nos
anos 20, o Barroco foi ‘redescoberto’ por intelectuais ‘modernistas’
em busca de uma arte e uma cultura brasileira autênticas.15
É importante assinalar, aqui, que não se trata de estabelecer uma interpretação
melhor e última de “barroco”. Lembremos, mais uma vez, que as diferentes
interpretações e usos de uma categoria são regidos historicamente, e o intuito nesta
pesquisa é apenas o de situar historicamente algo que nos é dado como natural, além de
propor uma interpretação mais afinada com os pressupostos de uma sócio-história das
práticas culturais, tal como pensada hoje.
15 GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Iphan, 2002. p.68
14
1 A via “barroca”
Neste capítulo serão apresentadas algumas significações do conceito de
“barroco” operadas ao longo do século XIX até a criação do IPHAN, em 1937. Desta
forma, o objetivo aqui proposto é o de enquadrar a apropriação realizada pelo
IPHAN em uma trajetória mais ampla do conceito de “barroco” no Brasil. Outra
proposta é a de situar o surgimento do IPHAN no cerne do debate entre Neocolonial
e Modernismo como determinante para que um determinado monopólio sobre o
passado fosse estabelecido. Não mais neocolonial, agora moderno, com destaque
para a figura de Lúcio Costa.
1.1 Juízos de “barroco”
Durante o século XIX brasileiro, “barroco” era um estilo depreciado, tratado em
oposição ao neoclássico, como “exagero”, “mau gosto” e afins. O IHGB, nesse
momento, será um importante pólo da discussão sobre a arte brasileira, ao compartilhar
tais definições conforme afirma Guiomar de Grammont:
De inspiração positivista, buscando legitimidade para as artes e para a
indústria no Brasil, ainda marcadas pelas proibições metropolitanas, o
IHGB desempenhará, de qualquer modo, um importante papel de
consolidação do pensamento sobre as artes no país. Em seus
primórdios tenderá, contudo, a uma desvalorização sistemática da arte
chamada ‘barroca’ ou ‘jesuítica’, ainda que com idas e vindas: nem
sempre se percebe uma regularidade de pensamento entre seus
membros. Alinhados com a crítica européia, os primeiros membros do
IHGB que discorreram sobre o assunto julgaram a arte do século
anterior bizarra e de mau gosto. [...] Araújo Porto Alegre, uma das
figuras mais interessantes desse período, é um desses personagens
tributários de uma formação na França neoclássica e avessos a refletir
15
sobre as artes que mais adiante seriam consideradas obras
representativas da arte classificada como ‘barroca’.16
Para percorrer essa trajetória do conceito de “barroco” até sua apropriação
pelo IPHAN, nos utilizaremos da obra Palavra Peregrina, de Guilherme Simões
Gomes Júnior17, tese na qual o autor analisa este trajeto no campo das artes para
discutir as controvérsias sobre o conceito na literatura. Recuperando sua análise, as
apropriações de “barroco” no Brasil serão introduzidas nessa dissertação. Conforme
afirma, sobre o século XIX brasileiro:
Pode-se dizer que, até então, o problema, no que diz respeito ao
barroco, era de simples reconhecimento. Por um lado, o
reconhecimento da arte e da arquitetura que caracterizou,
particularmente, o século XVIII no Brasil colonial. Por outro, o
reconhecimento de uma nova categoria estilística, o barroco, que foi
aos poucos se ligando ao conjunto das obras do referido período.
Já na segunda década do século XX a questão ganha outro sentido.
Trata-se então da articulação com as manifestações artísticas do
passado com os projetos culturais que começam a esboçar-se no
Brasil, no momento em que pareciam esgotados os impulsos que
modelaram as instituições e as práticas culturais do tempo do
Império.18
Guilherme Simões demonstra como, nesse primeiro momento, não há uma
definição clara do que seria a arte barroca, ao menos não na arte brasileira. Diz que:
O complexo artístico e arquitetônico do Brasil colonial continua a ser
algo indefinido, menos um estilo, uma contrafação, sempre situado
16 GRAMMONT, Guiomar de. Aleijadinho e o aeroplano: o paraíso barroco e a construção do herói colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p.154 17 GOMES JÚNIOR, Guilherme Simões. Palavra Peregrina: o Barroco e o Pensamento sobre Artes e Letras no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998. 18 Idem, ibidem, p.50-1
16
entre dois outros estilos, sem nunca ascender a um ou outro, nem
firmar-se como um terceiro19
Exemplifica citando Varnhagen:
São construções sólidas, de muita cantaria: porém de ordinário
pesadas e faltas de gosto, como ainda hoje se vê na atual sé da Bahia,
igreja de Peruíbe e outras. Falta nestas construções o sublime que
oferece a continuidade das grandes linhas: – horizontal no gênero
clássico; vertical no pontagudo.20
E conclui:
Por essa colocação, vê-se que a arquitetura dos jesuítas continua sendo
definida pelo que não é, e sempre em uma posição intermediária [...]
entre o clássico e o pontagudo, que parece ser outro nome do gótico.21
Guilherme Simões inicia sua análise da trajetória do conceito de “barroco”
observando a produção de Araújo Porto Alegre, tido como o patrono das Belas-Artes no
Brasil. Se Porto Alegre não propõe, de início, a classificação de “barroco” para a arte
brasileira, Simões afirma que:
Porto Alegre é, desse modo, um elo importante no projeto cultural
que, desde os tempos joaninos, visa recolocar o Brasil no circuito das
artes do Ocidente a partir de uma nova perspectiva. Por outro lado,
atua no sentido do resgate da história das artes da época colonial e da
preservação daquilo que fora legado do passado...22
19 GOMES JÚNIOR, Guilherme Simões. Palavra Peregrina. p.43 20 VARNHAGEN, F.A. História Geral do Brazil antes de sua separação e independência de Portugal. (2. ed., 2 vols.), Rio de Janeiro, Laemmert, 1874; vol. II, p.929 apud GOMES JÚNIOR, Guilherme Simões. Palavra Peregrina: o Barroco e o Pensamento sobre Artes e Letras no Brasil. p.43 21 GOMES JÚNIOR, Guilherme Simões. Op. Cit. p.44 22 Idem, ibidem, p.38
17
Assim, Porto Alegre refere-se ao “barroco” quando fala em “borromínico”23. No
entanto, Guilherme Simões nos mostra que “na tradição francesa, dentro da qual Porto
Alegre se forma, borromínico é qualificativo de fortes ressonâncias negativas”24 e
ainda: “A arquitetura de Borromini é invariavelmente considerada como um exemplo de
ridículo e bizarria”25.
Posteriormente, uma nova conceituação será produzida:
Com essas idéias, Porto Alegre esboça uma teoria social da arte [...]
Se no início sua avaliação é implacável, e o barroco é visto como
forma degenerada e idéia errônea, dentro dessa teoria emerge uma
viés relativista, na medida em que um estilo, mesmo quando
considerado ‘como um delírio do pensamento humano, como uma
aberração do gosto, e contrária a todos os princípios do belo e do
sublime’, ainda assim tem sua razão de ser em certos contextos sociais
e históricos.26
Em 1944, Rodrigo Melo Franco de Andrade, diretor do IPHAN, publicou um
artigo na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro27, na qual operava uma
apropriação do legado de Araújo Porto Alegre, o que é bastante interessante do ponto de
vista dessa pesquisa. O autor propõe que o IPHAN foi instituído na tradição dos estudos
do IHGB, através da iniciativa precursora de Porto Alegre:
Em verdade, foi no seio desta benemérita agremiação que os nossos
monumentos e obras de arte tradicional encontraram os pioneiros da
sua história e os precursores da campanha pela sua defesa efetiva. Foi
aqui, em verdade, que se assentaram os fundamentos dos estudos e da
ação cujo encargo só muito mais tarde os poderes públicos vieram a
assumir, em benefício do patrimônio de arte e das relíquias históricas
23 Estilo em referência a Borromini, arquiteto italiano. 24 GOMES JÚNIOR, Guilherme Simões. Palavra Peregrina. p.39 25 Idem, ibidem. p.39 26 Idem, ibidem. p.42 27 ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Araújo Porto Alegre, precursor dos estudos de história da arte no Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro , Rio de Janeiro, v.184, jul./set., 1944 apud Rodrigo e seus tempos: coletânea de textos sobre artes e letras. Rio de Janeiro, Fundação Nacional Pró-Memória, 1986. (Publicações do IPHAN n.37), p.312-320.
18
do Brasil. Por isso mesmo, o Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional não é senão um prolongamento deste insigne
Instituto.28
Em sua análise, a produção de Porto Alegre é circunscrita “apenas à sua obra de
iniciador dos estudos para a elaboração da nossa história da arte durante o período
colonial”29. Rodrigo afirma a indiferença então vigente frente à arte colonial brasileira:
O que os nossos patrícios mais esclarecidos julgavam em 1830 e o que
continuaram a pensar, ainda por muitos anos, era que, neste país, o
amor das belas-artes jazera, desde o descobrimento até então, ‘coberto
por uma nuvem de indiferença’, segundo a expressão do jornal de
Evaristo da Veiga. Tudo quanto fora realizado no Brasil no decurso de
quase três séculos, no domínio das artes plásticas, parecia tão
desprezível que nem sequer merecia uma referência pejorativa.30
Segundo o autor, isto seria uma decorrência da formação francesa, na qual Porto
Alegre também se insere, muito embora a rejeite logo em seguida:
É manifesto que, com o critério formado pelos princípios rigorosos
dessa teoria, o julgamento de Araújo Porto Alegre sobre a nossa
pintura colonial não tenderia a ser favorável. Nada menos satisfatório,
à luz da intransigente doutrina davidiana, do que a obra dos mestres de
nossa pintura colonial. [...]
No entanto, Porto Alegre reagiu contra todos os princípios, contra
todos os preconceitos da sua formação, para considerar com apreço as
obras de arte do passado do seu país.31
Se inicialmente, para julgar a arte e os artistas coloniais, Porto Alegre só tinha “o
gosto neoclássico”, como quando faz uma crítica negativa às igrejas baianas,
28 ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Araújo Porto Alegre, precursor dos estudos de história da arte no Brasil. p.312 29 Idem, ibidem. p.313 30 Idem, ibidem. p.314 31 Idem, ibidem. p.315
19
“expansões pessimistas”, isto não representaria “o fundo de seu pensamento”, tratando-
se de “resíduos culturais do exotismo de sua formação”.
Assim, quando Porto Alegre começa a publicar, o quadro muda de figura:
Efetivamente, nos escritos de Araújo Porto Alegre é que aparece,
antes de em qualquer outro texto impresso no Brasil ou a seu respeito,
a indicação das características diferenciais das manifestações de nossa
arte tradicional em matéria de pintura e arquitetura. [...]
De fato, quando ainda em nenhuma obra publicada tinha aparecido
qualquer consideração a respeito, foi Araújo Porto Alegre quem,
inicialmente, procurou assinalar os elementos peculiares de nossa
pintura e de nossa arquitetura religiosa tradicional, apontando nas suas
obras e monumentos representativos os caracteres que lhe pareciam
definidos para enquadrá-los entre as manifestações dos estilos sob
cujas influências se operava a evolução das formas ao longo da
história da arte universal.32
Rodrigo M. F. comenta que o patrimônio artístico e os artistas coloniais de
Minas Gerais, região preciosa para o IPHAN, não foram tratados pelo estudioso. No
entanto, nos informa que, o interesse despertado por Porto Alegre pela biografia de
Aleijadinho – escrita por Rodrigo Bretas e publicada anonimamente no Correio da
Manhã – e a sua iniciativa de pedir que as pesquisas se estendessem, oferecendo as
páginas da Revista, resultou no envio de uma versão ampliada e assinada do texto.
Assim, retirado do anonimato, foi publicado em outras duas ocasiões, em 1896 e 1897,
e legada à posteridade. Conforme afirma Rodrigo M. F.:
Não há senão concluir que, contribuindo como contribuiu para
preservar o trabalho de Rodrigo Bretas, Porto Alegre prestou um dos
maiores serviços que poderiam ser prestados quer à glória merecida de
Antônio Francisco Lisboa quer a toda a história da arte no Brasil.33
32 ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Araújo Porto Alegre, precursor dos estudos de história da arte no Brasil. p.316 33 Idem, ibidem. p.318
20
Por fim, lamenta o afastamento de Porto Alegre do trato das artes tradicionais
para ocupar-se de outros assuntos que demandavam seu tempo, e afirma que Araújo
Viana foi um continuador de sua obra. Trata ainda da primazia de Porto Alegre no alerta
em defesa da proteção ao patrimônio:
Em verdade, já em 1841, o bravo pioneiro erguia a voz, no recinto
deste prestigioso Instituto, para condenar severamente os atentados
cometidos contra a integridade das obras de arte genuínas legadas
pelos nossos maiores.34
Em 1911, Diogo de Vasconcellos publicava a memória “As Obras de Arte” em
livro comemorativo do bi-centenário da cidade de Ouro Preto35. Como obra
comemorativa, traz implícita em si a exaltação do objeto em questão, mas não deixa de
ser uma produção de valor que nos interessa avaliar, na medida em que se trata de um
discurso pró-arte colonial em um momento em que a questão ainda não está totalmente
estabelecida. Segundo o autor:
Por outro lado, se, em desempenho da tarefa devo rastrear o curso
indicado pela evolução nas obras de arte, nenhum ponto de
observação se exclui, eis que por todo o sempre em objetos, nem por
vezes grandiosos, é que se fixam os marcos iniciais de toda
civilização.
Neste sentido, é bem que atenda não haver em todo o espaço de Minas
povoação, senão esta, onde se conservam tantos e tão claros vestígios
primitivos.36
O objetivo principal do texto, conforme Vasconcellos nos adverte, é uma
descrição das obras de arte da cidade, o que o faz de forma extensa e detalhada. No
34 ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Araújo Porto Alegre, precursor dos estudos de história da arte no Brasil. p.319 35 VASCONCELLOS, Diogo de. As obras de arte. Bicentenário de Ouro Preto, 1711-1911. Memória Histórica. Belo Horizonte, s.d., Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais. p.135-184 O texto foi republicado em VASCONCELLOS, Diogo de. A Arte em Ouro Preto. Edições da Academia Mineira de Letras, 1934. 36 VASCONCELLOS, Diogo de. A Arte em Ouro Preto. p.17-18
21
entanto, produz alguns juízos de valor acerca de questões como a arte colonial, as
influências estrangeiras, o Aleijadinho e outras.
A obra apresenta prefácio escrito por Anibal Mattos, presidente da Academia
Mineira de Letras, instituição da qual Vasconcellos era membro. Destaca pontos como a
formação da nacionalidade brasileira ainda na colônia, prefigurando a nação, e a
proeminência de Minas Gerais dentro desse quadro:
A evolução social, intelectual e política do grande Estado central se
caracteriza, na obra do desenvolvimento histórico do Brasil, por um
aspecto especialíssimo de equilíbrio fundamental, que vem desde os
tempos coloniais marcando a fisionomia inconfundível do seu povo,
incontestavelmente dos mais representativos do nosso verdadeiro tipo
racial.
Não há que contestar a importância do contingente material e moral de
Minas-Gerais, a sua influência destacada nessa obra de formação
brasileira, no que excedeu a própria Baía, um dos pontos de irradiação
de nossa primitiva civilização.37
O autor segue o modelo explicativo das “três raças” formadoras da nação
brasileira, donde conclui que o povo português foi o fator predominante, especialmente
no que concerne às artes:
Dos povos que contribuíram para formação de nossa nacionalidade foi
o português o que mais provas deu de cultura plástica, visto que nada
poderíamos esperar da influência do africano e do índio, embora estes,
em suas manifestações primitivas, pudessem concorrer com um
inspirado contingente decorativo.38
Sua análise prossegue numa tentativa de definir a arte colonial, partindo da
premissa de que os portugueses não cultivavam suas artes como os italianos e franceses.
Decorreria dessa premissa o seguinte argumento:
37 MATTOS, Aníbal. Prefácio a “A Arte em Ouro Preto”. Op. Cit. p.8-9 38 Idem, ibidem. p.11
22
E a influência dos romanos, que já se evidenciava tão claramente nas
artes portuguesas, principalmente na arquitetura e nas chamadas artes
suntuárias, manifestou-se também no período colonial, em que o estilo
românico se apresenta tantas vezes com seus caracteres dominantes.
No plano das casas de habitação entrava a sobriedade dos traçados,
com as suas linhas gerais simples e austeras. Mas, na verdade, a
origem portuguesa acabou por distanciar-se, e nós vemos elementos
arquitetônicos que se firmam na formação nítida do tipo colonial
brasileiro.39
A “formação nítida do tipo colonial brasileiro” é observada nas construções
mineiras, diferenciadas pelos ornamentos, “cheias de vida”, que abarcam características
regionais, vale dizer, nacionais:
O cenário é contudo envolvido e beatífico na sua alegria simples e
comunicativa que nos dá vontade de ser como esse passado, simples,
aventureiro e alegre, no espreguiçamento espiritual com que nos
adaptamos, nos amoldamos, afinal, ao próprio ambiente.40
Sobre Ouro Preto, afirma que:
Ouro Preto é a mais importante das cidades históricas de Minas; ela é,
por excelência um vasto monumento nacional. Não há que
particularizar.
Por todos os cantos da velha metrópole se encontra um edifício ligado
à tradição; as suas velhas ruas, chafarizes, oratórios; as ruínas de
velhas e resistentes construções, os sinais de exploração do ouro, o
morro da Queimada, o caminho de Mariana, tudo, afinal, inspira, e
recorda o passado.
O Estado de Minas Gerais é, sem dúvida, dos mais ricos do Brasil em
relação ao nosso patrimônio histórico e artístico.41
39 MATTOS, Aníbal. Prefácio a “A Arte em Ouro Preto”. Op. Cit. p.11-12 40 Idem, ibidem. p.13 41 Idem, ibidem.. p.15
23
Constrói assim a imagem de Ouro Preto como uma cidade permeada
inteiramente pela História, testemunha de uma tradição. Por fim, comenta o problema
da dilapidação do patrimônio, a venda indiscriminada de obras de arte ao invés de sua
preservação, conclamando o público a uma solução para a questão. Um discurso afinado
ao que Rodrigo Melo Franco de Andrade proporia anos mais tarde quando da criação do
IPHAN.
O texto de Vasconcellos principia pela narrativa da fundação e do crescimento
da cidade. Estabelecida a povoação, comenta a seguir sobre o casario, afirmando que:
Fundadas todas as casas por portugueses incultos, trouxeram de suas
aldeias o tipo desproporcionado e sombrio das velhas construções. [...]
Foi preciso que em Minas decorresse um século para que as
edificações tomassem feitio mais consoante ao clima, as necessidades
e as condições sociais da pátria. Dessa fase, última do século XVIII,
1ª. de Minas, podemos indicar, como exemplo, a esplêndida casa
edificada pelo tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrade,
o Inconfidente, que além de ser brasileiro, era homem já educado. Foi
esse prédio o ponto de partida para uma nova era, e todavia não se
descuidou da solidez, e do grave aspecto que impõe sua fachada.42
Conforme aponta, somente após um século as habitações teriam se tornado
características de Minas e mais ainda, da pátria. Sintomático é que, nessa nova fase, a
edificação que destaca seja a de Francisco de Paula Freire de Andrade, que participou
da Inconfidência Mineira e franqueava sua casa para as reuniões dos inconfidentes.
Estabelece-se dessa forma um paralelo entre a arquitetura e “as necessidades e as
condições sociais da pátria”. Referências desse tipo aparecerão mais à frente nos
discursos do IPHAN, relacionando a arquitetura barroca, o Aleijadinho e a
Inconfidência.
42 VASCONCELLOS, Diogo de. A Arte em Ouro Preto. p.22-23
24
Ao tratar sobre as igrejas pertencentes a uma segunda fase, compreendida entre
1720 e 1740, afirmava que:
Obedeciam essas fachadas ao estilo baroco [sic] jesuítico, então
generalizado em todos os países, principalmente em novos por ser
mais simples e econômico.
A Companhia de Jesus, como se sabe, criada para fazer frente ao
protestantismo, e sair a conversão de infiéis, entre outros recursos
característicos acertou de criar um estilo próprio nas igrejas, que
houvesse de levantar, onde quer que estabelecesse colégios e missões.
A Renascença então dominante não lhes convinha por ser uma pedra
de escândalo atirada por Lutero contra a Igreja Romana [...] Por seu
lado a velha Arte Cristã que reinou do século IV ao XVI [...] decaiu, e
ficou exausta.
Ora, os jesuítas não eram homens para instrumentos gastos ou
contraproducentes; e neste caso trataram de inventar para si um estilo,
combinando os elementos do românico e do barroco italiano, que
mais ao almejo se prestaram.43
Dessa forma, situava a arquitetura jesuítica não mais entre dois estilos, conforme
apontava Guilherme Simões, mas agora como uma combinação, como resultado prático
do próprio estilo jesuítico, como define:
Conseqüentemente, o baroco [sic] jesuítico, ao passo que nos dava
Igrejas de fachadas lisas, retangulares, com duas torres dos lados e um
frontão desgracioso [...] não deixava de abarrotar o interior com
ornamentação profusa de talha dourada, coluna torcida, ramagens,
anjos e aves. Ora, assim sendo, é claro que em nenhuma outra parte se
realizou tão de vez, como na Matriz de Ouro Preto, o ideal formulado.
No último quartel do século XVIII (1º. nosso) já felizmente se achava
modificado o estilo jesuítico; e obras se empreenderam mais artísticas
[...] Ora, foi desse espírito novo, que se aproveitou a fachada atual da
Matriz de Ouro Preto.44
43 VASCONCELLOS, Diogo de. A Arte em Ouro Preto. p.29-30 44 Idem, ibidem. p.30-31
25
Define-a, portanto, como uma arquitetura que prezava o interior dos templos em
detrimento de seu aspecto externo. No entanto, uma modificação entraria em curso,
produzindo algo novo. Destaca-se, nesse sentido, a sua descrição da Igreja de São
Francisco de Assis de Ouro Preto:
Obra perfeita e acabada a Igreja de S. Francisco de Assis desta cidade
não tem rival. As três artes irmãs parece mesmo que foram as três
graças, concebendo e executando esta portentosa fábrica, sob uma
influência misteriosa; pois basta para tal presunção ver-se a fachada,
que supera a tudo quanto ainda se fez em Minas, e todavia considerar
como esse templo foi traçado por um homem obscuro, iletrado, e sem
freqüência de escolas. Quebrará por outra a cabeça quem quiser
definir à que estilo obedeceu a esta parte do grandioso edifício. O que
se pode alcançar, apenas, é que se resultou de uma feliz combinação,
pela qual se escolheu o mais gracioso de cada um, e dessa maneira
coordenada nasceu este desenho.45
É importante observar que, neste trecho, Diogo de Vasconcellos ainda não
classifica como barroca a igreja franciscana, ao passo que posteriormente esta seria
consensualmente tomada como uma das obras-primas do barroco mineiro. Permanece
uma certa indefinição sobre a tema, conforme a apontada por Guilherme Simões, pois
“quebrará por outra a cabeça quem quiser definir à que estilo” pertence o templo. Não
se trata do barroco jesuítico de que falara no início do texto, pois “já se achava
modificado o estilo jesuítico; e obras se empreenderam mais artísticas”. Havia um
“espírito novo” nessas construções, mas ainda indefinido. Assim, identifica uma série
de estilos aplicados à igreja: Renascença, Barroco Italiano Jesuítico, Bizantino, Gótico e
Românico46.
45 VASCONCELLOS, Diogo de. A Arte em Ouro Preto. p.39-40 46 Essa proposição se assemelha à que Lúcio Costa faria anos mais tarde e que veremos mais à frente. Mas é fundamental destacar que, se para Vasconcellos são estilos “puros”, para Costa todos os estilos observados são compostos com “barroco”, como, por exemplo, um “romanicismo barroco”. A palavra então já havia entrado definitivamente no vocabulário das artes brasileiras.
26
Vasconcellos apontava também para um personagem responsável pela
magnificência dessa obra, o qual vai revelar logo em seguida:
Sabendo apenas ler e escrever, e provavelmente algum latim; mas
conhecendo bem os preceitos de Vignola, e a Bíblia, sua leitura
predileta, o Aleijadinho, que pois desenhou esta Igreja, e a construiu
não foi como se vê, um simples copista, mas um inventor sublime, e
espontâneo.47
Sua afirmação de que Aleijadinho conhecia bem “os preceitos de Vignola”
remete à biografia escrita por Rodrigo Bretas em 1858, que será analisada mais à frente.
É interessante observar como, em uma sociedade na qual as artes não são mais regidas
por preceitos de “cópia” e “imitação”, mas de “originalidade” e “direito autoral”, o
autor afirma que o Aleijadinho “não foi como se vê, um simples copista, mas um
inventor sublime, e espontâneo”. Em outra passagem retoma essa mesma perspectiva:
Um estudo completo da maneira do Aleijadinho, de sua fantasia
incomparável, reconhecerá que apenas um inventor de ornatos, um
modificador de estilos, haverá mais copioso em outra parte do
mundo. Nasceu, viveu e morreu em Minas!
Mas todavia foi um gênio independente, que faria a hora e também a
glória de um povo. Ele só deu a toda Vila Rica a maior parte do seu
esplendor; ele só constituiu o meio artístico de onde surgiram os mais
belos, imperecíveis monumentos.48
O tema das obras atribuídas a Aleijadinho – polêmica que seria um ponto central
na pesquisa do IPHAN – já é tratado por Vasconcellos:
Assombra a quantidade de lavores artísticos atribuídos ao Aleijadinho
nesta e em outras partes de Minas. Em todo caso esta Igreja é toda
dele e de seus discípulos. O seu estilo sobre lavores em pedra não se
47 VASCONCELLOS, Diogo de. A Arte em Ouro Preto. p.40 48 Idem, ibidem. p.72 Grifos nossos.
27
confunde, e tanto se reconhece nas esculturas desta Igreja, como nas
obras da capela de Cabeças ou Congonhas do Campo.49
A comparação das artes portuguesas com as brasileiras – que cria, no próprio
enunciado, a representação de um sentimento de independência da colônia – também é
um tema presente na obra, quando Vasconcellos observa uma superação da metrópole,
de que faz parte um Aleijadinho “revolucionário”:
Igualmente não se me leve a mal comparar os púlpitos de S. Francisco
de Assim aos de Santa Cruz de Coimbra, e notar que os nossos são de
maior nitidez estética, e de mais felizes idéias. [...] A entalhadura dos
altares, toda ela respirando o fino gosto revolucionário do Aleijadinho,
abriu entre nós o novo formato das colunas gregas de fuste direito.50
Na sequência de sua análise sobre o artista, o autor constrói certas imagens que
aparecem também no discurso construído posteriormente pelo IPHAN. Por exemplo,
afirma a originalidade de Aleijadinho e sua capacidade de produzir exemplares
diferenciados, singulares:
Arquiteto este homem, original, como já vimos, traçou a Igreja de
modo particular, não quebrando a linha das paredes externas; mas ao
efeito de trazer a luz para a capela-mor engendrou dois largos
corredores clareados cada um por três varandas de arcos abatidos, que
a singularizam.51
A genialidade de Aleijadinho é construída levando-se em conta fatores como o
ambiente que o circundava, a sua falta de instrução, a arte herdada de seu pai e seu tio,
criando um personagem único, inigualável:
Não há, como vimos, uma só parte acessória, que não seja um primor
nesta Igreja. O Aleijadinho, no entanto, aqui nasceu, aqui morreu.
49 VASCONCELLOS, Diogo de. A Arte em Ouro Preto. p.45 50 Idem, ibidem. p.46 51 Idem, ibidem. p.48
28
Nunca foi longe de seu ambiente natal procurar ensinos, contemplar
modelos, desenvolver idéias. Era um iletrado, mas que viveu num
tempo, quando Vila Rica foi centro de luzes, único em todo o Brasil.
Foi todavia filho de Manuel Francisco Lisboa, e sobrinho de Antonio
Francisco Pombal [...]. Assim sendo, o Aleijadinho (Antônio
Francisco Lisboa) a natureza lhe deu pelo menos o sangue de raça; e
os Mestres o preparo de um gênio estupendo, que até hoje a nenhum
outro já foi segundo em Minas, ou em qualquer outra parte, onde a
justiça mande julgar pelos elementos pessoais ou educativos.52
Aleijadinho catalisava, dessa forma, o ambiente de Vila Rica, “centro de luzes,
único em todo o Brasil”. Todavia não estaria sozinho; Vasconcellos destaca também
outro artista que, embora não se igualasse, formava com ele um “par genial”:
O mesmo não se pode dizer de Manuel da Costa Athaíde, o pintor, ao
qual em idênticas condições, nem sequer, favoreceu o determinismo
atávico. E no entanto com o Aleijadinho e com ele se completa o par
genial, que floresceu em Minas. As Igrejas, que eu conheço nascidas
do cinzel do Aleijadinho, todas possuem pinturas de Athaíde.53
A questão da enfermidade de Antônio Francisco Lisboa é também abordada pelo
autor, que sustenta a alcunha do artista:
É sabido que Antonio Francisco Lisboa só tarde ficou aleijado,
datando deste ano de 1777 as primeiras manifestações do mal que lhe
provieram a perda dos dedos e o transtorno de sua fisionomia. Esta
Igreja [S. Francisco de Assis de Ouro Preto] e outras foram portanto
feitas por ele em pleno vigor de suas forças e talentos, se bem que seu
espírito não sofresse nem se olumbrasse ainda mesmo no período mais
adiantado da doença, razão pela qual continuou a trabalhar até os
últimos dias. O apelido com que ficou até hoje nomeado, creio, que
lhe foi suscitado, depois de sua doença, por ter havido em Portugual
52 VASCONCELLOS, Diogo de. A Arte em Ouro Preto. p.50 53 Idem, ibidem. p.48-49
29
um grande escultor, que era conhecido como Aleijadinho, quase
contemporâneo.54
A especificidade de Ouro Preto no cenário arquitetônico colonial, destacando-se
da “influência portuguesa” e originando algo próprio, pode ser também observada na
passagem sobre a evolução da arquitetura local:
Até meados do Século XVIII (1º. de Minas), todos os elementos
concorriam a favor do baraço, jesuítico por ser mais econômico e
menos exigente.
O mesmo porém não foi, assim que a Vila cresceu em população e
riqueza, dispondo de artistas e materiais melhores; pelo que vimos
quanto às modificações foram-se daí aprimorando até o máximo da
beleza, a que puderam atingir. O gosto artístico, afinal procurando o
seu fundamento espontâneo, compreendeu, como estava o segredo na
harmonia das proporções e na forma expressiva das idéias. Ora, neste
assunto, em se tratando do culto divino traduzido em monumentos,
reconheceu-se para estes que a estrutura exige linhas arrogantes mas
equilibradas, como se fossem reflexos grandiosos do infinito.55
As caracterizações que Vasconcellos confere à criação artística, baseadas em
valores como espontaneidade, “forma expressiva de idéias” e ainda “harmonia de
proporções” aparecerão mais tarde como características do “barroco mineiro”.
A construção de uma imagem de Ouro Preto encenada no prefácio por Anibal
Mattos é retomada por Vasconcellos e ampliada:
Neste gênero de edifícios, que se encareçam pelo seu lado puramente
histórico, a cidade poderia encher volumes; mas não é o meu ponto.
Não há com efeito rua, nem casa, que seja omissível numa revista
literária tendente a relacionar as recordações ligadas ao movimento
dramático da história nesta povoação, da qual fizeram parte os
eminentes e mais notáveis vultos do passado. Aqui nasceram todas as
54 VASCONCELLOS, Diogo de. A Arte em Ouro Preto. p.51-52 55 Idem, ibidem. p.52-53
30
artes inclusive a imprensa; a música floresceu inspirada em
compositores e mestres, a pintura em gênios nativos; a poesia nos
mais extraordinários vates.
Daqui saíram enfim os primeiros mártires. Não há portanto casa ou
rua em que não vibrem recordações as mais caras de um povo. [...]
Cidade que foi o cérebro organizador da casa mineira, oficina das leis
e da ordem, é o maior monumento de seus monumentos. Quando
mesmo a fatalidade das circunstâncias fizesse um dia eclipsar a
civilização bastaria o testemunho mudo de nossas ruínas para se reatar
o passado ao futuro, e o povo mineiro achar o segredo perdido de suas
energias.56
Ouro Preto é, assim, a cidade-monumento, da qual “nasceram todas as artes”,
cidade de Aleijadinho e Tiradentes, “os primeiros mártires”, ponto de irradiação da
nação brasileira. E caracterizada como tal ainda na sua contemporaneidade, testemunho
de onde se poderia recuperar a civilização.
Esta obra parece ter sido apropriada nos discursos produzidos pelo IPHAN,
resguardado o fato deste consideram que o “barroco” estava mais do que presente na
colônia. Ademais, como veremos, ela foi uma das bases para a construção da biografia
do Aleijadinho, com uma fortuna sólida no IPHAN. Conforme aponta Judith Martins,
em artigo para a Revista do IPHAN, sobre o texto de Vasconcellos:
É um dos mais importantes trabalhos existentes sobre Antônio
Francisco Lisboa, a propósito das obras que este realizou ou que
lhe foram atribuídas em Ouro Preto. Esse trabalho foi reeditado
com um prefácio do prof. Anibal Matos.57
Via de regra, a reflexão sobre o “barroco”, durante o Império e ainda nos anos
posteriores, permanecerá entre críticas negativas e uma aceitação neutra, num lento 56 VASCONCELLOS, Diogo de. A Arte em Ouro Preto. p.102 57 MARTINS, Judith. Apontamentos para a bibliografia de Antônio Francisco Lisboa. Revista do IPHAN , n.3, 1939. p.189
31
processo que, por um lado, envolve o descobrimento da arte colonial – ainda não muito
bem resolvido – e, por outro, o predomínio do neoclassicismo e do ecletismo na virada
do século XX. Isso durou até que, em 1914, Ricardo Severo surgisse no cenário da
arquitetura neocolonial e fizesse uma apologia da arte colonial e do “barroco” que
rendeu muitos frutos. Mas antes, vejamos ainda as idéias expressas por Mário de
Andrade.
Durante a década de 1920, Mário de Andrade publicou uma série de artigos na
Revista Brasil58. A publicação tinha notadamente um cunho modernista, dirigida à
época por Monteiro Lobato que havia adquirido a revista em 191859. Conforme afirma
Carlos Kessel:
A Revista do Brasil esteve, desde os seus primeiros números, engajada
na campanha pela preservação e valorização do passado colonial,
considerados como base legítima para o florescimento de uma nova
arte e arquitetura brasileiras...60
Os artigos de Mário de Andrade foram posteriormente compilados em um livro,
“A Arte Religiosa no Brasil”61. O tema, como o próprio nome indica, são as chamadas
manifestações de arte religiosa na colônia portuguesa.
A publicação é um estudo em prol do “barroco brasileiro”, apontando questões
que seriam desenvolvidas anos mais tarde pelo trabalho realizado no IPHAN. É também
uma afirmação pelo caráter “genial” e nacional da produção do Aleijadinho.
Segundo Mário de Andrade:
A arte cristã, no Brasil, repousa em paz no movimento do passado. É
um fóssil, necessitado ainda de classificação, de que pouca gente 58 Os artigos foram publicados nos meses de Janeiro (n.49), Fevereiro (n.50), Abril (n.52) e Junho (n.54). 59 Posteriormente, a revista seria dirigida por Rodrigo Melo Franco de Andrade. 60 KESSEL, Carlos. Entre o pastiche e a modernidade: arquitetura neocolonial no Brasil. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2002. p.74 61 ANDRADE, Mário de. A arte religiosa no Brasil: Crônicas publicadas na Revista do Brasil em 1920 / Estabelecimento do texto crítico por Claudéte Kronbauer. São Paulo: Editora Experimento / Editora Giordano, 1993. Em nossa análise citaremos a partir do livro.
32
ouviu falar e ninguém se incomoda. A mim tomei a tarefa, e apenas
essa, de mostrar-vos que se a nossa arte cristã não tem uma
importância decisiva nem marca a eclosão dum estilo, ao menos
existiu vívida, com alguns traços originais, e é um tesouro
abandonado onde nossos artistas poderiam ir colher motivos de
inspiração. [...] Bem poderia imaginar a dificuldade da minha
empreitada lançando-me num terreno em que tudo está por fazer.62
O autor afirma, nesse trecho, uma tópica que seria comum no âmbito dos
discursos produzidos pelo IPHAN: a do extenso e árduo trabalho de pesquisa a ser feito,
por se tratar de uma área de estudos onde “tudo está por fazer”. Isso reforçava, assim, a
idéia do desconhecimento da arte colonial. A iniciativa de Mário de Andrade pode ser
situada, então no rol dos trabalhos que precederam a criação do IPHAN, abordando as
questões da chamada arte colonial em uma chave compatível com a que seria
desenvolvida pela instituição anos mais tarde. Acrescente-se a isso o fato de o autor ter
sido convidado a redigir um anteprojeto de lei para criação do Serviço do Patrimônio –
ainda que seu projeto tenha passado por uma série de modificações até resultar em um
projeto final – e a função ocupada no IPHAN, como diretor do Escritório Regional de
São Paulo.
Analisando a arquitetura “barroca”, afirma que:
Todas essas igrejas, assim como os templos de maior porte, edificados
mais tarde, obedecem a uma certa ordem de tipos arquitetônicos que,
tendo-se vulgarizado por todo o Brasil, tomaram uma feição
fortemente acentuada, donde muito bem se poderia originar um estilo
nacional. O jesuítico, o plateresco, o rococó – que mais não são que
um só estilo com mínimas variantes, provenientes dos países onde
assim se denominou o estilo barroco, – aí domina, porém mais
simples, mais pobre, menos pedantesco.63
62 ANDRADE, Mário de. A arte religiosa no Brasil. p.44 Grifos nossos. 63 Idem, ibidem. p.47 Grifos nossos.
33
Para Mário de Andrade, o estilo “mais simples, mais pobre, menos pedantesco”
é um qualitativo dessa produção. Contrapondo-se a uma erudição estéril, essa
arquitetura menos trabalhada permitiria um afloramento maior da nacionalidade
brasileira. O autor opera então uma diferenciação entre as regiões do Brasil:
Na Bahia, o Barroco atinge uma expressão menos sincera, a
construção é mais erudita; no Rio de Janeiro a preocupação artística
exterior diminui ao passo que a decoração interna atinge o delírio,
produzindo a obra-prima do entalhe que é a igreja de São Francisco de
Assis da Penitência; em Minas, vemos deparar a suprema glorificação
da linha curva, o estilo mais característico, duma originalidade
excelente. Três escultores dominam nesses três centros: Chagas, o
Cabra, na Bahia; Mestre Valentim, no Rio de Janeiro; Antonio
Francisco Lisboa, nas Minas Gerais.64
Observa-se aqui a proeminência de Minas Gerais – melhor dizendo, o que viria a
ser o Estado de MG – no estabelecimento de uma originalidade “barroca” em meio ao
“barroco” e também a figura de Aleijadinho como dominante nesse cenário. Seguindo o
texto:
A igreja pôde aí, mais liberta das influências de Portugal, proteger um
estilo mais uniforme, mais original, que os que abrolhavam podados,
áulicos, sem opinião própria nos dois outros centros [...] em Minas, se
me permitirdes o arrojo da expressão, o estilo barroco estilizou-se [...]
As igrejas [...] tomaram um caráter mais bem-determinado e,
poderíamos dizer, muito mais nacional.65
É possível dizer, nesse sentido, que há uma certa noção de independência
aplicada na Minas Colonial. Essa é uma idéia que parece muito cara aos estudos sobre
“barroco” analisados aqui: a afirmação de uma desvinculação com a metrópole de tal
forma que a colônia só é assim chamada por uma questão latente. A independência do
64 ANDRADE, Mário de. A arte religiosa no Brasil. p.50 65 Idem, ibidem.. p.78-79
34
Brasil estava prefigurada em Minas no período colonial, na arte barroca e na
Inconfidência Mineira.66
Afirma o autor:
Ora, na arquitetura religiosa de Minas a orientação barroca – que é o
amor de linha curva, dos elementos contorcidos e inesperados – passa
da decoração para o próprio plano do edifício.67
E ainda:
Com esse caráter assume a proporção dum verdadeiro estilo,
equiparando-se, sob o ponto de vista histórico, ao egípcio, ao grego,
ao gótico. E é para nós um motivo de orgulho bem fundado que isso
se tenha dado no Brasil.68
Por fim, habilitando Aleijadinho, afirma que “Antonio Francisco Lisboa é o
único artista brasileiro que eu considero genial, em toda a eficácia do termo”. A tópica
da falta de instrução aparece a seguir, no seguinte trecho: “A alma criadora do gênio
vivia nele, faltava-lhe a instrução”. Andrade constrói a imagem de um Aleijadinho cuja
genialidade advém assim da sua falta de instrução, geradora do original, numa
representação do artista que se tornaria triunfante. Para tanto, afirma que “toda a Minas
religiosa está tão impregnada da sua genialidade, que se tem a impressão de que tudo
nela foi feito por ele só”. Este seria um ponto polêmico mais tarde e a atividade de
comprovar a autoria de obras do Aleijadinho se tornaria uma das principais atividades
de pesquisa do IPHAN.
A representação do Aleijadinho genial na adversidade da ignorância é explícita
no discurso de Mário de Andrade:
66 Relação que será observada em algumas ocasiões mais à frente. 67 ANDRADE, Mário de. A arte religiosa no Brasil. p.79-80 68 Idem, ibidem. p.80
35
Se o escultor dos profetas vivesse numa outra sociedade mais culta e
pudesse instruir-se na contemplação das obras antigas ele seria sem
dúvida um dos grandes da arte, deixaria escola tal a genialidade que se
lhe descobre na observação atenta da obra. Mas apenas crente
humilde, alforriando-se da escravidão da vida com as oitavas de ouro
que lhe a Igreja pagava, viveu esculpindo seu sonho de fé.69
A partir do texto de Mário de Andrade, parece ter início um impulso em direção
a uma nova leitura – que se pode chamar modernista – do “barroco”, que culminará na
“caravana de Minas” de 1924, quando diversos intelectuais viajaram para Ouro Preto.
Posteriormente, esta leitura será manifesta na criação do IPHAN, visto que muitos
desses “viajantes” integrariam os quadros da instituição. “Barroco”, então, passa a ser
um conceito valorizado, a ser descoberto e definido, apontando para a própria origem do
Brasil. No entanto, o monopólio sobre esse passado não é conquistado pacificamente
pelo IPHAN.
1.2 Neocolonial e Modernismo
Durante os anos 20, o Neocolonial ganhou força como um movimento
arquitetônico que detinha determinado juízo de valor acerca da arte do passado.
Valorizava a arquitetura colonial e a herança portuguesa, propondo uma nova
arquitetura genuinamente nacional, posicionando-se contra o ecletismo. Segundo Carlos
Kessel:
O neocolonial, através de sua produção textual e construída,
caracterizou-se por uma especificidade em relação às variantes do
ecletismo no sentido em que seus proponentes revelam uma
intencionalidade expressa em propostas político-pedagógicas de
expressão arquitetônica da identidade brasileira. Há uma complexa
69 ANDRADE, Mário de. A arte religiosa no Brasil. p.85-86
36
elaboração simbólica que medeia entre a arquitetura da época colonial
e as intervenções concretas dos arquitetos do século XX, expressa
através de uma narrativa linear que historia a arquitetura brasileira e
destaca a qualidade artística e funcional dos três primeiros séculos, a
maestria de Grandjean, a decadência do final do Império e a
desorientação eclética; o epílogo feliz que se anuncia é o
neocolonial.70
Em um primeiro momento, Neocolonial significava também moderno, conforme
pode ser observado na apologia do movimento realizada no âmbito da Semana de 22,
marco do modernismo brasileiro. Segundo Kessel:
Para Mário [de Andrade] e seus conterrâneos, não havia contradição
entre a arquitetura neocolonial e o desafio estético lançado na Semana
[...]. O neocolonial, neste momento, não é somente nacional e
moderno: representa a vanguarda da arquitetura brasileira.71
Um de seus mais importantes expoentes foi Ricardo Severo, engenheiro
português que atuou em São Paulo. Em 1914, Severo apresentou a conferência
intitulada “A Arte tradicional no Brasil: a casa e o templo72”, considerada um marco na
revalorização da arquitetura colonial. Discute, entre outros pontos, qual seria a
influência determinante na formação de uma arte tradicional brasileira. Para o autor, a
influência indígena era descartável, pois, como afirma Kessel:
[Para Severo,] a cepa válida era a portuguesa; estabelecida no Brasil
desde o século XVI, constituída de aventureiros e mercadores que
traziam fórmulas tradicionais que remontavam ao coração da antiga
Ibéria, ela persiste e se manifesta através de tipos étnicos que
empunham as antigas tradições e as constituem em cerne da nova
nação brasileira.73
70 KESSEL, Carlos. Entre o pastiche e a modernidade: arquitetura neocolonial no Brasil. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2002. 71 KESSEL, Carlos. Op. Cit. p.96 72 Publicada em O Estado de S. Paulo, 26/07/1914. 73 KESSEL, Carlos. Op. Cit. p.65
37
Guilherme Simões aponta para o fato de Ricardo Severo operar uma inversão no
conceito de “barroco”, colocando-o na seara do bom gosto:
A despeito de ser um estilo verdadeiramente internacional, adquiriu
feições particulares nas regiões pelas quais se propagou. Inclusive no
Brasil, onde ‘a arte do mestre Valentim e do Aleijadinho deu ao
barroco português um novo caráter que o distingue de todas as
matrizes européias; e resulta esse novo aspecto ou estilo de uma
sincera adaptação artística às condições locais, morais e materiais do
quadro ‘brasileiro’.74
Ricardo Severo criticava o ecletismo da segunda metade do século XIX,
considerado uma importação européia, um pastiche. Para esse, havia de se observar a
importância da casa:
O caráter de uma cidade não lhe é dado pelos seus monumentos,
colocados em pontos dominantes, grandes praças ou lugares históricos
[...] o monumento é uma exceção, a casa é uma nota normal da vida
cotidiana do cidadão, e como uma lápide epigráfica da sua
ascendência e da sua história. Se algumas ou muitas dessas casas
conservarem um cunho tradicional, o visitante terá uma impressão
integral do caráter dessa arte, e desse povo.75
O autor afirmava ainda que, a despeito da influência portuguesa – uma entre
outras possíveis – a arquitetura havia se adaptado “às condições físicas e morais do
meio brasileiro; e por isso aqui tomou uma feição local, para não dizer desde já
nacional”.
Ricardo Severo havia impulsionado o movimento neocolonial em São Paulo,
logo em seguida o Rio de Janeiro abraçou a causa. Destaca-se a figura de José Marianno
74 GOMES JÚNIOR, Guilherme Simões. Palavra Peregrina. p.52 75 Apud KESSEL, Carlos. Entre o pastiche e a modernidade. p.66-67
38
Filho, médico pernambucano atuante na cidade que se tornou um dos principais teóricos
do Neocolonial, com uma vasta produção escrita sobre o assunto, além de organizar
concursos e participar institucionalmente do estabelecimento da profissão de arquiteto
no Brasil. Em 1923, publicou o artigo “Os Dez Mandamentos do Estilo Neo-Colonial”,
cujo trecho é transcrito a seguir:
Todo elemento deve ser representado em matéria na sua estrutura
natural, sem simulação nem embuste [...] a ordem implantada pelos
Jesuítas entre nós, a toscana, é a única que convém [...] sede sóbrios
nos atavios exteriores, usai da maior discrição no emprego dos
elementos chamados decorativos [...] a riqueza ostensiva dos
elementos é sempre um indício de falta de cultura ou de exibicionismo
vulgar [...] em pleno século XX, no tumulto de uma vida febril,
paralelamente com o aeroplano e o automóvel, não poderíamos pensar
numa casa à moda [...] de nossos avós [...] nós só podemos reviver um
estilo arquitetônico se esse estilo puder representar e atender às
exigências prementes da vida moderna [...] a casa é, logicamente, um
expoente da raça, mero fenômeno social na geografia humana [...] um
povo não muda de casa nem de língua; e se ainda não possuímos a
nossa casa, é simplesmente porque ainda não somos um povo [...] o
retorno às formas lógicas do estilo colonial dos nossos antepassados é
o prelúdio de nossa emancipação social e artística.76
Essa longa citação transcrita é interessante não somente por se tratar de um
manifesto pela arte neocolonial, mas também porque, como veremos certos
pressupostos defendidos a “ferro e fogo” pelos arquitetos modernistas como algo que
lhes era específico, já haviam sido preconizados pela arquitetura neocolonial.
Nos anos 20, a arquitetura neocolonial estava em altíssima conta na sociedade,
fazendo parte de um processo que se voltava contra a importação dos estilos europeus
76 MARIANNO FILHO, José. Architectura no Brasil , n.24, Setembro de 1923, p.23 apud KESSEL, Carlos. Entre o pastiche e a modernidade, p. 118
39
para reafirmar uma tradição – que remonta a Portugal – na constituição de um estilo
eminentemente nacional.
Conforme aponta Carlos Kessel, eram freqüentemente requisitados aos
escritórios de arquitetura projetos de residências no estilo neocolonial e diversos
concursos realizados à época tiveram como vencedores projetos de clara inspiração no
mesmo estilo77. O autor nos informa que:
Também a exemplo dos concursos que José Marianno vinha
promovendo, no que foi aberto pelo Ministro da Agricultura para o
Pavilhão do Brasil na Exposição Internacional de Philadelphia, em
1925, o ‘estilo colonial’ era condição obrigatória. José Marianno
participou do júri do concurso, que estabeleceu, segunda a
‘Architectura no Brasil’, definitivamente o neocolonial como estilo
adequado à programas monumentais.78
Antes, em 1924, José Marianno investia no movimento de descoberta da arte
colonial, conforme aponta Kessel:
Através da Sociedade Brasileira de Belas Artes (que presidia desde 31
de julho de 1923) ele patrocinou no início de 1924 as viagens de
alguns arquitetos a cidades históricas de Minas Gerais: Ouro Preto
(para onde foi enviado Nereu de Sampaio), São João del Rei (visitada
por Nestor de Figueiredo) e Diamantina (cujo registro coube a Lúcio
Costa).79
As viagens organizadas por José Marianno faziam parte de um movimento de
“redescoberta” de Minas Gerais, contemporâneas à viagem feita por Mário de Andrade,
Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e Blaise Cendrars. O “barroco” agora estava em
voga e começava a ser descoberto. Lúcio Costa, no entanto, afirmava que, em viagem,
77 Para uma análise detalhada dos diversos empregos do neocolonial, ver KESSEL, Carlos. Entre o pastiche e a modernidade. 78 KESSEL, Carlos. Op. Cit. p.123 O concurso em questão foi vencido por Lúcio Costa, então recém-formado. 79 Idem, ibidem.. p.119
40
havia travado contato com um “colonial autêntico”, formulação ainda incipiente, que
mais à frente será o cerne da clivagem entre Neocolonial e Modernismo.
Em 1926, José Marianno Filho foi escolhido diretor da Escola Nacional de Belas
Artes, acumulando o cargo à sua função de presidente da Sociedade Brasileira de Belas
Artes. A ENBA era então um “reduto tradicional do ecletismo, da entronização do
neoclássico que se confundia com suas próprias origens”80. Marianno tentou
implementar uma profunda reforma na Escola desmembrando cadeiras e criando
diversas outras novas. No entanto, suas iniciativas geraram forte resistência dos
professores, que argumentaram pela necessidade legal do diretor possuir atividade
docente, o que não era o caso. Pouco mais de um ano depois, foi afastado e Otávio
Correia Lima assumiu em seu lugar.
Longe de significar um enfraquecimento do Neocolonial, o movimento ganharia
novo alento com a nomeação de Fernando de Azevedo para Diretoria Geral de Instrução
Pública do Rio de Janeiro pelo prefeito Antonio Prado Jr., que havia tomado posse do
cargo em novembro de 1926. As propostas pedagógicas de Azevedo incluíram
determinações arquitetônicas para a construção de escolas, e o Neocolonial, entendido
não como uma cópia da arquitetura colonial, mas como arquitetura brasileira por
excelência, foi o estilo eleito. Do projeto original de 100 escolas apenas 9 foram
construídas, com destaque para a Escola Normal. Segundo Kessel:
A Escola Normal mereceu da Prefeitura um tratamento diferenciado,
por ser o lugar onde se formavam as futuras professoras, e terminou
por se constituir na vitrine arquitetônica [...] sendo a única cujo
projeto foi escolhido por concurso, que conforme os ditames de
Fernando de Azevedo tinha o estilo neocolonial como obrigatório.81
80 KESSEL, Carlos. Entre o pastiche e a modernidade. p.144 81 Idem, ibidem. p.158
41
Ainda segundo Kessel, José Marianno fez um pronunciamento no II Congresso
Brasileiro de Educação, realizado em 1928, no qual endossava a iniciativa:
[José Marianno] alertava contra as conseqüências de serem erigidos
prédios escolares segundo estilos arquitetônicos que não se
referenciassem na tradição do país, pelo risco que correriam os alunos
ao conviverem com elementos estéticos estrangeiros. A escola,
caracterizada como a instituição que propiciava o primeiro contato do
brasileiro com a nacionalidade, deveria ser plasmada numa arquitetura
de fundo nacional.82
O Neocolonial encontrava-se assim, nesse momento, com grande prestígio,
como um estilo que representava a nação brasileira, mas a situação logo mudaria, e o
responsável pelo início desse processo seria o próprio Lúcio Costa, um de seus maiores
expoentes. O episódio em questão é a nomeação de Costa para a direção da Escola
Nacional de Belas Artes, em dezembro de 1930. Segundo Kessel:
Lúcio, aos vinte e oito anos, era considerado o nome mais destacado
de sua geração. Seu nome poderia augurar o fortalecimento da
afirmação institucional do Neocolonial, arrematando uma década de
esforços bem-sucedidos. Além da amizade que ligava o novo diretor à
José Marianno, sua atuação profissional esteve sempre ligada ao
ideário tradicional: havia participado de vários concursos de projetos
de inspiração Neocolonial, sendo premiado em dois deles, e associado
a Fernando Valentim projetara e construíra várias residências no Rio
de Janeiro, sempre no mesmo estilo.
Todavia, a breve passagem de Lúcio pela ENBA se caracterizou pela
surpreendente profissão de fé nas novas idéias propagandeadas pelas
vanguardas européias, num misto de rejeição ao conservadorismo
acadêmico e entusiasmo pela modernidade.83
82 KESSEL, Carlos. Entre o pastiche e a modernidade. p.159 83 Idem, ibidem. p.178
42
Costa assumiu a direção da Escola de Belas Artes indicado por Rodrigo Melo
Franco de Andrade, então chefe de gabinete do Ministro da Educação e Saúde,
Francisco Campos. Entre as diversas reformas que implantou, promoveu a separação
dos cursos em Arquitetura e em Pintura e Escultura, além de ter chamado jovens
arquitetos recém-formados para integrar o corpo docente. Convidou também o arquiteto
Gregori Warchavick para lecionar Arquitetura Moderna. Lembremos que o arquiteto
construiu a primeira casa em estilo moderno no Brasil – sua residência em São Paulo –
em 1928.
Dessa forma, Lúcio Costa optava claramente pelo Modernismo, dando início a
um embate com o Neocolonial. Logo após sua nomeação, concedeu uma entrevista ao
jornal O Globo84 onde atacava a arquitetura contemporânea e o ensino na ENBA –
negando-lhes o valor de arquitetura – e tratava a apropriação feita da arquitetura
colonial como mera cópia deslocada, pastiche, quando na verdade se deveria aprender
as lições oferecidas por ela. Iniciava-se dessa forma um trabalho de inserção do
Neocolonial na seara do ecletismo. Isto pode ser observado até mesmo na valoração
negativa daquele utilizando os mesmos adjetivos com os quais Ricardo Severo e José
Marianno haviam criticado o ecletismo.
José Marianno reagiria a essa tomada de posição de Costa, em artigo publicado
em O Jornal85, na qual mostrava seu desapontamento com o “o mais valoroso cadete da
esquadra tradicionalista”, “paladino da arquitetura de fundo nacional”, que havia cedido
à “corrente ultra-moderna”, ao “nacionalismo judaico”, cujo objetivo seria a
“desnacionalização da arquitetura nacional”.
Em 1931, Lúcio Costa foi afastado da direção, sob a mesma prerrogativa que
havia destituído também do cargo José Marianno, anos antes. No entanto, muito embora
84 O novo diretor da Escola de Belas Artes e as diretrizes de uma reforma. Entrevista de Lúcio Costa a Gérson Pompeu Pinheiro. O Globo, 29.12.1930. 85 MARIANNO FILHO, José. Escola Nacional de Arte Futurista. O Jornal, 22/07/1931.
43
tenha considerado sua tentativa de reforma fracassada, alguns pontos surtiram efeito,
como por exemplo o apoio dos estudantes que fizeram uma greve geral pela
manutenção de alguns pontos básicos da reforma – como a separação do curso de
Arquitetura das cadeiras da ENBA e a formulação de um estatuto legal para a profissão
do arquiteto. Além disso, no mesmo mês de setembro em que o diretor foi afastado, era
aberto o Salão de 1931 – organizado por Lúcio Costa –, conhecido como o “Salão
Revolucionário de 31”, marco modernista, que apresentava os trabalhos de jovens
alunos da Escola.
Posteriormente, Lúcio Costa tornou-se um dos símbolos da arquitetura
modernista por excelência, continuando a série de embates contra o Neocolonial e José
Marianno.86 No entanto, boa parte do teor das discussões, baseadas na idéia de que o
Neocolonial era artificial, ao contrário de um aspecto genuíno no Modernismo, indica
mais um projeto de “presente-futuro” do que efetivamente discordâncias quanto a
definições de “passado”. Ambos concordavam sobre a importância da arte colonial,
sobre a nacionalidade brasileira já presente na colônia e recusavam o eclético como um
estilo importado, indo de encontro a uma formação francesa de Belas-Artes. Entretanto,
a ressignificação operada no âmbito do Modernismo incluiu o Neocolonial na mesma
seara que o Ecletismo, transformando o movimento modernista naquele que
efetivamente fazia um bom uso contemporâneo desse passado.
Com o tempo, a crítica de José Marianno ao Modernismo tornou-se amarga e
dispersa, fugindo do tema da arquitetura ou da arte e passando a abordar questões
pessoais que terminaram por desautorizá-lo. Com isso o Neocolonial perdeu uma de
suas principais – senão única em termos públicos – vozes.
86 Algumas dessas discussões serão analisadas mais à frente.
44
Uma possível razão para o Modernismo ter triunfado, ao passo que o
Neocolonial tornou-se mais um dos estilos do passado, finalmente identificado ao
ecletismo, reside na própria constituição do IPHAN. Quando é criado, o quadro de
funcionários do IPHAN é, acima de tudo, modernista, mas também composto
majoritariamente por arquitetos. Conforme aponta Mariza Velloso:
O grupo da Academia SPHAN, no que se refere ao seu corpo de
técnicos, é formado principalmente por arquitetos – de linhagem
modernista –, o que demonstra, mais uma vez, conforme vimos
afirmando, a interseção entre arquitetura moderna – voltada à
modelagem do ‘homem novo’, e o patrimônio, volta a descobertas de
uma passado civilizatório, revolucionário, porque original, novo,
inaugural.87
Dessa forma, com respaldo institucional e governamental, a voz do Modernismo
arquitetônico tornava-se por demais potente para ser contestada – especialmente numa
situação onde o estabelecimento de uma tradição nacional, realizada através de proteção
legal, era uma de suas atribuições.
No âmbito do IPHAN, Costa ocupou o cargo de consultor-técnico contratado de
1936 até 1946, quando, após uma reestruturação administrativa do órgão, tornou-se
diretor da Divisão de Estudos e Tombamento (DET), até sua aposentadoria em 1972.
Como responsável pela divisão, cabia-lhe a definição de critérios para a classificação do
patrimônio nacional. Sua forte presença no IPHAN, como já foi muitas vezes
evidenciado, reforça o vínculo da instituição com a arquitetura. Pode-se dizer, nesse
sentido, que o desenvolvimento do órgão ao longo dos anos ocorreu em sintonia com o
próprio estabelecimento da profissão de arquiteto no Brasil. Desde o início, a maior
parte do seu quadro de funcionários tinha essa profissão como ocupação, e trabalhar no
IPHAN era visto como uma excelente oportunidade de crescimento. Ademais, a
87 VELLOSO, Mariza. Nasce a Academia SPHAN. Revista do IPHAN, n.24, p.77-96, 1996. p.82
45
presença de Lúcio Costa ilustra bem essa conexão, na medida em que foi também o
precursor da moderna profissão do arquiteto brasileiro, inclusive vencedor de diversos
prêmios internacionais.
Consolidado como uma instituição própria à arquitetura, o IPHAN apresentava
uma particularidade bastante interessante: reunia os profissionais responsáveis pelo
estabelecimento de uma tradição nacional, pela invenção de uma memória para a nação,
mas que eram também os profissionais ligados ao movimento modernista, ao
desenvolvimento de uma arquitetura vanguardista, comprometidos com o novo.
A ligação entre os modernistas e o Estado Novo, mais especificamente com
Gustavo Capanema, pode ser observada no próprio processo de construção do prédio do
Ministério da Educação e Saúde, em 1936. Conforme aponta Kessel:
É interessante notar como a polêmica que cercou o episódio coincide
com a ultimação do projeto de constituição do Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, em que a concepção dos modernistas
sobre o patrimônio da nação acabou por se impor sobre outras visões e
interesses que se congregavam em torno das idéias conservadoras e
acadêmicas, representadas por Gustavo Barroso, José Marianno e
Oswaldo Teixeira. O embate pelo futuro da arquitetura brasileira
travava-se simultaneamente à discussão sobre a apropriação legítima
do passado, aquela que teria a chancela do Estado.88
O episódio foi polêmico: instituiu-se um concurso no qual o projeto vencedor
recebeu o prêmio em dinheiro conforme o edital, mas não foi construído. Ainda
segundo Kessel:
A reunião dos órgãos sob a coordenação do MES deveria se dar numa
nova edificação, e decidida a sua construção e escolhido o local, o
próprio Capanema presidiu o júri que se encarregou do processo de
seleção; este estendeu suas deliberações entre abril e outubro de 1935
e culminou com a escolha do projeto assinado por Archimedes 88 KESSEL, Carlos. Entre o pastiche e a modernidade. p.214
46
Memória. Suas linhas monumentais e elementos decorativos evocando
a arte marajoara desagradaram o ministro, que entrou em contato com
Lúcio Costa; o arquiteto, que depois de deixar a direção da ENBA
havia se dedicado à prática particular, arrebanhou alguns colegas que
haviam sido eliminados com ele na etapa preliminar do concurso e
constituiu uma nova equipe, que com a ajuda posterior de Le
Corbusier deu forma definitiva ao edifício. Este se tornaria um
símbolo vivo do caráter moderno associado à política cultural de
Capanema.89
Comentando o episódio da construção do edifício em um artigo para a Revista
do IPHAN que apresentava um texto de Le Corbusier, Lúcio Costa diz que:
Em 1936 – a bem dizer há meio século, portanto – convocado pelo
Ministro Capanema a fim de elaborar projeto para o edifício-sede do
novo Ministério da Educação e Saúde, organizei um grupo de trabalho
composto dos arquitetos Carlos Leão, Afonso Eduardo Reidy e Jorge
Moreira, mas logo acrescido de Oscar Niemeyer.
Elaboramos então um projeto que, conquanto bom, ainda não nos
satisfazia: ‘o que teria feito Le Corbusier no caso, nos
perguntávamos? ’
Éramos tão desinteressados e idealistas que – coisa hoje impensável –,
com os planos já devidamente aprovados e sinal verde para o início da
obra, resolvemos de comum acordo, pleitear do Ministro a vinda de
Le Corbusier para dar parecer sobre o projeto. [...]
Demorou-se por três semanas, quando concebeu um belíssimo projeto,
de partido horizontal, para terreno situado mais ou menos onde foi
construído o MAM, proposição esta que nos serviu afinal de base ao
novo projeto de partido vertical, que fizemos no terreno do Castelo.90
89 KESSEL, Carlos. Entre o pastiche e a modernidade. p.210. A arquitetura marajoara, tal como foi classificado o projeto de Memória, baseia-se na utilização de elementos das civilizações pré-colombianas. 90 COSTA, Lúcio. Apresentação de Le Corbusier: A arquitetura e as belas-artes. Revista do IPHAN, Rio de Janeiro, n.19, 1984, p.53
47
Conhecido atualmente como Palácio Gustavo Capanema, o edifício tornou-se
um dos marcos do Modernismo brasileiro91, objeto de um tipo de tombamento
diferenciado – de bens ainda recentes, sem o habitual recuo temporal – pois constituíam
“verdadeiros” exemplares da nova arquitetura nacional, sendo necessários preservá-los
como modelos92. Paralelamente a esse processo, constituía-se o IPHAN, conforme
afirmado. Vejamos como isso se deu.
1.3 A criação do IPHAN
Como já foi apontado, o IPHAN foi criado no período conhecido como Estado
Novo93, durante o governo autoritário de Getúlio Vargas, subordinado ao Ministério da
Educação e Saúde, cujo ministro era Gustavo Capanema. Deve-se lembrar que o Estado
Novo representou um momento da cultura brasileira em que se buscou, com grande
empenho, consolidar o projeto de construção de uma identidade nacional. Diversas
correntes intelectuais propunham interpretações para a nação, formulando mitos de
origem e discutindo a contribuição de diferentes elementos na constituição da
nacionalidade brasileira. O IPHAN, nesse sentido, apresentava-se como uma dessas
opções, e poderíamos dizer que representa uma opção vitoriosa, na medida em que é um
órgão governamental. Através de uma forte centralização na figura de Rodrigo Melo
Franco de Andrade – primeiro e mais longevo diretor da instituição (permaneceu no
cargo até sua aposentadoria, em 1968) – o IPHAN buscou desvincular-se ao máximo
dessa posição de integrante de uma política oficial do Estado. Mas torna-se inevitável
relacioná-lo ao projeto estadonovista, ainda que apresente discordâncias em relação a
algumas políticas oficiais. Como afirma Márcia Chuva:
91 Tombado em 1948. O edifício foi concluído em 1943. 92 Nessa mesma chave foi tombada a Igreja da Pampulha, de Belo Horizonte. 93 Através do Decreto-Lei 25, em 30 de novembro de 1937.
48
Nos anos 30 do século XX, um intenso trabalho de construção da
nação foi inaugurado como parte do projeto de modernização do
ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, homem forte do
governo Vargas. Nesse projeto, a noção de interesse público
prevaleceria, ante os interesses individuais [...] Somente a unidade das
origens e a ancestralidade comum de toda a nação deveriam servir
para ordenar o caos, encerrar os conflitos, irmanar o povo e civilizá-lo.
As práticas de preservação cultural foram inauguradas no Brasil no
bojo desse projeto, a partir da criação do [...] SPHAN, em 1937.94
Desta forma, é possível afirmar que a opção feita pelos “intelectuais do
patrimônio” serviu a um projeto estrategicamente delineado de inserção do Brasil na
história da arte universal e à própria inserção da noção de patrimônio como um dos
principais elementos constituintes da “alma nacional”.
Os integrantes do modernismo brasileiro que preencheram os quadros do
IPHAN, ligados ao chamado “grupo dos mineiros” – do qual Rodrigo Melo Franco de
Andrade fazia parte – baseavam-se na crença de um universalismo da arte e da cultura
ainda que com especificidades brasileiras.95 A presença de Capanema, nesse sentido, foi
fundamental, como personagem aglutinador dessa “corrente mineira”, conforme aponta
Márcia Chuva:
A atuação de Gustavo Capanema à frente do MÊS, de 1934 a 1945,
foi fundamental para a institucionalização e consolidação da ação do
Estado, relativa à inclusão, à organização da defesa e à proteção do
chamado patrimônio histórico e artístico nacional. Capanema esteve
diretamente empenhado no assunto, encarnando uma nova postura do
Estado que, neste momento, investiu efetivamente na incorporação do
debate em torno da nacionalidade e dos marcos fundadores da ‘nação
brasileira’, como elemento importante para o projeto – nacionalista e
94 CHUVA, Márcia R. Romeiro. Fundando a nação: a representação de um Brasil barroco, moderno e civilizado. Revista Topoi, v.4, n.7, jul.-dez. 2003. p.313 95 Veremos, mais à frente, como esse projeto se concretiza na constituição de um patrimônio nacional.
49
autoritário – que se delineava, de modernização conservadora. Este
projeto ganharia, a partir de 1937, feições mais nítidas.96 P.107
A demanda pela salvaguarda dos monumentos e cidades históricas do Brasil
fazia-se ouvir desde a segunda metade do século XIX, na forma de artigos e
conferências. Os museus já estavam em funcionamento nos anos 20 do século XX, mas
não havia uma legislação para a proteção de bens que não integravam suas coleções. Foi
no âmbito estadual que o poder público se manifestou inicialmente, criando as
Inspetorias Estaduais de Monumentos Históricos97. No âmbito federal, a iniciativa
precursora foi tomada por Gustavo Barroso, diretor do Museu Histórico Nacional,
quando criou a Inspetoria dos Monumentos Históricos (1934). Essa, no entanto, teve
atuação restrita e foi desativada três anos mais tarde, com a criação do IPHAN. É
interessante observar que Ouro Preto já havia sido pioneiramente elevada a monumento
nacional em 1933, através de decreto federal98.
Conforme afirma José Reginaldo Gonçalves:
Desde os começos da preservação histórica, na primeira metade do
século XX no Brasil, a proteção do patrimônio histórico e artístico
nacional tem sido justificada pela identificação de uma situação de
desaparecimento e destruição de monumentos históricos e obras de
arte em território brasileiro. Nos anos 1920, antes da criação do
Sphan, algumas iniciativas foram tomadas, nos níveis federal e
estaduais de governo, no sentido de preservar o patrimônio histórico e
artístico nacional. A maior parte dessas iniciativas, assumida por
membros da elite intelectual brasileira, foi justificada por uma retórica
da perda. O patrimônio da nação era apresentado sob os efeitos de um
processo de desaparecimento, dispersão e destruição.
96 CHUVA, Márcia. Os arquitetos da memória: a construção do patrimônio histórico e artístico nacional no Brasil (anos 30 e 40). Niterói, Universidade Federal Fluminense, 1998. p.104 97 Minas Gerais (1926), Bahia (1927) e Pernambuco (1928) 98 Para um mapeamento mais detalhado das iniciativas precursoras à criação do IPHAN, ver FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil. 2ª. ed., Rio de Janeiro: Editora UFRJ, MinC – Iphan, 2005.
50
O mesmo sentido de perda assim como a urgência do resgate do
patrimônio de arte e história do país estão entre os mais fortes motivos
que justificaram a criação do Sphan em 1936.99
Assim, quando o IPHAN é criado, trata-se de salvaguardar, na medida do
possível, o patrimônio nacional. Particularmente, o “barroco” é apropriado como a
origem desse patrimônio, e o discurso formulado na série editorial do IPHAN tem por
objetivo localizá-lo na arte colonial brasileira e descrevê-lo, para que seja constituído
como formador da nacionalidade brasileira e consequentemente preservado. Conforme
aponta Gonçalves:
As estórias narradas por intelectuais nacionalistas sobre o patrimônio
cultural brasileiro são, basicamente, estórias de apropriação, narradas
para responder a uma situação de perda e com o propósito de construir
uma nação. O patrimônio é narrado como num processo de
desaparecimento ou destruição, sob a ameaça de uma perda definitiva.
Essa narrativa pressupõe uma situação primordial feita de pureza,
integridade e continuidade, situação esta seguida historicamente por
impureza, degradação e descontinuidade. A história, de certo modo, é
vista como um processo destrutivo. A fim de que seja possível fazer
frente a seu processo estabelecem-se estratégias de apropriação e
preservação do patrimônio. Nesse sentido, a nação, ou seu patrimônio
cultural, é construída por oposição a seu próprio processo de
destruição. De modo similar ao que faziam determinados tipos de
antropólogos engajados no resgate de culturas primitivas em vias de
desaparecimento, intelectuais nacionalistas têm como propósito
fundamental a apropriação, preservação e exibição do que eles
consideram como o que pode ser salvo do processo de destruição e
perda do patrimônio cultural da nação.100
99 GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro, Editora UFRJ/MinC-IPHAN, 1996. p.89 100 Idem, ibidem. p.31
51
Analisando o discurso de Rodrigo Melo Franco de Andrade à frente do IPHAN,
Gonçalves observa também a proeminência de Minas Gerais, tópica que perpassou o
discurso não só de seu diretor, mas da instituição de maneira geral:
Além disso, nas narrativas produzidas pela historiografia oficial,
Minas Gerais é usada como o cenário do que veio a ser considerado
como o mais importante acontecimento histórico do Brasil colonial no
século XVIII: a ‘inconfidência mineira’. O movimento [...] veio a ser
usado como um símbolo oficial dos ideais nacionalistas de autonomia
política. Nesse sentido, na narrativa de Rodrigo, Minas é considerada
como uma espécie de lugar sagrado da identidade nacional brasileira.
Muitos dos seus monumentos apresentam uma dimensão significativa
não somente do ponto de vista estético como também em virtude de
suas associações de natureza cívica.101
Ao se estabelecer como uma instituição que detém um monopólio privilegiado
sobre o passado, pois suas atribuições incluem a seleção e proteção legal dos
exemplares, o IPHAN consolidava-se como um lugar de poder para produção de
discursos acerca da nação brasileira. Assim, quando seus quadros são preenchidos
eminentemente por modernistas, o embate com o neocolonial anunciava seu fim, tendo
em vista a força desse discurso, institucional e governamental. O IPHAN teve mesmo o
poder de absorver personagens ligados ao neocolonial, como José Wasth Rodrigues,
aproveitando-se do que era compatível com o seu projeto de nação.
Construído na base de concepções modernistas, destacando-se Lúcio Costa nesse
projeto, a apropriação do conceito de “barroco” realizada pelo IPHAN buscou, dessa
forma, a construção de um passado que desse conta dos projetos realizados no presente.
Vejamos como isso se deu nas suas séries editoriais.
101 GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda. p.69
52
2 Representações do “barroco” na produção editorial do IPHAN (1937 – 1978)
Neste capítulo será analisada a produção editorial do IPHAN, composta pela
Revista do IPHAN e pela série Publicações do IPHAN. O interesse nessa produção está
em compreender como a constituição de um corpus editorial no Instituto do Patrimônio
serviu a um projeto estrategicamente delineado de construção de um patrimônio
nacional. Se as práticas de tombamento criaram uma materialidade monumental para a
nação, a série editorial forjou, sob a égide de estudos científicos e especializados, o
conhecimento que validava as ações do IPHAN, assim como determinava seu próprio
campo de possibilidades. Segundo Márcia Chuva:
A política editorial do SPHAN foi marcada por uma produção
discursiva descritiva e classificadora do patrimônio histórico e
artístico nacional, capaz de conquistar legitimidade para prescrever os
atributos desse patrimônio e para fixar um mapa de possibilidades.
Com ela, o SPHAN passaria a balizar e polarizar os debates sobre essa
temática, fazendo com que, ao se falar de preservação cultural no
Brasil, se tornasse impossível não se remeter à sua produção, ainda
que para criticá-la ou questioná-la. 102
O IPHAN definia-se, dessa forma, como agente no campo da preservação e
restauro, assim como pólo intelectual especialista no assunto. De maneira natural, os
artigos e livros produzidos não buscavam, em hipótese alguma, criticar as ações
patrimoniais, mas sim endossá-las ou apontar novos caminhos. Criava-se então um
discurso legitimador para as práticas do órgão.
A análise, aqui, será centrada nas concepções de “barroco” presentes nas
publicações, entendidas como constituintes da especificidade brasileira que permite a
inserção do Brasil na modernidade européia. Ainda segundo Márcia Chuva: 102 CHUVA, Márcia. Fundando a nação: a representação de um Brasil barroco, moderno e civilizado. Revista Topoi, v.4, n.7, jul.-dez. 2003. p.322
53
O investimento numa produção impressa foi uma das ações
eficientemente adotadas visando a uma dada forma de proteção do
patrimônio histórico e artístico nacional. Teve papel articulador de um
debate entre intelectuais e propagandeador de ação institucional,
implementado através de notícias, artigos e polêmicas na grande
imprensa, assim como através das edições do SPHAN que somavam
um caráter legitimador e divulgador de um conhecimento
especializado prescrito pela agência estatizada. 103
Foram selecionados para a análise os volumes editados entre 1937 e 1978.,
período que abarca os 18 primeiros números da revista publicados, representando uma
primeira fase, compreendida pela direção de Rodrigo Melo Franco de Andrade (1937-
1968) e a de Renato Soeiro (1969-1978), que adotou uma postura de continuidade à
política empreendida pelo primeiro e até então único diretor. Isto fica bastante claro ao
observarmos os números editados por Renato, homenageando Rodrigo e retomando
temas expostos anteriormente. A Revista então só voltaria a ser publicada em 1984,
após a gestão renovadora de Aloísio Magalhães (1979-1982), apresentada em um novo
formato, visual e editorial, dividido em seções.
No caso das Publicações, a série se estendeu até 1987, compreendendo 38
volumes, mas mantém-se um interesse maior nos volumes que saíram até 1978 (um
total de 29). A análise está centrada nestes, pois, além de equivaler ao período
considerado para análise da Revista, os nove volumes restantes das Publicações fogem
apresentam propostas temáticas diferenciadas. São livros comemorativos e
rememorativos, como os dedicados a Rodrigo Melo Franco de Andrade104 e a Mario de
Andrade105; técnicos, tal como os dois números publicados em 1980 sobre as práticas de
103 CHUVA, Márcia. Os arquitetos da memória. p.205 104 Rodrigo e seus tempos: coletânea de textos sobre artes e letras (Publicações do IPHAN; nº 37) e Rodrigo e o SPHAN: coletânea de textos sobre patrimônio cultural (Publicações do IPHAN; nº 38). 105 Mário de Andrade: cartas de trabalho; correspondência com Rodrigo Mello Franco de Andrade, 1936-1945 (Publicações do IPHAN; nº 33)
54
proteção e revitalização de núcleos históricos106. Nas Publicações aparece também o
catálogo dos bens móveis e imóveis tombados até 1982 (mesa data da publicação)107, o
que sugere uma certa consolidação do patrimônio preservado, além de uma iniciativa
propagandística.
2.1 A Revista do IPHAN
2.1.1 Tipologia: criação, objetivos, autores e público
A Revista do IPHAN foi criada já no primeiro ano do então Serviço e permanece
até a atualidade, apesar de eventuais interrupções – temporais, mas não na série –, como
a única publicação contínua do IPHAN. Conforme apontado por Márcia Chuva,
inicialmente as datas impressas na capa não correspondiam à data efetiva de publicação.
Segundo a autora, esta investida em uma aparente regularidade das edições aliava-se à
pretensão de imprimir um caráter científico à revista. Somente a partir de 1955 as datas
passariam a corresponder a sua publicação efetiva108. Criava-se, assim, um corpus
homogêneo de publicações, com continuidades e rupturas cuidadosamente construídas.
No escopo selecionado para estudo, correspondente a uma primeira fase, tomando por
referência as datas de publicação impressas nas capas, observa-se a seguinte disposição:
onze números anuais entre 1937 e 1947; após um intervalo, edições em 1955, 1956,
1959, 1961, 1968, 1969 e 1978109.
106 Restauração e revitalização de núcleos históricos. Análise face à experiência francesa. (Publicações do IPHAN; nº 30) e Proteção e revitalização do patrimônio cultural no Brasil: uma trajetória. (Publicações do IPHAN; nº 31) 107 Bens móveis e imóveis inscritos nos livros de tombo do patrimônio histórico e artístico nacional. (Publicações do IPHAN; nº 35) 108 Ver CHUVA, Márcia. Os arquitetos da memória: a construção do patrimônio histórico e artístico nacional no Brasil (anos 30 e 40). Niterói, Universidade Federal Fluminense, 1998. 109 Serão utilizadas as datas conforme constam nas revistas.
55
O que podemos observar, nos primeiros números da Revista, é uma verdadeira
tomada de posição da instituição como fornecedora dos meios para se pensar e perceber
o patrimônio histórico e artístico nacional. Os artigos visavam, principalmente, dar
conta de duas funções: descobrir e habilitar o que deve ser classificado como bem
patrimonial e estabelecer a importância desses bens na constituição da nacionalidade
brasileira. O IPHAN definia-se, dessa forma, como norte das questões relativas ao
nacional, agora patrimonializado. Segundo Lauro Cavalcanti:
Seus artigos eram gerados de duas formas básicas: a partir de uma
‘encomenda’ do dr. Rodrigo, um técnico debruçava-se exclusivamente
sobre um tema, abandonando temporariamente suas outras obrigações
com o fito de desvendar uma faceta até então pouco estudada de nossa
cultura; em outra modalidade, os ensaios eram conseqüência de
descobertas feitas nas viagens de ‘redescoberta’ do Brasil que
caracterizaram a fase ‘heróica’. 110
É importante ressaltar também que a Revista do IPHAN logo adquiriu certo
prestígio, conforme apontou Márcia Chuva:
Em 1946, a Revista conquistou o ‘diploma de honra’ na Segunda
Exposição Internacional de Publicações Periódicas, realizado pela
Biblioteca Pública de Santiago Alvarez da Escola de Artes Plásticas
Tarascá, em Cuba, em que concorreram 1.711 publicações de todo o
mundo. 111
Podemos observar, portanto, que a Revista tornou-se uma das iniciativas mais
importantes na constituição e desenvolvimento do tema patrimônio no Brasil. No
Programa da Revista, apresentado por Rodrigo Melo Franco de Andrade no número
inaugural, os objetivos são enunciados:
110 CAVALCANTI, Lauro. “Introdução à primeira edição” In: Modernistas na repartição / organizado por Lauro Cavalcanti. – 2. ed. rev. – Rio de Janeiro: Editora UFRJ: Minc – IPHAN, 2000. p.23 111 CHUVA, Márcia. Os arquitetos da memória: a construção do patrimônio histórico e artístico nacional no Brasil (anos 30 e 40). p.221
56
A publicação desta revista não é uma iniciativa de propaganda do
Serviço do Patrimônio [...] O objetivo visado aqui consiste antes de
tudo em divulgar o conhecimento dos valores de arte e de história que
o Brasil possui e contribuir empenhadamente para seu estudo [...]
Ninguém contestará, no entanto, que há necessidade de uma ação
sistemática e continuada com o objetivo de dilatar e tornar mais
seguro e apurado o conhecimento de valores de arte e de história de
nosso país. 112
E ainda, sobre os estudos a serem feitos:
Trata-se, por conseguinte, de um vasto domínio, cujo estudo reclamará
longos anos de trabalho, assim como a preparação cuidadosa de
numerosos especialistas para empreendê-lo. Esta revista registrará
semestralmente uma pequena parte do que se houver tentado ou
conseguido com esse objetivo. Ela conta com a contribuição dos
doutos nas matérias relacionadas com a sua finalidade e bem assim
com o apoio e a simpatia de todos os brasileiros interessados pelo
patrimônio histórico e artístico nacional. 113
Os dois primeiros números editados apresentavam uma gama variada de artigos,
uma espécie de delimitação de “possíveis patrimônios”, marcando sua diversidade, com
a contribuição de diferentes especialistas. No entanto, a maior parte desses abordava o
patrimônio de “pedra e cal”, especialmente a arquitetura religiosa. Conforme uma
advertência de Rodrigo:
O presente número desde logo se ressente de grandes falhas, versando
quase todo sobre monumentos arquitetônicos, como se o patrimônio
histórico e artístico nacional consistisse principalmente nesses. 114
Esta recomendação, contudo, parece não ter surtido muito efeito, visto que os
monumentos arquitetônicos continuaram a predominar como objeto de estudo, 112 ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Programa da Revista. Revista do IPHAN, n.1, 1937. p.3 113 Idem, ibidem, p.4 114 Idem, ibidem, p.4
57
respondendo por aproximadamente 40% dos artigos publicados até 1978. Isto sugere
como a concepção dos arquitetos foi predominante nas páginas da Revista.
Entre os autores que contribuíram com artigos, destaca-se Lúcio Costa – sempre
versando sobre a arquitetura colonial e o barroco –, que logo se tornou um dos grandes
intelectuais do patrimônio. Escreviam para a Revista, além dos próprios técnicos do
IPHAN, membros do Conselho Consultivo e outros intelectuais que integravam a rede
de relações pessoais de Rodrigo Melo Franco de Andrade. Em alguns casos,
participavam especialistas estrangeiros, como no caso de Robert Smith115 e Hanna
Levy116, historiadores da arte. Seus artigos foram escritos em conseqüência de cursos
que foram convidados a ministrar aos técnicos do IPHAN117.
Conforme o programa apresentado por Rodrigo M. F. de Andrade, a revista
parecia destinar-se a dois grupos distintos. Como iniciativa de divulgação do então
Serviço, endereçava-se à sociedade em geral; enquanto espaço de produção de
conhecimento especializado e embasado cientificamente, parecia querer delimitar um
campo de estudos. A pretensão científica da revista pode ser observada em sua própria
configuração, trazendo a maior parte de seus artigos assinados, organizados em forma
de coletâneas, tal qual livros, contendo muitas vezes reproduções de fontes. O
Programa da Revista publicado no primeiro número advertia também sobre a
responsabilidade dos próprios autores sobre seus escritos, reforçando esse caráter
autoral.
115 “Alguns desenhos de arquitetura existentes no Arquivo Histórico Colonial Português” (n.4, 1940), O códice de frei Cristóvão de Lisboa (n.5, 1941), “Documentos baianos” (n.9, 1945), Arquitetura civil do período colonial (n.17, 1969). Esse último refere-se ao curso ministrado por Smith. 116 “Valor artístico e valor histórico: importante problema da história da arte” (n.4, 1940), “A propósito de três teorias sobre o barroco” (n.5, 1941), “A pintura colonial no Rio de Janeiro: notas sobre suas fontes e alguns de seus aspectos” (n.6, 1942), “Modelos europeus na pintura colonial” (n.8, 1944), “Retratos coloniais” (n.9, 1945). 117 Os cursos foram os seguintes: História da Arte – Hannah Levy; Desenvolvimento da civilização material no Brasil – Afonso Arinos de Melo Franco; Arquitetura Civil em Portugal – Mário Chico; Azulejos luso-brasileiros – João Miguel dos Santos Simões; Aspectos da Arte Portuguesa no Século XVIII – Robert Smith, conforme apurado em pesquisa na série Personalidades, do Arquivo Central do IPHAN.
58
2.1.2 “Barroco” como mito de origem e “barroco” como “boa tradição”
O conceito de “barroco” foi ostensivamente formulado e aplicado nas páginas da
Revista. São numerosos os artigos que buscam identificar o “barroco” brasileiro,
criando tipologias, encontrando influências e especificidades. Constrói-se, dessa forma,
um inventário desse patrimônio “barroco”, nacional por excelência. Inventário este que
será materializado nas práticas de tombamento.
A apropriação do conceito realizada pelos artífices do patrimônio deu-se no
sentido de constituir uma arte genuinamente brasileira que fosse capaz de apontar a
origem da nação, remetendo não somente a um passado – colonial e de herança lusa –
mas também à arquitetura moderna, como herdeira e prosseguidora daquilo que Lúcio
Costa identificou como a “boa tradição”.
No número inaugural da Revista, Costa contribuiu com “Documentação
necessária”118, texto no qual explicitava as relações entre o Modernismo e o passado
nacional, estabelecendo paralelos entre construções modernas e coloniais. O principal
ponto deste artigo é uma crítica à arquitetura neocolonial, que se utilizava de um
“artificioso processo de adaptação” para empregar “os elementos já sem vida da época
colonial”, um manifesto pela arquitetura moderna e uma tradição na qual se enquadrava.
O autor, aqui, faz uma autocrítica à tradição em que se inseria, pois era um dos grandes
expoentes da arquitetura neocolonial, até se tornar um arquiteto modernista dos mais
renomados. Faz, portanto, uma crítica ferrenha a José Marianno Filho, como vimos, seu
adversário no embate entre neocolonial e modernismo. Lúcio Costa busca definir o que
118 COSTA, Lúcio. Documentação Necessária. Revista do IPHAN, n.1, p.31-41, 1937.
59
seria a “boa tradição” legada pelo passado, na qual a arquitetura moderna poderia se
inserir e dar continuidade à “evolução que estava normalmente se processando”, e que
fora interrompida pela arquitetura neocolonial. Conforme afirma:
Foi quando surgiu, com a melhor das intenções, o chamado
movimento tradicionalista de que também fizemos parte. Não
percebíamos que a verdadeira tradição estava ali mesmo, a dois
passos, com os mestres de obras nossos contemporâneos; fomos
procurar, num artificioso processo de adaptação – completamente fora
daquela realidade maior que cada vez mais se fazia presente e a que os
mestres se vinham adaptando com simplicidade e bom senso – os
elementos já sem vida da nossa época colonial: fingir por fingir, que
ao menos se fingisse coisa nossa. E a farsa teria continuado – não fora
o que se sucedeu.
Cabe-nos agora recuperar todo esse tempo perdido, estendendo a mão
ao mestre de obras sempre tão achincalhado, ao velho ‘portuga’ de
1910, porque – digam o que quiserem – foi ele quem guardou,
sozinho, a boa tradição.119
O autor identifica na casa de residência os elementos pertencentes a essa
tradição, “justeza de proporções” e “saúde plástica perfeita”, que poderiam servir de
experiência a seus contemporâneos. Critica, dessa forma, os autores que negaram o
valor arquitetônico dessas construções, referindo-se a uma citação de Aníbal Mattos,
autor do prefácio de “A Arte em Ouro Preto”, de Diogo de Vasconcellos. Como vimos,
Mattos valorara de forma negativa as construções do casario português. Segundo Costa:
Ora, a arquitetura popular apresenta em Portugal, a nosso ver,
interesse maior que a ‘erudita’ – servindo-nos da expressão usada, na
falta de outra, por Mário de Andrade, para distinguir da arte do povo a
‘sabida’. É nas suas aldeias, no aspecto viril das suas construções
rurais a um tempo rudes e acolhedoras, que as qualidades da raça se
mostram melhor. Sem o ar afetado e por vezes pedante de quando se
apura, aí, a vontade, à vontade, ela se desenvolve naturalmente,
119 COSTA, Lúcio. Documentação Necessária. p.39
60
adivinhando-se na justeza das proporções e na ausência de ‘make up’,
uma saúde plástica perfeita – se é que podemos dizer assim.120
O autor opera aqui uma diferenciação nas conceituações acerca de “barroco”. Se
para Vasconcellos e Mattos o casario português era visto como algo negativo, “pesado”
e “sombrio”, Costa reabilita-o na constituição de uma arquitetura brasileira –
formulação que apontava para a arquitetura de seu presente. Assim afirmava serem as
casas onde “a qualidade da raça se mostra melhor”, articulando-se às proposições de
Gilberto Freyre121. Propõe ainda a expansão da gama de estudos para além das casas-
grandes de fazenda ou grandes sobrados, abrangendo também as casas menores, “de
aspecto menos formalizado, mais pequeno-burguês”, encontradas principalmente nas
velhas cidades mineiras.
Para Costa, a arquitetura portuguesa implementada havia encontrado na colônia
um ambiente que lhe provocou um processo de adaptação, resultando em algo novo:
Tais características, transferidas – na pessoa dos antigos mestres e
pedreiros ‘incultos’ – para a nossa terra, longe de um mau começo,
conferiram, desde logo, pelo contrário, à arquitetura portuguesa na
colônia, esse ar despretensioso e puro que ela soube manter, apesar
das vicissitudes por que passou, até meados do século XIX.
Sem dúvida, neste particular se observa o ‘amolecimento’ notado por
Gilberto Freyre, perdendo-se, nos compromissos de adaptação ao
meio, um pouco daquela ‘carrure’ tipicamente portuguesa; mas em
compensação, devido aos costumes mais simples e à largueza maior
da vida colonial, e por influência, também, talvez, da própria
grandiosidade do cenário americano, – certos maneirismos preciosos e
um tanto arrebitados que lá se encontram, jamais se viram aqui.122
120 COSTA, Lúcio. Documentação Necessária. p.31 121 Ver, por exemplo: FREYRE, Gilberto. Mucambos do Nordeste: algumas notas sobre o tipo de casa popular mais primitiva do nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1937. (Publicações do IPHAN; nº 1). 122 COSTA, Lúcio. Op. Cit. p.31-32
61
O autor utiliza-se de duas tópicas recorrentes no discurso do IPHAN: a falta de
instrução e a falta de recursos como impulsionadoras de uma maneira nova – vale dizer
autêntica e nacional – de se construir. Aproximando Brasil e Europa, compara o negro
e o índio ao “louro bárbaro […] em seus primeiros contatos com a civilização latina, ou
mais tarde, pretendendo traduzir, com o sotaque ainda áspero e gótico os motivos greco-
romanos renascidos”, para afirmar que:
Em ambas [as mãos-de-obra negra e índias] o mesmo jeito de quem
está descobrindo coisa nova e não acabou de compreender direito; sem
vislumbre de ‘maitrise’ mas cheio de intenção plástica e ainda com
aquele sentido de revelação que num e noutro depois, com o apuro da
técnica, desaparece.123
Nesta passagem é possível observar também a idéia de uma criação “pura”,
espontânea, que, conforme se torna mais apurada, acaba por perder esse valor de
originalidade. Essa é uma idéia cara a Lúcio Costa, especialmente nas suas formulações
acerca do “barroco”, conforme veremos.
No terceiro número da Revista, Lúcio Costa publicou um artigo sobre a
“evolução” do mobiliário luso-brasileiro124. Inicia seu texto afirmando que:
Tendo o Brasil permanecido como colônia portuguesa até 1822, é
natural que nosso mobiliário seja, antes de mais nada, um
desdobramento do mobiliário português.125
Nesse caso, é operada uma diferente significação, “luso-brasileiro”, inclusive na
afirmação de que o território foi colônia portuguesa até 1822. O ponto, neste artigo, é
apontar as origens do Brasil analisando seus fatores formadores. A primeira questão
123 COSTA, Lúcio. Documentação Necessária. p.32 124 COSTA, Lúcio. Notas sobre a evolução do mobiliário luso-brasileiro. Revista do IPHAN, Rio de Janeiro, n.3, p.149-162, 1939. 125 Idem, ibidem,. p.149
62
explorada refere-se à contribuição das “três raças”. Para Costa, os portugueses são os
principais artífices deste processo:
Se o material empregado era, isto sim, bem brasileiro, aqueles que o
trabalharam foram sempre os portugueses filhos mesmo de Portugal –
muitos deles irmãos leigos de ordens religiosas – ou, quando nascidos
no Brasil, de ascendência exclusivamente portuguesa, ou então
mestiços, misturas em que entravam, junto com o do negro e do índio,
dosagens maiores ou menores de sangue português. Quanto ao negro
ou índio sem mistura, limitava-se o mais das vezes a reproduzir
móveis do reino e de qualquer forma se fazia mestre no ofício sob as
vistas do português.126
Seguindo uma linha de argumentação semelhante à exposta em Documentação
Necessária, o autor afirma que “ao colono só interessava o essencial... Essa sobriedade
mobiliária dos primeiros colonos se manteve depois como uma das características da
casa brasileira”127. Desta forma, para Costa,
As diferenciações que o estudo mais demorado da matéria poderá
revelar [...] resultarão menos de inovações próprias ou criações locais
nossas, do que da preferência, poder-se-ia mesmo dizer da insistência,
com que repetimos determinados modelos em detrimento de outros
mais em voga na Metrópole.128
É proposto então um esquema classificatório universal, enquadrando o Brasil em
um padrão europeu, procedimento que adotaria também em outro artigo, conforme
veremos mais à frente:
O mobiliário do Brasil pode ser, assim, da mesma forma que o norte-
americano e todos os demais de fundo europeu, classificado em três
grandes períodos: o primeiro abrange os séculos XVI e XVII e
prolonga-se mesmo até começos do de Setecentos; o segundo, período
126 COSTA, Lúcio. Notas sobre a evolução do mobiliário luso-brasileiro. p.149 127 Idem, ibidem. p.150-151 128 Idem, ibidem. p.150
63
barroco por excelência, estende-se praticamente por todo o século
XVIII; e o terceiro e último, isto é, o da reação acadêmica, liberal e
puritana iniciada em fins desse século, corresponde para nós
principalmente, à primeira metade do século XIX. Depois disso,
houve apenas modas improvisadas e sem rumo, já desorientadas pela
produção industrial que dia a dia se acentuava.129
A idéia de uma “boa tradição” que se perdeu também está presente neste texto,
nas “modas improvisadas e sem rumo”. Ao analisar o período dito “barroco”, afirma
que:
No segundo período, uma transformação fundamental,
verdadeiramente revolucionária, altera por completo o aspecto do
mobiliário. [...] Essa impressão de movimento e de vida, como se
móvel fosse organismo e não coisa fabricada, é o traço comum que
distingue de um modo geral a produção do século XVIII.130
Para Lúcio Costa, essa transformação da arte está intimamente relacionada ao
meio na qual se situa, numa imbricação entre arquitetura e sociedade. Portanto, esse
período revolucionário,
Corresponde, também, ao desenvolvimento dos centros urbanos e às
manifestações inequívocas, tanto de caráter individual como coletivo,
da formação de uma consciência independente, nacional.131
“Barroco” – “transformação fundamental, verdadeiramente revolucionária” –
aparece aqui intimamente ligado à idéia de “uma consciência independente, nacional”.
Pode-se afirmar, nesse sentido, que para o autor as artes “barrocas” (expressas numa
casa, numa igreja ou no mobiliário) trazem em si o elemento revolucionário que dá
origem ao Brasil, não mais colônia portuguesa.
129 COSTA, Lúcio. Notas sobre a evolução do mobiliário luso-brasileiro. p.152 130 Idem, ibidem. p.154-155 131 Idem, ibidem. p.157
64
No décimo-primeiro número da Revista, de 1946, foi publicado um artigo de
Paulo Thedim Barreto sobre as Casas de Câmera e Cadeia132, uma ampliação de tese
apresentada para a cadeira da Faculdade Nacional de Arquitetura da Universidade do
Brasil. O artigo estabelece um histórico das Casas de Câmara e Cadeia, apontando suas
origens e a organização administrativo-judiciária na colônia portuguesa. Aponta
exemplos, contratos de arrematação e analisa detalhadamente os programas
arquitetônicos dos edifícios. Por fim, faz uma análise cronológica da evolução
arquitetônica desse tipo de construção. Afirma que, no século XIX as Casas “perderam
a energia construtiva e plástica dos séculos anteriores”133, referindo-se ao tempo
colonial, ao barroco, quando, a despeito da menor desenvoltura estética, “todos os
problemas arquiteturais de expressão barroca eram enfrentados com o entusiasmo de
quem encontra soluções novas”134. Há, neste sentido, a construção de uma progressiva
perda de valor estético e renovação que, segundo o autor, é acompanhada pela
separação entre os poderes administrativos e judiciários. Por fim, faz uma ressalva ao
caso de Ouro Preto, cuja Casa de Câmara e Cadeia, embora construída no século XIX,
teve seu projeto concebido no fim do século XVIII, desse modo permitindo-lhe figurar
entre o patrimônio barroco.
Em 1968, Augusto C. da Silva Telles publicou um artigo no décimo-sexto
número da Revista, uma versão de sua tese de livre-docência da cadeira de Arquitetura
no Brasil da Faculdade Nacional de Arquitetura, na qual realiza um estudo sobre a
fundação e desenvolvimento da cidade de Vassouras135. Neste, faz o seguinte
comentário, lamentando a perda das características originais das construções mais
simples e antigas, similares a de outras cidades mineiras:
132 BARRETO, Paulo Thedim. Casas de Câmera e Cadeia. Revista do IPHAN, n.11, p. 9-195, 1946. 133 Idem, ibidem. p.194 134 Idem, Ibidem, p. 188 135 TELLES, Augusto C. da Silva. Vassouras (estudo da construção residencial urbana). Revista do IPHAN , n.16, p.9-136, 1968.
65
Vassouras, fundada no início do século XIX, conforme já vimos, (a
capela começa a ser construída em 1828, e a vila é criada em 1833),
desenvolver-se-á, justamente, nesta fase de transição, por que passa
nossa arquitetura, assim como todos os demais aspectos culturais do
Brasil: do barroco e rococó (colonial), de influência lusa, para o neo-
clássico, de influência principalmente francesa.
Por este motivo, não possuem as edificações vassourenses aquela
unidade no tratamento plástico e nos detalhes que encontramos, por
exemplo, na maioria das construções de Ouro Preto [...].136
Transferindo esta concepção para as práticas patrimonialistas e a idéia de
preservação dos núcleos originais da nação, a opção tomada foi em prol da arquitetura
colonial – como mito de origem da nação brasileira – e do Modernismo como seguidor
da linha evolutiva da “boa arquitetura”. Segundo Márcia Chuva:
Para inserir o Brasil na consagrada história da Arte Universal,
investiu-se na reapropriação do barroco, que passou a ser visto como
um movimento artístico considerado profundamente renovador, que
desde a ‘pureza’ e ‘verdade’ das construções gregas jamais havia se
repetido e que, a partir do barroco, só teve novo momento renovador
com a arquitetura moderna, advinda da revolução industrial. Foi esta
que possibilitou a introdução de novos materiais, novas formas e
técnicas. A genialidade de Lucio Costa construía, assim, a genealogia
da ‘boa arquitetura’, universal, em que a produção brasileira se
enquadrava, na origem e na atualidade. 137
Nesse sentido, o ecletismo foi preterido, considerado um hiato nessa linha
evolutiva, por apresentar-se como um estilo “importado”. O mesmo vale para o
neocolonial, que buscava produzir o efeito de “antigo” através de técnicas artificiais,
considerado “artificioso” por Lúcio Costa. A arquitetura colonial, por outro lado,
embora de origem lusa – portanto reafirmadora de certa tradição – apresentava 136 TELLES, Augusto C. da Silva. Vassouras (estudo da construção residencial urbana). p.82 137 CHUVA, Márcia. Os arquitetos da memória: a construção do patrimônio histórico e artístico nacional no Brasil (anos 30 e 40). p.328
66
especificidades obtidas na adaptação ao meio brasileiro que lhe conferiam o caráter de
nacional. O “barroco”, então, apresentava-se como o ponto de ligação entre o Brasil e o
mundo europeu, ponto de inserção no moderno “Concerto das Nações”, ligação que teve
como corolário dessa especificidade o “barroco” mineiro com suas igrejas setecentistas
e arquitetura vernacular138, resultando na inserção do Brasil nos catálogos de história da
arte mundiais. Segundo Maria Cecília Londres Fonseca:
Quanto aos estilos de época, havia também uma hierarquização. O
barroco era o estilo mais valorizado, seguido pelo neoclássico. A
arquitetura moderna, que foi introduzida no Brasil em 1928, já em 1947
teve seu primeiro exemplar tombado – a Igreja de São Francisco de
Assis, na Pampulha, em Belo Horizonte, Minas Gerais, de autoria de
Oscar Niemeyer. Ainda nesse período foram tombados o prédio do
MEC (1948) [...] Quanto ao estilo eclético, a ovelha negra da
arquitetura brasileira aos olhos dos arquitetos modernistas, apesar de
sua importância histórica como estilo característico da Primeira
República, só foram então tombados três imóveis, e mesmo assim
exclusivamente por seu valor histórico.139
No quinto número da Revista (1941) foi publicado o seminal artigo de Lúcio
Costa, A Arquitetura Jesuítica no Brasil – um caso de apropriação exemplar do conceito
de “barroco” – no qual é proposta uma cronologia classificatória que define a arte
barroca brasileira140. O que está em jogo neste artigo é a inauguração de uma linha
evolutiva da “arquitetura tradicional” brasileira que comporta em si todas as fases da
história da arte universal. Baseada na crença em um universalismo da arte, o Brasil é
138 Arquitetura vernacular refere-se àquela que emprega no processo de construção materiais e recursos próprios da região, adquirindo dessa forma um caráter regional, local. Um exemplo clássico no Brasil são as construções usando pedras locais em Ouro Preto. 139 FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil. p.115 140 COSTA, Lúcio. A arquitetura jesuítica no Brasil. Revista do IPHAN, Rio de Janeiro, n. 5, p. 9-104, 1941.
67
posto na era moderna através de um “ajuste dos relógios”141 do tempo colonial,
recriando os estilos europeus como variantes do “barroco”.
O artigo insere-se no processo de reabilitação do “barroco” em direção a sua
canonização como manifestação artística que impulsiona a nação brasileira:
A idéia de coisa decadente, de aberração, andou tanto tempo associada à
noção de arte barroca, que, ainda hoje, muita gente só admira tais obras
por condescendência, quase por favor.
Se algumas vezes os monumentos barrocos merecem realmente essa
pecha de anomalias artísticas, a grande maioria deles – inclusive
daqueles em que o arrojo da concepção ou o delírio ornamental atingem
o clímax – é constituída por autênticas obras de arte, que não resultaram
de nenhum processo de degenerescência, mas, pelo contrário, de um
processo legítimo de renovação.142
O autor toma para sua análise as obras de arte jesuítica afirmando que, no caso
brasileiro, essas podem não ser as obras mais ricas, mas não deixam de ser
significativas. Explica que parece haver certa confusão generalizante no termo
“jesuítico”143, pois os séculos XVII e XVIII assistiram ao fim do Renascimento e o
início do Barroco, desenvolvendo-se em paralelo, portanto:
Ora, as transformações por que passou a arquitetura religiosa,
juntamente com a civil, durante esse longo período, obedeceram a um
processo evolutivo normal, de natureza, por assim dizer, fisiológica:
uma vez quebrado o tabu das fórmulas neo-clássicas renascentistas,
gastas de tanto se repetirem, ela teria mesmo de percorrer –
independentemente da existência ou não da Companhia de Jesus – o
caminho que efetivamente percorreu, até quando o barroco, por sua vez
impossibilitado de renovação, teve de ceder lugar à nova atitude
141 Expressão de Márcia Chuva 142 COSTA, Lúcio. A arquitetura jesuítica no Brasil. p.11 143 Esse é um dos últimos artigos a aparecer na Revista que se utiliza ainda do termo “jesuítico” para definir o período classificado como “barroco”. Logo o termo desaparece e apenas “barroco” continua a ser usado.
68
classicista e já o seu tanto acadêmica de fins do século XVIII e começo
do XIX.144
Pode-se observar, nesse trecho, uma aproximação em relação às concepções de
Heinrich Wölfflin expostas em Conceitos Fundamentais da História da Arte145, para
quem existiriam dois estilos – clássico e barroco – alternando-se ao longo da história da
arte. Conforme afirma:
Nessas condições, é de fundamental importância o fato de se
observarem, em todos os estilos arquitetônicos do Ocidente, certas
constantes de evolução. Existe um período clássico e um Barroco, não
apenas na época moderna e na arquitetura antiga, mas também num
terreno tão longínquo como o Gótico.146
Wölfflin define “clássico” (também chamado “renascimento”) e “barroco”
através de cinco pares de oposição, gerando um esquema comparativo. Para nossa
análise, podemos destacar que o primeiro estilo, o “clássico”, é identificado à pureza das
formas, ao equilíbrio e a uma estagnação. Já o segundo, o “barroco”, é definido como
profusão de formas, cores e um estilo renovador. Conforme Wölfflin:
O Barroco emprega o mesmo sistema de formas, mas em lugar do
perfeito, do completo, oferece o agitado, o mutável; em lugar do
limitado e concebível, o ilimitado e colossal. Desaparece o ideal da
proporção bela e o interesse não se concentra mais no que é, mas no que
acontece.147
A história da arte seria, portanto, uma sucessão de alternâncias entre
conservadorismo e renovação. Assim, Costa identifica o barroco como um estilo que
144 COSTA, Lúcio. A arquitetura jesuítica no Brasil. p.9 145 WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos fundamentais da história da arte: o problema da evolução dos estilos na arte mais recente. 4ª. Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2000. Publicado originalmente em 1915, com o título “Kunstgeschichtliche Grundbegriffe”. 146 Idem, ibidem, p.320 147 Idem, ibidem, p.12
69
surge após quebrar-se “o tabu das fórmulas neo-clássicas renascentistas” e que se esgota
em fins do século XIX, quando ressurge “uma nova atitude classicista e já o seu tanto
acadêmica”. Nessa mesma chave, afirma que o barroco seria então uma possibilidade de
tratar os elementos construtivos como “formas plásticas autônomas”, uma “nova
concepção plástica, liberta dos preconceitos anteriores”.
Em seguida, afirma sobre o estilo dos padres:
...apesar das mudanças de forma, das mudanças de material e das
mudanças de técnica, a personalidade inconfundível dos padres, o
‘espírito’ jesuítico, vem sempre à tona: – é a marca, o ‘cachet’ que
identifica todas elas e as diferencia, à primeira vista, das demais. E é
precisamente essa constante, que persiste sem embargo das
acomodações impostas pela experiência e pela moda – ora perdida no
conjunto da composição, ora escondida numa ou noutra particularidade
dela – essa presença irredutível e acima de todas as modalidades de
estilo porventura adotadas, é que constitui, no fundo, o verdadeiro
‘estilo’ dos padres da Companhia.
Tratando-se de uma ordem nova e ‘diferente’, livre de compromissos
com as tradições monásticas medievais, e por conseguinte em situação
particularmente favorável para se deixar impregnar, logo de início, do
espírito moderno, post-renascentista e barroco, é natural que tenha sido
mesmo assim.148
Costa observa, portanto, uma espécie de constante que permeia o estilo dos
jesuítas através do tempo, da mesma forma que transforma os estilos da arte brasileira
em palavras compostas, incluindo-lhes a denominação “barroco”, à maneira de Eugene
D’Ors, que propõe um “espírito barroco”, uma constante histórica:
Essas constantes históricas entram na vida universal da
Humanidade e na sua pluralidade uniforme, instaurando uma
invariabilidade relativa e uma estabilidade, aí, onde o demais é
mudança, contingência, fluir. A trama complexa da história abre
148 COSTA, Lúcio. A arquitetura jesuítica no Brasil. p.10
70
passo à presença destas ‘constantes’; presença manifesta e
dominante em certas ocasiões; noutras, subordinada e oculta.149
.
Ao analisar as valorações negativas de barroco, D’Ors chega a um esquema de
quatro proposições que refuta, apresentando novas idéias que estariam então mais
afinadas com os estudos contemporâneos. Entre essas, cabe destacar:
O Barroco é uma constante histórica que se volta a encontrar em épocas
tão reciprocamente longínquas como o Alexandrismo o está da Contra-
Reforma, ou esta do período ‘Fim-de-Século’; quer dizer, do fim do séc.
XIX, e que se manifestou já nas regiões mais diversas, tanto no Oriente
como no Ocidente.150
E ainda:
Longe de preceder do estilo clássico, o Barroco opõe-se a ele de uma
maneira mais fundamental, todavia, do que o romantismo, o qual, por
seu lado, não parece agora mais do que um episódio no
desenvolvimento histórico da constante barroca.151
Ademais, Costa imprime-lhe um caráter revolucionário, “pós”, independente. A
noção romântica de uma criação artística que revoluciona na ruptura, como
manifestação inspirada e individualizada parece adequar-se bem ao texto de Costa,
assim como às proposições modernistas em geral.
Qual seria o tempo desse “barroco”, portanto? Segundo Costa, deveriam ser
classificadas como tal “a maior parte das manifestações de arte compreendidas entre a
última fase do Renascimento e o novo surto classicista de fins do século XVIII e, no
149 D’ORS, Eugene. O Barroco. Lisboa: Vega 1990. p.62 150 Idem, ibidem, p.69 151 Idem, ibidem, p.69
71
Brasil, princípios do XIX”.152 Mas para o autor não se trata apenas de um “estilo
barroco”:
A expressão ‘arte barroca’ não significa, assim, apenas um estilo. Ela
abrange todo um sistema, verdadeira confederação de estilos – uma
‘commonwealth’ barroca, poder-se-ia dizer. Estilos perfeitamente
diferenciados entre si, mas que mantém uma norma comum de conduta
em relação aos preceitos e módulos renascentistas.153
Trata-se de uma norma de conduta que, como vimos, baseia-se em conceitos
como superação e renovação. Conforme afirma:
Na construção de suas igrejas os padres, embora acompanhassem, como
os demais religiosos, a evolução normal do estilo de cada época,
atuaram em numerosos casos como autênticos renovadores,
apoiando e adotando as concepções artísticas mais modernas e
‘avançadas’; não somente com o barroco ainda classicista da primeira
fase da Contra-Reforma, quando, fora da Itália, as formas ornadas do
primeiro Renascimento ainda prevaleciam, como depois, na época de
maior eloqüência do estilo barroco, com as inovações, nem sempre
aceitáveis, de alguns artistas, mesmo jesuítas.154
A “arte barroca” poderia ser dividida então nas seguintes fases: classicismo
barroco (fins do século XVI até primeira metade do XVII), romanicismo barroco
(segunda metade do XVII até princípios do XVIII), goticismo barroco (primeira metade
até meados do XVIII) e renascimento barroco (segunda metade do XVIII até princípios
do XIX). Desta forma, renunciando a pressupostos reguladores canônicos, Lúcio Costa
criou novas categorias, igualmente transistóricas, através de um reajuste da periodização
que prolongava a “presença do barroco”. Uma espécie de “essência barroca”, então,
152 COSTA, Lúcio. A arquitetura jesuítica no Brasil. p.12 153 Idem, ibidem, p.12 154 Idem, ibidem, p.32. Grifos nossos.
72
perpassava toda a “arquitetura tradicional”, tornando-se o ponto de identificação entre o
Brasil e o mundo europeu. Conforme afirma:
Do primeiro estilo – o mais caracterizadamente jesuítico – até ao estilo
mineiro da última fase, cuja obra prima é a capela-mor da igreja de S.
Francisco de Assis, em Ouro Preto, estilo apenas alcançado pelos
padres, as transformações sucessivas repetem, curiosamente e na mesma
cadência, as várias etapas que percorreu o conjunto da arte européia, na
sua evolução da idade clássica à Renascença, através dos estilos
medievais – românico e gótico.155
Costa afirma, entretanto, que no caso brasileiro essa variedade de estilos pode
ser mais bem observada na composição e talha dos retábulos de altar, classificados
como arquitetura de interior. Opera aqui uma importante significação, expandindo o
conceito de arquitetura. O artigo parte então para o estabelecimento de uma tipologia
das igrejas, analisando sua “arquitetura externa” – chamemos assim para fins de
diferenciação, em contraponto ao que o autor denomina “arquitetura de interior” – e o
uso dos elementos que a compõem, a saber: programa, técnica, partido, comodulação e
modenatura. Dividindo as construções em grupos, apresenta exemplos.
Segundo Costa, o período do classicismo situa-se entre estilos – como um limbo
– resultando em obras “post-renascentistas ou proto-barrocas”, caracterizado como um
período confuso. O romanicismo é o estilo seiscentista por excelência, classificado
como rico, severo e bonito. Afirma ser encontrado mais comumente nos retábulos
franciscanos e nas obras da Companhia de Jesus. O goticismo caracteriza-se pela
profusão de formas e é o estilo característico das matrizes mineiras. Sobre o
renascimento, afirma:
Corresponde a um verdadeiro renascimento, com a volta às
composições mais claras e arrumadas da primeira época. O lindo
155 COSTA, Lúcio. A arquitetura jesuítica no Brasil. p.43
73
desenho e a primorosa talha, aliviados de tanto ornato e tanto ouro,
desenvolve-se desafogadamente, elegantes, cheios de invenção e graça,
levando o capricho e a sutileza dos ‘achados’ muitas vezes até o
requinte, senão mesmo ao enfado.156
Aproxima-se aqui, novamente, de Wölfflin, com a idéia de um retorno
caracterizado como clareza, beleza, e que acaba por conduzir ao “enfado”. Da
estagnação, portanto, viria a renovação furiosa e inovadora.
Cabe mencionar também o comentário de Lúcio Costa sobre as capelas de São
Paulo inventariadas por Mário de Andrade no primeiro número da Revista, ditas
“toscas”. Enquadradas no primeiro grupo apresentado, mais uma vez a idéia da
invenção sem instrução produzindo uma arte autenticamente nacional aparece:
Convém, no entanto, desde logo reconhecer, que não são sempre as
obras academicamente perfeitas, dentro dos cânones greco-romanos, as
que, de fato, maior valor plástico possuem. As obras de sabor popular,
desfigurando a seu modo as relações modulares dos padrões eruditos,
criam, muitas vezes, relações plásticas novas e imprevistas, cheias de
espontaneidade e de espírito de invenção, o que eventualmente as
coloca em plano artisticamente superior ao das obras muito bem
comportadas, dentro das regras do ‘estilo’ e do ‘bom tom’, mas vazias
de seiva criadora e de sentido plástico real. Não são, pois, estes
retábulos paulistas simples cópias inábeis mas, muito pelo contrário,
legítimas ‘recriações’, podendo ser considerados[...] como das mais
antigas e autênticas expressões conhecidas da arte ‘brasileira’, em
contraposição à maior parte das obras luso-brasileiras dessa época, que
se deveriam melhor dizer – ‘portugueses do Brasil’.157
Em que pese o reconhecimento de uma arte luso-brasileira ou de “portugueses
do Brasil”, essas categorias aparecem apenas como contraponto à arte genuinamente
156 COSTA, Lúcio. A arquitetura jesuítica no Brasil. p.45-47 157 Idem, ibidem, p.63
74
nacional. Arte que, ao desfigurar padrões eruditos e criar relações plásticas novas,
origina um produto inteiramente novo, autêntico.
Quando Costa propõe a denominação “arquitetura de interior”, a iniciativa
insere-se em um processo que constituirá uma concepção mais alargada da
arquitetura158. O último número, editado por Renato Soeiro em 1978, trazia um artigo
póstumo de Rodrigo Melo Franco de Andrade sobre a pintura colonial mineira159, no
qual afirma que:
Não se pode, com rigor, considerar o desenvolvimento da pintura
brasileira do período colonial independentemente da evolução da
arquitetura no País. Em Minas Gerais, como em todo o Brasil, desde a
primeira fase do povoamento até que se irradiasse o ensino acadêmico
no século XIX, a obra dos pintores foi acessória dos arquitetos.160
O autor segue sua análise identificando artistas, modelos e pinturas. Confere
destaque a Manuel da Costa Ataíde. Conclui afirmando que:
Com o advento de Manuel da Costa Ataíde, a pintura mineira atinge o
ponto mais alto. Foi sob a ação deste mestre que a arte religiosa da
capitania, renovada com vigor desde alguns anos e diferenciada da
tradição reinol, graças ao impulso genial de Antônio Francisco Lisboa,
pôde alcançar por fim o objetivo a que se inclinava, fortemente, na
decoração interna dos templos, para fundir as contribuições de
arquitetura, escultura e pintura numa só unidade plástica e dinâmica.161
Rodrigo constrói uma evolução na pintura mineira da qual Ataíde é o maior
expoente. Aponta a “influência de Aleijadinho” como um fator fundamental na
158 A partir da Resolução do Conselho Consultivo da SPHAN, de 13/08/85, referente ao Processo Administrativo nº 13/85/SPHAN, os tombamentos de igrejas passaram a incluir também todo o seu acervo, classificado como “arquitetura de interior”. 159 ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Pintura Colonial em Minas Gerais. Revista do IPHAN, n.18, p.11-74, 1978. 160 Idem, Ibidem, p. 11 161 Idem, Ibidem, p.42
75
formação dos pintores mineiros, além de uma “influência estilística francesa”.
Comentando o ambiente de Minas Colonial, socorre-se de Lúcio Costa:
O que sucedeu, ali, foi um surto original, perfeitamente caracterizado,
como Lúcio Costa observou, ‘distinto das manifestações equivalentes,
contemporâneas, nas demais regiões do País ou da antiga metrópole’.
Verifica-se, plenamente, a procedência do conceito do mesmo
especialista, segundo o qual ‘um foco ideológico comum atuou
simultaneamente sobre as obras de talha e de pintura, ambas concebidas
segundo os mesmos princípios de composição’. Arquitetos,
entalhadores e pintores tiveram a movê-los uma idêntica intenção
plástica, cujos efeitos se traduziram em formas definidamente
peculiares no interior das igrejas mineiras do período.162
A idéia de um “surto original” aponta para o início de um caminho em direção à
plena nacionalidade brasileira. Se o “barroco” manifestava-se por todo o território
“brasileiro”, havia ainda uma referência muito forte à herança lusa. O “surto original”
em Minas Colonial constituía-se em especificidade dessa forma através da
“originalidade” de seus artistas e artífices.
O autor apresenta, por fim, uma breve biografia de Manuel da Costa Ataíde.
Antes, em 1938, no segundo número da Revista, Manuel Bandeira havia contribuído
com um breve artigo sobre Ataíde163, no qual apresentava um contrato de arrematação
que comprovava ter o pintor exercido também o ofício de dourador. Iniciativas como
essa, de divulgar a descoberta de novos ofícios de um artista colonial ou novas obras
das quais participou, serão coligidas mais à frente, com a publicação de um
dicionário164, integrando o projeto de construção de uma história da arte completa.
162 ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Pintura Colonial em Minas Gerais. p.42 163 BANDEIRA, Manuel. Manuel da Costa Ataíde, dourador. Revista do IPHAN, n.2, p.149-151, 1938. 164 MARTINS, Judith. Dicionário de artistas e artífices dos séculos XVIII e XIX em Minas Gerais. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1974. 2v. (Publicações do IPHAN; nº 27).
76
Neste viés descritivo, divulgador, o historiador Salomão de Vasconcellos165
contribuiu com três artigos para a Revista que tratavam do desenvolvimento das cidades
coloniais mineiras de Ouro Preto (dois artigos) e Sabará166. Nestes, narra a fundação das
cidades através da ocupação do solo, listando nomes e lotes, com farta informação. São
artigos que sugerem a divulgação de um conhecimento para posteriores estudos
relacionados aos tombamentos dos conjuntos urbanos. Salomão Vasconcellos publicou
ainda diversos artigos sobre a formação histórica de cidades mineiras, afirmando-se
como uma espécie de especialista no assunto.
Seu filho é o arquiteto Sylvio de Vasconcellos, assistente técnico do IPHAN em
Minas Gerais, que publicou em 1956 um livro nos moldes das pesquisas de seu pai
sobre a formação residencial de Ouro Preto. A obra era dividida nas seguintes seções:
Fundamentos, Meio Social, Meio Físico, Construções, Plantas, Interiores e Fachadas.
Apresentava, dessa forma, não somente os fatores de formação histórica, como
estabelecia tipologias para as construções, procedimentos comuns nas atividades de
pesquisa do IPHAN. Na introdução, comentava a necessidade desse tipo de estudo:
A maioria das publicações existentes no Brasil, em regra, têm-se
limitado à descrição de sua história político-militar ou a detalhes
regionais ou peculiares de sua arte, sendo raras as divulgações, como
as empreendidas pelos nossos modernos sociólogos, que dessem
notícias mais amplas de nosso país.
Especificamente, sobre nossa civilização material, os estudos
existentes têm preferido os monumentos isolados, principalmente
religiosos ou públicos, ainda assim, com precedência de sua história
ou das poucas singularidades que apresentam. Só muito recentemente,
com Lúcio Costa, Paulo Barreto, Afonso Arinos de Melo Franco,
Paulo Santos, e poucos mais, passou o problema a ser encarado com
165 Salomão de Vasconcellos foi representante regional do IPHAN em Minas Gerais, durante a década de 1940. 166 Os primeiros aforamentos e os primeiros ranchos de Ouro Preto. Revista do IPHAN, n.5, p.241-258, 1941; Como nasceu Sabará. Revista do IPHAN, n.9, p.291-330, 1945; Como nasceu Ouro Preto – sua formação cadastral desde 1712. Revista do IPHAN, n.12, p.171-232, 1955.
77
mais largueza, abrindo veredas ao ‘descortino eficaz’ de nossa
arquitetura, consideradas suas origens, causas, significação e
conseqüências.
Desistindo, pois, das obras de caráter monumental, em parte já
versadas, julgamos de bom alvitre pesquisar a arquitetura particular
que, se por um lado se reveste de menor apuro e riqueza, por outro,
por mais ligada ao homem, às suas necessidades e possibilidades, está
a merecer maior atenção.167
Outro ponto que surge no final deste trecho é a relação entre obras monumentais
e “arquitetura particular”, em que o autor se alia às proposições de Gilberto Freyre e
Lúcio Costa, de valorização da casa popular que, apesar de sua simplicidade, encontra-
se “mais ligada ao homem”.
O livro é também um manifesto contra o ecletismo – que inclui o neocolonial –
pela arquitetura colonial, selecionando Ouro Preto como um exemplo privilegiado:
Para evitar, porém, pela diversidade do espaço e tempo, viesse o
estudo a transbordar dos limites [...] procuramos equacioná-lo,
elegendo, como ponto de referência, uma povoação que, por sua
importância na formação do país pudesse ser tido como padrão de sua
época. Não tão antiga que correspondesse aos ensaios de nossa
civilização, nem tão nova que, perdida em contraditórias influências
alienígenas, pouco tivesse guardado de seu caráter nativo. Vila Rica,
centro de toda a colônia no século XVIII, impunha-se sem maior
dúvida.
De tal modo, porém, a arquitetura civil se integra no meio onde se
concretiza, que não seria aconselhável desligá-la do ambiente onde se
realizou, o que, com a necessária condensação, não foi portanto
descurado.168
A primazia de Ouro Preto está, assim, na posição central ocupada na colônia
durante o século XVIII, na “tradição” preservada nas construções e no modo como a
167 VASCONCELLOS, Sylvio de. Vila Rica Formação e Desenvolvimento – Residências. Ministério da Educação e Saúde – Instituto Nacional do Livro: Rio de Janeiro, 1956. p.9 168 Idem, ibidem. p.10
78
cidade se integra à paisagem. Assim, nesse conjunto formado por arquitetura e meio,
Vasconcellos vê características “barrocas”:
As residências, ‘desataviadas e pobres’, desprovidas de qualquer
ênfase que, em particular desmembrasse a homogeneidade geral,
ajeitam-se modestamente aos vales, galgando em escalonamento
contínuo as ladeiras, a cujos acidentes se amoldam em ritmo perfeito.
De tal modo se colocam em sucessão cadenciada e justa que o seu
conjunto adquire acentuado movimento, tão próprio do barroco, e
manifestado, não nos elementos em si, as casas, mas na continuidade
delas, em orgânica simetria.
O estilo, tão apegado às decorações, às ousadias, aos requintes, se
exprime caracteristicamente nos monumentos religiosos mas, também,
se extravasa com naturalidade, espontâneo, não no comportamento das
fachadas, de linhas despretensiosas, mas nas soluções estruturais, no
desapego ao formal, ao estático, na conjugação de volumes e na
comunhão variada de seus grupos residenciais, agenciados na
povoação linear, com um caráter eminentemente dinâmico.169
Uma concepção como tal, que enxerga o “barroco” nas “soluções estruturais, no
desapego ao formal”, parece enquadrar-se bem nos pressupostos expostos por Lúcio
Costa em Documentação Necessária, quando explicitou as relações entre a arte colonial
e a arte moderna. Por outro lado, a visão da “cidade barroca” como um conjunto
integrado por arquitetura e natureza coaduna-se com um artigo publicado na primeira
edição da Revista.
O artigo170, publicado por Raimundo Lopes, naturalista do Museu Nacional, trata
da relação entre a Natureza e os monumentos culturais, segundo as regiões do Brasil.
Em sua análise de Minas Gerais, afirma que, em Ouro Preto, “o que mais feriu a minha
atenção foi o íntimo acordo entre as características artísticas e tradicionais da cidade e o
169 Idem, ibidem. Cit. p.254 170 LOPES, Raimundo. A natureza e os monumentos culturais. Revista do IPHAN, n.1, 1937. p.77-99
79
seu ambiente”171. Esta hipótese é corroborada pelo isolamento da cidade em relação à
metrópole, o que não ocorria nas cidades coloniais marítimas. O autor define a cidade
como um exemplo privilegiado de arquitetura vernacular, afirmando que “a própria
escultura do Aleijadinho emprega a pedra-sabão, material tirado dessa série geológica, a
que a velha capital deveu a sua grandeza”172.
De volta ao texto de Sylvio de Vasconcellos, a chegada do século XIX é vista
com maus-olhos pelo autor, como a interrupção de uma tradição arquitetônica. Mas
Ouro Preto parece manter-se, pela estagnação em que encontrava173, como vemos a
seguir:
Já então, com o emprego de novas técnicas construtivas, decorrente
também de novos materiais [...] e maiores noções de conforto, novas
concepções arquitetônicas começaram a prevalecer, interpondo-se à
continuidade daquelas que por três séculos serviram ao Brasil.
Contudo, nas Minas, as inovações não eclipsaram de todo a tradição,
tanto por motivo de estar a região mais afastada dos centros de
irradiação das novas doutrinas, como também, porque, já por esta
época, uma pronunciada decadência econômica não permitiria de fato
consideráveis desenvolvimentos ou alterações profundas na grande
maioria de suas povoações.174
Concluía, portanto, que “em Ouro Preto as contradições peculiares ao século
XIX, principalmente na segunda metade, não determinariam, de fato, maiores
modificações na fisionomia da cidade”175. E ainda: “Salvos os chalés [...] e uma ou
outra construção mais formal, mais comportada, da época, os conjuntos residenciais se
mantiveram fiéis à boa tradição luso-brasileira que os edificou”176.
171 LOPES, Raimundo. A natureza e os monumentos culturais. p.78 172 Idem, ibidem. p.78 173 Essa tese foi defendida também por Afonso Arinos de Melo Franco e Manuel Bandeira, em volumes publicados na série Publicações, como veremos a seguir. 174 VASCONCELLOS, Sylvio de. Op. Cit. p.300 175 VASCONCELLOS, Sylvio de. Op. Cit. p.301 176 VASCONCELLOS, Sylvio de. Op. Cit. p.301 Grifos do autor.
80
Por fim, explicitava sua crítica ao ecletismo e ao neocolonial, chamado
“pseudotradicionalista” e professava sua fé pelo modernismo, referindo-se
provavelmente ao Grande Hotel de Ouro Preto:
Para o final, o ecletismo sobreveio em composições de clara imitação
greco-romana, com suas pilastras, arquitraves, platibandas, etc.,
superadas, depois, pelas tentativas pseudotradicionalistas, continentais
ou nacionais, que só recentemente começam, afinal, a serem
substituídas por uma autêntica arquitetura contemporânea.177
O projeto de construção do Grande Hotel de Ouro Preto foi objeto de polêmica
dentro do IPHAN e ilustra mais uma vez os embates entre Neocolonial e Modernismo.
Foram apresentados projetos de Carlos Leão e Oscar Niemeyer, funcionários da
instituição. O primeiro projetara um edifício nos moldes neocoloniais, que buscava se
integrar visualmente à paisagem urbana da cidade. Niemeyer, por sua vez, projetou um
edifício de linhas modernistas. Lúcio Costa foi o parecerista da construção, e defendeu
ferrenhamente o projeto de Niemeyer, considerado seu discípulo. A questão foi
discutida e Costa terminou por adotar uma solução de compromisso: inseriu algumas
modificações no projeto original tornando-o mais integrado visualmente ao conjunto
urbano. No entanto, o modernismo triunfara, assim como a concepção de Costa para
quem a arquitetura do presente não deveria se confundir com a do passado, mas
integrar-se, permanecendo autêntica. Na “cidade barroca” por excelência, estava fincada
uma obra modernista.178
Em relação ao privilégio dado a Minas Gerais, o décimo-sétimo número da
Revista, de 1969, editado em homenagem a Rodrigo Melo Franco de Andrade, trazia
uma palestra sua proferida exatamente em Ouro Preto, cujo início é transcrito a seguir:
177 VASCONCELLOS, Sylvio. P.304 178 Sobre essa questão ver MOTTA, Lia. A SPHAN em Ouro Preto: uma história de conceitos e critérios. Revista do IPHAN, n.22, 1987
81
A maior concentração dos monumentos que integram o patrimônio
histórico e artístico nacional está localizada em Minas Gerais. A
despeito de só ter o povoamento do território mineiro principiado
depois de decorridos dois séculos desde o descobrimento do Brasil,
poucas décadas bastaram para que esta área fosse enriquecida de bens
culturais em número maior e com feição mais expressiva do que as
demais regiões do país.179
O autor afirmava, ainda, que, a despeito da maior importância dos monumentos
religiosos, a arquitetura civil também tinha grande valor, destacando as pontes e
chafarizes de Ouro Preto como os mais belos do Brasil. Ressaltava que mais
significativo, no entanto, era, no caso de Minas Gerais, a preservação dos núcleos
urbanos coloniais, como Ouro Preto, Tiradentes, Mariana e outros. Preservação, por
excelência, dos núcleos de origem da arte brasileira.
Uma outra questão perpassa os estudos sobre o “barroco” na Revista: os artigos
são descritivos e classificatórios, forjando, no Brasil, o patrimônio que apontaria a
origem da nação. Não possuem, neste sentido, discussões específicas acerca do próprio
conceito de “barroco”, seja apresentando diferentes pontos de vista, ou inserindo-se
explicitamente em uma determinada linha teórica. A única exceção a este caso é o artigo
de Hanna Levy, “A propósito de três teorias sobre o barroco”, publicado na quinta
edição da Revista180. A autora foi convidada por Rodrigo Melo Franco de Andrade para
ministrar um curso de história da arte aos técnicos do IPHAN, ainda nos primeiros anos
de funcionamento da instituição. Além do curso, publicou alguns artigos na Revista.
Neste, a historiadora da arte analisa as concepções de “barroco” de Heinrich Wölfflin,
Max Dvorak e Leo Balet, buscando a proposta mais afeita ao caso brasileiro. Conclui
179 ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Palestra proferida por Rodrigo M. F.de Andrade, em Ouro Preto, a 1-7-68. Revista do SPHAN, n.17, 1969, p.11 180 LEVY, Hanna. A propósito de três teorias sobre o Barroco. Revista do IPHAN, Rio de Janeiro, n.5, p.259-285, 1941
82
que a teoria de Balet é a mais adequada, por condicionar a arte barroca ao momento
histórico, permitindo assim suas diferentes especificidades. No entanto, este artigo não
parece ter encontrado muita ressonância dentro da instituição, pois somente Levy
escreveu sobre questões específicas da história da arte brasileira. Além disso, quando
Silva Telles escreveu uma retrospectiva dos estudos sobre “barroco” no Brasil181 para a
Revista do IPHAN, em 1984, criando uma listagem dos mais importantes artigos nela
publicados, o de Levy não é sequer citado.
O tipo de trabalho realizado pela pesquisadora, buscando matrizes teóricas,
aplicando modelos, enfim, um trabalho que pouco tinha de descritivo – como era a
maior parte dos artigos da Revista – não obtém sucesso no IPHAN, conforme podemos
observar no trecho abaixo. Trata-se de uma carta enviada por Rodrigo Melo à Hanna
Levy quando esta estava lotada em Brasília182:
À vista do seu relatório correspondente aos trabalhos realizados pela
Senhora nesta repartição durante o mês de julho próximo findo,
comunico-lhe o seguinte:
Tais como têm sido exercidas as suas atividades e elaborados os seus
relatórios, esta repartição não tira nenhum proveito nem daqueles, nem
destes. Ao cabo de muitos meses desse regime, a senhora
provavelmente ficará bem provida de observações e conhecimentos,
para seu próprio uso, sobre as imagens de Santos, mas o arquivo desta
Diretoria, mas conservará anotação alguma de qualquer utilidade
relativa ao assunto.
Ora o objetivo das instruções que lhe transmiti para apresentação
de relatório mensal foi exatamente conseguir que seus serviços a
esta repartição consistam em alguma coisa mais proveitosa do que
um artigo para a revista, como produto do trabalho do ano inteiro.
Devolvo-lhe, portanto, o relatório referente ao mês passado, afim de
que, a principiar julho e de ora em diante, a senhora inclua naquele e
nos relatórios sucessivos as observações que tiver feito, as reflexões de
181 TELLES, Augusto C. da Silva. O Barroco no Brasil. Revista do IPHAN, n.19, p.125-137, 1984. 182 Agradeço especialmente a Adriana Nakamuta por me ajudar a localizar as cartas.
83
interesse que porventura lhe tenham ocorrido sobre o assunto e as
conclusões parciais a que houver chegado. Em suma: pondero-lhe,
mais uma vez, que é absolutamente indispensável tornar os seus
serviços de proveito efetivo para esta repartição. Não se justifica
que a Senhora seja remunerada a título permanente afim de
estudar para si mesma...183
Hanna Levy pode ter sido uma pesquisadora de extrema importância para a
história da arte no Brasil, conforme aponta Guilherme Simões Júnior ao afirmar que
seus estudos foram cruciais para a ascensão da figura de Lourival Gomes Machado na
USP, que se tornou um especialista em barroco no Brasil. Mas parece bastante claro
que, enquanto Levy esteve no IPHAN, não esteve entre pares, por não desenvolver uma
pesquisa descritiva que fizesse conhecer, que apresentasse os dados seguros e as provas
documentadas.
Merece destaque, no entanto, o artigo “Modelos europeus na pintura
colonial”184, objeto de polêmica entre os pesquisadores de história da arte, conforme
apontado por Guiomar Grammont185. Segundo a autora:
Hannah Levy foi a primeira pesquisadora a levantar a hipótese do uso
de modelos das gravuras européias de Bíblias ilustradas da época na
pintura de Manoel da Costa Ataíde, o que significou verdadeira
revolução nos estudos sobre o chamado ‘barroco mineiro’. Os
exemplos com que a autora documenta sua tese são eloqüentes no
sentido de evidenciar que a emulação de modelos não constituía
nenhum problema para os pintores do período. As modificações dos
modelos que aparecem nos desenhos dos pintores locais são mínimas
183 Carta de Rodrigo Mello Franco de Andrade a Hanna Levy, de 7 de agosto de 1947. Grifos nossos. Este material se encontra no Arquivo Central do IPHAN, no Rio de Janeiro. Localização: Arquivo Técnico e Administrativo – Representante 1945-1948 / AA01-P02-Cx.0037/357/P.0159. 184 LEVY, Hanna. Modelos europeus na pintura colonial. Revista do IPHAN. Rio de Janeiro, n.8, 1944. p.7-66 185 GRAMMONT, Guiomar de. Aleijadinho e o aeroplano: o paraíso barroco e a construção do herói colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008
84
e, muitas vezes, determinadas por motivos que aparentemente nada
têm a ver com critérios artísticos.186 P.251
Decorre daí que:
Essa constatação provocou polêmica. No princípio, como os
pesquisadores supunham, anacronicamente, a validade transistórica
das categorias de seu próprio tempo sobre os artífices e as artes do
período colonial, tais como ‘autoria subjetivada’ e ‘originalidade’,
admitir a emulação equivalia a praticamente colocar em dúvida a
integridade moral do artífice, pondo sob suspeição a qualidade das
‘cópias’.187 P.252
Dessa maneira, o problema da “originalidade” foi posto aos pesquisadores, que
deviam discutir em que medida a adoção de modelos tornaria um artista como
Aleijadinho menos “original”. Um imenso trabalho de pesquisa que buscava a
comparação exaustiva das obras foi levado a cabo e, segundo Grammont: “O conceito
de ‘originalidade’ foi então redefinido, sem ser abandonado, e esvaziou-se a idéia de
emulação, diante da hipótese da ‘recriação’ das obras pelo ‘artista genial’”188.
2.2 A série Publicações do IPHAN
2.2.1 Tipologia: criação, objetivos, autores e público
A série Publicações do IPHAN, assim como a Revista, foi criada no primeiro
ano de funcionamento do então Serviço, em 1937. Os livros foram editados sem
186 GRAMMONT, Guiomar de. Aleijadinho e o aeroplano. p. 251 187 Idem, ibidem, p. 252 188 Idem, ibidem, p.253
85
apresentar regularidade; em alguns anos eram publicados dois ou três volumes, em
outros casos passavam-se quatro anos sem nenhuma publicação.
A série é fruto de escolhas editoriais clara e estrategicamente delineadas do que
deve ser publicado sob a égide do IPHAN, ou seja, são autorizações concedidas a
autores e assuntos que, naquele momento, são relevantes para o desenvolvimento dos
estudos sobre patrimônio , sempre em tom de aprovação às iniciativas do então Serviço.
Consistem em uma série de estudos de caráter monográfico, assinados por um só
autor189. Sua importância pode ser observada na quantidade de obras prefaciadas por
Rodrigo Melo Franco de Andrade, em textos que, de maneira geral, justificam sua
publicação, expondo questões importantes para os estudiosos do patrimônio naquele
momento.
Seus colaboradores, assim como na Revista, integravam o quadro de técnicos do
IPHAN, o Conselho Consultivo ou faziam parte de suas redes de relações pessoais.
Entre os intelectuais convidados para ministrar cursos aos técnicos do órgão, apenas
Afonso Arinos de Melo Franco – também membro do Conselho Consultivo – teve um
volume publicado nessa série190.
O objetivo visado com as Publicações consistiu no estabelecimento de uma
história da arte brasileira que englobasse todos os seus aspectos, tornando-se referência
para os estudiosos, objetivo que foi perseguido com afinco ao longo dos anos.
Conforme afirma Rodrigo Melo Franco de Andrade, no primeiro volume publicado,
“Mucambos do Nordeste”191:
189 A única exceção é o trigésimo-sexto volume da série, “Tecelagem manual no Triângulo Mineiro: uma abordagem tecnológica”, publicado em 1984, sob a organização de três autores. 190 FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Desenvolvimento da civilização material no Brasil. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1944. (Publicações do IPHAN; nº 11) 191 FREYRE, Gilberto. Mucambos do Nordeste: algumas notas sobre o tipo de casa popular mais primitiva do nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1937. (Publicações do IPHAN; nº 1).
86
Tendo por objeto questões gerais ou aspectos particulares da formação e
do desenvolvimento das artes plásticas no Brasil, assim como estudos
sobre materiais de nossa arqueologia, de nossa etnografia, de nossa arte
popular, de nossas artes aplicadas e dos monumentos vinculados à nossa
história, os trabalhos que serão dados à publicidade em seguida ao
presente ensaio do professor Gilberto Freyre visarão a informação e a
instruir com seriedade os interessados sobre aqueles assuntos. O
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional se empenhará no
sentido de impedir que a literatura enfática ou sentimental, peculiar a
certo gênero de amadores, se insinue nestas publicações. Por este meio,
não interessa divulgar páginas literárias, ainda que brilhantes. O que
interessa é divulgar pesquisas seguras, estudos sérios e trabalhos
honestos e bem documentados acerca do patrimônio histórico e artístico
do Brasil. Estas publicações não têm outra finalidade.192
Reafirma-se, nesse sentido, o caráter científico das Publicações: oposto a um
“amadorismo”, o profissionalismo científico nesse caso calca-se fortemente na
documentação exibida, fornecendo provas irrefutáveis da história a ser contada. Para
tanto, é feito um investimento visando fornecer instrução e informação profissional para
os estudiosos da área, preocupação que parece, de fato, nortear a empreitada. Márcia
Chuva afirma que:
O Diretor contratou professores para ministrar aulas a seus funcionários,
dentre os quais Hanna Levy, sobre História da Arte, e Celso Cunha, o
famoso gramático da língua portuguesa, para uma escrita correta e
Afonso Arinos, sobre o ‘desenvolvimento da civilização material no
Brasil’.193
Sobre a arquitetura popular, tema desse primeiro volume, afirma que:
192 ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Prefácio (in Mocambos do Nordeste, de Gilberto Freyre) in Rodrigo e o SPHAN, p. 95 193 CHUVA, Márcia. Os arquitetos da memória: a construção do patrimônio histórico e artístico nacional no Brasil (anos 30 e 40). p.207
87
Esta tem sido considerada entre nós com tão imerecido descaso, que só
isso justifica a escolha de um trabalho sobre mocambos do Nordeste
para preceder a tantos outros versando matéria de maior interesse
artístico. Dir-se-ia de fato, tendo-se em vista a bibliografia relacionada
com a finalidade deste Serviço (aliás muito escassa e lamentavelmente
dispersa), que a história da arquitetura brasileira se processou apenas
sob a influência dos estilos eruditos importados da Europa. Ao
parentesco que tenham acaso os nossos monumentos considerados
artísticos com os tipos de habitação criados no Brasil pelo engenho
popular não se prestou ainda quase nenhuma atenção. E, mesmo entre
aquelas influências européias que contribuíram para formar a nossa
tradição arquitetônica, têm sido desprezados ou desconhecidos os traços
da arte popular ibérica, que, no entanto, se transmitiram às nossas
edificações com muito mais freqüência e resultados certamente mais
felizes que quaisquer outros.194
A tópica em torno de “um vasto trabalho por fazer” é recorrente na afirmação de
que há uma escassa bibliografia sobre o assunto. Rodrigo ressalta também o
desconhecimento da influência da arte ibérica na formação do Brasil, referindo-se ao
século XIX brasileiro e à primeira geração de artistas românticos, quando havia um
privilégio à formação francesa em detrimento da portuguesa.
Outra tópica recorrente, relativa à falta de instrução ou de recursos que gera um
novo produto pela criatividade ou adaptação ao meio brasileiro, aparece no seguinte
trecho: “E por vezes, as mesmas contingências econômicas impelem o engenho popular
a invenções que aparentam algumas dessas construções rudimentares às lídimas
expressões da melhor arquitetura”195.
O interesse pela habitação popular reside no seguinte motivo:
Porque os nossos tipos de habitação popular não têm somente interesse
documentário, do ponto de vista do historiador e do sociólogo, senão
194 ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Prefácio (in Mocambos do Nordeste, de Gilberto Freyre), p. 93 195 Idem, ibidem, p 93
88
ainda interesse como obras de arte, possuindo, como possuem muitas
vezes, os traços essenciais, que distinguem exemplares autênticos de
boa arquitetura.196
A busca pela autenticidade aparece aqui mais uma vez, na essência de uma boa
arquitetura. A preferência pela casa é explicada por Rodrigo M. F. citando Gilberto
Freyre:
“A casa é, na verdade, o centro mais importante de adaptação do
homem ao meio [...] O brasileiro, pela sua profunda formação patriarcal
e semi-patriarcal, que ainda continua a atuar sobre ele em várias regiões
menos asfaltadas, é um tipo social em quem a influência da casa se
acusa em traços da maior significação”.197
A obra de Gilberto Freyre analisa o processo de construção popular utilizando-se
da teoria da contribuição das três raças no processo de formação do Brasil. O autor
inicia sua narrativa afirmando que há uma unanimidade portuguesa na arquitetura nobre
nordestina até o século XIX, ao passo que a casa popular – o mucambo – origina-se de
uma mistura de técnicas africanas e indígenas, com alguma influência da choupana
196 ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Prefácio (in Mocambos do Nordeste, de Gilberto Freyre), p.93 Grifos nossos. 197 ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Prefácio (in Mocambos do Nordeste, de Gilberto Freyre), p.93. A citação não possui referência, mas parece prover do prefácio de “Sobrados e Mucambos”, no qual Freyre afirma: “E a casa é, na verdade, o centro, mais importante de adaptação do homem ao meio. Mesmo diminuída de importância, como nas fases de decadência da economia patriarcal, ou com a economia agrária substituída pela metropolitana, o antigo bloco partido em muitas especializações - residência, igreja, colégio, botica, hospital, hotel, banco - não deixa de influir poderosamente na formação do tipo social. O brasileiro pela sua profunda formação patriarcal e pela semipatriarcal, que ainda continua a atuar sobre ele em, várias regiões menos asfaltadas, é um tipo social em que a influência da casa se acusa ecológica e economicamente em traços da maior significação. Gosta da rua, mas a sombra da casa o acompanha. Gosta de mudar de casa, mas ao pobre nada preocupa mais que comprar seu mucambo; e o rico, logo que faz fortuna, levanta palacete bem à vista da rua. O fenômeno de preferência pelo hotel, pela pensão, pela casa de apartamento - que aliás ainda é casa - limita-se, por ora, ao Rio de Janeiro e a São Paulo. No resto do Brasil ainda se prefere "a minha casa, a minha casinha, não há casa como a minha. O privatismo patriarcal ou semipatriarcal ainda, nos domina. Mesmo que a casa seja mucambo - o aliás tão caluniado mucambo.”
89
portuguesa. Para o autor, o caso do mucambo do Nordeste é dos que ilustra melhor a
relação do homem com o espaço e com o meio, tornando-se um exemplo da
constituição de uma especificidade brasileira.
A obra de maior relevância para o desenvolvimento do IPHAN, no entanto,
parece ter sido “Desenvolvimento da Civilização Material no Brasil”, de Afonso Arinos
de Melo Franco, publicado em 1944. Segundo Márcia Chuva:
Esse livro parece ter se tornado uma referência teórica e metodológica
daquilo que se pretendia como tratamento do objeto patrimonial,
definindo um âmbito de estudos não suprimido pelo historiador
tradicional, nem tampouco pelos profissionais da arquitetura. 198
Em nota preliminar, Rodrigo Melo Franco de Andrade informava que a obra era
resultado de cinco conferências proferidas por Afonso Arinos aos técnicos do IPHAN,
em fins de 1941. Mas, por se tratar de uma pesquisa dos fatores de ordem material que
constituíram a nação brasileira, considerava o fator inédito frente ao primado dos
estudos políticos e sociais realizados pelos historiadores, julgando melhor publicá-la,
retirando-a do arquivo.
Afonso Arinos analisa as raízes da civilização material brasileira, estabelecendo
uma hierarquia de influências e defendendo a predominância da herança material lusa,
afinando-se dessa forma, com proposições já vistas de Gilberto Freyre e Lúcio Costa.
Para o autor:
O desenvolvimento da nossa civilização material é de base
portuguesa, entendida no seu complexo luso-afro-asiático. A
contribuição negra e índia, muito notável na elaboração de nosso
psiquismo nacional, é pouco importante na nossa civilização material,
não somente por ter sido absorvida no choque com um meio muito
mais evoluído mas também porque as condições de sujeição em que
198 CHUVA, Márcia. Os arquitetos da memória: a construção do patrimônio histórico e artístico nacional no Brasil (anos 30 e 40). p.211
90
viviam as raças negra e vermelha não permitiam a expansão plena das
suas respectivas formas de cultura, Por isto mesmo os elementos
negros e índios, presentes na nossa civilização material, salvo um ou
outro mais notáveis, são de difícil identificação.199
Quanto aos exemplares dessa civilização material, o autor destaca as “belas, as
maravilhosas igrejas [...] em quase todo o Brasil”, “erigidas no período colonial, [...]
algumas se ligam ainda a conventos, que são igualmente obras preciosas de força,
elegância e beleza". Afirma ainda que “as igrejas eram o verdadeiro centro social da
vida na colônia”.200
Isto porque, para Arinos, a ostentação era uma característica psicológica dos
portugueses que se tornou um componente da civilização material brasileira. Apesar de
considerar que a simplicidade imperava nas construções particulares – chamadas
“franciscanas” – afirmava que os prédios públicos eram projetados com mais esmero.
No entanto, pouquíssimos exemplares se destacariam na civilização material, pois:
Não esqueçamos também que, em face da Coroa, a nobreza ocupava,
do ponto de vista econômico, uma situação inferior à do clero. [...] No
Brasil os bens clericais freqüentemente adicionavam abundância à
estabilidade. Não é de se admirar, portanto, que as igrejas estivessem
sempre entre os edifícios mais cuidados, mais ricos, amplos e sólidos.
Nelas se concentrou, durante os três primeiros séculos, o que havia de
melhor em matéria de desvelo arquitetônico, quanto à sua construção,
e de riqueza artística quanto às esculturas, pinturas, pratarias e talhas
das fachadas e interiores.201
Estabelecia-se, assim, um primado da arquitetura religiosa na formação de uma
civilização material brasileira. Pensando no estatuto desta obra – uma série de
conferências destinadas aos técnicos do IPHAN – é possível supor que sua recepção
199 MELO FRANCO, Afonso Arinos. Desenvolvimento da civilização material no Brasil.. p.24 200 Idem, ibidem, p.24 201 Idem, ibidem, p.23
91
produziu um efeito satisfatório, pelo que pôde ser observado no volume de pesquisa
dedicada a esse tipo de construção, assim como na quantidade de artigos publicados na
Revista.
Sua análise prossegue destacando o papel do Estado no processo civilizatório,
desde o estabelecimento do Governo Geral em Salvador até a Corte Imperial no
Oitocentos. Segundo o autor, o século XVII é o mais importante da história do Brasil,
quando ocorreu a consolidação do domínio português no litoral, com a expulsão dos
invasores, a conquista do sertão e a definição das fronteiras. Posteriormente, trata da
fixação dos bandeirantes no interior e o estabelecimento de ligações entre as capitanias,
no século XVIII.
À zona de mineração é conferido um grande destaque. Para Afonso Arinos, a
descoberta do ouro e a conseqüente atividade mineradora, impulsionam o processo
civilizatório, entendido aqui como a constituição de um repertório material. Observe-se
a seguinte passagem:
Não nos deteremos aqui em pormenorizar as admiráveis riquezas
arquitetônicas que se acumularam nas principais vilas mineiras no
correr, principalmente, da segunda metade do século XVIII. Isto seria
capítulo de um curso de História da Arte.
Mas, como observação geral, é cabível a de que então se formou uma
surpreendente civilização material nas montanhas, com admiráveis
palácios, igrejas, chafarizes, pontes, que ainda hoje nos espantam e
nos comovem. Sendo por demais conhecido de todos vós, não me
preocuparei em citar nomes desses monumentos.202
Conforme afirma logo em seguida, “as vilas, que aos poucos foram se
estendendo por todo o território mineiro, atestavam o progresso da civilização”. Por isso
mesmo o privilégio concedido à “capitania de Minas Gerais, a que demos naturalmente
202 MELO FRANCO, Afonso Arinos. Desenvolvimento da civilização material no Brasil. p.82
92
maior importância por ter sido o centro principal da civilização brasileira no século
XVIII” 203. Nota-se não só o primado da arquitetura religiosa, mas sobretudo mineira.
Por fim, analisa o século XIX como tendo sido marcado pela passagem do Brasil
“agrícola” para o capitalismo industrial. Nesse sentido, o café imperial cultivado no
Vale do Paraíba fecha o primeiro ciclo, escravocrata e latifundiário, dando lugar a uma
nova era do café, baseada no trabalho assalariado, que desenvolve uma civilização
material absolutamente distinta.
Segundo Afonso Arinos, a zona da mineração – que incluía a região de Minas
Gerais – atravessara um período de estagnação e decadência devido à retração da
exploração aurífera e à mudança de sua principal atividade econômica, tornando o que
havia sido um símbolo de riqueza em uma região dominada pela pobreza, na qual os
monumentos se arruinavam com o passar do tempo:
"Com a abertura das fazendas de criação e de cultura, recurso
necessário à vida dos mineradores empobrecidos, os núcleos urbanos,
onde se definira e afirmara a civilização material do ouro e das pedras,
foram sendo abandonados".204
Dessa tese apresentada pelo autor – a da constituição de uma importante
civilização material em Minas Gerais que se retrai no século XIX e é relegada ao
abandono – surgiria uma tópica importante no discurso acerca de Ouro Preto, tornado
cidade imóvel, congelada no tempo, conforme veremos a seguir.
A fundação de Belo Horizonte, cumprindo o “velho sonho dos Inconfidentes de
1788 de transferirem a capital de Minas, de Vila Rica para um novo centro mais bem
situado e mais capaz de desenvolvimento” é descrita como “o último episódio marcante
da civilização brasileira do século XIX”. A ligação entre a Inconfidência e a nova
203 MELO FRANCO, Afonso Arinos. Desenvolvimento da civilização material no Brasil. p.86 204 Idem, ibidem, p.114
93
cidade é sugerida por um sentimento latente: "a instalação solene se deu na praça
simbolicamente chamada da Liberdade, velho culto nunca arrefecido nos corações
mineiros"205.
A materialidade da nação foi, e ainda é, o objeto do IPHAN nas práticas de
tombamento. Buscar seus indícios, preservar o que for possível, são as prioridades da
pesquisa desenvolvida nesses anos. A série Publicações enquadrava-se nesta iniciativa,
apresentando, em sua maioria, estudos detalhados sobre exemplares da “civilização
material” ou sobre os artífices dessa materialidade.
2.2.2 Inventário do patrimônio barroco: Minas Gerais do século XVIII
Dentro do escopo proposto, podemos observar que aproximadamente 30% dos
volumes são referentes a Minas Gerais (a maior parte destes versando sobre igrejas,
alguns sobre cidades e dois sobre a pintura mineira). Todos se localizam temporalmente
em Minas colonial, com exceção do Guia de Ouro Preto, que avança até a
contemporaneidade por tratar-se de um guia turístico206.
Este Guia207 – o segundo volume da série Publicações, publicado no ano de
1938 – é uma iniciativa de divulgação da cidade de Ouro Preto, contendo um histórico
dos principais lugares e edificações da cidade e destacando roteiros para turistas.
Apresenta ainda um anexo contendo as plantas de Ouro Preto e Mariana, além de
205 MELO FRANCO, Afonso Arinos. Desenvolvimento da civilização material no Brasil. p.133 206 A obra foi posteriormente reeditada pela Ediouro, por mais de uma vez. 207 BANDEIRA, Manuel. Guia de Ouro Preto. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1938. (Publicações do IPHAN; nº 2)
94
diversas ilustrações ao longo do livro, por Luís Jardim, que já havia contribuído com
artigos para a Revista, sobre a pintura nas igrejas coloniais mineiras208.
No Guia, baseado na obra de Diogo de Vasconcellos209, o seu autor, Manuel
Bandeira, afirma que o casario de Ouro Preto era precário até 1720, quando melhores
edifícios começaram a ser construídos, como a primitiva Matriz de Ouro Preto, ainda
assim considerada uma construção frágil. Na segunda metade do século XVIII a atual
cidade teria começado a tomar seu aspecto atual, com a construção do Palácio dos
Governadores e o “início da boa arquitetura de pedra argamassada”, aspecto que,
segundo Bandeira, se manteve até a atualidade:
Mas os prédios novos são exceção em Ouro Preto. Ela conservou,
mercê de sua pobreza, uma admirável unidade. De todas as nossas
velhas cidades é ela talvez a única destinada a ficar como relíquia
inapreciável do nosso passado. As duas outras que se lhe irmanam nessa
feição tradicionalista estão fadadas a uma renovação sem cura: Bahia e
Olinda. Em ambas é ainda bem forte a emoção especial ligada aos
vestígios dos séculos defuntos. Mas Olinda é cada vez mais arrabalde
do Recife. A capital acabará fatalmente por absorvê-la. Quanto à cidade
do Salvador, o progresso, que tudo renova, fará com ela o que já fez
com o velho Rio e o velho Recife.210
Ouro Preto seria, portanto, um núcleo de arte colonial autêntico, imobilizado em
seu momento áureo, uma jóia de um determinado tipo de patrimônio, a saber, “colonial”
e “barroco”, num tempo não tão distante:
Como se vê, a cidade cujo ar de prestigiosa velhice tanto nos enternece,
pode-se dizer que é de ontem. O que lhe deu aquela feição de tão nobre
antiguidade foi a decadência rápida e súbita da nossa arquitetura
tradicional por todo o Brasil.211
208 A pintura decorativa em algumas igrejas antigas de Minas. Revista do IPHAN, n.3 p.63-103, 1939; A pintura do Guarda-mor José Soares de Araújo em Diamantina. Revista do IPHAN, n.4 p.155-181, 1940 209 VASCONCELLOS, Diogo. A Arte em Ouro Preto. 210 BANDEIRA, Manuel. Guia de Ouro Preto. p.45 211 Idem, ibidem, p.20-23
95
A decadência a que se refere diz respeito à arquitetura neoclássica e eclética
reconhecida no território brasileiro no século XIX e início do XX. A proposição afina-se
com a “linha evolutiva da boa arquitetura” preconizada por Lúcio Costa, cara ao
modernismo arquitetônico. A crítica se torna explícita e direcionada ao Neocolonial no
seguinte trecho:
Há em algumas dessas casas novas a intenção de retomar o estilo das
velhas. Mas falta a essa arquitetura de arremedo o principal em tudo,
que é o caráter. Essa maneira arrebitada e enfeitada que batizaram de
estilo neo-colonial, tomou à velha construção portuguesa uma meia
dúzia de detalhes de ornato, desprezando por completo a lição de
força, de tranqüila dignidade que é a característica do colonial
legítimo.212
Em seguida, Bandeira apresenta relatos de viajantes que, ao longo do século
XIX, freqüentemente descreveram a cidade como decadente, pois, segundo o autor,
eram insensíveis aos elementos que despertam nosso nacionalismo, ainda que em alguns
casos os monumentos tivesse sido tratados com admiração. Guiomar de Grammont
aponta acerca do estatuto desses relatos de viagens e a inversão operada pelos
modernistas, o seguinte:
No discurso dos viajantes do século XIX, com Saint-Hilaire, Burton,
Eschwege e outros, observamos sempre a comparação implícita com
manifestações artísticas e monumentos europeus, para fornecer
imagens verossímeis, que possam aproximar mais da opinião de seus
leitores aquilo que descrevem. A comparação, contudo, sempre é
efetuada segundo um padrão de inferioridade da colônia americana em
relação à Europa, satisfazendo, assim, a expectativa de recepção
pressuposta no enunciado. [...] No discurso modernista, o movimento
é contrário: a ordem é revalorizar a arte local para integrá-la no vasto
212 BANDEIRA, Manuel. Guia de Ouro Preto. p.41
96
programa de “redescoberta” das raízes da arte brasileira, enfatizando
aspectos como a miscigenação racial e cultural, projeto no qual foi
integrado o mito do Aleijadinho. O que chamamos “redescoberta”,
contudo, em nossa perspectiva, significou, efetivamente, a invenção
de um país que é o Brasil modernista, baseado na invenção de raízes
culturais. O barroco teria um papel fundamental na constituição dessas
raízes.213
Sobre o nacionalismo despertado por esses monumentos, Manuel Bandeira
afirma, em defesa de uma arte brasileira com referência na “linha evolutiva”
estabelecida, que a tradição fora rompida:
Para nós brasileiros, o que tem força de nos comover são justamente
esses sobradões pesados, essas frontarias barrocas, onde alguma coisa
de nosso começou a se fixar. A desgraça foi que esse fio de tradição se
tivesse partido.214
O autor compõe o panteão de heróis de Ouro Preto, com destaque para
Tiradentes e Aleijadinho, “as duas grandes sombras de Vila Rica”.215 O primeiro é
apresentado como herói nacional incompreendido e cidadão prestigioso. Em seus
termos:
A verdade é que Gonzaga, Cláudio Manoel da Costa, Alvarenga eram
homens requintados, letrados, a quem a vida corria fácil, ao passo que o
alferes sempre lutara pela subsistência: antes de alistar-se na tropa paga
vivera da profissão que lhe valeu o apelido. Não obstante, foi ele talvez
o único a demonstrar fé, entusiasmo e coragem na aventura de 89.
Descoberta a conspiração, enquanto os outros, entibiados, não
procuravam outra coisa senão salvar-se, ele revelou a mais heróica força
de ânimo, chamando a si toda a culpa e enfrentando com serenidade a
pena última.216
213 GRAMMONT, Guiomar. Aleijadinho e o aeroplano. p.134 214 BANDEIRA, Manuel. Guia de Ouro Preto. p.42 215 Idem, ibidem, p.49 216 Idem, ibidem, p.49
97
Utiliza-se, nessa construção, da figura de um herói romântico, trágico, um mártir
da independência brasileira. A Inconfidência Mineira e o personagem Tiradentes são
como uma conseqüência do espírito e arquitetura “barrocos” de Ouro Preto, esta
simbolizada em Aleijadinho. Esta mesma tese é também apresentada por Lúcio Costa,
que destaca igualmente os dois personagens.
A Aleijadinho são dedicadas várias páginas no Guia, endossando a biografia
escrita por Rodrigo Bretas, considerada como tudo o que se sabe sobre a vida do artista.
Sobre o pronunciamento de um vereador de Mariana que se refere a Aleijadinho, citado
na biografia, diz nos permitir conhecer “a personalidade do artista, que naquela curta
notícia avulta em toda a força e originalidade da sua prodigiosa figura”217. Reforça,
dessa forma, a idéia de um artista original que dá início a uma arte genuinamente
brasileira:
Entenda-se que o diminutivo de Aleijadinho é significativo da pura
compaixão e meiguice brasileira. O homem a que ele se aplicou nada
tinha de fraco nem de pequeno. Era, em sua disformidade, formidável.
Nem no físico, nem no moral, nem na arte, nenhum vestígio de tibieza
sentimental. Toda a sua obra de arquiteto e escultor é de uma saúde, de
uma robustez, de uma dignidade que não atingiu a nenhum outro artista
plástico entre nós. As suas igrejas, que apresentam uma solução tão
sábia de adaptação do barroco ao ambiente do século XVIII mineiro,
não criam aquela atmosfera de misticismo quase doentio que há, por
exemplo, em S. Francisco de Assis, da Bahia, ou na Misericórdia, de
Olinda: nas claras naves de Antônio Francisco dir-se-ia que a crença
não se socorre senão da razão; não há nelas nenhum apelo ao êxtase, ao
mistério, ao alumbramento.218
217 Grifos nossos. 218 BANDEIRA, Manuel. Guia de Ouro Preto. p.54-57
98
O autor discute também a enfermidade que teria acometido o artista, utilizando-
se das informações do texto de Bretas e de um artigo de jornal escrito em 1929 pelo
médico René Laclette, que mais à frente publicaria um artigo na Revista do IPHAN
sobre o assunto219. Ao fim da seção, apresenta também uma relação de obras
“definitivamente comprovadas por lançamentos nos livros de receita e despesa das
Irmandades ou recibos autógrafos do artista ou através de cuidadosos exames e
confrontos”, advertência que afirma o caráter científico das pesquisas que foram
realizadas.
Sobre a cronologia histórica de Ouro Preto proposta por Bandeira, vale dizer que
o período pós-1789 é muito pouco analisado, sendo proposta como última data histórica
de Ouro Preto o dia 12 de julho de 1933, quando a cidade foi declarada “Monumento
Nacional”. Quando o Guia é reeditado, esse limite é ajustado, sendo proposta como
última data histórica o ano de 1980, quando a cidade passa a integrar o Patrimônio
Cultural da Humanidade, por ter sido reconhecida como Monumento Histórico Mundial
pela UNESCO. Dessa forma, o autor cria uma cronologia que remete à descoberta e
fundação da cidade, seu período áureo, o congelamento neste período e o posterior
reconhecimento desse monumento colonial. Primeiramente, em nível nacional; em
seguida, como patrimônio mundial.
Em 1942, Antonio Francisco Lopes publicou a “História da construção da Igreja
do Carmo de Ouro Preto”220. A obra contava com prefácio de Rodrigo Melo Franco de
Andrade, no qual afirmava que “as melhores fontes para o estudo da história da arte no
Brasil são os arquivos das igrejas”, revelando “os dados mais precisos, profusos e
esclarecedores”. Segundo Rodrigo M. F., a obra de Lopes foca-se numa narrativa
objetiva, sem apreciações críticas de arte, limitando-se a “reconstituir, à luz dos
219 LACLETTE, René. O “Aleijadinho” e suas doenças. Revista do IPHAN, n.17, p.127-176, 1969. 220 LOPES, Francisco Antonio. História da construção da Igreja do Carmo de Ouro Preto. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1942. (Publicações do SPHAN; nº 8)
99
documentos autênticos que manuseou o empreendimento acidentado da edificação
daquele monumento”. Considera que, no momento da publicação da obra, o mais
importante é “investigar a história das artes plásticas no Brasil diretamente nas suas
fontes autênticas”.
Como vimos, esses são os pressupostos que regeram boa parte da pesquisa
histórica realizada no IPHAN sobre o passado colonial, constituindo uma metodologia
de pesquisa largamente aplicada, já demonstrada nos artigos da Revista, com as
freqüentes exposições de fontes primárias. Lopes comenta ainda a participação mais
ostensiva do Aleijadinho nas obras da igreja do Carmo que, apesar de não haver
documentação a esse respeito, seria comprovada em um estudo a ser publicado
posteriormente.
O texto de Lopes narra a história da construção da Igreja do Carmo, desde a
capela de Santa Quitéria – cuja data de construção não é conhecida –, primeira
ocupação do terreno onde se localiza a atual igreja. Este templo começou a ser
construído seguindo o projeto original de Manuel Francisco Lisboa. São descritos em
detalhes o projeto de construção e os materiais empregados, bem como as modificações
realizadas. A narrativa de Lopes então prossegue pelas obras de acabamento e de
interior do templo, sugerindo algumas intervenções do Aleijadinho, sendo comprovada
apenas sua autoria na talha de dois altares-colaterais. Destaca também o pintor Manuel
da Costa Ataíde, autor do risco para o altar-mor.
Por sua vez, Carlos Del Negro publicou, em 1958, “Contribuição ao estudo da
pintura mineira”, vigésimo-volume da série221. No prefácio, Rodrigo Melo Franco de
Andrade nos informa que o estudo de Del Negro “corresponde a um dos estudos
preparatórios que se tornavam indispensáveis para se delinear com segurança a
221 DEL NEGRO, Carlos. Contribuição ao estudo da pintura mineira. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1958. (Publicações do PHAN; nº 20)
100
evolução da pintura antiga em nosso país”. Ressalta que os exemplares mais
importantes datam principalmente do século XVIII e, sobre a escolha da região de
Minas Gerais, afirma:
[...] os exemplares da espécie que se encontram na área do atual estado
de Minas Gerais, estudados pelo professor Del Negro, são
possivelmente os mais interessantes e valiosos do acervo pictórico
nacional.222
Segue sua exposição lamentando não ter sido possível ao autor abarcar a região
de Diamantina e do Serro, lacunas essas que busca preencher no prefácio, indicando
templos e artistas. Conclui que:
A despeito da omissão das obras mencionadas acima, o livro do
professor Carlos Del Negro satisfaz plenamente à finalidade que se
propôs, pois trata com segurança das pinturas de maior significação
ocorridas em Minas Gerais e assinala com justiça a preeminência que
cabe, entre todas, à do marianense Manuel da Costa Ataíde. 223
Rodrigo M. F. coloca Ataíde no papel de precursor de uma escola de pintura
mineira, como fez no seu artigo de 1978, já exposto anteriormente224. O que se segue à
citação de Rodrigo, no prefácio, é um trecho sobre Ataíde idêntico ao artigo da Revista.
O livro apresenta análises detalhadas, bastante descritivas e técnicas, das
pinturas dos templos contemplados pelo recorte proposto. Em alguns casos, como na
igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto, o texto é mais extenso, abordando
outros aspectos ou apresentando fotos. Em uma parte inicial, que apresenta um breve
histórico da região aurífera e das origens da pintura mineira, afirma que esta última
resulta do trabalho de artistas portugueses que trabalharam na Europa, baseada na cópia
222 ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Prefácio a Contribuição ao estudo da pintura mineira. 223 ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Prefácio a Contribuição ao estudo da pintura mineira. 224 Idem. Pintura Colonial em Minas Gerais. Revista do SPHAN, n.18, p.11-74, 1978.
101
de estampas, mas que adquiriu originalidade ao longo do tempo. Alinhado aos autores
do IPHAN, como Lúcio Costa e outros, Del Negro aponta a presença do fator português
na formação brasileira, mas destaca também o “desvio” operado na colônia, a
emergência da “originalidade” brasileira.
Por último, o autor apresenta um resumo crítico, em que identifica quatro
modelos de pinturas de teto em Minas Gerais, estabelecendo uma tipologia. Descreve
um ou mais exemplos de cada modelo, e apresenta algumas interseções de dois modelos
diferentes. O terceiro modelo, identificado no teto da capela-mor do Santuário do
Senhor Bom Jesus de Matozinhos de Congonhas do Campo, é o mais explorado, e ao
seu pintor expoente – Manuel da Costa Ataíde – são dedicadas algumas páginas. Estas
contêm uma relação de obras do artista; um estudo comparativo entre o teto da capela-
mor e nave da igreja de Nossa Senhora do Rosário de Santa Rita Durão (que conclui
que a pintura do templo de Santa Rita “contribuiu para a formação da arte de Ataíde”) e
uma listagem cronológica provável de suas pinturas. Posteriormente, em 1978, foi
publicada uma extensão deste estudo, denominada “Nova contribuição ao estudo da
pintura mineira”225. Tratava-se, sobretudo, de fazer conhecer os artistas brasileiros e
enquadrá-los numa história da arte universal.
Em 1974, Judith Martins, secretária pessoal de Rodrigo M.F. e historiadora da
arte, publicou o “Dicionário de artistas e artífices dos séculos XVIII e XIX em Minas
Gerais”226. Na introdução da obra, explica-se que os verbetes presentes no dicionário
foram confeccionados por ela própria, entre 1940 e 1960, sob a orientação de Melo
Franco de Andrade. As fontes utilizadas foram cópias de documentos originais de
arquivos públicos civis e eclesiásticos, levantadas através de atividade de pesquisa
225 DEL NEGRO, Carlos. Nova contribuição ao estudo da pintura mineira (norte de Minas): pintura dos tetos de igrejas. Rio de Janeiro: IPHAN, 1978. (Publicações do IPHAN; nº 29) 226 MARTINS, Judith. Dicionário de artistas e artífices dos séculos XVIII e XIX em Minas Gerais. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1974. 2v. (Publicações do IPHAN; nº 27).
102
empreendida por antigos funcionários e colaboradores do IPHAN. Inicialmente, o
material estava datilografado em cadernos classificadores. Por ocasião de sua
publicação, foi reestruturado, revisto e ampliado. No prefácio, Melo Franco afirma,
então, que a obra demonstra que a instituição sempre teve a pesquisa como meta, a
despeito de suas limitações financeiras.
Ainda no prefácio, são explicados o estatuto do dicionário e a recepção
almejada. Seu critério principal é o fornecimento de dados transcritos da documentação
pesquisada, considerados fundamentais para os estudiosos da arte e da sociedade da
velha Minas Gerais. Rodrigo afirma ainda que, por não privilegiar a apresentação de
biografias, a obra não se destina a “um público apenas curioso”. Dessa forma, procura
condicionar a recepção do Dicionário a um público especialista.
Os verbetes apresentam a documentação relativa aos artistas, dispostos em
ordem alfabética, apresentando inicialmente seu nome e sua profissão. Em alguns casos,
há também um texto biográfico introdutório, conferindo destaque, como nos casos de
Aleijadinho, Manuel Francisco Lisboa (seu suposto pai) e Ataíde. Em seguida, constam
ofícios, livros de casamento e, principalmente, contratos de obras, classificados de
acordo com o edifício relativo. Constam informações tais como valores dos contratos e
data de execução. Por fim, o Dicionário apresenta uma extensa listagem dos
documentos e da bibliografia citados.
Que tipo de estratégias encerra uma obra como essa, que, conforme o exposto,
não se destina ao público em geral? Por certo, encerra as discussões então relevantes em
torno da questão do arquivo, da importância da documentação, dos “dados confiáveis” a
que Rodrigo Melo Franco de Andrade se refere. O IPHAN publica uma obra resultante
de uma pesquisa de fôlego nos arquivos mineiros, inventariando-os, demonstrando
intimidade com a documentação a qual se refere nos livros, artigos e pareceres. Coloca-
103
se, também, mais uma vez como centro da produção de conhecimento ao publicar obra
de referência, mediando a relação entre o pesquisador e o arquivo. Vale dizer que, em
1978, foi publicado na Revista um artigo que apresentava o índice do primeiro volume
do Dicionário reorganizado, desta vez por monumentos227.
227 MENEZES, Ivo Porto de. Índice, por monumentos, do “Dicionário de artistas e artífices mineiros dos séculos XVIII e XIX em Minas Gerais – 1º. Volume”, de Judith Martins. Revista do IPHAN, n.18, p.237-251, 1978.
104
3 A biografia do Aleijadinho
3.1 Representações do Aleijadinho nas páginas da Revista
Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, nome recorrente nas páginas da
Revista, desempenhou papel fundamental na construção empreendida pelo IPHAN,
como personagem central do “barroco” mineiro e, portanto, da arte brasileira como era
então concebida. Na segunda edição publicada da revista, Rodrigo Melo Franco de
Andrade escreveu um artigo sobre o Aleijadinho228, em que arrolava as obras que
tiveram a participação do “arquiteto” – para usar expressão de Lúcio Costa –
comprovada, através da pesquisa em Livros de Receitas e Despesas de irmandades.
O autor sustenta a necessidade da publicação do artigo da seguinte forma:
Foi então que, empenhados em pôr termo às hipóteses um tanto
fantasistas lançadas pela profusão dos admiradores de Antonio
Francisco Lisboa, o sr. Feu de Carvalho contestou ao Aleijadinho quase
todas as obras que lhe eram atribuídas e pôs em duvida a própria
contribuição biográfica de Rodrigo Bretas. Seu trabalho, – a que falta a
autoridade da investigação direta no domínio que era objeto sua crítica
–, ressente-se, além disso, de grande incompreensão e injusto desapreço
pela obra do escultor dos profetas de Congonhas.
No entanto, a despeito das lacunas de que se ressentia, essa crítica teve
um grande mérito e uma importância considerável para o
desenvolvimento dos estudos que se vinham realizando em torno do
Aleijadinho. Foi a partir da publicação do livro do sr. Feu de Carvalho
que se sentiu a necessidade inadiável de investigar com segurança a
obra que pertencia de fato a Antonio Francisco Lisboa. Deve-se-lhe
efetivamente o serviço relevante de ter reclamado, antes de qualquer
228 ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Contribuição para o estudo da obra do Aleijadinho. Revista do IPHAN , Rio de Janeiro, n. 2, p. 255-312, 1938.
105
outro, a comprovação necessária, por meio de documentos idôneos,
daquilo que porventura se pretendesse atribuir ao artista.229
Rodrigo elogia as biografias escritas por Rodrigo Bretas e Diogo de
Vasconcelos, mas afirma que não tiveram a preocupação de atestar a autoria de
Aleijadinho nas obras que lhe atribuem. Segundo o autor:
Quando Rodrigo José Ferreira Bretas escrevia sobre o Aleijadinho o
trabalho que o ‘Correio Oficial de Minas’ publicou no decurso do ano
de 1858’, não suspeitava de que a autoria das obras que ele atribuía a
Antonio Francisco Lisboa viesse a ser algum dia controvertida. Caso
lhe ocorresse essa possibilidade, não lhe teria sido muito difícil
comprovar as suas asserções, pois abundavam certamente àquele
tempo os meios de que precisasse no sentido de documentá-las.230
E ainda:
Mesmo depois que um historiador com a autoridade de Diogo de
Vasconcelos, por ocasião do bicentenário de Ouro Preto, dedicou um
estudo pormenorizado às obras de arte da antiga capital mineira,
grande parte do qual versando sobre Antonio Francisco Lisboa,
perduraram os equívocos nesse sentido. É que o ilustre autor da
‘História Antiga de Minas Gerais’ se desinteressara também de
comprovar a autoria do Aleijadinho sobre os trabalhos que lhe
emprestou nas igrejas de Vila Rica.231
Era importante, portanto, nesse momento em que as atenções se voltavam para o
Aleijadinho, sair do “domínio arriscado das conjecturas”, através da pesquisa conduzida
nos arquivos, que providenciasse provas documentais. Neste caso, a pesquisa foi
realizada em sua maioria por Epaminondas de Macedo, um dos técnicos do IPHAN,
229 ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Contribuição para o estudo da obra do Aleijadinho. p.256-257 230 Idem, Ibidem, p.255 231 Idem, ibidem, p.256
106
durante o ano de 1937, “no decurso dos estudos que realizava para o tombamento
sistemático das obras de arquitetura civil e religiosa no Estado de Minas Gerais”.
O autor segue então enumerando, por monumentos, as descobertas relativas à
autoria de Aleijadinho. O artigo trazia também reproduções das fontes primárias
utilizadas, procedimento comumente utilizado nos artigos publicados.
Além deste, foram publicados também dois outros artigos no terceiro número.
No primeiro232, Afonso Arinos de Melo Franco apresenta o que afirma ser o primeiro
relato estrangeiro sobre Aleijadinho, de autoria de Eschwege, que viajou a Minas Gerais
em 1811 e publicou o seu livro em 1818. Confere bastante relevância ao depoimento,
pois Eschwege sugere ter encontrado o artista ainda em vida. Compara-o ao livro de
Saint-Hillarie, que esteve em Congonhas do Campo em 1818, sugerindo que este pode
ter utilizado o texto de Eschwege como base para seu relato.
No segundo artigo233, Judith Martins aponta referências biográficas de
Aleijadinho, destacando aquele que seria o primeiro registro histórico sobre ele, de
autoria do vereador Joaquim José da Silva, em 1790, que afirma ter servido de base para
a biografia escrita por Rodrigo Bretas, em 1858. As referências fornecidas eram todas
comentadas. A iniciativa denota ter havido uma preocupação por parte do IPHAN, nesse
sentido, de capitanear o conhecimento a respeito do Aleijadinho, esclarecendo
polêmicas a seu respeito, sugerindo direções biográficas, inclusive republicando, na
série Publicações do IPHAN, a biografia escrita em 1858, com texto introdutório de
Lúcio Costa234.
232 FRANCO, Afonso Arinos de Melo. O primeiro depoimento estrangeiro sobre o Aleijadinho. Revista do IPHAN, n.3, p. 173-178, 1939. 233 MARTINS, Judith. Apontamentos para a bibliografia de Antônio Francisco Lisboa. Revista do IPHAN , n.3, 179-207, 1939. 234 COSTA, Lúcio; BRETAS, Rodrigo José Ferreira. O Aleijadinho . Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1951. (Publicações do IPHAN; nº 15) A obra será analisada mais adiante.
107
O médico René Laclette contribuiu com “O ‘Aleijadinho’ e suas doenças”235, em
1969, no décimo-sétimo número da Revista. O artigo é uma ampliação do estudo “A
doença do Aleijadinho”, publicado em 1929 em O Jornal (citado por Manuel Bandeira
no Guia de Ouro Preto), e posteriormente republicado em 1933. O texto investiga qual
teria sido, de fato, a doença que acometeu Antonio Francisco Lisboa. René Laclette
ainda discutiria o assunto em um debate coordenado por José Marianno Filho, em 1942,
e em uma comunicação à Associação Nacional de Medicina e à Associação Médica de
Minas Gerais, em 1964, como o resultado de toda esta trajetória de investigações. O
autor afirma, sobre o artigo:
Nele procuramos superar as inevitáveis controvérsias e colocar o
problema dentro de um critério funcional, isto é, explicar como Antônio
Francisco continuou a esculpir apesar da doença.236
Laclette afirma, ainda, sobre a biografia escrita por Rodrigo Bretas:
Quanto mais estudamos o trabalho de Bretas, mais nos admiramos da
sua precisão e honestidade. Não vamos procurar, nele, um diagnóstico
médico; é querermos mais do que ele nos pode dar. É necessária a
análise minuciosa do texto ao lado de uma interpretação da nosologia da
época, dentro do seu quadro histórico e das condições médio sociais
então vigentes.237
Ratifica, nesse sentido, a validade desta biografia e dá o tom de sua análise:
guiando-se pelo texto de Bretas, fornece dados explicativos que visam validar
algumasdas hipóteses sobre a doença do Aleijadinho. Afirma que o artista não era
aleijado de nascença – conforme afirmava José Marianno – e que poderia, sim, ter
perdido os dedos ou atrofiado as mãos, sendo obrigado a ter os instrumentos atados ao
235 LACLETTE, René. O “Aleijadinho” e suas doenças. Revista do IPHAN, n.17, p.127-176, 1969. 236 Idem, ibidem, p.128 237 Idem, Ibidem, p.129
108
que lhe restava dos membros superiores para poder esculpir. O artigo de Laclette, com
fartas explicações e imbuído de autoridade médica, comenta diagnósticos pregressos
feitos por outros especialistas ou contemporâneos e propõe assim encerrar as polêmicas
em torno da enfermidade que acometeu Antônio Francisco Lisboa.
O principal ponto nas formulações acerca do Aleijadinho é sua formulação como
uma espécie de “primeiro arquiteto brasileiro”, estabelecendo-o como um gênio que
impulsiona a arquitetura nacional e a própria nação brasileira, em um cenário carente de
instrução e recursos, transformando a herança européia através de sua criatividade.
Pode-se dizer, também, que o interesse em comprovar participações suas na construção
de edifícios e altares visa à descoberta de seu legado, funcionando como atestados de
valor patrimonial. As construções biográficas baseiam-se comumente no conflito entre a
“poesia” de suas criações e a enfermidade que o acometeu, em uma formulação
romântico-trágica. Nesse mesmo sentido, constroem-se ligações entre Aleijadinho e
Tiradentes, tal como faz Lúcio Costa, ao comentar o ambiente de Ouro Preto no século
XVIII, em artigo:
Poetas e eruditos, prelados e bacharéis, músicos, arquitetos, pintores,
escultores, professores de artes mecânicas e mestres de ofícios – todos
conviviam, e nesse desenvolvimento intensivo, no delimitado espaço
urbano, levou, naturalmente, àquele anseio de independência que o
Tiradentes, afinal, catalisou. 238
E conclui, em tom heróico:
A contradição fundamental entre o estilo da época [...] e o ímpeto
poderoso do seu temperamento apaixonado [...] é a marca indelével da
sua obra, o que lhe dá o tom singular, e faz deste brasileiro das Minas
Gerais [o Aleijadinho] a mais alta expressão da arte portuguesa do seu
tempo. 239
238 COSTA, Lúcio. Antônio Francisco Lisboa, o “Aleijadinho”. Revista do IPHAN, n.18, 1978. p.76 239 Idem, ibidem, p.81
109
3.2 A biografia de Rodrigo Bretas
No décimo-quinto volume da série Publicações do IPHAN, foi publicada uma
reedição da biografia do Aleijadinho, escrita por Rodrigo José Ferreira Bretas em 1858,
acompanhada de introdução escrita por Lúcio Costa, notas explicativas por Rodrigo
Melo Franco de Andrade e Judith Martins e farta documentação fotográfica240. A
iniciativa de reeditar essa biografia traz o propósito claro de divulgação da “vida e obra”
do Aleijadinho segundo os critérios considerados adequados pelo IPHAN. Isso
demonstra haver, no IPHAN, uma contínua preocupação em capitanear o conhecimento
a respeito do artista, direcionando as possibilidades de pesquisa biográfica.
Para uma melhor compreensão dessa iniciativa, é interessante a observação de
um artigo publicado por José Marianno Filho, arquiteto, no Jornal do Commercio, em
1940. Como vimos, Lúcio Costa havia sido um dos mais renomados discípulos de José
Marianno quando integrava o movimento da arquitetura neocolonial, tendo rompido
com este em prol da arquitetura moderna. No episódio da reforma da Escola de Belas
Artes, Marianno colocara-se contra as iniciativas de Lúcio Costa. O artigo de Marianno,
intitulado “Uma vítima da imaginação popular”241, refutava justamente uma série de
hipóteses até então estabelecidas sobre a vida do Aleijadinho. É dividido em cinco
partes, a saber: “autoria”, “instrução”, “profissão”, “biografias” e “moléstia”, com
especial foco nesta última, conforme se pode ler a seguir:
Algumas das lendas grosseiras que se formaram, inclusive aquela de
que o artista punha em fuga os visitantes curiosos desferindo golpes de 240 COSTA, Lúcio; BRETAS, Rodrigo José Ferreira. O Aleijadinho . Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1951. (Publicações do IPHAN; nº 15). 241 FILHO, José Marianno. Uma vítima da imaginação popular. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 28 jan. 1940. p.5
110
pedra de sabão, lenda que apesar de infantil foi endossada pelo poeta
Manuel Bandeira, serão sem dificuldades postas a margem pelas
pessoas de bom senso. Entretanto, a lenda mais inverossímil e perigosa,
que é justamente a que atribui ao artista a perda dos dedos das mãos, na
época em que ele realizou a melhor parte de sua obra, continua ainda de
pé, fornecendo abundante material para os literatos que ultimamente se
vêm preocupando com o grande artista mineiro.242
José Marianno apresenta, em seu artigo, uma visão bastante diferenciada da
corrente, pelo que se pode depreender. Sobre a questão da autoria, afirma:
A impossibilidade de saber com precisão, quais as obras que haviam
sido realizadas pessoalmente pelo artista. Até aquele momento, a
primeira impressão do estrangeiro que se procurasse informar sobre os
tesouros artísticos da terra, era de que todos os altares e seus santos toda
a talha das igrejas eram obra do Aleijadinho.243
O autor faz uma rápida análise de duas biografias do artista, a de Rodrigo Bretas
e a de Diogo Vasconcellos, de 1934244. O texto de Bretas é bastante criticado. Sobre
Vasconcellos, a principal queixa de Marianno é a atribuição da profissão de arquiteto ao
Aleijadinho. Marianno não o considera um arquiteto ou, nas suas palavras, “mestre de
risco”. Segundo ele, trata-se de um ornamentista que, na condição de arrematante das
obras, pode ter sugerido soluções originais aos mestres construtores participantes,
incapazes de as propor. Não refuta, portanto, a sua “genialidade”.
Sobre a questão da instrução, Marianno afirma que Bretas aponta influências que
não parecem corresponder à realidade. Questiona, então, se Manuel Francisco teria
242 FILHO, José Marianno. Uma vítima da imaginação popular. p.5 243 Idem, Ibidem, p.5 244 VASCONCELLOS, Diogo Luiz de Almeida Pereira de. A Arte em Ouro Preto. Belo Horizonte: Academia Mineira de Letras, 1934. Como o artigo de Marianno é anterior a republicação da biografia de Bretas pelo IPHAN, provavelmente ele se refere à seguinte versão: BRETAS, Rodrigo. Traços biográficos relativo ao finado Antônio Francisco Lisboa, distinto escultor mineiro, mais conhecido pelo apelido de Aleijadinho. Revista do Arquivo Público Mineiro. Ouro Preto, Ano I, n.1, Imprensa Oficial de Minas Gerais, p.169-174, jan./mar. 1896.
111
praticado a “arte do desenho” e afirma que João Gomes, chamado por Bretas
“desenhista e pintor”, era na verdade um gravador de metais, técnica bem diferente do
único ofício do Aleijadinho, entalhador de madeira. A respeito da afirmação de
Vasconcellos da influência bíblica nas composições do artista, afirma:
Independentemente das informações que lhe foram trazidas pelas
estampas de Bíblias góticas e bizantinas, Antonio Lisboa estava
perfeitamente informado sobre o barroco espanhol, e a Renascença
italiana. Aliás, na composição dos templos de São Francisco de Assis de
Ouro Preto e São João del Rey, e em vários outros percebe-se que o
artista esteve fartamente informado de certas expressões arquitetônicas
até então desconhecidas no Brasil. Seria de fato impossível determinar
de quem recebeu o Aleijadinho tão preciosos informes sobre a arte
européia. Mas o fato é que o pai e o tio figuras medíocres e sem cultura
não lhe podiam ministrar conhecimentos jamais exteriorizados nas
obras que realizaram.245
Em relação à moléstia sofrida por Aleijadinho, Marianno discorre longamente.
Afirma que seus biógrafos “se preocuparam mais particularmente com a moléstia do
artista, do que com sua arte”:
A tradição oral se formou, em parte, através desse depoimento pouco
fidedigno. De acordo que, quando há quinze anos, intrigado com as
invencionices da nora do Aleijadinho eu procurei ouvir os velhos
habitantes de Ouro Preto, deles recolhi versões ainda mais
exageradas.246
O depoimento ao qual se refere foi prestado por Joana Lopes – suposta nora do
Aleijadinho – a Rodrigo Bretas, tornando-se a base de sua biografia. Chama a depoente
de “mitômana, com a tendência incoercível para a criação de cenas fantásticas e irreais”.
Segundo Marianno:
245 FILHO, José Marianno. Uma vítima da imaginação popular. p.5 246 Idem, ibidem. p.5
112
Aliás, justamente na última fase de sua carreira, quando a julgar pelo
depoimento da mitômana Joana Lopes, o artista, tendo perdido os
dedos, trabalhava com os ferros amarrados à arcada palmar das mãos,
aparecem misteriosamente alguns trabalhos superiores em delicadeza de
execução, a tudo o que o artista realizara antes de ser atacado pelo mal
deformante.247
Além das análises de caráter artístico, comenta sobre a observação de um recibo
assinado por Aleijadinho de 1796, quando
Já haviam decorrido dezenove anos do aparecimento das primeiras
lesões dérmicas do mal de Hansen. A caligrafia é firme e
desembaraçada, igual, de resto, aos recibos posteriores. Um homem
privado das extremidades dos dedos, não poderia ter a sensibilidade
necessária para escrever de modo correntio.248
Seu principal ponto no artigo é a descrença de que a lepra pudesse ter afetado as
mãos de Aleijadinho, obrigando-o a esculpir com ferros atados nas mãos, como informa
Bretas. Para Marianno, o Aleijadinho teria sofrido de lepra, mas a doença não se teria
manifestado nessa parte de seu corpo.
No mesmo ano do artigo de Marianno (1940), o IPHAN publicaria o quinto
volume de sua série, chamado Em torno da história do Sabará, de Zoroastro Viana
Passos249. A obra trata do histórico da construção da Igreja do Carmo de Sabará,
abordando a fundação da Ordem do Carmo e do processo construtivo através dos
documentos coligidos e de comentários sobre a participação de Aleijadinho nas obras.
Rodrigo Melo Franco de Andrade prefaciou o livro, afirmando o seguinte:
Efetivamente, embora tenha sido o início da construção da capela de
São Francisco de Assis, em Vila Rica, que assinalou, em 1766, a
247 FILHO, José Marianno. Uma vítima da imaginação popular, p.5 248 Idem, Ibidem, p.5 249 PASSOS, Zoroastro Viana. Em torno da história do Sabará. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1940. (Publicações do IPHAN; nº 5)
113
abertura do ciclo das criações originais da arquitetura religiosa na
Capitania das Minas, cumpre reconhecer que foi na portada do Carmo,
em Sabará, que apareceram, primeiro, os admiráveis ornatos esculpidos
em pedra, cuja feição peculiar haveria de distinguir, definitivamente,
um certo número de igrejas mineiras, daquele período, de todas as
outras edificações da mesma natureza erigidas no Brasil.250
E ainda:
Foi na construção do Carmo de Sabará que os mestres de ofícios do
século XVIII deixaram assinalada, nas Minas, com características mais
expressivas, o momento de transição da fase em que mantinham o
espírito tradicional dos arquitetos portugueses para a quadra
privilegiada em que, libertando-se daquele espírito, puderam realizar as
obras mais genuínas da arquitetura brasileira.251
Rodrigo Melo Franco de Andrade reafirmava, dessa forma, a especificidade do
“barroco” mineiro no território brasileiro e o caráter profundamente renovador e
nacional inerente a essas construções. Comentava, ainda, a necessidade de reunir provas
documentais e dados seguros que permitissem comprovar e descobrir as obras que
contaram com participação do Aleijadinho – iniciativa que, como vimos, foi levada a
cabo nos artigos da Revista. O autor demora-se longamente em refutar as críticas de
José Marianno, chamado de “censor”, endossando a biografia de Rodrigo Bretas e o
relato de um vereador apresentado em seu livro.
No livro, Viana Passos analisa a obra “O Aleijadinho”, de Feu de Carvalho,
publicada em 1934252. Afirma que ela possui algum valor, embora embasada em poucas
fontes. Segundo o autor, Feu de Carvalho faz uma crítica ao fato de que praticamente
toda obra de arte mineira setecentista seja atribuída ao Aleijadinho, restringindo em seu
250 ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Prefácio a Em torno da história do Sabará, p.1 251 Idem, Ibidem, p.1-2 252 CARVALHO, Feu de. O Aleijadinho . Belo Horizonte: Ed. Históricas, 1934.
114
texto as confirmações de autoria ao estritamente documentado. Passos colocava-se,
então, como um ampliador deste inventário, apresentando novas evidências que
permitissem atribuir novas obras ao artista. Aponta a biografia de Rodrigo Bretas como
a melhor referência para reconstituir a vida e a obra do Aleijadinho, e arrola uma série
de fontes para comprovação de autoria. Ao final do livro, apresenta reproduções
fotográficas de parte dos documentos relativos ao artista, fornecendo vista às provas tão
valorizadas no âmbito do IPHAN.
Em 1942, Viana Passos publicou o segundo volume da obra253, não integrante da
série Publicações, editada por iniciativa pessoal do autor e do governador de Minas
Gerais, Benedito Valadares. Este volume aborda outras igrejas de Sabará e traz seções
sobre a Minas colonial e sobre o Aleijadinho.
O autor critica de forma bastante inflamada os relatos de Stefan Zweig sobre o
Aleijadinho, que lhe parecem desqualificantes, reafirmando as virtudes do artista:
Positivamente, digo eu, ‘Aleijadinho’ tem contínuo azar a perseguí-lo.
De pouco tempo a esta parte, uma grande coluna tem tentado demolí-lo,
ora negando-lhe as obras, ora restringindo-as à Igreja de São Francisco
de Assis do Ouro Preto e à do Bom Jesus de Matosinhos, com seus
Passos e Profetas, ora com cumulá-las de senões.254
No “Brasil, país do futuro"255, Zweig tece críticas supostamente negativas a
Minas colonial, especialmente a Vila Rica e a Vila Real (Ouro Preto e Sabará,
respectivamente) e ao Aleijadinho. Passos socorre-se então do historiador Diogo de
Vasconcellos e narra a história das duas cidades.
No capítulo dedicado a Aleijadinho, apresenta provas de sua participação na
autoria de várias obras, reacendendo a polêmica com José Marianno Filho:
253 PASSOS, Zoroastro Viana. Em torno da história do Sabará. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1942. Segundo volume. 254 Idem, Ibidem, p.233 255 Publicado originalmente em 1941.
115
Em história só documento visível ou sérias provas circunstanciais
servem como elemento de convicção.
Senão fica-se como o ilustre Dr. José Marianno que cada vez que toma
a pena é para ter uma nova conceituação da arte de Antonio Francisco,
baseada apenas em palavras brilhantes, mas suas.256
Quando a biografia de Bretas é republicada, em 1951, parece haver dois
interesses principais em jogo: reabilitá-la, através do respaldo do IPHAN, e fornecer
novas provas da participação do Aleijadinho em diversas obras, ampliando seu legado.
Uma explicação preliminar não-assinada, mas atribuída a Rodrigo Melo Franco
de Andrade, no livro Rodrigo e o SPHAN257, afirma que a publicação atende ao “grande
interesse manifestado no Brasil e no estrangeiro pela obra e a personalidade” do
Aleijadinho. Nesta reedição, ressalta-se que:
As pesquisas procedidas pela Diretoria do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional e os estudos de alguns historiadores, publicados nos
últimos anos, forneceram subsídios importantes não só para a
verificação das fontes das informações constantes do texto, mas também
para em alguns poucos casos retificá-las e em outros ampliá-las, à vista
de documentação autêntica da época.258
Como resultado dessa iniciativa de coletar as provas que demonstrassem a
verdade histórica, foi encontrado um “risco original” supostamente feito por
Aleijadinho para a igreja franciscana de São João del Rei. Através dessa prova, Lúcio
Costa busca dissolver a polêmica a respeito da participação do Aleijadinho na
construção da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Assis, de São João del Rei.
256 PASSOS, Zoroastro Viana. Em torno da história do Sabará. p.361 257 Andrade, Rodrigo Melo Franco de. Rodrigo e o SPHAN. 258 Explicação preliminar in COSTA, Lúcio; BRETAS, Rodrigo José Ferreira, O Aleijadinho .
116
Na introdução259, Lúcio Costa discorre sobre a arquitetura praticada pelo artista,
baseando-se no risco original encontrado da capela franciscana de São João del Rei.
Comparando-o ao risco da igreja franciscana de Ouro Preto, projetada quatro meses
depois, busca evidenciar as semelhanças que comprovam serem de mesma autoria,
respondendo às críticas feitas por José Marianno Filho. Segundo Costa, ambas as igrejas
teriam sido influenciadas pela experiência de construção das portadas carmelitas em
Sabará e Ouro Preto, após a visita do “arquiteto” ao Rio de Janeiro, quando a portada da
igreja da Ordem Terceira Carmelitana teria impressionado o artista. Sobre o risco
encontrado, afirma:
Para quem conhece o vulto da obra genial desse artista e a sua vida
atormentada e trágica, e tem presente a figura dele nessa época,
quando ainda sadio, tal como é descrito na página 23 desta biografia,
retrato baseado naturalmente nos informes de sua nora, a tarefa de
analisar esse velho risco se transforma numa experiência
verdadeiramente única, pois sabemos agora, graças às revelações
dessa apaixonante indagação, que, quando Antônio Francisco Lisboa o
desenhava, ainda não havia encontrado a solução que se tornaria
depois definitiva e consagrada.
Está-se, pois, a devassar a obra do artista em pleno processo de
criação e, assim, este risco de portada adquire, pelo calor de vida que
ainda encerra e pelo que testemunha, um sentido novo, imprevisto e
comovente, por isso que ultrapassa os limites inerentes à sua
qualidade de simples desenho.260
Reforça, nesse sentido, o mito romântico da “vida atormentada e trágica” do
gênio criador e ressalta o interesse pela oportunidade de observar a “evolução” da
arquitetura de Aleijadinho, desde a capela de São João del Rei até a matriz de
259 Intitulada “A Arquitetura de Antônio Francisco Lisboa revelada no risco original da capela franciscana de São João del Rei”. 260 COSTA, Lúcio; BRETAS, Rodrigo José Ferreira, O Aleijadinho . p.13-14
117
Tiradentes. A despeito de uma falta de qualidade artística, reitera a validade do risco
pela possibilidade de se observar essa evolução:
Daí a sensação de coisa inacabada que, sem embargo do apuro
excepcional do desenho, esse risco produz: é que, familiarizados com
a solução definitiva, plasticamente resolvida, posteriormente
realizada, sentimos falta, no desenho, daquela perfeita triangulação. E
quando se atenta nos antecedentes desse risco de portada, e na
precipitação dos desenvolvimentos ulteriores a ele, pode-se de fato
concluir que também o seu autor teria motivos para ainda não estar
satisfeito com a solução então apresentada.261
O projeto para a Matriz de Tiradentes é reverenciado então como a derradeira
manifestação do “estilo pessoal” do Aleijadinho, embora só tenha sido construído após
sua morte, com modificações. Segundo Costa:
É em Tiradentes, finalmente, no risco do novo frontispício aposto em
1810 à velha estrutura da bela matriz de Santo Antônio, obra da
primeira metade do século anterior - risco este documentadamente da
autoria de Antônio Francisco Lisboa - que se registra a derradeira
manifestação do apego do artista às proporções elegantes e a
determinados pormenores do projeto aprovado em São João del Rei, a
8 de julho de 1774, pelos irmãos terceiros de São Francisco. Apesar da
execução, de qualidade inferior, dessa obra posterior à sua morte, a
igreja ainda conserva na silhueta e no conjunto a marca inconfundível
do estilo pessoal do Aleijadinho [...] Aliás, no interior dessa matriz
riquíssima, também deve ser atribuído ao artista e seus oficiais o risco
e a execução da magnífica balaustrada do corpo da igreja - cujo
desenho foi repetido no adro - embora não se conheça qualquer
documento comprobatório.262
É importante observar como Lúcio Costa busca a comprovação, por meio de
análises documentais, da autoria do Aleijadinho em outros projetos sobre os quais
261 COSTA, Lúcio; BRETAS, Rodrigo José Ferreira. O Aleijadinho . p.11 262 Idem, ibidem, p.21
118
apenas se especulava a sua participação. Assim, na qualidade de especialista e
autoridade no assunto, é permitido ao autor especular sobre uma autoria do artista-
arquiteto jamais comprovada: a do interior da matriz de Tiradentes.
Lúcio Costa propõe, assim, uma concepção de “barroco” que realça o caráter
único do Aleijadinho, a partir da sua criação artística:
Esse recurso, próprio da concepção dinâmica e barroca, também
empregado no magistral retábulo franciscano de Ouro Preto, e só
utilizado por Antônio Francisco Lisboa, poderia resultar
contraproducente, se aplicado fora de propósito ou executado sem a
requerida perícia, dando então a sensação oposta, de esmagamento e
depressão; entretanto, realizado com a paixão e mestria de Antônio
Francisco, transmite à obra acabada, ainda mesmo quando se trate de
lavor de extremo requinte e delicadeza, como no caso dessa portada de
Vila Rica, uma tal energia e vibração, que a tornam verdadeiramente
inconfundível.263
Destaca-se, nessa passagem, a transformação do “barroco” operada pelo
Aleijadinho, não mais como “exagero” ou “peso”, mas “requinte e delicadeza”.
Transformação essa que especifica um determinado “barroco”, brasileiro e mineiro.
Vale ainda destacar que Lúcio Costa, ao conceber o Aleijadinho como artista “de
gênio”, utilizando-se de critérios tais como “renovação” e até mesmo “vanguarda”,
propõe também a necessidade de superação da própria “novidade” por ele instaurada.
Na passagem a seguir, Costa comenta as alterações que afirma terem sido feitas na
igreja do Carmo de Sabará pelo executante da obra, a despeito da qualidade artística do
projeto do Aleijadinho:
Ora, ainda quando, em determinados casos, tais alterações fossem
necessárias ou vantajosas, eram sempre indevidas; não que o projeto
fosse isento de falhas, e Antonio Francisco Lisboa, se lhe houvesse
acompanhado de perto a execução, teria certamente modificado 263 COSTA, Lúcio; BRETAS, Rodrigo José Ferreira. O Aleijadinho . p.13
119
muita coisa, pois era artista demais para ater-se, durante anos, ao
que projetara, mas porque, na qualidade de executante da concepção
de outrem, de fato não lhe cabia a iniciativa.264
A biografia escrita por Bretas mostra um mesmo gênio inspirado, vencedor das
adversidades de sua enfermidade. O texto é composto no formato “vida e obra”,
apresentando descrições detalhadas do artista, de sua personalidade e de suas criações
artísticas. Sobre sua formação, afirma que:
O conhecimento que tinha de desenho, de arquitetura e escultura, fora
obtido na escola prática de seu pai e talvez na do desenhista pintor
João Gomes Batista, que na corte do Rio de Janeira recebera as lições
do acreditado artista Vieira e era empregado como abridor de cunhos
na casa da fundição de ouro desta capital.
Depois de muitos anos de trabalho, tanto nesta cidade, como fora dela,
sob as vistas e risco de seu pai, que então era tido na província como
primeiro arquiteto, encetou Antônio Francisco a sua carreira de mestre
da arquitetura e escultura, e nesta qualidade excedeu a todos os artistas
deste gênero, que existiram em seu tempo.265
Assim, desde o início da obra, imputa a Aleijadinho a excepcionalidade dentre
seus contemporâneos. Sua genialidade, no entanto, faz par com a sua enfermidade que
teria se iniciado no ano de 1777266. Dessa forma, é inaugurada a construção do
Aleijadinho como um herói trágico-romântico, gênio e monstro, como aparece
representado na seguinte passagem:
As pálpebras inflamaram-se, e permanecendo neste estado, ofereciam
à vista sua parte interior; perdeu quase todos os dentes, e a boca
entortou-se, como sucede freqüentemente ao estuporado; o queixo e o
lábio inferior abateram-se um pouco; assim, o olhar do infeliz adquiriu
certa expressão sinistra e de ferocidade, que chegava mesmo a
264 COSTA, Lúcio; BRETAS, Rodrigo José Ferreira. O Aleijadinho . p.19 Grifos nossos. 265 Idem, ibidem, p.23 266 Assim como afirma Diogo de Vasconcellos, provavelmente baseado no texto de Bretas.
120
assustar a quem quer que o encarasse inopinadamente. Esta
circunstância, e a tortura da boca, o tornavam de um aspecto
medonho.267
A despeito de seu aspecto, Bretas ressalta um lado amável do artista, que se
misturava à sua aparência medonha:
A consciência que tinha Antônio Francisco da desagradável impressão
que causava sua fisionomia o tornava intolerante, e mesmo iroso para
com os que lhe parecia observarem-no de propósito; entretanto, era ele
alegre e jovial entre as pessoas de sua intimidade.
Sua prevenção contra todos era tal que, ainda com as maneiras
agradáveis de tratá-lo e com os próprios louvores tributados à sua
perícia de artista, ele se molestava, julgando irônicas e expressivas de
mofa e escárnio todas as palavras que neste sentido lhe eram dirigidas.
Nestas circunstâncias costumava trabalhar às ocultas debaixo de uma
tolda, ainda mesmo que houvesse de fazê-lo dentro dos templos.268
A isto se soma a imagem do artista que vivia pela sua arte, sem colher os louros
de sua excelência e que tinha, em seu escravo Maurício269, um companheiro fiel:
O – Aleijadinho – não ajuntou fortuna alguma pelo exercício de sua
arte; além de que partilhava igualmente o que ganhava com o escravo
Maurício, era descuidado na guarda de seu dinheiro, que de contínuo
roubavam-lhe, e muito despendida em esmolas aos pobres.270
O texto prossegue então pela análise das obras do templo de São Francisco de
Assis de Ouro Preto:
Reconhece-se que ele mereceu a nomeada de que gozou, atendendo-se
principalmente ao estado das artes no seu tempo, à falta que sentiu de
mestres científicos e dos princípios indispensáveis a quem aspira a
267 COSTA, Lúcio; BRETAS, Rodrigo José Ferreira, O Aleijadinho . p.24 268 Idem, ibidem, p.25 269 Ao longo do texto, Rodrigo Bretas nos informa que Aleijadinho teve três escravos, sendo que Maurício foi quem o acompanhou por grande parte de sua vida 270 COSTA, Lúcio; BRETAS, Rodrigo José Ferreira, Op. Cit.. p.33
121
máxima perfeição nos referidos gêneros [escultura e talha], e
sobretudo quanto às desvantagens contra as quais ultimamente lutava
em conseqüência da perda de membros necessários à execução de seus
trabalhos.271
Se antes Bretas havia situado Aleijadinho em uma determinada linhagem,
referindo-se a seu pai e João Gomes Batista, agora a afirmava insuficiente, pois havia
sentido falta de “mestres científicos”. Ademais, o “estado das artes no seu tempo”
tampouco lhe oferecia alento; sua genialidade havia se construído por si só, novidade
artística excepcional que fora. Acrescente-se a isso, mais uma vez, a mutilação, que
tornava o trabalho ainda mais espetacular.
Para Bretas, no entanto, se a genialidade era incontestável, as condições que o
cercavam teriam seu preço:
Apenas atenta-se para estes trabalhos, depara-se logo com o gênio
incontestável do artista, mas não se deixa de reconhecer também que
ele foi melhor inspirado do que ensinado e advertido; porquanto o seu
desenho ressente-se às vezes de alguma imperfeição.272
E ainda:
Nas esculturas do Aleijadinho observa-se sempre mais ou menos bem
sucedida a intenção de um verdadeiro artista, cuja tendência é para a
expressão de um sentimento ou de uma idéia, alvo comum de todas as
artes. Faltou-lhe, como já se disse, o preceito da arte, mas sobrou-lhe a
inspiração do gênio e do espírito religioso.273
Bretas reproduz, como já foi dito, um discurso proferido em 1790 pelo vereador
de Mariana, Joaquim José da Silva (Memória que se lê no respectivo livro de registro
271 COSTA, Lúcio; BRETAS, Rodrigo José Ferreira, O Aleijadinho . p.26 272 Idem, ibidem, p.27 273 Idem, ibidem, p.29
122
de fatos notáveis estabelecido pela ordem régia de 20 de Julho de 1782) no qual consta
o que seria a primeira referência ao Aleijadinho, em que se pode ler o seguinte:
Com efeito, Antônio Francisco, o novo Praxíteles, é quem honra
igualmente a arquitetura e escultura. [...]
Superior a tudo e singular nas esculturas de pedra em todo o vulto ou
meio relevado e no debuxo e ornatos irregulares do melhor gosto
francês é o sobredito Antônio Francisco. Em qualquer peça que serve
de realce aos edifícios mais elegantes, admira-se a invenção, o
equilíbrio natural, ou composto, a justeza das dimensões, a energia
dos usos e costumes e a escolha e disposição dos acessórios com os
grupos verossímeis que inspira a bela natureza.
Tanta preciosidade se acha depositada em um corpo enfermo que
precisa ser conduzido a qualquer parte e atarem-se-lhe os ferros para
poder obrar.274
Rodrigo Bretas serve-se, nesse sentido, de um registro histórico contemporâneo
à vida do artista para corroborar suas hipóteses, a saber, a da maestria de seus ofícios, a
da genialidade singular e a da mutilação decorrente da doença que o acometeu.
Os anos finais da vida de Aleijadinho são descritos de maneira trágica. Na
seguinte passagem, Bretas – que dá informações também sobre a nora do artista, de
quem colheu depoimento – discorre sobre esse período:
Vive ainda a nora do Aleijadinho, e bem que em mau estado existe
também a casa em que este faleceu; num dois pequenos departamentos
interiores dela vê-se o lugar em que, deitado sobre um estrado (três
tábuas sobre dois toros ou cepos de pau pouco ressaltados do
pavimento térreo), jazeu por quase dois anos, tendo um dos lados
horrivelmente chagado, aquele que por suas obras de artista distinto
havia honrado a sua Pátria!275
274 COSTA, Lúcio; BRETAS, Rodrigo José Ferreira, O Aleijadinho . p.32. Grifos do autor. 275 Idem, ibidem. p.35
123
Em uma frase lapidar, formulação trágico-romântica por excelência, Bretas
resume a vida de Antônio Francisco Lisboa: “tanta miséria ousando aliar-se a tanta
poesia!”276.
Seguem-se, então, as notas explicativas escritas por Rodrigo Melo Franco de
Andrade e Judith Martins, complementando o texto de Bretas e corrigindo erros. Nestas,
constam breves informações biográficas, onde se lê que Rodrigo Bretas (1814-1866) foi
sócio correspondente do IHGB, deputado da Assembléia Provincial de Minas, secretário
do Governo e Diretor Geral da Instrução na província de Minas. As notas apresentam
também fontes primárias e fornecem extensas explicações sobre os fatos relatados no
texto, além de fotografias e uma relação das obras do Aleijadinho com autoria
comprovada.
É interessante observar algumas dessas notas que buscam “corrigir” julgamentos
de Bretas, como por exemplo, a que trata da questão da “falta de mestres científicos”,
com o intuito de reabilitar a linhagem estabelecida pelo autor e até mesmo ampliá-la:
Nem o estado das artes plásticas, no tempo de Antônio Francisco
Lisboa, era primário, como o insinua o A., nem faltaram ao
Aleijadinho mestres idôneos, tais como Manuel Francisco Lisboa,
arquiteto prestigioso, mestre das obras reais, e João Gomes Batista,
abridor de cunhos, desenhista requintado e introdutor no país do novo
estilo ou ‘gosto francês’. A formação artística de Antônio Francisco
Lisboa não se teria operado, aliás, apenas sob a orientação desses dois
mestres mencionados expressamente pelo cronista seu contemporâneo
e, sim, também provavelmente, sob a influência de Francisco Xavier
de Brito e José Coelho de Noronha, que se distinguiam então nas
obras de escultura e de talha nas igrejas mineiras e com os quais terá
feito o aprendizado de seu ofício de escultor e entalhador. 277
276 COSTA, Lúcio; BRETAS, Rodrigo José Ferreira, O Aleijadinho . p.35 277 Idem, ibidem. p.40
124
Ou ainda, as notas tratam da questão imperfeição, dos critérios de apreciação do
momento em que Bretas escreveu sua biografia, e privilegiam-se os critérios
“científicos” que vigoram à época do IPHAN:
A imperfeição aludida corresponde à opinião pessoal do A., que revela
certos vícios de apreciação próprios da época. As obras referidas no
texto são consideradas, hoje em dia, pelos críticos idôneos,
artisticamente impecáveis.278
Uma belíssima análise do texto de Bretas foi levada a cabo por Guiomar
Grammont em “Aleijadinho e o aeroplano”279, obra na qual discute a constituição do
mito romântico de Aleijadinho como herói colonial, através das sucessivas
reapropriações dessa biografia, escrita em 1858 e tomada como um texto fundador desse
processo.
Assim, a autora nos informa sobre o estatuto do texto de Bretas:
Como retrato encomiástico, a finalidade do texto é a individuação do
personagem “Aleijadinho” por meio de elementos de caracterização
que o tipificam ao exagerar certos traços, segundo um procedimento
epidítico comum a obras semelhantes do tempo.280
Este procedimento consiste numa adequação entre caráter e ações do
personagem, descrevendo-lhe características físicas e psicológicas, conforme vimos em
citações aqui privilegiadas. O resultado obtido, segundo Grammont, baseia-se na
premissa de que:
O retrato reaplica o lugar-comum romântico, o do belo-horrível,
comum na ficção e poesia do tempo, que fazem a beleza surgir da
feiúra, e vice-versa. No caso, as belas obras são os filhos maravilhosos
278 COSTA, Lúcio; BRETAS, Rodrigo José Ferreira, O Aleijadinho . p.41 279 GRAMMONT, Guiomar de. Aleijadinho e o aeroplano: o paraíso barroco e a construção do herói colonial. 280 Idem, ibidem, p.67
125
que se originam do pai feio, como flores nascidas da matéria em
decomposição.281
A autora comenta também como a narrativa de Bretas utiliza tópicas epidíticas,
apropriando-se de narrativas pregressas e distantes como as biografias de Michelangelo
e Rafael, para constituir histórias acerca do Aleijadinho.
Sua análise recai ainda sobre outras tópicas presentes no texto de Bretas,
românticas por excelência, como o auto-didatismo do artista, seu isolamento da
sociedade, e questões polêmicas como o fato de nunca ter sido encontrado o livro no
qual estaria o pronunciamento do vereador de Mariana; ou até mesmo a aparente
impossibilidade de se provar, empiricamente, a existência do Aleijadinho:
O mito alcançou tais proporções que originou o desconcertante
questionamento sobre o texto de Bretas. Esse questionamento, que
teria sido iniciado por José Marianno Filho e Feu de Carvalho e,
posteriormente, consolidado por Dalton Sala, instaurou o estimulante
“mistério Aleijadinho”: o artista teria existido ou não passa de uma
invenção romanesca de Bretas? Desenvolveu-se uma polêmica – que
atravessou a história da arte brasileira no século XX – entre o discurso
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, corroborado por um
número significativo de pesquisadores, e esses estudiosos isolados que
questionavam a versão oficial amparando-se, no entanto, sobre um
eixo comum: a existência empírica do Aleijadinho. Essa polêmica não
deixou de ser importante, uma vez que impulsionou uma verdadeira
corrida aos arquivos por parte de historiadores sequiosos de encontrar
novas evidências que pudessem acrescentar-se ou sobrepor-se àquelas
que já existiam.282
No entanto, conforme Grammont nos adverte, o trabalho de questionamento
acerca da idoneidade do texto de Bretas acabou apenas por reforçar o mito:
281 GRAMMONT, Guiomar de. Aleijadinho e o aeroplano. p.69 282 Idem, ibidem. p.90-91
126
Embora diferentes, entre si, tanto no estilo, quanto no nível de
tratamento exaustivo do tema, esses autores criaram um discurso a
contrapelo, que desempenha uma função reguladora dos excessos
meramente apologéticos ou pretensamente rigorosos e sérios, mas
reafirmadores do mito. Aparentemente contestadores, os textos de
autores que questionam Bretas funcionaram e funcionam, ainda, como
uma espécie de contraponto que apenas confere mais consistência ao
personagem. De um lado, despiram a biografia de seus aspectos
menos verificáveis, mais fantasiosos porque dirigidos a uma escuta
que se encontrava no século XIX e cujos efeitos não possuem mais,
hoje, a mesma eficácia, nem se coadunam com os padrões por vezes
engessados do discurso acadêmico e científico da atualidade. De outro
lado, ao colocarem em descrédito esse texto fundacional, esses autores
dessacralizaram um pouco o tema, perfazendo a metade do caminho
para sua cientifização: apontaram filigranas, pontos de
inverossimilhança na biografia de Bretas, provocando um esforço
monumental de busca de “provas” e preenchimento das lacunas do
texto fundante, esforço que só serviu para reforçá-lo. Em suma, no
imenso conjunto de discursos afluentes sobre o tema, esse discurso
aparentemente contestatório funcionou como um rio vindo de uma
direção contrária, cujas águas serviram apenas para engrossar o leito e
emprestar força caudalosa ao curso principal.283
O IPHAN, dessa forma, canonizava o Aleijadinho a partir de uma determinada
biografia apologética, fazendo-lhe as devidas complementações e correções, ao mesmo
tempo em que permanecia no seu esforço progressivo de revelar, documentalmente, o
seu legado.
É nesse sentido que o IPHAN republica a biografia de 1858, elegendo-a como
versão oficial da vida do Aleijadinho, ainda que com pequenos ajustes. O texto, tornado
canônico, modelaria então novos discursos: por vezes como contraponto, por outras em
decorrência das idéias apresentadas, procedimento este muito mais comumente adotado.
Com a palavra, Lúcio Costa:
283 GRAMMONT, Guiomar de. Aleijadinho e o aeroplano, p.97
127
Neste particular, foi decisiva a atuação do Rodrigo no sentido de livrar
a imagem de Antônio Francisco Lisboa da emaranhada trama de
inverdades e fantasias tecida em torno de sua obra de arquiteto e de
escultor, que, a partir daí, passou a ser estudada com base na precisão
histórica e na competência crítica, senda esta, sem dúvida, das mais
importantes e apaixonantes tarefas levadas a cabo pelo Patrimônio, – a
de repor, definitivamente, o Aleijadinho na verdadeira dimensão da
portentosa e imortal grandeza do seu gênio.284
284 COSTA, Lúcio. Prefácio a Rodrigo e seus tempos. p.7
128
Conclusão
Conforme vimos, o conceito de “barroco” pouco esteve presente no vocabulário
de uma história da arte brasileira, ao longo do século XIX. Inicialmente não era
aplicável à arte colonial, que se desconhecia. Ou então era classificado de forma
negativa, sendo eventualmente reconhecido com reservas. No início do século XX foi
operada uma inversão de significado, quando passa a ser valorizado, considerado como
um constituinte da nação brasileira. Assim, o trabalho de Diogo de Vasconcellos exalta
as obras de arte coloniais de Ouro Preto, embora ainda não veicule claramente
formulado o conceito de “barroco” para classificá-las. Foi o Neocolonial, capitaneado
por Ricardo Severo e José Marianno Filho, que procedeu a uma sistemática valorização
do passado colonial, aplicando os pressupostos ali encontrados na construção de casas e
edifícios que se enquadrassem numa arquitetura tradicional e nacional e propondo um
uso coetâneo desse passado. Criticavam, ainda, o Ecletismo e a importação
desnacionalizada de modelos europeus, aplicados indiscriminadamente.
Do seio desse grupo emerge Lúcio Costa, um de seus mais considerados
expoentes, que a partir do contato com a arquitetura moderna de Le Corbusier e com a
observação in loco da arquitetura colonial mineira, formula um novo projeto para uma
arquitetura contemporânea. Dessa forma, torna-se um crítico do Neocolonial, incluindo-
o na mesma seara que o Ecletismo, e professa sua fé pela arquitetura moderna. O marco
dessa nova arquitetura é o prédio do Ministério de Educação e Saúde, construído no
embate entre um projeto neocolonial e modernista. Sintomático é o fato de que o
imbróglio se dá ao mesmo tempo em que a criação do IPHAN é levada a cabo; e a
instituição, quando criada, funcionará no novo prédio modernista.
129
Através de sua série editorial, o IPHAN construiu uma história da arte brasileira
que se enquadrava no inventário patrimonial, ao mesmo tempo em que o delimitava. Foi
uma estratégia bem-sucedida, na medida em que tornou a produção do órgão
incontornável aos estudiosos do assunto. As palavras de Rodrigo Melo Franco de
Andrade, no prefácio a “Em torno da história do Sabará”, não se aplicam tão somente à
série Publicações, podendo ser empregadas também para a Revista: dizem respeito à
necessidade de se constituir uma sólida documentação sobre a arte brasileira, que a
abarcasse em sua totalidade, paulatinamente preenchendo suas lacunas. O IPHAN
esforçou-se, nesse sentido, em fazer conhecer os artistas e os artífices impulsionadores
desse processo, assim como as obras de arte que nos chegam como bens patrimoniais, e
em divulgar, através de provas bem documentadas, os indícios desse passado. Nas
páginas da Revista foi construído o inventário da arte brasileira; na série Publicações,
seus exemplos foram estudados em maior profundidade.
Conforme o exposto, para os artífices do IPHAN, a arte genuinamente brasileira
tem seu início ainda na Colônia, na adaptação da herança européia ao meio brasileiro.
Este momento pôde ser fortemente marcado em Minas Gerais, onde um impulso
“renovador” e “autêntico” marcou o início do “ciclo das criações originais”. Ao
Aleijadinho foi conferido maior destaque, como estopim deste surto criativo. Na Revista
são numerosos os artigos que abordam o artista, geralmente esclarecendo dúvidas a seu
respeito ou apontando novas descobertas em participações de obras. Nas Publicações, a
obra de maior vulto, nesse sentido, foi “O Aleijadinho”, na qual o IPHAN apontava
claramente a direção biográfica a seguir, chancelando o texto de Rodrigo Bretas e
voltando-se contra as acusações de José Marianno Filho.
130
Majoritariamente, a produção editorial versou sobre a arquitetura religiosa e
colonial, o que pode também ser observado nos processos de tombamento, conforme
afirma Maria Cecília Londres:
Foi, portanto, relativamente aos bens imóveis dos séculos XVI, XVII e
XVIII, primordialmente de arquitetura religiosa, que a instituição
desenvolveu a maior parte de suas pesquisas, o que permitiu, ao longo
do tempo, que se formulassem critérios considerados seguros para as
decisões sobre tombamento e sobre os trabalhos de restauração. 285
O privilégio dado a Minas Gerais é um bom exemplo disso. Mas a arquitetura
civil colonial também foi estudada com cuidado, especialmente por Lúcio Costa, que no
casario identificou a “boa tradição” construtiva que o modernismo retomava e
atualizava na contemporaneidade. O livro “Mocambos do Nordeste”, de Gilberto Freyre
– o grande estudioso da “casa brasileira” –, foi reconhecido por Rodrigo como destinado
a preencher o espaço destinado às obras de arquitetura popular, assunto que ele
considerava ter sido tratado com descaso até 1937. É no âmbito dessa discussão sobre a
importância do casario que os conjuntos arquitetônicos serão selecionados para
tombamento.
As formulações acerca de “barroco” indicavam um ponto de contato com o
mundo europeu, embora afirmassem a especificidade obtida no meio brasileiro. Neste
processo, foi dado um grande destaque ao caso de Minas Gerais, região possuidora de
“bens culturais em número maior e com feição mais expressiva”286 – nas palavras de
Rodrigo Melo Franco de Andrade – da arte brasileira.
De maneira geral, pode-se dizer que o IPHAN opera uma separação entre a
arquitetura popular (o casario) e a arquitetura religiosa e civil (as construções oficiais,
285 FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil. p.110 286 ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Palestra proferida por Rodrigo M. F. de Andrade, em Ouro Preto, a 1-7-68. Revista do IPHAN, n.17, 1969. p.11
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como palácios e casas de câmara e cadeia). No primeiro grupo, o processo de adaptação
ao meio propiciou uma diferenciação da matriz portuguesa, gerando especificidades
regionais, sem, no entanto, renegá-la por completo. É o processo de construção
português, o uso de “pedra e cal”, que gera a solidificação dessas construções e sua
conseqüente permanência ao longo do tempo. No caso da arquitetura religiosa e civil, a
matriz portuguesa possui uma presença mais forte, enfatizada nas relações entre a
colônia e a metrópole, sem grandes especificidades locais.
No século XVIII, no entanto, e principalmente em Minas Gerais, haveria uma
mudança fundamental nesse caráter, com a entrada em cena de determinados artistas e
artífices, os mais importantes sendo, evidentemente, o Aleijadinho e Manuel da Costa
Ataíde. A partir da criatividade destes “brasileiros” e da incorporação de outras matrizes
– como a italiana – teria sido criada uma arte brasileira por excelência, com marcas de
diferenciação muito bem enunciadas. Se o “barroco” indica o ponto de contato com
Portugal e o mundo europeu, o “barroco mineiro” seria, no entanto, o ponto de
distinção. Haveria, assim, uma arte genuinamente brasileira que, embora original, podia
ser enquadrada na história da arte universal.
Vimos também como os funcionários e artífices do IPHAN estavam
identificados ao modernismo arquitetônico. Conseqüentemente, as apropriações de
“barroco”, especialmente as de Lúcio Costa, podem ser qualificadas de “modernistas”.
A “boa tradição” identificada no “barroco” só pôde ser recuperada pela arquitetura
modernista. Rodrigo Melo ao referir-se a Lúcio Costa no prefácio de Mucambos de
Nordeste, destaca-o como “aquele herdeiro legítimo da melhor tradição da arquitetura
brasileira e seu insigne renovador”. Costa é assim um “herdeiro legítimo”, pois, na
disputa entre o neocolonial e o modernismo, a vitória coube ao segundo. Se ambos
disputavam o monopólio do uso legítimo do passado na construção do futuro, a vitória
132
modernista encontra-se imbricada na história do IPHAN e no papel que a instituição
desempenhou junto à sociedade. Como Instituto do Patrimônio, como autoridade maior
na determinação de um passado a se preservar, foi o uso prescrito pelos modernistas que
se tornou objeto de proteção legal.
Dessa forma, os discursos construídos no âmbito do IPHAN não podiam
vislumbrar o caráter encomiástico da biografia do Aleijadinho de Rodrigo Bretas,
reeditada pelo IPHAN. Incorreu-se, assim, em proposições anacrônicas porém
triunfantes, do ponto de vista do sucesso da empreitada de construir o mito do
Aleijadinho.
Foi a partir de um ponto de vista do presente, das possibilidades hoje dadas para
se pensar os usos de representações, de modelos culturais e as convenções vigentes nos
séculos XVII e XVIII (momento da produção e da recepção de obras arquitetônicas e
artísticas), que foi possível historicizar as práticas e concepções triunfantes no IPHAN,
entre 1937 e 1978, particularmente nas suas publicações.
A apropriação de “barroco” feita pelo IPHAN foi, assim, circunscrita ao seu
tempo e moldada por ambições como a constituição e salvaguarda de um patrimônio
nacional e, no mesmo movimento, pelo estabelecimento do modernismo arquitetônico
como critério limite. Não se trata, portanto, de invalidar esta prática de apropriação
observada na produção editorial ou apresentar uma alternativa “melhor”, mas apenas
circunscrevê-la em determinados pressupostos.
O resultado esperado, neste trabalho descritivo, foi a compreensão de que o
patrimônio, que nos é dado como algo natural e intrínseco à nacionalidade brasileira, é
antes fruto de um projeto construído sob pressupostos historicizáveis.
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