Cinema e História. Revista Ler, 2007

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    Jos DAssuno Barros Ler HistriaLisboa: 2007. n 52, p.127-159

    CINEMA E HISTRIA as funes do Cinema como agente, fonte e representao daHistria

    Jos DAssuno Barros 1

    RESUMO

    Dentro do mbito de uma convergncia entre Histria Cultural e HistriaPoltica, este artigo busca esclarecer e discutir as vrias possibilidades deinterao e as relaes possveis entre Histria e Cinema, particularmenteexaminando o Cinema como fonte histrica, como meio para a represen-tao historiogrfica, como tecnologia de apoio para o trabalho historio-grfico, e como agente que interfere no processo histrico. Na ltima par-te do artigo, so apresentadas as modalidades flmicas que conservam al-gum tipo de relao com a representao historiogrfica.

    Palavras-chave: Cinema, representao historiogrfica; imagem.

    ABSTRACT

    Inside the ambit of a convergence between Cultural History and PoliticalHistory, this article attempts to clarify and discuss the several possibili-ties of interaction and the possible relations between History and Cinema,particularly examining the Cinema as historical font, as way for the his-torical representation, as technology to support the historiographyc work,and as an historical agent that interferes in the historical process. In thelast part of the article they are presented the modalities of films thatmaintains relations with the historical representation

    Key Words: Cinema; historical representation; image.

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    CINEMA E HISTRIA as funes do Cinema como agente, fonte e repre-sentao da Histria

    Cinema e Histria tm desenvolvido relaes bastante ntimas desde que os primeirosfilmes comearam a surgir por volta do alvorecer do sculo XX. De fato, estes dois campos daatividade e da criao humana no cessaram de intensificar progressivamente suas possibili-dades de interao medida que o Cinema foi se firmando como a grande arte da contempo-raneidade. Forma de expresso artstica para a qual concorrem diversas outras artes como aMsica, o Teatro, a Literatura, a Fotografia e as demais Artes Visuais o Cinema terminoupor vir constituir a partir de si mesmo uma linguagem prpria e uma indstria tambm espec-

    fica, e ao par disto no cessou de interferir na histria contempornea ao mesmo tempo emque seu discurso e suas prticas foram se transformando com esta mesma histria contempo-rnea. Eis aqui a raiz de um complexo jogo de interrelaes possveis que tm permitido que oCinema se mostre simultaneamente como fonte, tecnologia, sujeito e meio de represen-tao para a Histria.

    No seu aspecto mais irredutvel o Cinema incluindo todo o imenso conjunto das o-bras cinematogrficas que j foram produzidas e tambm as prticas e discursos que sobre

    elas se estabelecem pode ser considerado nos dias de hoje uma fonte primordial e inesgot-vel para o trabalho historiogrfico. A partir de uma fonte flmica, e a partir da anlise dos dis-cursos e prticas cinematogrficas relacionados aos diversos contextos contemporneos, oshistoriadores podem apreender de uma nova perspectiva a prpria histria do sculo XX e dacontemporaneidade. De igual maneira, como se ver mais adiante, os historiadores polticos eculturais podem examinar os diversos usos, recepes e apropriaes dos discursos, prticas eobras cinematogrficas.

    Para alm deste fato mais evidente de que o Cinema enquanto forma de expressocultural especificamente contempornea fornece fontes extraordinariamente significativaspara os estudos histricos sobre a prpria poca em que foi e est sendo produzido, uma outrarelao fulcral entre Histria e Cinema pode aparecer atravs da dimenso deste ltimo comorepresentao. O Cinema no apenas uma forma de expresso cultural, mas tambm ummeio de representao. Atravs de um filme representa-se algo, seja uma realidade percebi-da e interpretada, ou seja um mundo imaginrio livremente criado pelos autores de um filme.

    Para o mbito das relaes entre Cinema e Histria, interessa particularmente a possi-bilidade de a obra cinematogrfica funcionar como meio de representao ou como veculo

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    interpretante de realidades histricas especficas, ou, ainda, como linguagem que se abre li-vremente para a imaginao histrica. Em um caso, estaremos tratando dos chamados filmeshistricos entendidos aqui como aqueles filmes que buscam representar ou estetizar even-

    tos ou processos histricos conhecidos, e que incluem entre outras as categorias dos filmespicos e tambm dos filmes histricos que apresentam uma verso romanceada de eventos ouvidas de personagens histricos. Em outro caso, ser possvel destacar ainda aqueles filmesque chamaremos de filmes de ambientao histrica, aqui considerando os filmes que sereferem a enredos criados livremente mas sobre um contexto histrico bem estabelecido.

    Ao lado dos filmes histricos e dos filmes de ambientao histrica, uma terceira eimportante modalidade ainda a ser discutida neste tipo de relao entre o Cinema e a represen-

    tao histrica a dos documentrios histricos que podem ser definidos mais especifica-mente como trabalhos de representao historiogrfica atravs de filmes, diferenciando-se dosatrs mencionados filmes histricos seja pelo rigor documental em que se apiam, seja pelofato de que neles o fator esttico deslocado para segundo plano e no quem conduz os ru-mos da narrativa ou da construo flmica. Desta maneira, enquanto o filme histrico narracriativamente um evento ou processo histrico, tomando-o para enredo, o documentrio his-toriogrfico analisa os acontecimentos maneira dos historiadores, comparando depoimentos

    e fontes, sobrepondo imagens da poca, analisando situaes atravs da lgica historiogrficae do raciocnio hipottico-dedutivo, e encaminhando uma srie de operaes que so algosimilares quelas das quais os historiadores lanam mo ao examinar um processo histricoem obra historiogrfica em forma de livro. Assim, o fio condutor do documentrio historio-grfico essencialmente a anlise de eventos e processos histricos, e no a mera narraodestes processos mediada pelo mesmo tipo de estetizao que aparece nos filmes ficcionais.Vale ainda lembrar que, enquanto o filme histrico oculta as fontes em que se apoiou, o do-

    cumentrio histrico desenvolve-se habitualmente explicitando suas fontes para os especta-dores e marcando uma distncia clara entre o discurso do cineasta-historiador e estas mesmasfontes (o discurso dos outros, as imagens e documentos de poca, e assim por diante). Emsuma, ressalvadas as especificidades de cada linguagem e as caractersticas pessoais de cadaautor, o cineasta-historiador age analogamente ao que faria um historiador tradicional queescreve um livro de Histria nos dias de hoje.

    Em sntese sobre o filme histrico, o filme de ambientao histrica, e o docu-mentrio histrico, entre outros tipos similares que poderiam tambm ser mencionados pode-se dizer que estas trs modalidades flmicas relacionadas Histria (considerada aqui

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    como objeto de conhecimento) correspondem respectivamente, na Literatura, ao romancehistrico propriamente dito, obra de fico com ambientao histrica, e s prprias repre-sentaes historiogrficas produzidas pelos historiadores profissionais ou diletantes.

    Sobre todos estes tipos de filmes de Histria (no sentido amplo), importante ressal-tar ainda que eles possuem uma dupla natureza, uma espcie de duplo vnculo em relao Histria. Alm de serem fontes importantes para a percepo de processos histricos diver-sificados que se do na prpria poca de sua produo, tal como alis ocorre com os demaisfilmes (inclusive os de fico), os filmes de Histria so tambm fontes primordiais para oestudo das prprias representaes historiogrficas. Neste sentido, alm de ser possvel nestetipo de fontes cinematogrficas estudar a Histria (enquanto objeto de conhecimento), pos-

    svel estudar a partir deles as prprias representaes e concepes historiogrficas (isto , aHistria enquanto campo de conhecimento), discutindo a Historiografia nos seus diversosnveis. Pode-se dizer que atravs dos filmes de Histria de diversos tipos o Cinema comeaa penetrar de diversificadas maneiras no prprio mundo dos historiadores, e no apenas nomundo de acontecimentos histricos que os historiadores examinam com algum tipo de dis-tanciamento.

    As possibilidades acima apresentadas de relacionar Cinema e representao histrica

    levam a pensar tambm em uma terceira relao importante que, agora, aparece atravs damediao dos saberes pedaggicos e educativos. O Cinema atravs de sua produo flmica, eno apenas dos documentrios histricos, tambm pode ser utilizado para ensinar Histria ou, mais ainda, para veicular e at impor uma determinada viso da Histria. Entramos aquiem uma outra possibilidade de apreenso das relaes possveis entre Cinema e Histria. Tan-to os historiadores podem estudar os usos polticos e educacionais que tm se mostrado poss-veis atravs do Cinema, como de igual maneira os pedagogos (e tambm os professores de

    histria) podem utilizar o Cinema para difundir o saber histrico e historiogrfico de umadeterminada maneira2.Para alm do papel do filme como veculo final de uma determinada representao

    historiogrfica isto , como um meio propriamente dito para esta representao historio-grfica importante ressaltar que a filmagem pode funcionar ainda como instrumento depesquisa importante para a prtica historiogrfica, tenha esta como produto final um filme ouum livro. Assim, se o uso do gravador e da fotografia veio trazer instrumentos importantssi-mos para os antroplogos e socilogos dos ltimos tempos, as prticas cinematogrficas vie-ram trazer uma contribuio fundamental ao acenarem com a possibilidade do uso filmagem

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    nas pesquisas ligadas s cincias humanas, aqui considerando que a filmagem permite a cap-tao de imagens-som em movimento para posterior anlise (por exemplo, o ritual de umatribo indgena ou as imagens de um determinado distrbio social).

    O Cinema, assim, apresenta-se como tecnologia adicional para a Histria Oral a-crescentando uma nova dimenso coleta de depoimentos mas tambm para outras inme-ras modalidades historiogrficas como a Histria da Cultura Materialou a Histria do Coti-diano (basta pensar na filmagem de estruturas urbanas para posterior anlise pelo historiadorda cultura material, ou na filmagem de situaes da vida cotidiana para interpretao posteriorpelo historiador do cotidiano)3. A tecnologia cinematogrfica, por fim, mostra-se magnficoinstrumento para a Histria Imediata, aqui entendida como aquela modalidade da Histria em

    que o historiador participa mais diretamente do prprio processo ou situao histrica que estinvestigando.

    Em vista do que se disse at aqui, cada vez mais a historiografia dos ltimos tempostem se dado conta das mltiplas potencialidades do Cinema simultaneamente como fonte parao estudo da histria, como veculo privilegiado para a difuso das prprias representaeshistoriogrficas, e como tecnologia auxiliar para a Histria. Naturalmente que, j que o pr-prio Cinema relativamente recente na histria, seu uso pela Historiografia tambm recente.

    Alm disto, acresce que tambm no deixa de ser recente mesmo a utilizao pela historiogra-fia de fontes no propriamente documentais ou textuais. A primeira metade do sculo XX,como se sabe, marca precisamente a expanso das concepes de fonte histrica, j quetrouxe tona um interesse mais vivo por fontes iconogrficas, por fontes da cultura material,pela histria oral, e por tantas novas possibilidades de materiais para serem trabalhados peloshistoriadores. A fonte flmica, que alis integra ao discurso verbal as dimenses da visualida-de e da oralidade, enquadra-se compreensivelmente neste mesmo movimento de expanso de

    temticas e de possibilidades de novas fontes historiogrficas.Uma ltima relao possvel entre Cinema e Histria para alm de seu papel comoexpresso, representao e tecnologia vincula-se ao fato de que o Cinema tambm po-de corresponder a uma ao que interfere na Histria (no mais a Histria no sentido decampo do saber, mas a prpria Histria realizada pelos homens na sua vida social). Veremosmais adiante que, do Cinema, podem se apropriar poderes diversos que agem na Histria; eque, de outro lado, o Cinema tambm pode se apresentar como campo de resistncia a diver-sos poderes institudos. Por isto, vale dizer que, em todos estes casos, o Cinema tem sido umpoderoso agente histrico desde os anos que o viram surgir.

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    O Cinema apresenta-se como agente da histria seja atravs da Indstria Cultural, se- ja atravs das aes estatais e dos diversos usos polticos, seja atravs da difuso de diversifi-cadas ideologias, ou seja atravs da resistncia a estas mesmas foras. Isto sem contar que

    atravs de uma obra flmica mais especfica diversos agentes esto freqentemente atuandode modo bastante significativo na Histria. Aqui, portanto, o Cinema assume para muitoalm de sua dimenso comomeioe comoobjetode estudo a funo desujeitoda Histria.

    O Cinema como agente histrico

    Acompanhando as dimenses norteadoras atrs citadas, ser possvel adentrar em se-

    guida a complexa relao entre Histria e Cinema a partir de alguns ngulos que convm pre-cisar. Discutiremos trs dos eixos fundamentais atrs estabelecidos, que permitem avaliar ocinema como agente da histria, o cinema como fonte histrica, e o cinema como meiopara produzir uma nova forma de representao historiogrfica ou de transmisso do conhe-cimento histrico.

    Em primeiro lugar, consideraremos a idia de que acima de tudo o Cinema pode servisto ele mesmo comoagente histrico. O Cinema mostra-se um agente histrico importan-

    te no sentido de que interfere direta ou indiretamente na Histria. Ou, mais propriamente, po-deramos acrescentar que o Cinema tem se mostrado um instrumento particularmente impor-tante ou um veculo significativo para a ao dos vrios agentes histricos, para a interfern-cia destes agentes na prpria Histria. O Cinema, ento, mostra-se como poderoso instrumen-to de difuso ideolgica, ou mesmo como arma imprescindvel no seio de um bem articuladosistema de propaganda e marketing. Por isso mesmo, em uma primeira instncia, j se mostrabastante interessante para os historiadores contemporneos a possibilidade de examinar siste-maticamente as relaes entre Cinema e Poder, o que como se ver adiante far da arteflmica e das prticas cinematogrficas um importante objeto de estudo para a Histria Polti-ca (e no apenas para a Histria Cultural).

    Essa relao entre Poder e Cinema mltipla e igualmente complexa. Desde cedo, asdiversas agncias associadas aos poderes institudos compreenderam a importncia do Cine-ma como veculo de comunicao, de difuso e imposio de idias e ideologias4. Trate-se deum documentrio, de um filme de propaganda poltica, ou de uma obra de fico cinemato-grfica, o Cinema tem sido utilizado em diversas ocasies como instrumento de dominao,de imposio hegemnica e de manipulao pelos agentes sociais ligados ao poder institudo

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    (instituies governamentais, partidos polticos, igrejas, associaes diversas), e tambm porgrupos sociais diversos que tm sua representao social junto a estes poderes institudos.Essa tem sido sem dvida uma primeira relao poltica importante a ser considerada.

    Por outro lado, o Cinema tambm conservou obviamente a sua autonomia em relaoaos poderes institudos, e por isso ocorre que tambm tenha funcionado como Contrapoder.Neste sentido, se o Cinema com sua produo flmica pode ser examinado como instrumentode dominao e de imposio hegemnica, ele tambm pode ser examinado como meio deresistncia. Da que as fontes associadas ao Cinema podem ser analisadas tanto como docu-mentao importante para compreenso dos mecanismos e processos de dominao, comotambm podem ser encaradas como documentao significativa que traz e revela dentro de si

    as mltiplas formas de resistncias, as diversificadas vozes sociais (inclusive as que no en-contram representao junto ao Poder Institudo), e de resto os variados padres de represen-tao associados a uma sociedade.

    O Cinema e a sua realizao ltima que o Filme sempre construo polifnica,para utilizar uma metfora emprestada Msica. Nele cantam inevitavelmente todas as vozessociais, no apenas as que invadem a cena atravs de seus discursos como tambm as que nelapenetram atravs da imagem. Ainda que uma determinada produo flmica seja montada para

    a expresso de um modo de vida que o de alguma classe dominante, ou ainda que o filmeseja empregado como parte de estratgias polticas especficas e ainda que os dilogos prin-cipais postos em cena atendam ou expressem interesses sociais e polticos especficos have-r sempre algo que se impe ou d-se a perceber atravs da imagem e que pode revelar ines-peradamente os demais modos de vida, ou algo que se h de impor como contra-discurso eentredito que se constri sombra dos dilogos que entretecem o discurso principal.

    Apenas para dar um exemplo de estudo de caso que permite trazer tona estas rela-

    es, o Cinema apresentou-se no Brasil do Estado Novo com todas estas facetas. Foi utilizadocomo instrumento de doutrinao poltica atravs dos documentrios produzidos pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propagandado Governo Vargas), como veculo para a aliena-o atravs de alguns filmes e chanchadas de fico, mas tambm como instrumento de resis-tncia e contrapoder a partir diversos outros filmes de fico. Para considerar o caso dos fil-mes satricos, sempre importante lembrar que a obra de humor artstico pode veicular pordiversas vezes crticas ao Poder Institudo que no poderiam circular atravs do discurso s-rio. Essas relaes vrias, por outro lado, podem aparecer em algumas ocasies dentro de umnico filme, o que mostra a potencialidade da obra cinematogrfica como produto complexo.

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    Um filme, enfim, pode se apresentar como um projeto para agir sobre a sociedade, pa-ra formar opinio, para iludir ou denunciar. Portanto, um projeto para interferir na Histria,por trs do qual podem se esconder ou se explicitar desde os interesses polticos de diversas

    procedncias at os interesses mercadolgicos encaminhados pela Indstria Cultural. E, cer-tamente, atravs de um filme podem tambm agir os indivduos que representam posiesespecficas. Lembremos aqui os polmicos documentrios de Michael Moore comoTirosem Columbine(2002) ouFahrenheit 9/11(2004) onde o autor, valendo-se do gnero Do-cumentrio, na verdade o utiliza de uma nova maneira, no apenas para registro e interpreta-o da realidade como tambm com vistas a uma explcita e imediata interferncia nesta rea-lidade5. Assim, ao ocupar a posio de entrevistador, o autor instiga, provoca, assume nitida-

    mente uma posio, impe situaes que querem mudar o curso da realidade examinada. Age,portanto, sobre a Histria.

    Naturalmente que, alm dos usos polticos voluntrios e involuntrios, conscientes einconscientes, os filmes tambm se apresentam como registro das representaes e vises demundo presentes nas sociedades que os produziram. Tal como se disse, atravs de uma obraflmica expressam-se de maneira complexa vrias vozes sociais e diversificadas perspectivasculturais. O Cinema, considerado como agente histrico, pode ser por isto compreendido mais

    propriamente como um feixe de agentes histricos diversos e se ele permite um estudo sis-tematizado das relaes polticas, permite tambm um estudo acurado das prticas e represen-taes culturais. Da seu simultneo interesse tanto para a Histria Poltica como para a Hist-ria Cultural.

    O Cinema como fonte histrica

    Se o Cinema agente da Histria no sentido de que interfere direta ou indiretamentena Histria, ele tambm interferido todo o tempo pela Histria, que o determina nos seusmltiplos aspectos. Vale dizer, o cinema produto da Histria e, como todo produto, umexcelente meio para a observao do lugar que o produz, isto , a Sociedade que o contextu-aliza, que define a sua prpria linguagem possvel, que estabelece os seus fazeres, que instituias suas temticas. Por isto, qualquer obra cinematogrfica seja um documentrio ou umapura fico sempre portadora de retratos, de marcas e de indcios significativos da Socie-

    dade que a produziu. neste sentido que as obras cinematogrficas devem ser tratadas pelohistoriador como fontes histricas significativas para o estudo das sociedades que produzem

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    filmes, o que inclui todos os gneros flmicos possveis. A mais fantasiosa obra cinematogr-fica de fico traz por trs de si ideologias, imaginrios, relaes de poder, padres de cultura.Esta afirmao, que de resto tambm perfeitamente vlida para as obras de Literatura, d

    suporte ao fato de que a fonte cinematogrfica tem sido utilizada com cada vez mais freqn-cia pelos historiadores contemporneos.

    O lugar que produz o Cinema tambm o lugar que o recebe, de modo que a fonteflmica pode dar a compreender uma Sociedade simultaneamente a partir do sistema que oproduz e do seu universo de recepo. O pblico consumidor e a crtica inscrevem-se desde jna rede que produz o filme, conjuntamente com os demais fatores que atuam na sua Produo,e isto porque o pblico receptor sempre levado em considerao nos momentos em que o

    filme elaborado. As competncias e expectativas do consumo, enfim, so antecipadas nomomento em que produzida a obra cinematogrfica, de modo que analisar um filme anali-sar tambm o pblico que ir consumi-lo6.

    Com relao a estes e outros aspectos, a fonte cinematogrfica, particularmente a fonteflmica, torna-se evidentemente uma documentao imprescindvel para a Histria Cultural uma vez que ela revela imaginrios, vises de mundo, padres de comportamento, mentalida-des, sistemas de hbitos, hierarquias sociais cristalizadas em formaes discursivas, e tantos

    outros aspectos vinculados de uma determinada sociedade historicamente localizada. Mascomo a Indstria Cinematogrfica contempla em todas estas instncias relaes de poder seja no que concerne sua insero no universo da Indstria Cultural, seja no que se refere sua apropriao pelos poderes pblicos e privados natural que pelos estudos histricos doCinema se interessem tambm a Histria Poltica, a Histria Social, e mesmo a Histria Eco-nmica em sua insero com estas modalidades historiogrficas.

    muito importante para o historiador avanar na compreenso dos poderes que atra-

    vessam o Cinema, alguns interferindo diretamente na feitura de filmes. Apenas para nos ater-mos ao mbito dos poderes que circulam na esfera da Indstria Cultural, iremos encontrartodo um conjunto de poderes e micropoderes que enredam a feitura de um filme, e isto vari-ando de acordo com os diversos contextos e com as diversas fases da Histria do Cinema. OCinema que surge com os irmos Lumire ir logo empreender uma criativa luta para se trans-formar de mera tecnologia em Arte, e a partir da se empenha em construir uma linguageminteiramente nova. O Cinema que convive com a Televiso, por exemplo, j outro e deveconfrontar-se com a idia de que seus objetos flmicos em determinado momento passaro dasgrandes Telas ao circuito da Televiso (e mais tarde, j nas ltimas dcadas do sculo XX, ao

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    circuito da televiso por assinatura e das locadoras do vdeo). Tudo isto interfere na sua feitu-ra, porque a Indstria Cultural almeja explorar todas as mdias e mercados, e neste sentidoseus produtos devem ser polivalentes e adaptativos com vistas gerao de lucros crescentes.

    Haver mesmo filmes feitos especialmente pela Televiso, e outros previstos para ge-rarem sries para a Televiso. Quando se escreve um roteiro de filme para televiso, deve-seantecipar as reaes de um telespectador que no est mais preso por duas horas dentro de umrecinto fechado de sesso cinematogrfica para a qual j comprometeu o valor de um ingres-so. Esse novo espectador que assiste na televiso a um filme seja um filme que j percorreuo circuito das salas de cinema ou um filme tipicamente televisivo possui literalmente nasmos um novo poder: o zapping esta possibilidade de apertar um boto no controle remoto e

    mudar o canal. Os roteiros, desta forma, no podem ser concebidos livremente, pois desde oinstante da sua gestao j sofrem a presena desta formidvel multido de micropoderes. preciso capturar a ateno do espectador comum, e neste sentido as emissoras pressionaroroteiristas para fazerem cortes nos seus roteiros de modo a conseguirem mais excitao, maissuspense, por vezes maior velocidade ou maior nvel de adaptao competncia do especta-dor comum. Desta maneira, os grandes interesses das emissoras e as pequenas expectativas dotelespectador comum se enredam para pressionar a feitura do filme. Em operao inversa,

    ocorre ao historiador que ele pode partir de um filme aqui tomado como fonte histrica para precisamente desvendar esta rede de poderes e micropoderes, de expectativas de mercadoe de competncias espectadoras, de padres culturais impostos pela mdia e de representaesculturais que surgem espontaneamente. Ou seja, partindo de um produto, ele estar apto adecifrar a sociedade que o produziu.

    Em vista deste mundo de novas possibilidades historiogrficas, examinaremos nosprximos pargrafos os diversos tipos de fontes relacionadas com o Cinema, e de que podem

    ser valer os historiadores do mundo contemporneo. Ser necessrio considerar aqui toda umagama de fontes importantes, desde aquelas geradas para e pelaproduo de um filme comoroteiros, sinopses, cenrios, registros de marcaes de cenas, mas tambm contratos, propa-gandas, crticas de cinema, receitas e despesas de produo at aquela que a fonte por ex-celncia: o filme.

    De fato, no que se refere s fontes primrias para o estudo da Histria do Cinema, ouento da Histria atravs do Cinema, a primeira fonte mais bvia a se considerar o prpriofilme, o produto final da arte cinematogrfica. Neste sentido, um ponto de partida metodol-gico para examinar sistematicamente a relao entre Cinema e Histria deve vir ancorado na

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    compreenso de que o filme, pretenda ele ser imagem ou no da realidade, e enquadre-se den-tro de um dos gneros documentrios ou dentro de um dos gneros de fico, em todos estescasos Histria. No importa se o filme pretende ser um retrato, uma intriga autntica, ou pura

    inveno, sempre ele estar sendo produzido dentro da Histria e sujeito s dimenses sociaise culturais que decorrem da Histria isto independente da vontade dos que contriburam einterferiram para a sua elaborao.

    Assim, o mais fantasioso filme de fico cientfica no expressa seno as possibili-dades de uma realidade histrica, seja como retratao dissimulada, como inverso, comotendncia discursiva que o estrutura, como viso de mundo que o informa e que o enforma(que lhe d forma), e assim por diante. por isto, tal como se observou antes, que sempre

    possvel dizer que a fico, por mais criativa e imaginativa que seja, permite em todos os ca-sos uma aguda leitura da realidade social e histrica, o que implica em dizer que o historiadorou o analista da fonte documental cinematogrfica sempre poder almejar enxergar por trs deum filme algo da sociedade que o produziu, e que poder analisar a fonte flmica como umproduto complexo que se v potencializado pelo fato de que para ela confluem diversos tiposde linguagens e materiais discursivos denunciadores de uma poca, de caminhos culturaisespecficos, de agentes sociais diversos, de relaes de poder bem definidas, de vises de

    mundo multi-diversificadas.Apenas para registrar um exemplo, a Los Angeles do sculo XXI que nos apresen-

    tada em Blade Runner (1982) um filme que intermescla os gneros da fico cientfica e dofilme policial uma Los Angeles certamente fictcia, imaginada pelo romancista de cujotexto foi extrado o enredo e pelo roteirista da pelcula7. Contudo, uma anlise acurada pode-ria nos mostrar como so projetadas nesta Los Angeles imaginria vrios dos medos tpicosdos americanos ou do homem moderno, de modo geral.

    A Los Angeles de Blade Runner , com seu submundo formado por ruas estreitas e po-ludas habitadas por uma populao que se reparte em etnias e dialetos, e que se v contrapon-teado por prdios de centenas de andares e por uma sofisticada tecnologia, certamente oespao imaginrio de projeo de alguns dos grandes medos americanos: a poluio, a violn-cia, a escassez alimentar, a opresso tecnolgica, a presena de migrantes vindos de outrospases, a ameaa da perda de uma identidade propriamente americana, os desastres ecolgi-cos que no filme aparecem sob a forma de uma chuva cida com a qual tm de conviver oshabitantes deste futuro imaginrio. Osreplicantes andrides criados pelos homens do futuro expressam com sua revolta os temores dos homens de hoje diante de uma tecnologia que

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    pode sair do controle, da criatura que ameaa o criador tema que de resto sempre foi caro fico cientfica j clssica.

    De igual maneira, na temtica de um mundo dominado e controlado por uma mega-corporao, aparecem nos labirintos discursivos de Blade Runner os receios diante de umfuturo onde a Empresa Capitalista passa a assumir o papel de Estado e a ter plenos poderessobre a vida e a morte de todos os indivduos o que, em ltima instncia, traz tona o temordiante da possibilidade da perda de liberdade individual. Para alm disto, as relaes entre oshomens e a Memria, na qual se apiam para a construo de sua identidade individual e queno entanto lhes to inconsistente, so trazidas a nu na famosa cena que se refere a uma repli-cante que no possui sequer a conscincia de ser uma replicante (isto , no-humana), e que sedepara com a cruel realidade de que a memria que foi nela implantada no corresponde anenhuma vivncia efetiva8. As relaes com Deus e a Morte por fim, aparecem na parbolaque d forma geral ao filme atravs de um enredo onde os replicantes procuram obstinada-mente os seus criadores na esperana de prolongarem a prpria vida, e que traz como um dosdesfechos a cena da Criatura que termina por assassinar o seu Criador, evocando as intrinca-das relaes psicolgicas que permeiam desde sempre as relaes entre o homem e Deus atra-vs das realidades religiosas por ele mesmo engendradas na histria real. Por fim, Blade Run-ner levanta em diversas ocasies um questionamento tpico desta nossa poca que entremeia oReal e o Virtual e que, para alm disto, ensejou perturbadoras reflexes filosficas sobre adesconstruo do sujeito, esta desconstruo to tpica da ps-modernidade e que vem abalarfortemente as certezas do homem contemporneo em relao sua prpria existncia objeti-va9. Eis, portanto, um exemplo entre tantos que poderiam ser dados de que toda a fico estsempre impregnada da realidade vivida, seja com a inteno ou sem a inteno de seu autor.

    por isto que, a princpio, qualquer filme seja um policial, um filme de fico ci-entfica, uma porn-chanchada, um filme de amor pode ser constitudo em fonte pelo histo-riador que esteja interessado em compreender a sociedade que o produziu e que o tornou pos-svel como obra. Desnecessrio dizer que um filme ambientado na Idade Mdia que seja ela-borado hoje falar ao historiador muito mais sobre a Idade Contempornea do que sobre aIdade Mdia. Seria de se perguntar o quanto o filmeCruzadade Ridley Scott (2005) queacompanha a narrativa de uma cruzada medieval ocorrida em 1185 fala-nos por exemplo doimpacto da Guerra do Iraque e de outros confrontos contemporneos envolvendo naes oci-dentais e o mundo islmico. Ou, para lembrar outro filme de Scott, at que pontoO Gladiador

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    (2004) ao abordar o Imprio Romano no nos fala do Imprio Americano, do Jogo de Po-der, da corrupo e decadncia?

    ainda oportuno lembrar que os filmes tambm podem ser trabalhados em srie, e

    no apenas a partir de anlises individualizadas de seus discursos e de seu enredo. Pode-seestudar a evoluo de interesses temticos a partir de um levantamento geral de obras flmicasem um determinado perodo. Se os tempos recentes mostram a renovao de interesses porfilmes ambientados na Idade Mdia ou em tempos antigos, isso certamente diz algo ao histo-riador sobre o atual contexto scio-cultural, ou mesmo poltico, que permitiu a renovao des-te interesse. Com a produo ligada ao Cinema ocorre, de resto, o que tambm se verifica paraa produo literatura ou artstica em geral. A emergncia de determinado tipo de obras, os

    temas que por elas circulam, o seu vocabulrio, as novidades formais que se tornam possveis... tudo isto nos fala ainda mais dos receptores da obra do que de seus prprios autores indivi-dualizados.

    As possibilidades de fontes histricas relativas ao Cinema no se esgotam nesta obrafinal que o filme propriamente dito. Para alm desta fonte mais bvia, e que pode ser exa-minada sob sua forma de registro em Vdeo, preciso considerar ainda que a fonte flmicagera outros tipos de fontes como substratos, etapas e instrumentos de trabalho. Por exemplo.

    O Roteiro mostra-se como um tipo de transposio literria do filme, que ter sido em al-gum momento tanto um instrumento de trabalho para os produtores do filme, como ter seconvertido em outro momento em obra literria por si mesma, posta venda para a leitura deinteressados. Este tipo de fonte tambm apresenta grande utilidade para o historiador e estudi-osos de Cincias de Comunicao que estudam o Cinema. Naturalmente que os mtodos deanlise que se direcionam para o filme na sua forma de imagens projetadas na tela e quedeste modo se apresenta como uma obra integral que incorpora diversas linguagens devem

    ser diferenciados dos mtodos a serem empregados para a anlise do Roteiro, transposio doenredo e dilogos do filme para o texto escrito.Para alm disto, outros tipos de substratos de filmes tambm podem ser considera-

    dos, como a Sinopse que consiste em um tipo especializado de Resumo do filme, e que sediferencia radicalmente do Roteiro pelo seu carter breve e sinttico. Por outro lado, precisoainda considerar que o Filme tambm gera documentao sobre o Filme. Por exemplo, a Cr-tica deixa registros textuais de suas leituras sobre filmes especficos atravs de Crnicas Es-pecializadas, normalmente publicadas em Jornais e Revistas. Este tipo de fonte tambm deveser abordado pelo historiador do Cinema, com a plena conscincia de que neste caso ele no

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    estar mais estudando o filme como fonte direta, mas sim examinando um discurso que seestabelece sobre o filme. Os depoimentos dos prprios autores e envolvidos na produo dofilme tambm podem ser enquadrados nesta modalidade de fontes sobre o Cinema, e um outro

    substrato possvel so as propagandas sobre o produto cinematogrfico, seja a propagandasobre o filme que vai s telas de cinema (ou de televiso, posteriormente), seja a propagandasobre o filme convertido em vdeo para circular nas chamadas locadoras.

    H ainda a documentao propriamente dita sobre Cinema (no sentido de documen-tao registrada atravs da escrita). Tal como j se disse o Cinema tambm gera apropriaes,manipulaes e resistncias. Estas relaes, que permeiam a prpria interao entre Histria eCinema, tambm geram inmeros tipos de documentao que podem ser utilizados pelos his-

    toriadores. Pode-se estudar por exemplo a documentao oficial, institucional e governamen-tal sobre a produo cinematogrfica: Legislao sobre a normatizao e controle do Cinema,documentos da Censura, e assim por diante. Apenas para dar um exemplo, os sucessivos go-vernos brasileiros exerceram cada qual um tipo de poltica cultural para a produo cinemato-grfica; alguns, como o governo do Estado Novo, criaram mesmo rgos para produzir filmespara fins de Propaganda Governamental, para a difuso de ideologias, e assim por diante. OCinema, enfim, est sujeito a este tipo de apropriaes, embora ao mesmo tempo tem um grau

    de autonomia enquanto obra de arte que deve ser considerado.Fontes ensasticas sobre o Filme, escritas nos vrios perodos da Histria do Cinema,

    tambm podem revelar como o Cinema tem sido visto pela Sociedade, por setores especficosdesta sociedade, e por agentes histricos e artsticos vrios. Desta forma, os Ensaios sobre oCinema podem ser tomados como fontes para a anlise das vrias vises de mundo sobre oCinema. Assim, por exemplo, diversos cineastas escreveram textos importantes sobre o Ci-nema, como Jean Epstein10, Jean Renoir11, Serguei Eisenstein12, Jean-Claude Carrire13,

    Franois Truffaut14

    , e tantos outros. Da mesma forma, outros escreveram autobiografias quecertamente elucidam suas relaes com o Cinema, bem como aspectos de sua insero comocineastas em uma sociedade produtora e consumidora de filmes. Entre estes podemos citarLus Buuel15 e Frederico Fellini16, que tambm nos oferece outro exemplo de fonte impor-tante para compreender o pensamento, as prticas e as representaes dos autores de filmes: aEntrevista17. tambm o caso das entrevistas de Franois Truffaut 18. Todos estes tipos defontes podem ser trabalhados pelos historiadores em conexo com fontes flmicas propria-mente ditas, apenas para considerar os textos de autoria dos prprios produtores diretos defilmes19.

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    Algumas questes de Mtodo

    Situadas as fontes possveis para uma Histria do Cinema, ou para uma Histria que

    construda atravs da observao da produo cinematogrfica de um determinado perodo,podem ser situadas agora algumas coordenadas metodolgicas importantes a serem conside-radas. No que se refere fonte flmica propriamente dita o objeto filme na sua realizaofinal uma coordenada metodolgica importante a ancorar a anlise de fontes a ser empreen-dida deve estar apoiada na compreenso de que o Cinema e a obra flmica so construdos apartir de diversos discursos distintos que se entrelaam e interagem entre si. Por isso, paracompreender tanto as possibilidades formais e estruturais como os contedos encaminhados

    por um filme, faz-se necessrio ultrapassar a anlise exclusiva dos componentes discursivosassociados escrita (os dilogos e os roteiros, por exemplo).

    Obviamente que no suficiente examinar o roteiro transformado em obra literria(por exemplo, sob a forma de livro), embora este tipo de texto tal como j se disse tambmseja uma fonte importante para a anlise. Da mesma maneira, tambm no suficiente assistirao filme na sua realidade projetada (o filme assistido como pelcula cinematogrfica) se oolhar continua a acompanhar analiticamente apenas os componentes discursivos escriturveis(isto , passveis de serem traduzidos em termos de texto linear). Dito de outro modo, de nadaadianta assistir ao filme como realizao integral se s direcionaremos a anlise para o roteiroe dilogos que so sem dvida importantes mas que, certamente, no constituem toda a rea-lidade da fonte flmica a ser examinada.

    Uma metodologia adequada anlise flmica necessita ser complexa. Deve tanto exa-minar o discurso falado e a estruturao que se manifesta externamente sob a forma de roteiroe enredo, como analisar os outros tipos de discursos que integram a linguagem cinematogrfi-ca: a visualidade, a msica, o cenrio, a iluminao, a cultura material implcita, a ao cnica sem contar as mensagens subliminares que podem estar escondidas em cada um destes n-veis e tipos discursivos, para alm do subliminar que freqentemente se esconde na prpriamensagem falada e passvel de ser traduzida em componentes escritos.

    Para dar um exemplo significativo sobre a importncia de uma anlise pluridiversifi-cada para o caso do Cinema, a Histria registra diversos exemplos de crticas a poderes e sis-temas polticos que conseguiram atravessar sistemas de censura bastante rigorosos pelosimples fato de que os censores burocrticos eram desprovidos de uma cultura visual adequa-

    da para decifrar a ideologia de uma obra sem se ater meramente anlise superficial dos

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    componentes escritos de um filme (roteiro e dilogos, basicamente). este nvel superficialde anlise que precisa ser ultrapassado pelo estudioso do Cinema como objeto de significaocultural e poltica, seja este estudioso um historiador ou um pesquisador da Comunicao.

    Para superar limites deste tipo, a metodologia para anlise flmica deve ser acima de tudomultidisciplinar e pluridiscursiva.

    Em vistas disto, a metodologia utilizada para a anlise flmica deve considerar antes demais nada que a obra cinematogrfica dispe de determinado nmero de modos de expressoque no so mera contrapartida ou transcrio da escrita literria, mas que tm, ao contrrio, asua prpria especificidade.

    Uma dimenso fundamental dentro do feixe discursivo que integra a linguagem cine-

    matogrfica refere-se, naturalmente, ao discurso imagtico. Princpios metodolgicos anlo-gos aos que inspiraram os primeiros analistas modernos de documentao iconogrfica devemser, em uma primeira medida, considerados. Referimo-nos ao fato de que, tanto na iconografiacomo na imagem flmica, faz-se necessrio partir da imagem em si mesma ou seja, conside-r-la na sua especificidade. Dito de outra forma, no se deve buscar nas imagens somente oreflexo ou a ilustrao seja em forma de confirmao ou de desmentido de outro saber que o da tradio escrita. As imagens, enfim, devem ser consideradas como tais, a partir de sua

    natureza especfica, o que implica para o historiador, por exemplo, lanar mo de outros sabe-res para melhor compreend-las. Refora-se aqui, como sempre, a postura francamente inter-disciplinar que deve estar envolvida na metodologia de anlise flmica.

    A especificidade do discurso imagtico que se integra ao discurso cinematogrfico eaqui estaremos falando de imagens que se colocam em movimento, o que j traz por si novassingularidades naturalmente apenas um aspecto. O filme, como se disse, elaborado apartir de vrios substratos integrados. E preciso aplicar as diversas metodologias possveis a

    cada um desses substratos seja o das imagens (que podem ser imagens sonorizadas ou no-sonorizadas), o da trilha sonora, o do cenrio, o da linguagem da ao gestual e cnica, semcontar o substrato mais evidente do discurso falado que transparece atravs dos dilogos e daestruturao lgica que d forma ao roteiro. Trata-se, ento, de analisar densa e integradamen-te a narrativa, o cenrio, a escritura. Sobretudo, trata-se de aplicar metodologia de anlise srelaes possveis entre os componentes internos a cada um destes substratos, e s relaesdestes entre si.

    A compreenso de que cada tipo de registro discursivo que se integra obra flmicadeve implicar em uma postura analtica prpria, que leve em considerao as especificidades

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    do tipo de discurso (verbal, imagtico, musical, etc ...), deve tambm ser acrescida de umapreocupao com outro tipo de especificidades: o do gnero de cada obra cinematogrfica aser examinada. Tal como dissemos em pargrafo anterior, no importa se o filme documen-

    trio ou fico ele sempre ser um produto Histrico que permite uma determinada leituradesta mesma Histria. Mas preciso estar atento para a singularidade de cada gnero cinema-togrfico seja o documentrio, o filme de propaganda, a intriga autntica, a fico de ambi-entao histrica ou no. Cada um destes gneros ou qualquer outro possui, parte aquilo que tpico da obra flmica em sentido geral, a sua prpria especificidade discursiva.

    A mesma ateno metodolgica deve se direcionar para as modalidades que atraves-sam os gneros cinematogrficos. Um filme de fico, por exemplo, pode se apresentar como

    Drama, como Tragdia, como Comdia, e cada uma destas modalidades deve ser compreen-dida em sua prpria especificidade de modo a permitir uma aproximao metodolgica ade-quada. Uma Comdia, cujo objetivo declarado o de fazer rir, no pode ser analisada damesma forma que um Drama ou uma Tragdia.

    Voltaremos mais adiante com algumas exemplificaes relacionadas s modalidades egneros flmicos, mais particularmente abordando o caso dos filmes histricos e de suas rela-es com os vrios tipos de fontes historiogrficas disposio do roteirista. Por ora, ainda

    para discutir algumas questes de mtodo, vale lembrar que para alm do filme em si mesmo considerado como objeto esttico e como produto constitudo a partir de determinados subs-tratos que se interconectam na linguagem flmica a metodologia de anlise histrica quetoma para objeto a fonte flmica deve atentar muito sistematicamente para as relaes do fil-me com aquilo que no propriamente o filme. Assim, em torno do filme que se toma paraanlise, h que se considerar oautor , o sistema de produoque o consubstancia, o pblicoaquem se dirige e que reprocessa diversificadas leituras do filme consumido, acrtica que o

    avalia de um ponto de vista menos ou mais especializado, e oregime de sociedade e poder que constrange ou delimita as possibilidades de elaborao deste filme. A partir destes mlti-plos aspectos que conformam os lugares de produo, difuso e recepo da obra cinemato-grfica, torna-se ento possvel chegar no apenas compreenso da obra, mas tambm darealidade que ela representa.

    Resta dizer que preciso captar com mtodo no apenas o que intencional no docu-mento flmico, mas tambm aquilo que no-intencional, involuntrio, inconsciente, casual.Tomando-se por exemplo o gnero documentrio, e considerando-se hipoteticamente um fil-me que pretendesse registrar um determinado evento, o analista dever atentar para o fato de

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    que, se a cmera direciona necessariamente um determinado olhar para a realidade enfocada(e este olhar direcionado deve ser ele mesmo objeto da anlise), essa mesma cmera ir inevi-tavelmente captar involuntariamente muitos outros aspectos da realidade dentro da qual ocor-

    re o evento a ser filmado. Assim o evento a ser captado ser inevitavelmente invadido peloinesperado e pelo involuntrio, sem contar o automtico e o imaginrio que se podetornar perceptvel nos gestos, na indumentria do pblico indiferenciado que faz parte da ce-na, nos padres de comportamento que sero trazidos cena embora no constitussem inten-cionalmente o objeto da filmagem. Em suma, todo filme tem uma riqueza de significao queno percebida no momento mesmo em que ele feito, e o analista da fonte cinematogrficadeve estar preparado para captar estes aspectos e integr-los ao objeto de sua anlise.

    A ideologia, por exemplo, est sempre a escapar atravs desta fonte privilegiada que a obra cinematogrfica. Os extratos ideolgicos, naturalmente, podem ser decifrados a partirdos elementos aparentemente mais casuais, ou dos detalhes diversos. Neste sentido, possvelretomar as observaes de Marc Ferro20:

    [...] um procedimento aparentemente utilizado para exprimir du-rao, ou ainda uma outra figura (de estilo) transcrevendo um des-locamento no espao, etc., pode, sem inteno do cineasta, revelarzonas ideolgicas e sociais das quais ele no tinha necessariamen-te conscincia, ou que ele acreditava ter rejeitado

    Enfim, tanto o intencional como o no-intencional devem ser objetos da ateno da-quele que analisa a fonte flmica. Neste sentido, pode ser empregada para a anlise historio-grfica da fonte flmica uma espcie de contrapartida da chamada anlise intensiva ou dadescrio densa que tem sido empregadas pelos micro-historiadores e pelos antroplogosnos seus respectivos campos de investigao. Trata-se, ento, de direcionar ateno e mtodopara aspectos casuais, detalhes, indcios, dimenses da realidade flmica da qual freqente-mente no se apercebem mesmo os profissionais envolvidos com a sua produo.

    O Cinema na sua especificidade e em sua relao com outras artes

    Do que se disse acima sobre algumas questes de mtodo relativas anlise histricade filmes, pudemos ver que existem duas questes primordiais a serem consideradas antes daoperacionalizao de qualquer mtodo. De um lado, o Cinema introduz no mundo da cultura

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    uma linguagem nova, dotada de suas prprias singularidades. De outro lado, ele ponto deconfluncia de diversas outras linguagens para alm daquela linguagem Verbal-Escrita com aqual os historiadores esto to acostumados, o que implica tanto na necessidade de se conhe-

    cer cada um destes registros de comunicao (a visualidade, a sonorizao, a oralidade, a ce-nografia, a arquitetura, e assim por diante) como tambm na necessidade de se compreenderas relaes que podem ser estabelecidas entre a arte cinematogrfica e estes registros quandofora de sua aplicao mais propriamente integrada ao Cinema (por exemplo, no apenas o usoda msica no Cinema de modo a criar uma trilha sonora adequada, ou o uso da iconografiapara construir cenrios, mas tambm a possibilidade de a obra flmica citar intertextualmenteobras musicais e iconogrficas j existentes como se estivesse dialogando com elas). Vejamos

    todas estas questes por partes.Mencionamos no incio deste ensaio o fato de que o Cinema veio trazer uma lingua-

    gem nova e singular cultura miditica do mundo contemporneo. Iniciando-se em algumasde suas primeiras experincias como filmagem de um ambiente esttico, o cinema rapidamen-te evolui ainda em incios do sculo XX para a inevitvel descoberta de novos recursosque envolvem a filmagem da imagem em movimento, a mudana de cenas interrelacionadasem novas formas de narrativa, a montagem, e tantos outros fatores que vieram dotar o cine-

    ma de uma notvel singularidade.Nem sempre foi assim. Quando surgiu, o Cinema trouxe de imediato umatecnologia

    radicalmente nova, mas no ainda umalinguagemnova. Tal como ressalta Jean-ClaudeCarrire em seu livro sobre A Linguagem do Cinema, nos primeiros dez anos de sua existn-cia um filme consistia em um encadeamento de diversas tomadas estticas, dentro de umaviso teatral que mostrava uma seqncia ininterrupta de acontecimentos dentro de um en-quadramento imvel21. Ou seja, assistia-se a um filme neste primeiro momento como se assis-

    te a uma pea de teatro, e somente surgiu efetivamente uma linguagem nova quando os auto-res de filmes comearam a cortar o filme em cenas, dando origem aos procedimentos da mon-tagem e da edio. Neste ponto, o Cinema surge j como uma linguagem nova que necessitaser aprendida tanto pelos produtores como pelos receptores de filmes, pois o pblico precisa-va literalmente aprender uma nova gramtica que implicava em se acostumar a relacionarentre si cenas que no estavam mais ligadas atravs de uma seqncia ininterrupta. Jean-Claude Carrire registra um exemplo que ilustra perfeitamente a questo:

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    Um homem, num quarto fechado, aproxima-se de uma janela e olha para fo-ra. Outra imagem, outra tomada, sucede a primeira. Aparece a rua, onde ve-mos dois personagens a mulher do homem e o amante dela, por exemplo.Para ns, atualmente, a simples justaposio dessas duas imagens, naquela

    ordem, e at na ordem inversa (comeando na rua), revela-nos claramente,sem que precisemos raciocinar, que o homem viu, pela janela, a mulher e oamante na rua. Ns sabemos; ns o vimos no ato de ver. Interpretamos, cor-retamente e sem esforo, essas imagens superpostas, essa linguagem. Nempercebemos mais essa conexo elementar, automtica, reflexiva; como umaespcie de sentido extra, essa capacidade j faz parte do nosso sistema depercepo. H oitenta anos, no entanto, isso constituiu uma discreta mas ver-dadeira revoluo [ ... ]22

    O que Carrire ressalta no trecho acima fundamental para que compreendamos comoo Cinema comeou a constituir uma linguagem nova, bem diferente, por exemplo, da lingua-gem a que os espectadores j estavam acostumados com a sua arte irm, e muito mais velha: oTeatro. O espectador do teatro v as cenas uma atrs da outra, como se fosse um fio narrativonico, ou pelo menos blocos maiores de narrativas unidirecionadas. O expectador do Cinema,contudo, depara-se com cenas e tomadas que se alternam rapidamente, e que ele precisa corre-lacionar. Ele teve de adquirir um nvel de competncia que o habilitasse a uma nova leitura deimagens. Na cena acima descrita, ele precisa imediatamente compreender que a cena do ho-mem que olha pela janela e a cena seguinte, de um casal que se encontra na rua, esto relacio-nadas. Esse tipo de correlao pode parecer muito fcil para o espectador que j nasceu nomundo do Cinema e das novas mdias, mas para os espectadores da poca esta nova forma deler imagens e cenas precisou ser aprendida. Tanto que no princpio, era comum a figura dosexplicadores, que eram pessoas que ficavam ao lado da tela explicando o que acontecia.

    O Cinema, portanto, ao mesmo tempo em que avanou para um tipo de linguagembem diferenciada da narrativa teatral mais tradicional, precisou criar no seu pblico novascompetncias leitoras (ou novas competncias espectadoras). Os filmes, com o tempo, foramensinando ao pblico uma nova maneira de ler imagens em movimento e entender a sua inte-grao no interior de um sistema de cenas cortadas e de montagens que foi se sofisticandocada vez mais at atingir recursos como os recuos de tempo, a criao de efeitos expressivosatravs dos vrios tipos de tomadas de cmara e ngulos de viso, e assim por diante. Enfim,havia um novo cdigo a aprender.

    A nova linguagem trazida pelo Cinema ou a nova gramtica cinematogrfica, para

    utilizar uma expresso criada por Jean Epstein em 192623 inclua possibilidades discursivas

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    e expressivas at ento inimaginveis. O simples deslocamento do ponto de vista a partir dacmera podia criar espaos novos e situaes psicolgicas diferenciadas umas das outras. Po-dia-se utilizar a cmera focalizar um personagem de baixo para cima para fazer com que ele

    aparecesse ameaador e todo-poderoso, ou para ressaltar a exuberncia fsica de uma mulher,ou, ao contrrio, focalizar um personagem de cima para baixo para mostr-lo amedrontado,insignificante ou inexpressivo. Podia-se utilizar um tipo ou outro de iluminao de baixopara cima, de cima para baixo, em ngulo, com maior ou menor intensidade, com insero decor para ressaltar as rugas e as mas do rosto de modo a desenhar um personagem comodepressivo e aterrador ou, ao contrrio, de modo a mostr-lo suave ou complacente ao fazerincidir sobre ele uma iluminao diluda, suave e impressionista.

    Para alm dos efeitos de cmera, luz e cenrios, a mera disposio de cenas na sua re-lao umas com as outras podia criar efeitos e situaes diversas como as sensaes de avan-o ou recuo no tempo, ou de que se estava capturando os pensamentos, as lembranas ou asfantasias de um personagem. Se em uma cena um personagem observa um outro encolerizado,e na cena seguinte o personagem enraivecido aparece estrangulando o seu antagonista, cria-seuma associao entre estes dois eventos como se ele estivesse acontecendo no presente dofilme. Contudo, se em seguida a estas duas cenas volta-se situao original do personagem

    que olha encolerizado para o seu oponente, imediatamente a cena anterior do confronto fsi-co entre os dois personagens assimilada como um devaneio do personagem que desejariaestar estrangulando o seu oponente. Exemplos similares, poderiam mostrar como a simples justaposio de cenas pode transformar uma determinada cena em lembranas de um perso-nagem que remetem ao passado do filme.

    Recursos diversos de desintegrao da imagem, de desfocalizao, de flutuao da i-magem tambm entram nessa gramtica, que nos dias de hoje perfeitamente compreendida

    pelo espectador mediano de Cinema. Uma desfocalizao ou flutuao de imagens, por e-xemplo, pode ser utilizada como recurso para remeter aos pensamentos de um personagem ouao seu universo onrico. Uma seqncia de cenas onde um determinado personagem olha parauma rua, fitando a mulher amada, e subitamente v essa imagem se esvaecer at que a rua ficavazia, focalizando-se em seguida uma lgrima lhe foge dos olhos, compreendida imediata-mente pelo espectador como um conjunto de cenas em que o personagem esteve se lembrandode cenas de seu passado. Em suma, atravs da mera disposio de cenas, o autor de filmes

    pode sugerir a captura de todo um universo interior de seus personagens, de seu passado, deeventos que se deslocam no tempo, de estados emocionais diversificados. Tudo isso se tornou

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    possvel porque o Cinema construiu uma nova gramtica, formada por imagens, sinais, pa-dres de conexo entre as cenas, efeitos de foco, deslocamentos de cmera, tomadas a partirde vrios pontos de vista, tipos de iluminao e modos de justaposio de imagens.

    O Cinema pde mesmo, atravs de seus fantsticos recursos a servio de uma novagramtica, operar verdadeiros milagres at ento impensveis. Filmar o lento e gradual desa-brochar de uma flor, e depois passar estas imagens em cmera acelerada, permitiu ao homemcontemporneo enxergar o que at ento ningum jamais havia visto. A filmagem em cmeraacelerada ou em cmera lenta, por assim dizer, veio a permitir que a partir do Cinema o ho-mem se transformasse no senhor imaginrio do tempo. Ele poderia comprimir o tempo von-tade, estend-lo indefinidamente, interromp-lo subitamente ao congelar a imagem de um

    atleta em pleno salto, examinar em movimento lento os lances de uma partida de futebol queconduzem ao gol, voltar o tempo de trs para diante filmando ao avesso o milagre da vida. Damesma forma, o autor de filmes podia a qualquer instante imobilizar a cena transformando aimagem-movimento tpica do cinema em uma simples fotografia; ou, ao contrrio, exibir umasingela fotografia e de repente gerar vida trazendo-lhe novamente o movimento. O Cinema,enfim, no cessou de trazer inovaes a esta nova gramtica que comeou a ser montada des-de os anos trinta do sculo XX. E, a par disto, o seu pblico ia se educando em uma nova ma-

    neira de enxergar o mundo de imagens que o Cinema lhe oferecia.A constante recriao da linguagem cinematogrfica e das competncias leitoras de

    seu pblico, alis, no cessa de ocorrer. Alguns filmes americanos mais recentes, por exemplo como o caso de Matrix(2003) ensinam aos seus espectadores um modo de leitura quedeve ser mais rpido, mais imediato, mais gil no que se refere necessidade do espectadorcorrelacionar as cenas, sob o risco de perder o fio do sentido24. Ao mesmo tempo, existemoutros padres flmicos, trazendo outros modos rtmicos. Embora todos os autores de filmes

    lidem com recursos em comum que j fazem parte da arte flmica e de seu repertrio de pos-sibilidades a montagem, os usos da cmera, e assim por diante foroso lembrar que noexiste na atualidade uma nica linguagem flmica no que se refere a aspectos como o ritmo deleitura, o estilo, ou a concepo da obra. Para a questo do ritmo, compare-se por exemplo Matrixde Andy e Larry Wachowski (2003) comSonhosde Akira Kurosawa (1990), que nosapresenta um ritmo mais lento e em alguns episdios calcado em outro modo de leitura deimagens, quase pictrico25.

    De qualquer modo, imperativo reconhecer que o Cinema foi com o desenvolvi-mento de suas prticas e representaes construindo a sua prpria linguagem, dotada de

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    singularidades que so s suas. Isto no nos impede de ressaltar, evidentemente, que o Cine-ma no deixa de se constituir tambm na confluncia de vrias linguagens ligadas a outrasformas de expresso artstica que o precedem como a Msica, a Literatura, a Iconografia, a

    Fotografia, ou o Teatro. Isso se d mais claramente em dois mbitos principais. Por um lado oCinema vale-se, para a composio integral de cada uma de suas obras, destas vrias outrasformas de expresso artstica da Msica para a composio de sua trilha sonora, da Fotogra-fia como suporte para o dispositivo cinematogrfico, ou da Literatura, por exemplo, para ro-teirizar ou transformar em enredo algo que eventualmente j existia em forma de livro26. Poroutro lado, e de maneira nem sempre to bvia como este primeiro aspecto, o Cinema tambmse relaciona com estas vrias formas de expresses artsticas atravs do recurso s citaes.

    Por exemplo, pode ser discutido como registro inicial de citaes possveis para o au-tor de Cinema e portanto como um dos nveis de citaes que o historiador analista deveconhecer para empreender uma boa anlise o mbito das citaes relacionadas Iconografiaou Fotografia, isto , as citaes imagticas de que lana mo o autor de Cinema como umrecurso que obviamente no percebido pelo expectador comum, mas que pode ser percebidopelo espectador dotado de competncia mais especfica.

    Podemos destacar como exemplo um dos filmes que j foram citados neste ensaio. Di-

    versos analistas do filme Blade Runner ocuparam-se em decifrar algumas citaes iconogrfi-cas que aparecem nesta obra. Assim, por exemplo, alguns autores tm discutido a cena que,no filme, d origem ao processo de investigao que permite ao caador de andrides chama-do Deckard (interpretado pelo ator Harrison Ford) localizar os replicantes que deve extermi-nar. Ao revistar o apartamento de um replicante que teria assassinado um outro caador deandrides, e que seria um dos replicantes rebelados que se sabia terem chegado ao planetaTerra, o caador de andrides Deckard encontra uma fotografia que a pista introdutria para

    a busca que ir empreender. O enredo no importa tanto aqui, mas sim o fato de que, segundoos diversos analistas de Blade Runner , seriam claras as referncias desta e de outras cenas adois famosos quadros:O Casamento do Casal Arnolfini, do pintor quatrocentista Van Eyck, eUma Jovem Adormecida, do pintor barroco Vermeer27.

    As possibilidades de citao de obras iconogrficas pela arte cinematogrfica tm sidoexploradas com habilidade pelos autores de filmes. Um exemplo genial o episdioCorvos,do j mencionado filmeSonhos(1990) de Akira Kurosawa, no qual um personagem que con-templa um quadro de Van Gogh em um museu acaba entrando por este quadro e viajando pordentro de todo um mundo imagtico que reproduz as pinturas do artista holands.

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    Para alm das citaes possveis no campo das formas de expresso que lidam como aImagem como a Iconografia ou a Fotografia e para alm da prpria possibilidade inmerasvezes explorada de um filme fazer citaes de outros filmes atravs de cenas ou imagens mar-

    cantes, a arte cinematogrfica pode ainda trabalhar com inmeras citaes relativas Literatu-ra, arte com quem o Cinema mantm um estreitamento to antigo que, j em 1921, o cineastaJean Epstein sentiu-se motivado a escrever importante ensaio sobre o intercmbio entre asestticas do cinema e da literatura moderna28.

    Alm da Literatura, a arte cinematogrfica tambm tem investido em citaes relacio-nadas com a Mitologia, como ocorre por exemplo em Matrix(2003), que contm inmerascitaes deste tipo29. Estes registros intertextuais e intratextuais o dilogo de um filme com

    outros filmes, o seu dilogo com obras pertencentes a outros campos da criao artstica, eainda o dilogo de um filme com outras partes deste mesmo filme todas estas possibilidadesdevem ser conhecidas e consideradas pelos historiadores que analisam um filme ou que o to-mam como fontes para o seu trabalho histrico.

    O Cinema como representao histrica

    Dizamos ao princpio deste ensaio que um importante campo de interesse em tornodas relaes entre Cinema e Histria refere-se ao fato de que o prprio Cinema, atravs dosfilmes produzidos, presta-se tambm representao historiogrfica. Naturalmente que, paraadentrar a questo, importante aprofundar a reflexo a respeito do que so os filmes de His-tria, sempre lembrando que a Representao Historiogrfica no a prpria Histria, mes-mo no que concerne aos chamados documentrios histricos. Assim, tal como j se disse, de-

    vem ser consideradas como fontes flmicas interessantes para o estudo das relaes entre Ci-nema e Representao Historiogrfica no apenas os documentrios historiogrficos (repre-sentaes historiogrficas, propriamente ditas), mas tambm quaisquer filmes de ambientaohistrica, e neste caso se enquadram, para alm dos filmes histricos romanceados, mesmoos filmes de pura fico construdos sobre um contexto histrico bem definido. De fato, estesvrios tipos podem ser considerados em certa medida como um tipo de representao histri-ca atravessado pela fico (ou um tipo de fico atravessado pela representao histrica).

    Neste momento final, no intuito de iluminar os usos do cinema como meio mais diretopara a representao historiogrfica, examinaremos os gneros de filmes que atrs definimos,

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    em sentido mais amplo, como filmes de Histria, e que trazem no seu enredo e na sua tem-tica um fundo histrico que seja, quando no um projeto de representao da prpria Histriano que se refere a algum evento ou processo considerado. Os exemplos escolhidos neste mo-

    mento referem-se mais particularmente aos filmes histricos relacionados com a Histria doBrasil. Mostraremos algumas situaes bem distintas de filmes que pertencem a gneros ci-nematogrficos diferenciados, embora todos se refiram a algum processo, evento ou persona-gem da Histria do Brasil. Os filmes escolhidos para essa exemplificao metodolgica so: Jango (1984),Carlota Joaquina(1995), Xica da Silva(1976),Guerra de Canudos(1997), Memrias do Crcere(1983) ePra Frente Brasil(1983). Cada filme aqui tomado como e-xemplo, conforme se ver, corresponde a um tipo de representao historiogrfica distinta

    atravs da linguagem cinematogrfica. Jango (1984) o tpico exemplo de documentrio de cunho historiogrfico e polti-

    co30. Isto quer dizer que o filme se prope a fazer explicitamente uma representao historio-grfica dos processos e acontecimentos que pretende descrever no caso a Histria do Brasilperceptvel a partir da figura do ex-presidente da Repblica Joo Goulart. Este tipo de docu-mentrio, naturalmente, deve ser examinado como se examina uma montagem historiogrficaqualquer (um trabalho de historiografia, por exemplo), considerando-se, claro, as especifici-

    dades da prpria linguagem cinematogrfica e a necessidade de um certo vis narrativo que implcita a um tipo de filme que pretende alcanar o grande pblico. Jango, como qualquerdocumentrio elaborado com seriedade, construdo a partir de determinadas fontes. Isto noimpede, naturalmente, que o analista o avalie como construo historiogrfica, inclusive atra-vessada por uma ideologia que pode ser decifrada (mas que, involuntariamente, traz nas suasvozes internas diversos discursos polticos, e logo, novas ideologias na voz dos vrios perso-nagens que so expostos no filme).

    Muito diferente de Jango o filme Xica da Silva(1976). Este filme, como Jango, tam-bm foi construdo com apoio em fontes histricas. Na verdade, o filme foi construdo sobreuma nica fonte histrica: a Crnica de Joaquim Felcio dos Santos, um cronista da segundametade do sculo XIX, sobre a clebre personagem do Brasil escravocrata que ficou conheci-da como Xica da Silva. Pode-se dizer que este filme uma montagem livre, esteticamenteorientada (o objetivo mais entreter do que documentar) sobre uma crnica histrica. O filmesegue livremente, desta forma, o fio narrativo do prprio cronista do sculo XIX, mas des-construindo esta narrativa em vista de um resultado cinematogrfico. evidente que temosaqui um efeito de realidade distinto daquele que pretende obter o roteirista de Jango.

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    Guerra dos Canudos(1897) tambm um exemplo de narrativa cinematogrfica quese baseia em episdio retratado por uma fonte de poca, a crnica jornalsticaOs SertesdeEuclides da Cunha. Contudo, trata-se de uma elaborao mais livre, onde no seguido pro-

    priamente o fio narrativo do cronista. Alm disto, a fonte primria de referncia de outrocunho, que no a crnica tradicional, mas sim uma crnica jornalstica que intermescla tre-chos ensasticos bem fundamentados em documentao diversa. Mas por outro lado, temosuma diferena importante em relao aos filmes anteriores, que giravam em torno de umafigura histrica.Canudosno gira em torno da figura de Antnio Conselheiro tomado comoeixo narrativo central tem-se aqui uma narrativa multifocada a partir de diversos atores, in-clusive alguns construdos ficticiamente embora a partir de um contexto histrico mais rigoro-

    so. Trata-se, conforme se V, de uma representao histrica e cinematogrfica complexa.

    Outro filme histrico que se destacou nos ltimos anos, de teor completamente distin-to, foiCarlota Joaquina Princesa do Brasil(1995). Este filme o que poderamos chamarde fico histrica. Os personagens centrais tm uma existncia histrica concreta, mas o en-redo na verdade construdo com liberdade ficcional, embora seguindo determinados baliza-mentos histricos. Este filme na verdade foi elaborado a partir do Romance homnimo deJoo Felcio dos Santos. Esta obra em que se baseia enquadra-se no gnero literrio que podeser denominado romance histrico. O gnero cinematogrfico fico histrica, na verdade,corresponde precisamente ao gnero literrio conhecido como romance histrico, do qual aLiteratura nos d inmeros exemplos. No pode ser exigido, neste caso, uma fidedignidade qual teve de se ater o documentrio histrico Jango (que seria, grosso modo, a contrapartidade um ensaio de historiografia profissional).

    Exemplo singular o filme Memrias do Crcere(1983). Neste caso, temos uma nar-

    rativa cinematogrfica construda sobre uma narrativa memorialstica. O filme refere-se vidado escritor Graciliano Ramos, particularmente ao perodo de sua recluso priso por moti-vos polticos na ocasio do Estado Novo. Mas agora o texto bsico que informa o roteiro umlivro de Memrias, escrito pelo prprio Graciliano Ramos, e que recebe o mesmo ttulo. Te-mos ento mais um caso de obra cinematogrfica construda sobre uma nica fonte primriade natureza literria, mais especificamente um livro de memrias auto-referenciado (que mar-ca sua distncia em relao ao exemplo que j vimos anteriormente, e que era a fonte primria

    de natureza cronstica porm referenciada em um personagem que no se confunde com onarrador). claro que este tipo de representao historiogrfica traz consigo suas prprias

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    singularidades, e a obra flmica elaborada sobre este tipo de fonte literria tambm ter suasprprias especificidades.

    Um ltimo exemplo, completamente distinto dos anteriores, pode ser demonstrado

    com o filmePra Frente Brasil(1983). O que se tem aqui uma fico inteiramente livre so-bre um contexto histrico determinado: o da represso imposta pela Ditadura Militar duranteos chamados anos de chumbo da Repblica Brasileira. O objetivo central do filme denun-ciar as prticas militares e para-militares do perodo, cujo mais vergonhoso desdobramento foia tortura imposta contra os prisioneiros polticos. O filme, contudo, construdo em torno dafico de um inocente que teria sido confundido com um terrorista e que recebe em vista distoo tratamento que, historiograficamente se sabe, era dispensado aos presos polticos diversos.

    O personagem fictcio um indivduo comum, que poderia ser qualquer um da a sua foradramtica desde as primeiras cenas. Aqui, o que se tem uma ambincia histrica muito pre-cisa a dos tempos da cruel represso militar, contraponteada ironicamente pela euforia coma Copa do Mundo mas a narrativa construda de carter ficcional. Os personagens no sohistricos, embora a ambincia contextual o seja.

    Todos estes filmes so fontes em diversos sentidos. Eles so fontes para estudar o pe-rodo em que foram produzidos, permitindo decifrar ideologias e vozes sociais diversas. Mas

    so tambm fontes para o estudo dos tipos distintos de representaes historiogrficas, poiscada qual se refere de uma maneira especfica a algum elemento histrico. Por fim, todos es-tes filmes podem ser utilizados como instrumentos para a mediao na transmisso do conhe-cimento histrico (atravs do Ensino, por exemplo), seja para examinar os processos e eventosaos quais eles se referem no plano narrativo, seja para examinar as vises de mundo histori-camente localizadas que eles trazem ao nvel da produo do sentido. Ou seja, a partir destesfilmes possvel estudar tanto Histria como Historiografia.

    Estes exemplos, a ttulo meramente demonstrativo de suas potencialidades, do a per-ceber como importante compreender, para cada caso, o gnero de representao cinemato-grfica (o tipo de filme documentrio, fico, etc) na sua conexo com as modalidades derepresentao historiogrfica que so tomadas como fontes para a recuperao da poca e dosacontecimentos (uma crnica, uma obra de historiografia, fontes de poca).

    Cinema e Histria, enfim, esto destinados a uma parceria que envolve interminveispossibilidades. O Cinema enquanto forma de expresso ser sempre uma riqussima fontepara compreender a realidade que o produz, e neste sentido um campo promissor para a Hist-ria, aqui considerada enquanto rea de conhecimento. Como meio de representao, abre

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    para esta mesma Histria possibilidades de apresentar de novas maneiras o discurso e o traba-lho dos historiadores, para muito alm da tradicional modalidade da literatura que se apresen-ta sob a forma de livro. E, por fim, agora considerando a Histria como o vasto universo dos

    acontecimentos que afetam os homens ou que so por eles impulsionados, o Cinema apresen-ta-se certamente como um dos grandes agentes histricos da contemporaneidade. O Cinemainterfere na Histria, e com ela se entrelaa inevitavelmente.

    NOTAS:

    1 Jos DAssuno Barros Professor-Adjunto da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, nos cursos deGraduao e Ps-Graduao em Histria; Professor-Colaborado no Programa de Ps-Graduao em HistriaComparada da UFRJ; Doutor em Histria Social pela Universidade Federal Fluminense.2 Sobre as possibilidades de relacionar Cinema e Ensino de Histria, veja-se J. E. MONTERDE, Historia, cine yenseanza. Barcelona: Laia, 1986.3 alis interessante perceber que desde a sua origem o Cinema, nas mos dos prprios irmos Lumire, j mos-trava este caminho de estreitamento de relaes com a Histria atravs de filmes que exploravam a possibilidadede registrar cenas da realidade vivida. Um exemplo a pelcula La sortie du train de la ciotat (1895), onde seregistra a cena da sada de operrios de uma fbrica, ao final do expediente.4 Marc Ferro j observava a este respeito: Paralelamente, desde que o cinema se tornou uma arte, seus pioneirospassaram a intervir na histria com filmes, documentrios ou de fico, que, desde sua origem, sob a aparnciade representao, doutrinam e glorificam (Marc FERRO,Cinema e Histria, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992,p.13).5 Em Bowling for Columbine(2002), a pretexto de investigar a fascinao dos americanos pelas armas de fogo,Michael Moore questiona a origem dessa cultura blica e busca respostas visitando pequenas cidades dos Esta-dos Unidos, onde a maior parte dos moradores guarda uma arma em casa. O ponto de partida o colgio Colum-bine, na cidade de Littleton, onde dois adolescentes utilizaram as armas dos pais para matar 14 estudantes e umprofessor no refeitrio. / EmFahrenheit 9/11(2004), a pretexto de investigar como os Estados Unidos se torna-ram alvo de terroristas por ocasio dos eventos ocorridos no atentado de 11 de setembro de 2001, encaminha-se adenncia de uma rede de poderes polticos e econmicos que entretecida atravs de paralelos entre as duasgeraes da famlia Bush que j comandaram o pas, discutindo-se ainda as relaes entre o atual Presidenteamericano, George W. Bush, e Osama Bin Laden.6 Aqui poderemos importar para a compreenso da linguagem flmica, e das prticas que a acompanham, todauma abordagem dos sistemas de Comunicao e da anlise de discursos que j vem avanando bastante no mbi-to da lingstica e da semitica. Ser possvel estabelecermos, para o discurso mltiplo do Cinema, um paralelocom o que disseram sobre os discursos da escrita e da oralidade estudiosos como Bakhtin e Paul Zumthor, queno deixam de observar a todo instante os modos complexos como o receptor inscreve-se no momento mesmo daproduo de um discurso. Sobre isto veja-se as obras de Bakhtin Marxismo e Filosofia da Linguagem(1981) eQuestes de Esttica e de Literatura(1983); e ainda o clssico de Paul Zumthor sobre o mundo medieval daoralidade ( A Letra e a Voz, 1993).7 Blade Runner filme de Ridley Scott produzido em 1982 com base no romance de Philip K. Dick traz umaviso apocalptica ambientada no incio do sculo XXI, poca em que uma grande corporao havia desenvolvi-do um andride que mais forte e gil que o ser humano. Estes replicantes eram utilizados como escravos nacolonizao e explorao de outros planetas, at que um grupo dos robs mais evoludos provoca um motim em

    uma colnia fora da Terra, e a partir deste incidente os replicantes passam a serem considerados ilegais na Terra.A partir de ento, policiais de um esquadro de elite, conhecidos como Blade Runner , so orientados para exter-

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    minar qualquer replicante encontrado na Terra. At que, em 2019, quando cinco replicantes chegam a Terra, umex-Blade Runner encarregado de ca-los.8 No filme Blade Runner , os replicantes no possuem memria, visto que j nascem prontos, preparados que sopara durarem apenas quatro anos. No caso da replicante mencionada (Rachel), tratava-se ainda de um caso espe-cial: uma replicante que fora programada para pensar que era humana, e que por isso possua uma memria im-plantada que acreditava corresponder a vivncias efetivas (e que era reforada por fotografias que ela possua eque acreditava serem fotos suas de infncia). O filme deixa no ar, alis, a possibilidade de que o prprio Deckard(o caador de andrides) poderia ser ele mesmo um replicante que acreditava ser humano, tal como a replicanteRachel. Como saber, enfim, se as memrias que possumos so realmente nossas, correspondentes a experinciasefetivas que um dia foram vividas por ns (?) tal a reflexo percorrida nas cenas de Blade Runner que evo-cam as relaes dos personagens humanos ou replicantes com a Memria. A este propsito, cumpre lembrarque Ridley Scott procurou dotar seu filme de uma srie de ambigidades, permitindo que dele surjam diferentesleituras.9 Neste sentido, Blade Runner prenuncia uma discusso sobre o verdadeiro estatuto da realidade que mais tardeseria a temtica de base de outro grande marco do Cinema Americano, o filme Matrix(2003).10 Jean EPSTEIN, "O Cinema e as Letras Modernas" (1921) In: XAVIER, Ismail (Org.). A Experincia do Ci-

    nema. Rio de Janeiro: Graal, 1991.11 Jean RENOIR,Escritos sobre o Cinema: 1926-1971, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.12 (1) Serguei EISENSTEIN, A Forma do Filme,Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1990.(2) Serguei EISENS-TEIN,O Sentido do Filme.Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1990.13 Jean-Claude CARRIRE, A Linguagem Secreta do Cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.14 Franois TRUFFAUT,Os filmes de minha vida.Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1989.15 Luis BUUEL, Meu ltimo suspiro, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.16 Frederico FELLINI,Fellini por Fellini, Lisboa: Don Quixote, 1985.17 Frederico FELLINI,Eu sou um grande mentiroso, entrevista a Damien Pettigrew, Rio de Janeiro, Nova Fron-teira, 1995.18 Franois TRUFFAUT.Truffaut / Hitchcock Entrevistas. Brasiliense, So Paulo, 1986.19 J nem mencionaremos a vasta literatura ensastica e de crtica cinematogrfica que trazem a nu as diversasrepresentaes. vises de mundo e anlises individuais sobre o cinema ou sobre filmes especficos, e que podemir desde as obras filosficas de Gilles DELEUZE at as crnicas dirias sobre a produo flmica que so publi-cadas nos peridicos todos os dias.20 Marc FERRO, op.cit., p.16.21 Jean-Claude CARRIRE, A Linguagem Secreta do Cinema, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995, p.14. / Jean-Claude Carrire (1931 - ...) roteirista de diversos filmes importantes do Cinema Europeu, entre os quaisOTambor (1979), Brincando nos campos do Senhor (1991), A Bela da Tarde(1966),O Fantasma da Liberdade (1973) eEste obscuro objeto do desejo(1977) estes trs ltimos em colaborao com Lus Bruuel e tambmde alguns roteiros que investem na relao com a Histria, como Danton o processo da Revoluo(1982) eO Retorno de Martin Guerre(1993), em parceria Daniel Vigne.22 Jean-Claude CARRIRE, op.cit., p.15.23 Jean EPSTEIN, Le Cinematographe Vu de lEtna Incrits sur le Cinma, Tome I, 1927-1947. Cinma Club / Seghers, Paris : 1974, p.131-168.24 O enredo de Matrixgira em torno de um personagem chamado Thomas Anderson, que um jovem programa-dor de computador que mora em um cubculo escuro e que freqentemente atormentado em seu sono noturnopor estranhos pesadelos nos quais encontra-se conectado por cabos em um imenso sistema de computadores dofuturo. Em todas essas ocasies, acorda gritando no exato momento em que os eletrodos esto para penetrar emseu crebro. medida que o pesadelo se repete, Anderson comea a ter dvidas sobre a realidade. Por meio doencontro com dois personagens misteriosos Morpheus e Trinity Thomas terminar por descobrir que , assimcomo outras pessoas, vtima do Matrix, um sistema inteligente e artificial que usa os crebros e corpos dos indi-vduos para produzir energia e que enquanto isso manipula a mente das pessoas, criando para eles a iluso de ummundo real em que estariam vivendo.25 Sonhosapresenta oito episdios, que no tm necessariamente relao uns com os outros, embora alguns pos-sam apresentar uma mesma questo motivadora de fundo, como o caso dos episdiosO Demnio Choroe

    Monte Fijii em Vermelho, que se relacionam claramente ao trauma coletivo das bombas de Hiroshima e Nagasa-ki. O mais famoso dos episdios deSonhos o que se chamaCorvos no qual um homem, ao admirar em ummuseu um quadro de Van Gogh, v-se levado para dentro da obra. Aps passear por entre cenrios construdos

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    habilmente com as pinturas do artista holands ao som de um Preldio de Chopin o personagem ir logoencontrar o prprio pintor e travar um rpido dilogo com ele.26 As relaes entre Cinema e Pintura foram estudadas por Jacques AUMONT emO Olho Interminvel [Cinemae Pintura](So Paulo: Cosac & Naify, 2005).27 1 VAN EYCK,O casamento do casal Arnolfini,leo sobre madeira, 81.8 x 59.7 cm, London: National Gal-lery. 2 VERMMER.Uma jovem adormecida, 87x76, 1657, New York: Metropolitan Museum. A referncia aoquadro de Van Eyck famosa pintura a leo em que um pequeno espelho preso parede revela a presena de umobservador para alm do casal que est sendo retratado aparece atravs de uma fotografia que o investigador (ocaador de andride) encontra no apartamento de um replicante. Atravs de uma imagem percebida em um pe-queno espelho captado por uma fotografia, o investigador consegue precisamente perceber a presena de umapessoa que permitir dar continuidade sua investigao. Para citar as palavras de uma das analistas de Blade Runner , o caador de andrides Deckard com o auxlio de recursos computacionais que aparecem na cena emque disseca a fotografia consegue literalmente encontrar uma figura escondida na reentrncia de um quadro(Elissa MARDER, Blade Runners Moving Still InCamera obscura, n. 27, p. 88-107, 1991, p.102).28 Jean EPSTEIN, "O Cinema e as Letras Modernas" In: XAVIER, Ismail (Org.). A Experincia do Cinema. Riode Janeiro, Graal, 1991.29

    Vrias citaes de Matrixaparecem atravs do nome de seus personagens ou em detalhes e situaes especfi-cas. Morpheus, o lder de humanos rebelados que se empenha em despertar o personagem Neo para o fato de quea realidade em que ele vive ilusria, o nome do deus grego do sono. Neo costuma guardar seu dinheiro dentrode um livro Simulacro e Simulao, do filsofo Jean Baudrillard o que possui evidente relao com o temado filme. Em determinada cena, Neo segue uma instruo que remete ao coelho branco do livro Alice no Pasdas Maravilhasde Lewis Carrol, que tambm est presente em diversas outras citaes. Existem ainda as cita-es que remetem a outros filmes, como o filme expressionista Metrpole, de Fritz Lang. A lista de citaespresentes em Matrixseria interminvel, e vai de Plato at as referncias bblicas.30 O gnero de filme categorizado como Documentrio no necessariamente o documentrio historiogrfico surge de maneira mais consolidada na Inglaterra nos anos 1930 com o trabalho de John Grierson (1898-1972) sendo o seu filme Drifters(1929) a obra que marca o movimento documentarista britnico. Uma curiosidade que no seu texto First principles of documentary, Grierson definiu o documentrio como tratamento criativoda realidade (HARDLY, Forsyth,Grierson on documentary, Los Angeles: University of Califrnia Press, 1966,p.145-156). Destaque-se ainda que desde os irmos Lumire que filmaram entre 1895 e 1896 pequenas pelcu-las como A Sada da Fbricaou A Chegada do Trem tinha-se j um embrio do gnero documentrio, consi-derando-se ainda que, em seguida, j no incio do sculo, diversos operadores empenharam-se em filmar atuali-dades, noticirios ou cenas de viagens.

    R E F E R N C I A S B I B L I O G R F I C A S

    Fontes Flmicas citadas neste ensaio:

    1 Bowling for Columbine(EUA: 2002). Direo: Michael Moore. Produo: Charles Bishop, JimCzarnecki, Michael Donovan, Kathleen Glynn e Michael Moore. Roteiro: Michael Moore. Dis-tribuidora: Metro-Goldwyn-Mayer / United Artists. Modalidade: Documentrio. Durao: 120minutos.

    2 Fahrenheit 9/11(EUA: 2004). Direo: Michael Moore. Produo: Charles Bishop, Jim Czarnec-ki, Michael Donovan, Kathleen Glynn e Michael Moore. Roteiro: Michael Moore. Distribuido-

    ra: Metro-Goldwyn-Mayer / United Artists. Modalidade: Documentrio. Durao: 112 minutos.

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    3 Blade Runner (EUA: 1982). Direo: Ridley Scott. Produo: Michael Deeley. Roteiro: HamptonFrancher e David Webb Peoples, baseado em livro de Philip K. Dirk. Distribuidora: ColumbiaTristar / Warner Bros. Modalidade: Fico Cientfica. Durao: 118 m.

    4 Cruzada(Kingdom of Heaven) (EUA: 2005). Direo: Ridley Scott. Roteiro: Ridley Scott. Distri-buidora: Fox Films. Modalidade: Drama. Durao: 145 minutos.5 Gladiador (EUA: 2005). Direo: Ridley Scott. Produo: David H. Franzoni, Steven Spielberg e

    Douglas Wick. Roteiro: David Franzoni, John Logan e William Nicholson. Distribuidora: Dre-amWorks / Universal Pictures. Modalidade: pico. Durao: 155 m.

    6 Matrix(EUA: 2003). Direo: Andy Wachowsk