Comédias Podem Ser Altamente Formais Ou Sobre a Seleção de Textos

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Tomando como ponto de partida dois estudos sobre o uso do pronome você no Português da Bahia no século XIX, a autora mostra o quanto é difícil classificar estilos de fala em textos escritos em tempos préteritos, e aponta algumas estratégias para a sua identificação.

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    Sitientibus, Feira de Santana, n.29, p.41-49, jul./dez. 2003

    COMDIAS PODEM SER ALTAMENTE FORMAISOU SOBRE A SELEO DE TEXTOS*COMEDIES MAY BE HIGHLY FORMAL OR BASED UPON SELECTIONOF TEXTS

    Eliana Pitombo TeixeiraProf. Assistente (DLET/UEFS)

    [email protected]

    RESUMO Tomando como ponto de partida dois estudos sobre o usodo pronome voc no Portugus da Bahia no sculo XIX, a autora mostrao quanto difcil classificar estilos de fala em textos escritos em tempospretritos, e aponta algumas estratgias para a sua identificao.

    PALAVRAS-CHAVE: Estilo de fala; Formas de tratamento; Pesquisa histrica.

    ABSTRACT The goal of this study is to discuss the question of howto select texts in historical linguistic research. By comparing the use ofthe pronoun voc in two different types of texts, the article intends toshow how hard it is to classify speech styles in written texts, pointing outsome ways of identifying them.

    KEY WORDS: Speech style; Pronouns of address; Historical research.

    1 INTRODUO

    O objetivo desse estudo discutir a questo da seleode textos na pesquisa em lingstica histrica, tarefa que, nasminhas buscas em arquivos e bibliotecas, muito me tem inquietado.Tomo como ilustrao desse problema dois estudos sobre asformas de tratamento na Bahia, na segunda metade do sculoXIX.

    Pequenas crnicas em forma de dilogo, publicadas nojornal A Verdadeira Marmota, entre 1851 e 1852, constituem

    * Comunicao apresentada no II Congresso Internacionalda Abralin. Fortaleza, 13 a 16 de maro de 2001.

    Universidade Estadual de Feira de Santana Dep. de Letrase Artes. Tel./Fax (75) 224-8265 - BR 116 KM 03, Campus - Feirade Santana/BA CEP 44031-460.

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    os dados do primeiro estudo. Nesses textos, o pronome voc usado categoricamente como forma de tratamento ntimo.

    No segundo, cuja fonte de dados uma comdia gneroconsensualmente considerado pouco formal observei umapreferncia pelo pronome tu e um uso muito limitado da formavoc.

    A precedncia temporal dos textos do primeiro estudoinvalida a interpretao de um aumento gradual da formainovadora (voc), reflexo de uma mudana em curso.

    Essas constataes e as aparentes contradies que elassugerem me levaram a propor uma discusso sobre a definiode estilo e das estratgias para identific-los e isolar seusdiversos nveis em textos escritos em tempos pretritos.

    2 A QUESTO DO ESTILO

    Estilo de fala e classe social j eram levados em conta nasdescries lingsticas antes mesmo do advento da Teoria daVariao e Mudana. Nascentes (1953) apontava a tendncia vocalizao da consoante / l / em posio ps-voclica emfalantes cariocas da classe semi-culta. J Cmara Jr. (1977)observava essa mesma tendncia na variedade coloquial relaxadado Rio de Janeiro.

    No entanto, a relao entre estilo de fala e mudanalingstica s foi reconhecida a partir do famoso texto deWeinreich, Labov e Herzog (1968). Nos estudos desenvolvidospor Labov (1972), o autor observa que as formas lingsticasem processo de mudana ocorrem inicialmente no estilo a queele chama de casual. Quando a forma atinge os contextos maisformais, culminando com sua ocorrncia na lngua escrita,significa que a mudana j foi completada.

    Labov define estilo como a freqncia relativa de traosou marcas estilsticas. Romaine (1982) observa que apesar desimplista e mecanicista esta definio levou descoberta deuma ntima relao entre a dimenso social das variantes e suadimenso estilstica:

    alguns traos mostram movimento em um contnuoque vai do casual ao formal do mesmo modo quenum contnuo social, da classe operria para a alta.(ROMAINE, 1982, p. 115).

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    Para Labov (1972), o maior ou menor grau de atenodispensado fala produz padres estilsticos mais ou menosformais. Desse modo, a questo da identificao do estilocomea com a distino dos contextos ou situaes em que acomunicao se estabelece. Mesmo na situao de entrevistaface face, que normalmente conduz a um estilo mais cuidado,Labov distingue momentos de quebra estilstica em direo aoestilo casual correlacionados a fatores tais como tpico daconversa, trocas lingsticas com uma terceira pessoa, final daentrevista quando o entrevistador demostra ter encerrado oseu trabalho, mas continua conversando, alm de rimas e jogosinfantis. Nesses contextos, busca-se evidncias de que o falanteest usando o estilo casual nas suas modulaes vocais:velocidade da fala, risos, ritmo da respirao, entre outrasdeixas.

    Esses critrios de identificao de estilo, quer funcionemou no, foram naturalmente concebidos para o trabalho comdados de fala, e numa perspectiva sincrnica.

    A questo que se coloca : como identificar o estilo napesquisa histrica cuja fonte de dados so os registros escritos?

    Romaine (1982) prope e testa uma metodologia para lidarcom os fatores extralingsticos na pesquisa histrica a partirde um estudo sobre marcadores da relativa no escocs mdio.A autora levanta a hiptese de que o marcador zero define oestilo informal.

    Em linhas gerais, sua proposta a seguinte:a) reconstruo de um contnuo estilstico a partir da

    escolha de textos de gneros os mais variados;b) diviso dos textos de acordo com critrios extralingsticos

    tais como tpico ou assunto, classe social do interlocutor,funo da comunicao;

    c) ordenao dessas subsees em um contnuo estilsticobaseado na freqncia de uso de marcadores da relativa;

    d) nova ordenao dessas subsees com base em critrioslingsticos, como, por exemplo, a complexidade sinttica decertas relativas;

    e) observao dos achados a fim de verificar se corroborama hiptese sobre a relao entre uso de marcadores da relativae nvel estilstico.

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    3 FORMAS DE TRATAMENTO E ESTILO

    Considerando que as formas de tratamento constituem ouparecem constituir por si s ndices estilsticos, considerar umaou outra forma como marcadora de um estilo mais ou menosformal poderia parecer um procedimento circular, na medidaem que o que estamos buscando determinar so, exatamente,os valores dessas formas para identificar os estilos, valoressuscetveis de mudanas ao longo do tempo ao sabor dasvariveis sociais e ideolgicas. Mais do que qualquer outrotrao lingstico, os pronomes, por causa do significado socialda referncia pessoal, refletem mais transparentemente essasmudanas. Por exemplo, no Brasil, durante os perodos colonial,imperial e republicano, o pronome voc foi uma forma decortesia, um pronome depreciativo, uma forma de tratamentontimo e at mesmo, mais recentemente, uma forma de indeterminaodo sujeito. Com isso no estou afirmando que a cada perodohistrico corresponda um significado diferente. Ao contrrio,observa-se, durante extensos perodos de tempo, a co-ocorrnciade formas diferentes com o mesmo significado ou de umamesma forma com significados distintos. Este fenmeno, obviamente,no se restringe questo das formas de tratamento. sim,um fenmeno tpico da natureza prpria da mudana lingstica a gradualidade da difuso da nova variante na comunidade1 mas que transparece mais exacerbadamente no uso dospronomes pessoais por serem estes definidores de hierarquiassociais mais finas. As sentenas abaixo, retiradas de um textode 18462 , ilustram a questo:

    1. Voc?!... quem o senhor para tratar-me por voc? eu sou to livre como o senhor!

    2. Mariquinha disse uma delas voc conhece aquelemoo?

    3. Poderei convir em parte no que dizes, Mariquinha [...].A sentena 1 exemplifica uma relao assimtrica em que

    um interlocutor de uma classe superior dirige-se a outro declasse inferior. Note-se a veemncia com que esse ltimoreclama da forma como tratado. As sentenas 2 e 3 soemitidas por uma mesma pessoa (a jovem Rita) dirigindo-se

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    a sua amiga Mariquinha, o que demostra ser o pronome voc,tal como tu, uma forma de tratamento ntimo nas relaesintraclasse.

    Faraco (1996) que nos d a pista sobre a introduo dopronome voc no Brasil. O autor sugere que os colonos quevieram para o Brasil a partir da segunda metade do sculo XVIteriam difundido Vossa Merc e suas variantes como forma detratamento respeitoso. Em Portugal, Vossa Merc era usadopara o tratamento do rei no sculo XIV. Com a ascenso sociale poltica da aristocracia, a forma comea a ser usada paratratamento de nobres e, j desgastada, circunscreve-se populao no-aristocrtica, classe a que pertencia a maioriados portugueses que vieram colonizar o Brasil.

    Apesar de timidamente, o pronome voc documentado nosculo XVII nos poemas de Gregrio da Mattos. Na ediopromovida por Amado (1999), Micio Tti anota que voc(grafado voss no manuscrito) ainda tratamento cerimonioso.No entanto, o seu uso limitado e os contextos em que ocorremme levaram a interpret-lo como pronome depreciativo.3

    Santos Luz oferece uma explicao convincente para odesgaste constante das formas de tratamento corteses. Diz aautora:

    ... as frmulas de tratamento corteses so expressivas,por vezes exageradas, e o valor expressivo das palavras atenua-se rapidamente pelo uso freqente que delas se faz. Assim, nocausa admirao que a linguagem corts se renove mais depressaque qualquer outra. (SANTOS LUZ. 1956, p. 271).

    Tratamento corts significa tratamento formal, mas tratamentoformal (no sentido do uso de formas corteses de tratamento)nem sempre um ndice de formalidade da fala. Tome-se porexemplo o fato de, em tempos no muito remotos, ser comumos cnjuges da classe alta se tratarem por vs. Seria o uso devs um ndice de formalidade das relaes entre marido emulher ou to somente um costume de uma poca e de certogrupo social? Deve-se tambm atentar para o fato de que o que considerado formal em uma poca no o necessariamenteem outra. Fatos como esses exigem um cuidado redobrado naidentificao do estilo na pesquisa diacrnica sobre as formas

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    de tratamento. Da a dificuldade que senti em identificar o estiloutilizado em cada sentena individual nos dados que recolhipara o estudo das formas de tratamento. Decidi, ento, nocodificar as sentenas quanto ao fator estilo. Admitindo comovlido o achado de Labov de que uma varivel socialmentediagnstica ser tambm estilisticamente diagnstica e considerandoa gnese popular da forma voc e o seu uso restrito em textosliterrios do sculo XIX, levanto a hiptese de que os textos queapresentam altas freqncias do pronome voc devem serclassificados como [-formais]. Entretanto, para no correr orisco de usar um argumento circular, fui buscar nesses textosevidncias extralingsticas tais como a presena de personagensdas classes populares (no caso de textos literrios), a classesocial e grau de letramento do escritor, a funo da comunicaoe as caractersticas do veculo de comunicao. Evidnciaslingsticas como o uso de grias e da expresso a gente comoforma pronominal, entre outras, tambm foram consideradas.Desse modo, uni o achado de Labov (1972) aos ensinamentosde Romaine (1982).

    4 COMDIA, ENFIM

    Com a finalidade de testar essa hiptese, selecionei umconjunto de textos escritos pelo jornalista Prspero Diniz, publicadosno jornal baiano A Verdadeira Marmota, entre 1851 e 1852.Pelas caractersticas do peridico populista e satrico epelo perfil de seu editor/redator4 crtico e irreverente intuestar diante de um estilo informal.

    Os textos so pequenas crnicas em forma de dilogoentre personagens das classes mdia e baixa e versam sobreassuntos do cotidiano. As sentenas abaixo servem de ilustrao:

    4. Tratando agora de nossos negcios, como vaivoc com o seo noivo? (1852, n.107, p.2).

    5.Voc levou bordoadas? (1851, no 37, p. 2).

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    No conjunto de textos, a forma de tratamento voc. Huma nica ocorrncia da forma verbal correspondente a tu nasentena imperativa que transcrevo abaixo:

    6. Aquieta, menina!

    O fator que apresenta resultados mais interessantes osexo do interlocutores. Entre pessoas do mesmo sexo a formade tratamento ntimo voc, pronome nunca usado entrepesooas de sexo diferente. Nesse caso, homens e mulheres daclasse baixa usam Senhor/Senhora, enquanto na classe mdiaa forma usada entre sexos diferentes Vossa Merc. Notratamento respeitoso entre mulheres dessa mesma classe(filha dirigindo-se me, por exemplo) usa-se Senhora.

    Selecionei tambm um texto de 1870, uma comdia doescritor baiano Augusto Pinto Paca.

    Nesse texto, h um nmero maior de relaes assimtricas(amos X criada) e aparecem personagens da classe alta. Observeiuma predominncia da forma verbal correspondente a tu parao tratamento ntimo (o pronome sempre nulo) e apenas seteocorrncias de voc. No tratamento respeitoso, usa-se Senhor/Senhora. No h nenhuma ocorrncia de Vossa Merc. Eisalguns exemplos:

    7. (Agrepina a Matheus): Mas vosc cometeu umcrime, matou um homem. (p.23).8. ( Matheus a Agrepina): Poder-me-has dar umclice de cognac? (p.23).

    9. (Agrepina a Matheus): Minha ama encarregou-me de convidar-te para residires aqui. (p.29).

    Agrepina e Matheus so namorados, portanto se trataminformalmente. Observa-se variao entre tu e voc quandoAgrepina se dirige a Matheus. Contudo, a freqncia de usode tu muito maior. Matheus nunca se dirige a Agrepinausando voc. Essa forma usada por interlocutores do sexomasculino, numa relao assimtrica, de superior para inferior.

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    Comparando os textos, perdcebi que o pronome voc foi,durante um perodo do sculo XIX, uma forma de tratamentontimo, usada inicialmente por pessoas do mesmo sexo, comotambm uma forma de tratamento depreciativo. No texto de1870, verifica-se uma expanso dos contextos em que usado:mulheres dirigindo-se a homens. No entanto, alm do retrocessoquantitativo, os homens no o utilizam como forma de tratamentontimo. Pergunto, ento: como uma forma usada categoricamentepor pessoas do mesmo sexo no incio dos anos 1850 tem umuso to limitado 20 anos depois.

    5 CONCLUSO

    A comparao da freqncia e dos contextos de uso dopronome voc como forma de tratamento ntimo nos dois textosanalisados permitiu chegar s seguintes concluses:

    a) a forma de tratamento voc usada apenas entre pessoasdo mesmo sexo nos textos de 1851 e 1852 passa a ser usada,mesmo que timidamente, por mulheres dirigindo-se a homensno texto de 1870;

    b) h uma correlao entre o uso de voc e a classe socialdo personagem (classes baixa e mdia);

    c) se a classe social, como sugere Labov, correlaciona-secom o estilo, ento o conjunto de textos de 1851 e 1852 maisinformal do que o de 1870;

    d) considerando que o texto de 1870 uma comdia,conclumos no ser tal gnero to informal quanto se temafirmado. Dito de outra forma: COMDIAS PODEM SER ALTAMENTEFORMAIS.

    NOTAS

    1 Sobre gradualismo na mudana cf. Lightfoot,1999.2 Trata-se da novela de Ambrsio Ronzi Cena da Vida Baiana,publicada no jornal literrio O Crepsculo.3 Localizei em sua extensa obra mais de duas dezenas de poemasem que o pronome voc usado. So todos eles stiras dirigidas

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    ao baixo clero, a prostitutas e ao governador Cmara Coutinho. Opoeta retrata satiricamente a figura do governador, um grandedesafeto seu: Voc perdoe,/nariz nefando,/que eu vou cortando,/ einda fica nariz,/ em que se assoe. (p.184)4 Sobre a personalidade do escritor, cf. Blake,1883-1902, vol. 7. p.83-4.

    REFERNCIAS

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