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SEPHIS CENTRO DE ESTUDOS AFRO- ASIÁTICOS Boubacar Barry Senegâmbia: O Desafío da História Regional

Boubacar Barry

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  • SEPHISCENTRO DE ESTUDOS AFRO-ASITICOS

    Boubacar Barry

    Senegmbia:O Desafo da Histria Regional

  • copyright Boubacar Barry, 2000

    Published by the South-South Exchange Programme for Research on the History ofDevelopment (SEPHIS) and the Centro de Estudos Afro-Asiticos, UniversidadeCandido Mendes, Brazil. Amsterdam/Brazil, 2000.

    Printed by Vinlin Press Sdn Bhd, 56 1st Floor, Jalan Radin Anum 1, Bandar BaruSeri Petaling, 57000 Kuala Lumpur, Malaysia for Forum, 11 Jalan 11/4E, 46200Petaling Jaya, Selangor, Malaysia.

    This lecture was presented by Boubacar Barry (Universidade Cheikh Anta Diop Dacar, Senegal) during a lecture tour in Brazil in 2000 organized by SEPHIS andCEAA.

    Addresses:

    SEPHIS CEAA

    International Institute of Social History Centro de Estudos Afro-AsiticosCruquiusweg 31 Universidade Candido Mendes (UCAM)1019 AT Amsterdam Praa Pio X, 7 stimo andarThe Netherlands 20040-020 Rio de Janeiro

    Brazil

    email: [email protected] email: [email protected]

  • Contents

    1. Reflexo sobre os discursos histricosdas tradies orais em Senegmbia 5

    A gnese das tradies orais na senegmbia 6A fixao das tradies orais 13Discurso histrico e nacionalismo 20Discurso histrico e ideologia nacional 27Concluso 33

    2. Escrevendo Histria na frica depois daIndependncia: O Caso da Escola de Dakar 35

    A escola de dakar e o legado do passado 36A escola de dakar e o movimento nacionalista de

    independncia 41A escola de dakar e a ideologia nacional 54Concluso 63

    3. Histria e percepo das fronteiras na fricanos sculos XIX e XX: os problemas daintegrao africana 65

    Introduo 65Os legados do passado 66Reestruturaes do espao ocidental africano

    no sculo XIX 69As fronteiras coloniais e a desestruturao do

    espao ocidental africano 71Fronteiras e construo do estado-nao 74Fronteiras e integrao regional 77Concluso 84

  • 1. REFLEXO SOBRE OS DISCURSOS HISTRICOSDAS TRADIES ORAIS EM SENEGMBIA*

    5

    Em seu ltimo romance, Cheikh Hamidou Kane assim definiu opapel do gri, guardio das tradies orais nas sociedadessenegambianas: o silncio sua prova. Para exprimir a raa semescrita, eles cavaram, e at pilaram o silncio, que permaneceuintacto, prendendo-os nas muralhas de sua massa obscura. Nosilncio cavaram grutas de ritmos, relmpagos luminosos deguitarra, profundos vales de lendas. Durante milnios, antes que ofio da escrita internamente e por todos os lados costurasse o mundonegro a si mesmo, os gris, por meio da voz e dos instrumentosque imaginaram, foram os demiurgos que construram essemundo, e suas nicas testemunhas. Eles o exaltaram, encheram dedignidade, de peso, dizem, o elevaram acima de si, suspenso noscampos de batalha, preservado na glria e na tradio. Essa obra,a concluram contra o silncio e o esquecimento, contra o tempodestruidor. Tambm Farba Msi Seck, gri dos Diollobe do FuutaToro conhecia a fora do silncio.1

    Assim, a dupla funo do gri era romper o silncio doesquecimento e exaltar a glria da tradio. Essa histriaconstruda em cima do aprendizado da tradio oral transmitidade gerao em gerao foi nos ltimos anos aprofundada peloshistoriadores modernos que aprenderam nas universidades aescrever a histria com base no confronto dos documentosescritos com os documentos orais. Mas ns temos hoje a sensaode que esses historiadores privilegiaram as fontes escritas, cujasinformaes foram simplesmente corrigidas ou confirmadas pelastradies orais. Os historiadores, na maior parte dos casos, noanalisaram suficientemente a lgica interna dessas fontes oraiselas prprias como um outro discurso histrico que teria sidotransmitido com o objetivo bastante preciso de contar a Histria.

    Este artigo foi apresentado na oficina internacional Words and Voices: CriticalPractices of Orality in Africa and in African Studies, realizada no Centro deEstudos e conferncias de Bellagio, na Itlia, em 24-28 de fevereiro de 1997.* A Mamadu Diouf, cujo artigo Reprsentations historiques et lgitimits

    politiques au Sngal 1960-1987, muito inspirou esta reflexo.1 Cheikh Hamidou Kane, Les Gardiens du Temple.

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    A propsito, ser bom ver como a sociedade, globalmente,reativa ou no as tradies orais para responder s necessidadesdo momento ou como essas mesmas sociedades confinam aosilncio aspectos inteiros de sua histria pelas necessidades dacausa. As sociedades de Senegmbia so objeto de dois discursoshistricos paralelos que se interpenetram s vezes, mas quepodem tambm estar lado a lado sem se tocar, pondo em exergo odifcil ofcio de historiador numa sociedade oral como a nossa, quefoi colocada entre parnteses durante um sculo de colonizao.

    A GNESE DAS TRADIES ORAIS NA SENEGMBIA

    A propsito do Galam, em seu livro, Les portes de lor, AbdoulayeBathily nos d explicaes sobre o duro aprendizado das tradiesorais em Gajaaga. Segundo Mamadu Talibe Sisoxo, nosso mestrenos faz sentar em torno dele. Manda que levantemos. Quandoestamos todos de p, nos d uma haste de milho. Ento comea afalar. Recita-nos trs falas (passagens). Diz-nos: esta noite,aprendam-nas. Recitem-nas para si mesmos no decorrer da noite.No dia seguinte, ao levantar, os rene e interroga sobre o queaprenderam na vspera. Vocs o recitam para ele. Depois determinado, ele lhes d ainda outras falas (passagens).

    Todo dia comeamos a rcita desde o incio at o ponto emque paramos na vspera, e isso durante sete anos. Uma mesmafala que vocs aprendam durante sete anos no pode escapar devocs. Ns tivemos sucessivamente durante os sete anos trsmestres, mas cada um deles nos fez reaprender do comeo at ofim. Esses mestres foram Tamba Waranka durante trs anos,Dawda durante dois anos. Todos dois so Sissoxo. Meu pai Talibidurante dois anos. No todo, d sete anos.2

    Esse duro e longo aprendizado testemunha a importncia dogri como detentor apropriado das tradies orais. Niane Djibril,na Epopia Mandinga de Sundjata confirma esse importante papeldo gri na conservao e transmisso das tradies orais. Eu sougri. Sou Djeli Mamadu Kuyat, filho de Binton Kuyat e de Djeli

    2 Bathily, Abdoulaye, 1989, Les portes de lor, Le Royaume du Galam, VIII-XVIII sicle, Paris, lHarmattan, p. 28.

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    Kedian Kuyat mestre na arte de falar. H tempos imemoriais osKuyat esto a servio dos prncipes Keita de Mandinga. Nssomos os sacos de palavras, somos sacos que encerram ossegredos muitas vezes seculares, somos a memria dos povos,pela palavra damos vida aos feitos e gestos dos reis diante dasjovens geraes. Minha palavra pura e destituda de todamentira, a palavra do meu pai: a palavra do pai do meu pai.3

    Essa instruo, bem como a transmisso do saber, estcodificada no seio da casta dos gris, que Sory Camara chamajustamente de gente da palavra. O sistema endogmico, que relegao gri casta inferior dos amakala, explica o misto de desprezoe medo de que esses personagens so objeto. Mas isso se explicaainda por seu dom da palavra; desdobramentos oratrios, canespicas e genealgicas, cantos lricos e sobretudo pelo monoplioque exercem enquanto guardies dos segredos do passado.

    Com esse fato, seu comportamento cotidiano, sua linguagemhabitual, suas canes no apenas lembram aos nobres aquilo quedevem se esforar para ser, mas ainda, e talvez seja esse o aspectomais interessante da questo, oferecem o espetculo de um grupode referncia negativo. Sua funo tambm o desenvolvimentoextraordinrio de estruturas de mediao que restabelecem acomunicao numa sociedade onde as relaes sociais parecemtodas marcadas por consideraes de hierarquia, autoridade,etiqueta, deferncia e reverncia.4

    Os gris, enquanto detentores da tradio oral, conservarame transmitiram de gerao em gerao a grande gesta de Mali eem particular a epopia de Sundjata, glria de Mali, publicada naforma de diversas verses por Niane Djibril Tamsir e recentementepor Yussof Tata Ciss e Wa Kamissoko. Cadeia de conhecimentoque se pode qualificar de inicitico, o mito fundador do imprio deMali conservado intacto, apesar das vicissitudes desse imprio.Guarda-se intacta como uma rocha a lembrana de Sundjata. WaKamissoko se orgulha de estar ligado a seus ancestrais, osKamissoko Dorba, que foram as testemunhas oculares do evento

    3 Niane, Djibril Tamsir, 1960, Sundjata ou lEpope Mandingue, PrsenceAfricaine, pp. 9-10.

    4 Camara, Sory, 1992, Gens de la Parole. Essai sur la contribution et le rledes gris dans la societ Malik, Paris, Karthala, p. 12.

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    que fez Mande entrar para a histria. Alm disso, eles foram osconfidentes e os cantores dos reis mais valorosos daquele pas. Otradicionalista do verbo puro e poderoso se orgulhava de apresentaro essencial da herana legada pelos ancestrais, de perpetuar ahistria, cantando-a.

    Wa Kamissa tambm sabia contar desse pas, seus rios ecolinas, seus deuses, suas instituies, seus mitos, suas lendas,sua histria, seu penar, suas esperanas. Compreender por dentroporque a sociedade mandinga Wa era excelente em diversosdomnios do saber tradicional, inclusive no da mitologia, dacosmogonia e dos signos grficos, se diz, est reservado para osiniciados das grandes djo, sociedades de iniciao mandingas, emparticular, os do komo.

    Mas esse saber tem um carter sagrado e, em conseqncia,sua transmisso tem sempre um lado secreto, que o contador estencarregado de guardar. H sempre uma maneira de dizer as coisas.Cada palavra tem um outro sentido, uma outra significao. WaKamissoko tinha aceitado colocar disposio da pesquisa oessencial do saber do qual era depositrio sem por isso trair oManden ou rasgar o vu do segredo que deve continuar a protegero domnio do sagrado. Resumindo a funo do gri, Yussuf TataCiss diz de Wa Kamissoko que a palavra Djali, gri, constitua,em sua opinio, o mais belo ttulo que o Manden deu a um gruposcio-profissional, pois significava saber discernir a verdade esaber aceit-la custe o que custar; saber dizer a verdade em todolugar e a todos; levar os homens a trabalhar na honra e nadignidade; contar as coisas antigas, ou seja, a histria; cantar osgrandes feitos dos bravos e dos justos; denunciar os vcios dosladres e dos tratantes; divertir o pblico fazendo msica,cantando e danando; celebrar as festas e as cerimnias.

    Suas narrativas mticas ensinam sobre a origem das coisas.Essas narrativas trazem dados preciosos sobre as civilizaesmandinga, ao mesmo tempo em que revelam os laos indiscutveisentre estas e as civilizaes do antigo Egito. Tratam dos animaissagrados, divindades tutelares e objetos culturais e habituais comoo Wagadu Sa ba, a grande serpente tutelar do wagadu que dprosperidade. Atribui-se a ela a origem do ouro de Wagadu e

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    Manden. Com efeito, comum na narrativa histrica mandinga sefazer constantemente referncia lenda e at mesmo ao mitocomo elemento de legitimao ou autentificao de uma situao,de uma formao ou de explicao de um evento.

    Assim, Sundjata Keita, fundador do imprio de Mali, ocupaum lugar excepcional. Nascimento milagroso, infncia difcil,exlio distante e reino feito de grandeza e de esplendor. Nessanarrativa, a lenda o disputa com a epopia e a histria. Sundjataa aparece como sendo o libertador de Manden, o imperador querealiza o programa inicial de seu rival Suma Woro: a abolio daescravido e do trfico nos seus Estados; o chefe poltico quetornou seu pas confivel, o patriota ardoroso que abre Manden aoprogresso, em suma, o heri por excelncia, Simbo, cuja memriapermanece surpreendentemente viva no esprito dos Malinks eque permanece para todos a figura mais ilustre da histriamedieval da frica Ocidental.

    Mas o homem que detm tanto saber est consciente de seuslimites quando diz: no todo dia que o homem domina seu serntimo e sua cincia. Quando estou feliz e quando sinto que aquelesque me ouvem esto atentos, portanto interessados, volto a ser eumesmo: ento encho todo recipiente em que possam me colocar.5

    Como no caso de Chaka, a epopia de Sundjata o que uneo homem ao poder da magia, que deixa entrever a face dos deusespor trs da marca dos homens. tambm a epopia de um herique simboliza o povo ao nascer e seu destino at a morte. A belezadessa linguagem vem antes de tudo dessa unio com a beleza davida quando tudo comeo, nascimento.6

    O primeiro comentrio a respeito dessa trajetria da tradiooral a importncia atribuda ao mito fundador dos reinos. Sundjata,assim como Chaka para os zulus, ocupa um lugar privilegiado e notem ainda rival nas tradies orais mandingas. O mesmo acontececom Ndiadyan Ndiaye da Confederao do Jolof para os Wolofs,com Koly Tenguela de Fuuta Toro para os Tuculeurs. Mesmoquando imitadores iniciaram aes de grande envergadura, atradio tenta relacion-los com o pai fundador. o caso de

    5 Yussuf Tata Ciss, Wa Kamissoko, 1988, La grande geste du Mali, desorigines la fondation de lEmpire, Paris, Karthala, pp. 1-36.

    6 Thomas Mofolo, Chaka.

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    Tirimakhan, o conquistador de Kaabu que, com sua ao militar,conseguiu a expanso de Mali na direo oeste, onde a tradiode Sundjata ainda est mais viva, para justificar sua conquista.Todos os dirigentes de Kaabu, at o ltimo soberano, que faleceuem 1867 nas chamas da batalha de Kansala, tentam ligar-se aomito fundador de Sundjata por sua bravura sem igual.

    Samba Gelaajo Jeegi, o prottipo do prncipe ceddo, serelaciona com o mito fundador do reino Denyank encarnado porKoly Tenguela. Samba Gelaajo Jeegi (1725-1731) o prottipo dosenhor da guerra, cujas exploraes, gosto pelo risco, temeridadee coragem alimentam as narrativas lendrias dos gris de FuutaToro. Samba mo lamotako, o pequeno Samba, que no reina (porter usurpado o poder pela fora, sem ter sido entronizado) comsua clebre gua Umulatum e o famoso fuzil, Bubu Lowake (Bubuque no se carrega) simboliza ao que tudo indica a violncia navida poltica de Fuuta Toro. Samba Gelaajo Jeegi o chefe ceddopor excelncia, aquele que, com seu exrcito de Sebbe, providode armas de fogo, capaz de entregar-se a 45 batalhas duranteseu reinado, ao som dos tants de sangue (bawdi peyya yiyan) edos cantos de guerra ou vozes de sangue (dadde yiyan). Essaevocao potica da gesta ceddo atravs da epopia de SambaGelaajo Jeegi ainda cantada pelos Sebbe em seus cantos deguerra Gumbala ou Ienngi acompanhados de tants sangrentos ede vozes de sangue. O Gumbala, hino bravura e coragem ,antes de tudo, o canto pico da morte, no qual o ceddo assumeseu destino de guerreiro, sua fidelidade aos ancestrais e tica desua casta. Assim, o que acima de tudo surpreende no Gumbala apoesia viril, feita de violncia e de morte, cavalgada fantstica edesmedida. A poesia do Gumbala uma poesia do macabro, umhino ao guerreiro, ao cavalo, ao fuzil e lana.

    Aquele o homem que dizia:pelas oraes de minha mepelas oraes de meu paino me matem por meu Deus com morte vergonhosaa de morrer em minha camaentre o choro das crianase o gemido dos idosos.

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    Do mesmo modo, os Ienngi, cantos unicamente cantadospelas mulheres Sebbe na ocasio dos casamentos ou circuncises,so canes hericas evocando o desprezo pela morte e asalvaguarda da honra. uma grande comunho para reafirmar queos futuros esposos pertencem casta dos Sebbe e reconfirmar osvalores que devem perpetuar. Entretanto, essa poca de SambaGelaajo Jeegi infelizmente evocada fora de seu verdadeirocontexto histrico, dominado pela violncia nascida do trficonegreiro e que explica em definitivo a emergncia desse tipo desenhores da guerra alimentada pela tica ceddo.7

    Mas isso no quer dizer que a tradio oral no leve emconta as rupturas, mudanas profundas de regime poltico, queesses imprios ou reinos conheceram depois do desaparecimentodo fundador do imprio no caso de Mali, Sundjata; do impriode Jolof, Ndiadyan Ndiaye; do imprio Denyanke, Koly Tenguela.As grandes rupturas so ideologicamente levadas em conta comotentativa de criao de um novo mito fundador e isso visvelpara os acontecimentos mais recentes, nos sculos XVII e XIX,dos quais temos mais informaes tanto nas fontes orais como nasfontes escritas europias ou africanas. Essa ruptura na narrativahistrica marcada sobretudo pela islamizao e a implementaode novos regimes teocrticos baseados no Islo. Essa ruptura deregime intervm freqentemente em seguida a revolues armadase raramente de maneira pacfica, dando lugar a diferentes formasde ocultao ou interpretao do passado. Passa-se da reescritatotal desse passado ao esquecimento ou ao silncio que tende aengomar a histria do regime anterior para criar um novo mitofundador.

    sintomtico que o Mansa Kaku Mussa de que tanto asfontes escritas se vangloriam como sendo o soberano de maiorprestgio de Mali seja visto pelas tradies orais como origem daruna, do esbanjamento do tesouro de Mand. Com efeito, o reiperegrino que fez baixar o fluxo do ouro do mundo medievaldesperdiando em Meca o tesouro de Sundjata tinha como objetivoexpiar um erro inexpivel na verso de Wa Kamissoko dedicada a

    7 Barry, Boubacar, B., 1988, La Sngambie du XVe au XIXe sicle, Paris,lHarmattan, pp. 137-139.

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    Sundjata, a glria de Mali, o libertador.8 Nesse plano, a tradiono bate com a hagiografia dos historiadores do nacionalismoafricano, que glorificaram essa faustosa peregrinao.

    Mas a ruptura mais evidente com as mudanas de regimee a implementao de teocracias muulmanas em Fuuta Djallon eFuuta Toro. Em Fuuta Djallon trata-se de uma guerra de conquistade muulmanos que arrancaram o poder das velhas aristocraciasDjallonks. Assim, o incio da era muulmana em 1725 constituio ponto de partida de uma nova histria, que tende a engomar opassado, seno descrev-lo para justificar o sucesso da revoluomuulmana. Os Tarikhs escritos pela elite muulmana substiturama tradio oral, fixando a histria e justificando a nova ordemmuulmana. Isso mais evidente em Fuuta Toro, onde o novoregime muulmano realizou uma espcie de compromisso comcertos pilares do regime Denyanke, que j tinha marcadoprofundamente as estruturas econmicas, polticas e sociais deFuuta Toro. Certos dignitrios conservaram prerrogativas numasrie de provncias ao mesmo tempo em que aceitaram o novoregime muulmano no novo central. O regime Denyanke tantotinha marcado a histria de Fuuta Toro que o novo regimemuulmano no conseguiu apagar esse passado glorioso,encarnado por um Koly Tenguela ou um Samba Gelaajo Jeegi.

    Assim, as duas tradies, uma ceddo exprimindo acoragem, o carter guerreiro dos heris do regime Denyanke,como Samba Gelaajo Jeegi e a outra muulmana relatando oascetismo, a piedade dos lderes religiosos como Suleymane Bale,Abdel Kader ou El Hadj Umar Tall, continuam a coabitar. Asuperposio dessas duas tradies evidente e ainda est viva namemria coletiva, mesmo se o olhar lanado a essas duas tradiesreflete a posio social de cada indivduo em Fuuta Toro. Temos,a ttulo de exemplo, duas verses de Samba Gelaajo Jeegiapresentadas na forma de teses para a Universidade de Dacar porAbel Sy e Amadou Ly. Fora as variantes sobre as verses diversasque ainda se encontra em Fuuta Toro, observa-se que a percepoda gesta de Samba Gellaajo Jeegi diferente de uma para a outra.

    8 Yussuf Tata Ciss, Wa Kamissoko, Sundjata, 1991, La Gloire du Mali. LaGrande Geste du Mali, Tomo 2, Paris, Karthala, p. 5.

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    Eu tive o privilgio de participar das duas defesas de tese. evidente que Abel Sy, por sua origem Sebbe, tinha um olhar maisinterno, mais simptico, em relao a essa gesta, que ele tinhainteriorizado. Mais que isso, vindo para a defesa com a irm,juntos eles cantaram com inegvel encanto a gesta de SambaGelaajo Jeegi na pura tradio do territrio. Por outro lado, emAmadou Ly, que pertencia classe de Torodo, que desapropriouos Denyanke, o olhar era mais frio, mais crtico e ele tendia,involuntariamente, a justificar a revoluo muulmana.9

    Mas isso em nada refuta o fato de que essa tradio de SambaGelaajo Jeegi continua viva em Fuuta, apesar do sucesso darevoluo muulmana. Isso to verdadeiro que o clebre cantorfutank Baaba Maal canta tanto as proezas de Samba Gelaajo Jeegi,o ceddo, como louvores a Thierno Sadu Nur Tall, descendentedEl Hadj Umar. A simbiose das memrias coletivas revela umaaceitao tcita do passado pelos Fuutank enquanto que emoutras partes se assiste a um silncio quanto aos acontecimentosanteriores revoluo muulmana como em Fuuta Djallon.

    Em todo caso, as tradies muulmanas tendem a ocultar opassado pago e a ligar os lderes muulmanos fundadores deteocracias muulmanas dos sculos XVII-XVIII e XIX a ancestraismuulmanos prximos dos companheiros do Profeta. Esse encaixecronolgico freqente quando no se tenta fazer a tradio comos muulmanos, aqueles pais fundadores como Sundjata ouNdiadyan Ndiaye, num momento em que o Islo no constituaabsolutamente o fundamento do poder em vigor. Mas o fenmenomais importante, sem dvida alguma, a fixao dessas tradiesorais, na verdade, a passagem da oralidade escrita.

    A FIXAO DAS TRADIES ORAIS

    A passagem da oralidade escrita se fez bem cedo pelo menos naescrita da histria em rabe ou em pular, em wolof ou mandinga,pelos letrados muulmanos. Os mais antigos so, sem dvidaalguma, o Tarikh Es Sudan e o Tarikh El Fettach, escritos no

    9 Sy, Abel, A., 1979-1980, La Geste Tiedo, Tese de 3 ciclo, Faculdade deLetras, Dacar, 676 pginas.

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    essencial no sculo XVII e que relatam o fim do imprio Songha,mas tambm os acontecimentos anteriores, relativos aos antigosimprios de Ghana e Mali. A tradio dos tarikh nasceu e vai sedesenvolver nas teocracias muulmanas de Fuuta Toro e Bundu, e deFuuta Djallon, para dar aos letrados muulmanos a possibilidadede consignar por escrito, seja em rabe, seja em pular, utilizandoos caracteres rabes, os principais acontecimentos de que foramtestemunhas. So, portanto, testemunhos diretos, ao mesmo tempoem que interpretao dos fatos histricos, isto , uma certa formade escrever a histria.

    Esses tarikh, transmitidos cuidadosamente de gerao emgerao, so multiplicados e difundidos, e so tambm comple-mentados com o acrscimo dos acontecimentos mais recentes. Asteocracias muulmanas do assim nascimento a uma nova raa deletrados que no so necessariamente gris, que at ali detinham omonoplio da tradio oral, na verdade, de contar a histria.

    Mas os gris continuam, apesar disso, a desempenhar seupapel tradicional e sua converso ao Islo os leva progressivamentea consignar tambm eles seu saber histrico em forma de notas outarikhs, que transmitem de gerao em gerao a seus filhos.Embora essas notas muitas vezes constituam lembretes guardadoscom cime para lhes permitir exercer seu talento, o de contar ahistria e desempenhar seu papel de gente da palavra numasociedade da oralidade.

    Com efeito, apesar da islamizao, s uma minoria l rabee por isso que certos letrados logo empreenderam a tarefa deescrever em lngua africana utilizando caracteres rabes. O manifestode Thierno Samba Mombeya, em sua obra Le filon du bonheurternel, na lngua pular, louvando o Profeta, tinha como objetivofacilitar o acesso ao conhecimento dos preceitos do Islo para amaioria silenciosa. Esse foi o comeo de uma verdadeira revoluocultural, que fez nascer uma literatura escrita profana de todos osgneros. A passagem da oralidade ao escrito estava feita e as duasformas de expresso vo cohabitar, completando-se. Apesar dosprogressos realizados na difuso dos textos escritos, a tradiooral permanece preponderante na maior parte das sociedadessenegambianas, que ficaram refratrias islamizao at o sculoXIX com o movimento de Cheikh Umar Tall.

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    De fato, a conquista colonial no fim do sculo XIX constituiuma ruptura maior com essa forma de expresso histrica veiculadapelas tradies orais e os tarikhs, que sero colocados entreparnteses pela escola colonial e a negao da historicidade dassociedades africanas. Uma sociedade em duas velocidades vaioperar uma linha de diviso entre uma elite tradicional, que prezaseu saber antigo, e uma elite colonial, obrigada a aprender naescola a histria dos vencedores para melhor desprezar o prpriopassado. Essa vontade de excluso da histria da maioria dapopulao marginalizada pela escola colonial constitui um dosfundamentos ideolgicos do sistema de dominao. Mas no sepode absolutamente excluir um povo da histria nem impedi-lo deviver sua histria e, conseqentemente, de cont-la a si mesmo,por t-la vivido na prpria carne.

    Desde o incio, Faidherbe, o arteso da conquista da colniado Senegal, se interessou, devido s necessidades da causa, pelastradies orais e pela cultura das sociedades senegambianas. ocomeo, como diz Mamadou Diouf, do africanismo; a meta-morfose pela escrita e a influncia islmica conseguiram assimcircunscrever uma memorvel historiografia especfica dasociedade colonial em construo, solicitando para isso o passadoeuropeu e o passado senegambiano. A criao da escola de refnsem 1857 para ganhar os filhos de chefes para a obra francesavai permitir a Yoro Diaw publicar, dessa vez em francs, asprimeiras narrativas de tradio oral em wolof no jornal Moniteurdu Sngal.10 Assiste-se ento proliferao de textos de origemafricana pelas antigas elites assim como pelas novas elitesformadas na escola colonial. Gaden, Delafosse e Gilbert Vieillarddesempenham um papel fundamental na coleta e publicao detextos orais ou escritos em lngua africana ou em rabe.

    Em 1913, Delafosse publica Chroniques du Fouta sngalaistraduzidas de dois manuscritos rabes inditos de Sir Abbas-Soh,que relembrava as lembranas que tinha guardado da leitura deuma obra escrita h um sculo por um certo de Tafsiru BogguelAhmadu Samba. Sir Abbas Soh, clebre por seu conhecimento

    10 Diouf, M., 1989, Reprsentations historiques et legitimits politiques auSngal, 1960-1987, Revue de la bibliothque nationale, V. 34, Paris, p. 14.

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    das tradies locais, completou esse livro, que tinha memorizado,acrescentando-lhe os acontecimentos ulteriores ocorridos emFuuta at conquista colonial. evidente que Delafosse editounum s texto as duas verses quase idnticas dos dois manuscritos,que foram assim traduzidos, por diligncia sua, sem os originais.11

    Em 1935, Henri Gaden publica tambm a vida dEl HadjOmar, Qacida em pular, de Mohammadou Aliu Tyam. Era umcompanheiro de primeira hora de Cheikh Umar, que ele tinhaacompanhado em todas as suas campanhas. Para Gaden, essatestemunha privilegiada, que tentou escrever objetivamente abiografia do Santo Homem, fez uma obra de historiador. Escreveusua Qacida em pular para atingir o maior nmero de iletrados emlngua rabe. A Qacida um poema longo de 1185 versos, paraser decorado e cantado ou modulado. Pobres e cegos cantampassagens dele mendigando de porta em porta. Estudantes, marabusem viagem o declamam nas mesquitas e muitos vo escut-los.Essas obras esto ao alcance de todos, enquanto os tarikhs e osQacidas em rabe s so acessveis a uma pequena elite. Comrelao ao texto das Chroniques du Futa sngalais publicado porDelafosse, Gaden tomou o cuidado de dar a verso em pular queserviu de base traduo para o francs.12

    Apesar desse esforo louvvel de recolhimento das tradiesescritas ou orais do passado senegambiano, fica-se mesmo assimadmirado com o olhar ctico de um Delafosse quanto ao seucontedo ou carter cientfico. Para Delafosse, do ponto de vistahistrico, as crnicas no podem pretender dar a verdade cientficaque o esprito dos ocidentais busca, o maravilhoso detm, quer sequeira ou no, um espao bastante considervel nessas narrativas,mas a mesma circunstncia se encontra na histria de todos ospovos, no incio do que precisamente chamamos de perodohistrico, que s comea em Fuuta com a ocupao do pas peloseuropeus.13 De fato, at uma data recente, o estudo das sociedades

    11 Delafosse, Maurice, 1913, Chroniques du Fouta sngalais, traduzidas dedois manuscritos rabes inditos de Sir Abbas Soh, Paris, E. Leroux, p. 328.

    12 Tyaam, Mohammadu Aliu, 1935, La vie de El Hadj Omar, Qacida em poular,transcrio, traduo, notas e glossrios por Henri Gaden, Paris, InstitutdEthnologie, p. 289.

    13 Delafosse, M., 1913, p. 6.

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    africanas como senegambianas ser dominado pela Etnologiacolonial centrada numa viso esttica da Histria. Os historiadoresde ofcio s faro sua apario tardiamente, com o movimentonacionalista. Mas durante todo o decorrer do perodo colonial, ahistria vai servir de recurso s elites tanto tradicionais quantocoloniais para reivindicar ou negociar privilgios relativos aopoder colonial, que impe sua nova legitimidade gesto doshomens e recursos do pas.

    Yoro Diaw sem dvida nenhuma o primeiro a tentar recolheras tradies orais dos reinos wolof utilizando um quadro cronolgicocom datas precisas pelo fato de se ter formado na escola dos refns.Mas esses cadernos perdidos para sempre foram publicados porRousseau em 1929 e 1933, criando assim uma cadeia de trans-misso por escrito das tradies orais wolof que vinha desde apublicao no Moniteur du Sngal em 1863 at os Esquissessngalaises em 1966 sucessivamente por Azan, Gaden, Rousseaue Monteil. Esses autores utilizaram os cadernos de Yoro Diaw quetoma suas informaes do pai, o Brak Fara Penda, interrogado porAzan em 1863 e transmitiu seus conhecimentos a Amadu Wade,que ditou ele prprio sua crnica a Bassiru Ciss, bibliotecrio noIFAN em 1941, antes da publicao em 1966 por Vincent Monteil.

    O que fica evidente nesse caso a existncia de uma cadeiade transmisso e a preocupao de fixar por escrito essa tradiodominada pela narrativa dos fatos marcantes para cada reino, almde uma preocupao incomum com dar um quadro cronolgicoaos acontecimentos. Do ponto de vista metodolgico, j chamamosa ateno para todos os problemas colocados pelos limites dessacronologia, a partir da durao dos reinados e das listas dinsticas,ao mesmo tempo que para os riscos de empobrecimento dessatradio reescrita por outros a partir de anotaes dos autores.Mas, o que importante assinalar a tendncia louvvel fixaodessa tradio oral com riscos de deformao. Com efeito, osautores muitas vezes tomam emprestado das fontes escritas a seualcance, enquanto editores como Rousseau introduzem outrasinformaes para completar ou esclarecer os cadernos de Yoro Diawpara o leitor ocidental. Assim, Yoro Diaw constitui privilgios paramelhor negociar com o poder colonial. E Rawane Boye, descendente

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    dos Mantel de Tub, provncia situada nas proximidades de Saint-Louis, na embocadura do rio, reivindica seus direitos, apoiando-sena tradio oral e no fato de que a gente de Tub era francesa,antes de todos os outros indgenas, tendo esses ancestrais cedido ailha aos franceses. Ele assim descarta as pretenses de Brak deWaalo, que teria cedido a ilha aos franceses em 1659, segundotodas as fontes.14

    Do mesmo modo, Amadu Duguay Cldor escreve em 1912 aBatalha de Guil que ops em 1886 Alburi Ndiaye de Jolof aDamel Samba Laob Fall de Kajoor, seguida de um ensaio deFaidherbe em Coppolani ou os Gandiols Gandiols a servio daFrana. Amadu Duguay Cldor interessante, pois mesmo se notem acesso aos arquivos da poca, tenta trabalhar como historiador,recolhendo, recortando as diversas tradies orais para fazer umtexto coerente. o caso da batalha de Guil, e tambm de suatentativa de corrigir os erros que acabaram se introduzindo naspublicaes do Moniteur du Sngal e dependncias do ano 1864sobre a Histria dos Damels de Cayor. Cldor reivindica pelaprimeira vez, pelo que sabemos, o direito de escrever histria,devido a seu conhecimento ntimo do pas e acesso informaosem mediao de intrprete. Mas o mais importante sem dvidanenhuma o fato de que sua tentativa de escrever histria entra nocontexto do nacionalismo senegals nascente e reflete antes detudo sua ambigidade. Cldor reivindica pertencer ao Senegal,entendamos a Colnia, e Frana, a Grande Ptria me. frutoda contradio maior do projeto colonial, que deve contar com osindgenas para criar a Grande Frana.

    Desde 1912, esse instituidor filho de spahi, regimento deesquadro criado em 1843, que desempenhou um papel primordialna conquista francesa, sensvel discriminao racial e reivindicaa igualdade. hostil criao da categoria dos instituidores doquadro indgena, que os exclua, depois de 1904, do quadrometropolitano, com todas as suas vantagens. E ainda reivindica oreconhecimento da Frana pelos mltiplos sacrifcios sangrentosconsentidos por seus pares nos dias tempestuosos da Revoluo

    14 Rousseau, R., Le Sngal dautrefois, Papiers sur le Toub de RawaneBoye, Bull. Com. Et. Hist. et Scient., AOF, TXIV, p. 23.

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    Francesa, do Consulado e do Imprio, e por seus descendentes daepopia senegalesa sob Faidherbe, Pinet-Laprade, Brire de lIslee Canard.

    Depois feito prefeito de Saint-Louis e Presidente do Conselhocolonial, Amadu Duguay Cldor pronuncia um discurso em 26 dedezembro de1927, por ocasio das festas em honra do esquadrode spahis senegals, disperso para contar a partir do 10 de janeirode 1928. No discurso vibrante, exalta o ardor no combate e ossacrifcios dos spahis senegaleses que fizeram a conquista doImprio para a Frana. Nessa ocasio, diz: sou filho de um spahido esquadro, desse esquadro que permanecer para ns,senegaleses, a escola do sacrifcio e da dedicao Me Ptria contra o que chama de guerreiros fanticos dEl Hadj Omar osbandos de Lat Joor, o famoso profeta Amadou Cheikhu. Semdistino ele presta homenagem aos spahis de origem senegalesacomo seu pai e aos de origem francesa como Villiers e mais, seidentifica sem complexo com a obra da Frana. Passando emrevista todas as vitrias contra os inimigos da Frana no Senegal,em Daom, na Mauritnia e no Marrocos, presta uma vibrantehomenagem quele esquadro que representa para os senegalesesa tradio dentro de uma lealdade de muitos sculos Frana.

    A brevidade e o tom distante da resposta do tenente Hullo,comandando o esquadro spahi senegals, contrasta com a emoodo discurso de Cldor. Nem um nome senegals citado nessediscurso, ao lado de Chevign, Latour, Potin cujo herosmo tido como exemplo dos feitos de armas do esquadro em 84 anosde existncia. A nica aluso aos saint-louisianos sua ligao aoglorioso esquadro, cuja sala de honra e os dois estandartes seroconfiados guarda da cidade de Saint-Louis. Esse silncio eesquecimento se explicam pelo fato de que a pacificao denossas possesses da frica ocidental e equatorial , afinal, fatoconsumado, segundo os termos do tenente Hullo. O sistema colonialest no apogeu e pode da em diante agir a seu modo, limitar osdireitos dos senegaleses e, em particular, os originrios das comunasde Saint-Louis, Rufisque, Dacar e Gore, considerados cidadosfranceses, impondo regras de exceo aos outros, isto , grandemaioria dos indgenas no interior do pas.15

    15 Amadu Duguay Cldor, 1985, La Bataille de Guil, NEA, Dacar, pp. 176-185.

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    Mas, as frustraes, tanto dos cidados franceses das quatrocomunas bem como dos indgenas do interior, no tardam a se cris-talizar e dar nascimento, por sua juno, ao nacionalismo senegals.

    DISCURSO HISTRICO E NACIONALISMO

    Esse nacionalismo se baseia numa ambigidade importante pois abusca da igualdade de direitos em relao aos franceses est emcontradio com o fato colonial, que nega, a priori, a identidadedos indgenas. Os nacionalistas vo apelar sucessivamente para amemria colonial bem como para o registro das tradies histricasorais para reivindicar seu lugar ao sol. Diversos discursos histricosvo ser desenvolvidos em funo das necessidades da causa parabalizar as lutas incertas desse nacionalismo nascente e ambguo.16

    Como diz Diouf, a construo de uma memria mista, a das quatrocomunas e da assimilao podendo reivindicar uma dupla heranaeuropia e africana, d lugar, pelo fato da excluso colonial, stradies dinsticas para fundar as pretenses polticas e territoriaisdas famlias reais. Essa tradio dinstica essencialmente wolofmarginaliza as tradies familiares ou aldes, marcando assim todaa oposio entre uma tica aristocrtica e uma tica do cotidiano.

    A primeira ruptura ser sobretudo o fato da oposio danova elite indgena que acaba de ter acesso cidadania em 1946,representada por Senghor, aos originrios das quatro comunas,representados por Lamine Guye, partidrio da assimilao.Assiste-se, assim, ao aparecimento dos dois tipos de memria, ados gris, que se pe a servio da chefia tradicional, correia detransmisso da administrao colonial, e a de confraria, dascomunidades muulmanas, que se estruturam e articulam lgicaeconmica colonial do amendoim. As confrarias religiosas formamo contexto do mundo campons e tentam salvaguardar sua autonomia

    16 Mamadou Diouf, em seu artigo inovador, Reprsentations historiques etlgitimits politiques au Sngal, 1960-1987, abriu uma via luminosa dereflexo sobre os discursos histricos. Contento-me aqui com precisar o localdas tradies orais nesse discurso nacionalista que vai aproximadamente doacesso cidadania em 1946 ao advento do multipartidarismo em 1974, poisna realidade a mesma classe poltica que domina durante esse perodo,antes e depois da independncia dos anos 1960.

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    religiosa tambm em relao administrao colonial, assim como chefia herdeira de uma aristocracia que foi desfeita pela Franano final do sculo XIX.17

    Em 1948, o rompimento entre Lamine Guye e Leopold SedarSenghor d nascimento ao BDS (Bloco das massas senegalesas)que vai se apoiar nas redes de marabus do mundo rural. Senghorinventa a Negritude para restaurar os valores do mundo negro erenov-los, associando-os aos valores franceses. Assim, o tringuloideolgico senghoriano-negritude, francofonia e socialismo africanose edifica, com uma dupla memria, a de Faidherbe como criadordesse Senegal moderno, tendo a seu lado, o plo tradicional, Lat-Joor. Mas a negritude privilegia a etnologia em detrimento dahistria, com o objetivo de criar uma identidade africana, at mesmosenegalesa, diferente daquela do Ocidente. Isso no impede Senghorde ser partidrio da mestiagem que , para ele, o melhor meio dese chegar civilizao do universal.

    A palavra do gri ou a narrativa das tradies orais so vistassob o ngulo de seus ritmos poticos, da a importncia atribudapor Senghor poesia, literatura, ao teatro e arte. Quando seapela para a histria, para escolher Lat-Joor como heri nacionalque encarna as tradies e valores aristocrticos de dignidade esacrifcio como fundamento da ideologia nacional do Senegalindependente e do partido nico. Para a Negritude, as tradiesorais so episdios que devem servir para reforar o sentimentode unidade nacional. Consideradas antes de tudo como crnicas elendas, sua escrita e valor literrio predominam sobre o contedo,na verdade, sobre a histria da frica, que colocada entreparnteses por Senghor durante todo o seu regime.

    parte a pr-histria que privilegiada so as mate-mticas e a filosofia, com o ensino do latim, que constituem, paraSenghor, as disciplinas por excelncia. Ele se dedica, no entanto, salvaguarda dos arquivos coloniais do Senegal e da AOF, nicospreservados em todo o imprio colonial francs. A exposio dosarquivos, 300 anos de histria escrita do Senegal, na ocasio doprimeiro aniversrio da independncia, indica a preferncia do novo

    17 Diouf, Mamadou, 1989, pp. 14-15.

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    Estado pelo documento escrito como fonte principal da histria danao em gestao.18

    Senghor vai criar o Centro de estudos das civilizaes deDacar, dotado de uma revista, Dembe Ak Tey, caderno do mito,cujo objetivo recolher, transcrever e salvar as tradies orais, aomesmo tempo em que se impe a escrita sobre a oralidade. Napoca, sintomtico constatar que a maior parte dos opositorespolticos de Senghor e da ideologia da negritude so historiadoresde profisso, alm de Majmut Diop, que alis escreveu um ensaiosobre a histria das classes sociais no Senegal e em Mali. o casode Cheikh Anta Diop, Abdoulaye Ly, Moctar Mbow e Assane Seck,nos primeiros anos da independncia.

    Cheikh Anta Diop o primeiro, em sua obra, Nations ngreset cultures, publicada em 1955, a fundar sua ao poltica noreconhecimento da historicidade da frica, que remonta origemdas civilizaes pois o Egito negro. Cheikh Anta quer devolveraos africanos uma confiana neles mesmos. A reconstruo dahistria africana abre a frica ao universal pelo Egito faranico e aafirmao da unidade cultural africana legitima seu panafricanismoe seu federalismo. Por sua preferncia pela frica pr-colonial,ope-se a Senghor, pelo perodo colonial. Mas, como Senghor,Cheikh Anta Diop negligenciou as tradies orais e os estudosmonogrficos que no se inscrevem no desenho egpcio-faranico,dando conseqncia unidade cultural do continente. Assim africa toma p na histria pela grande porta e Cheikh Anta Diopprivilegia a continuidade dessa histria: por isso que pe emevidncia as semelhanas entre as instituies da frica pr-colonial e as do Egito antigo.

    Contrariamente negritude e francofonia, atribui s lnguasafricanas um papel primordial como meio de acesso modernidade.Da se compreende a oposio poltica irreconcilivel entre osdois homens, a excomunho de fato de Cheikh Anta Diop daUniversidade francesa e marginalizao na Universidade de Dacardurante toda a sua vida. Mas Senghor evitar at o fim o confrontocom Cheikh Anta Diop, que foi consagrado pelo Festival das artes

    18 Diouf, Mamadou, 1989, pp. 16-17.

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    negras, por ele organizado para celebrar a negritude, como ointelectual africano que mais teria marcado sua gerao. De fato,o paradoxo de Cheikh Anta Diop que privilegiou o debateintelectual pela unidade, a libertao total do continente e areabilitao da dignidade africana e se fechou numa oposiopoltica nos limites estreitos do Estado-nao do Senegal, emcontradio com seu projeto federal. De modo que, apesar de suaao decisiva na elaborao de uma histria africana pelosafricanos, sua influncia direta sobre o desenvolvimento dosestudos nesse terreno foi limitada.19

    O mesmo acontece com o segundo grande historiador,Abdoulaye Ly, que escreveu a primeira tese sobre a histria doSenegal, publicada em 1958. Ele estuda a conexo capitalista doscontinentes pelo Atlntico nos sculos XVII e XVIII. Interessa-seem particular pelo papel desempenhado pela Senegmbia nessaconexo. O historiador de profisso, em razo de seu engajamentodireto na poltica, no teve tempo de aprofundar o estudo internodas sociedades senegambianas fora dos escritos polticos, como OEstado e a condio camponesa, para justificar a ruptura com aeconomia colonial. Como Cheikh Anta Diop, adepto da indepen-dncia imediata e do rompimento com o sistema colonial. isso oque explica a ruptura com Senghor depois do voto pelo sim, mesmotendo voltado ao governo por alguns anos, entre 1965 e 1970. ComoCheikh Anta Diop, por causa da poltica, Abdoulaye Ly no ensinouhistria nova gerao dos historiadores das independncias, queforam encontrar os pais fundadores da escola de Dacar fora docampus, pelo vis da luta poltica.20

    19 Na poca, Cheikh Anta Diop clebre sobretudo por ter publicado, sucessi-vamente, Nations ngres et cultures, Paris, Prsence Africaine, 1954; LUnitculturelle de lAfrique noire, Paris, Prsence Africaine, 1959 e LAfrique noireprcoloniale, Paris, Prsence Africaine, 1960.

    20 Sua obra mais clebre da poca La Compagnie du Sngal, PrsenceAfricaine, 1958. Trinta anos depois, na reedio dessa obra bsica, AbdoulayeLy, num longo posfcio, faz a ponte entre suas hipteses de trabalho sobre ahistria e os resultados das pesquisas da escola de Dacar. Seus escritos sobre ahistria contempornea depois do afastamento da poltica e do IFAN so aprova da viso histrica do Senegal desse Grande Historiador, firme entre omovimento nacionalista e a luta patritica contra o neo-colonialismo.

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    De fato, a redescoberta das tradies orais vir principal-mente da segunda gerao de historiadores profissionais, que vose interessar pela histria pr-colonial da frica Ocidental, e cujoestudo da evoluo das sociedades em todos os domnios suscitoumuitos interesses nos anos 1960. Era preciso, na linha de CheikhAnta Diop, dar as provas de que a frica tinha uma histria dignade interesse, altura dos grandes Imprios da Idade Mdia, e quetinha sofrido agresses de conseqncias desastrosas com o trficonegreiro e a colonizao.

    Essa histria, que glorifica a si mesma e culpa o Ocidente,fez nascer diversos trabalhos de historiadores profissionais, queusaram amplamente as tradies orais, junto com as fontes escritasafricanas ou europias. A primeira obra que utiliza exclusivamentetradies orais , sem dvida alguma, a publicao de Sundjata oulpope mandingue por Djibril Tamsir Niane em 1960. Niane certamente o primeiro historiador profissional a reabilitar com brilhoo gri como depositrio tradicional do passado. Para ele, o gridetm a Cadeira de histria, mesmo quando preso ao segredo queexplica sua maestria na arte da perfrase. O sucesso de Sundjatapermanece inigualvel at hoje, mesmo se Niane no deu a versomandinga de seu texto publicado em francs. Em funo dessetexto, cujo equivalente sem dvida alguma a epopia de Chakapublicada por Thomas Mofolo, as tradies orais tm doravantedireito igual ao dos documentos escritos.21

    Essa mutao dos espritos transforma progressivamente omtodo de abordagem dos historiadores africanos que se interessampela histria africana. Em toda parte, na Senegmbia como emoutros lugares da frica, nasce a metodologia de coleta, transcrioe interpretao das tradies orais. A publicao por Vansina desua obra metodolgica sobre as tradies orais incita ao uso dessafonte para reconstituir aspectos inteiros da histria do Continente.

    Na Senegmbia, a escola de Dacar, com Seken ModyCissoko, Thierno Diallo, Umar Kane, Mbaye Guye, BubacarBarry e Abdoulaye Bathily, vai desempenhar um papel primordialnesse esforo de reconstruo do passado. Eles tm a vantagem,

    21 Niane, Djibril Tamsir, 1960, Sundjata, lpope mandingue, Prsence Africaine.

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    alm do mais, de conhecer as lnguas africanas que constituem achave principal de acesso informao ao alcance dos depositriosda tradio oral. A esse respeito preciso assinalar a vontademanifesta dos historiadores da escola americana, com PhilippeCurtin, Martin Klein, David Robinson, Lucie Colvin, etc., de utilizaras tradies orais do mesmo modo que os documentos escritos. Elesvo publicar obras importantes sobre a histria dos reinados pr-coloniais da Senegmbia, privilegiando a histria interna, tantoeconmica quanto poltica e socialmente.

    Mas ainda o estudo de Samori por Yves Person, quepermanece como monumento, tendo reconstitudo com mincia agrande aventura dessa resistncia de opinio conquista coloniale tambm dessa obra de construo de um imprio sobre as cinzasde Mali. Yves Person mostra o caminho da combinao judiciosade documentos escritos e tradies orais, com o recolhimentosistemtico das velhas tradies orais atravs das testemunhas dossobreviventes da grande aventura de Samori. Durante uns vinteanos, seguiu o rastro do itinerrio de Samori atravs de toda africa Ocidental, do rio Niger aos confins da floresta no Sul. Essenacionalista breto era defensor apaixonado das culturas e lnguasafricanas e, sem dvida alguma, devolveu confiana nossa gerao,que teve o privilgio de explorar pela primeira vez a histriainterna das sociedades senegambianas. Os trabalhos da escola deDacar devem muito ao seu ensino em Dacar e Paris e sobretudo aseu engajamento em prol da explorao das tradies orais.22

    Todos os trabalhos da escola de Dacar sobre o Royaume duWaalo (Reino de Waalo) de Bubacar Barry, o Fuuta Djalon deThierno Diallo, o Gajaaga de Abdoulaye Bathily, o Kayoor deMamadu Diuf, o Fuuta Toro de Umar Kane, o Xaaso de SekenMody Cissoko repousam sobre o uso conjugado de documentosescritos e tradies orais e dizem respeito essencialmente ao perodo

    22 Ainda me lembro de sua insistncia para que eu fizesse um estudo da crono-logia dos diferentes reinados dos Brak a partir das diversas listas dinsticaspublicadas pelas tradies de Waalo. Esse exerccio me revelou toda aimportncia da cronologia na tradio oral, apesar das possibilidades deincerteza que serviram de pretexto a certos historiadores para negar qualquervalor histrico s tradies orais.

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    pr-colonial, entre os sculos XV e XIX. uma histria escritapor filhos da terra, que estudaram de preferncia o reino a quepertenciam por etnia. Ela entra no contexto da descolonizao dahistria africana e sobretudo uma histria poltica, que privilegiouas tradies dinsticas, mesmo se, sob certos aspectos, se interessapelas transformaes econmicas e sociais pela realidade dotrfico negreiro e da colonizao.

    Do ponto de vista metodolgico, as tradies orais so con-sideradas, acima de tudo, como documentos de outra natureza, queso recolhidos para completar os documentos escritos de origemeuropia, principalmente. Os Historiadores utilizam com esse fimos arquivos, que foram objeto de pesquisa sistemtica nos diferentesdepsitos da frica e Europa e que revelaram a existncia deimportante documentao. Depois da histria do nacionalismo,entramos, com esta gerao, na histria da descolonizao, queprivilegia a histria das sociedades africanas como motor de suaprpria histria.

    Com efeito, essa Segunda gerao da escola de Dacar vai criarcom os outros historiadores de Abidjan e Camares, do Zaire prin-cipalmente, a primeira Associao panafricana dos historiadores,em 1972, com o objetivo de descolonizar nossa histria, segundoa frmula do historiador argelino Mohamed C. Sahli. A histriaconstitui assim, segundo Ki-Zerbo, a alavanca fundamental da nossatomada de conscincia nacional para a realizao da unidade africanae assumirmos a responsabilidade pelo nosso destino. Era precisono apenas entrar na histria pela porta da frente, mas tambmtom-la sob nossa responsabilidade para esclarecer a ao das novasgeraes que tm uma misso quase que proftica de regenerar africa. As duas citaes, na primeira pgina da revista AfrikaZamani, publicada pela Associao, extensiva aos historiadoresafricanos dos pases de lngua inglesa, em Yaund, em 1975,constituram para certos africanistas da Europa e da Amrica comoque uma vontade de excluso. De fato, tratava-se, para a nossagerao, de se apropriar de nossa histria e implementar na fricauma maior capacidade de pesquisa e ensino da histria africana paraservir de base consolidao dos Estados-naes em formao,sem perder de vista a unidade do Continente, defendida por Cheikh

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    Anta Diop. Este ltimo foi, na verdade, a vedete do Congresso deYaund, onde se dirigiu pela primeira vez, durante sete horas derelgio, nossa gerao, que s o conhecia pelos escritos. A histriada descolonizao, assim como a histria nacionalista da qual oprolongamento, tem limites e encerra contradies que refletemacima de tudo as dificuldades da construo do Estado-nao combase nas fronteiras herdadas da colonizao. Na euforia da soberanianacional reconquistada, a histria est na ordem do dia e tem, daquipara frente, direitos adquiridos. Mas ela cada vez mais solicitadapor necessidades contraditrias de uma sociedade em plena mutaono contexto do Estado-nao em construo.

    DISCURSO HISTRICO E IDEOLOGIA NACIONAL

    A ideologia nacionalista que teve como referncia o passado gloriosoda frica gradualmente substituda pela ideologia nacional daunanimidade do partido nico, e at do partido-Estado. Essaexpresso unnime da histria no contexto estreito das fronteirasherdadas da colonizao est em contradio com a realidadehistrica das populaes intransigentes na defesa das diversasnovas fronteiras dos Estados independentes. O Estado-naoencerra a histria numa camisa de fora dupla de unanimidade esilncio, que tendem a disfarar diferenas e contradies nacompetio pelo acesso ao poder e s riquezas do Estado-nao.

    Conforme o pas, a ideologia nacional cede lugar a umdiscurso histrico especfico, que deriva das diferentes tradiesorais e de uma histria difundida pelas obras de novos historiadoresprofissionais formados na Universidade. Ao mesmo tempo em quese proclama a unanimidade nacional, se exalta com mais ou menosvigor a resistncia do heri nacional escolhido no momento daindependncia para servir de exemplo s novas geraes. o casode Lat-Joor no Senegal, de Samori Tur e Alfa Yaya na Guin,enquanto Mali se volta para Sundjata, fundador do imprio de Mali.

    As tradies orais esto em alta e as rdios transmitem emprofuso as narrativas dos gris, cujo papel de detentores damemria coletiva reabilitado. Mas esse recurso histria desigual.Certos reinos so privilegiados pelo papel que desempenharam

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    antes da colonizao e sobretudo pelo local preponderante queocupam no Estado ps-colonial.

    Assim, no Senegal, a memria coletiva Wolof domina tantonos estudos quanto nas narrativas das tradies orais. Ou melhor,em funo da fora das confrarias mouride ou tidjane na bacia doamendoim, no corao da economia senegalesa, a representaohistrica islmica tende a suplantar as tradies dinsticas. Opeso poltico considervel das confrarias que controlam o mundocampons explica essa oscilao e o florescimento das tradiesorais que celebram os pais fundadores, Ahmadou Bamba no casodos Mourides e Malick Sy, no dos Tidjanes.

    Mas a tcnica permanece idntica posto que as novastradies orais seguem o modelo das tradies dinsticas paraexaltar as virtudes dos pais fundadores. Sua ao milagrosa colocada em exergo assim como a narrativa colorida do exlio deAhmadou Bamba e seus atos de resistncia contra o poder colonial.Focaliza-se tudo o que pode consolidar a coeso do movimento eo respeito pela hierarquia mouride ou tidjane ligando a ao dossucessores dos pais fundadores o modelo perfeito cuja vidae faanhas parecem em muitos aspectos as dos heris lendrioscomo Sundjata ou Ndiadyan Ndiaye. V-se construir gradualmenteuma retrica onde a imaginao modela uma histria recente emgestao.

    Essa histria difundida nas transmisses de rdio,publicaes diversas, em forma de livros ou nos jornais. Assiste-se a um verdadeiro entusiasmo pela histria. o perodo ondeIbrahim Baba Kak lana, a partir de Paris, o programa Mmoiredun continent (Memria de um continente), que difunde todas assemanas as narrativas de historiadores profissionais, de tradi-cionalistas ou simplesmente testemunhas dos combatentes pelaindependncia. Alm disso, lana a coleo Grandes figurasafricanas, celebrando os heris da resistncia conquista, comoSamori, El Hadj Umar ou Bokar Biro. Os historiadores profissionaistentam na linguagem colorida das tradies orais colocar aoalcance da maioria da populao a nova histria escrita a partir dacombinao de documentos escritos e narrativas orais cujo recol-himento foi desenvolvido em grande escala nestes ltimos anos.

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    A influncia do carter pico da narrativa privilegiada emnosso Bokar Biro, onde escolhemos como trama e modelo asnumerosas crnicas e narrativas do Futa Djallon publicadas porAlfa Ibrahima Sow.23 Ns apenas introduzimos o contexto crono-lgico que tantas vezes faz falta nas narrativas picas contadaspelos gris e tambm as informaes dos documentos de arquivosque revelam as estratgias maquiavlicas dos franceses naconquista colonial. Paradoxalmente, mesmo para perodos torecentes, as tradies orais ou as crnicas escritas ocultam apresena francesa e a ao da Frana na conquista colonial.

    O objetivo chegar a uma exaltao do heri nacional pararesponder s necessidades do momento nessa fase carniceira dedescolonizao.

    O sucesso dessa coleo inegvel, pois ela responde a umanecessidade, a uma sede de conhecimento da nossa histria pelamaioria da populao que no tem acesso aos trabalhos acadmicos.Essa vulgarizao se limita, porm, minoria escolarizada emfrancs e preciso esperar pela traduo do mesmo livro sobreBokar Biro para o pular para restituir a histria grande maioriada populao, que continua a escutar em suas lnguas narrativasdos gris, cuja palavra doravante veiculada pelos meios modernosda informao audio-visual.

    H sem dvida alguma um entusiasmo pela histria e umaespcie de simbiose entre o discurso histrico dos trabalhos dehistoriadores profissionais e os discursos das tradies orais queprivilegiam todos os dois os grandes homens, os grandes momentosda histria africana, na verdade, a histria poltica. A coleo deBaba Kak, de fcil acesso devido ao preo moderado da ediode bolso, se completa com uma edio luxuosa da coleo OsAfricanos, publicada pela Jeune Afrique (frica Jovem), sob adireo de Charles Julien. As mesmas grandes figuras so retomadasnas duas colees, para celebrar o passado, mas tambm parajustificar indiretamente a ao dos novos presidentes, pais da

    23 Barry, B., 1976. Bokar Biro. Le dernier grand Almamy du Fouta Djallon,NEA, coleo Les Grandes Figures Africaines. A mesma biografia foitambm publicada na coleo Les Africains antes de ser traduzida para opular. Ela se inspira na publicao de Alfa Ibrahima Sow, 1968, Chroniqueset rcits du Fouta Djallon, Librairie Cklinecksieck, Paris.

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    nao em construo. Eles servem de pretexto para justificar ossacrifcios que as populaes devem unanimemente consentir paraapagar para sempre os traumas da colonizao e do trfico negreiro,que servem para salientar a lgica de uma crtica interna do presentecada vez pior vivido pelas populaes.

    Com mais ou menos intensidade, os novos Estados do Senegal,Mali ou Guin vo desenvolver essa histria nacional para marcara ruptura com o passado colonial e criar novos modelos apoiadosno manancial inesgotvel dos valores africanos veiculados nastradies orais.

    Acontece que o principal erro cometido pelos Historiadoresdo nacionalismo, bem como da ideologia nacional, foi consideraras tradies orais como o equivalente ou o complemento dosdocumentos escritos. Enquanto fontes, essas tradies deviampassar somente por um tratamento crtico, do mesmo modo que osdocumentos escritos, que acertadamente completam, para oconhecimento do passado africano.

    evidente que essas tradies orais veiculam antes de tudo umdiscurso histrico, que manipulado em funo das necessidadesda sociedade por seus detentores, que o que explica a importnciados silncios que o balizam. Com efeito, o silncio mais pesadorecai sobre a participao dos africanos no trfico negreiro, quedurou diversos sculos e teve um impacto duradouro sobre associedades senegambianas. Alm do nmero de prisioneirosmencionados de vez em quando pelas tradies orais, no cursodas diversas guerras entre reinos senegambianos, essas tradiesliteralmente ignoram o trfico negreiro, que foi reconstitudoessencialmente a partir dos arquivos e das relaes dos viajanteseuropeus. O fato de que as vtimas foram deportadas para o outrolado do Atlntico talvez explique que a memria de seus sofrimentostenha sido conservada antes nas Amricas, com o objetivo bastantepreciso de lutar contra a escravatura. A frica, a ptria me, torna-seento alvo de milhes de escravos que querem lembrar parasobreviver numa sociedade onde o racismo constitui o fundamentode sua servido. Nesse plano, Mamadou Diouf, em LHistoire duKajoor au XIXe. sicle (Histria do Kajoor no sculo XIX) colocoubem em evidncia a necessidade de considerar essas tradies

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    orais como um discurso histrico na mesma categoria que asobras acadmicas de historiadores profissionais, que trabalhamessencialmente com base em documentos escritos. A manipulaodas tradies orais d conta das preocupaes das populaes quefazem uma releitura de sua histria em funo das necessidadesdo momento.

    Assim, depois da partida de Senghor em 1981, o nacionalismosenegals, conjugando negritude e francofonia, cede espao aosobressalto nacional exaltado por seu herdeiro, Abdou Diouf. Ofilho obrigado a matar o pai em parte devido ao fracasso doEstado-nao e sobretudo da crise econmica sem precedente queestilhaou a unanimidade nacional. O Estado unitrio e modernosenghoriano minado pelas reivindicaes plurais tanto polticascomo culturais. A demisso do ltimo do Imprio, segundo a ex-presso de Sembme Usmane, abre a esperana de uma verdadeiraruptura com a lgica colonial.

    Mas o sobressalto nacional, que serviu 20 anos antes Guinde Seku Tur e ao Mali de Modibo Keita para reatar com astradies africanas, vai remendar a qualquer preo uma identidadenacional e mobilizar diversas memrias para enraizar um poderque no tem mais qualquer autoridade sobre as populaes nemsobre suas decises econmicas.24 O carter oral das civilizaesafricanas reafirmado para restituir aos gris seu lugar na sociedadecomo guardies dessa memria contida nas tradies orais.

    O sobressalto nacional se exprime na dupla escola nova/estatuto cultural nacional atravs de dois plos, tradicional emoderno o historiador e/ou o gri e o jornalista, segundoMamadou Diouf. O historiador Iba Der Thiam, que se tornouministro da Educao nacional, desempenhou um papel importantena organizao de cerimnias grandiosas de comemorao com ofim de fundar uma nova legitimidade poltica atravs da reapro-priao dos valores senegaleses. Mas, o Estado no tem mais osmeios para impor o silncio ou a unanimidade nacional dos vinteprimeiros anos do partido nico. As dissidncias, assim como osparticularismos, se exprimem luz do dia, atravs da referncia histria e sobretudo s tradies orais, de novo atualizadas de

    24 Diouf, M., 1989, pp. 16-17.

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    acordo com as necessidades da causa. A reconstruo da memriade confraria mouride exprime o dinamismo de um retorno sfontes e justifica o partido poltico do novo califa da confraria,Abdul Lahad.

    Do mesmo modo, a celebrao do centenrio da morte deLat-Joor, at ento nico heri nacional, d lugar a uma divisoeqitativa em relao s outras regies, celebrando cada uma seuheri: Mamadou Lamine no leste do Senegal, Maba Diakhu emSine Salum, Aline Sitoe Diatta em Casamansa, etc., so objeto decelebraes e comemoraes, assim como Lat-Joor entre historia-dores e tradicionalistas. Mas a simples evocao da histria no suficiente para que o Estado contenha as foras centrfugas que sedesenvolvem em funo da sua impotncia de conter a crise eco-nmica, poltica e social.

    Assim, a dissidncia armada dos Joola de Casamansaexprime o caso extremo da rejeio da unidade nacional, fundadasobre a tirania da histria colonial que legitima ainda o Estadomoderno no Senegal. E a populao de Fuuta Toro desarmada oudesesperada se refugia na terra para reivindicar a exclusividadedas vantagens do ps-barragem no rio Senegal. Em todos os nveisse apela para as tradies regionais, aldes ou locais com o fim deexprimir reivindicaes num contexto nacional de crise. omomento em que os historiadores profissionais se calam ou sevoltam para a histria presente com vistas a participar no crescentedebate poltico nos jornais particulares e numerosos partidos deoposio que foram reconhecidos pelo poder. Eles vo utilizar osdepoimentos orais das ltimas testemunhas para estudar o perodocolonial, mas sobretudo o presente, que interpela a cada dia a nossaconscincia.

    Paradoxalmente, por intermdio da literatura que os grandestextos picos das tradies orais so outra vez exumados. Asnumerosas verses de Samba Gelaajo Jeegui, bem como a epopiado Kajoor, so obra de literatos que se interessam acima de tudopela poesia e pelo estudo da literatura em lngua africana. Esseengajamento em prol da literatura africana reala a importnciadas tradies orais, que so assim solicitadas por outras disciplinasalm da Histria. No entanto urgente que se favorea uma

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    colaborao mais estreita entre as diferentes disciplinas que tm,todas, necessidade de recolher, transcrever e traduzir as tradiesorais, antes de explor-las, pois, definitivamente, elas permanecemas principais fontes para testemunhar sobre nossas civilizaes daoralidade.

    CONCLUSO

    difcil concluir esta reflexo sobre as tradies orais em funodo grande nmero de linhas de pesquisa que se abre bruscamentepara ns. Durante anos os historiadores privilegiaram em seutrabalho a coleta e o uso das tradies orais e negligenciaram areflexo sobre suas funes numa sociedade da oralidade.

    evidente que as tradies orais, alm do testemunho einformaes que podem conter, antes de tudo constituem discursoshistricos. Esse aspecto foi desprezado pelos primeiros usurios,que privilegiaram seu aspecto de documento oral em oposio oucomo complemento ao documento escrito.

    Sem dvida, as tradies dinsticas, mais numerosas,privilegiaram a histria poltica e somente agora que os historia-dores se interessam pelas tradies aldes e familiares, quepermitem explorar a vida cotidiana das populaes, tanto quantoos conflitos sociais, as evolues demogrficas e climticas.

    Charles Becker tem razo ao especificar que as fontes externasforam privilegiadas em relao s fontes internas na reescrita dahistria da Senegmbia.25 Ele disputa com Mohamed Mbodj acoleta de tradies orais aldes. Quer dizer, as tradies orais, sobtodas as formas, adquiriram direito de cidado na elaborao dahistria africana.

    A metodologia de abordagem dessas tradies orais cada vezmais se sofistica com historiadores profissionais como HenrietteDiabat, que escreveu um Essai de mthodologie des sourcesorales et Histoire propos du Sannvi de Cte-dIvoire (Ensaio demetodologia das fontes orais e histria a respeito de Sannvi de

    25 Becker, Charles, 1987, Rflexions sur les sources de lhistoire de laSngambie, Paidenma 33, pp. 148-165.

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    Costa do Marfim). As diversas verses da epopia de Sundjata ouSamba Gelaajo Jeegui permanecem vivas na memria coletivapara testemunhar o passado longnquo. Mas as tradies oraiscontinuam tambm a ser produzidas pelas sociedades na medidaem que vo dando conta de sua aventura presente, pois so antesde tudo discursos histricos.

    O problema maior, no presente, est em que vivemos numasociedade com diversas velocidades, onde trs categorias de elitecompartilham o campo histrico. So historiadores de elite formadosna escola francesa que moldou o Estado moderno, historiadoresda elite pr-rabe formada nos pases rabes no contexto domodelo muulmano e, por fim, os das elites tradicionais queconservam seu saber com cime. A juno desses trs saberesainda no se deu, isto o que em parte explica a crise do Estadops-colonial, que quer impor uma identidade histrica comumnum contexto de sociedades plurais, que vivem sua histria alongo prazo.

    Essa crise se acentua em particular pelo fato de que a elitepoltica que governa vive fora de sua histria e privilegia o modelocolonial. S cantores como Yussu Ndur ou Baba Maal conseguiramfazer a juno desses diferentes discursos histricos, com basenas variadas fontes de saber das diferentes elites, que voltam ascostas umas s outras. Eles so, no momento, os nicos porta-vozes de uma mensagem que diz respeito s sociedades africanasem seu conjunto, para alm de fronteiras nacionais, espera de umaliderana intelectual e poltica que falar a lngua das sociedadesafricanas em toda a sua dimenso espacial, social e cronolgica.No momento, o ofcio de historiador bem difcil de assumir!!!

  • No momento em que Winsconsin com Jean Vansina e Philip Curtin,Birmingham ou a School of Oriental and African Studies com JohnFage e Roland Olivier e Paris VII com Catherine Coquery, todosclamam a paternidade dos estudos histricos africanos, pode serpresuno falar das escolas de Ibadan, Das Es Salaam, Makerereou Dakar como oferecendo formas alternativas de olhar e escrevera histria africana.

    Essa referncia automtica a escolas fora da frica nosEstados Unidos, na Inglaterra e na Frana nos leva direto, quepesar, velha viso colonial das prprias colnias como vaziosintelectuais ou dependentes. Foi isso que mobilizou Mohamed Sahlia escrever seu manifesto, Descolonizando Histria em meadosdos anos 1960, na esperana de introduzir uma nova forma de seolhar a histria do Magreb. claro, vrios no-africanos tm tidoum ativo papel no desenvolvimento dos estudos histricos africanos,e na verdade na grande aventura de descolonizao das mentes eidias recebidas sobre a frica, previamente vista como umcontinente sem histria e sem civilizaes. Porm persiste o fatode que muitos deles continuam a ignorar tanto os trabalhos dehistoriadores africanos e os profundos motivos que esto por trsdas batalhas dirias nas quais esses historiadores se envolvem emsuas prprias sociedades. Essa a razo pela qual ns precisamosrecriar as trajetrias intelectuais deles a fim de obter uma idia con-sistente de onde eles esto agora em relao ao seu prprio passado.

    Junto com Ibadan com Dike e Ajayi, Dar Es Salaam comTemu e Rodney, e Makerere com Ogot, a Escola de Dakar comCheikh Anta Diop e Abdoulaye Ly tem tido um papel de liderananesse gigantesco processo de descolonizao da histria da fricae, alm disso, reescrev-la para que ela v ao encontro das neces-sidades das suas prprias sociedades. Preocupados essencialmenteem escrever a histria em todas as suas formas, eles nem sempretm refletido o suficiente sobre seu prprio itinerrio intelectual,sobre as prioridades de pesquisa e ensino, e acima de tudo sobre as melhores formas de comunicao dos resultados de suaspesquisas. Escrever histria est indissoluvelmente ligado

    2. ESCREVENDO HISTRIA NA FRICA DEPOIS DAINDEPENDNCIA: O CASO DA ESCOLA DE DAKAR

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    conscincia social de um grupo e uma classe, e um dos seusobjetivos resolver os problemas inerentes preservao dasestruturas essenciais do presente arcabouo legal e poltico.

    Como as preocupaes de historiadores africanos se ligamcom aquelas dos seus colegas acadmicos ocidentais, na medidaem que eles olham em conjunto para a frica? Quais, acima detudo, so as caractersticas distintivas da viso de algum dedentro, tomada de sua prpria sociedade nas vrias fases da lutapara adquirir a independncia e, ento, construir os estadosnacionais at atingir as presentes crises, que esto trazendo baila, mais uma vez e com nova agudeza, a questo do papel dohistoriador em nossa sociedade?

    Desconsiderando a distino artificial entre historiadores delngua inglesa e de lngua francesa, h um grande grau de semel-hana entre as preocupaes de vrias escolas africanas, que tmgradualmente se tornado centros acadmicos independentes para oensino e pesquisa da histria africana. Por razes de tempo e espao,esse relato retrospectivo da produo historiogrfica na fricaenfocar a Escola de Dakar, que temos tido a sorte de conhecerintimamente pelos ltimos trinta e cinco anos ininterruptos.

    A ESCOLA DE DAKAR E O LEGADO DO PASSADO

    A primeira explorao coletiva de produo historiogrfica nafrica pode ser achada nas pginas do livro publicado em 1986por Bogumil Jewsiewicki e David Newbury, que fizeram a algunshistoriadores, africanos e no-africanos, a pergunta bsica: Qual otipo de histria? Para qual tipo de frica? Naquele livro,Mamadou Diouf e Mohamed Mbodj alinhavaram as questesenfatizadas pelos historiadores da Escola de Dakar, enquantoMartin Klein explicou as difceis condies acadmicas quetinham impedido o desenvolvimento de estudos histricos. Aoatingir o cerne da questo, ambos artigos abriram o caminho paraa reflexo retrospectiva sobre a trajetria intelectual seguida pelaEscola de Dakar em sua luta contra o silncio e o esquecimento.

    O principal problema da frica, de fato, que ela tem umaantiga histria, mas o estudo dela foi engessado por um sculo de

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    domnio colonial. Ao mesmo tempo, a redescoberta recente daquelahistria, nos ltimos trinta anos, tem gerado uma vasta quantidadede trabalhos, em francs e ingls, que a elite, e ainda mais apopulao em geral, ainda esto longe de digerir. Ainda assim, umpas que pra de refletir sobre seu passado est condenado, alongo prazo, a perder de vista a verdade e andar perigosamente deriva.

    A Escola de Dakar est estreitamente ligada fundao doIFAN (Institut Francais dAfrique Noire, que posteriormente setornou o Institut Fondamental dAfrique Noire) e ao Departamentode Histria da Universidade de Dakar, que produziu vrias geraesde historiadores dos anos 1950 em diante. Ela se distingue peloseu carter multinacional e tambm multidisciplinar. Dakar, naverdade, um ponto de referncia para toda inteligncia da fricaocidental francesa e da frica equatorial francesa, que o podercolonial tentou moldar sua prpria imagem.

    Por um sculo, a etnologia foi o principal instrumentoideolgico que aqueles poderes usaram para apoiar uma polticade assimilao do tipo que priva as populaes indgenas de suaidentidade. Quando se deu a reao, a histria foi em primeiro lugarvista como um meio de liberar o continente africano, na medidaem que estudar o passado da frica era uma forma de legitimar aluta anti-colonial. Desde o mais incipiente comeo, o trnsito doshistoriadores estava em si mesmo envolvido nessa luta de liberaonacional. Olhando em retrospectiva, isso nos ajuda a entender opapel vital desempenhado por dois historiadores, Cheikh AntaDiop e Abdoulaye Ly, no nascimento e desenvolvimento da Escolade Dakar, que eles influenciaram mais pelo seu envolvimento na lutapatritica do que pela sua atividade letiva. A publicao de Nationsngres et cultures de Cheikh Anta Diop em 1955 e Compagnie duSngal de Abdoulaye Ly em 1958 marca um corte epistemolgicodecisivo com a historiografia colonial, uma vez que eles colocarama histria africana a servio da liberao africana. verdade queo predomnio da etnologia colonial no tinha nunca, durante a eracolonial, desqualificado totalmente a histria como uma chavepara compreender e estudar as sociedades africanas. Apesar daforma brutal com a qual elas foram conquistadas, e suas estruturas

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    polticas e sociais destrudas, aquelas sociedades se agarraramobstinadamente s histrias de seu passado distante, conservadasem sua tenaz memria coletiva e alimentadas pelas tradies oraiscarregadas pelos gris e pelos escritos tarikhs dos escribasmulumanos.

    Os gris, corretamente denominados pessoas da palavrafalada por Sory Camara, transmitiram de uma gerao para outra osrelatos picos das proezas de Soundjata, fundador do imprio Mali,ou os guerreiros de Samba Gelajo Jeegi, comemorados em versosde fora viril, nos quais violncia e morte so temas recorrentes. Elestambm transmitiram memrias das grandes migraes, como a deKoli Tenguela e seu povo, que cortaram o Sudo Ocidental inteiroantes da fundar o reino de Danyanke s margens do Rio Senegal.A histria oral tem suas limitaes, mas os gris transmitiram lindamente e com inigualvel domnio da palavra falada os fatose faanhas de sociedades africanas com o propsito especfico dedar voz ao passado. Em sua novela, Les gardiens du temple, CheikhHamidou Kane Amadou exprime o papel deles como guardies datradio vividamente quando ele escreve: O silncio seu campo deprovas. Para se expressar sem escrever, eles cavam seu caminhono, e batem no silncio, que permaneceu intacto, envolvendo-os emsua imensidade escura. No silncio, eles cavaram cavernas de ritmo,iluminadas pelo flash de guitarras, profundos vales de lendas. Pormilnios, antes da escrita, trabalhando de dentro e em todos os lados,comearam a costurar a mundo negro com sua linha fina, os gris,com suas vozes e os instrumentos que eles construram, eram osdemiurgos criadores desse mundo, e sua prpria testemunha. Elesexaltaram-no, deram-lhe dignidade e peso e, medida que o faziam,elevaram-no acima de si mesmo, sustentado em seu campo debatalha, e preservado em glria e tradio. Ao fazer tudo isso, eleslutaram arduamente contra o silncio e o esquecimento, contra otempo destruidor. Farba Msi Seck, gri da Diallob de FuutaToro, conhecia o poder de seu silncio. Gradualmente, medida queo Isl se disseminava, a elite mulumana comeou a registrar opassado em texto, em rabe ou lnguas africanas usando caracteresarbicos. O mais velho desses registros certamente o Tarikh esSoudan e o Tarikh El Fettach, escritos principalmente no sculo

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    XVII, que relatam o fim do imprio Songhai, mas tambm eventosanteriores, que dizem respeito aos antigos imprios de Gana eMali. O tarikh tradicional nasceu e se desenvolveu nas teocraciasmulumanas de Fuuta Toro, Bundu e Fuuta Jallon, que foramfundadas no sculo XVIII, gerando uma srie de textos escritosem rabe, wolof e mandinga, e tambm um certo tipo de literaturasecular escrita, abrangendo todos os gneros e complementando atradio oral.

    A conquista colonial no final do sculo XIX produziu umaruptura na transmisso da histria pela via da tradio oral e dostarikhs. Tornando um princpio que as sociedades africanas notinham histria, a escola colonial desenvolveu uma cincia ambgua estudos africanos enfatizando a etnologia ao custo da histria.Dessa forma, a ideologia colonial elaborou uma forma de escreveruma histria que era especfica para a sociedade colonial emergentee se alimentava no passado da Europa e da frica. Assim, YoroDiaw, um produto da Ecole des otages fundada em 1857, publicou(em francs) os primeiros contos, transmitidos oralmente, relativosaos reinos Wolof no jornal Le Moniteur du Sngal, de 1863 emdiante. Mais tarde, Henri Gaden, Maurice Delafosse e GilbertVleillard tiveram um papel vital juntando, e publicando em francs,histrias transmitidas oralmente ou por escrito em lnguas africanasou rabe.

    Em 1913, Delafosse publicou as Chroniques du FoutaSngalais, uma traduo de dois manuscritos rabes nos quaisSir Abbas Soh registrou suas memrias de um livro escrito umsculo antes por algum chamado Tafsirou Bogguel AhmadouSamba.1

    Em 1935, Henri Gaden publicou a vida de El Hadj OmarQacida, escrita em fulani por seu companheiro de grande parte davida, Mohammadou Aliou Tyam. Escrita em fulani para alcanaruma massa de leitores, o qacida um longo poema de 1185 versos,com a inteno de que fosse decorado e ento cantado e recitado.2

    1 Maurice Delafose: Chroniques du Fouta Sngalais, traduzido de doismanuscritos no publicados por Sir Abbas Soh, Paris, Leroux, 1913. 328pp.

    2 Mohammadou Aliou Tyam: La vie dEl Hadj Omar, Qacida en pular,publicado por Henri Gaden, Paris, Institut dethnologie, 1935, 289pp.

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    Esse elogivel esforo de coletar as tradies escritas e orais dopassado das sociedades do Senegal e Gmbia de forma algumamodifica o obstinado preconceito colonial de que os povosafricanos no tm histria e entram na histrica apenas pelainterveno colonial. Isso explica porqu o estudo das sociedadesafricanas foi dominado at muito recentemente pela etnologiacolonial, fixada em uma viso esttica do desenvolvimento dafrica. Por todo o perodo colonial, entretanto, as elites africanas,tanto tradicionais quanto coloniais, usaram a histria como umaarma na reivindicao ou negociao de privilgios com ospoderes coloniais, que inabalveis impuseram seu novo mandadona gerncia do povo e recursos africanos.

    O interesse na histria continuou a crescer, apesar da atitudenegativa para com o passado de sociedades africanas exibido pelospoderes coloniais, que procuraram assimil-los cultural ocidental,educando-os para virar as costas para as realidades africanas.Assim os trabalhos de Yoro Diaw sobre os reinos Wolof, publicadoem Le Moniteur du Sngal em 1863, foram tomados por Gaden eRousseau em 1929 e 1933, e ento por Bassirou Ciss em 1941,antes de serem publicados em Les Esquisses Sngalaises porVincent Monteil em 1966. Mas foi Amadou Duguay Cldor quem,em seu livro de 1912 sobre a batalha de Guil, reivindicou primeiroo direito de escrever a histria de Kajoor por causa de seu profundoconhecimento do pas e, sobretudo seu acesso informao semnecessidade de um intrprete. O ponto mais importante, noentanto, que sua tentativa de escrever histria intimamenteligada ao nascimento do nacionalismo senegals, apesar daambigidade que isso pode ter em termos do projeto colonial.Esse primeiro professor, o filho de um spahi, era consciente dadiscriminao racial e reivindicava igualdade em nome dosacrifcio que seus ancestrais tinham feito pela Frana desde osdias da Revoluo Francesa. Sua reivindicao, que ele repetiucomo presidente do Conselho Colonial em 1927, caiu em ouvidossurdos, e isso aconteceu no muito antes que as frustraessentidas pelos cidados de quatro comunidades e as pessoas dointerior cristalizassem, se combinassem, e dessem luz aonacionalismo senegals.

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    A ESCOLA DE DAKAR E O MOVIMENTO NACIONALISTA DE INDEPENDNCIA

    Esse nacionalismo foi baseado numa ambigidade fundamentalporque a reivindicao por direitos iguais com os franceses estavaem conflito com o colonialismo, que nega a priori a identidade dospovos indgenas. Os nacionalistas invocaram sucessivamente opassado colonial e tradies histricas para pleitear seu lugar aosol. Vrias abordagens histricas foram elaboradas, de acordocom a necessidade, para marcar as lutas incertas desse ambguonacionalismo emergente.3 Como diz Diouf, o desenvolvimento deuma memria misturada, a das Quatro Comunidades, e deassimilao que poderia reivindicar uma herana dupla africana eeuropia, foi substituda, como resultado da excluso colonial, portradies dinsticas, para proporcionar o fundamento para asreivindicaes polticas e por terra das famlias reais. Essa tradiodinstica dos chefes wolof colocou lado a lado tradies de famliae tradies locais, sublinhando a aguda contradio entre uma ticaaristocrtica e uma tica da vida diria.

    A primeira ruptura foi principalmente devido oposio entrea nova elite nativa representada por Senghor, que tinha acabadode conquistar a cidadania em 1946, e as pessoas das QuatroComunidades representado por Lamine Gueye, que defendia aassimilao. Dessa forma, dois tipos de memrias estavamemergindo: a dos gris, que serviam o sistema tradicional dechefes (parte da administrao colonial), e a memria no estilo deirmandade de comunidades mulumanas que eram organizadas emtorno da economia colonial. Irmandades religiosas supervisionaramo mundo rural e tentaram ganhar sua independncia tanto daadministrao colonial quanto do sistema de chefes herdados deuma aristocracia derrotada pela Frana no final do sculo XIX.4

    3 Diouf, Mamadou em seu artigo inovador sobre as representaes da histria elegitimidade poltica no Senegal entre 1960 e 1987 (Reprsentations historiqueset 1gitimits politiques au Sngal, 1960-1987), abiu uma luminosa perspectivapara reflexo sobre o discurso histrico. Nesse artigo eu simplesmente indico olugar da tradio oral nesse discurso nacionalista, que foi predominanteaproximadamente da ascenso da cidadania em 1946 ao advento do sistemamultipartidrio em 1974, j que foi, de fato, a mesma classe dominante quedeteve o poder durante o perodo anterior e posterior independncia em 1960.

    4 Diouf, Mamadou, 1989, pp. 14-15.

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    Em 1948 a ruptura entre Lamine Gueye e Leopold SedarSenghor deu origem ao BDS, o Bloc des Masses Senegalaises,que se apoiava nas redes marabout do interior. Senghor inventouo conceito de Negritude para restaurar os valores do mundo negroe injetar vida nova neles atravs da combinao deles com valoresfranceses. Assim o tringulo ideolgico de Negritude, mundo delngua francesa e socialismo africano foi construdo com umamemria dual, aquela de Faidherbe como o criador desse Senegalmoderno e, ao seu lado, o plo tradicional, Lat-Joor. Mas aNegritude colocou mais nfase na etnologia do que na histria,com o objetivo de criar uma identidade africana ou senegalesadiferente daquela do ocidente. Isso no impediu Senghor depostular uma mistura racial, que ele via como a melhor forma deatingir a civilizao do universal e, portanto, modernidade.

    As palavras do gri ou o tradicional contar de histrias foramvistos do ngulo do seu ritmo potico, da a importncia queSenghor dava poesia, literatura, drama e arte. Quando a histriafoi trazida cena, o objetivo foi escolher Lat-Joor como o herinacional personificando as tradies aristocrticas e valores dedignidade e sacrifcio, dando a base para a ideologia nacional doSenegal independente sob a lei de ferro de um partido nico. Deacordo com o conceito de Negritude, as tradies orais eramepisdios que deviam servir para fortalecer os sentimentos deunidade nacional. Elas foram vistas, sobretudo como crnicas elendas; sua transcrio e seu mrito literrio prevaleceram sobre oseu contedo, e de fato sobre a histria africana, que Senghordeixou de lado durante seu governo.

    exceo da pr-histria, que recebeu ateno especial,Senghor encarava a matemtica e a filosofia, junto com o latim,como os contedos primordiais. No obstante, ele se empenhou parapreservar os arquivos coloniais do Senegal e da frica OcidentalFrancesa, que eram os nicos que tinham sido guardados localmenteem todo o imprio colonial francs. A exibio dos arquivos 3000 anos de histria escrita do Senegal no primeiro aniversrioda independncia mostrou que o novo estado preferia documentosescritos como a principal fonte de histria da nao emergente efoi firmemente alicerada nos moldes da herana colonial.5

    5 Diouf, Mamadou, 1989, pp. 16-17.

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    Senghor criou o Centre dEtudes des Civilisations (Centropara o Estudo de Civilizaes) em Dakar, com uma revista chamadaDembe Ak Tev, um peridico com enfoque sobre mitos e desenhadapara coletar, transcrever e preservar tradies orais como umaforma de assegurar o predomnio da escrita sobre a transmissooral. Naquela poca, significantemente, a maioria dos opositorespolticos de Senghor e da ideologia de Negritude eram historiadoresprofissionais, exceto Majmout Diop, que, incidentalmente, escreveuum ensaio sobre a histria das classes sociais no Senegal e Mali.Eles incluam Cheikh Anta Diop, Abdoulaye Ly, Moctar Mbow eAssane Seck nos primeiros anos de independncia.

    Em seu livro Nations Ngres et Cultures (Naes Negrase Culturas), publicado em 1955, Cheikh Anta Diop foi o primeiroa basear sua ao poltica no reconhecimento da histria da frica,que remonta s origens da civilizao uma vez que Egito eranegro. Ele queria restaurar a auto-confiana dos africanos. Areconstruo da histria africana abriu a frica para o conceitouniversal do Fara e o argumento da legitimidade da unidadecultural africana do seu pan-africanismo e abordagem federalista.Sua preferncia pela frica pr-colonial contrastou com a pre-ferncia de Senghor pelo perodo colonial. Mas, assim comoSenghor, Cheikh Anta Diop desconsiderou as tradies orais e asmonografias que no se encaixavam no esquema do egito-faranicoe, portanto, da unidade cultural do continente. A frica, assim,ganhou um firme alicerce na histria, e Cheikh Anta Diop colocoua nfase na continuidade de sua histria, por isso ele destacou assimilaridades entre as instituies da frica pr-colonial e as doEgito antigo.

    Em contraste com as idias de Negritude e com o mundo delngua francesa, ele designou um papel chave para as lnguas afri-canas na aquisio da modernidade. Isso torna fcil entender airreconcilivel oposio poltica entre esses dois homens, a exco-munho de facto de Cheikh Anta Diop da universidade francesa eo fato de que ele foi silenciado na Universidade de Dakar toda a suavida. Mas no fim Senghor evitou um confronto cultural com CheikhAnta Diop, que foi proclamado pelo Festival de Artes Negras,organizado por Senghor em 1966 para celebrar a Negritude, como

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    o intelectual africano que tinha deixado as maiores marcas em suagerao. De fato, o paradoxo envolvendo Cheikh Anta Diop queno debate cultural ele colocou a nfase na unidade, na liberaototal do continente e na restaurao da dignidade africana, maspoliticamente ele se restringiu oposio dentro dos estreitos limitesdo estado-nao do Senegal de uma forma contrria sua idiafederalista. Como resultado, apesar de seu papel decisivo na com-pilao da histria africana pelo africanos, sua influncia diretano desenvolvimento