10
ARTIGO ORIGINAL einstein. 2009; 7(4 Pt 1):452-61 Aspectos histopatológicos da bexiga no lúpus eritematoso sistêmico Histological aspects of the bladder in systemic lupus erythematosus Eric Roger Wroclawski 1† , Antonio Marmo Lucon 2 , Marcelo Langer Wroclawski 3 , Carlos Alberto Bezerra 4 , Luiz Balthazar Saldanha 5 , Sami Arap 6 RESUMO Objetivos: estudar os achados histopatológicos de bexigas de pacientes portadores de lúpus eritematoso sistêmico, correlacioná- los aos achados clínicos e ao uso de drogas terapêuticas, e compará- los aos achados histopatológicos de bexigas de indivíduos não- portadores de lúpus eritematoso sistêmico. Métodos: trinta e nove pacientes ambulatoriais ou internados no Serviço de Reumatologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo com o diagnóstico de lúpus eritematoso sistêmico foram avaliados clinica e cistoscopicamente. Foram também submetidos à biópsia de bexiga. Como parâmetro de normalidade para comparação dos achados histopatológicos, foram estudadas as bexigas de 20 cadáveres, sem evidência de autólise, doença do trato urinário ou autoimune por ocasião da morte, recolhidos no Serviço de Verificação de Óbitos do município de São Paulo. Esse grupo constituiu o Grupo Controle. Foi feita correlação dos achados clínicos, cistoscópicos e da biópsia. Resultados: a idade dos pacientes variou de 13 a 62 anos (mediana: 29 anos). Trinta e seis pacientes eram do sexo feminino (92,3%) e três do sexo masculino (7,7%). Vinte e cinco 25 pacientes (64,1%) eram assintomáticos no momento do estudo. No Grupo Controle a idade variou de 20 a 65 anos. Dezenove eram do sexo feminino (95,0%) e um do sexo masculino (5,0%). A cistoscopia no grupo com lúpus eritematoso sistêmico foi considerada com padrão intersticial em 16 casos (41,0%) e normal em 15 (38,5%). A bexiga mostrou-se histologicamente normal em quatro pacientes (10,3%). Em 18 (46,2%) pacientes foi identificada cistite crônica inespecífica. Nos demais, várias alterações foram encontradas, incluindo vasculite vesical em sete pacientes (17,9%). A contagem do número médio de mastócitos foi de 2,223/mm 2 de área vesical. No Grupo Controle foi identificada cistite crônica inespecífica em três casos (15,0%). Não foram identificadas outras alterações. A média da contagem de mastócitos foi de 0,777/mm 2 (±2,7). Os achados de cistite crônica inespecífica, vasculite vesical e número médio de mastócitos/mm 2 foram comparados entre si, não tendo se encontrado evidências estatísticas de dependência entre os achados (p > 0,05). Verificaram- se, entre os dois grupos, diferenças estatisticamente significativas entre a presença de cistite crônica inespecífica e vasculite vesical (Z = 2,078 > Z 5% = 1,645 e Z = 1,777 > Z 5% = 1,645 ) e também quanto ao número médio de mastócitos/mm 2 entre os grupos (Z = 2,387 > Z 5% = 1,673). Houve diferenças estatisticamente significativas entre as proporções de infiltrado mastocitário e a presença de dor suprapúbica, bem como o uso de antimaláricos. As demais análises não mostraram diferenças estatisticamente significativas. Não houve evidência estatística de dependência entre os eventos: cistoscopia com padrão intersticial e cistite crônica inespecífica (p > 0,237); cistoscopia com padrão intersticial e vasculite vesical (p > 0,325); cistoscopia com padrão intersticial e infiltrado mastocitário (p > 0,277). Conclusões: a bexiga no lúpus eritematoso sistêmico pode estar envolvida mesmo sem a presença de manifestações clínicas. O comprometimento da bexiga no lúpus eritematoso sistêmico caracterizou-se principalmente pelo achado de cistite crônica inespecífica, vasculite e infiltrado mastocitário vesicais. A presença de cistite crônica inespecífica foi significativamente maior no grupo de pacientes com lúpus eritematoso sistêmico do que no Grupo Controle, o mesmo ocorrendo em relação à presença de vasculite vesical. Foi encontrado um número de mastócitos/mm 2 de área vesical acima de valores estabelecidos como normais. A ocorrência desse fenômeno se associou à presença de dor suprapúbica à repleção vesical e ao emprego terapêutico de antimaláricos. Descritores: Lúpus eritematoso sistêmico; Bexiga urinária/patologia ABSTRACT Objectives: to study pathological data from bladders of systemic lupus erythematosus patients, correlate them to clinical events Trabalho realizado no Serviço de Reumatologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – USP, São Paulo (SP), Brasil. 1† In memoriam; Livre-docente; Professor do Departamento de Urologia da Faculdade de Medicina do ABC – FMABC, Santo André (SP), Brasil. 2 Livre-docente; Professor associado da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – USP, São Paulo (SP), Brasil. 3 Pós-graduando (Mestrado) em Ciências da Saúde da Faculdade de Medicina do ABC – FMABC, Santo André (SP), Brasil. 4 Livre-docente; Professor do Departamento de Urologia da Faculdade de Medicina do ABC – FMABC, Santo André (SP), Brasil. 5 Professor assistente da Divisão de Patologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – USP, São Paulo (SP), Brasil. 6 Livre-docente; Professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – USP, São Paulo (SP), Brasil. Autor correspondente: Marcelo Langer Wroclawski – Rua Tupi, 579 – apto. 61 – Santa Cecília – CEP 01233-001 – São Paulo (SP), Brasil – e-mail: [email protected] Data de submissão: 24/3/2009 – Data de aceite: 1/10/2009

Aspectos histopatológicos da bexiga no lúpus eritematoso ...apps.einstein.br/revista/arquivos/PDF/Einsteinv7n4p452-61_port.pdf · A bexiga mostrou-se histologicamente normal em

Embed Size (px)

Citation preview

artigo original

einstein. 2009; 7(4 Pt 1):452-61

Aspectos histopatológicos da bexiga no lúpus eritematoso sistêmico

Histological aspects of the bladder in systemic lupus erythematosusEric Roger Wroclawski1†, Antonio Marmo Lucon2, Marcelo Langer Wroclawski3, Carlos Alberto Bezerra4,

Luiz Balthazar Saldanha5, Sami Arap6

rESUMoobjetivos: estudar os achados histopatológicos de bexigas de pacientes portadores de lúpus eritematoso sistêmico, correlacioná-los aos achados clínicos e ao uso de drogas terapêuticas, e compará-los aos achados histopatológicos de bexigas de indivíduos não-portadores de lúpus eritematoso sistêmico. Métodos: trinta e nove pacientes ambulatoriais ou internados no Serviço de Reumatologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo com o diagnóstico de lúpus eritematoso sistêmico foram avaliados clinica e cistoscopicamente. Foram também submetidos à biópsia de bexiga. Como parâmetro de normalidade para comparação dos achados histopatológicos, foram estudadas as bexigas de 20 cadáveres, sem evidência de autólise, doença do trato urinário ou autoimune por ocasião da morte, recolhidos no Serviço de Verificação de Óbitos do município de São Paulo. Esse grupo constituiu o Grupo Controle. Foi feita correlação dos achados clínicos, cistoscópicos e da biópsia. resultados: a idade dos pacientes variou de 13 a 62 anos (mediana: 29 anos). Trinta e seis pacientes eram do sexo feminino (92,3%) e três do sexo masculino (7,7%). Vinte e cinco 25 pacientes (64,1%) eram assintomáticos no momento do estudo. No Grupo Controle a idade variou de 20 a 65 anos. Dezenove eram do sexo feminino (95,0%) e um do sexo masculino (5,0%). A cistoscopia no grupo com lúpus eritematoso sistêmico foi considerada com padrão intersticial em 16 casos (41,0%) e normal em 15 (38,5%). A bexiga mostrou-se histologicamente normal em quatro pacientes (10,3%). Em 18 (46,2%) pacientes foi identificada cistite crônica inespecífica. Nos demais, várias alterações foram encontradas, incluindo vasculite vesical em sete pacientes (17,9%). A contagem do número médio de mastócitos foi de 2,223/mm2 de área vesical. No Grupo Controle foi identificada cistite crônica inespecífica em três casos (15,0%). Não foram identificadas outras alterações. A média da contagem de mastócitos foi de 0,777/mm2 (±2,7). Os achados de cistite crônica inespecífica, vasculite vesical e número médio de mastócitos/mm2

foram comparados entre si, não tendo se encontrado evidências estatísticas de dependência entre os achados (p > 0,05). Verificaram-se, entre os dois grupos, diferenças estatisticamente significativas entre a presença de cistite crônica inespecífica e vasculite vesical (Z = 2,078 > Z5% = 1,645 e Z = 1,777 > Z5% = 1,645 ) e também quanto ao número médio de mastócitos/mm2 entre os grupos (Z = 2,387 > Z5% = 1,673). Houve diferenças estatisticamente significativas entre as proporções de infiltrado mastocitário e a presença de dor suprapúbica, bem como o uso de antimaláricos. As demais análises não mostraram diferenças estatisticamente significativas. Não houve evidência estatística de dependência entre os eventos: cistoscopia com padrão intersticial e cistite crônica inespecífica (p > 0,237); cistoscopia com padrão intersticial e vasculite vesical (p > 0,325); cistoscopia com padrão intersticial e infiltrado mastocitário (p > 0,277). Conclusões: a bexiga no lúpus eritematoso sistêmico pode estar envolvida mesmo sem a presença de manifestações clínicas. O comprometimento da bexiga no lúpus eritematoso sistêmico caracterizou-se principalmente pelo achado de cistite crônica inespecífica, vasculite e infiltrado mastocitário vesicais. A presença de cistite crônica inespecífica foi significativamente maior no grupo de pacientes com lúpus eritematoso sistêmico do que no Grupo Controle, o mesmo ocorrendo em relação à presença de vasculite vesical. Foi encontrado um número de mastócitos/mm2 de área vesical acima de valores estabelecidos como normais. A ocorrência desse fenômeno se associou à presença de dor suprapúbica à repleção vesical e ao emprego terapêutico de antimaláricos.

Descritores: Lúpus eritematoso sistêmico; Bexiga urinária/patologia

aBStraCtobjectives: to study pathological data from bladders of systemic lupus erythematosus patients, correlate them to clinical events

Trabalho realizado no Serviço de Reumatologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – USP, São Paulo (SP), Brasil.1† In memoriam; Livre-docente; Professor do Departamento de Urologia da Faculdade de Medicina do ABC – FMABC, Santo André (SP), Brasil. 2 Livre-docente; Professor associado da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – USP, São Paulo (SP), Brasil. 3 Pós-graduando (Mestrado) em Ciências da Saúde da Faculdade de Medicina do ABC – FMABC, Santo André (SP), Brasil. 4 Livre-docente; Professor do Departamento de Urologia da Faculdade de Medicina do ABC – FMABC, Santo André (SP), Brasil. 5 Professor assistente da Divisão de Patologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – USP, São Paulo (SP), Brasil.6 Livre-docente; Professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – USP, São Paulo (SP), Brasil.

Autor correspondente: Marcelo Langer Wroclawski – Rua Tupi, 579 – apto. 61 – Santa Cecília – CEP 01233-001 – São Paulo (SP), Brasil – e-mail: [email protected]

Data de submissão: 24/3/2009 – Data de aceite: 1/10/2009

einstein. 2009; 7(4 Pt 1):452-61

Aspectos histopatológicos da bexiga no lúpus eritematoso sistêmico 453

and the use of therapeutic drugs, and compare them to bladder histopathological findings in individuals not affected by systemic lupus erythematosus. Methods: thirty-nine out or inpatients of the Department of Rheumatology at Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, diagnosed with systemic lupus erythematosus were clinically and cystoscopically evaluated. Bladder biopsy was also performed. As a normal parameter, bladders taken from 20 corpses collected at the Death Verification Department of São Paulo city, without autolysis or evidence of urinary tract or autoimmune disease were also histologically studied. This group was considered as a Control Group. A correlation among clinical, cystoscopic and histopathological data was carried out. results: the patients’ mean age was 29 years (range 13-62). Thirty-six were females and three were males. Twenty-five patients were asymptomatic during the study period. In the Control Group the age range was 20-65 years. Nineteen were females (95%) and one was male (5%). Cystoscopic examination of the group with systemic lupus erythematosus showed interstitial pattern in 16 cases (41.0%) and normal in 15 (38.5%). The bladder was normal in four patients (10.3%). Chronic unspecific cystitis was observed in 18 (46.2%) patients. In the remaining, several alterations were found, including bladder vasculitis in seven patients (17.9%). The mean number of mast cells in the bladder area was 2.223/mm2. In the Control Group, unspecific cystitis was found in three cases (15.0%). No other abnormalities were found. The mean number of mast cells in this group was 0.777/mm2

(±2.7). Chronic unspecific cystitis, bladder vasculitis and the mean number of mast cells were compared with each other and no statistical differences were found (p > 0.05). There were statistically significant differences between the two groups regarding chronic unspecific cystitis and bladder vasculitis (Z = 2.078 > Z5% = 1.645 and Z = 1.777 > Z5% = 1.645) and also mean number of mast cells (Z = 2.387 > Z5% = 1.673). There were statistically significant differences between the proportion of mast cell infiltrate and presence of suprapubic pain as well as use of antimalarial drugs. The other analysis did not show statistically significant differences. There was no statistical evidence of dependence among the events: cystoscopy with interstitial pattern and chronic unspecific cystitis (p > 0.237); cystoscopy with interstitial pattern and bladder vasculitis(p > 0.325); cystoscopy with interstitial pattern and mast cell infiltrate (p > 0.277). Conclusions: the bladder in systemic lupus erythematosus may be involved even in the absence of clinical manifestations. The involvement of the bladder in systemic lupus erythematosus was characterized mainly by the finding of chronic unspecific cystitis, bladder vasculitis and mast cell infiltrate. The presence of chronic unspecific cystitis was significantly greater in patients with the disease than in the Control Group, and the same occurred with bladder vasculitis. The number of mast cells/mm2 was higher than normal in patients with systemic lupus erythematosus. This finding was associated to suprapubic pain upon bladder repletion and to use of antimalarial drugs.

Keywords: Lupus erythematosus, systemic; Urinary bladder/pathology

introDUÇÃoO lúpus eritematoso sistêmico (LES), enfermidade in-flamatória, não-supurativa e de etiologia até o momen-to desconhecida, tem seu caráter sistêmico reconhecido pela associação de manifestações cutâneas ao envolvi-mento de articulações, serosas e rins(1-2).

As manifestações clínicas do LES podem variar des-de sintomas discretos até eventos de extrema gravidade, comprometendo a vida dos pacientes(3). As manifesta-ções clínicas mais comuns consistem – isoladamente ou nas mais variadas combinações – em: fadiga, febre, ane-mia, leucopenia, erupções cutâneas, fotossensibilidade, alopecia, artralgia, artrite, pericardite, pleurite, perito-nite, vasculite, nefrite, comprometimento do sistema nervoso e distúrbios do aparelho digestivo(4).

O possível envolvimento da bexiga no LES tem sido pouco abordado. Coube a Boye et al.(5), em 1979, fa-zer a descrição do primeiro caso de cistite mediada por imunocomplexos em paciente portadora de LES, com queixas urinárias.

A partir daí, os autores começaram a traçar paralelos entre a cistite que ocorre em pacientes com LES e a cis-tite intersticial/síndrome da bexiga dolorosa (CI/SBD), doença cuja causa direta até hoje é desconhecida(6-8). Orth et al.(9), em 1983, foram os responsáveis pelo em-prego do nome ‘cistite lúpica’ para designar as mani-festações vesicais encontradas no LES, associadas à deposição de imunocomplexos, distinguindo-a da CI/SBD. Havia também, nos seus casos, associação com manifestações gastrintestinais.

Possivelmente, a raridade atribuída ao compro-metimento vesical no LES se deva ao fato de ser uma doença multissistêmica, na qual existem manifestações clínicas mais relevantes e graves, e os sintomas uriná-rios seriam pouco valorizados; além disso, a partici-pação vesical no LES poderia nem sempre ser acom-panhada de manifestações clínicas, radiológicas, ou endoscópicas(4).

Alarcón-Segovia et al.(10), em 1984, publicaram o primeiro trabalho histopatológico, retrospectivo so-bre a participação da bexiga no LES. Estudaram frag-mentos vesicais obtidos por necropsia de 35 pacientes falecidos com LES, utilizando como Grupo Controle fragmentos de bexiga de 30 pacientes não-portadores de LES. Encontraram alterações anatomopatológicas na bexiga em 16 pacientes com LES e somente 5 no Grupo Controle. Há de se notar que nenhum dos pa-cientes do grupo com LES havia referido sintomas uri-nários relevantes no último mês de vida. Esses autores denominaram cistite crônica intersticial o achado de infiltrado celular mononuclear no interstício vesical. Contudo, tal achado é mais propriamente denominado cistite crônica inespecífica, deixando-se o nome cistite crônica intersticial a outra afecção clínica, cistoscópica e histologicamente distinta(4).

Desde essa época, casos isolados ou séries de casos de cistite lúpica têm sido descritos, com ou sem estudo histopatológico, mas não se encontra nenhum trabalho sistematizando achados histopatológicos e correlacio-nando-os ao quadro clínico(11-12).

einstein. 2009; 7(4 Pt 1):452-61

454 Wroclawski ER, Lucon AM, Wroclawski ML, Bezerra CA, Saldanha LB, Arap S

oBJEtiVoSEstudar os achados histopatológicos de bexigas de pa-cientes portadores de LES, correlacioná-los aos achados clínicos e ao uso de drogas terapêuticas, e compará-los aos achados histopatológicos de bexigas de indivíduos não-portadores de LES.

MÉtoDoSTipo de estudo: Estudo transversal

Local do estudo: Serviço de Reumatologia do Hos-pital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Univer-sidade de São Paulo (USP).

amostra Trinta e nove pacientes, ambulatoriais ou internados, com o diagnóstico de LES, segundo critérios estabele-cidos pela Arthritis Rheumatism Association(13), foram submetidos à avaliação clínica de manifestações uriná-rias e cistoscópicas, com análise histológica da bexiga por meio de biópsia.

Trinta e seis pacientes eram do sexo feminino (92,3%) e três do sexo masculino (7,7%). A idade va-riou de 13 a 62 anos. Todos os pacientes foram infor-mados e concordaram em se submeter ao protocolo do Serviço para a pesquisa.

Foram também considerados o tempo de doença (menor ou maior que três anos), o momento clínico da doença (atividade ou remissão) e o uso de medicamen-tos (antimaláricos, anti-inflamatórios e citostáticos). As manifestações urinárias consideradas foram as seguin-tes: dor suprapúbica à repleção da bexiga, hematúria macroscópica, manifestações irritativas (quando apre-sentavam duas ou mais queixas entre disúria, polaciúria, nictúria, urgência miccional), incontinência urinária e o diagnóstico prévio de nefropatia.

Como parâmetro de normalidade para comparação dos achados histopatológicos, foram estudadas as bexi-gas de 20 cadáveres, sem evidência de autólise, doença do trato urinário ou autoimune por ocasião da morte, recolhidos no Serviço de Verificação de Óbitos da cida-de de São Paulo. A idade variou de 20 a 65 anos. Deze-nove eram do sexo feminino (95,0%) e um do sexo mas-culino (5,0%). Essa população passou a ser designada como Grupo Controle.

ProcedimentosOs 39 pacientes foram submetidos à uretrocistoscopia sob anestesia geral combinada, endovenosa e inalató-ria, e suas bexigas foram analisadas histologicamente por meio de biópsia.

Estudo histológicoCom pinça de biópsia, a frio, foram retirados dois frag-mentos de trígono e dois de assoalho vesicais. Tomando-se como referencial a linha longitudinal média da bexiga, os fragmentos foram colhidos 1 cm proximal e distalmente à barra interuretral(4). Realizou-se exame histopatológico dos fragmentos por meio de microscopia ótica, imunoflu-orescência e outras técnicas, quando pertinentes (método do tricrômico de Masson e imunoperoxidase), segundo pa-dronização adotada no Serviço de Histopatologia da USP.

As lâminas coradas pela hematoxilina-eosina (HE) e pela tionina foram vistas sempre pelos mesmos obser-vadores (LBS e ERW) em microscópio binocular Zeiss, em aumentos de 2,5; 6,3; 16 e 40 vezes.

Os cortes corados pela HE foram examinados para avaliar: - no epitélio, a presença de hiperplasia, metaplasia e

atipias; - na membrana basal, a espessura; - no córion, a presença de fibrose, infiltrado inflama-

tório e suas características, assim como vasculites, também com suas características;

- no músculo, quando representado, a existência de fibrose e infiltrado inflamatório.

Os cortes corados pela tionina foram empregados para avaliar quantitativamente a presença de mastóci-tos nas diferentes camadas da parece vesical, exceto a adiposa. Quando presentes, foram contados em toda a extensão do fragmento e referidos, finalmente, por mm2 de área total avaliada.

A imunofluorescência foi utilizada para a pesquisa de depósitos de imunoproteínas nos tecidos da bexiga e a leitura foi realizada sempre pelo mesmo observador (LBS), em microscópio para imunofluorescência com epi-iluminação.

Outras técnicas foram empregadas em alguns casos: a técnica do tricrômico de Masson foi empregada para complementar os achados obtidos pela HE; a técnica da imunoperoxidase foi utilizada visando identificar imunoglobulinas tipo IgG, IgM, IgA e IgE no epitélio, membrana basal, córion, paredes vasculares, túnicas musculares e seu interstício, e as lâminas foram exa-minadas sempre pelos mesmos observadores (LBS e ERW) em microscópio binocular Zeiss, em aumentos de 2,3; 6,3; 16 e 40 vezes(4).

Para a obtenção de material da parede vesical do Grupo Controle, durante a autópsia, foram abertas as bexigas dos cadáveres e retirados, à tesoura, um frag-mento do trígono e outro de assoalho vesical, interes-sando todas as suas camadas. À semelhança do grupo com LES, foi realizado estudo com microscopia ótica, empregando-se as mesmas colorações (HE e tionina).

einstein. 2009; 7(4 Pt 1):452-61

Aspectos histopatológicos da bexiga no lúpus eritematoso sistêmico 455

Os achados histopatológicos no grupo com LES observados à microscopia ótica foram comparados ao Grupo Controle. Adotou-se a denominação ‘cistite crô-nica inespecífica’ para designar a presença de infiltrado linfo-histioplasmocitário, ou mononuclear, ou de célu-las redondas do córion. Empregou-se a denominação ‘cistite eosinofílica’ quando o infiltrado inflamatório do córion era constituído por eosinófilos. Utilizou-se a de-nominação ‘vasculite linfocitária’ para identificar a pre-sença de reação inflamatória com infiltrado linfocitário perivascular na bexiga. Chamou-se de ‘vasculite leuco-citoclástica’ quando a parede vascular se encontrava parcial ou totalmente comprometida por necrose fibri-noide e se identificavam restos fagocitados de leucóci-tos. Adotou-se o valor de três mastócitos por mm2

de superfície como limite superior da normalidade. Acima desse número, a presença de mastócitos foi considera-da aumentada, passando a ser referida como ‘infiltrado mastocitário vesical’(4).

análise estatísticaTodos os testes estatísticos foram realizados com ní-vel de significância de 5% (α = 0,05). As comparações entre duas proporções foram feitas de acordo com o procedimento clássico com correção de continuidade. Para análise estatística das correlações entre os acha-dos de cistite crônica inespecífica, vasculite e infiltra-do mastocitário vesicais, adotou-se a hipótese de in-dependência entre os parâmetros e aplicou-se o teste de Fisher.

rESUltaDoSA mediana da idade do grupo com LES foi de 29 anos, e do Grupo Controle foi de 42 anos.

Em relação às manifestações urinárias: 29 pacientes (74,4%) tinham diagnóstico prévio de nefropatia, con-comitante ou não a manifestações urinárias; 11 (28,2%) queixavam-se de dor suprapúbica à repleção vesical; quatro (10,3%) tinham manifestações irritativas uriná-rias, três dos quais com dor supra púbica, simultanea-mente; 25 (64,1%) eram assintomáticos no momento do estudo. Duas pacientes apresentavam disfunção ve-sical de origem neurológica causada pelo LES e, por isso, tinham retenção urinária, incontinência paradoxal e, paralelamente, apresentavam alterações de motrici-dade e sensibilidade.

A cistoscopia no grupo com LES foi considerada com padrão intersticial em 16 casos (41,0%) e normal em 15 (38,5%). Em outros oito casos (20,5%), que não apresentaram padrão intersticial, ainda foram achadas outras anormalidades, como trabeculação vesical, ca-rúncula da uretra, ou alterações de tônus e diâmetro.

achados histopatológicos do grupo com lESMicroscopia óticaOs cortes corados pela HE permitiram verificar: - no epitélio, a presença de metaplasia escamosa em

19 pacientes (48,7%). Não se observaram hiperpla-sia e atipias celulares (Figura 1);

Figura 1. Metaplasia escamosa trigonal (H.E. – 400x)

- na membrana basal, a presença de espessamento em dois pacientes (5,1%) sem deposição de imunocom-plexos, sendo todas as outras normais (Figura 2);

Figura 2. Espessamento da membrana basal do epitélio vesical - seta (H.E. – 400x)

- no córion, a presença de infiltrado inflamatório mononuclear, composto por linfócitos, histiócitos e plasmócitos, em 18 pacientes (46,2%), caracterizan-do cistite crônica inespecífica (Figura 3). Infiltrado eosinofílico, associado ao infiltrado linfo-histio-plasmocitário, foi visto em dois pacientes (5,1%), caracterizando cistite eosinofílica;

einstein. 2009; 7(4 Pt 1):452-61

456 Wroclawski ER, Lucon AM, Wroclawski ML, Bezerra CA, Saldanha LB, Arap S

Figura 3. Cistite crônica inespecífica intensa (H.E. – 160x)

- infiltrado linfocitário perivascular foi identificado em sete pacientes (17,9%), caracterizando vascu-lite linfocitária (Figura 4A e B). Um caso (2,6%) apresentou alterações de paredes vasculares, com presença de necrose fibrinoide e restos leucocitários fagocitados, caracterizando vasculite leucocitoclás-tica (Figura 5A e B). Não foi identificada fibrose nos fragmentos disponíveis para exame com HE. Um pacientes (2,6%) apresentava invaginações epi-teliais conhecidas como ‘ninhos de Brunn’;

- no músculo, quando presente, o que ocorreu em 20 pacientes (51,3%), não havia alterações.

Os cortes corados pela tionina permitiram a conta-gem de mastócitos por área do tecido estudado. A mé-dia do número de mastócitos por mm2

foi de 2,223. O valor de 3 mastócitos/mm2 de área foi adotado como limite superior de normalidade por corresponder a um valor superior à média obtida no Grupo Contro-le acrescida do desvio padrão, abrangendo assim mais

Figura 4. A.Vasculite linfocitária moderada (H.E – 400x); B. Vasculite linfocitária intensa (H.E. – 400x)

a B

Figura 5. A. Vasculite leucocitoclástica (H.E. – 160x); B. Vasculite leucocitoclástica (H.E. – 400x)

a

B

de 99,5% da população estimada pela amostra. Doze pacientes (30,8%) apresentaram mais de 3 mastócitos/mm2, caracterizando infiltrado mastocitário (Figura 6 A e B). A bexiga mostrou-se histologicamente normal em quatro pacientes (10,3%).

einstein. 2009; 7(4 Pt 1):452-61

Aspectos histopatológicos da bexiga no lúpus eritematoso sistêmico 457

Comparações dos achados histológicos entre os gruposOs achados de cistite crônica inespecífica, vasculite ve-sical e número de mastócitos/mm2 foram comparados entre os dois grupos, conforme pode ser visto nas Tabe-las 1, 2 e 3. Verificaram-se diferenças estatisticamente significativas entre a presença de cistite crônica inespe-cífica e vasculite vesical (Z = 2,078 > Z5% = 1,645 e Z = 1,777 > Z5% = 1,645), respectivamente, entre os grupos e também quanto ao número médio de mastócitos/mm2

entre os grupos (Z = 2,387 > Z5% = 1,673).

Comparações dos achados histológicos com dados clínicosQuanto à presença de cistite crônica inespecífica em relação ao tempo de doença, menor ou maior que três

Figura 6. A. Mastócito no córion vesical - seta (Tionina – 1000x); B. Presença de numerosos mastócitos no córion vesical – seta (Tionina – 400x)

a

B

ImunofluorescênciaCom exceção de um caso (2,6%) que apresentava de-pósitos de IgG, IgM, IgA e C3 na parede dos vasos do córion, todos os demais exames foram negativos.

Outras técnicasO tricrômico de Masson, empregado nos dois casos em que foi identificada a cistite eosinofílica (5,1%), permi-tiu melhor visualização da cistite eosinofílica (Figura 7). A imunoperoxidase confirmou a presença de depósitos de IgG, IgM, IgA em um caso, sendo negativa para IgE (Figura 8 A-C).

Os achados de cistite crônica inespecífica, vasculite vesical e número médio de mastócitos/mm2 foram com-parados entre si, não tendo se encontrado evidências es-tatísticas de dependência entre os achados (p > 0,05).

Achados histopatológicos no Grupo ControleEm três casos (15,0%) foi identificada cistite crônica inespecífica. Não foram identificados casos de vasculi-te. A média da contagem de mastócitos foi de 0,777/mm2 (±2,7).

Figura 7. Presença de numerosos eosinófilos no córion vesical – cistite eosinofílica (Tricrômico de Masson – 400x)

tabela 1. Proporção cistite crônica inespecífica no grupo com LES em relação ao Grupo Controle

achadogrupos

lES ControleCistite crônica inespecífica 18/39(44,1%) 3/20(15,0%)

Z=2,078 > Z5%=1,645

tabela 2. Proporção vasculite vesival no grupo com LES em relação ao Grupo Controle

achadogrupos

lES ControleVasculite vesical 8/39(20,5%) 0/20(0,0%)

Z=1,777 > Z5%=1,645

tabela 3. Análise de médias de mastócitos/mm2 no grupo com LES em relação ao Grupo Controle

achadogrupos

lES ControleMastócitos/mm2 8/39(20,5%) 0,774

Z=2,387 > Z5%=1,673

einstein. 2009; 7(4 Pt 1):452-61

458 Wroclawski ER, Lucon AM, Wroclawski ML, Bezerra CA, Saldanha LB, Arap S

anos, não houve diferença estatisticamente significativa entre as proporções (Z = 0,224 < Z5% = 1,645). O mes-mo ocorreu em relação ao momento clínico da enfermi-dade (Z = 0,264 < Z5% = 1,645).

Quando analisadas as proporções de cistite crônica inespecífica em relação à presença de dor supra púbica ou manifestações irritativas urinárias, não houve dife-renças estatisticamente significativas entre as propor-ções (Z = 1,043 < Z5% = 1,645 e Z = 0,705 < Z5% = 1,645 respectivamente).

Quanto aos medicamentos utilizados, não houve diferenças significativas entre a presença de cistite crô-nica inespecífica e o uso dos diferentes medicamentos, antimaláricos, anti-inflamatórios não-hormonais e ci-tostáticos (Z = 1,231 < Z5% = 1,645; Z = 0,610 < Z5% = 1,645; e Z = 0,082 < Z5% = 1,645 respectivamente).

Foram analisadas estatisticamente as proporções entre a presença de vasculite vesical e o tempo de do-ença (Z = 0,789 < Z5% = 1,645); o momento clínico da enfermidade (Z = 0,326 < Z5% = 1,645); a presença de dor supra púbica (Z = 0,383 < Z5% = 1,645); as manifes-tações irritativas urinárias (Z = 0,347 < Z5% = 1,645); o uso de antimaláricos (Z = 0,176 < Z5% = 1,645); o uso de anti-inflamatórios não-hormonais (Z = 1,099 < Z5% = 1,645); e o uso de corticoides (Z = 0,405 < Z5% = 1,645). Todas as proporções estudadas não mostraram diferenças estatisticamente significativas.

Da mesma forma, foram analisadas estatisticamen-te as proporções entre a presença de infiltrado mastoci-tário e o tempo de doença (Z = 0,188 < Z5% = 1,645); o momento clínico da enfermidade (Z = 0,222 < Z5%

= 1,645); a presença de dor supra púbica (Z = 2,541 > Z5% = 1,645); as manifestações irritativas urinárias (Z = 0,360 < Z5% = 1,645); o uso de antimaláricos (Z = 1,709 > Z5% = 1,645); o uso de anti-inflamatórios não-hormonais (Z = 0,592 < Z5% = 1,645); e o uso de corti-coides (Z = 0,461 < Z5% = 1,645). Pode-se observar que houve diferenças estatisticamente significativas entre as proporções de infiltrado mastocitário e a presença de dor suprapúbica, bem como o uso de antimaláricos. As demais análises não mostraram diferenças estatistica-mente significativas.

Comparações dos achados histológicos com achado de Ci/SBD à cistoscopiaNão houve evidência estatística de dependência entre os eventos: cistoscopia com padrão intersticial e cistite crônica inespecífica (p > 0,237); cistoscopia com pa-drão intersticial e vasculite vesical (p > 0,325); cistos-copia com padrão intersticial e infiltrado mastocitário (p > 0,277).

DiSCUSSÃoNo sentido de estabelecer padrões de normalidade para os achados histológicos vesicais, optou-se por ob-ter material da parede vesical a partir de cadáveres sem evidência de autólise, doença vesical, ou LES, que pas-sou a representar o Grupo Controle. Este apresentou mediana de idade significativamente maior que o grupo com LES; porém, esse fato foi considerado pouco rele-

a B C

Figura 8. A. Pesquisa de imunoglobulina (IgG) positiva em parede vesical – seta (Imunoperoxidase – 160x); B. Pesquisa de imunoglobulina (IgG) positiva em parede vesical – seta (Imunoperoxidase – 400x); C. Pesquisa de imunoglobulina (IgG) negativa em parede vesical (Imunoperoxidase – 400x)

einstein. 2009; 7(4 Pt 1):452-61

Aspectos histopatológicos da bexiga no lúpus eritematoso sistêmico 459

vante, uma vez que, trabalhando com controles de mais idade, o rigor da análise se mostra ainda maior.

A presença de metaplasia escamosa no epitélio tri-gonal, encontrada em quase a metade dos pacientes, não parece estar associada ao LES, podendo ser consi-derada como variante normal do urotélio vesical, sendo encontrada entre 36 e 72% das mulheres e em apenas 7% dos homens(14-16).

Em número pequeno de casos encontrou-se a mem-brana basal espessada, sem que se identificasse a depo-sição de imunocomplexos. A lesão renal na doença crô-nica por imunocomplexos se caracteriza pela presença de espessamento da membrana basal e proliferação de células endoteliais; porém, identificam-se depósitos de complexos imunes pela pesquisa com técnica de imuno-fluorescência, o que não ocorreu no presente estudo.

Em quase metade dos casos, o córion apresentou infiltrado inflamatório mononuclear composto por lin-fócitos, histiócitos e plasmócitos, caracterizando cistite crônica inespecífica, cuja incidência no grupo com LES foi significativamente maior que no Grupo Controle. Alarcón-Segovia et al.(10) também encontraram maior in-cidência de infiltrado inflamatório crônico vesical entre os pacientes com LES em relação ao seu Grupo Contro-le. Esses achados podem estar relacionados à predispo-sição que os pacientes com LES apresentam em relação à infecção do trato urinário, possivelmente secundária a uma predisposição genética, defeitos nos mecanismos de imunossupressão e ao uso de agentes imunossupressores usados no tratamento da afecção(17-18).

Ainda no córion, foram identificados casos de vas-culite leucocitária e vasculite leucocitoclástica, enquan-to que no Grupo Controle não foram encontrados casos de vasculite – achado que se mostrou estatisticamente significativo. A presença de vasculite significa que exis-te, de alguma forma, agressão e consequente reação inflamatória nos vasos do interstício vesical(4). Alarcón-Segovia et al.(10) encontraram 14,28% de vasculite ne-crotizante e 11,42% de perivasculite ou vasculite linfo-citária entre seus casos – achado que pode ser atribuído ao fato de que esses pacientes haviam falecido em con-sequência da doença ou de seu tratamento.

A presença de cistite eosinofílica foi uma constata-ção rara e apenas um dos casos com esse quadro apre-sentou sintomatologia caracterizada por dor suprapúbi-ca e manifestações irritativas urinárias intensas, o que está de acordo com os relatos da literatura(19). A cistite eosinofílica pode, eventualmente, ser acompanhada de manifestações gastrintestinais(19-21), fato que não ocor-reu entre os pacientes do presente estudo.

Os cortes histológicos corados pela tionina mostraram um número de mastócitos/mm2 de área significativamen-te maior no grupo com LES do que no Grupo Contro-le. Esse fato poderia indicar que o mecanismo imune de

agressão tissular à bexiga tenha também um componente anafilático ou do tipo I – mas este não é o mecanismo de agressão tissular característico no LES. Reações urticari-formes, ou do tipo I, ocorrem em apenas 10% dos casos de LES, enquanto o comprometimento das serosas, que traduz o tipo III, mediada por complexos imunes, ocorre em aproximadamente 50% dos casos de LES(4).

A associação entre doenças alérgicas e aumento da concentração sérica total de IgE no LES é controversa(22). Alguns trabalhos indicam, de maneira bastante clara, que pacientes com LES não apresentam risco aumenta-do de distúrbios alérgicos mediados por IgG e, embora possam apresentar aumento dos níveis séricos de IgE e autoanticorpos IgE antinucleares, não apresentam sinais clínicos de alergia, ou a produção de anticorpos IgE antialergênicos, o que excluiria a possibilidade de associação entre LES e alergia(23-24).

Não se encontrou diferença estatisticamente signi-ficativa entre a presença de cistite crônica inespecífi-ca, tempo de doença ou momento clínico da afecção. Poder-se-ia esperar maior incidência de cistite crônica inespecífica quando a doença estivesse em atividade, uma vez que nessa situação é habitual um aumento da dose de corticosteroides, aumentando a já preexistente suscetibilidade à infecção nos pacientes com LES(17-18).

Verificou-se uma tendência no encontro de cistite crônica inespecífica entre os pacientes que receberam antimaláricos, porém sem diferença estatisticamente sig-nificativa. Por outro lado, pacientes que receberam anti-inflamatórios não-hormonais apresentaram menor nú-mero do cistite crônica inespecífica, mas também não se encontraram diferenças estatisticamente significativas.

Os achados de vasculite, quando correlacionados com dados clínicos, não mostraram diferenças estatis-ticamente significativas, o que pode ter ocorrido pelo pequeno número de casos da amostra.

A presença de dor suprapúbica mostrou-se estatis-ticamente relacionada à presença de infiltrado mastoci-tário vesical. Os mastócitos podem ser ativados por vá-rios mecanismos que ocorrem dentro da parede vesical. O aumento da permeabilidade do urotélio, com influxo de íons potássio, pode levar à sobrerregulação do nervo sensorial aferente, e estímulo à ativação dos mastóci-tos que, por sua vez, podem ativar os nervos aferentes, formando-se então um círculo vicioso. Esse mecanismo poderia explicar a presença de dor nos pacientes(25).

O uso de antimaláricos também se mostrou esta-tisticamente associado à presença de mastócitos. Seria a maior proporção de infiltrado mastocitário vesical realmente secundária ao uso do antimalárico, ou, na verdade, significaria que o mesmo mecanismo imune, causador da doença tratada com essas drogas, estaria atingindo a parede vesical? Ainda não há resposta defi-nitiva para tal questão.

einstein. 2009; 7(4 Pt 1):452-61

460 Wroclawski ER, Lucon AM, Wroclawski ML, Bezerra CA, Saldanha LB, Arap S

A imunofluorescência realizada em todos os casos revelou em apenas um paciente a presença de depó-sitos de imunoproteína. Pode-se, então, especular que nem todos os casos de cistite abacteriana no LES se-riam mediados por imunocomplexos. Assim, esses casos não-mediados por imunocomplexos estariam histopato-logicamente mais próximos da CI/SBD, que seria uma doença composta por uma série de subcenários, cada um dos quais exigindo uma abordagem própria(26).

A distribuição de cistoscopia com padrão intersti-cial foi semelhante nos grupos com ou sem cistite crôni-ca inespecífica e vasculite vesical. Esses achados indica-riam que a presença de cistoscopia com padrão intersti-cial seria um achado independente de infecção crônica da bexiga ou da parede de vasos vesicais. Também não houve correlação entre infiltrado mastocitário vesical e o padrão intersticial à cistoscopia.

A ausência de correlação entre o número de mas-tócitos/mm2 de área e a ocorrência de cistite crônica vesical não apoia a hipótese de que os mastócitos en-contrados em número maior de pacientes com LES do que no Grupo Controle possam gerar uma reação in-flamatória local. Contudo, parece ser precoce descar-tar a suposição de que essas células não tenham uma ação lesiva sobre a barreira protetora do epitélio vesi-cal, facilitando a penetração de substâncias nocivas no interstício. Os mastócitos têm se mostrado essenciais para a resposta inflamatória e expressão gênica em cis-tite experimental(25). Em humanos, há evidências deri-vadas de estudos com microscopia eletrônica e técnicas de coloração por imuno-histoquímica que confirmam desempenharem um papel central na patogênese e na fisiopatologia da cistite intersticial(25).

Não se estabeleceu, também, qualquer correlação entre as ocorrências de vasculite e infiltrado mastocitário vesicais, sugerindo tratar-se de fenômenos distintos.

ConClUSÕESOs resultados do presente estudo indicam que, no LES, a bexiga pode estar envolvida mesmo sem a presença de manifestações clínicas. O comprometimento da bexiga se caracterizou pelo achado de cistite crônica inespecífi-ca, cistite eosinofílica, vasculite e infiltrado mastocitário vesicais. A presença de cistite crônica inespecífica foi maior no grupo de pacientes com LES do que no Grupo Controle, o mesmo ocorrendo em relação à presença de vasculite vesical. O encontro de vasculite linfocitoclás-tica e de depósitos de imunocomplexos em um pacien-te indica que os mesmos mecanismos patogênicos que acompanham o LES em outros órgãos e tecidos tam-bém podem produzir lesão na bexiga, caracterizando a cistite lúpica. Foi encontrado um número de mastóci-tos/mm2 de área vesical acima de valores estabelecidos

como normais em pacientes com LES. A ocorrência desse fenômeno se associou à presença de dor supra-púbica à repleção vesical e ao emprego terapêutico de antimaláricos.

rEFErÊnCiaS1. Lazaro D. Elderly-onset systemic lupus erythematosus: prevalence, clinical

course and treatment. Drugs Aging. 2007;24(9):701-15.

2. Kozora E, Ellison MC, West S. Reliability and validity of the proposed American College of Rheumatology neuropsychological battery for systemic lupus erythematosus. Arthritis Rheum. 2004;51(5):810-8.

3. McAlindon T. Update on the epidemiology of systemic lupus erythematosus: new spins on old ideas. Curr Opin Rheumatol. 2000;12(2):104-12.

4. Wroclawski ER. Envolvimento vesical no lúpus eritematoso sistêmico [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 1987.

5. Boye E, Morse M, Huttner I, Erlanger BF, MacKinnon KJ, Klassen J. Immune complex-mediated interstitial cystitis as a major manifestation of systemic lupus erythematosus. Clin Immunol Immunopathol. 1979;13(1):67-76.

6. de la Serna AR, Alarcon-Segovia D. Chronic interstitial cystitis as an initial major manifestation of systemic lupus erythematosus. J Rheumatol. 1981;8(5): 808-10.

7. HaaralaM, Alanen A, Hietarinta M, Kiilhoma P. Lower urinary tract symptoms in patients with Sjögren’s syndrome and systemic lupus erythematosus. Int Urogynecol J Pelvic Floor Dysfunct. 2000;11(2):84-6.

8. Panzera AK. Interstitial cystitis/painful bladder syndrome. Urol Nurs. 2007;27(1):13-9.

9. Oravisto KJ, Alfthan OS, Jokinen EJ. Interstitial cystitis. Clinical and immunological findings. Scand J Urol Nephrol. 1970:4(1):37-42.

10. Alarcon-Segovia D, Abud-Mendoza C, Reyes-Gutierrez E, Iglesias-Gamarra A, Diaz Jouanen E. Involvement of the urinary bladder in systemic lupus erythematosus. A pathologic study. J Rheumatol. 1984;11(2):208-10.

11. Nakauchi Y, Suehiro T, Tahara K, Kumon Y, Yasuoka N, Ohashi Y, et al. Systemic lupus erythematosus relapse with lúpus cystitis. Clin Exp Rheumatol. 1995;13(5):645-8.

12. Akamatsu S, Tsukasaki H, Inoue K, Nishio Y. A case of lupus cystitis diagnosed from urinary symptoms as the sole initial complaint. Hinyoka Kiyo. 2005;51(10):685-7.

13. Tan EM, Cohen AS, Fries JF, Masi AT, McShane DJ, Rothfield NF, et al. The 1982 revised criteria for classification of systemic lupus erythematosus. Arthritis Rheum. 1982; 25(11):1271-7.

14. Long ED, Shepherd RD. The incidence and significance of vaginal metaplasia of the bladder trigone in adult women. Br J Urol. 1983;55(2):189-94.

15. Kvist E, Sjolin KE, Laursen H, Ortnoft TF, Sturmer MA. Squamous cell metaplasia of the bladder urothelium. A retrospective study of 36 patients. APMIS. 1992;100(7):650-4.

16. Patelli E, Mantovani F, Catanzaro M, Pisani E. [Urgency-frequency syndrome in women: interstitial cystitis and correlated syndromes]. Arch Ital Urol Androl. 1999;71(5):317-20. Italian.

17. Bosch X, Guilabert A, Pallarés L, Cerveral R, Ramos-Casals M, Bové A, et al. Infections in systemic lupus erythematosus: a prospective controlled study of 110 patients. Lupus. 2006;15(9):584-9.

18. Zandman-Goddard G, Schoenfeld Y. Infection and SLE. Autoimmunity. 2005;38(7):473-85.

19. van den Ouden D. Diagnosis and management of eosinophilic cystitis: a pooled analysis of 135 cases. Eur Urol. 2000;37(4):386-94.

20. Gregg JA, Utz DC. Eosinophilic cystitis associated with eosinophilic gastroenteritis. Mayo Clin Proc. 1974;49(3):185-7.

einstein. 2009; 7(4 Pt 1):452-61

Aspectos histopatológicos da bexiga no lúpus eritematoso sistêmico 461

21. Amin MA, Hamid MA, Saba S. Hypereosinophilic syndrome presenting with eosinophilic colitis, enteritis and cystitis. Chin J Dig Dis. 2005;6(4):206-8

22. Wozniacka A, Sysa-Jedrzejowska A, Robak E, Sampchocki Z, Zak-Prelich M. Allergic diseases, drug adverse reactions and total immunoglobulin e levels inlupus erythematosus patients. Mediators Inflamm. 2003;12(2):95-9.

23. Morton S, Palmer B, Muir K, Powell RJ. IgE and non IgE mediated allergic disorders in systemic lupus erythematosus. Ann Rheum Dis. 1998;57(11)660-3.

24. Atta AM, Souza CP, Carvalho EM, Sousa-Atta ML. Immunoglobulin E and systemic lupus erythematosus. Braz J Med Biol Res. 2004.37(10): 1497-501.

25. Sant GR, Kempuraj D, Marchand JE, Theoharides TC. The mast cell in interstitial cystitis: role in pathophysiology and pathogenesis. Urology. 2007;69(4 Suppl):34-40.

26. Tomaszewski JE, Landis JR, Russack V, Williams TM, Wang LP, Hardy C, et al. Biopsy features are associated with primary symptoms in interstitial cystitis: results from interstitial cystitis database study. Urology. 2001;57(6 Suppl 1):67-81.