Aspectos Do Romance Forster E. Morgan

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Sobre o aspectos do romance - crítica literaria

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Outras obras do autor: Romances: Where Angels Fear to Tread (1905)/ The Longest Journey (1907)/ A Room with a View (1908)/ Howards End/ A Passage to India (1924)/ Maurice (1971)/ Arctic Summer (1980). Coletneas de Contos: The Celestial Omnibus (and others stories) (1911)/ The Eternal Moment (and other stories) (1928)/ Englands Pleasant Land (1940)/ The Collected Tales of E. M. Forster (1947)/ Billy Budd (1951)/ The Life to Come (and other stories) (1972). ensaios: Alexandria: A History and Guide (1922)/ Pharos and Pharillon (A Novelists Sketchbook of Alexandria Through the Ages) (1923)/ Goldsworthy Lowes Dickinson (1934)/ Abinger Harvest (1940)/ Two Cheers for Democracy (1951)/ The Hill of Devi (1953)/ Marianne Thornton, a Domestic BiographY (1956)/ Commonplace Book (1987).

Edward Morgan Forster, filho de um arquiteto, nasceu em Londres, no dia 1. de janeiro de 1879. Estudou na Tombrigde School e no Kings College, de Cambridge, onde se bacharelou em letras clssicas e histria, em 1901. A partir desse ano, em companhia da me, passou longas temporadas na ustria, na Itlia e na Grcia. Entre 1912 e 1922 esteve duas vezes na ndia e viveu em Alexandria, de 1915 a 1919, servindo como soldado durante a Primeira Guerra Mundial. Ainda estudante, com Lowes Dickinson e R. C. Trevelyan, fundou a Independent Review, na qual publicou seu primeiro conto, The Story of a Panic. Influenciado por H. O. Meredith, chegou a ser membro da Cambridge Conversation Society, mais conhecida como Apostles, grupo de jovens que discutiam moral e outros temas relacionados intelectualidade. Muitos desse crculo logo se tornariam famosos: Lytton Strackey, John Maynard Keynes, Leonard Woolf e Desmond MacCarthy, entre outros. O romance de estria de Forster, Where Angels Fear to Tread, foi publicado em 1905 e alcanou rpido sucesso. A ele se seguiu, dois anos depois, The Longest Journey [A mais longa jornada]. A Room with a View [Uma janela para o amor], de 1908, foi adaptado para o cinema em 1985, com direo de James Ivory, tendo nos papis principais Maggie Smith, Helena Bonham Carter, Denholm Elliott, Julian Sands e Daniel Day-Lewis. Em 1987, o mesmo diretor filmou Maurice romance publicado postumamente, em 1971 estrelado por James Wilby, Rupert Graves e Hugh Grant, entre ou-tros. Sua obra mais conhecida, porm, A Passage to India [Passagem para a ndia], de 1924, que, em 1984, tambm tornou-se filme, dirigido por David Lean e protagonizado por Judy Davis, Peggy Ashcroft e Alec Guiness. A Passage to India, o livro, recebeu dois prmios: The Femina / Via Heureuse Prize e The James Tait Black Memorial Prize. Sua primeira coletnea de contos, The Celestial Omnibus, de 1911.

Forster foi convidado para as Clark Lectures, na Universidade de Trinity, Cambridge, o que lhe propiciou escrever o presente livro, Aspects of the Novel [Aspectos do romance], publicado em 1927. Ainda em Cambridge redigiu a biografia de um dos professores de quem foi amigo, Goldsworthy Lowes Dickinson (1934). Em 1956 publicou outra biografia, dessa vez sobre sua tia: Marianne Thornton: A Domestic Biography.

Alm de romancista, contista, ensasta e bigrafo, Forster foi tambm memorialista, tendo escrito alguns relatos de viagem como Alexandria: A History and Guide (1922) e Pharos and Pharillon: A Novelists Sketchbook of Alexandria Through the Ages (1923). De seus sete romances, dois foram publicados aps sua morte, ocorrida no dia 7 de junho de 1970. E. M. FORSTER



ASPECTOS DO ROMANCE





organizao:

Oliver Stallybrass


traduo:

Sergio Alcides


prefcio:

Luiz Ruffato




Copyright The Provost and Scholars of Kings College, Cambridge, 1927, 1974

Copyright da traduo 2003 by Editora Globo S.A.


Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edio pode ser utilizada ou reproduzida em qualquer meio ou forma, seja mecnico ou eletrnico, fotocpia, gravao etc. nem apropriada ou estocada em sistema de bancos de dados, sem a expressa autorizao da editora.


Ttulo original:

Aspects of the Novel


Preparao: Beatriz de Freitas Moreira

Reviso: Maria Sylvia Castro de Azevedo Corra, Denise Padilha Lotito, Nair Hitomi Kayo e Luciano Marchiori

ndice: Luciano Marchiori

Capa: Paula Astiz


Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (cip)

(Cmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)


Forster, Edward Morgan, 1879-1970 Aspectos do romance / E. M. Forster ; organizao Oliver Stallybrass ; traduo Sergio Alcides ; prefcio Luiz Ruffato. 4. ed. rev. So Paulo : Globo, 2005.

Ttulo original: Aspects of the Novel isbn 978-85-250-5451-7

1.Fico inglesa Histria e crtica I. Stallybrass, Oliver. II. Ruffato, Luiz. III. Ttulo

04-7300 cdd-823.09

ndices para catlogo sistemtico: 1. Fico : Literatura inglesa : Histria e crtica 823.09 2. Romances : Literatura inglesa : Histria e crtica 823.09

Direitos de edio em lngua portuguesa para o Brasil

adquiridos por Editora Globo S. A.

Av. Jaguar, 1485 05346-902 So Paulo SP

www.globolivros.com.br

Sumrio

Capa Outras obras do autor Sobre o autor Folha de rosto Crditos Prefcio Introduo do organizador Nota do tradutor Nota do autor Dedicatria 1 Introduo 01 2 A estria 11 3 Pessoas 19 4 Pessoas (continuao) 29 5 O enredo 37 6 Fantasia 46 7 Profecia 55 8 Padro e rtimo 65 9 Concluso 74 apndice a 76 apndice b 88 apndice c 90 apndice d 92 ndice anotado 95 Notas 107 Prefcio

A potica do romance de Forster

Este um livro que no pode faltar na biblioteca de quem pretende ter pelo menos um mnimo de conhecimento acerca da cultura ocidental. Podemos discordar ou concordar total ou parcialmente com o autor, mas nunca desconhec-lo. No fosse por outras razes, poderamos brandir que, em Aspectos do romance, E. M. Forster lana um conceito, que pode hoje ser encontrado no mais simples dos manuais de teoria literria: o de personagens planas e redondas. Mas o ensaio, publicado originalmente em 1927, nos conduz a outras agudas reflexes sobre o gnero, que o colocam anacronicamente e ele se divertiria deveras com isso na vanguarda das discusses do sculo xxi. Antes, porm, apresentemo-lo: Edward Morgan Forster, nascido em 1879, estudou letras clssicas e histria em Cambridge, viveu na Itlia, Grcia, Alemanha e ndia, participou do clebre Bloomsbury Group (com Virginia Woolf, John Maynard Keynes, Dora Carrington e Lytton Strachey), escreveu seis romances e dedicou-se, aps o encerramento de sua carreira como romancista, ao ensaio literrio e biografia. Morreu em 1970, ano de publicao da primeira edio de Aspectos do romance no Brasil. Um leitor mais exigente poderia, aps percorrer todo o livro, reclamar que Forster centrou muito suas discusses em torno da literatura de lngua inglesa, o que viria a prejudicar um estrangeiro que no tenha pleno domnio das obras que ele cita. Outro, apressado, julgaria que, aps sua publicao, muitos romances e romancistas romperam as amarras do gnero, jogando por terra suas consideraes. E outros mais, aqueles que preferem aderir ao ltimo modismo ou seja, que tratam a obra literria com a mesma sofreguido com que lem as notcias do dia , a esses, o nome Forster deve soar como marca de cerveja. Como o derradeiro tipo descrito provavelmente no abrir este livro, tentemos responder aos outros dois. Convidado a uma srie de conferncias no Trinity College Cambridge (uma instituio fundada por Henrique viii, em 1546), Forster inicia sua preleo explicando por que no iria se deter no tema proposto (e repetido anualmente), qual seja, uma reflexo sobre algum perodo ou perodos da Literatura inglesa no anterior a Chaucer. O autor comea exatamente relativizando qualquer possibilidade de limitar sua discusso Literatura inglesa, j que, argumenta, se a poesia inglesa no teme ningum, a fico menos exitosa: no contm o que de melhor j se escreveu, e se o negarmos, incorreremos em provincianismo. Embora a conduo das conferncias se d sempre com relao a alguma obra em lngua inglesa, Forster est acenando para o resto da Europa, lembrando escritos em outros idiomas. E como suas concluses, na maior parte das vezes brilhantes, so universais, podemos dar como vencido por pontos o nosso primeiro leitor-tipo. Enfrentemos, pois, o segundo. Forster continua sua explicao: Ocorre que essa idia de um perodo ou desenvolvimento no tempo, com a conseqente nfase sobre influncias e escolas, exatamente o que espero evitar. Aqui o romancista britnico aponta para a sincronicidade das obras. A Histria se desenvolve, a Arte permanece imvel. O que pode parecer paradoxal, tem um sentido: os romancistas vm de diferentes pocas e camadas, com temperamentos e aspiraes os mais diversos, mas todos tm na mo uma pena, e esto no processo de criao. E continua: Um espelho no se aperfeioa porque um s espetculo histrico se desenrola sua frente. Ele s se aperfeioa quando recebe uma nova camada de mercrio em outras palavras, quando adquire nova sensibilidade; e o sucesso do romance est em sua prpria sensibilidade, no no sucesso de seu assunto. Como o conceito de sincronicidade coloca a criao literria alm do tempo, cremos que podemos dar por vencido o segundo leitor-tipo. Agora, por nocaute tcnico.

Ainda, antes de entrarmos de vez nos tpicos da conferncia pronunciada por Forster, permita-me, leitor, mais uma pequena amostra da contemporaneidade de suas idias. O ensasta grita uma obviedade, mas, como todas as obviedades, poucos ouvem. preciso ler os livros (o que um infortnio, porque isso leva tempo); o nico modo de descobrir o que eles contm. H aqueles que acreditam piamente que no importa o que os livros contm, mas de onde eles emanam. A esses, Forster contraporia, com humor: Algumas tribos selvagens os comem, mas a leitura o nico mtodo de assimilao deles conhecido no Ocidente. Um romance, afirma Forster, uma fico em prosa com no menos de 50 mil palavras. Ele mesmo admite tratar-se de uma definio pouco filosfica, mas no se atm a esse ponto. Os aspectos por ser no-cientfico e vago que ele vai discutir so: estria, pessoas, enredo, fantasia, profecia e padro e ritmo. A estria aspecto fundamental do romance uma narrativa de eventos dispostos conforme a seqncia do tempo. E, nesse sentido, a estria imita a vida diria: pensamos num acontecimento como ocorrido antes ou depois de outro; freqentemente no ocorre esse pensamento e muitas das nossas conversas e das nossas aces se baseiam nesse pressuposto. Mas, afirma Forster, parece haver algo mais na vida alm do tempo, o valor, mensurvel no por minutos, mas pela intensidade. E o que um bom romance faz , concomitantemente, narrar a vida no tempo, incluindo a vida dos valores. Alm disso, o autor chama a ateno para a estria como repositrio de uma voz. O que a estria faz de fato a partir dessa capacidade em particular, tudo o que pode fazer a partir da, transformar-nos de leitores em ouvintes, aos quais se dirige uma voz, a do narrador tribal, de ccoras no meio da caverna, dizendo uma coisa aps a outra enquanto a audincia no adormece entre seus despojos e ossos. As pessoas os protagonistas numa estria podem ser planas ou redondas. Este parece ser o conceito de Forster mais difundido e talvez, ainda assim, no de todo compreendido. Partindo do pressuposto, citado do filsofo francs Alain, de que enquanto a Histria enfatiza as causas externas que determinam a ao dos homens a noo de fatalidade , no romance tudo se fundamenta na natureza humana, e o sentimento dominante de uma existncia na qual tudo intencional, mesmo as paixes e os crimes, inclusive a misria. Ou, em outras palavras, a fico mais verdadeira do que a histria, porque ultrapassa as evidncias, e todos ns sabemos por experincia prpria que existe algo alm das evidncias. Ento, Forster divide as personagens em planas que podem ser expressas por uma s frase, porque so construdas ao redor de uma nica idia ou qualidade ou redondas, quando construdas ao redor de mais de um fator. Ou, em outras palavras, se ela capaz de nos surpreender de modo convincente, redonda; se ela nunca nos surpreende, plana; se no convence, plana pretendendo ser redonda. Agora, mesmo admitindo que as pessoas planas no so, em si, realizaes to notveis quanto as redondas, Forster categrico em afirmar que o romance mais complexo por vezes requer gente plana tanto quanto gente redonda, e o resultado de suas colises um paralelo com a vida.

Tendo estudado a estria e as personagens, chegamos ao enredo. Na definio de Forster, como a estria, o enredo uma narrativa de acontecimentos, cuja nfase recai na causalidade. Uma estria se mantm equilibrando-se na curiosidade. Mas um enredo requer inteligncia e memria. A memria e a inteligncia esto intimamente ligados: s podemos compreender se lembrarmos. E aqui desponta a contemporaneidade de Forster. Depois de definir o enredo, o romancista aponta o seu grande defeito: a exigncia de remate. No fosse a existncia da morte ou do casamento, no sei como o romancista mediano concluiria seus livros. A morte e o casamento so quase a nica conexo que ele estabelece entre os personagens e o enredo. E antecipa indagaes que permeariam todo o resto do sculo xx: A estrutura produzida nesses termos a melhor possvel para um romance? Por que o romance tem de ser planejado? Por que precisa ter fecho? No pode ser deixado em aberto? At aqui ento, resumidamente, os instrumentos propostos por Forster para uma aproximao da forma do romance so: curiosidade para a estria ou, o que vem a seguir; sentimentos humanos e sendo de valor para as personagens ou, a ocorrncia de personagens planas ou redondas; inteligncia e memria para o enredo ou o porqu. Esses tpicos encaminham-nos para a Beleza, que o romancista nunca deve almejar, embora ele fracasse se no a atingir. Talvez, seja essa a espinha dorsal da potica do romance perseguida por Forster. Os itens fantasia e profecia extrapolam o conceito bsico, e os padro e ritmo no chegam a constituir-se como definies. Logo na primeira conferncia, Forster afirma que o romance uma massa formidvel e muito amorfa est cercado por duas cadeias de montanha a Poesia e a Histria e limitado por um mar, que ele no denomina. E no o faz porque, considerando suas prprias indagaes, poderamos compreender o mar como a vastido da Metafsica, habitado por uns poucos autores que, desvencilhando-se da condio de narrador, atingem o papel de profetas. E quais seriam as caractersticas intrnsecas da literatura proftica? Requer humildade e ausncia de sense of humour; atinge mais fundo; espasmodicamente realista; nos d a sensao de uma cano ou de um som; sua face volta-se em direo unidade; e sua confuso incidental. O grande nome, para Forster, da literatura proftica Hermann Melville. Dostoivski, Emily Bront e D. H. Lawrence, cada um em sua especificidade, so outros autores lembrados pelo ensasta. A fantasia um tom abaixo da profecia assim identificada por Forster: onde os outros romancistas dizem, aqui est algo que poderia ocorrer em suas vidas, o fantasista diz, eis algo que no poderia ocorrer em suas vidas. O poder da fantasia penetra em cada canto do universo, mas no nas foras que o governam. Para separar a fantasia da profecia, o ensasta socorre-se de James Joyce. Joyce tem muitas qualidades prximas da profecia, e mostrou (especialmente em Portrait of the Artist) uma imaginosa percepo do mal. Mas ele solapa o universo muito maneira de um operrio, sempre em busca dsta ou daquela ferramenta; apesar de toda a sua disperso interior, ele demasiado estreito; nunca vago a no ser depois de cuidadosa deliberao; conversa, muita conversa, e nunca cano. Finalmente, Forster tenta definir dois conceitos, para ele importantes na compreenso do romance: padro (emprestado da pintura) e ritmo (importado da msica). O padro, argumenta, nasce principalmente do enredo: e o acompanhar como a luz nas nuvens, permanecendo visvel depois que ele passa. s vezes, o formato do livro a beleza, tomando-se o livro como um todo, em sua unidade, e nosso exame seria mais fcil se fosse sempre assim. s vezes, porm, no . Quando no for, vou cham-lo de ritmo. Ou seja, o ritmo seria, nesse caso, repetio mais variao. Cremos que, chegados ao fim, perdurem dvidas e temas obscuros, lacunas e conceitos falhos. Mas no assim tambm a vida? Luiz Ruffato

Introduo do organizador

Forster tinha o costume de, ao incio de cada ano, fazer no seu dirio um resumo do ano que acabara de passar, apresentando para sua prpria inspeo um balano de sua sade fsica e espiritual, de sua fama e, s vezes, de sua fortuna. Nessas ocasies, a pena corria mais fcil na direo da auto-repreenso e da autocomiserao do que dos seus contrrios; e, assim, 1927 foi um ano difcil de resumir porque me sinto contente, e penso que ele foi [...]. Subestrutura de dinheiro e fama. Rendeu cerca de seiscentas libras, e acho que poderia ter rendido ainda mais. Conferncias (jan.-mar., publicadas em out.) foram um sucesso. Platia numerosa no Arts Theatre,[1] e, em conseqncia, ingresso como membro no Kings. As conferncias foram as Clark Lectures, um ciclo anual patrocinado pelo Trinity College, de Cambridge, que talvez seja o mais famoso de todos os que tratam de literatura inglesa. Desde Leslie Stephen e Edmund Gosse at William Empson e I. A. Richards, os conferencistas selecionados incluem no s a lista previsvel de crticos e estudiosos famosos, ou que foram famosos, mas tambm, nos ltimos cinqenta ou sessenta anos, alguns ocasionais praticantes de uma das artes literrias por exemplo, um historiador, um dramaturgo ou um poeta. No ano letivo de 1926-27, essa honra coube, pela primeira vez, a um romancista; e o nome selecionado foi o do autor de um romance recente muito apreciado, A Passage to India. Forster ficou satisfeito com o convite, mas hesitou antes de aceit-lo; e em 17 de maro de 1926 escreveu a seu amigo indiano Syed Ross Masood: Estou um pouco inquieto com relao s Clark Lectures, para as quais acabei de ser convidado pelo Trinity College, de Cambridge. So oito conferncias sobre literatura inglesa a serem apresentadas l neste outono ou na prxima primavera, com a remunerao bastante considervel de duzentas libras. Devo aceit-las, se conseguir tomar coragem.[2]

Por um lado, havia o dinheiro, o desconforto por saber que ele no estava escrevendo outro romance nem nenhuma outra coisa de maior substncia, e, sobretudo, talvez, o prestgio por estar seguindo os passos de T. S. Eliot, por cuja poesia Forster sentia uma forte admirao, ainda que no a manifestasse. (Pela de A. E. Housman seus sentimentos eram inespecficos; mas isso deve ter sido um pouco depois de ele saber que Housman tinha sido convidado antes de Eliot, e de ter podido no apenas ver, mas tambm copiar a elegante carta com que Housman recusava o convite.)[3] Por outro lado, havia os fatores que demandavam coragem: o principal deles, com certeza, no era tanto o desafio de se dirigir a uma platia vasta e predominantemente acadmica, mas o medo de, ao faz-lo, e tendo como assunto aquela inofensiva galinha, o romance j que, fosse qual fosse o tom do convite, ele devia saber o que esperavam dele despertar, inclusive de seus colegas romancistas, a acusao de inconsistncia. Por boa parte de sua vida Forster esteve consciente do golfo existente entre o estado da crtica e o da criao;[4] e quando, vinte anos depois de proferir as Clark Lectures, foi convidado para ir outra Cambridge falar sobre A raison dtre da crtica, comeou admitindo de maneira nada relutante que a causa contra a crtica alarmantemente forte e concluiu com a afirmao de que no existe uma raison dtre de primeira ordem para a crtica nas artes.[5] O trabalho crtico que ele realizou, mesmo sustentando tais pontos de vista, , com nenhuma outra exceo, diminuto quanto escala, irrequieto quanto ao modo, e mais caracterizado por insights sbitos e agudos do que pela anlise detalhada, ou pela consistente aplicao de uma teoria crtica qualquer, ou pelo tipo de dissecao que pode ser esperada numa srie de oito conferncias sobre perodo ou perodos da Literatura Inglesa no anteriores a Chaucer.[6] Ter ele realmente desejado competir com Mr. Clayton Hamilton, de cujos Material and Methods of Fiction ele tanto debochara alguns anos antes,[7] ou com o Professor E. A. Baker, cuja monumental History of the English Novel ele agora viria a tratar com um grau de desrespeito que levaria o autor a protestar, indignado, e Forster retratou-se parcialmente?[8]

Talvez a resposta nunca tenha sido seriamente incerta: seu recente sucesso poderia se revelar um efmero piscar da ribalta americana (a vendagem de A Passage to India nos Estados Unidos ultrapassara em muito a britnica), e, alm disso, ele, ao contrrio de Housman, no tinha estudos a interromper, pedantes ou no, e, em ltimo caso, para chegar a uma recusa, ele precisaria ter muito menos vaidade, ou uma vaidade de tipo mais austero e mais sofisticado. Seja como for, a aceitao no afastou inteiramente seus receios, alguns dos quais mencionou em carta de 11 de julho a um amigo em Alexandria, G. H. Ludolf: Suponho que a nica serventia de eu estar vivo pelo menos a nica serventia pblica produzir bons livros, coisa que no posso dizer que esteja fazendo. Passo meu tempo lendo romances escritos por outras pessoas, em funo de umas conferncias a serem proferidas em Cambridge no ano que vem. [...] Estou fazendo a travessia de Clarissa Harlowe. Acabei de devorar Defoe e Sterne, e adoro ambos. Tudo isso bastante agradvel, e as conferncias so bem pagas. Mas so atividades que nada tm a ver com criao. Sinto-me como um manequim, do qual se extraiu a vida real, e sempre pensei temo que sempre deva pensar que a maioria dos homens acima dos quarenta est na mesma situao: so felizes e bastante agradveis, desfrutam de algumas coisas, ocupam certa posio (depois de a terem atingido): mas o respeito que eles conspiram a fim de reter est completamente fora do lugar. A devorao de romances do sculo xviii comeou provavelmente em abril, com Tristram Shandy e Moll Flanders, cujas entradas abrem a srie de notas do Livro dos Lugares-Comuns de Forster. Tendo chegado at a, escreveu a Virginia Woolf em 17 de maio confessando que Tristram e Moll eram novidade para ele, e perguntando com a maior inocncia pelos nomes dos melhores romances.[9] Mesmo que no tenha lido todos, suspeito que tivesse uma idia mais clara a respeito deles do que deixava transparecer. Em todo caso, como nesse trecho ele estava desdenhando como triste concluso de bloomsburiana uma das opinies que V. W. tornou pblicas,[10] no provvel que estivesse escrevendo sob excessiva influncia das recomendaes que ela lhe fizera em privado, se que ela chegou a atender seu pedido de ajuda. Se a princpio Forster ficou confuso com a honra um tanto inquietante de suas conferncias, a primeira foi melhor do que eu esperava, depois da segunda anotou que at agora a platia parece interessada, aps a terceira as conferncias eram um sucesso popular em meio s intelliganzanettes de Cambridge, com a stima tornaram-se um grande sucesso, e por fim o maior sucesso, a ponto de minha ascenso constante para a fama me impedir de escrever cartas.[11] Parece fora de dvida que as conferncias foram amplamente apreciadas pela maior parte da platia embora isso seja explicado de maneira bem diferente pelos dois correspondentes que fizeram a gentileza de me enviar suas recordaes.[12] Mr. George Rylands, que assistiu a vrias das conferncias, lembra-se do sorriso malicioso de Forster, que de repente rebentava numa gargalhada meio abafada e quase infantil, acrescentando: Morgan nunca pontificava; nunca era doutrinrio; nunca parecia complacente nem afetava superioridade. Sobretudo, embora nunca elevasse o tom de voz, nunca murmurava. As conferncias, como ele afirma na verso impressa, tiveram um tom informal, de conversa. [...] Os melhores conferencistas da srie Clark que o sucederam se saram bem pelas mesmas razes. Falaram, como fizera Morgan da maneira mais memorvel, naturalmente [...]; falaram para o Leitor Comum. de presumir que esta prova apresentada por um membro do Kings College teria sido impugnada no tribunal por meu outro correspondente, o dr. F. R. Leavis, que compareceu s oito conferncias e se recorda de ter ficado estarrecido com a nulidade intelectual que as caracterizou. Para ele, a explicao para a recepo explicitamente favorvel a Forster e seu repugnante sucesso junto sua certamente sua platia reside no fato de que esta era largamente composta de tolssimas esposas de lentes e suas amigas (as intelliganzanettes citadas por Forster?), embora tambm estivesse presente grande nmero de lentes do sexo masculino, inclusive meu antigo orientador (um Kingsman) no havendo exceo regra de que os Kingsmen sempre so leais. O Dr. Leavis, para quem tudo isso apenas demonstra a potncia da ortodoxia do iluminismo, continua: O livro resultante logo se tornou uma praga: as professoras de todas as escolas para meninas aderiram distino entre personagens planos e redondos que afinal de contas valia tanto quanto qualquer outra coisa que o livro apresentasse, sob o aspecto crtico. Falo como algum que foi em grande parte responsvel pelo ensino de ingls em Girton e Newnham. Pode-se observar de passagem que o Dr. Leavis, num outro trecho, considera Aspectos do romance[13] menos desprovido de viso crtica, tendo a necessria obra de demolio acerca de Meredith poupado o autor de The Great Tradition dessa tarefa particularmente indispensvel.[14] Mas o Dr. Leavis no foi o nico crtico severo dos Aspectos, e devemos agora considerar os defeitos que lhe foram imputados. Forster, como j sugeri acima, ocupava uma posio at certo ponto falsa: contratado como crtico, tendo srias dvidas acerca do valor da crtica. E tentou desvencilhar-se desse dilema apresentando o tipo de crtica que lhe pareceu mais congenial e inofensiva, levantando casuais questionamentos sobre toda essa cambulhada e disparando petardos contra o pseudo-academismo de que ele ironicamente se dizia um praticante. Seria uma posio equivocada? J. D. Beresford achou que sim: Forster, diz ele em sua resenha do livro,[15] deixa a impresso de que por menos que um alfinete ele teria pegado seu bon e dado o fora, alegando que no havia um s princpio em todos os cnones da crtica literria que valesse dois vintns. No entanto, no se pode pregar a anarquia no auditrio de uma Universidade, nem mesmo a anarquia literria, e por isso Mr. Forster teve de respeitar os desejos do finado William George Clark. Era essencial a discrio, como medida de sobriedade.

Se para Beresford, deduzo eu, o aspecto lamentvel era a sobriedade, para Ford Madox Ford era a anarquia, e a correspondente irreverncia. O ttulo da sua resenha, Cambridge de cambulhada,[16] exprime o ultraje diante do uso galhofeiro dessa palavra por Forster. Ele compara a atitude de Forster com relao arte e ao ofcio que lhe deu honra e fama com a da revista Punch em face dos problemas mais srios da vida, e continua: Tanto quanto romancista, Mr. Forster tambm um pregador, e nesta obra como se ele, com uma mo, erguesse a hstia, enquanto com a outra escrevesse gracinhas pedantes sobre o modo como se assa o po zimo consagrado. Forster, a nulidade intelectual; Forster, o anarquista pusilnime; Forster, o padre sacrlego: tais so as acusaes que voam por todos os lados quando o romancista deixa a criao e se volta para a crtica levando consigo a caracterstica recusa a ser grande, que geralmente considerada,[17] na sua fico, to afvel ou at mesmo admirvel. Mas, decerto, um erro medir o magro volume de Forster pelos padres de livros que ele no pretendeu escrever nem emular. E talvez seja mais pertinente ao caso o tipo de crtica feita pelo narrador de Cakes and Ale, de Somerset Maugham: Li The Craft of Fiction, de Mr. Percy Lubbock, em que aprendi que a nica maneira de escrever romances era a de Henry James; depois li Aspectos do romance, de Mr. E. M. Forster, em que aprendi que a nica maneira de escrever romances era a de E. M. Forster. A meu ver, a passagem d conta do livro de Lubbock de uma vez por todas; e se a considero menos correta a respeito do de Forster, pelo menos ela indica, com seu impressionante exagero, o tipo de livro que Aspectos do romance : um conjunto de observaes, encadeadas de modo um tanto arbitrrio (o esboo inicial da estrutura desse curso meio desengonado de Forster s aparece ao final das notas que constam do Apndice A), por parte de um homem que , em primeiro lugar, um romancista, em segundo, um leitor ligeiramente incomum, em terceiro, um amigo e, em quarto, um crtico analtico ou terico. Amigo em terceiro e crtico em quarto. Porque necessrio admitir que Forster nunca hesitou antes de subordinar a crtica amizade, e h exemplos bem claros disso em Aspectos do romance: o elogio gratuito a The Magic Flute, de Dickinson (que no seria o primeiro nem o ltimo vindo dele); a discrepncia entre a apatia de seus comentrios privados sobre dois livros de Percy Lubbock e o louvor exagerado dos publicados,[18] discrepncia que tudo indica refletir sua lealdade e sua gratido a um contemporneo do Kings College que, em 1918, como seu superior na Cruz Vermelha, tanto o ajudou numa disputa interna; e sua deciso de no enviar a Mrs. Woolf as provas ainda no corrigidas por uma pequena razo privada; elas contm uma crtica obra dela que modifiquei ao fazer a reviso!!.[19] Justifica-se que nos escandalizemos a palavra de Forster, no contexto de sua famosa preferncia por trair seu pas e no um amigo , mas no que nos surpreendamos: Pessoas acima da Arte foi uma idia que ele afirmou com freqncia e que por toda a vida fez parte do seu credo pessoal. Mesmo quando enfocado a partir do que ele , Aspectos do romance ainda tem ocasionalmente o poder de irritar tal como Forster pretendeu que o fizesse: Espero ter irritado alguns de vocs quanto a Scott!, admite ele. E os admiradores de Scott morderam a isca inocentemente;[20] vrias vozes se ergueram em defesa de diversos outros alvos, e os jamesianos defenderiam o Mestre fosse do que fosse em at oito vezes a extenso do ataque de Forster.[21] enfadonha a obra de crtica que no gera alguns resmungos; seguem-se alguns de minha prpria parte. A comear por James, no seria ele quem, mais do que qualquer um, tem uma verdadeira e poderosa noo do mal (ver pp. 152-3), mesmo que (possivelmente) nunca de fato utilize a palavra? justo que George Eliot seja representado por Adam Bede, Conrad por Marlow, e Mrs. Gaskell por uma simples meno a Cranford? (Resposta parcial: Forster cita Adam Bede por motivos que nada tm a ver com justia. Alm disso, ele tambm pode ser legitimamente injusto, como ao apresentar Material and Methods of Fiction como um livro ainda mais tolo do que de fato ).[22] E, se a questo no for injusta, por que perdi um tempo precioso lendo Fleckers Magic, fraco exemplo de bijuteria a que falta at mesmo a coerncia do resumo elogioso que Forster lhe faz, e nem sequer foi escrito (ao que parece) por um dos amigos deste? O desacordo frontal com um crtico vivaz e provocativo, claro, tanto mais prazeroso quanto mais proveitoso do que a concrdia morna que outro, sem brilho, pode despertar: mesmo a conhecida distino entre personagens planos e redondos, duvidosa como ela , e apoiada em exemplos mais duvidosos ainda, produziu, por causa dessas mesmas razes, consideraes renovadas sobre o assunto, em especial por parte de Edwin Muir.[23] No entanto, seria um erro insinuar que os melhores prazeres de Aspectos se do principalmente no seu poder de discrdia. O que agradar maioria dos leitores sero os numerosos juzos particulares, mais instintivos do que intelectuais, que acertam o alvo de leve, mas com grande preciso e freqentemente com muita espirituosidade; as justaposies contrastantes, em particular a de Sterne e Virginia Woolf e a de Adam Bede e Os irmos Karamzov (a de Richardson e Henry James me parece pura perverso);[24] a srie de desafios a pensarmos com insistncia em algumas idias que ainda no foram desenvolvidas por inteiro; e, embora Forster no mencione seus romances em nenhum momento, o freqente esclarecimento sobre seus objetivos e feitos no campo da fico.[25] Tudo isso faz de Aspectos do romance, ainda hoje, uma excelente introduo a seu assunto, muito til como obra adjunta a outros trabalhos de crtica mais slidos e mais consistentes. O texto deste volume o da edio Abinger, publicada pela Edward Arnold em 1974, que se baseou numa colao palavra-por-palavra com as primeiras edies e com vrios fragmentos manuscritos conservados no Kings College, em Cambridge. O aspecto mais significativo que essa colao revelou foi a existncia de numerosas pequenas diferenas entre as primeiras edies britnica e americana e as posteriores. Ao longo de maro de 1927, Forster enviou datiloscritos tanto Arnold, em Londres, quanto Harcourt, Brace, em Nova York; e claro que ele fez correes no datiloscrito da Arnold ou nas provas de prelo ou em ambos que no foram repassados atravs do Atlntico, ou o foram tarde demais. igualmente claro, porm, que a edio Arnold de 1927 (e, portanto, tampouco as subseqentes edies britnicas) no est isenta de defeitos; em cerca de duas dzias de passagens sofreu emendas, algumas das quais sugeridas ou confirmadas pela edio americana, ou (por meio de uma reviso que parece ter sido feita por Forster) pelas edies britnicas e americanas posteriores, ou ainda pelo manuscrito. Alm disso, as citaes de outros autores feitas por Forster foram conferidas e, quando necessrio, corrigidas; e o princpio da citao precisa foi estendido tambm referncia exata de autores, ttulos e datas de publicao. As notas de rodap geralmente so da autoria de Forster; as interpolaes editoriais so reconhecveis como tais por aparecerem entre colchetes. Uma informao mais detalhada sobre estes e outros aspectos textuais pode ser encontrada na edio Abinger. Exprimi na edio Abinger, e gostaria de o fazer tambm aqui, ainda que de maneira mais sumria, meus agradecimentos pela ajuda que recebi de vrias pessoas no Kings College, de Cambridge (em especial das citadas adiante), e dos seguintes indivduos: Mrs. Patricia Bradford, Mrs. Penelope Bulloch, Miss Laurie Cherbonnier, Mr. P. N. Furbank, Dr. F. R. Leavis, Mr. Donald Loukes, Mr. T. S. Matthews, Mr. Simon Nowell-Smith, Professor I. A. Richards, Mr. George Rylands, Mrs. Beth Schneiderman, e minha esposa, Mrs. Gunnvor Stallybrass. Oliver Stallybrass

Nota do tradutor

Para a traduo de citaes feitas pelo autor, as seguintes obras foram consultadas: De Daniel Defoe, As aventuras de Robinson Cruso (traduo de Albino Poli Jr. Porto Alegre: L&PM, 1997) e Moll Flanders (traduo de Antnio Alves Cury. So Paulo: Abril, 1971); de Charles Dickens, Grandes esperanas (traduo de Alceu Masson. Porto Alegre: Globo, 1942); de Fidor Dostoivski, Os irmos Karamzov (in: F. Dostoivski. Obra completa. Traduo de Natlia Nunes e Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, vol. IV); de George Eliot, O triste noivado de Adam Bede (traduo de Marques Rebelo. Rio de Janeiro: Pongetti, 1946); de Andr Gide, Les Faux-monnayeurs (Paris: Gallimard, 1926); de Herman Melville, Billy Budd (traduo de Alexandre Hubner. So Paulo: Cosac & Naify, 2002) e Moby Dick ou A Baleia (traduo de Pricles Eugnio da Silva Ramos. So Paulo: Abril, 1972); e de Laurence Sterne, A vida e as opinies do cavalheiro Tristram Shandy (traduo de Jos Paulo Paes. So Paulo: Companhia das Letras, 1998). S raramente, porm, foram seguidas risca as opes dos tradutores citados, preferindo-se sempre a verso mais literal possvel, conforme a citao e as necessidades do prprio Forster. Tambm foi consultada uma traduo anterior da obra, feita por Maria Helena Martins (So Paulo: Globo, 1998). Sergio Alcides

Nota do autor

Estas conferncias (do ciclo das Clark Lectures) foram pronunciadas sob os auspcios do Trinity College, de Cambridge, na primavera de 1927. Tiveram um tom informal, de conversa, e me pareceu mais seguro no cortar os modos da fala na hora de apresent-las em forma de livro, para evitar o risco de no sobrar nada no fim das contas. Portanto, palavras tais como eu, vocs, uma pessoa, ns, curiosamente, por assim dizer, imaginem e claro ocorrem em todas as pginas, e ao leitor mais sensvel parecero aflitivas; mas solicita-se que este se lembre de que se estas palavras tivessem sido afastadas, outras, quem sabe mais distintas, poderiam tambm ter escapado atravs dos orifcios por elas deixados, e que, sendo o prprio romance freqentemente coloquial, talvez oculte das correntes mais sisudas e grandiosas da crtica alguns de seus segredos, podendo revel-los aos charcos e baixios. A Charles Mauron1

Introduo

Este ciclo de conferncias est ligado ao nome de William George Clark, membro do Trinity College. por meio dele que hoje nos encontramos, e por meio dele abordaremos nossa matria. Creio que Clark era de Yorkshire. Nasceu em 1821, freqentou a escola em Sedbergh e Shrewsbury, entrou para o Trinity College como aluno de graduao em 1840, tornou-se membro quatro anos depois, e fez desta instituio sua casa por cerca de trinta anos, para deix-la apenas aps a perda da sade, pouco antes de morrer. mais conhecido como um especialista em Shakespeare, mas tambm publicou dois livros sobre outros assuntos, aos quais devemos aqui fazer meno. Quando jovem, esteve na Espanha, e escreveu um relato agradvel e muito vvido de suas frias, intitulado Gazpacho nome de uma sopa fria que ele tomou entre os camponeses da Andaluzia, e ao que parece apreciou; na verdade, ele parece ter apreciado tudo. Oito anos depois, aps uma estada na Grcia, publicou um segundo livro, Peloponnesus. Trata-se de uma obra mais grave e pesada. Naquela poca a Grcia era um lugar srio, mais do que a Espanha; alm disso, Clark no s tinha sido ordenado como tambm se tornara Orador Pblico, e acima de tudo estava viajando com o Dr. Thompson, ento reitor do Trinity College, que no era nem um pouco o tipo de pessoa que costuma se envolver com sopas frias. As anedotas sobre mulas e mosquitos seriam, portanto, menos freqentes, e assim nos deparamos mais e mais com restos da Antigidade clssica e locais de batalhas. O que sobrevive do livro alm da sua erudio sua afeio pelo interior da Grcia. Clark tambm viajou pela Itlia e pela Polnia. Voltemos sua carreira acadmica. Foi ele quem planejou a grande edio do Cambridge Shakespeare, primeiro com Glover, depois com Aldis Wright (ambos bibliotecrios do Trinity), e, com a ajuda de Aldis Wright, editou o Globe Shakespeare, mais popular. Reuniu muito material para uma edio de Aristfanes. Tambm publicou alguns sermes, mas largou as Ordens Sacras em 1869 o que, a propsito, nos dispensar de excessos de ortodoxia. Como seu amigo e bigrafo Leslie Stephen, como Henry Sidgwick e outros de sua gerao, no lhe pareceu possvel permanecer na Igreja, e ele exps seus motivos num panfleto intitulado The Present Dangers of the Church of England (Os riscos atuais da Igreja Anglicana). Em conseqncia disso, renunciou ao cargo de Orador Pblico, mas manteve a condio de Professor do Trinity College. Morreu aos cinqenta e sete anos, estimado por todos que o conheciam como um homem amvel, estudioso e honesto. J se percebe que se trata de uma figura de Cambridge. No uma figura mundana, ou mesmo de Oxford, mas um esprito peculiar a estes ptios, que talvez s vocs que os cruzam tempos depois dele podero avaliar com justia: o esprito de integridade. Graas a uma doao prevista no seu testamento, seu antigo colgio estabeleceu o ciclo de conferncias que deveria se repetir todos os anos, versando sobre perodo ou perodos da Literatura Inglesa no anteriores a Chaucer, para sempre ligados ao seu nome. As invocaes esto fora de moda, mas quis fazer esta breve invocao por dois motivos. Primeiro, para que um pouco da integridade de Clark esteja conosco ao longo deste curso; segundo, para que ele nos permita uma pequena transgresso. que eu no pretendo atender estritamente aos termos estabelecidos: perodo ou perodos da Literatura Inglesa. Essa condio, embora parea e seja bastante liberal no esprito, na letra no se ajusta perfeitamente nossa matria, e a conferncia de introduo deve se dedicar a explicar por qu. Os aspectos abordados podem parecer banais, mas eles nos conduziro a um posto avanado muito conveniente, a partir do qual poderemos iniciar nossa ofensiva principal. Precisamos de um posto avanado, porque o romance uma massa formidvel e muito amorfa sem montanhas a serem escaladas, sem Parnaso e sem Helico, sem sequer um Pisga. conhecido como uma das reas mais lodacentas da literatura, irrigada por uma centena de riachos e freqentemente degenerando num pntano. No me espanta que os poetas o desprezem, embora s vezes se vejam nele, por acidente. Tampouco me admira a irritao dos historiadores, sempre que, por acaso, ele se mistura no meio deles. Mas, antes de comear, talvez devssemos definir o que um romance. Monsieur Abel Chevalley nos d uma definio, em seu pequeno e brilhante manual[26] e, se um crtico francs no puder definir o romance ingls, quem o poder? Trata-se, diz ele, de uma fico em prosa de uma certa extenso (une fiction en prose dune certaine tendue). Isto o suficiente para ns, e podemos at ir alm, acrescentando que essa extenso no deve ter menos de cinqenta mil palavras. Para os efeitos destas conferncias, toda obra ficcional em prosa com mais de cinqenta mil palavras ser considerada um romance. E, se isto no lhes parecer suficientemente filosfico, queiram por favor buscar uma definio alternativa, que inclua The Pilgrims Progress, Marius the Epicurean, The Adventures of a Younger Son, The Magic Flute, A Journal of the Plague Year, Zuleika Dobson, Rasselas, Ulysses e Green Mansions, ou que, do contrrio, justifique a excluso dessas obras. verdade que certas partes do nosso terreno lamacento parecem mais fictcias do que outras: perto do centro, sobre um trecho de grama, est Miss Austen, tendo ao lado a figura de Emma, e Tackerey junto a Esmond. Mas no conheo nenhuma afirmao inteligente que descreva toda a extenso do terreno. Tudo o que podemos dizer sobre ele que se situa entre duas cadeias montanhosas que no se elevam muito abruptamente as opostas formaes da Poesia e da Histria e confina pelo terceiro lado com o mar um mar que encontraremos quando chegarmos a Moby Dick. Em primeiro lugar, consideremos a expresso Literatura Inglesa. claro que devemos interpretar inglesa como escrita em ingls, e no como publicada ao sul do Tweed ou a leste do Atlntico, ou ao norte do Equador: no precisamos nos ater aos acidentes geogrficos, que podem ser deixados para os polticos. Mas, mesmo com essa interpretao, estamos to livres quanto desejamos? Podemos, ao discutir a fico inglesa, ignorar completamente a fico escrita em outras lnguas, especialmente a francesa e a russa? No que diz respeito s influncias, poderamos ignor-las, j que os nossos escritores nunca se deixaram influenciar muito pelos continentais. Entretanto, por motivos que logo sero explicados, quero falar o mnimo possvel sobre influncias durante este ciclo. Meu assunto um tipo especfico de livro e os aspectos que ele assumiu em ingls. Podemos ignorar seus respectivos aspectos no continente? No de todo. Precisamos encarar aqui uma verdade desagradvel e nada patritica. Nenhum romancista ingls to grande quanto Tolsti quer dizer, nenhum nos apresentou um retrato to completo da vida do homem, seja em seu lado domstico ou herico. Nenhum romancista ingls explorou a alma do homem to profundamente quanto Dostoivski. E nenhum romancista em parte alguma jamais analisou a conscincia moderna com tanto xito quanto Marcel Proust. Perante esses triunfos devemos nos deter. A poesia inglesa no tem a quem temer destacando-se tanto pela qualidade quanto pela quantidade. Mas a fico inglesa menos triunfante: no contm o que de melhor j se escreveu, e se o negarmos, incorreremos em provincianismo. O provincianismo, porm, no significativo no que concerne a um escritor, e pode at ser a sua principal fonte de fora: s um pedante ou um tolo se queixaria do acento cockney[27] de Defoe ou do sotaque interiorano de Thomas Hardy. J num crtico o provincianismo um srio defeito. Um crtico no tem direito estreiteza que a prerrogativa freqente do artista criador. Ele deve ter uma viso ampla, do contrrio no ter nada mais. Embora o romance exera o direito de um objeto criado, a crtica no tem esses direitos, e muitas pequenas residncias da fico inglesa tm sido aclamadas, em prejuzo delas mesmas, como importantes edifcios. Tomemos quatro delas ao acaso: Cranford, The Heart of Midlothian, Jane Eyre e The Ordeal of Richard Feverel. Podemos estar ligados a esses livros por vrias razes pessoais ou locais. Cranford irradia o esprito das cidades do centro do pas; Midlothian um pedao arrancado de Edimburgo; Jane Eyre o sonho apaixonado de uma mulher e tanto, mas ainda no desenvolvida; Richard Feverel transpira o lirismo do campo e palpita com a espirituosidade da moda. Mas so quatro pequenas residncias, e no grandes edifcios. Teremos de avali-los e respeit-los pelo que so, se os pusermos por um instante em meio s colunatas de Guerra e paz ou sob as abbadas de Os irmos Karamzov. No farei nestas conferncias menes freqentes a romances estrangeiros. Muito menos pretendo posar de entendido no assunto, impossibilitado de discorrer sobre eles pelas restries do programa. Mas quero enfatizar sua grandeza antes de comearmos, e assim lanar, por assim dizer, esta sombra preliminar sobre a nossa matria, de modo que, quando afinal retornarmos a ela, possamos ter uma oportunidade melhor de observ-la com o seu brilho real. Isto basta para o termo inglesa. Cabe agora analisar um ponto mais importante, a expresso perodo ou perodos. Ocorre que essa idia de um perodo ou desenvolvimento no tempo, com a conseqente nfase em influncias e escolas, exatamente o que espero evitar durante a nossa breve investigao, e acredito que o autor de Gazpacho ser condescendente. O tempo ser sempre nosso inimigo. Vamos visualizar os romancistas ingleses no como se flutuassem ao longo da corrente que leva embora todos os seus filhos descuidados, e sim como se estivessem sentados juntos numa sala, uma sala circular, como o salo de leitura do Museu Britnico todos escrevendo seus romances simultaneamente. Ali, sentados, eles no pensam: eu vivo nos tempos da Rainha Vitria, eu, na poca de Ana, eu dou continuidade tradio de Trollope, eu estou reagindo contra Aldous Huxley. O fato de terem suas penas mo para eles bem mais importante. Esto um tanto magnetizados, suas tristezas e alegrias se derramam junto com a tinta, aproximam-se uns dos outros pelo ato de criar, e quando o Professor Oliver Elton afirma, como de fato o faz, que depois de 1847 o romance passional nunca mais voltou a ser o mesmo, ningum ali entende o que ele quer dizer. Ser assim o nosso modo de v-los um modo imperfeito, mas adequado s nossas possibilidades, que nos h de prevenir contra um srio risco, o risco de pseudo-erudio. A verdadeira erudio um dos mais elevados xitos que a nossa raa pode alcanar. Ningum triunfa mais do que o homem que escolhe um assunto relevante a fim de dominar todos os fatos a respeito dele, alm dos principais a respeito dos temas vizinhos. Ele ento pode fazer o que quiser. Se o assunto for o romance, pode palestrar sobre ele cronologicamente, se assim desejar, porque j leu todos os romances importantes dos ltimos quatro sculos, alm de muitos dos desimportantes, e tem suficiente conhecimento acerca de quaisquer fatos colaterais que interessem fico inglesa. O falecido Sir Walter Raleigh (que j foi titular desta srie de conferncias) foi um erudito desse tipo. Raleigh conhecia tantos fatos que podia se orientar pelas influncias, e a sua monografia sobre o romance ingls adota o tratamento por meio de perodos que seu indigno sucessor precisa evitar. O erudito, como o filsofo, pode contemplar o rio do tempo. No o contempla como um todo, mas pode ver os fatos, as personalidades que fluem sua frente, e avaliar as relaes entre eles, e se as suas concluses pudessem ser para ns to valiosas quanto para ele prprio, h muito tempo ele j teria civilizado a raa humana. Como vocs sabem, ele fracassou. A verdadeira erudio incomunicvel, e raros so os verdadeiros eruditos. Temos hoje um punhado de eruditos na platia, consumados ou em potencial, mas s um punhado, e na tribuna certamente no h nenhum. A maioria de ns pseudo-erudita, e pretendo considerar nossas caractersticas com compreenso e respeito, porque pertencemos a uma classe muito ampla e poderosa, eminente na Igreja e no Estado; controlamos a educao do Imprio, emprestamos Imprensa a distino que ela aceita receber, e somos convidados bem recebidos nos jantares da sociedade. A pseudo-erudio , na sua parte positiva, a homenagem que a ignorncia presta ao conhecimento. H tambm uma parte econmica, com a qual no precisamos ser to severos. A maioria de ns tem de arranjar um emprego antes dos trinta, ou, se no, pendurar-se em algum parente, e muitos empregos s podem ser preenchidos por meio de um concurso. O pseudo-erudito freqentemente se d bem nos exames (os verdadeiros nem tanto) e, mesmo quando reprovado, no fundo reconhece a inata majestade deles. So os portes do emprego, tm o poder de banir ou abenoar. Um artigo sobre King Lear pode conduzir a algum lugar, o que j no acontece com a afetada pea que leva esse nome. Pode abrir as portas da Junta de Governo Local. Raramente o pseudo-erudito confessa para si mesmo, abertamente: a vantagem de saber das coisas: elas nos ajudam a subir na vida. A presso econmica que ele sofre com freqncia subconsciente, e ele segue para o exame com a mera sensao de que o artigo sobre Rei Lear ser uma experincia tempestuosa, terrvel, mas intensamente verdadeira. E, seja ele cnico ou ingnuo, no culpa dele. Enquanto conhecer estiver ligado a receber, e enquanto alguns empregos s puderem ser obtidos por meio de concursos, teremos que levar a srio o sistema de exames. Se criarem outro meio de acesso ao emprego, boa parte do que chamamos de educao vai desaparecer, e ningum ficar um centavo mais burro por causa disso. quando se trata de crtica como neste presente emprego que o pseudo-erudito pode se tornar mais pernicioso, porque segue o mtodo do verdadeiro erudito sem ter o seu equipamento. Classifica os livros antes de os ter compreendido ou mesmo lido; seu primeiro crime. A classificao cronolgica. Livros escritos antes de 1847, livros escritos depois, livros escritos antes ou depois de 1848. O romance no reinado da rainha Ana, o pr-romance, o romance primitivo, o romance do futuro. A classificao por assunto ainda mais idiota. A literatura das Tabernas, comeando com Tom Jones; a literatura do Movimento das Mulheres, comeando com Shirley; a literatura das Ilhas Desertas, desde Robinson Crusoe at The Blue Lagoon; a literatura dos Vagabundos a mais chata de todas, embora a das Estradas a siga de perto; a literatura de Sussex (que talvez seja a que mais se dedica aos condados natais); os livros imprprios um ramo de investigaes muito srio, ainda que perigoso, a ser seguido por pseudo-eruditos mais maduros; romances ligados ao industrialismo, aviao, quiropodia, s condies atmosfricas do tempo. Justifico a incluso das condies atmosfricas do tempo com base no trabalho sobre o romance mais impressionante que li nos ltimos anos. Atravessou o Atlntico at minhas mos, e nunca me esquecerei dele. um manual de literatura chamado Materials and Methods of Fiction. Devo ocultar o nome do autor. um pseudo-erudito, e dos bons. Classificou os romances pelas datas, a extenso, o local, o sexo, o ponto de vista, e assim por diante, at se esgotarem as possibilidades. Mas ainda lhe restava uma carta na manga: as condies atmosfricas do tempo, e ao traz-las baila encontrou nove itens para essa categoria. Deu um exemplo para cada item, porque ele era tudo menos superficial, e ns podemos repassar aqui sua lista. Em primeiro lugar, as condies atmosfricas do tempo podem ser decorativas, como em Pierre Loti; ou utilitrias, como em The Mill on the Floss (no havendo o rio Floss, no h moinho; no havendo moinho, no h famlia Tulliver); ilustrativas, como em The Egoist; planejadas em harmonia preestabelecida, como em Fiona Macleod; em contraste emocional, como em The Master of Ballantrae; determinantes da ao, como em certa estria[28] de Kipling, na qual um homem se declara garota errada, por causa de uma tempestade de areia; uma influncia controladora, como em Richard Feverel; elas prprias o heri, como o Vesvio em The Last Days of Pompeii; por fim, em nono lugar, elas tambm podem ser inexistentes, como num conto infantil. Gostei de ver como ele enfrentou a inexistncia. Fez tudo direitinho, cientificamente. Mas ele prprio no ficou totalmente satisfeito, e ao final da sua classificao acabou dizendo: tudo bem, ainda resta uma coisa, que o gnio; de nada serve a um romancista saber que h nove itens para as condies atmosfricas do tempo se ele no tiver tambm o gnio. Confiante nessas reflexes, classificou os romances pelos tons. S h dois tons, o pessoal e o impessoal, e, depois de dar os exemplos respectivos, tornou a ficar pensativo e disse: Tudo bem, mas voc tambm precisa ter o gnio, se no de nada lhe servir nenhum dos dois tons. Essa referncia ao gnio tambm tpica do pseudo-erudito. Ele adora mencionar o gnio, porque o som dessa palavra o exime de descobrir seu significado. A literatura escrita pelos gnios. Os romancistas so gnios. A estamos; agora, vamos classific-los. o que ele faz. Tudo o que ele afirma pode ser exato, mas intil, porque ele transita em volta dos livros, no atravs deles, ou nem sequer os leu ou no capaz de o fazer do jeito adequado. preciso ler os livros (o que um infortnio, porque isso leva tempo); o nico modo de descobrir o que eles contm. Algumas tribos selvagens os comem, mas a leitura o nico mtodo de assimilao deles conhecido no Ocidente. O leitor precisa se sentar, sozinho, e lutar com o escritor, coisa que o pseudo-erudito no faria. Prefere relacionar o livro histria do seu tempo, aos acontecimentos da vida do autor, aos acontecimentos que ele narra, e sobretudo a alguma tendncia. Quando pode usar a palavra tendncia, cresce a sua animao, e, embora a dos leitores talvez diminua, neste momento eles pegaro seus lpis e faro uma anotao, na crena de que uma tendncia seja porttil. por isso que, no curso meio desengonado que temos diante de ns, no podemos considerar a fico por meio de perodos, no devemos contemplar a corrente do tempo. outra imagem a que se ajusta melhor s nossas capacidades: aquela, mostrando todos os romancistas escrevendo ao mesmo tempo. Eles vm de diferentes pocas e camadas, com temperamentos e aspiraes os mais diversos, mas todos tm na mo uma pena, e esto no processo de criao. Vamos dar uma espiada por sobre os ombros deles, para ver o que esto escrevendo. Isso pode exorcizar o demnio da cronologia, que no momento o nosso inimigo, e que (como veremos na prxima semana) pode ser o deles tambm. Oh, mas que combate inextinguvel este, entre o Tempo e os filhos dos Homens, escreveu Melville, e a luta no se prolonga s atravs da vida e da morte, mas tambm pelos meandros da criao e da crtica. Vamos evit-lo imaginando que todos os romancistas esto juntos numa sala circular. No devo mencionar os nomes enquanto no ouvirmos suas palavras, porque um nome traz muitas associaes, datas, mexericos, todo esse aparato do mtodo que estamos deixando de lado. Eles receberam instrues para se reunirem em pares. E o primeiro par escreve assim: 1. No sei o que fazer, no mesmo! Deus que me perdoe, mas sou to impaciente! Desejo S no sei o que se pode desejar sem pecado! Mas o que sei que desejo que Deus tenha misericrdia de mim! Aqui, no se encontra nenhuma Mas que mundo! O que tem ele de desejvel? O bem que almejamos est to misturado com outras coisas que no se sabe o que desejar! uma metade da humanidade atormentando a outra, e atormentando-se tambm no af de atormentar! 2. a mim mesmo que odeio quando penso que, para ser feliz, preciso tomar tanto da vida dos outros, e mesmo assim no se consegue ser feliz. o que fazemos para nos enganar a ns mesmos, e para calar nossas bocas mas isso s dura quando muito por um momento. O desgraado eu continua l, sempre nos trazendo alguma nova ansiedade. A concluso resultante que no h felicidade, nenhuma felicidade, em tomar. A nica coisa segura dar. o que nos ilude menos. bvio que esto sentados a dois romancistas que vem o mundo a partir de um ngulo muito semelhante, mas o primeiro Samuel Richardson, e o segundo vocs j tero reconhecido como Henry James. Ambos so mais ansiosos do que apaixonados no papel de psiclogos. Ambos so sensveis ao sofrimento e valorizam o sacrifcio pessoal; ficam ambos aqum do trgico, mas chegam a fazer alguma aproximao. Uma certa nobreza trmula este o esprito que os domina e como escrevem bem! no h uma palavra fora do lugar nas suas copiosas torrentes. Cento e cinqenta anos de tempo os separam um do outro, mas eles no parecem bem prximos se os virmos sob outros aspectos, e no podemos tirar algum proveito dessa vizinhana? claro que, ao fazer essa afirmao, ouo que Henry James j comea a manifestar sua mgoa quer dizer, no sua mgoa, e sim sua surpresa , ou melhor, nem mesmo sua surpresa, e sim sua conscincia de que esto imputando a ele uma vizinhana, e, como ele h de acrescentar, essa vizinhana com um lojista. E ouo Richardson, igualmente cauteloso, considerando se algum escritor nascido fora da Inglaterra pode ser casto. No entanto, essas diferenas so de superfcie, na verdade so pontos de contato a mais. Vamos deix-los sentados ali, harmoniosamente, e procuremos o prximo par. 1. Todos os preparativos do enterro correram tranqila e felizmente aos cuidados das mos habilidosas de Mrs. Johnson. Na vspera da lamentvel ocasio, ela trouxe um corte de cetim preto, a escada da cozinha e uma caixa de percevejos, e decorou a casa com guirlandas e laos de faixas negras, com todo o bom gosto possvel. Encapou a maaneta da porta com crepe escuro e estendeu um grande lao preto num dos cantos da gravura em metal de Garibaldi, tambm envolvendo com as faixas o busto de Mr. Gladstone, que pertencera ao falecido. Virou de costas os vasos que mostravam cenas de Tvoli e da baa de Npoles, de maneira a esconder essas paisagens to brilhantes, deixando vista somente o puro esmalte azulado, e ainda antecipou a compra, to esperada, de uma toalha para a mesa da sala de estar, substituindo pelo purpreo violeta os gastos e desbotados raptos e rosas de felpa que antes ocupavam aquele posto. Fez-se tudo o que o amoroso cuidado pudesse fazer para conceder quele pequeno lar uma digna solenidade. 2. O cheiro de torta espalhava-se pela sala de visitas, e ento procurei a mesa das bebidas e dos comestveis; era difcil enxerg-la antes de acostumar a vista ao ambiente sombrio, mas havia uma torta de ameixas fatiada, laranja cortada em gomos, e sanduches, e biscoitos, mais duas jarras que eu conhecia bem como enfeites, mas nunca antes vira em uso: uma com vinho do Porto, outra com xerez. Diante da mesa, percebi a presena do servil Pumblechook, que, envolto num manto preto e em metros e mais metros de fita de chapu, ora se empanturrava, ora fazia movimentos obsequiosos para atrair minha ateno. Logo que conseguiu o que queria, dirigiu-se a mim (com aquele bafo de xerez e torta), e disse em voz baixa: O senhor me permite? e veio. Esses dois enterros no aconteceram no mesmo dia. Um o do pai de Mr. Polly (1910), e o outro de Mrs. Gargery, de Great Expectations (1861). Entretanto, Wells e Dickens assumem o mesmo ponto de vista e usam os mesmos truques estilsticos (cf. os dois vasos e as duas jarras). Ambos so humoristas e visualizadores que conseguem impressionar catalogando detalhes e enchendo as pginas irritantemente. Seus propsitos so generosos: detestam as imposturas e se comprazem com a indignao em face delas; so valiosos reformadores sociais; nem lhes ocorre a idia de confinar os livros nas prateleiras de uma biblioteca. s vezes a superfcie to vvida de sua prosa arranha como se fosse um disco de gramofone barato, sobressai uma certa pobreza de qualidade, e o rosto do autor se aproxima talvez um pouco demais do do leitor. Em outras palavras, nenhum dos dois tem bastante gosto: o mundo da beleza estava em grande parte fechado para Dickens, e inteiramente fechado para Wells. E h outros paralelos por exemplo, no modo como desenham o personagem. E talvez a maior diferena entre eles seja a diferena da oportunidade que foi oferecida h cem anos e h quarenta anos a um obscuro rapaz de gnio. uma diferena a favor de Wells. Ele mais instrudo do que seu predecessor; em especial, o acrscimo da cincia lhe fortaleceu a mente e submeteu sua histeria. Ele marca uma melhoria na sociedade a substituio da Dotheboys Hall pela Polytechnic mas no uma mudana na arte do romancista. E quanto ao nosso prximo par? 1. Mas, quanto quela marca, no estou certo; ao fim e ao cabo no creio que tenha sido feita por um prego; grande demais, redonda demais para ser isso. Eu poderia me levantar, mas se o fizesse e fosse v-la, aposto que ainda assim no saberia dizer com certeza o que ; feita uma coisa, ningum mais sabe como ela se deu. Nossa!, o mistrio da vida; a inexatido do pensamento! A ignorncia da humanidade! Para demonstrar quo insignificante o nosso controle sobre o que possumos quo acidental o viver, apesar de toda a nossa civilizao basta-me enumerar algumas das coisas que se extraviaram no transcurso de uma vida, a comear pelo que parece a perda mais misteriosa de todas que gato o beliscaria? que rato o roeria? trs latas azul-claras com ferramentas de encadernao de livros. Depois, havia as gaiolas de passarinhos, os aros de ferro, os patins de ao, o balde para carvo estilo rainha Ana, o tabuleiro de bagatela, o realejo tudo desapareceu, jias tambm. Opalas e esmeraldas espalhadas junto s razes das tulipas. Mas que incessante dilacerao! Admiro-me de ainda ter alguma roupa para vestir, e de neste momento estar sentada em meio a uma moblia slida. Porque, se a vida pode ser comparada a alguma coisa, h de ser a estarmos lanados atravs do tnel do metr a uma velocidade de cinqenta milhas por hora. 2. Todo dia, durante pelo menos dez anos a fio, decidia meu pai mand-la consertar e ainda no est consertada; nenhuma outra famlia a no ser a nossa poderia ter agentado uma hora sequer e, o que mais surpreendente, no havia no mundo outro assunto acerca do qual meu pai fosse mais eloqente do que o das dobradias de portas. E, no entanto, ao mesmo tempo, foi um dos maiores joguetes delas que a histria pode apresentar: sua retrica e sua conduta contradiziam-se perpetuamente. Nunca se abria a porta da sala de visitas sem que a sua filosofia ou os seus princpios tombassem vtima disso; trs gotas de leo aplicadas com uma pena, e uma boa martelada, ter-lhe-iam salvo a honra para sempre. Que alma incoerente, a do homem! definha por causa de ferimentos que est em seu poder curar! sua vida inteira contradiz-lhe o conhecimento! sua razo, dom precioso que Deus lhe deu (em vez de parar e pingar um pouco de leo) serve apenas para aguar-lhe a sensibilidade para multiplicar-lhe as dores, e torn-lo mais melanclico e inquieto ao peso delas! Pobre e infeliz criatura que assim age! Como se no fossem bastantes as causas necessrias de misria nesta vida, tem ele ento de acrescentar outras, voluntrias, ao seu cabedal de pesares; lutar contra males que no podem ser evitados, e submeter-se a outros que uma dcima parte do incmodo que lhe do bastaria para eliminar definitivamente do seu corao? Por tudo quanto h de bom e de virtuoso, se existirem trs gotas de leo ao alcance, e se um martelo puder ser encontrado num raio de dez milhas de Shandy Hall a dobradia da porta da sala de visitas ser consertada no presente reinado. A passagem citada por ltimo, evidentemente, do Tristram Shandy. A outra de Virginia Woolf. Ela e Sterne so ambos fantasistas. Comeam com um pequeno objeto, esvoaam em volta, e em seguida tornam a se fixar nele. Combinam uma avaliao bem-humorada da confuso da vida com um agudo sentido da sua beleza. H, inclusive, o mesmo tom em suas vozes uma perplexidade bastante deliberada, com o anncio em alto e bom som de que no sabem para onde esto indo. Sem dvida, suas escalas de valores no so as mesmas. Sterne um sentimentalista, Virginia Woolf (exceto, talvez, em suas obras mais recentes, como To the Lighthouse) extremamente reservada. Mas seu meio de expresso similar, obtm os mesmos efeitos inslitos, a porta da sala de visitas nunca consertada, a marca na parede acaba se revelando ser um caracol, a vida essa confuso, nossa!, a vontade to fraca, as sensaes, desassossegadas... filosofia... Deus... nossa!, veja aquela marca... olha que porta a existncia... realmente muito... do que mesmo estvamos falando? No parece menos importante a cronologia, agora que visualizamos seis romancistas em pleno trabalho? Se o romance se aperfeioa, no provvel que se desenvolva em linhas diferentes da Constituio britnica, ou mesmo do Movimento das Mulheres? Digo mesmo do Movimento das Mulheres porque, durante o sculo xix, costumava haver uma associao estreita entre a fico na Inglaterra e esse movimento numa conexo to prxima que levou certos crticos ao equvoco de pensar que se tratava de uma relao orgnica. medida que as mulheres melhoravam de condio no romance, diziam, tambm se tornavam melhores. Ledo engano. Um espelho no se aperfeioa s porque um espetculo histrico se desenrola sua frente. Ele s se aperfeioa quando recebe uma nova camada de mercrio em outras palavras, quando adquire uma nova sensibilidade; e o sucesso do romance est em sua prpria sensibilidade, no no sucesso de seu assunto. Imprios podem cair, direitos a voto podem ser concedidos, mas para aqueles que esto escrevendo no salo circular o que mais importa a sensao da pena entre os dedos. Eles podem decidir escrever um romance sobre a Revoluo Francesa ou a Revoluo Russa, mas vm tona memrias, associaes e paixes que obscurecem de tal maneira sua objetividade que, afinal, quando relem o escrito, parece que um outro algum guiou a pena e relegou o assunto a um segundo plano. Esse outro algum seu prprio eu, sem dvida, mas no o eu que est to ativo no tempo, que vive no reinado de Jorge iv ou v. Por toda a histria, os escritores tm sentido ao escreverem mais ou menos a mesma coisa. Entraram num estado comum que nos convm chamar de inspirao,[29] e, com relao a esse estado, pode-se dizer que a Histria se desenvolve, mas a Arte permanece imvel. A Histria se desenvolve, a Arte permanece imvel uma mxima muito rgida, na verdade quase um slogan, e, apesar de nos vermos forados a adot-la, no devemos faz-lo sem antes admitir sua vulgaridade. Ela contm uma verdade apenas parcial. Em primeiro lugar, ela nos impede de considerar se a mente humana se altera de uma gerao para outra; se, por exemplo, Thomas Deloney, que escreveu com muita graa sobre lojas e tabernas do reinado da rainha Elizabeth, difere de maneira fundamental de seu representante moderno que seria algum do calibre de Neil Lyons ou Pett Ridge. De fato, acredito que Deloney no diferia; diferia como indivduo, mas no de maneira fundamental, no porque viveu h quatrocentos anos. Quatro mil, catorze mil talvez nos fizessem pensar duas vezes, mas quatrocentos nada na vida da nossa raa, no haveria espao para nenhuma mudana mensurvel. De modo que nosso slogan no representar, na prtica, um obstculo. Podemos repeti-lo sem vexame. mais srio quando nos voltamos para o desenvolvimento da tradio e vemos o que se perdeu porque estvamos impedidos de examin-lo. parte as escolas, as influncias e as modas, h uma tcnica na fico inglesa, e esta, sim, altera-se de uma gerao para outra. A tcnica de rir dos personagens, por exemplo: fumar no a mesma coisa que ralhar; o humorista elisabetano toma sua vtima de um modo diferente do moderno, obtm o riso por outros expedientes. Ou a tcnica da fantasia: Virginia Woolf, apesar de tanto seu objetivo quanto o efeito geral que desperta se assemelharem aos de Sterne, difere dele na execuo; ela pertence mesma tradio, mas a uma fase bem posterior. Ou a tcnica da conversao: nos meus pares de exemplos, no pude incluir um que incidisse em dilogos, porque o uso de ele disse e ela disse varia tanto atravs dos sculos que d outra cor ao contexto, e, embora os falantes possam ter sido concebidos de maneiras anlogas, no o parecero somente por meio de um trecho. Bom, no podemos examinar questes como essas, e precisamos admitir que isso nos empobrece, mas ainda assim podemos abandonar o desenvolvimento do assunto e o desenvolvimento da raa humana sem pesar. A tradio literria a linha limtrofe entre a literatura e a histria, e o crtico bem equipado gastar a um bom tempo, com o conseqente enriquecimento do seu juzo. No podemos chegar at l por no termos lido o suficiente. Devemos fingir que essa rea pertence histria e, por conseguinte, cort-la. Precisamos nos recusar a ter qualquer coisa a ver com a cronologia. Permitam-me citar aqui, para nossa tranqilidade, o meu imediato predecessor nesta srie de conferncias, Mr. T. S. Eliot. Mr. Eliot enumera, na introduo a The Sacred Wood, as tarefas do crtico:

Faz parte do ofcio do crtico preservar a tradio onde houver uma boa tradio. Faz parte do seu ofcio ver a literatura com equilbrio e na sua inteireza; e isto , eminentemente, v-la no como consagrada pelo tempo, e sim mais alm do tempo [...]. No podemos cumprir a primeira tarefa, mas devemos tentar cumprir a segunda. No podemos nem examinar nem preservar a tradio. Contudo, podemos visualizar os romancistas como se estivessem sentados no mesmo salo, e tir-los, por nossa prpria ignorncia, de seus limites de tempo e lugar. Acho que vale a pena faz-lo, ou no me aventuraria a empreender este curso. Sendo assim, como vamos abordar o romance esse terreno to mido, essas fices em prosa de uma certa extenso que se estendem de maneira to indeterminada? No o faremos com um aparato muito elaborado. Princpios e sistemas podem ser adequados para outras formas de arte, mas no podem ser aplicveis aqui ou, se forem aplicados, as concluses devem ser submetidas a reexame. E quem o reexaminador? Bom, receio que seja o corao humano, esse negcio passado de homem para homem, que em suas formas mais cruas to suspeito, com razo. O teste final de um romance ser a nossa afeio por ele, o que o mesmo teste dos nossos amigos e de todas aquelas outras coisas que no conseguimos definir direito. A sentimentalidade para alguns um demnio pior ainda do que a cronologia ficar sempre oculta, em segundo plano, dizendo: Puxa, como gosto disso, Mas isso no me agrada muito, e s posso prometer que ela no falar alto demais nem to depressa. O carter intenso e sufocantemente humano do romance no deve ser evitado; o romance est encharcado de humanidade; no h escapatria para a enchente que enaltece ou a vazante que deprecia, nem estas podem se manter infensas crtica. Podemos detestar a humanidade, mas se ela exorcizada ou mesmo purificada o romance esmorece, e pouco resta dele a no ser um punhado de palavras. E escolhi o ttulo de Aspectos por ser no-cientfico e vago, por nos permitir o mximo de liberdade, por significar tanto os diferentes modos pelos quais podemos examinar um romance quanto os diferentes modos pelos quais um romancista pode examinar seu trabalho. E os aspectos selecionados para discusso so sete, ao todo: A Estria; Pessoas; O Enredo; Fantasia e Profecia; Padro e Ritmo. 2

A estria

Havemos de concordar que o aspecto fundamental de um romance o contar uma estria, mas manifestamos nosso assentimento com matizes distintos, e precisamente do nosso tom de voz que dependero nossas concluses subseqentes. Ouamos trs vozes. Se perguntarmos a um certo tipo de homem O que um romance faz? , ele responder placidamente: Bem... no sei... que pergunta mais engraada!... um romance um romance... no sei direito... acho que ele conta uma estria, por assim dizer. Decerto que se trata de um homem modesto e um tanto vago; provavelmente nesse momento ele est dirigindo um nibus, e no d literatura mais ateno do que ela merece. J outro homem, que visualizo num campo de golfe, ser rspido e peremptrio. Responder: O que um romance faz? Ora, um romance conta uma estria, claro, e se no for assim no me serve para nada. Gosto de estrias. Sei que mau gosto da minha parte, mas gosto. Fique voc com a sua arte, a sua literatura, a sua msica, mas d-me uma boa estria e pronto. E gosto de uma estria que seja uma estria mesmo, entende? Minha mulher tambm. Um terceiro homem, com alguma tristeza na voz, dir: Est bem, est bem... Um romance conta uma estria. Respeito e admiro o primeiro dos trs. Detesto e temo o segundo. E o terceiro sou eu. Est bem, est bem... Um romance conta uma estria. este o aspecto fundamental sem o qual ele no existiria. o fator mais elevado que todos os romances tm em comum. Eu preferiria que no fosse assim, que fosse algo diferente, a melodia ou a percepo da verdade, e no essa forma atvica e baixa. Quanto mais consideramos uma estria (uma estria que seja uma estria mesmo, entendem?), mais a desembaraamos dos desenvolvimentos mais refinados que ela sustenta, e menos coisas encontramos, nela, para admirar. Ela segue como uma espinha dorsal ou, quem sabe, uma solitria, porque o comeo e o fim so arbitrrios. Ela tremendamente antiga remonta aos tempos neolticos, talvez mesmo aos paleolticos. O homem de Neandertal ouvia estrias, a julgar pela forma do seu crnio. A audincia primitiva se compunha de pessoas desgrenhadas, bocejando ao redor da fogueira, exaustas pelo enfrentamento com mamutes e rinocerontes peludos, despertas apenas por causa do suspense. O que vai acontecer depois? O romancista ia contando, e, assim que adivinhavam o que aconteceria depois, os ouvintes ou adormeciam ou matavam o narrador. Podemos imaginar os perigos corridos se pensarmos na carreira de uma Xerazade, algum tempo mais tarde. Xerazade evitou a sua sina porque sabia manejar a arma do suspense nico instrumento literrio que surte algum efeito sobre tiranos e selvagens. Grande romancista que era sofisticada nas descries, tolerante nos juzos, engenhosa nos episdios, avanada na moral, muito viva ao delinear os personagens, expert no conhecimento de trs capitais do Oriente , no foi contudo por nenhum desses dons que ela se salvou do seu marido insuportvel. Eram dons incidentais, apenas. Ela s pde sobreviver porque conseguiu manter o rei pensando no que aconteceria depois. Ao notar os primeiros raios de sol despontando, interrompia a narrativa no meio de uma frase, e o deixava de queixo cado. Nesse momento, Xerazade viu que a manh j rompia, e prudentemente se calou. Esta frase to curta e desinteressante a prpria espinha dorsal de As mil e uma noites, a solitria que as enfeixa e permite que seja preservada a vida de uma princesa to cheia de dotes. Todos ns somos como o marido de Xerazade, pois queremos saber o que vai acontecer depois. Isso universal, e por isso que a espinha dorsal de um romance tem de ser uma estria. Alguns de ns no querem saber de outra coisa no h nada em ns alm da curiosidade primria, e conseqentemente outros juzos literrios nos parecem ridculos. E agora a estria pode ser definida. a narrativa de eventos dispostos conforme a seqncia do tempo o jantar depois do almoo, a tera-feira depois da segunda, a decomposio depois da morte, e assim por diante. Enquanto tal, a estria s pode ter um mrito: conseguir que a audincia queira saber o que vai acontecer depois. Inversamente, s pode ter um defeito: conseguir que a audincia no queira saber o que vai acontecer depois. So estas as duas nicas crticas que podem ser feitas a uma estria que seja uma estria mesmo. Trata-se do organismo literrio mais primitivo e mais elementar. No entanto, o mximo divisor comum de todos esses organismos sumamente complexos que conhecemos como romances. Quando isolamos assim a estria de outros aspectos mais nobres atravs dos quais ela se movimenta, e a seguramos a frceps contorcido e interminvel, o verme nu do tempo , ela tem uma aparncia to desagradvel quanto maante. Mas temos muito a aprender com isso. Comecemos por considerar a sua conexo com o dia-a-dia. A vida diria tambm est cheia do senso de tempo. Achamos que um evento acontece antes ou depois de outro; freqentemente nos ocorre esse pensamento, e muitas das nossas conversas e das nossas aes se baseiam nesse pressuposto. Muitas, mas no todas; parece que existe algo na vida alm do tempo, algo que pode ser adequadamente chamado de valor, algo que se mede no por minutos e horas e sim pela intensidade, de modo que, ao nos voltarmos para o nosso passado, ele no se prolonga para trs regularmente, mas se amontoa formando alguns montculos visveis, e quando olhamos para o futuro ele se apresenta s vezes como uma parede, s vezes como uma nuvem, s vezes como um sol, mas nunca na forma de uma tabela cronolgica. Nem a memria nem a previso interessam muito ao Pai Tempo, e todos os sonhadores, os artistas e os amantes esto em parte livres da sua tirania; ele pode mat-los, mas no prender a sua ateno, e at no momento exato da danao, quando o relgio da torre tomar flego e bater, eles talvez estejam olhando para outra direo. De modo que a vida diria, seja como for, compe-se, na prtica, de duas vidas a vida no tempo e a vida por valores e a nossa conduta revela uma dupla inscrio. Fiquei com ela s por cinco minutos, mas valeu a pena. Eis, numa nica frase, as duas inscries. E o que uma estria faz narrar a vida no tempo. E o que um romance como um todo faz se for um bom romance incluir tambm a vida por valores; usando os recursos que devemos examinar de agora em diante. Tambm ele se presta a uma dupla inscrio. Mas nele, no romance, a inscrio no tempo imperativa: nenhum romance pode ser escrito sem ela. Enquanto na vida diria essa inscrio pode ser desnecessria: no sabemos, e a experincia de certos msticos sugere que mesmo desnecessria, e que estamos muito enganados se pensamos que a tera-feira vem depois da segunda, e a decomposio depois da morte. bem possvel para vocs ou para mim, na vida diria, negar a existncia do tempo e agir de acordo com essa idia, mesmo que nos tornemos incompreendidos e que nossos concidados decidam nos internar naquilo a que chamam de asilo para lunticos. Mas um romancista no tem, ao elaborar seu romance, essa possibilidade de negar o tempo: ele deve se ater, mesmo que da maneira mais tnue, ao fio condutor da sua estria, ele tem de pr o dedo na solitria sem fim; do contrrio, torna-se ininteligvel, o que, no seu caso, um grave deslize. Estou tentando no soar muito filosfico acerca do tempo, pois se trata de um hobby (como advertem os especialistas) muito arriscado para os leigos, muito mais fatal do que o espao; os mais eminentes metafsicos foram destronados ao se referirem ao tempo de maneira imprpria. Tudo o que quero explicar que, enquanto vou fazendo esta conferncia, posso estar ouvindo ou no o tique-taque do relgio na parede, posso estar atento ou no ao senso de tempo, mas no romance h sempre um relgio. O autor pode at no gostar disso. Emily Bront, em Wuthering Heights, tentou esconder o dela. Sterne, no Tristram Shandy, virou o seu de ponta-cabea. Marcel Proust, ainda mais engenhoso, mexia a toda hora nos ponteiros, de modo que o seu heri pudesse receber a amante para o jantar e, no mesmo perodo, jogar bola com sua bab, no parque. Todos esses recursos so legtimos, e nenhum deles contraria a nossa tese: a base do romance uma estria, e uma estria uma narrativa de eventos dispostos conforme a seqncia do tempo. (Uma estria, alis, no a mesma coisa que um enredo. Ela pode formar a base de um, mas o enredo um organismo de tipo superior, que ser definido e discutido numa outra conferncia.) Quem nos contaria uma estria? Com certeza, Sir Walter Scott. Scott um romancista sobre o qual haveremos de divergir violentamente. De minha parte, no ligo muito para ele, e acho difcil entender por que sua reputao perdura. Por que ele teve uma boa reputao na sua poca, fcil entender. H importantes motivaes histricas para isso, que deveramos analisar se o nosso esquema fosse cronolgico. Mas se o fisgamos para fora do rio do tempo, e o levamos para escrever naquele salo circular, junto com os outros romancistas, sua figura no impressiona tanto. Ao que parece, ele teve um intelecto banal e um estilo muito pesado. No consegue construir. No tem distanciamento artstico nem paixo e, sem essas qualidades, como pode um escritor criar personagens que nos comovam profundamente? Talvez soe pedante pedir por distanciamento artstico. Mas, quanto paixo... A paixo j bastante lowbrow.[30] Pensem o quanto as montanhas escarpadas, os desfiladeiros muito escavados e as to arruinadas abadias de Scott esto sempre clamando por paixo, paixo e mais paixo e como ela nunca vem! Se ele tivesse paixo, seria um grande escritor por mais desajeitado e artificial que fosse. Mas tudo o que ele tinha era um corao modesto, sentimentos cavalheirescos e uma afeio intelectual pelo campo; o que no constitui uma base suficiente para grandes romances. Alm da sua integridade que pior ainda, por ser uma integridade puramente moral e comercial. Satisfazia seus mais elevados anseios, e ele nunca sequer sonhou que existisse outra forma de lealdade. Sua fama se deve a duas causas. Em primeiro lugar, muita gente da gerao mais velha o ouviu lido em voz alta, durante a infncia; ele assim se mescla com alegres memrias sentimentais, com as frias ou a residncia na Esccia. Gosta-se dele pela mesma razo que eu gostava e ainda gosto de The Swiss Family Robinson. Eu poderia agora comear a falar de The Swiss Family Robinson, e o faria com muito ardor, graas a emoes que senti no meu tempo de menino. Quando meu crebro se deteriorar de vez j no darei tanta importncia grande literatura. Vou regressar quela praia romntica onde o navio encalhou com retumbante estrondo, lanando em terra quatro semideuses chamados Fritz, Ernest, Jack e o pequeno Franz, junto com seu pai, sua me e uma valise com todos os utenslios necessrios em uma estada de dez anos nos trpicos. Este o meu eterno vero, isso o que The Swiss Family Robinson significa para mim. E no seria exatamente isso o que Sir Walter Scott significa para alguns de vocs? Ser ele realmente mais do que algum que vem despertar a lembrana de uma felicidade passada? E, enquanto os nossos crebros no se deteriorarem de vez, no devemos pr tudo isso de lado ao tentarmos compreender de fato os livros? Em segundo lugar, a fama de Scott repousa sobre uma base genuna. Ele sabia contar uma estria. Tinha aquele poder primitivo de manter o leitor em suspense, jogando com a sua curiosidade. Permitam-me fazer uma parfrase de The Antiquary no vamos analis-lo, pois a anlise seria o mtodo errado, e sim parafrase-lo. Ento veremos a estria se desenrolar por si s, o que nos permitir o estudo de seus recursos mais simples. o antiqurio

captulo 1

Foi cedo, numa bela manh de vero, em finais do sculo xviii, que um homem jovem, de aparncia distinta, viajando rumo ao nordeste da Esccia, adquiriu um bilhete para uma dessas carruagens pblicas que vo de Edimburgo at o Queensferry, onde, como diz o nome, e como bem sabem todos os meus leitores do Norte, h uma barca que atravessa as guas do Firth of Forth.

Esta a primeira frase no chega a ser uma frase estimulante, mas apresenta o tempo, o lugar e um jovem, introduz o cenrio do narrador. Sentimos um interesse moderado pelo que o jovem vai fazer em seguida. Seu nome Lovel e h um mistrio acerca dele. Trata-se do heri do contrrio, Scott no diria que sua aparncia distinta e certamente far a herona feliz. Ele encontra o antiqurio, Jonathan Oldbuck. Eles entram na carruagem, sem pressa, tornam-se conhecidos, Lovel vai visitar a casa de Oldbuck. Perto dela, aparece mais um personagem, Edie Ochiltree. Scott bom na apresentao de novos personagens. Acrescenta-os com muita naturalidade e ar promissor. Edie Ochiltree at que promete bastante. um mendigo no do tipo comum, mas um vagabundo romntico, que inspira confiana. Como deixaria ele de ajudar a resolver o mistrio de que vimos o primeiro trao em Lovel? Mais apresentaes: a de Sir Arthur Wardour (famlia antiga, mau administrador); a de sua filha Isabella (altiva), a quem o heri ama sem ser correspondido; a irm de Oldbuck, Miss Grizzel. Esta apresentada com o mesmo ar de promessa. Na verdade, no passa de um pretexto cmico no leva a lugar nenhum, e o nosso contador de estrias prdigo nesse tipo de recurso. Ele no precisa ficar martelando sem parar as relaes de causa e efeito. Mantm-se muito bem dentro dos limites elementares da sua arte, mesmo que diga coisas que no tero nenhuma conseqncia sobre a ao. A audincia pensa que elas vo se desenvolver, mas a audincia est desgrenhada e exausta, e se esquece com facilidade. Ao contrrio do tecelo de enredos, o contador de estrias tira proveito de pontas soltas. Miss Grizzel um pequeno exemplo de ponta solta; se me pedirem um grande, mencionarei um romance que pretende ser enxuto e trgico: The Bride of Lammermoor. Scott apresenta Lorde High Keeper com muita nfase e interminveis sugestes de que seus defeitos de carter levariam a um desfecho trgico, mas na verdade a tragdia aconteceria quase da mesma maneira ainda que ele no existisse sendo os nicos ingredientes necessrios Edgar, Lucy, Lady Ashton e Bucklaw. Mas, voltando a The Antiquary, h um jantar, Oldbuck e Sir Arthur discutem, Sir Arthur se sente ofendido e vai embora levando a filha. Eles voltam para casa pela praia, mas a mar sobe. Sir Arthur e Isabella ficam isolados e se encontram com Edie Ochiltree. o primeiro momento srio da estria, e assim que o contador de estrias, que um contador de estrias mesmo, a conduz: Enquanto trocavam estas palavras, detiveram-se sobre a salincia de pedra mais elevada que puderam alcanar, pois parecia que qualquer tentativa de prosseguir serviria apenas para antecipar uma fatalidade. Aqui, ento, teriam de aguardar o lento mas inevitvel progresso do elemento furioso, em situao comparvel dos mrtires da igreja primitiva, que, expostos pelos tiranos pagos a serem devorados por feras, eram obrigados a testemunhar a impacincia e a fria que agitavam os animais, espera do sinal para que lhes abrissem as jaulas, para que se atirassem contra as vtimas. Mas mesmo essa parada aterrorizante deu a Isabella tempo suficiente para reunir os poderes de uma mente por natureza forte e corajosa, que se exortava a si prpria nessa conjuntura to terrvel. Vamos entregar nossas vidas sem lutar? disse ela. No haver uma trilha qualquer, por mais horrvel que seja, que nos permita escalar os rochedos, ou pelo menos subir at uma altura acima da mar, onde possamos ficar at o amanhecer, ou at chegar ajuda? Eles devem estar cientes da nossa situao, e ho de cham-los todos para virem nos socorrer. Assim fala a herona, num tom que certamente congela o leitor. Mesmo assim, queremos saber o que vai acontecer depois. Os rochedos so feitos de papelo, como os da minha querida Swiss Family; a tempestade acionada com uma mo, enquanto com a outra Scott se pe a falar de cristos primitivos; no h sinceridade, nenhuma sensao de perigo em todo o quadro; tudo desprovido de paixo e rotineiro. Ainda assim, simplesmente queremos saber o que vai acontecer depois. Naturalmente, Lovel aparece para salv-los. Sim, deveramos ter pensado nisso antes; mas e da? outra ponta solta. O antiqurio oferece a Lovel um quarto de dormir assombrado, onde o heri tem um sonho ou uma viso com um ancestral do seu anfitrio, que lhe diz: Kunst macht Gunst, palavras que ele no compreende na hora, graas sua ignorncia do alemo, e que, como ele vai aprender mais tarde, significam O artifcio conquista o favor: ele deve insistir no assdio ao corao de Isabella. Ou seja, o sobrenatural no contribui com nada para a estria. Ele introduzido com tapearias e tempestades, mas o resultado no passa de uma mxima vulgar. Mas o leitor no sabe disso. Quando ele ouve Kunst macht Gunst, sua ateno desperta novamente... e depois desviada para outra coisa, e a seqncia do tempo prossegue. Piquenique nas runas de St. Ruth. Apresentao de Dousterswivel, um estrangeiro prfido, que envolvera Sir Arthur num projeto de minerao e cujas supersties so ridicularizadas por no procederem do lado correto da fronteira. Chegada de Hector McIntyre, sobrinho do antiqurio que est desconfiado de que Lovel um impostor. Os dois duelam; Lovel, pensando ter matado o adversrio, foge com Ochiltree, que apareceu de repente, como sempre. Escondem-se entre as runas de St. Ruth, de onde observam como Dousterswivel convence Sir Arthur a sair caa de um tesouro. Lovel escapa num barco e... longe dos olhos, longe do corao; no vamos nos preocupar com ele at que reaparea. Segunda caa ao tesouro em St. Ruth. Sir Arthur encontra objetos de prata. Terceira caa ao tesouro. Dousterswivel leva uma surra, e ao voltar a si v o funeral da velha condessa de Glenallan, que est sendo enterrada ali meia-noite, em segredo, professando aquela famlia a religio de Roma. Mas os Glenallan so importantes demais na estria para serem apresentados de maneira to casual! Dousterswivel lhes serve de gancho sem nenhum artifcio. Seus olhos estavam a postos, e Scott vem espiar atravs deles. O leitor, a essa altura, j est to dcil diante da sucesso de episdios que simplesmente boceja, como