AS “PROPAGANDAS DO HORROR” E OS FENÔMENOS DE MASSA CONTEMPORÂNEOS

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    Psicologia em Estudo, Maring, v. 16, n. 4, p. 571-580, out./dez. 2011

    AS PROPAGANDAS DO HORROR E OS FENMENOS DE MASSA

    CONTEMPORNEOS

    Ana Paula Avila Gomide*

    RESUMO. Este trabalho terico discute os fundamentos ligados a certas disposies psquicas que subjazem aosfenmenos de massa contemporneos, a partir da relao estabelecida entre o conto Os Anes e as propagandasantifumo, as denominadas propagandas do terror, as quais so transmitidas por imagens que mostram o processo dedefinhamento e de decomposio do fumante. OS referenciais tericos adotados so Theodor Adorno, MaxHorkheimer e SigmundFreud. Pressupe-se que, para a anlise tanto do subtexto das mensagens quanto do conto, atese sobre a histria subterrnea do esclarecimento voltada dominao do corpo e da natureza, e mais do retorno dorecalcado, lana luz sobre os elementos investigados.Palavras-chave: Teoria crtica; psicanlise; dominao do corpo.

    THE "HORROR PROPAGANDA" AND THE CONTEMPORARYMASS PHENOMENA

    ABSTRACT. This paper discusses the theoretical foundations linked to certain psychic dispositions that underlie thecontemporary mass phenomena, from the relationship established between the short story "The Dwarves" and the anti-smoking advertisements, enabled by images showing the process of withering and decomposition of the smoker, fromwhich we call "horror propaganda". The theoretical approach is based on the work of Theodor Adorno, MaxHorkheimer, and Sigmund Freud. It is assumed that to the analysis of the messages subtext and the tale, the thesis onthe history underground history of clarification aimed to the domination of the body and nature, besides the "returnof the repressed," sheds light on matters under investigation.

    Key words:Critical theory; psychoanalysis; domination of the body.

    LAS PROPAGANDAS DEL HORROR Y LOS FENMENOS DE MASSACONTEMPORNEOS

    RESUMEN. Este trabajo terico discute los fundamentos relacionados a ciertas disposiciones psiquicas que subyacenen los fenmenos de masa contemporneos, apartir de la relacin establecida entre el cuento Los Enanos y laspropagandas anti-tabaquismo presentadas por imgenes que muestran el processo de debilitamiento y descomposicindel fumador, y que denominamos de propagandas del horror. El referencial terico adoptado es Theodor Adorno,Max Horkheimer y SigmundFreud. Suponemos que para el anlisis del subtexto de los mensajes y del cuento, la tesis

    sobre la historia subterrnea del esclarecimiento volcada a la dominacin del cuerpo y la naturaleza, y sobre elretorno de lo reprimido, lanza una luz sobre los elementos investigados.

    Palabras-clave: Teoria crtica; psicoanlisis; dominacin del cuerpo.

    * Doutora em Psicologia pelo Programa de Ps-Graduao em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano da Universidadede So Paulo. Professora doutora da Universidade Federal de Uberlndia. Brasil.

    No texto Posio do narrador no romancecontemporneo, Adorno (1958/2003) afirma que nomundo tecnicamente administrado a experincia danarrao outrora encontrada nos romances da eraburguesa foi obstada, visto que contar algo

    significativamente relevante tornou-se arcaico emface da sociedade estandardizada e da vida submetida mesmice da ubiquidade da indstria cultural. Oromance contemporneo produto da desagregao daprpria forma do romance, e tambm resultante da

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    desintegrao da identidade da experincia, pela qualhoje a pretenso do narrador de ainda ser capaz denarrar algo se tornou ideolgica. Aps as catstrofesdo sculo XX, as transformaes sociais e individuaisocasionadas pelas mudanas estruturais das sociedadesadministradas do capitalismo tardio, cujosmecanismos de autorregulao econmica tm sesobreposto s particularidades individuais, minaram asexperincias do narrador romanesco. Assim, no contoOs Anes, Stigger (2010) leva s ltimasconsequncias a posio do narrador sobre o mundoaltamente desencantado [ claro, diferentemente daencontrada nas obras modernas de Kafka, Proust eMann, discutidas e elogiadas por Adorno (2003),respeitadas as especificidades de cada autor1], no qualo domnio artstico e o uso da linguagem discursivapara relatar a objetividade tornaram-se questionveisem face da mudez imposta aos sujeitos e aos objetospelo processo social hostil e opressivo. Ao abordar noseu conto, de forma muito breve e nada complacente,a violncia no declarada que faz parte dofuncionamento social contemporneo o estalar quaseinstantneo da fria de clientes no interior de umapadaria que leva ao linchamento de um casal de anes, Stigger apresenta uma curta estria, cujospersonagens adquirem uma caracterstica deimpessoalidade agindo de forma totalmente absurda eirracional diante de um acontecimento corriqueiro.

    Adorno (2003) entende que o material fornecidohoje pela realidade demasiado poderosa, cujoselementos de horror encontram-se disfarados emacontecimentos cotidianos, no capazes de provocarno leitor a sua m conscincia (ou seja, oestranhamento necessrio para a conscincia dasrelaes petrificadas nas quais os homens seencontram e que, por isto mesmo, impedem oautoconhecimento de seus estados de reificao), trazao escritor a iluso de que se pode tornar algo hojeesteticamente representvel, como se ainda fosse

    possvel ao indivduo a capacidade de individuaomediante a objetividade. Alm disso, a possibilidadede o indivduo confrontar-se com a realidade social eevoluir para a conscincia crtica das mediaessociais que o constituem, para que possa negar e

    1 Adorno (2003), para falar do novo romance no sculo XX,ressalta que Proust, Kafka e Mann, por meio de diferentesestratgias, ilustram a diminuio da distncia estticanecessria entre a figura do narrador e o leitor, mas comouma forma de crtica realidade que no se permite maisser narrada para, assim, expressar a realidade fora dosparmetros estabelecidos devido prpria mudana da

    realidade e do sujeito em face dos perigos iminentes dasduas grandes guerras e dos efeitos da industrializaomoderna.

    resistir a tal realidade, refletir sobre os objetos e assimse perceber tambm como objeto, torna-seigualmente problemtica na atual tendncia histrica,que consiste em converter as qualidades humanas dosindivduos em lubrificantes para o funcionamento damaquinaria. No tocante aos romances do sculo XIX,Adorno lembra que a reflexo sobre a vida ainda erapermitida por meio do distanciamento estticonecessrio entre o leitor e o narrador encontrado nasformas narrativas, e a complexidade dos personagensera respeitada e apontada na descrio de suascaractersticas psquicas nos enredos e tramascontados. No obstante, no mundo contemporneo, orecurso narrativa dos fatos acaba cada vez mais seassemelhando funo da notcia encontrada nasreportagens proporcionadas pelo mass mediaque, como intuito de apresentar e naturalizar os fatos de umarealidade que se apresenta imediata, contribui com amesmice de um cotidiano empobrecido de sujeitosempobrecidos.

    Sobre os desafios do romance realista, Adorno(2003) afirma que foram absorvidos pela reportagem epelos demais meios da indstria cultural como relatoinformativo. Nas palavras do autor: Assim como apintura perdeu muitas de suas funes tradicionaispara a fotografia, o romance as perdeu para areportagem e para os meios da indstria cultural,

    sobretudo para o cinema (Adorno, 2003, p.56). Aimpossibilidade de narrar algo particular e relevanterelaciona-se com a supresso do objeto do romanceem face da reportagem e da indstria cultural, e nesse sentido que Stigger, por meio de sua prosa quasecoloquial, breve e aparentemente mecnicaapresentada no conto Os Anes, d aos leitores aimpresso de que seu conto se assemelha a um filmede curta-metragem. A trama do conto aparentaproduzir entretenimento e distrao ao leitor, pormeste surpreendido pelo horror encarnado naestria, pelo absurdo de uma realidade social

    desencantada que tem minado os valores essenciaisintegrantes da promessa da cultura.

    Sob a supremacia do mundo das coisas, Adorno(2003) diz que os romances que hoje contamtestemunham as condies nas quais os indivduosliquidam a si mesmos, bem como as tendncias sociaise histricas que recaram na barbrie, compartilhandoda ambiguidade daqueles que no decidem se seusrelatos podem mesmo servir de caminho para aemancipao da humanidade ou se simplesmenteatestam o conformismo imerso no barbarismo. Nestalinha de pensamento, a autora do conto Os Anestipifica tal situao de crise encontrada no romancecontemporneo enquanto forma, como assinala

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    Adorno. Ao recorrer narrativa breve e concisa,Stigger se recusa a reatar com a experincia perdida,fazendo uso da crueldade e do cinismopreponderantes, os quais, por sua vez, soincorporados sua linguagem discursiva, que assimapresenta ao leitor uma estria que transita entre arealidade e a fantasia, entre o racional e o irracional. Aimparcialidade de Stigger aprofunda a catstrofeiminente que ronda as sociedades contemporneas demassa, pois o elemento de barbrie entrelaado aoprocesso social das sociedades administradas omaterial a partir do qual sua narrativa se constitui: aparticipao na barbrie imposta e apresentada aoleitor que experimenta, sob falso anonimato, umfato cotidiano (a fria de consumidores numaconfeitaria diante de um casal de anes que se demorana fila para obter mais informaes sobre os doces),entremeado de doses de crueldade e de violncia nasaes dos personagens, baseadas em fontes puramenteirracionais. A distncia entre leitor e narrador adistncia esttica, outrora, elemento necessrioencontrado no romance tradicional (Adorno, 2003) desaparece na forma do conto. O narrador um dospersonagens que participam da ao, apresentando oestreitamento entre leitor e narrador. Dessa forma, oleitor tambm participa da crueldade tornando-setestemunha do terror e das aes relatadas. Aobjetividade absurda, recortada e imediata da estria reconhecida na descrio do linchamento dos anes,cujos corpos dilacerados transformam-se numamassa amorfa derramada no cho que ao trmino daestria a balconista da confeitaria varre para se livrarda sujeira dos corpos esfacelados. Isso ilustrado noseguinte trecho: (...) J do outro lado da calada,olhei para trs para cumprimentar dona Slvia, queentrava na confeitaria, e vi a balconista, com umgrande rodo, empurrando para um canto toda aquelasujeira (Stigger, 2010, p.12). A crueldade da narraode Stigger, que faz uso da naturalidade dos

    acontecimentos, tal como apresentada nas notciascatastrficas cotidianas dos jornais, atesta a reificaodas relaes entre os indivduos e a alienao doshomens em relao aos outros e de si mesmos, a qualse tornou cada vez mais institucionalizada.

    Para a crise da objetividade literria em face dadesintegrao da experincia dos indivduos, deacordo com Adorno (1958/2003), s restaria aoromance contemporneo se concentrar naquilo deque no possvel dar conta por meio do relato - oinenarrvel -, o que constitui um paradoxo, j que alinguagem o impele narrativa. Nesses termos,

    tambm lanamos a ideia de que Stigger consegueregistrar no seu conto os limites do inenarrvel

    quando, ao se exceder nas passagens sobre o olfatodos anes e sugerir o prazer sentido por eles no cheiroe nas degustaes dos doces, assim evocando asparticularidades dos personagens, acaba por instilar noleitor lembranas de imagens arcaicas, cujoscontedos remetem aos impulsos condenados pelacivilizao comumente atribudos esfera psicolgicae dentro dela reconhecidos; ou seja, tudo aquilo que considerado repulsivo, irracional e sem utilidade eque, no obstante, foi interdito pelo processocivilizatrio, segue persistindo nos traos e vestgiosde comportamentos arcaicos (o retorno dorecalcado) que so, por sua vez, assimilados rebelio da natureza (Horkheimer & Adorno, 1985,p. 217) e s pulses condenadas. A ttulo de exemplo,transcrevemos a passagem do conto:

    (...) Os dois eram to pequenos que malalcanavam o alto da bancada dos doces. Eladava saltinhos para tentar ver o que aconfeitaria tinha de bom. Ele, maiscircunspecto, espichava o pescoo, apontavao nariz para cima e aspirava fundo como sepudesse, pelo olfato, identificar asguloseimas que o olhar no divisava (...)(Stigger, 2010, p. 6; 8).

    No trecho acima, os elementos ressaltadosganham fora e iluminam algumas questes a seremaqui desenvolvidas. A autora apresenta aespontaneidade dos anes, seus momentos de fruio,de abandono e de sensibilidade, atributosessencialmente humanos e fontes de memria quematerializam momentos de experincias dos sujeitosem face dos objetos. No obstante, tais experinciascorpreas foram limitadas e proscritas pela lgicainstrumental da razo tecnolgica do capitalismoorganizado (Horkheimer & Adorno, 1985).

    Pois bem, para agora delimitar a discusso sobre oque est sendo mostrado nas entrelinhas do conto -

    para alm das discusses propugnadas por Adornoacerca do romance contemporneo e seus aspectosformais -, extramos do conto alguns elementosnecessrios para o estudo de fenmenos de massa dasociedade contempornea, fenmenos nos quais todosns nos encontramos imersos. Tal postura aponta,inclusive, para os fundamentos ligados a certasdisposies subjetivas, a serem discutidas maisadiante, que subjazem a esses fenmenos de carterirracional e que o conto em questo pode nos ajudar aenxergar, como que em um tubo de ensaio (Adorno,2008). Para tais propsitos, estabelecemos a relao

    entre o conto e as propagandas antifumo quedenominamos de propagandas do horror, tratando a

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    ambos como objetos de estudo para a elucidao dosfenmenos de massa. Ora, no toa que nas crticasao conto de Stigger encontramos anlises sobre comoesse representa a alegoria da origem do fascismo eintroduz a crtica s sociedades dos espetculos, emque o cotidiano violento tornou-se naturalizado ematerial de notcia (Cera, 2010).

    O CONTO OS ANES E AS PROPAGANDASANTIFUMO.

    Na publicidade antifumo so reproduzidasimagens de cunho apelativo que mostram o processode definhamento e de decomposio do fumante e suaconverso em um cadver. Nessa direo, tambm nas

    imagens de fumantes cadveres encontram-sepresentes discursos que fortalecem tendncias sociaisregressivas e que, possivelmente, indicam amassificao dos sujeitos enquanto corpo objeto ealvo de crueldade. Nas imagens atuais vemos presenteo princpio que rege a lgica de nossa sociedade:preparar as pessoas para as mximas do sacrifcio edo sofrimento individual, tendo em vista que a culturatem se dado em funo da adaptao luta pelasobrevivncia, sob a ideologia prevalecente de que oprazer conduz excluso social e morte, com issono mais precisando ocultar o sofrimento gerado.

    Como afirmaram Horkheimer e Adorno (1985): atortura a adaptao acelerada. Alis, sobre osbombardeios audiovisuais da publicidade e doentretenimento referentes reproduo da violnciaque tm transformado as percepes e os sentidos daspessoas no mundo moderno, Turcke (2010, p. 68)afirma: A dose atual de imagens e sons de pessoasferidas, desfiguradas, aterrorizadas, fugindo de algo,sem roupa, as cenas de assassinato e de sexo (...)praticamente no mais podem ser percebidas senocomo uma preparatria para novas doses aumentadasde excitao. As sensaes mediadas pelo espetculodo mundo audiovisual criam a necessidade de outrasmais fortes, j que os sentidos dos indivduos ficaramanestesiados com a superexcitao de imagens damoderna sociedade tecnolgica.

    Associadas s mensagens das propagandas sobreos malefcios do cigarro, as qualidades morais dofumante, sob o discurso social dominante, tambm soquestionadas. Os fumantes so apresentados comopessoas de carter fraco e seres no suficientementefortes e racionais para se adequarem s normas e tica da sade, contradizendo o bom-senso calcadonos discursos racionalizantes sobre a sade do corpo(corpo, por sua vez, massificado e coisificado). Nocontexto das sociedades administradas, as formas de

    dominao social da subjetividade, por meio de sutisaparatos de controle narcsico (Ramos, 2004) - comoos padres de beleza inculcados, a ideia de virilizaodo corpo, apelos sade e modos de vida sob aideologia da qualidade de vida por meio de produtosde consumo farmacuticos e estticos -, passam ailusria ideia de que os sujeitos poderiam, por simesmos, obter o controle de suas vidas e apossibilidade de superar as contraditrias exignciasirracionais do existente. Com a concomitantetransformao do hbito de fumar em tabu,perguntamos se as propagandas antifumo noreforam tendncias bsicas das sociedadesadministradas voltadas especificamente para aadministrao e dominao do corpo, as quaisperpetuam o atrofiamento da esfera privada eparticular dos sujeitos as suas possibilidades defruio mediadas pelo tragar (ainda que o vcio dotabaco2 seja uma ilusria forma de prazer) que, porsua vez, lembrariam a promessa de felicidade norealizada na nossa cultura. Mais ainda: a publicidadeantifumo possivelmente tem o poder de acostumar aspessoas ao horror gerado na sociedade comtendncias totalitrias, por meio de uma nova espciede barbrie exacerbada nas fotos publicitrias decorpos desfigurados e em estado de debilidade (oavesso do narcisismo), cujas vtimas sacrificadas nasimagens veiculadas possam representar a vida semencanto, a unidade perdida do corpo e da alma(Horkheimer & Adorno, 1985) a que todos somossubmetidos.

    Voltando estria de Stigger, a descrio doprazer do olfato e da degustao dos doces por partedos personagens centrais (os anes) pode serrelacionada aos momentos da proto-histriabiolgica (Horkheimer & Adorno, 1985), pois adiscriminao das guloseimas pelo olfato guarda certocontedo de verdade com as reaes mais primitivasdos sentidos. Os momentos da proto-histria biolgica

    A respeito do vcio, remetemos s seguintes constataes deTurcke: O vcio a busca de um apoio vital num objetofalso, sendo que aqueles que o procuram no devem serinformados de que se trata de algo falso. Eles sentem, elessabem que a substncia na qual se aferram no fornecenenhum apoio, mas eles no tm outra e, por isso, cada vezmais se jogam a ela, a mesma substncia que os privadaquilo que lhes deveria proporcionar (Turcke, 2010, p.239). No h espao neste trabalho para desenvolver arelao do tabaco com o vcio no mundo moderno, porm importante mencionar que o idlio do fumante , narealidade, mera aparncia de felicidade que, mesmo assim,

    no deixa de encerrar certa verdade: a que diz respeito aosofrimento a que os sujeitos esto submetidos tendo emvista as tarefas estupidificantes que a nossa cultura exige.

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    (reaes fisiolgicas do homem-animal, ou, comoapontam os autores frankfurtianos, reaes mimticasoriginrias para a adaptao ao meio) relacionam-seaos motivos a que respondem os comportamentosidiossincrticos que fogem do contexto funcional dasociedade tendo, por isto, efeitos irritantes nos sujeitoscujas vidas tiveram que ser reduzidas aos objetivos daautoconservao e existncia desencantada voltada,exclusivamente, adaptao em face das novasrelaes de trabalho. A descrio de Stigger sobre oabandono dos anes a esses momentos de prazer ede capricho, a despeito da impacincia dos outrosconsumidores que se encontram na fila da confeitaria,apresenta-se como um dos acontecimentos do contoque desencadeia a fria dos outros personagens contraos anes que, assim, representam o retorno dorecalcado, figuras vistas como estranhas ediferentes. Assim dizem Horkheimer e Adorno acercados pressupostos subjetivos da discriminao socialracial:

    Os homens obcecados pela civilizao s seapercebem de seus prprios traosmimticos, que se tornaram tabus, em certosgestos e comportamentos que encontram nosoutros e que se destacam em seu mundoracionalizado como resduos isolados etraos rudimentares verdadeiramente

    vergonhosos. O que repele por sua estranheza, na verdade, demasiado familiar. So osgestos contagiosos dos contatos diretosreprimidos pela civilizao: tocar,aconchegar-se, aplacar, induzir (...). Nasambguas inclinaes dos prazeres do olfatosobrevive ainda a antiga nostalgia pelasformas inferiores da vida, pela unioimediata com a natureza ambiente, com aterra e o barro (Horkheimer & Adorno, 1985,p.170; 171).

    Tendo como referncia o pensamento freudiano,

    Horkheimer e Adorno lembram, a respeito dasdisposies psquicas das mentalidadespreconceituosas e antissemitas, quanto os cheiros eodores para o homem modelo do processocivilizatrio tornaram-se atributos das camadas sociaismais baixas, das raas inferiores e dos animais abjetos,sendo os odores considerados uma ignomnia esomente permitidos ao civilizado quando o seu intuito destruir e dominar como o caso do gracejo ouda faccia, a msera pardia da satisfao(Horkheimer & Adorno, 1944/1985, p.172). Asminorias representariam, assim, a lembrana da

    natureza dominada que deve ser domesticada edestruda pelos aparatos autoritrios de poder, tal

    como o discurso sobre as raas inferiores agenciadopelo nazismo com relao aos judeus, ciganos,deficientes fsicos e loucos, que mobilizoupsicologicamente as massas do Terceiro Reich. O atode cheirar tornou-se nesse contexto um dos sentidosmais rebaixados pela civilizao, por serconsiderado o mais expressivo e o que testemunha ansia mais evidente do sujeito de se perder no outroe no ambiente circundante, remetendo aos impulsosmimticos regressivos existentes no homem primitivopara fins de sobrevivncia e de conhecimento. Nessasperspectivas, os autores da teoria crtica propemcomo necessria a construo de uma sociedade livre,com homens livres, bem como a ateno e apossibilidade da realizao das fruies e dos prazerespulsionais associadas s transformaes de condieshistricas objetivas (Marcuse, 1997), assim criticandoos rumos tomados pelo esclarecimento que, de formaunvoca, dominou a natureza, o corpo e as paixeshumanas. Os sacrifcios pulsionais exigidos aocivilizado tambm deram ensejo aos mecanismospolticos e institucionais de controle e perseguio atudo que remete aos fatores naturais recalcados econvertidos em matria pela histria da humanidade:O fascismo atual, onde o que estava oculto aparece luz do dia, revela tambm a histria manifesta em suaconexo com esse lado noturno que ignorado tantona legenda oficial dos Estados nacionais, quanto emsua crtica progressista (Horkheimer & Adorno,1985, p.216). Na obra O Mal-Estar na Civilizao,Freud (1974) fala do processo fatdico civilizatriorelacionado passagem nunca totalmente concludado animal para o homem. Freud sugere que o sentidoda viso, a partir da conquista da postura ereta pelohomem, prevaleceu sobre o sentido olfativo, tornando-se um smbolo do rompimento do homem com a suaproximidade da natureza, e, assim, smbolo dadominao sobre a natureza mediada pelodistanciamento exercido pelo olhar, tal como

    destacaram os frankfurtianos na obra Dialtica doEsclarecimento. Nas palavras de Freud, (...) Aprpria diminuio dos estmulos olfativos parece sera consequncia de o homem ter-se erguido do cho, desua adoo de uma postura ereta (...). O processofatdico ter-se-ia assim estabelecido com a adoo pelohomem de uma postura ereta (Freud, 1974, p.120).

    A tese do recalque orgnico de Freud acimaexposta ilumina as relaes problemticas [eautoritrias] do homem com a natureza interna eexterna, com o seu passado arcaico execrado pelarazo instrumental e com descrdito em relao sua

    vida pulsional, para alm do mbito das neurosesindividuais. Na Dialtica do Esclarecimento,

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    Horkheimer e Adorno fazem meno tese freudianapara esclarecer os fatores relacionados constituiohistrica da subjetividade tendo em vista a vidareduzida aos objetivos da autoconservao, otimizadapela lgica da diviso social do trabalho, fatoresimportantes para a teoria social referente anlise dadominao social do indivduo. A teoria crtica dediscusso sobre a dialtica do progresso e a recadada civilizao barbrie fascismo e formas polticastotalitrias predominantes nas sociedades modernas ,dentro da tese sobre a histria do esclarecimentocalcada na dominao da natureza (Horkheimer &Adorno, 1985), precisou recorrer a certa antropologiafreudiana para demarcar a questo da repressoorgnica para a origem da civilizao. Isto significaque a substncia corporal e a proto-histria biolgicadas pulses que determinam a base material dasubjetividade iluminam os pontos de convergnciaentre natureza e histria, entre dominao das pulsese dominao histrica dos homens sobre a natureza(Ramos, 2004), cujos efeitos funestos culminaram norebaixamento e na instrumentalizao do corpo parafins de reproduo social e, posteriormente, namanipulao autoritria das massas pelas polticasfascistas. Assim:

    Com o auto-rebaixamento do homem aocorpus, a natureza se vinga do fato de que o

    homem a rebaixou a um objeto dedominao, de matria bruta. A compulso crueldade e destruio tem origem norecalcamento orgnico da proximidade aocorpo, de maneira anloga ao surgimento donojo, que teve origem, de acordo com aintuio genial de Freud, quando, com apostura ereta e o afastamento da terra, osentido do olfato, que atraa o animalhumano para a fmea menstruada, tornou-seobjeto de um recalcamento orgnico(Horkheimer & Adorno, 1985, p. 217).

    Para a anlise dos elementos sociopsicolgicos doantissemitismo, Horkheimer e Adorno (1985) dizemque o medo arcaico manifestado nos movimentosirracionais de massa e mobilizado pelos chefesfascistas resultaram do processo civilizatrio que sedesenvolveu com base na violncia contra asubjetividade por meio da opresso ao prazer corporale do sacrifcio introjetado pelos homens para odomnio. A evoluo tcnica da fase avanada docapitalismo tardio conseguiu administrarracionalmente tal violncia sobre os sujeitos, e assimcontribuiu para a regresso das massas. O

    antissemitismo, enquanto ritual da civilizao, seriaa violncia sedimentada historicamente nos sujeitos

    frustrados, herdeiros do malogro civilizatrio dadiviso social injusta do trabalho. Na caracterizaodos movimentos antissemitas so identificados traosde crueldade e de ressentimento de uma coletividadeenfurecida que foi forada a se identificar e se integrars imposies do trabalho de uma sociedade comtendncias totalitrias, cuja vida, embrutecida emdecorrncia dessas relaes de poder estabelecidas,no totalmente desconhecida das massas.

    Tambm a ideia do retorno do recalcado foi umdos constructos freudianos utilizados pelos filsofosda teoria crtica da sociedade alm, claro, dautilizao de conceitos da teoria social e da tradiofilosfica para dar subsdios aos elementossubjetivos encontrados nas aes de crueldade humana

    manifestas nas perseguies a minorias sociais,rebaixadas como objetos de dominao a seremexplorados e massacrados (Gomide, 2007). As ideiasreferentes ao retorno do recalcado para a questo daambivalncia do homem em relao ao corpo e sobreas aes de crueldade humana resultantes doesquema de dominao histrica sobre a naturezaque afligiram os homens e seus corpos so os aspectossubjetivos lembrados pelos frankfurtianos acerca dosmovimentos de massa irracionais, voltados perseguio de minorias. Tais minorias sociais vem arepresentar a debilidade da natureza no imaginrio

    social: Na relao do indivduo com o corpo, o seu ede outrem, a irracionalidade e a injustia dadominao reaparecem como crueldade, que est toafastada de uma relao compreensiva e de umareflexo feliz, quanto a dominao relativamente liberdade (Horkheimer & Adorno, 1985, p. 216).

    Freud (1974) desenvolveu sua tese sobre arepresso das pulses na e para a civilizao, cujoresultado o descompasso encontrado entre indivduoe cultura e, seus efeitos funestos, o aumento dahostilidade entre os homens e desses com relao sociedade. O carter repressivo da civilizao tem porbase a idealizao cultural, um artifcio (necessrio,mas tambm nocivo liberdade humana) para maquiaras pulses recalcadas o recalque orgnico e o medoe a negao do homem civilizado de seu passadomtico e de suas ligaes filogenticas com a natureza e assim estabelecer as regras sociais e manter aspulses sexuais e destrutivas nos freios. No obstante,Freud no deixa de apontar quanto a civilizaoengendra por si mesma o anticivilizatrio e o reforaprogressivamente, e assim empreende sua crtica cultura. A dialtica entre indivduo e cultura apontadapor Freud tornou-se um forte material de anlise parao esclarecimento dos mecanismos subjetivos que, naatual fase do esclarecimento, tornam as pessoas

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    inclinadas violncia e barbrie, endossando, assim,a dominao social (Horkheimer & Adorno, 1985;Adorno, 1995). Nas palavras de Freud:

    Durante as ltimas geraes, a humanidadeefetuou um progresso extraordinrio nascincias naturais e em sua aplicao tcnica,estabelecendo seu controle sobre a naturezade uma maneira mais imaginada (...).Contudo, parecem ter observado que o poderrecentemente adquirido sobre o espao e otempo, a subjugao das foras da natureza,consecuo de um anseio que remonta amilhares de anos, no aumentou a quantidadede satisfao prazerosa que poderiam esperarda vida e no os tornou mais felizes (Freud,1974, p.107).

    Freud, um dos defensores do esclarecimento,atenta para o fato de que a promessa da cultura defelicidade e de liberdade, para livrar os homens domedo frente s foras naturais, no se realizou. Osacrifcio exigido aos indivduos para sua adequao realidade no foi de fato compensado na nossacivilizao, cujas regras sociais e mandamentos ticosno levaram em conta as disposies psquicas eparticularidades de cada sujeito (Freud, 1974). Apresso civilizatria observada por Freud multiplicou-se em um grau insuportvel na fase corrente do

    capitalismo tardio, o que tem revigorado a raiva e ahostilidade das pessoas contra a civilizao, ousentimentos de apatia como defesa ante a pressosocial insuportvel. Adorno (1995) fala de umapossvel claustrofobia das pessoas no mundoadministrado, em face de uma situao cada vez maistotalitria e socializada, que no tem permitido aresistncia particular possvel.

    Acerca da irracionalidade reforada e gerada pelaracionalidade tcnica voltada exclusivamente autoconservao dos sujeitos, a respeito da qualcitamos tambm os meios de comunicao de massa

    nas propagandas de horror das campanhas antifumo,encontram-se disponibilizadas imagens de fumantesmartirizados pelo fumo e em estado de decomposioque, a nosso ver, tem a funo de desencadear nopblico uma impresso nauseante. Nessas imagens, adiablica humilhao do fumante testemunha o desejode destruio generalizada, o apelo vingana e aosimpulsos mortais e destrutivos das massas, alm doprazer associado ao autossacrifcio, indicando acumplicidade secreta na desgraa do outro. Aexortao sade nas campanhas torna-se suspeita,visto que o corpo destrudo e degradado nas imagens

    anuncia a natureza mutilada, qual seja, o corporeduzido sua mera funo biolgica e orgnica, cuja

    debilidade no permitida transformou-se em tabu,principalmente nas sociedades modernas, com seuacelerado desenvolvimento tcnico. As tentativasmalfadadas de reconciliao do homem com anatureza recalcada e silenciada se expressam nasimagens que mostram o corpo do fumantedesvitalizado, uma substncia viva sem eu, de umcorpo e de uma individualidade com as fantasias esimbologias negadas, assim negando o corpo tambmcomo meio de individuao. Por exemplo, nas fotosque mostram um feto morto, a noo do humanoligada ao corpo destruda e expressa da forma maiscrua possvel, e nelas os limites entre o humano e anatureza (sua animalidade) so retomados de maneiraregressiva e destrutiva. A respeito da ambivalnciaque a civilizao burguesa guarda em relao aocorpo, Horkheimer e Adorno (1985) dizem que, nacultura moderna, o tabu do corpo mais fortalecidonas campanhas racionalizantes sobre sade ehigienizao do corpo, cuja louvao visa disfarar odio e o repdio que os homens sentem com relao sua sede natural: No podemos nos livrar do corpoe ns o louvamos quando no podemos golpe-lo.(Horkheimer & Adorno, 1985, p. 219). No obstante,nas imagens que mostram explicitamente o corpogolpeado, o amor-dio pelo corpo representadoalimentando, provavelmente, o dio e ressentimentodaqueles cujo rancor reificao sofrida se fazpresente de forma abrupta e no refletida. Doselementos acima discutidos, perguntamos: que tipo dedisposio psquica as propagandas de horrorantifumo tm mobilizado nas pessoas? Qual amensagem que se oculta por trs das imagensdegradantes de fumantes mortos-vivos?

    Na tentativa de responder parcialmente a essasquestes, tendo em vista aspectos aqui levantados,afirmamos que a perseguio ao fumante relaciona-setambm ao que o fumo acaba por representar, bemcomo aos seus efeitos sobre aquele que o usufrui: a

    plenitude do prazer do olfato obstada no hbito defumar, restando s o cheiro de nicotina e da fumaa e,alm disso, o corpo do fumante socialmenteenxergado como dominado pelo cigarro, e a partirda a sua identidade, reduzida s suas caractersticascorporais, torna-se alvo de crticas dirigidas aoscheiros fortes de nicotina que o fumante exala.Acrescentamos, ainda, que, em oposio ao corpoassptico e viril louvado em nossa cultura, o gozo dofumante, durante a inalao da fumaa, poderiarelembrar aspectos tpicos do automatismo biolgico,demonstrando o pouco controle que o sujeito tem

    sobre seu prprio corpo, embora o fumo seja algomediado e socialmente aceito para fins da adaptao.

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    Pressupomos que, para alm das funes irracionais eadaptativas do cigarro (o fumar principalmente comoatividade desestressante que permite ao sujeito seuretorno ao trabalho), no prazer sentido pelo fumanteao tragar tambm encontramos outras discusses, quepodem ser resumidas nas seguintes questes: o que aintransigncia do fumante em face do discursohiginico de cuidados ao corpo relembra da naturezano dominada? Em que medida o fumar pode vir arepresentar a rebelio no sublimada do corpo que,a despeito das campanhas sobre a sade que vocontra o cigarro, acaba por expressar o martrio a quefoi submetido na histria, pela diviso social dotrabalho? A tentao que atribuda ao fumo noseria, talvez, a lembrana do prazer independente da

    razo autoconservadora, ainda que o fumo exera suafuno adaptativa realidade? Tais questes solevantadas tendo-se em vista a linguagem oculta dasimagens de horror das campanhas antifumo. Nosubtexto comum s imagens encontra-se um teordestrutivo e repressivo que pressupe a mentalidadedo consumidor hoje: o seu prazer o do corpo morto edestrudo, pois hoje a vida j no possvel, por causada represso das possibilidades expressivas eprazerosas dos sujeitos no mundo administrado; masperguntamos: de fato, as imagens das campanhasantifumo possuem o poder de chocar seu pblico?

    Com base nos autores da teoria crtica e napsicanlise, levantamos a seguinte ideia: mais do quechocar o pblico, assim instilando nas pessoas aconscincia dos malefcios do cigarro, as propagandasde horror antifumo so instrumentos publicitriosque reproduzem a irracionalidade objetiva, visto que, aordem social, para a preservao de interesseseconmicos e polticos de pequenos grupos, tem seservido das pulses destrutivas e narcsicas das massaspara fins de controle social. No podemos deixar deenfatizar que, segundo Adorno (1991), mesmo apsseu trmino, o perodo fascista ainda se preserva

    subterraneamente sob os mecanismos das sociedadesde massa, denominadas de sociedades democrticas.Trata-se, assim, de imagens de teor irracional quemobilizam o que h de mais regressivo nas pessoas,tendo-se em vista a estrutura social vigente, que aindafunciona por meio da ameaa fsica, mobilizando noshomens seus impulsos agnicos (Adorno, 1991), asaber, a presso social econmica sobre os sujeitoscom capacidade de suscitar nas pessoas o medo daexcluso social, o trabalho sem sentido que nosatisfaz e no qual o indivduo no se reconhece, afelicidade ilusria do consumo e do corpo saudvel

    que trazem em si os mandamentos de uma sociedadecapitalista, entre outros. Assim, pensamos que a

    angstia socialmente mediada tambm se expressa deforma mais patente na mutilao dos corpostransformados em objetos descartveis e semutilidade para os ditames da reproduo social. Ofetichismo das imagens de pessoas degradadas pelofumo, juntamente com os dados estatsticos, revelam arelao patgena com o corpo social e industrialmentelegitimada, alm do clculo egosta dos efeitos daindstria do cigarro: a porcentagem de doenas e demortes causadas pelo vcio - a partir do qual asociedade de outrora se serviu para a manuteno dosistema indica mais uma vez quanto a barbrie portrs do discurso tcnico-cientfico ainda faz parte denossa cultura.

    A ambivalncia e a relao patgena com o corpona contemporaneidade se apresentam de formasocialmente mediada em alguns fenmenoscontemporneos, que ora expressam o intenso apegode homens aos seus corpos coisificados (como objetosde consumo), ora apresentam a repulso perversa queo indivduo sente com relao ao seu corpo e ao deoutrem. Neste sentido, citamos o comrcio lucrativode cosmticos e de cirurgias plsticas, a modafitnneseas campanhas de sade e de higienizao do corpo,assim como o prprio discurso social sobre o sexosaudvel a healthy sex life (Adorno, 1969). Nissopercebemos o aparato narcsico de controle social

    sobre o corpo (Ramos, 2004). Por outro lado,destacamos a crueldade legitimada pelos meios decomunicao de massa acompanhada do gozoautodestrutivo presente em nossa cultura, promovidopelos aparatos de poder: os movimentos de mutilaoe de deformao de partes de corpo (o movimentobody modification); as notcias corriqueiras sobrehomicdios voltados contra minorias que representam(de forma real e/ou imaginria) a debilidade danatureza ou a fruio corporal proscrita (homofobia,grupos de extermnios de moradores de rua, etc.); e,enfim, os monstros e pessoas desfiguradas

    reproduzidas nas imagens antifumo, os quais, segundonossos propsitos, tm um importante papel paraeconomia psquica das massas. Com relao a esseltimo aspecto, tais mecanismos publicitrios, longede restiturem o equilbrio psquico das pessoas,resultam, ao contrrio, em fortalecer da forma maisautoritria possvel a adaptao regressiva das pessoasaos interesses do sistema econmico: A propagandafixa o modo de ser dos homens tais como eles setornaram sob a injustia social, na medida em que elaos coloca em movimento (Horkheimer & Adorno,1985, p. 238).

    Para efeitos deste trabalho, as disposiespsquicas mobilizadas pela propaganda do horror

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    antifumo tambm so indicadas e abordadas no contoOs Anes. Das caractersticas psquicas estudadaspelos frankfurtianos a respeito da mentalidadeantissemita destacamos o mecanismo de projeoptica (Horkheimer & Adorno, 1985). Apoiados napsicanlise, os autores partem do princpio de que talmecanismo de defesa elementar pode ser exploradopara fins de manipulao ideolgica, caso em que aprojeo se torna patolgica, em vista das massas demanobra do nazismo que aderiram quaseespontaneamente ao sistema poltico totalitrio. Aprojeo ptica ou a falsa projeo (no contrapontoque os autores estabelecem entre a projeo ptica e aprojeo autntica, esta, com base na epistemologiakantiana) o mecanismo psicolgico mais evidenteutilizado pelas mentalidades preconceituosas,associado, muitas vezes, estrutura psictica decarter (Adorno, 2008) de sujeitos predispostos violncia generalizada, tal como a vista nosmovimentos antissemitas. Assim, a falsa projeoseria a incapacidade do sujeito de perceber que omundo passou a ser cpia (projeo) de seu terrorntimo e de seu medo interno - claro - histrica esocialmente constitudo pelas relaes econmicasexpropriadoras da subjetividade (Horkheimer &Adorno, 1985). As percepes distorcidas que ossujeitos tm da realidade devem-se depauperaodas instituies culturais pelas sociedadesindustrializadas, que promoveu o processo dedesintegrao da experincia individual. Taisfenmenos, dentro das anlises da teoria crtica, sorelacionados ao desenvolvimento da racionalidadeinstrumental moderna da fase tardia do capitalismo.Nessa direo, no conto isso ilustrado no horror dosclientes da confeitaria projetado nas figuras dos anes,que, por sua vez, representam o diferente, oestranho. Vejamos a longa passagem do conto sobrea fria dos personagens ante o fato de os anes teremfurado a fila dos doces:

    E l estavam eles [o casal de anes], mudosnovamente. Seu Aristides, impaciente, elevoua voz: andem logo, seus merdas! ,acrescentou a senhora, vamos logo! (...). Foia que a pequeninha se virou e me olhou. Aboca minscula ainda estava suja de doce.Ela piscou, passeou a lngua pelos lbios econtinuou a me olhar por cima do ombro,como se, at ento, no tivesse percebido queestvamos todos ali, esperando (...). Nisso,cheguei bem junto da biscazinha e a puxeicom fora pelo brao (...). Com a minhapuxada, desquilibrou-se e caiu no cho, de

    cabea. Meu marido, que vinha logo atrs demim, deu um empurro no homenzinho, que

    parecia querer socorrer a esposa (...). Asenhora que estava na fila passou a darbengaladas nas cabeas e nas costas docasalzinho (...). Meu marido pulava em cima

    das pernas do homenzinho, enquanto seuAristides chutava seu tronco (Stigger, 2010,p.10-11).

    A descrio do linchamento torna-se elementosuficiente para fazermos as relaes com a violnciapresente em fenmenos destrutivos de massa,principalmente quando os sujeitos alvo da fria cegaem questo so um casal de anes - figuras queevocam o encantamento e a fragilidade, o mistrio e amagia, e at a proximidade com o pr-civilizado [videos anes de circo e a funo que exercem nas fantasias

    infantis] e, por isso, alvo de preconceito. Damosespecial destaque reao da narradora ao olhar daan. O olhar da pequeninha recordou quanto somosdesprovidos de individualidade ante a frieza imperanteda vida condicionada autoconservao. A nosso ver,a an sustenta o olhar despreocupado, no paranoico,que ofende a narradora, lembrando-lhe seuaprisionamento expresso subjetivamente no seuolhar persecutrio. Para aprofundar o tema dofascismo latente na sociedade e o que se vincula a elesobre a perseguio antissemita, na anlise do conto ospersonagens centrais objetos de repulsa e escrnio

    lembram as minorias cujas representaes sociaispermitem enriquecer as fantasias e mentalidadespreconceituosas. A falsa projeo se manifesta noauge da destruio como revolta da natureza recalcadacontra o absurdo, o estranhamento e o temorprovocados pelos anes, identificados,exclusivamente, em termos de suas caractersticascorporais particulares associadas s falhas decarter, como pequeninos, defeituosos, etc., pelosoutros personagens do conto: - Poderamos sentircompaixo ou mesmo simpatia por eles, se nofossem to evidentes suas graves falhas de carter

    (Stigger, 2010, p.7). Por meio desse exemplo,destacamos quanto na coletividade brbara odiferente, o no adaptado e o fraco soenxergados por meio de suas caractersticascorporais, assim sustentando a tese dosfrankfurtianos sobre a histria oculta doesclarecimento voltada dominao do corpo e danatureza. A perseguio das minorias encontra suaessncia na tentativa dos sujeitos reificados edesprovidos de subjetividade de se autoafirmaremenquanto senhores e sujeitos, custa dainferiorizao e destruio dos outros. Esses ltimos,

    por sua vez, relembrariam ao perseguidor sua prpriamutilao, insatisfao e privao do prazer.

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    CONSIDERAES FINAIS

    De nosso ponto de vista, o conto Os Anesrepe a questo dos mecanismos psquicos

    mobilizados pelos fenmenos de massacontemporneos projeo ptica, masoquismo esadismo, pulses agressivas, narcisismo , e assimlana luz sobre as mensagens ocultas das imagensantifumo dirigidas ao gozo autodestrutivo das massas,motivado pela histria subterrnea da dominao docorpo. As propagandas antifumo, segundo nossahiptese, reforam tendncias bsicas das sociedadesadministradas voltadas especificamente dominaodo corpo que perpetuam o atrofiamento da esferaprivada e particular dos sujeitos: as suas possibilidadesde fruio, que lembrariam a promessa de felicidadeno realizada na nossa cultura. As fotosindustrializadas que mostram fumantes quasecadveres, com seus corpos reduzidos funobiolgica e debilidade da natureza, possivelmentetm o poder de reforar mentalidades predispostas aopreconceito, estas, por sua vez, resultantes dasinstncias sociais de controle do mundo administrado.

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    Recebido em 21/11/2010

    Aceito em 08/02/2012

    Endereo para correspondncia: Ana Paula Avila Gomide. Rua Maria Dria Cunha, 160, apt.302 - Bairro: Finotti, CEP 38408-

    080, Uberlndia-MG.E-mail: [email protected].