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filosofia, biopoder

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  • ECOS | Volume 4 | Nmero 2 Biopoltica e governamentalidade: uma anlise da Poltica Nacional sobre Drogas Biopolitics and governmentality: an analysis about the national policy on drugs

    Pablo Severiano Benevides, Tlio Krcio Arruda Prestes

    Resumo Neste trabalho debruamo-nos sobre a Poltica Nacional sobre Drogas (PNAD) com vistas a analisar como o uso de drogas aparece nesse documento como mais um dos fenmenos relativo vida da espcie e que passa a ser alvo de uma governamentalizao. Utilizamo-nos do pensamento de Foucault enquanto ferramenta para construir e analisar a problemtica do trabalho medida que empreendemos uma anlise pormenorizada das noes de governamentalidade e de populao. Na anlise da PNAD, destaca-se o modo como os dispositivos de segurana agenciam mecanismos de preveno e antecipao ao fenmeno do uso de drogas na tentativa de control-lo de forma a minimizar os possveis prejuzos de um uso indevido. Nesse processo enfatizado, ainda, como um conjunto de saberes inserem a vida da populao e seus regulamentos nos clculos dos riscos e na gesto de modos de vida. Palavras-chave Biopoltica; governamentalidade; Poltica Nacional sobre Drogas. Abstract This paper focuses on the National Policy on Drugs (PNAD) in order to analyze how the use of drugs appears in that document as one more of the phenomena concerning the specie life and that becomes a target of a governmentalisation. We relied on the thought of Foucault as a tool that enabled us to build and analyze the matters relating to labor as we conducted a detailed analysis of the notions of governmentality and population. In the analysis of PNAD, it must be highlighted the way safety devices agency mechanisms of prevention and anticipation of the phenomenon of drug use in an attempt to control it, in order to minimize possible damage from improper use. In this process it is also emphasized the way a set of knowledge insert people's lives and it's regulations in the calculation of risks and in the management of lifestyles. Keywords Biopolitics; Governmentality; National Policy on Drugs

    Pablo Severiano Benevides Universidade Federal do Cear Graduado em Psicologia, Mestre em Filosofia e Doutor em Educao pela Universidade Federal do Cear. Professor Adjunto I do Curso de Psicologia da UFC e Professor do Programa de Ps-Graduao em Psicoloiga da UFC - linha de pesquisa: Cultura e Subjetividades Contemporneas. pabloseverianobenevides @hotmail.com

    Tlio Krcio Arruda Prestes

    Universidade Federal do Cear Estudante do 10o semestre do Curso de Psicologia da Universidade Federal do Cear. Bolsista do Programa de Educao Tutorial - PET. [email protected]

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    Introduo Este estudo objetiva investigar, no mbito da Poltica Nacional Antidrogas PNAD (BRASIL, 2008) aprovada em 27 de outubro de 2005, como o uso de drogas codificado como um problema concernente vida da populao, bem como as estratgias que so organizadas para san-lo. Para traar os descaminhos que tornaram possvel a inveno da proble-mtica deste trabalho, ser necessrio esboar inicialmente quais foram os prin-cipais conceitos-ferramentas, os indicadores tticos (FOUCAULT, 2008) que nos acompanharam e nos referenciaram durante as errncias do pensar. Apesar de afirmarmos que estas ferramentas forjaram a problemtica desse trabalho, seria equivocado dizer que a escolha destas deu-se porque se adequariam melhor ao objeto estudado, e isto por dois motivos relacionados entre si. O primeiro reside no fato deste trabalho no se tratar de um estudo que tenta descrever um objeto ou represent-lo a partir de uma teoria, pois isso nos levaria a abordar historicamente um objeto como se este fosse um dado, como algo que sempre esteve a, empreendendo uma espcie de histria natural de determinado objeto, sem atentar-nos para as condies de emergncia e criao disto que se chama de objeto. Na esteira dessas reflexes, o segundo motivo reside no fato de que esta delimitao do objeto como algo j dado, que se tenta apreender ou descrever por meio de uma teoria, implica em uma diviso binria entre teoria e prtica. Pois a teoria representaria, sob esse ponto de vista, um ato prvio ao contato com objeto e, quando muito, lanaria um olhar areo, de fora, sobre este objeto. E, como outro lado da moeda, uma vez de posse do objeto, a teoria poderia ser dissolvida por completo na relao prtica com o objeto e o problema que move a pesquisa desaparecia to logo fosse encontrada a sua soluo (DELEUZE, 2009). Nesse artigo tentamos borrar um pouco essas demarcaes estticas, desvencilhando-se desses binarismos que tendem a desqualificar um dos termos da relao: se os enunciados e as palavras que constituem uma teoria s tem significado na corrente do pensamento e da vida, no h como separar teoria e prtica (VEIGA-NETO, 2011, p. 20). Complexificar essa relao teoria-prtica , portanto, entend-la como um sistema de reveza-mentos em um conjunto, em uma multiplicidade de componentes ao mesmo tempo tericos e prticos (DELEUZE apud FOUCAULT, 2007a, p. 70). Desta forma, apresentaremos nos captulos subsequentes esses conceitos-ferramentas primordiais que possibilitaram operar dentro de nossa grade de anlise e que criam o solo sobre o qual assentamos nossas problematizaes: a) o modo como Foucault entende os mecanismos de poder e seus efeitos; b) o conceito de governamentalidade e governo; c) os dispositivos de segurana enquanto tcnica de governo d) a biopoltica enquanto tecnologia de poder. A partir da, poderemos situar tambm o modo como utilizaremos as noes de Estado e de governamentalidade, bem como a via de anlise que adotarei para investigar a Poltica Nacional Antidrogas (PNAD). Dos indicadores tticos [...] se voc quiser lutar, eis alguns pontos-chave, eis algumas linhas de fora, eis algumas travas e alguns bloqueios. Em outras palavras, gostaria que esses imperativos no fossem nada mais que indicadores tticos. Cabe a mim saber, claro, e aos que trabalham no mesmo sentido, cabe a ns por conseguinte saber que campos de foras reais tomar como referncia para fazer uma anlise que seja eficaz em termos tticos. Mas, afinal de contas, esse o crculo da luta e da verdade, ou seja, justamente, da prtica filosfica. (FOUCAULT, 2008, p. 06).

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    Um dos motivos que nos levaram escolha desses indicadores tticos deu-se pelo fato de fornecerem elementos para que fizssemos uma anlise em torno da Poltica Nacional de Antidrogas (PNAD) que no girasse em torno de uma avaliao dessa poltica pblica em termos de eficcia e efetividade, ou ainda no registro da (des)humanizao das intervenes adotadas. Neste trabalho, portanto, no nos propomos a responder questionamentos do tipo: qual modelo de interveno seria mais economicamente vivel e mais efetivo? O que iria abrandar ou modificar as taxas de mortandade pelo uso de drogas? Vocs esto a favor de que modelo? revelia de responder a esses questionamentos, interessa-nos problematizar quais as condies de possibilidade para a emergncia destas perguntas e quais os regimes de verdade so agenciados nesse processo. Em linhas gerais, interessa-nos investigar como o uso de drogas aparecer na PNAD como mais um efeito, instrumento e via de abertura para as prticas governamentais, na medida em que passam a ser inscrito na srie de fenmenos relativos vida da espcie, populao. Ao invs de partir do uso de drogas como um objeto de estudo sobre o qual se deveria pensar com vistas a (re)criar um modelo mais econmico e/ou mais humano para a poltica nacional sobre drogas, pretendemos problematizar como o uso de drogas aparece como algo a ser discutido, avaliado e ponderado acerca do modo de governar esse fenmeno, esse campo de aes. Trata-se, portanto, de situar-se no ponto de investigao no das origens dessas prticas, nem tampouco da avaliao destas, mas sim nas condies de suas emergncias. Nesta medida, propomo-nos a fazer breves apontamentos que possam contribuir para uma anlise genealgica deste fenmeno. Faz-se necessrio destacar que, enquanto pesquisadores, ns tambm estamos implicados em complexas tramas de poder, e que a teoria e/ou os discursos no apenas descrevem ou representam a histria e as lutas, de forma neutra, mas, sobretudo, funcionam enquanto um instrumento de combate (e por isso tambm a razo de entend-los enquanto indicadores tticos): [...] o discurso, no simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominao, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar. (FOUCAULT, 1999, p. 10) Nessa luta, nossas anlises acerca da PNAD tm, por inspirao e deciso metodolgica, algo como uma atitude anarqueolgica. Isto ocorre mediante os efeitos da assuno de que nenhum tipo de poder possui legitimidade intrnseca e existe por si mesmo e que, portanto, no h tambm nenhum tipo de poder que seja inevitvel, que no possa ser transformado. O mtodo anarqueolgico, grosso modo, apresenta-se como [...] postura metodolgica e atitude filosfica de transgresso diante do poder da verdade (AVELINO, 2011, p. 31), da qual o filsofo lana mo para problematizar as relaes entre os sujeitos e a verdade, em especial ao (auto)governo dos homens pela manifestao do verdadeiro sob a faceta da subjetividade. Desse modo, tomaremos por base a noo de governo de uma maneira mais ampla, no correspondendo to somente ao regime poltico de um Estado, nem tampouco se resumindo ao poder executivo, mas sim a [...] tipos de racionalidade que envolvem conjuntos de procedimentos, mecanismos, tticas, saberes, tcnicas e instrumentos destinados a dirigir a conduta dos homens (GADELHA, 2009, p. 120). A respeito desse modo de gerir a conduta dos homens, Foucault, nas diferentes fases de seu pensamento, nos traz aos olhos que tramas de poder esto em cena, fazendo aparecer que estratgias, apoiando-se em que justificaes, agenciando que regimes de verdade durante esse processo de governo [...] no h poder que se exera sem uma srie de miras e objetivos (FOUCAULT, 2010a, p. 105). Em consonncia a estas proposies, o filsofo empreende uma anlise de como os mecanismos de poder principalmente a partir da passagem para as sociedades disciplinares atuam de maneira refinada,

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    num jogo de aes programadas, em que o dispndio de poder e o uso da fora so vistos como uma espcie de fracasso do poder. Em resumo, h no pensamento foucaultiano uma alternativa para se estudar os mecanismos de poder que no apenas em seu vis negativo, como aquilo que reprime, que constrange, que obriga e que, em ltima instncia, age fundamentalmente por meio da violncia. Ao contrrio, arriscamos dizer que nas relaes de poder h algo do nvel do encantamento, do deslumbramento para um engajamento do sujeito: o poder flerta, persuade e corteja mais do que obriga e se impe. Se ele [o poder] forte, porque produz efeitos positivos a nvel do desejo como se comea a conhecer e tambm a nvel do saber (FOUCAULT, 2007b, p. 148). Ainda a respeito da distino entre o modo como o poder atua e o modo como a violncia atua, Veiga-Neto (2008) discorre: Em suma, enquanto o poder dobra porque se justifica e negocia e, com isso, se autolegitima , a violncia quebra porque se impe por si mesma. Enquanto aquele se d agonisticamente, esse se d antagonicamente (VEIGA-NETO, 2008, p.29). Baseando-nos na concepo nominalista do poder, tal como assumida por Foucault (2010a), entenderemos as manifestaes de poder a partir de seus exerccios, no que esta tem de agonstica e imanente. Ao falarmos do carter imanente do poder, queremos salientar que as relaes de poder no assumiriam uma relao de exterioridade a outras relaes no haveria relaes sexuais, relaes lingsticas, relaes epistemolgicas se acoplando como algo a mais s relaes de poder. Em outras palavras, no existiriam essas outras relaes que agiriam sobre as relaes de poder, de modo que no haveria um fora do poder (FOUCAULT, 2010a). Nesses termos, um dos desafios compreender essa poltica pblica (PNAD) sem recorrer ao Estado como espao privilegiado, como a grande instncia totalitria que globarizaria ou, em todo caso, organizaria os procedimentos, as tticas, os mecanismos de poder. Na contramo desse tipo de anlise, e inspirado nas reflexes foucaultianas presentes no curso Segurana, Territrio e Populao (2008), interessa-nos, ao estudar o Estado, partir para anlises exteriores a este. Essas anlises seriam exteriores em 3 sentidos: 1) exteriores a essa instituio; 2) exteriores em relao funo dessa instituio; e 3) exteriores em relao ao objeto. Como apontam Benevides (2013) e Gadelha (2009), Foucault, nos cursos ministrados entre os anos de 1975 a 1979, empreende um movimento de deslocamento do conceito mais amplo de governo para o conceito mais especfico de arte de governo. Segundo os referidos autores, este deslocamento permitir que Foucault trabalhe com esse conceito de arte de governo de uma forma generalista o bastante para estudar de modo amplo as diferentes racionalidades de governo, e imanente o suficiente para que possa dar conta das singularidades de cada poca, sem apaziguar suas diferenas e sem tampouco recair em uma iluso retrospectiva. Nesse momento da obra do pensador francs, vemos Foucault deslocar-se do conceito de guerra para tomar o governo enquanto analisador poltico privilegiado das relaes de poder, podendo atravs deste conceito estudar as diferentes formas de governo das condutas, e, por extenso, aproximar-se da questo do autogo-verno e das tcnicas de si (GADELHA, 2009; VEIGA-NETO, 2011) Depois de abordarmos esse deslocamento feito por Foucault nos voltaremos agora ao conceito de governamentalidade. Esse conceito constituir-se- nesse trabalho como ferramenta essencial para as anlises que sero feitas em torno da PNAD, pois a partir deste que poderemos escrutinar o crescente movimento de governamentalizao do usurio de drogas, no qual as prprias reformulaes e discusses em torno da PNAD so efeitos desta. Como apontam Benevides (2013), Gadelha (2009), Bujes (2002) e Avelino (2011) quando Foucault situa suas anlises em torno da

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    governamentalidade, o autor quer pr a cabo uma investigao acerca tanto do que se supe ser a melhor prtica de governo, como tambm acerca dessa reflexo que se faz na e sobre as prticas de governo. Foucault ocupa-se de estudar essa preocupao em torno do problema do governo em que h, em todo caso, um questionamento em torno de quais seriam as melhores maneiras de se governar, por exemplo: uma casa, uma famlia, o sujeito infantil, o sujeito escolar, o sujeito usurio de drogas e a si prprio, ou seja, mais uma vez o que se problematiza so as relaes entre governo e sujeito. Assim, para lidarmos com o registro e o estatuto das prticas de governo nos estudos foucaultianos sobre a governamentalidade, adotaremos a sugesto de Veiga-Neto (2005) e substituiremos o termo governo pelo termo governamento. Feitas essas ponderaes, convm ento matizarmos melhor em que registro a problemtica da governamentalidade se situa e inscreve para si. Munido das reflexes trazidas por Benevides (2013) podemos apontar 4 articulaes principais que so estabelecidas atravs desse analisador: 1) a governamentalidade no corresponde s prticas reais de governo, mas reflexo em torno da melhor forma de governar; 2) a governamentalidade remete s prticas de governo como exteriores ao governo medida que estas estariam indexadas verdade, portanto, como se fossem neutras e a-polticas; 3) a governamentalidade diria respeito s estratgias perifricas de governo com vistas prever e controlar o campo de aes dos homens; 4) a relao que a governamentalidade institui no o da mera obedincia descendente e autoritria, mas situa-se no plano de um engajamento subjetivo, de uma relao de sujeio. Finalmente, gostaramos de salientar que nosso interesse de estudo em torno da problemtica da governamentalidade nesse trabalho refere-se, sobretudo, a um tipo de prtica de governo caracterstico da modernidade, que emerge a partir do sculo XVIII, que tende a investir sobre a vida da populao para major-la, para faz-la viver, para geri-la no que tm de natural, regulando os seus processos, que corresponde, pois a uma economia de poder denominada por Foucault de Estado de governo ou ainda sendo definida em termos de uma Biopoltica (FOUCAULT, 2010a, 2008). Soberania, biopoder e governo dos homens A fim de conseguirmos problematizar como o uso de drogas foi codifi-cado como mais um elemento correspondente naturalidade da populao, e como a partir da passou a ser alvo de prticas governamentais, necess-rio entender que novo tipo de tecnologia de poder criou as condies de possibilidade para que pudesse surgir esses mecanismos de preveno e controle sobre a populao. Segundo Foucault (2008), somente a partir do sculo XVIII, a populao deixa pouco a pouco de ser caracterizada apenas como o conjunto dos sditos de um soberano, e passa a ser investida enquanto um objeto de uma tecnologia poltica de governo. Durante o referido sculo, desenvolve-se um tipo de investimento sobre a multiplicidade dos corpos que se diferencia do tipo de relao que era estabelecida na soberania e nas disciplinas. Apesar de na soberania tambm existir uma relao do soberano com a multiplicidade, esta se inscreve apenas por intermdio do territrio. Na soberania h uma primazia do territrio - os sditos s aparecem porque, enfim, so eles que habitam aquela regio, mas estes so apenas variveis em relao ao territrio. A relao que o soberano mantm com o principado uma relao de exterioridade, singularidade e posse j que o prncipe detentor do territrio o recebeu por herana ou por conquista. Devido a estas caractersticas, a relao do prncipe com seu principado tambm fragilizada pela iminncia constante de uma guerra interna ou externa: da advm o fato

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    de que a finalidade do soberano no proteger os sditos, mas proteger essa relao frgil do prncipe e seu principado. Grosso modo, o objetivo na soberania era manter a prpria soberania, ou seja, necessariamente estrutu-rar o seu espao: garantir a segurana do soberano e de seu territrio. (FOUCAULT, 2008) Foucault, neste mesmo curso (2008) aborda como no perodo que se estende do sculo XVI at ao sculo XVIII floresce uma literatura com tratados de filosofia e cincia poltica que cria um conjunto de parmetros para definir o que seria um bom governo e o que seria, pois, a arte de governar. Essa literatura no tem como finalidade dispor conselhos ao prncipe ou ao soberano sobre como ele poderia bem governar o seu territrio, mas trata de responder pergunta pela melhor forma de governar: o problema do governo, em seu sentido mais amplo, que esses autores vo se colocar. Com efeito, o que notrio salientar que essa no uma simples mudana em termos de vocabulrio, mas h a tambm uma mudana em termos econmicos e polticos. No sculo XVI desenvolve-se toda uma literatura em que se observa uma disperso de modalidades de governo e uma ampliao das finalidades de governar, sendo estas diversas e especficas s coisas que se governam: relao dos homens com a fome, os costumes, as epidemias, etc. Eis a mais uma ruptura: governam-se coisas. O exerccio do governo no est mais delimitado em termos da relao do prncipe com o principado, se a posse do territrio aparece apenas como mais uma das variveis que h de se controlar ao se gerenciar a relao dos homens com essas coisas de uma maneira estratgica. [...] enquanto a finalidade da soberania est em si mesma e enquanto ela tira seus instrumentos de si mesma sob a forma da lei, a finalidade do governo est nas coisas que ele dirige; ela deve ser buscada na perfeio, na maximizao ou na intensificao dos processos que ele dirige, e os instrumentos do governo, em vez de serem leis, vo ser diversas tticas. (FOUCAULT, 2008, p. 132) Nesse nterim, preciso salientar que o desenvolvimento dessa arte de gover-nar durante os sculos XVI e XVII esteve fortemente imbricada com o estabele-cimento do aparelho da monarquia administrativa e, concomitante, com o cresci-mento de um conjunto de saberes, entre eles a estatstica, que se institua enquanto uma cincia do Estado. Alm disso, necessrio salientar essa arte de governar desenvolveu-se no sem percalos e tensionamentos, vendo-se bloqueada durante o sculo XVII (FOUCAULT, 2008; GADELHA, 2009). No obstante, o pice e desbloqueio dessa arte de governar deu-se apenas no sculo XVIII, com o aparecimento da populao como objeto tcnico poltico de governo, enquanto nvel pertinente da realidade, considerado como [...] um conjun-to de processos que preciso administrar no que tm de natural e a partir do qu tm de natural (FOUCAULT, 2008, p. 92). A populao no corresponde simples-mente ao agrupamento de todos os sditos de um soberano, mas toma corpo enquanto um campo pertinente da realidade, em termos de gesto econmica, que ser objeto poltico do governo. Toda essa multiplicidade configurada como tendo em si processos de conjun-to que lhe so naturais, constitutivos, sendo passveis de serem governveis medida que se encontram suas regularidades, suas constncias. Nesse processo, uma srie de saberes, como a Estatstica, a Geografia, a Demografia, a Economia, etc. vo se constituindo como saberes do governo, ao passo em que criam um campo pertinente da realidade que a populao. Isto ocorre ao passo em que fornecem dados que permitem quantificar e encontrar regularidades nesses processos de conjunto que seriam relacionados ao corpo-espcie, vida (FOUCAULT, 2010a, 2008). Dentre esses processos, incluem-se as taxas de natalidade, de mortalidade, o nmero de habitantes, a expectativa de vida, enfim, todo um poder que investe sobre a vida de maneira a conhec-la, positiv-la, otimiz-la. Ou seja, para que esse poder que investe sobre a vida se estabelea foi necessrio que a vida fosse entendvel em

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    cada um de seus nfimos detalhes para que se pudesse major-la, incit-la, para que se fizesse viver. Nesse nterim, Foucault (2010a) descreve como a populao torna-se, ao mesmo tempo, objeto e sujeito de uma nova tecnologia de poder que, por sua vez, passa a tomar a vida, mais do que a morte, como aquilo sobre o qual esse poder deve incidir com o intuito de majorar as foras produtivas, instrumento fundamental para o fortalecimento do prprio capitalismo, sem que haja um comprometimento no domnio desta populao. Deste modo, esses mecanismos de poder teriam como funo produzir sujeitos ao mesmo tempo fortes e saudveis, mas tambm dceis, fceis de serem sujeitados e governveis. Contudo, o desenvolvimento desta nova configurao das tecnologias de poder, que Foucault denominou de biopoder ou biopoltica, s foi possvel devido a um movimento anterior de investimento sobre o corpo. Isso se deu em termos de uma gesto econmica do corpo, bem como de uma disciplinarizao do corpo-mquina com o fim de esquadrinh-lo, conhec-lo, submet-lo a uma ortopedia fsica e moral, e assim faz-lo funcionar de maneira mais eficaz (FOUCALT, 1997). Segundo Foucault, o poder sobre a vida, o biopoder, passou a se desenvolver a partir do sculo XVII, com base em dois polos principais: o primeiro compreendeu a antomo-poltica do corpo humano, que figurou o corpo como mquina, a fim de controlar e ampliar suas foras para melhor utiliz-lo; o segundo polo, aps metade do sculo XVIII, configurou a biopoltica populacional, que se centrou no corpo como espcie, como suporte dos processos biolgicos (natalidade, mortalidade, longevidade, nvel de sade). Tais elementos constituintes foram indispensveis para o desenvolvimento capitalista. (SILVA, MIRANDA, GERMANO, 2011, p 153) Outrossim, o desenvolvimento dessa tecnologia de poder sobre a vida no se d de maneira separada, em dois polos distintos e distantes, mas tangenciando um acoplamento da fenda existente entre esses dois polos: um polo individualizante centrado no corpo-mquina, e correspondendo ao que poderamos chamar de jogo do pastor, e outro polo mais generalista, que poderamos definir enquanto o jogo da cidade, voltado ao corpo-espcie, populao. Segundo Bujes (2002), a governamentalidade biopoltica se coloca uma funo paradoxal de concatenar tanto esse tipo de relao de governo individualizante como o zelo do pastor que estende seu olhar para cada ovelha individualmente, podendo deixar todo o rebanho para socorrer uma ovelha desgarrada e essa outra relao de governo mais generalista, desse olhar que se estende a coletividade, aos conjuntos populacionais. A assuno da populao enquanto campo da realidade, ao ser instituda como objeto tcnico-poltico de governo, como finalidade de uma prtica governamental, que tende a maximiz-la, positiv-la, repercute tambm em um movimento de crescente governamentalizao do Estado. Pois essas prticas governamentais, como discutido anteriormente, s podem ser entendidas em suas estratgias de governamento, em que o Estado assume uma dupla relao de interioridade e exterioridade, pois [...] so as tticas de governo que, a cada instante, permitem definir o que deve ser do mbito do Estado e o que no deve, o que pblico e o que privado, o que estatal e o que no estatal. (FOUCAULT, 2008, p. 145) Sob a insgnia desse processo de governamentalizao do Estado que o uso das drogas aparecer na PNAD a saber: como mais um desses processos inerentes vida que o Estado deve se imiscuir da tarefa de geri-los, j que entre as vrias questes do dia-a-dia que exigem ateno especial, temos o tema drogas. um assunto que, direta ou indiretamente, diz respeito a todos ns governo e sociedade. (BRASIL, 2008, p. 12). Seguindo nesta linha de raciocnio que o governo delimita sua funo: Nosso papel, como governo, consiste em envolver e dar voz a todos os interessados nesta questo, para facilitar a criao de polticas que estejam adequadas ao momento (BRASIL, 2008, p. 10).

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    A poltica nacional sobre drogas (PNAD): biopoltica e governamentalidade Dedicar-se a essa temtica tarefa de inquestionvel relevncia. Exige responsabilidade e conhecimento. Conhecimento cientfico atualizado e conhecimento da vida. (BRASIL, 2008, p. 10) Antes de prosseguir com a apresentao da Poltica Nacional sobre Drogas (PNAD) e com as anlises desse documento convm esclarecer que no considerei a legislao e as polticas sobre drogas como episdio fundante no qual o uso de drogas passaria a ser objeto de uma interveno poltica. A poltica aqui entendida muito mais como efeito, como mais um dos ns, de um complexo emaranhado de agenciamentos coletivos que permitem o governamento das drogas. A PNAD, sancionada em 2005, se instituiu como um realinhamento da Poltica Nacional Anti-Drogas que era ento vigente desde o ano de 2001. Essa reorganizao da poltica ocorrera depois da consecuo de trs fases distintas de preparao a nvel internacional, regional e nacional. Segundo o que consta na apresentao da poltica essas trs fases seguiam uma estratgia metodolgica para garantir a interao entre governo e sociedade (BRASIL, 2005 apud BRASIL, 2008). A PNAD est dividida em 5 captulos: 1) Pressupostos Bsicos e Objetivos da PNAD; 1) Preveno; 2) Tratamento, Recuperao e Reinsero Social; 3) Reduo de Danos Sociais e Sade; 4) Reduo da Oferta Represso e 5) Estudos, Pesquisas e Avaliaes. Estes captulos so ainda precedidos por uma seo com os Pressupostos da PNAD, e outra com os Objetivos da PNAD. Apesar de a PNAD fornecer alguns pressupostos e objetivos que fundamentam a poltica sobre drogas, bem como dispor de orientaes estratgicas para reduzir a oferta de drogas, prevenir o uso indevido e ainda organizar tratamentos teraputicos, no h nesse documento nenhuma conceituao mnima acerca do que est sendo considerado como droga. Contudo, a lei n 11.343/2006 (conhecida como Lei de Drogas) que institui o Sistema Nacional de Polticas sobre Drogas (SISNAD) define drogas enquanto as substncias ou os produtos capazes de causar dependncia, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da Unio. (BRASIL, 2006 apud BRASIL, 2008, p.28). A atualizao dessa lista de competncia da Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria (Anvisa) como dispe a Portaria n 344, de 12 de maio de 1988 que aprova o Regulamento Tcnico sobre substncias e medicamentos sujeitos a controle especial sendo esta constantemente atualizada por Resolues da Diretoria Colegiada desse rgo. Voltando anlise da PNAD, a primeira seo corresponde aos pressupostos da poltica, sendo o primeiro definido em termos de uma busca com inteno de atingir o ideal de construo de uma sociedade protegida do uso de drogas ilcitas e do uso indevido de drogas lcitas. (BRASIL, 2006 apud BRASIL, 2008, p. 13 grifos meus). em defesa da sociedade, na busca ininterrupta de proteg-la que gravita o primeiro pressuposto da poltica. Com efeito, a poltica se estrutura visando a reduo dos danos sociais e sade, a proteo dos riscos e dos perigos que circundam o uso de drogas. , portanto, o problema da segurana que est em cena. Em consonncia a esse objetivo, v-se na PNAD um anseio para que a poltica se estruture majoritariamente utilizando-se de estratgias de pre-veno do uso indevido de drogas. Nesse documento as estratgias de preveno so defendidas por serem consideradas as mais eficazes dentre as modalidades de interveno e, ainda, as que possuem os menores custos.

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    Mecanismos de antecipao a esse fenmeno so, portanto, agenciados na busca de minimizar possveis efeitos negativos de um uso indevido da droga o que poderia repercutir tanto no indivduo como na sociedade em geral. Segundo as orientaes contidas na PNAD, essas aes preventivas devem ser voltadas para a promoo de valores voltados sade, a educao para a vida saudvel, ou seja, para um conjunto de valores que seriam relacionados produo da vida, sua majorao. Dentre o rol de aes de preveno que devem ser desenvolvidas, prope-se a criao de campanhas, de programas educacionais, bem como a incluso dessa temtica da preveno do uso indevido de drogas no ensino formal e at mesmo o incentivo para que aes desse tipo ocorram tambm nas empresas. Nessas aes requerido, ainda, o comprometimento de institui-es como a escola, a famlia e as empresas para a consecuo desses objetivos. Toda essa articulao estratgica sintetizada na PNAD sob a insgnia da responsabilidade compartilhada, em que todos esto implica-dos na construo de redes sociais que visem melhoria das condies de vida e promoo geral da sade. (BRASIL, 2008, p. 16). Essa responsabilidade compartilhada efeito da descentralizao destas prticas de governo pelo prprio exerccio do governo de si por si mesmo, em um processo de internalizao disciplinar, de autovigilncia e de produ-o do desejo, em que a vontade do sujeito coincide com aquilo mesmo que se espera que ele deseje, que ele deva fazer (FOUCAULT, 1997, 2008, 2011; BENEVIDES, 2013). Como discutimos anteriormente, a relao que se cria nesse tipo de governamentalidade moderna uma relao que no de mera obedincia, mas implica tambm em um movimento de engajamento subjetivo. Com efeito, so as bandeiras da autonomia e da autogesto que se hasteiam no momento em que se proclamam os jarges da responsabilidade compartilhada, quando se defende o fomento do protagonismo juvenil, da participao da famlia, da sociedade na multiplicao dessas aes. (BRASIL, 2008, p. 16), e quando, finalmente, afirma-se a sociedade enquanto [...] a protagonista do processo, pois dela e somente dela resultou toda a proposta de realinhamento da PNAD. (BRASIL, 2008 p. 12). O problema reside no fato desses discursos serem propagados enquanto discursos profundamente libertadores j que os sujeitos podem se fazer presentes no realinhamento da poltica, podem ter voz, exercer a cidadania e o controle social , como se nessas prticas reside a sua libertao frente s amarras da opresso. importante, entretanto, no esquecer das finalidades disciplinares e biopolticas (agenciadas fundamentalmente pelos saberes e prticas mdico-psi), nas quais se inscreve todo esse engajamento presente em iniciativas e campanhas em prol da responsabilidade social frente aos problemas e aos desafios que cabem a ns enfrentar no que tange ao uso de drogas. neste sentido que todo o clamor por autonomia e autogesto constitui efeito de uma sujeio disciplinar e biopoltica: A sujeio, como efeito de maior xito do dispositivo panptico, consiste na fabricao deste si mesmo, na inveno desta funo autovigilante, na produo deste duplo pela reflexo que instaura a obedincia voluntria lei mediante a disciplina. A sujeio fabrica uma vontade, um engajamento, uma ao sempre reiniciada e atualizada por si. Sujeio no o oposto de autonomia, pois a sujeio a trama secreta da autonomia. (BENEVIDES, 2013, p. 458) No somente nessas aes de preveno, mas tambm nas aes de recuperao, tratamento, reinsero social, reduo dos danos sociais e sade, h um direcionamento para que essas aes sejam necessariamente embasadas em pesquisas cientficas validadas, que tenham demonstrado efetividade. Nesse nterim, o Observatrio Brasileiro de Informaes sobre

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    Drogas (OBID) o rgo responsvel por acumular, sistematizar e divulgar esses estudos cientficos de base, as pesquisas e os levantamentos realiza-dos em territrio nacional. H ainda um anseio por parte dos redatores da poltica para que as estratgias sejam planejadas de acordo com a populao-alvo em especfico, se adequando aos diferentes contextos. Da advm a necessidade que imposta de que se realizem pesquisas dirigidas a parcelas da sociedade (BRASIL, 2008, p. 23), de modo que as aes de preveno, por exemplo, sejam executadas [...] priorizando as comunidades mais vulnerveis, identificadas por um diagnstico (BRASIL, 2008, p. 16). Nesse nterim, esses saberes acabam por criar parcelas especficas da realidade, casos, de modo a enxergar o individual no fenmeno coletivo do uso de drogas. Esse movimento de individualizao e de particularizao o que permite ver a distribuio de casos em uma determinada populao, podendo-se quantifi-car esse fenmeno, inseri-lo numa racionalidade numrica, a partir da gradao, modulao e quantificao dos riscos e das vulnerabilidades de cada parcela especfica. Foucault (2008), para explicitar o funcionamento dos dispositivos de segurana, discorre sobre como essa noo de caso permitiu integrar fenmenos individuais no ncleo de um fenmeno coletivo (contaminao por varola no sculo XVIII) ao se proceder em um movimento de individualizao, de classificao e quantificao desse fenmeno. A partir da noo de caso, poder-se-ia estimar a taxa de contaminao e/ou de mortalidade em um indivduo ou um grupo em especfico, de acordo com a zona em que vive, sua profisso, sua idade, etc. Movimento que permite, portanto, inserir no fenmeno o clculo das probabilidades, dos riscos, das vulnerabilidades e, por fim, dos perigos. Com efeito, pela necessidade de antecipao, de preveno e de governamento do fenmeno do uso de drogas que se percebe que estes dispositivos so tambm agenciados. justamente a partir dessas noes de risco, de preveno e de todo o clculo que efeito sobre a vida da populao que os mecanismos de preveno e controle iro operar na tentativa de antecipar e controlar os fenmenos que possam surgir, inserindo, portanto, esses mesmos fenme-nos em termos probabilsticos. No Dictionary of Epidemiology (LAST, 1989), o verbete risco faz meno probabilidade de ocorrncia de um evento (mrbido ou fatal) e tambm funciona como um termo no tcnico que inclui diversas medidas de probabilidade quanto aos desfechos desfavorveis. [...] Nessa segunda acepo, est calcada a abordagem dos fatores de risco, insto , marcadores que visam predio de mobi-mortalidade futura. Desse modo, poder-se-ia identificar, contabilizar e comparar indivduos, grupos familiares ou comunidades com relao exposio a ditos fatores (j estabelecidos em estudos prvios) e proporcionar intervenes preventivas (CASTIEL, 2010, p. 16). No documento so citadas como, populaes vulnerveis que merecem uma ateno especial, as crianas e os adolescentes. Problematizando essa conjuno entre adolescncia e vulnerabilidade, Reis (2012) disserta a respeito da produo de subjetividade em torno de uma adolescncia drogadita, caracterizada como vulnervel, desqualificada jurdica e politica-mente, e potencialmente perigosa. Perigosa, sobretudo, devido a dois fato-res de risco: o primeiro fator corresponde ao uso de drogas como elemento de alta periculosidade por ser associado violncia, e o segun-do fator diria respeito associao a uma imagem naturalizada de adolescncia enquanto fase de instabilidade emocional, afetiva e psi-colgica, e por esta razo mais suscetvel ao descontrole e aos distrbios do comportamento (REIS, 2012).

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    Dentro dessa nova tecnologia de poder, alguns dispositivos ditos de segurana so institudos a fim de governar essa populao pela via da antecipao a possveis acontecimentos, mas tambm da produo e maximizao de acontecimentos considerados positivos, e, ainda, da redu-o de possveis acontecimentos que sejam danosos segurana daquela populao. Isto feito mediante um trabalho estatstico permanente, de modo a circunscrever a vida uma trama complexa das antecipaes, dos clculos e das probabilidades. Trabalha-se portanto no apenas com dados naturais, mas tambm com quantidades que so relativamente compressveis, mas que nunca o so totalmente. Isso nunca pode ser anulado, logo vai-se trabalhar com possibilidades. (FOUCAULT, 2008, p. 26) Destarte, podemos perceber a presena desses dispositivos de segurana na Poltica Nacional sobre Drogas atravs da assuno da estratgia de reduo como modelo para gerenciar esses processos tidos como naturais vida, no caso, o uso de drogas. o pressuposto do uso de drogas enquanto algo natural na histria da humanidade que embasa de uma forma geral a defesa da estratgia de reduo de danos trata-se, pois, da suposio de que o uso de drogas algo natural na histria da humanidade: [...] a questo do uso de drogas pode ser considerado univer-sal uma vez que so pouqussimas as culturas que no se utilizam de alucingenos. (CARVALHO, 2013, p. 236) Ao proceder-se a essa naturali-zao do uso drogas, remete-se tambm a impossibilidade de extinguir o uso de drogas, de modo que a melhor estratgia a se tomar para governar esse fenmeno seria no proibir o uso, mas control-lo de forma a minimizar os possveis prejuzos de um mau uso ou de um uso indevido. O combate s drogas passou a ser visto por alguns grupos de mdicos e cientistas sociais, europeus, australianos e estadunidenses em sua maioria, como uma guerra de impossvel concluso que deveria ser substituda por uma outra tica que procurasse no investir no improvvel (o fim universal do consumo), mas em alternativas que buscassem minimizar os perigos para aqueles que optaram pela ebriedade. (RODRIGUES, 2003, p. 261) A reflexo em torno do governamento que se faz no , portanto, em termos de como proibir o uso de drogas e em como legitimar essa proibio. Se os dispositivos de segurana so aqui agenciados, isto para agir nessa naturalidade prpria da populao, no seu plano de sua efetividade. A finalidade consiste, pois, em minimizar os danos, operando um clculo de custos em que [...] em vez de instaurar uma diviso binria entre o permitido e o proibido, vai-se fixar de um lado uma mdia considerada tima e, depois, estabelecer os limites do aceitvel, alm dos quais a coisa no deve ir (FOUCAULT, 2008, p. 09). Essa naturalidade prpria da populao coincide com a regularidade presente nos fenmenos, que podem ser auferidos atravs de uma anlise mais minuciosa da distribuio de casos por isso a importncia da diviso em segmentos populacionais a fim de se obter a curva de normalidade. Assim, a tarefa consiste em aparar as arestas, normalizar, conformar as distribuies que se afastam curva normal. No quero dizer que a lei se apague ou que as instituies de justia tendam a desaparecer; mas que a lei funciona cada vez mais como norma, e que a instituio judiciria se integra cada vez mais num contnuo de aparelhos (mdicos, administrativos, etc) cujas funes so sobretudo

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    reguladoras. Uma sociedade normalizadora o efeito histrico de uma tecnologia de poder centrada na vida. (FOUCAULT, 2010a, p. 157) Nesse nterim, notrio destacar que uma das primeiras aes que se gestava conforme modelo da reduo de danos tem incio na dcada de 80 na cidade de Roterd (Holanda) em que trabalhadores do Servio Municipal de Sade fizeram uma distribuio de seringas e materiais para assepsia aos usurios de drogas injetveis (RODRIGUES, 2003). O que Andrade (2011) e Rodrigues (2003) ressaltam, entretanto, que essas aes tm como motivao conter o surto das doenas sexualmente transmissveis que se alastravam devido difuso das drogas injetveis e ao hbito de compartilhar as seringas (considerado como comportamento de risco para a transmisso de DSTs). Destarte, o que esse modelo de interveno procurava realizar no era extinguir o uso de drogas, mas minimizar os impactos de um comportamento de risco como o compartilhamento de seringas. H, no obstante, um paradoxo nas polticas sobre drogas no Brasil. Isto porque alm de se observar o agenciamento de dispositivos de segurana que operam a esse tipo de normalizao citado anteriormente, h tambm um movimento de normao ou normalizao disciplinar medida que quele sujeito que faz uso de drogas associado delinquncia, violncia, a distrbios psicolgicos, criminalidade e periculosidade. Foi pela dissociao entre conduta e uso de drogas, pela intransigncia do transtornado, pela incorreo de comportamentos negativos, pelo carter perigoso desses sujeitos que se instalou no Rio Grande do Sul e no Brasil um pnico sobre o possvel alastramento da doena. Foi pela brecha da violncia e da monstruosidade do viciado em crack que se formou o discurso de uma epidemia virulenta da dependncia qumica e do transtorno da conduta. (CUNDA, 2011, p. 26) Na PNAD, essas associaes so bem mais sutis do que o alarmismo veiculado em um noticirio semanal qualquer bem como dos clamores atuais em torno da resoluo do problema das drogas atravs da internao compulsria e/ou da criao de comunidades teraputicas , mas ainda assim existe uma associao perversa entre violncia, o abuso de drogas e trfico de drogas. So essas associaes, em todo caso, que fundamentam inclusive as aes de represso ao trfico e a tentativa de reduzir a oferta de drogas. Com efeito, so agenciadas ainda aes de tratamento, reinsero social, ressocializao e recuperao medida que no modelo de reduo de danos ainda permanea um critrio de normalidade (normalidade relativo, aqui, norma). Trata-se neste caso, em termos estritos, de uma normao disciplinar, que define o normal e o normal a partir do estabelecimento de uma norma (FOUCAULT, 2008). Contudo, a permanncia da percepo medicalizadora que identifica consumidores com vida desestruturada (por desemprego, marginali-zao, prostituio, etc.), ou qualquer outro critrio de anormalidade, aproxima a reduo de danos do proibicionismo levemente reformado, como o de Portugal, que no mais penaliza os indivduos flagrados com pequenas pores de psicoativos, mas os encaminha para tratamento compulsrio. A medicalizao traz consigo o deslocamento da criminali-zao mais direta (encarceramento) para outras formas de controle e restrio de liberdade. (RODRIGUES, 2003, p. 267) Nesse nterim, possvel observar uma espcie de delimitao entre o uso e o abuso, entre o mau uso e o bom uso, tentando atravs de um clculo estabelecer qual seria o ponto timo dessa conduta. A psicologia, a psiquia-tria, o direito, a assistncia social e a segurana pblica so, neste cenrio,

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    saberes convocados a falar do problema do uso de drogas, bem como a apontar as (re)solues, medidas, terapias. Nesse processo, a justia ausen-ta-se do duro ofcio de punir para o belo ofcio de curar, de readaptar, de ressocializar (FOUCAULT, 1997, 2010b). Por fim, gostaramos de encerrar com a abertura de uma questo e o indicativo de uma possvel trilha de pesquisa. curioso percebermos tanto um emparelhamento como um conjunto de deslocamentos que relacionam o poder de curar e o poder de punir. A cura como justificativa da priso, tal como referido por Foucault em Vigiar e Punir (1997), bem poderia trazer em seu eco a mensagem de que: ns punimos porque, punindo, ns curamos. Mas no seria o caso de pensarmos que estamos passando por outros processos no que diz respeito articulao entre o poder de curar e o poder de punir? Hoje em dia, ao invs de a cura justificar a punio, no seria a punio quem sancionaria a cura, o cuidado e o tratamento? Em tempos de governamento biopoltico, em especial no cenrio brasileiro onde esses processos ocorrem mediante excluses e violncias agenciados por um racismo de Estado, a cura no se exerceria sob os auspcios de um poder de punir? Os novos justiceiros, quando se trata de questes relacionadas ao uso de drogas, no acionariam justamente o poder de curar como poder de punir? Hoje no diramos, sob a concordncia secreta e inconfessa de nossas frias e medos: ns tratamos porque, tratando, ns punimos? Sobre o artigo

    Recebido: 10/03/2014 Aceito: 05/04/2014 Referncias bibliogrficas ANDRADE, T. M. Reflexes sobre polticas de drogas no Brasil. Cinc. sade coletiva [online]. vol.16, n.12, p. 4665-4674, 2011. AVELINO, N. Apresentao: Foucault e a anarqueologia dos saberes. In: FOUCAULT, M. Do Governo dos Vivos (1979 1980). Excertos; organizao Nildo Avelino. 2 edio revista e ampliada. So Paulo: Centro de Cultura Social; Rio de Janeiro: Achiam, 2011. p. 17-37. BENEVIDES, P. S. O dispositivo da verdade: uma anlise a partir do pensamento de Michel Foucault. 2013, 510f. Tese (Doutor em Educao)Programa de Ps-Graduao em Educao Brasileira, Universidade Federal do Cear, Fortaleza: 2013. BRASIL, Legislao e Polticas Pblicas sobre Drogas no Brasil. Braslia, Presidncia da Repblica, Secretaria Nacional de Polticas sobre Drogas, 2008. 106p. BRASIL, Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Polticas Pblicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para preveno do uso indevido, ateno e reinsero social de usurios e dependentes de drogas; estabelece normas para represso produo no autorizada e ao trfico ilcito de drogas; define crimes e d outras providncias. Presidncia da Repblica, Casa Civil: Braslia, 2006. BUJES, M. I. Infncia e maquinarias. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

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