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Valerio Arcary AS ESQUINAS PERIGOSAS DA HISTÓRIA: Um estudo sobre a história dos conceitos de época, situação e crise revolucionária no debate marxista Tese apresentada ao Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, na área de concentração de História Social, junto à linha de pesquisa das representações políticas para a obtenção do título de doutor em História. Orientadora: Profª. Drª. Zilda Márcia Gricoli Iokoi São Paulo 2000

As esquinas perigosas da História

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  • Valerio Arcary

    AS ESQUINAS PERIGOSAS DA HISTRIA:

    Um estudo sobre a histria dos conceitos de poca,

    situao e crise revolucionria no debate marxista Tese apresentada ao Departamento de Histria da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias

    Humanas da USP, na rea de concentrao de Histria Social, junto linha de pesquisa das

    representaes polticas para a obteno do ttulo de doutor em Histria.

    Orientadora: Prof. Dr. Zilda Mrcia Gricoli Iokoi

    So Paulo 2000

  • 1

    Dizem que foi mais ou menos assim: ele era ainda um menino e no podia ter mais do que nove anos. O pai era ausente, como a maioria dos pais daquela gerao, sempre ocupadssimos, entre trabalhos e afazeres. Mas naquela manh, um daqueles dias luminosos que o Rio tem, tinham sado juntos, talvez para tomar um picol. Quando voltavam para o apartamento, felizes da vida, o pai bem humorado, e o filho encantado com o sorvete, viram aquela cena inslita. Dois guris estavam engalfinhados em uma luta feroz. Um deles era um garoto que o pai j tinha visto brincando com o filho, e o outro, um rapaz mais velho e imensamente maior. O menino estava apanhando para chuchu. Brigavam por causa de umas bolas de gude que o grandalho queria tirar do moleque. O filho queria ir para casa mas o pai segurava a sua mo com fora. E ento, queima roupa, o pai disparou a fatdica pergunta: voc no vai fazer nada? Foi ali que o menino foi colocado pela primeira vez diante de um dilema moral. Porque a escolha era entre o ruim e o muito ruim. Ou o garoto no reagia, prostrado pelo medo, e seria julgado pelo pai como um covarde, ou intercedia a favor de seu amigo, e, provavelmente, apanhava uma surra.

    Foi assim que ele aprendeu a primeira lio tica de sua vida. Daquelas que no se esquece. Em uma luta entre desiguais, a indiferena sempre a cumplicidade com o mais forte.

    In Memoriam

    Aldo Emmanuel Arcary, meu pai, que me ensinou que no simples a diferena entre o certo e o errado, mas isso no nos absolve de nada.

  • 2

    Essa daquelas, to incrvel, que no importa se verdadeira ou no, porque expressa o esprito da poca. Parece que a reunio do movimento estudantil tinha chegado, depois de horas de discusses insolveis, e das questes de ordem de praxe, as mais exdrxulas, a um impasse. Os membros das tendncias mais esquerda, as correntes revolucionrias, os radicais ou exaltados, como queiramos, tinham, esgotado os seus argumentos. E sabiam que iam, quase certo, perder a votao. J estavam resignados. Eram, naqueles tempos, uma pequena minoria, e se, de vez em quando, conseguiam algum eco para suas propostas era somente em situaes excepcionais, porque a presso pela mobilizao tinha subido de temperatura a tal ponto, que os reformistas, ou moderados, no importa, no podiam deixar de procurar uma soluo, com o receio de perder a sua liderana. Ningum se lembra ao certo se o que se discutia era fazer ou no uma passeata, ou pior, se se tratava de algo mais trivial, como o local de concentrao. Mas, no restam dvidas que uns e outros se atacavam implacvel e impiedosamente. E sem qualquer cuidado de poupar as palavras: de provocao a traio, tinham se insultado, sem pudores, durante horas.

    Foi ento, que em nome dos esquerdistas, ele pediu a palavra: Muito bem, acho que finalmente entendi o porqu de nossas diferenas. E me vejo obrigado a retirar todas as crticas que acabei de fazer: fao a autocrtica. Vocs tm razo, no entendo como no percebi antes. Damos um passo em frente, e depois dois passos atrs. Em seguida damos de novo um passo em frente, e para surpresa de nossos inimigos, damos cinco passos atrs. E continuamos assim, dez passos atrs, cinquenta passos atrs. Eles vo se iludir pensando que estamos mais fracos, e por isso, recuamos ou batemos em retirada. Pode at parecer uma fuga... Mas no importa, como o mundo redondo, um dia desses, a gente surpreende o salazarismo pelas costas.

    In Memoriam, Fernando Torres, o Guga, filho do 25 de Abril, que me ensinou que todo mundo deveria ter direito a quinze minutos de auto-compaixo por dia, desde que dedicasse, ao menos, o dobro do tempo para rir de si mesmo.

    Resumo

  • 3

    No incomum que os historiadores estejam colocados

    diante da necessidade de usar conceitos de temporalidade, tais como poca,

    etapa, situao, fase ou conjuntura: so critrios de periodizao, para situar

    os movimentos de mudana, ou preservao, dos mais diferentes aspectos da

    vida econmica, social ou poltica das sociedades que estudam. Mas,

    tambm freqente que o uso dessas categorias seja, inmeras vezes, pouco

    rigorosa, seno descuidado. Os mais perigosos anacronismos, um pecado

    mortal neste ofcio so, ento, possveis. O argumento desta pesquisa busca

    demonstrar a importncia decisiva destas noes de temporalidade, para

    realar que as medidas dos tempos so, necessariamente, desiguais e

    diversas.

    O marxismo sugeriu uma srie de critrios de

    periodizao que estabelecem um elo entre os tempos longos das mudanas

    histricas, na escala das pocas que se sucedem, e os tempos mais curtos

    das etapas e situaes, at o tempo acelerado das conjunturas. Mas, como se

    sabe, o marxismo se desenvolveu como uma corrente de pensamento plural e

    hetereognea. Este trabalho procurou resgatar uma parte do debate sobre as

    temporalidades, luz da teoria da revoluo poltica e social, elaborada por

    Marx Engels, e alguns dos seus discpulos. Nele se discute o que seriam

    pocas, etapas, situaes e crises revolucionrias, e se avanam um conjunto

    de sugestes para uma periodizao histrico-poltica do sculo que se

    encerra.

    Abstract

  • 4

    Historians not uncommonly have to face up with the need

    of using concepts of temporality such as epoch, stage, situation, phase and

    juncture as criteria for periodization. These concepts are used to situate the

    movements of change and preservation of the most diverse aspects of the

    economic, social or political life of the societies they study. Nevertheless, the

    use of these categories is not quite rigorous. On the contrary, it is rather untidy.

    The most dangerous anachronisms a deadly sin in this craft are therefore

    possible. The reasoning of this research tries to demonstrate the paramount

    importance of these notions of temporality in order to highlight that the

    measures of times are necessarily uneven and diverse.

    Marxism has suggested a series of criteria of periodization

    which establish a link between the long time of historical changes at the

    scale of epochs which take place recurrently and the shorter times of stages

    and situations, ending in the accelerated time of junctures. Marxism as it is

    widely known has developed itself as a plural and heterogeneous tendency

    of thought. The current research aimed to rescue a portion of the debate about

    the temporalities, in the light of the theory of political and social revolution

    elaborated by Marx and Engels and their disciples. We tried to discuss in our

    theses what would be the meaning of revolutionary epochs, stages, situations

    and crises. We have also issued a set of suggestions for the making of a

    historical and political periodization of the current ending century.

    SUMRIO

    Agradecimentos.................................................................................................................06

    Introduo ........................................................................................................................ 07

  • 5

    Ttulo: As esquinas perigosas da Histria........................................................43

    1. A idia da crise e a crise das idias ...............................................................................43

    1.1. Os valores da ordem e a ordem dos valores: os desencontros entre as periodizaes histricas e econmicas e a alternncia das temporalidades.......................................................59 1.2. A vanguarda da crise e a crise da vanguarda: um novo debate sobre poca reabre-se cem anos depois .....................................................................................................................................91 1.3. Do sujeito da crise crise do sujeito: a ausncia do proletariado e a originalidade da transio ps-capitalista como revoluo consciente ................................................................132

    2. Da histria da teoria teoria da histria .....................................................................174

    2.1. O conceito de poca revolucionria em Marx: as foras motrizes do processo histrico e um debate sobre a primazia..........................................................................................................175 2.2. Anotaes sobre a teoria da crise em Marx e Engels: as causalidades objetivas e subjetivas, e a dialtica da necessidade e acaso.........................................................................226 2.3. Do conceito de revoluo permanente na Carta liga dos comunistas de 1850 ao balano de Engels no Testamento de 1895: a hiptese das duas vagas...............................................252

    3. A poca do debate e o debate sobre poca...............................................................292

    3.1. H cem anos, Bernstein abre o debate sobre poca, da defesa da democracia estrategizao da ttica: a teoria dos campos progressivos.......................................................292 3.2. Kautsky e a estratgia de defesa da democracia, o quietismo dos tempos de espera defensiva........................................................................................................................................330 3.3. Rosa Luxemburgo e o lugar da mobilizao revolucionria: uma nova viso da dialtica dos tempos da ao, conscincia e organizao...............................................................................382

    4. Fevereiro e outubro como analogia histrica e o paradoxo do sculo..........454 4.1. Muitos fevereiros e a excepcionalidade de outubro................................................457 4.2.Os tempos da revoluo e as revolues no tempo.................................................484 4.3. As vagas revolucionrias e a hiptese da inverso das causalidades...................515

    5.

    Bibliografia...................................................................................................................579

    5.1. Fontes.........................................................................................................................579 5.2.Bibliografia sobre o tema...........................................................................................583 5.3.Bibliografia geral.........................................................................................................587

    Agradecimentos

  • 6

    Todo trabalho tem uma histria. A realizao desta pesquisa s foi possvel graas colaborao direta ou indireta de muitas pessoas. praticamente impossvel citar todas essas influncias tericas e inspiraes polticas, recolhidas durante muitos anos, mas ao longo do texto, sero encontradas as indicaes. No posso, no entanto, deixar de dizer que este trabalho o produto de um ambiente e de um tempo. E sobretudo de muita gente, de aes e frustraes, de uma luta que foi minha, mas tambm de muitos outros, msculos e nervos engajados em um combate de inconformados que sempre se renova e recomea, na capacidade de crtica que no h de se perder. Essas e esses, muitos, uma gente que no teme a aventura de descobrir sempre uma nova esperana, dispensaro os agradecimentos, porque j sabem. Mas preciso ser justo. E lembrar das inmeras idias que nasceram em discusses com a Prof.Dr. Zilda Gricoli Yokoi, que acreditou na necessidade desta tese, quando eu mesmo duvidei. Sem a sua confiana, este trabalho no existiria, e isso diz tudo. Mas no diz do afeto sincero que nos une. preciso recordar, tambm, das horas que meus colegas de grupo de trabalho no departamento de Histria da USP sacrificaram para ajudar definio do foco das hipteses que orientaram a pesquisa. Preciso ainda dizer da dvida intelectual com Nahuel Moreno, que me iniciou nos estudos marxistas. Porque com ele aprendi que nada de novo pode surgir da perda da memria. E, afinal, preciso no esquecer que viemos de longe. Tambm merece ser lembrado que uma boa parte das idias desenvolvidas nesta tese, se inspiraram em pistas que ele mesmo deixou. Sigo esse caminho. No basta saber que necessrio mudar o mundo: preciso acreditar que possvel. Oxal no tenha sido em vo. No ser. No posso deixar de fazer referncia a Martin Hernandez, Luis Leiria, Mauro Puerro, Eduardo Neto, Maricha Fontana, Zezoca Welmowick, Bernardo Cerdeira, Henrique Carneiro, Jos Cretton, Marco Rosa, Fernando Silva, Enio Bucchioni, lvaro Bianchi, e Antonio Lou com quem as idias desta tese foram discutidas, ao longo de anos, e de quem recolhi sugestes valiosas. Devo muito a Waldo Mermelstein, em especial, pela incansvel pacincia com as minhas incorrgiveis divagaes: a prova de nossa amizade. preciso tambm que se saiba, que esta tese s foi possvel porque quis a roda da fortuna que eu tivesse ao meu lado na vida, como companheira, Suely Corvacho, que me fez encontrar foras que eu pensava ter perdido. E isso, s o amor. Quis tambm a sorte que a vida tenha me dado Zina Arcary como me e Sofia, como filha. Foi por elas, que o 25 de Abril, por duas vezes, definiu o sentido de minha vida. E por elas que eu devo o que sou, e o porqu de uma luta que de muitos e tambm a minha, e que do tamanho do mundo. Como se costuma dizer, no so responsveis por nada do que aqui vai escrito. Mas manda a verdade que se diga que so igualmente culpados por essa paixo que a razo conhece. Por ltimo, agradeo ao Centro Federal de Educao Tecnolgica de So Paulo, instituio qual estou vinculado h dez anos, e que me agraciou com uma licena das aulas por seis meses para dedicar-me redao final da tese.

    Da violncia.

  • 7

    Dos rios se diz que so violentos

    Mas ningum diz,

    Violentas,

    As margens que os comprimem.

    Berthold Brecht

    Introduo

    Da Histria j se disse que flui como as guas dos rios. Mas o rio da Histria dos mais tumultuosos, cheio de curvas imprevisveis,

    de quedas dgua vertiginosas, rpidas correntezas, s quais se sucedem a

    calmaria das guas paradas. Que, entretanto, tambm se movem, lenta, mas

    irreversivelmente. Por isso, as guas paradas nos iludem. s vezes se movem

    para os lados, quando transbordam. No , portanto, simples, o movimento

    das guas. O vento explica a forma das ondas, mas a fora gravitacional da

    lua, uma fora incomparavelmente mais poderosa, porm oculta, que define o

    movimento das mars. As causas e impulsos que movem a histria, no so

    menos misteriosos.

    As foras que explicam os fluxos e refluxos da Histria,

    as inflexes inesperadas, as longas estagnaes, as bruscas aceleraes, e

    de novo, a terrvel lentido das mudanas que no vm, at que se precipitam

    transformaes vertiginosas, quase como uma surpresa, no se revelam com

    facilidade. A Histria tambm conhece os movimentos de superfice e as

    transformaes nas camadas mais profundas. E toda transio tem a sua

    gestao e as suas dores de parto. Nesses tempos de passagem, que so os

    nossos, aceitamos um conceito para esses momentos excepcionais nos quais

    a velha ordem naufraga, e aquilo que ser mal se vislumbra. Dizemos que so

    tempos de crise.

    Mas no incomum que as palavras percam o seu

    sentido. De tanto serem usadas, elas como que perdem a clareza de seus

    significados, a substncia de sua forma, a razo de sua necessidade. Crise

  • 8

    est entre essas palavras que invadiu a vida de milhes de pessoas e, mesmo

    banalizada, conquistou um lugar na viso que o mundo possui de si mesmo,

    neste final de sculo.1 E, no entanto, as palavras tm sentido. Do grego

    krisis,2 ela derivou para o latim como crisis.3 O dicionrio esclarece:

    alterao, desequilbrio repentino, ou ainda estado de dvida e incerteza,

    ou mesmo tenso. No chins , curiosamente, representada por dois

    ideogramas que na aparncia se contradizem, mas unidos, se explicam

    mutuamente: perigo e oportunidade.

    Na cultura poltica brasileira, depois de duas dcadas

    perdidas, ela assume, hoje, uma forma coloquial quase banal. Para as duas

    ltimas geraes, o Brasil est, de uma maneira ou de outra, sempre em

    crise: o que j um paradoxo em si mesmo. A crise, por definio uma

    exceo, estabelecida como um tempo de normalidade.

    As classes dominantes, mesmo depois de um suspiro de

    alvio, em meados dos anos 90, no conseguiram ainda, se que j estiveram

    mais prximas de o conseguir, afirmar um projeto para o pas, que oferecesse

    1H cem anos, a passagem do sculo foi encarada com perspectivas muito diferentes. As classes dominantes, embriagadas de otimismo positivista, com o triunfo da razo tcnica, viam a sua civilizao como uma promessa de progresso e abundncia, e o movimento operrio, fortalecido pelos sucessos eleitorais dos anos 90, encarava com crescente confiana os destinos da luta socialista: (...) regimes que no apenas sobreviviam como tambm prosperavam. E, na verdade. se nos concentrssemos s nos pases de capitalismo desenvolvido, tal idia seria razoavelmente plausvel. Economicamente, as sombras dos anos da Grande Depresso se dissipavam, dando lugar ao sol radioso da expanso e da prosperidade da dcada de 1900. Sistemas polticos que no sabiam muito bem como lidar com as agitaes sociais da dcada de 1880 com a sbita emergncia dos partidos de massas das classes trabalhadoras voltados para a revoluo ou com as mobilizaes de massa de cidados contra o Estado em outras bases aparentemente descobriram maneiras flexveis de conter e integrar alguns e isolar outrcs. Os quinze anos entre 1899 e 1914 foram a belle poque no s por terem sido prsperos e a vida era incrivelmente atraente para os que tinham dinheiro e dourada para os ricos mas tambm porque os dirigentes da maioria dos pases ocidentais, embora preocupados talvez com o futuro, no estavam com medo do presente. Suas sociedades e regimes pareciam, de maneira geral, administrveis.(grifo nosso) (HOBSBAWM, Eric. A era dos imprios, 1875-1914. Rio de Janeiro, Paz e Terra,1988. p.384) 2 Segundo Jorge Grespan, crise e crtica constituiam uma unidade na sua origem, no grego antigo: quando designava tanto um processo jurdico quanto o veredicto ou julgamento que decidia o processo, tanto um conflito real quanto uma distino subjetiva. (GRESPAN, Jorge. A teoria das crises de Marx in COGGIOLA, Osvaldo (org.). Marx e Engels na Histria. So Paulo, Xam, 1996. p. 297) 3 (CUNHA, Antnio Geraldo da. Dicionrio Etimolgico Nova Fronteira da Lngua Portuguesa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982.)

  • 9

    um sentido de futuro para os sacrifcios de ontem. Estaramos diante da

    presso exasperada do presente, representaes polticas transitrias,

    humores sociais momentneos, ilusrios e volveis? Talvez, mas no deixa

    de ser uma expresso da viso que um tempo histrico tem de si mesmo, que

    tanto oculta, quanto revela os conflitos no resolvidos dos ltimos vinte anos.4

    A crise associa-se, assim, idia de conflito.

    Entretanto, nas Cincias Sociais em geral, e na Histria em particular, a crise

    se apresenta como um conceito quase trivial, sempre presente, necessrio

    para explicar a mudana. Afinal, certo que existem variados tipos de crise:

    crise econmica, crise de governo, crise de regime, ou, ainda, crise social,

    crise cultural, crise ideolgica. Entre essas, h uma, que se define como crise

    revolucionria.

    Mas a crise revolucionria deve ser entendida, em

    primeiro lugar, despida de todos os juzos intempestivos e preconceitos

    culturais que a cercam. Recorremos a ela como uma categoria de

    periodizao histrico-poltica: uma temporalidade, uma noo instrumental

    que busca identificar um momento chave da transformao social.

    A mudana social tem, entre os seus mecanismos

    internos de impulso, o momento da crise. Um encontro de tempos histricos

    desiguais, uma encruzilhada de foras sociais em conflito, em um tempo

    politico nico, de unidade e ruptura, de conservao e superao. A crise

    4 Diferentemente de outros pases, no Brasil, a classe dominante tem tido, historicamente, uma dificuldade persistente em ganhar a classe mdia e a maioria do povo para uma viso optimista de futuro. Mesmo em tempos de efemride e aniversrio de 500 anos encontram obstculos, quase intransponveis, para mimetizar os seus planos de emergncia em projeto nacional duradouro. Uma tenso social crnica est na raiz desse fracasso. Afinal, boas razes nunca faltaram para que o Brasil seja conflitivo, e uma luta de classes molecular que sempre transpirou por todos os poros, se traduziu numa instabilidade poltica duradoura: depois de 388 anos de escravido, 389 de Estado com formas monrquicas, 41 de regime autoritrio-oligrquico, 36 de ditadura semi-fascista, menos de 20 anos de democracia burguesa, e ainda assim sem liberdades civis plenas, no fcil fantasiar sobre um sentido para nossa Histria. Mas tudo isso no inibiu as tentativas de inveno de uma tradio, s vezes, ambiciosamente,civilizatria; sempre, pretenciosamente, original (identidade cordial, brandos costumes, cultura morena, tolerncia racial). Esforos persistentes de romantizao da Histria do Brasil, de uma parte lusfilos, de outra lusfobos, mas que no afirmaram uma identidade nacional com razes profundas.

  • 10

    revolucionria sempre fugaz e efmera, porque a manifestao dos sujeitos

    sociais antes represados e contidos, e enfim, livres e independentes, tensiona

    de forma quase intolervel os limites de todas as classes em luta. E o seu

    desenlace, seja qual for a sorte das foras em luta, decide por um perodo

    histrico mais ou menos longo, os destinos da sociedade: ela se manifesta

    como um abismo decisivo de luta entre o que foi e o que ser. As

    possibilidades esto sempre em aberto: a revoluo desperta a contra-

    revoluo, e vice-versa, de forma inapelvel.

    A crise est nos descaminhos de um combate histrico

    cujo signo, sentido e dinmica, s podem ser apreendidos no terreno da luta

    de classes como um processo vivo. Isso porque, em algumas circunstncias

    excepcionais, as sociedades humanas fazem escolhas que sero decisivas

    para toda uma fase histrica de longa durao, escolhas de uma gravidade

    quase insuportvel. Escolhas irreversveis, escolhas que so uma fratura no

    tempo. Escolhas que pelo seu impulso, estabelecem um novo quadro geral no

    qual se desenvolvero as formas das relaes sociais no perodo seguinte.

    Esses momentos encerram possibilidades que no se repetiro to cedo.

    Mas, tambm, perigos que no podero ser iludidos. As crises revolucionrias

    so as esquinas perigosas da Histria.

    Esta pesquisa, tem o objetivo de construir uma anlise

    histrica da elaborao e reformulao dos conceitos de poca, etapa,

    situao e crise revolucionria tal como foram pensados em uma parte da

    tradio marxista. Ou seja, ela tem como argumento a defesa da idia de que

    os critrios de periodizao histrica so indivisveis dos critrios de

    periodizao poltica, e vice-versa, em uma poca em que as lutas de classes

    se afirmam como a principal fora motriz do devir social. O que nos remete

    necessariamente discusso das premissas histrico-metodolgicas da

    classificao de perodos, fases, etapas, situaes e conjunturas, em uma

    palavra, os fundamentos de uma teoria dos tempos histricos e suas

    articulaes com os tempos poltico-sociais. Receamos que a maioria dos

    historiadores acharo o tema e o enfoque muito filosfico, e os filsofos, por

    sua vez, muito poltico, e os cientistas polticos, muito histrico.

  • 11

    Por qu, portanto, um estudo sobre as temporalidades e

    os debates tericos dos seus critrios poderia ser, hoje, ainda necessrio? J

    sabemos que toda pesquisa histrica, seja qual for o desenho do seu tema e

    as dimenses de suas hipteses, no pode alegar inocncia diante das

    querelas metodolgicas que os pressupostos tericos exigem. Sob o risco de

    ser facilmente vtima de ecletismo. A Histria, em nossa opinio, muito alm

    de uma narrativa do que aconteceu, deveria ter o compromisso de buscar

    explicaes para o que aconteceu.

    E, no entanto, os marcos histricos no so simples: a

    pulsao dos tempos histricos, deve ser considerada em vrios planos de

    anlise. A primeira exigncia que se impe, portanto, deveria ser a de

    considerar o tema, seja ele qual for, em funo de uma perspectiva de

    totalidade. Mas em Histria a noo de totalidade tem como premissa o tempo

    e suas armadilhas. Esse no , portanto, um procedimento terico simples.

    As referncias das temporalidades que balizam qualquer

    pesquisa so muitas e remetem compreenso de muitas variveis, em

    nveis diferentes: as medidas, os movimentos, as propores, e os sentidos

    de fenmenos que se desenvolvem de forma contraditria, desigual e

    simultnea. A miopia histrica, todavia, no incomum.5

    E a condio, sine qua non, de super-la, ter o cuidado

    de situar a anlise dentro de marcos mais gerais, a insero do problema

    dentro de um quadro mais amplo. Esses marcos em histria so, em

    primeirssimo lugar, marcos de temporalidade. Em que poca nos situamos,

    em que etapa ou situao, dentro de que conjunturas? E os nossos temas,

    como enfoc-los pela lente das categorias de temporalidade, ou seja, com

    5 Os marcos tericos so indispensveis anlise histrica, mas esto longe de resolver os problemas metodolgicos que qualquer pesquisa est chamada a resolver: o recorte do objeto, a construo de hipteses, a definio das fontes, a discusso historiogrfica sobre o tema, etc... Solues tericas bem sucedidas no garantem infalibilidade de qualquer tipo. Assim, preciso lembrar que outras escolas de pesquisa histrica, que no a marxista, produziram obras extraordinrias e inovadoras, mesmo quando suas referncias tericas eram, em nossa opinio, insuficientes ou equivocadas. Assim, tambm, deve-se reconhecer que trabalhos declaradamente marxistas, na sua inspirao, decepcionam, tambm, pela sua fragilidade.

  • 12

    uma perspectiva histrica? Esses tempos so as fronteiras nas quais as

    longas duraes se encontram com os fluxos polticos das lutas de classes.

    Sua considerao deveria ser incontornvel, porque definem os ritmos das

    mudanas histricas. Ignor-los seria um erro fatal.6

    O nosso desafio, ou nossa obstinao sobre a

    convenincia do tema foi essa. Vejamos melhor o problema, e algumas

    perguntas que merecem que lhe sejam feitas. A idia de crise revolucionria

    um conceito central na teoria da histria do marxismo.7

    Mas, a questo do poder nunca esteve colocada em toda

    e qualquer circunstncia histrica: s em situaes excepcionais o

    deslocamento do Estado se demonstrou, pelo menos, possvel. Marx e os

    6. No se podem construir dataes ignorando a necessidade de explicaes. Os ofcios tm os seus ossos, ensina a sabedoria popular. E toda atividade humana tem os seus vcios. Mas, tambm, as suas doenas. H, entretanto, limites para tudo. Limites que deveriam ser respeitados. Motoristas de taxi no podem sofrer de cretinismo geogrfico: isso no razovel. Pilotos de helicptero no podem sofrer de vertigem. Mas, como sabemos, a vida mais complexa. Tudo isso pode parecer banal, ou at meio ridiculo. Ocorre que o ofcio da histria, tambm tem os seus pecados mortais. Ainda est por ser codificado, felizmente, o declogo do dez mandamentos da profisso. Seramos os ltimos a querer fazer isso. Mas, se existisse, entre eles, estaria a proibio, certamente, do que me atrevo, por analogia, baptizar de cretinismo histrico, ou mais educadamente, anacronismo. Se fosse diagnosticado, consistiria em algo, como diminuir ou desprezar a importncia dos ritmos dos tempos histricos, ignorar os marcos em que se constri uma anlise, isto , a busca de um enfoque mais total, mesmo que o objeto de estudo seja fragmentrio, uma tendncia de pesquisa, possivelmente, irreversvel. A perseguio de uma histria mais total, no s no irrelevante, como seria a nica via que atende ao objetivo, este, incontornvel, de procurar explicaes para os processos de transformao, sejam elas econmicas, sociais, polticas ou culturais. Sem o substracto das medidas das temporalidades, esse esforo est condenado. Hobsbawm nos alerta sobre esta questo decisiva do compromisso do ofcio, isto , sobre o lugar das mudanas, e a necessidade de explicaes: Se no tentarmos resolver o problema bsico das transformaes da humanidade ou pelo menos no atentarmos para aquela parte de suas atividades que constitui nosso interesse especial no contexto dessa transformao, que ainda se encontra em desenvolvimento, ento como historiadores, estaremos nos dedicando a trivialidades ou jogos intelectuais e outros jogos de salo.(grifo nosso) (HOBSBAWN, Eric. A Histria progrediu? in Sobre a histria: ensaios. Trad. Cid K. Moreira. So Paulo, Companhia das Letras, 1998. p.76) 7 Importante no confundir crise econmica e social, e crise revolucionria, conceitos que tm uma relao entre si, mas que buscam identificar fenmenos que so, essencialmente, de natureza distinta:Os marxistas tm, tradicionalmente, concebido a crise como colapso dos princpios bsicos de funcionamento da sociedade. Na sociedade capitalista, acredita-se que tal colapso seja gerado pelo processo de acumulao, determinado pela tendncia decrescente da taxa de lucro. Deve-se, porm, fazer distino entre, de um lado, crises ou colapsos parciais e, de outro, crises que conduzem transformao de uma sociedade (...) as primeiras referem-se a fenmenos como os ciclos econmicos (...) j as crises do segundo tipo traduzem o enfraquecimento do princpio organizador ou nuclear de uma sociedade, isto , a eroso ou destruio daquelas relaes societais que determinam o alcance e os limites da transformao da (entre outras coisas) atividade econmica e poltica.(grifo nosso) (BOTTOMORE, Tom (org.). Dicionrio do pensamento marxista. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1997. p. 83.)

  • 13

    seus herdeiros eram conscientes da necessidade de pensar no somente as

    premissas da crise do capitalismo e as suas especificidades histricas, mas,

    tambm, as condies em que a questo do poder e, portanto, da revoluo,

    poderiam estar colocadas. Ou seja, a ante-sala do grande tema da transio

    histrica.

    Crise histrica, crise econmica, crise social e crise

    poltica, estavam, assim, para sempre entrelaadas, e desembaraar o n

    nunca foi simples. Ocorre que o marxismo se desenvolveu nos ltimos 150

    anos como uma corrente enormemente vasta, heterognea, plural e polmica.

    Seria, portanto, pouco razovel no estabelecer limites mais precisos na

    investigao: seria invivel metodologicamente, e cientificamente

    inconsistente, uma anlise que no retivesse no interior do marxismo alguns

    autores e no outros; alguns momentos do debate, e no todos. Esses limites

    so, j em si, uma escolha terica. Nenhuma escolha inocente de critrios.

    Assim, a delimitao do objeto deste trabalho teve como

    centro a procura das relaes entre as revolues de 1848 e seu impacto na

    reflexo de Marx e Engels sobre os tempos da revoluo; as polmicas no

    interior da Segunda Internacional sobre a abertura da poca do Imperialismo e

    o debate estratgico sobre a iminncia de uma situao revolucionria na

    Europa; a formao de uma corrente marxista revolucionria internacionalista,

    como esquerda da Segunda Internacional, luz das querelas histrico-

    polticas provocadas pela Primeira Guerra Mundial e pelo impulso das trs

    revolues russas (1905; fevereiro e outubro de 1917).

    Do mais abstracto ao mais concreto: poca e os tempos

    da transio histrica, situao e os tempos da revoluo social, crises e os

    tempos da revoluo poltica. As temporalidades de poca, etapa, situao e

    conjuntura so, portanto, apenas uma parte, mas uma parte substantiva, da

    elaborao marxista sobre os tempos de inrcia e os tempos de

    transformao social. Consideramos, por isso, essas noes um instrumento

    conceitual indispensvel para qualquer tentativa de explicao do vir a ser e

  • 14

    do deixar de ser, isto , dos processos de mudana social, e das leis

    histricas que tentam explic-los.8

    Enfrentemos nosso tema de frente: quais foram, em

    termos gerais, e de uma maneira sinttica, as hipteses que nos guiaram?

    Esquematizamos, a seguir, as dez idias principais, que sero exploradas ao

    longo desta pesquisa:

    8 O estudo das temporalidades nos critrios de classificao do marxismo, remete, inevitavelmente, s grandes concepes histricas sobre o tempo e suas medidas. Sempre foi assim, mesmo antes da Histria se constituir como cincia: as teleologias religiosas (ou laicas), foram ciosas de estabelecer os seus critrios, com clareza, como instrumentos definidores de sentido condio humana. O eterno retorno oriental, como medida de punio ou recompensa, o tempo de provao e espera do judaico-cristianismo, como ante-sala do combate final entre o bem e o mal, o Armagedon, o tempo hegeliano do progresso, como aventura da realizao do Esprito. Ou seja, se a Humanidade sempre precisou de escalas de quantificao, procurou, tambm, critrios de explicao para as medidas do tempo. O Tempo , em uma dimenso histrica, vivido como uma experincia subjetiva. Os marxistas tambm atribuem qualidades ao tempo: em uma palavra, como igualitaristas, antes de mais nada, eles tm pressa, porque sabem que na escala do atraso das longas duraes da transformao histrica, todas as revolues ocorreram, em alguma maneira, demasiado tarde, to grande a herana e a dvida da injustia. Mesmo quando as revolues foram politicamente prematuras. Sobre esses critrios vale conferir este fragmento, uma sntese irretocvel dos dilemas do historiador diante das muitas faces do Tempo: O historiador, diante da necessidade de organizar seu pensamento, seu entendimento, cria medidas e categorias de tempo, organiza esse tempo em funo de fatos, de ciclos, de pocas, de estruturas. Com isto acrescenta uma noo de tempo diversa daquela vivida pelas comunidades; na Antigidade, por exemplo, foi Timeu da Siclia, no sculo IV a.C., que introduziu um sistema em umrico estabelecendo uma correlao entre as crnicas das diversas cidades-estados, dado que cada uma estabelecera uma cronologia a partir das listas de dignitrios que a cada ano as governavam. O tempo jamais nico no estudo da histria, pode ter uma predominante qualitativa ou quantitativa, desigual e particular a cada sociedade, a cada momento e a cada espao. fsico e metafsico. Pode at mesmo no existir. Dependendo de suas crenas, possvel a uma sociedade conceber o mundo sem passado, em um eterno presente em que passado e futuro se fundem. No Egito, na China, na ndia, em Aztln, h deuses que significam o prprio tempo, um tempo continuo, sem fraturas, sem imperfeito ou mais-que-perfeito; predomina ento uma idia do no-tempo divino que interpenetra o cotidiano. Na cultura do cristianismo, forjadora de uma forte estrutura conceptiva no ocidente, ocorre o inverso, o tempo existe na esfera do humano, fora da divindade, que eterna. No sculo V, Santo Agostinho atribuiria ainda ao tempo cristo uma nuance psicolgica; o presente torna-se uma experincia na alma; o passado uma imagem memorial da alma; o futuro existe como expectativa psquica; o tempo comum passageiro e sem sentido e cessar no momento em que a alma se unir com Deus o fora do tempo (...). Em virtude da crena em uma determinada idia do tempo-cclico, por exemplo, como uma cobra mordendo seu prprio rabo, como o ritmo das estaes, ou linear, como um rio que flui, como a areia da ampulheta o narrador da histria buscar seus contedos e o prprio esprito da narrativa de maneiras diversas. Se baseada no eterno retorno, no cclico, na idia de nascimento, desintegrao e renascimento, a histria assume o papel de mestra, pois conhecendo o passado descortina-se um futuro sem surpresas. Na viso linear, judaico-crist por excelncia, com um incio, meio e fim assegurados, a nfase recair no processo de aperfeioamento do mundo at atingir seu ponto culminante representado por seu prprio fim; a esta concepo liga-se uma idia intrnseca de progresso, de progresso contnua, de propsito divino, excluindo a noo de ruptura. Em 1830, Hegel prope a seus alunos a construo de uma histria filosfica plena de necessidade, de totalizao e de finalidade(...)(grifo nosso) (YOKOI, Zilda e QUEROZ, Tereza, A histria do Historiador, So Paulo, Humanitas, 1999, p.7/8)

  • 15

    (1) O conceito de poca em Marx, seria uma

    periodizao histrica de longa durao, que deveria hierarquizar todos os

    outros critrios de classificao (sejam econmicos, polticos, ou outros). Ele

    estabelece a premissa, de que s em determinados intervalos histricos, de

    exteno secular, em funo de um impasse econmico-social, vrias vezes

    verificado no passado, se abriria, a possibilidade poltica da transio ps-

    capitalista. Assim, a histria teria conhecido, alternadamente, pocas

    revolucionrias e pocas no revolucionrias.

    (2) As foras motrizes do processo histrico, segundo

    Marx, seriam, essencialmente, duas tendncias que se desenvolvem

    simultnea e inseparavelmente, mas com uma fora de presso que se alterna

    em funo da natureza da poca: a tendncia ao crescimento das foras

    produtivas, e a luta de classes, operam como os seus fatores de impulso. Em

    poucas palavras: luta da humanidade pela domesticao da natureza de

    acordo com suas necessidades, e luta entre os homens pela apropriao do

    sobreproduto social, determinada pela escassez. Mas, a intensidade da

    necessidade histrica, que se manifesta atravs dessas duas tendncias,

    varia, oscila, flutua, e se alterna. Assim, no se poderia considerar, em nossa

    opinio, uma tendncia intrnseca indefinida, ao desenvolvimento das foras

    produtivas: variadas foras de bloqueio teriam se manifestado na histria.

    Logo, perodos de estagnao, at, relativamente, longos no seriam uma

    excepo. Por outro lado, a principalidade da luta de classes, tambm seria

    varivel e s se manifestaria, em sua mxima intensidade, em pocas

    revolucionrias. Poderamos, portanto, identificar de acordo com a natureza

    das pocas, inverses de primazia entre a operao das foras motrizes. To

    ou mais importante, essas duas foras motrizes, estabelecem contradies

    entre si, porque atuam reciprocamente uma sobre a outra, e tambm poderiam

    se neutralizar uma outra, como obstculos mtuos. Essas definies seriam

    chaves para esclarecer quais, entre os critrios de caracterizao de poca,

    deveriam ser priorizados para a construo de anlises histricas que tenham

    como referncia o conceito de totalidade.

  • 16

    (3) A hiptese que afirma que a transio ps-capitalista

    deveria ser pensada, luz da elaborao de Marx, como um processo

    revolucionrio consciente, ou seja, uma revoluo de maioria, idia expressa,

    entre outras fontes, com clareza, por Engels em seu Testamento, explorando

    o balano de Marx, da derrota da Comuna de Paris. Seria, assim, pela

    primeira vez, uma transio que exigiria dos sujeitos sociais, o proletariado e

    seus aliados, um programa histrico, uma estratgia poltica, uma poltica

    econmica-social e um sujeito poltico coletivo independente, em poucas

    palavras, uma enorme concentrao de fatores de subjetividade.

    (4) A idia de que h uma relao que merece ser

    explorada entre a periodizao da teoria das ondas longas do

    desenvolvimento econmica capitalista, conhecida como hiptese Kondratiev,

    e as etapas histricas dos ltimos cento e cinqenta anos, ou seja, uma

    relao entre os ciclos econmicos de longa durao e as flutuaes dos

    ciclos da luta de classes, ou seja a alternncia das etapas. Do que decorre, a

    recuperao da hiptese sugerida no debate russo dos anos 20, e retomada

    em um estudo pioneiro de Mandel, nos anos 80, de que os fatores poltico-

    sociais seriam determinantes na passagem da fase recessiva prolongada de

    cada vaga, para a fase ascendente e expansiva da vaga seguinte.

    (5) Um novo enfoque das possibilidades tericas abertas

    pela idia de Engels sobre a morfologia da crise revolucionria, a revoluo

    em duas vagas. Essa hiptese foi apresentada, pela primeira vez, na reflexo

    sobre as lies do balano das revolues de 1848, retomando a teoria dos

    tempos e dinmica da permanncia da revoluo, j no como bandeira

    poltica, mas como teoria da revoluo (portanto, como uma dialtica entre

    tarefas histricas e sujeitos sociais). Sugeria a possibilidade de que poderiam

    se repetir as formas polticas e os contedos sociais da experincia de Paris

    em 1848, isto , a dinmica de duas revolues no memsmo processo, ou

    melhor, duas crises revolucionrias em sucesso, diferentes entre si, porm

    inseparveis, no calor da mesma situao revolucionria: a primeira, a

    revoluo poltica que proclama a repblica, democrtica pelas tarefas,

    inconsciente pela natureza da direo, popular pelo sujeito policlassista; a

  • 17

    segunda, a insurreio derrotada de Junho, a revoluo poltico-social,

    operria pelo sujeito, socialista pelas tarefas, consciente pela direo

    independente. Parece til, a utilizao desta premissa terica para pensar as

    revolues do sculo XX e classificar (e diferenciar) as crises revolucionrias,

    inspirados em uma analogia histrica baseada na revoluo russa, em dois

    grupos: como crises de tipo Fevereiro, ou como crises de tipo Outubro.

    (6) O argumento de Rosa Luxemburgo, que define a

    nova poca do imperialismo, como a poca da iminncia da revoluo, no s

    como fenmeno histrico, mas a sua atualidade, como fenmeno poltico-

    social. Logo, a perspectiva, de que situaes revolucionrias podem

    permanecer em aberto por vrios anos, podendo ou no evoluir para crises

    revolucionrias, e teriam como causalidades, a combinao de dois principais

    elementos: a tendncia s crises econmicas recorrentes, em funo dos

    ajustes cegos provocados pela superproduo e a tendncia ao crescente

    protagonismo independente do proletariado.

    (7) A identificao da teoria dos campos, ou seja do

    campismo, como o fundamento terico fundamental de todas as diferentes

    hipteses de reformismo, como teoria poltica, a partir da releitura da obra de

    Bernstein sobre os tempos da mudana histrica. Ela parte da constatao,

    inquestionvel, de que os conflitos na sociedade no se resumem aos

    conflitos de classe entre o proletariado e burguesia. Mas substitui o que seria

    a anlise a partir do foco na totalidade da poca histrica, como determinao

    fundamental, pela anlise da situao. Em outras palavras, olha a poca pela

    lente da situao e a situao pela lente da conjuntura. Esta teorizao

    chave para a compreenso das presses ideolgicas que o regime

    democrtico exerce sobre o movimento operrio e suas organizaes. Ela

    exige a discusso dos conceitos de progressivo e regressivo na obra de Marx,

    e suas consquncias.

    (8) As possibilidades abertas, pela reflexo de Lnin de

    que a tendncia precipitao de situaes revolucionrias, na nova poca,

    enfrenta contra-tendencias no sentido da sua neutralizao: a ao da contra-

  • 18

    revoluo. Esta pode assumir a forma do terror e represso dos regimes

    fascistas, semi-fascistas, bonapartistas. Mas esse processo est longe de ter

    mo nica e pode, tambm, assumir a forma dos regimes democrticos.

    Esses fatores de neutralizao preventiva, se expressam na crescente

    importncia da poltica. Podem adiar, desviar e at conter a tendncia

    abertura de situaes revolucionrias, mas no poderiam anular a perspectiva

    e a dinmica. Porque a necessidade histrica, abriria o caminho, pela fora de

    presso das crises econmicas e das lutas de classes. Ainda assim, o novo

    papel do Estado e o novo lugar dos fatores polticos no poderiam ser

    ignorados. Por isso, a importncia do conceito de situao poltica, e das suas

    alternncias (porque elas so muito variadas, contra-revolucionrias,

    reacionrias, no revolucionrias, pr-revolucionrias ou revolucionrias), sem

    esquecer as situaes transitrias, de passagem de uma para outra, e a

    compreenso do lugar das distintas conjunturas, dentro de uma mesma

    situao. Em outras palavras, a nova importncia dos fatores de

    subjetividade, que se expressam, em primeiro lugar, pela elevada capacidade

    das classes dominantes, de aumentar a adaptabilidade dos regimes polticos,

    ampliando a sua plasticidade, aos novos cursos das lutas de classes. 9

    (9) o argumento, de que entre as pocas histricas, e as

    situaes polticas nacionais, deveria ser considerada a importncia do

    conceito de etapa internacional, uma temporalidade necessria como

    9 Essas concluses de Lenin, elaboradas em funo da crise da Segunda Internacional, e fundamentadas na adaptao da maioria de seus partidos, s presses sociais novas da poca do imperialismo, e s condies de legalidade, foram, posteriormente, como sabemos, muito discutidas. Mas, muito menos conhecido, que, posteriormente, Trotsky, luz da experincia histrica de degenerao no s da II, mas tambm da Terceira Internacional, defendeu que o futuro da revoluo socialista, como fenmeno poltico-social, era indivisvel do futuro do marxismo revolucionrio, como programa terico-histrico, dada a importncia qualitativa do elemento subjetivo na transio histrica. Segundo Trotsky, o futuro do marxismo, dependia de trs ncoras: a ncora social, a vinculao s lutas de classes, em geral, e ao movimento operrio, em particular, e, em especial, aos seus setores mais combativos; a ncora terica, a vinculao tradio de polmica do marxismo clssico, e a defesa do mtodo, isto , a necessidade da investigao e interrogao permanente; e a ncora internacional, a vinculao a um movimento poltico que, pela natureza do seu programa, no pode deixar de ter uma organicidade mundial, e que seria, no longo prazo, a decisiva. Vale a pena acrescentar, que essas trs condies, s existiram, simultaneamente, como um fenmeno poltico, at hoje, quase como excepo, e sobretudo, pouco tempo: por exemplo, durante a breve vida da Primeira Internacional, em especial, nos anos que precederam derrota da Comuna, e depois, com a formao de uma esquerda no interior da Segunda

  • 19

    mediao entre a esfera histrica e a esfera poltica da anlise, e que se

    definiria por dois critrios: de um lado, uma relao de foras estabelecida

    entre as classes, entre revoluo e contra-revoluo mundial, entendida como

    um nico processo, que se desenvolve, como sabemos, com as maiores

    desigualdades, em suas refraes nacionais; e por outro lado, como um

    perodo de relativa estabilidade do sistema poltico mundial, o sistema inter-

    Estados (como, por exemplo, entre 45/89, uma etapa definida, depois de Yalta

    e Potsdam, pela hegemonia americana, e por um acordo de coexistncia

    pacfica com a URSS).

    (10) Por ltimo, a hiptese inspirada em uma idia de

    Moreno de que a crise revolucionria se define pela inverso das

    causalidades entre fatores objetivos e subjetivos, ou seja, seria o momento

    excepcional, no qual os elementos de vontade passariam a ser a

    determinao fundamental, para a definio do sentido de uma sada poltica

    para a crise.

    Essas foram as idias chaves que inspiraram este

    trabalho. Como evidente so, essencialmente, hipteses tericas. Esta

    escolha j polmica e somos conscientes dos seus riscos. A atual tendncia

    predominante nas pesquisas histricas, privilegia os estudos que renem e

    organizam um corpo documental de fontes originais, com temas muito bem

    delimitados. No ignoramos os perigos de trabalhar somente com fontes

    secundrias, discutindo a histria das idias sobre as caracterizaes sobre

    poca, etapa, situao e crise revolucionria. Mas o debate sobre os critrios

    de periodizao histrica e poltica, no se poder negar, tem, tambm, a sua

    importncia e responde a uma necessidade.

    Essas hipteses tericas, se apiam, entretanto, em

    alguns pressupostos histricos: (a) a compreenso da crise do capitalismo

    como um fenmeno essencialmente objetivo, seria predominante no interior do

    marxismo at o incio do sculo XX, quando, sob o impacto da irrupo de

    massas de um novo movimento operrio, a reflexo se abre necessidade de

    Internacional. Finalmente, nos primeiros anos da Terceira, apesar da debilidade dos partidos, que se somaram ao esforo do bolchevismo, de reagrupar as foras internacionalistas.

  • 20

    pensar o tema da conscincia de classe, e dos diferentes tipos e nveis de

    organizao;

    (b) se a teoria da crise nasce de uma leitura da

    investigao econmica feita por Marx sobre as tendncias s crises cclicas,

    ela vai mais alm, quando no interior da Segunda Internacional se abre um

    debate programtico, provocado pela iminncia da Guerra, a natureza do

    capitalismo sob a forma de imperialismo, e se inicia uma polmica sobre o

    significado da poca, e o lugar da luta de classes na Histria;

    c) a alternativa/prognstico socialismo ou barbrie,

    frmula que seria comum esquerda da Segunda Internacional, atualizada

    pela deflagrao da Primeira Guerra Mundial, seria, ao mesmo tempo,

    prognstico e palavra-de ordem, porque previa a iminncia de situaes

    revolucionrias, e estabelecia um novo paradigma programtico, para alm do

    otimismo/objetivismo/fatalismo da viso do mundo predominante na

    Internacional e, portanto, fazia uma reinterpretao do papel do sujeito social,

    a classe, e do sujeito poltico, o partido;

    d) no interior do marxismo do incio do sculo, seria

    historicamente srio e fundamentado pensar que as linhas divisrias entre os

    principais autores, no se resumiram a uma diviso entre reforma e revoluo

    (ou sua verso russa, bolchevismo e menchevismo), mas seriam mais

    complexas, envolvendo tambm, pelo menos, outros dois campos: os que

    pensavam a crise a partir da agudizao das contradies econmicas, que

    desorganizariam a vida social e se expressaria em desmoronamento das

    instituies estatais, e os que pensavam a crise, fundamentalmente, a partir

    do ngulo da radicalizao da conscincia de classe e, portanto, dos nveis de

    organizao do proletariado (fatores de subjetividade);

    e) o debate entre os marxistas do incio do sculo sobre

    o tema do partido , na verdade, uma expresso ou uma dimenso do debate

    mais geral de estratgia que deveria responder articulao entre condies

    objetivas e subjetivas, e que levou, diante das circunstncias histricas

    nacionais distintas, a diferentes respostas;

  • 21

    f) o impacto da revoluo russa, primeira revoluo

    socialista vitoriosa, no encerra o debate sobre a teoria da crise, e as

    concluses estratgicas que dele decorrem, apenas permite que esse debate

    se desenvolva de forma mais complexa e rica, em torno universalidade ou

    excepcionalidade da experincia bolchevique.

    Estes so alguns pontos de partida, para um estudo

    sobre como o materialismo histrico foi pensando uma teoria da crise do

    capitalismo. Se fossemos resumir, brutalmente, diramos: nfase nos sujeitos

    sociais em luta, ou primazia das causalidades objetivas (ou o insolvel conflito

    entre voluntaristas e deterministas). Esses so os termos do dilema e do

    debate sobre a teoria da crise, desde os tempos fundadores do marxismo.

    Mas foi, sobretudo, a gerao de socialistas que viveu como protagonista o

    debate no interior da Segunda Internacional, que iria desenvolver uma slida

    polmica terica, tanto sobre o tema da crise econmica, quanto sobre a crise

    poltica.

    Esta tese pretende ser, portanto, um estudo crtico de

    pesquisa historiogrfica sobre os variados campos que se estabeleceram

    nessa polmica. Bernstein, Rosa Luxemburgo, Kautsky, Lenin, Trotsky,

    Gramsci, entre outros; alemes, franceses, russos, holandeses, austracos e

    italianos; homens e mulheres que refletiram sobre a teoria da crise, pensaram

    e elaboraram distintas respostas tericas para o tema da crise do capitalismo

    e das condies objetivas e subjetivas da transio.10

    10 Referindo-se a esta gerao e ao meio histrico no qual amadureceram os homens e mulheres que foram os personagens ativos nesta elaborao marxista que teve na Segunda Internacional o seu cenrio, Perry Anderson observou nas Consideraes sobre o marxismo ocidental: Com efeito, a Primeira Guerra Mundial iria dividir as guas da teoria marxista na Europa de uma forma to radical que precisaria uma cisso do prprio movimento operrio. Todo o desenvolvimento do marxismo nas ltimas dcadas antes da Guerra tinha realizado uma unidade entre teoria e prtica muito mais estreita do que a do perodo precedente, devido ascenso dos partidos socialistas organizados nessa poca. No entanto, a integrao dos principais tericos marxistas na prtica dos seus partidos nacionais no os regionalizou nem os segregou entre si. Pelo contrrio, o debate e a polmica internacionais eram como uma segunda natureza para eles: se nenhum atingia o universalismo fantstico de Marx ou de Engels, tal foi conseqncia necessria do seu mais concreto enraizamento na situao e na vida particulares dos seus pases mediatizado, no caso dos russos e poloneses, por longos perodos de exlio no estrangeiro.(grifo nosso) (ANDERSON, Perry. Consideraes sobre o marxismo ocidental. Lisboa, Afrontamento ,1976. p. 23)

  • 22

    Este processo de elaborao foi, fundamentalmente,

    uma obra coletiva, apesar de sua pluralidade, que s se explica

    historicamente, pela existncia de interlocutores mtuos, situados em um

    quadro comum de discusso e ao, a Internacional, antes e depois da

    Primeira Guerra, e foi uma experincia nica no marxismo. A experincia da

    Terceira Internacional, como um partido vivo, anterior ossificao que se

    precipita pela normatizao dos partidos comunistas depois do V Congresso

    de 1927, sofreu, todavia, desde o incio, um prejuzo pelo peso da enorme

    autoridade, no seu interior, da frao russa. As reservas e cuidados dos

    soviticos, nos seus primeiros anos, em evitar o esmagamento das posies

    crticas dos outros partidos, o famoso alerta de Lnin sobre a necessidade de

    intransigncia nos princpios e flexibilidade nas tticas, foram impotentes

    diante do processo avassalador de submisso da Internacional presso de

    Estado da URSS: deu lugar flexibilidade de princpios e intransigncia nas

    tticas.

    Este projeto pretende, ento, em uma releitura das obras

    originais destes autores marxistas, muito resumidamente apresentadas,

    recuperar o fio de uma discusso, construir uma seqncia lgica do debate

    que uniu e separou homens e mulheres em torno reflexo sobre a transio

    do capitalismo ao socialismo, e procurar no tema da teoria da crise, ou

    melhor, nas distintas teorias da crise, uma resposta para a caracterizao dos

    conceitos de poca, situao e crise revolucionria.

    No ser preciso dizer, que a bibliografia disponvel

    sobre o tema tem dimenses colossais. Por isso, no ser surpresa se muitas

    obras, seno muitos autores, deixaram de ser consultados: seriam

    indispensveis, muito mais do que dez anos para esgotar todas as fontes

    disponveis, mas um trabalho em equipe para explorar a fundo todas as fontes

    disponveis. Mesmo com todos esforos dispendidos, seria ingnuo ignorar,

    que esta pesquisa, resulta em uma aproximao, necessariamente, muito

    parcial ao problema. Sei, antecipadamente, que as limitaes deste trabalho,

    despertaro uma polmica. Esse o meu desejo. Ele provoca uma discusso:

    as concluses que sugiro, sero analisadas e criticadas, e outras sero

  • 23

    apresentadas no seu lugar. Assim deve ser, porque assim avana o debate

    terico.11

    Um projeto de pesquisa como este, que supe uma

    leitura da obra de variados autores, para compor um painel histrico, que situe

    o processo de desenvolvimento de um debate terico, excepcionalmente

    complexo, enfrentou diversas dificuldades e perigos. A primeira dificuldade foi

    a tendncia disperso. Mesmo concentrando o tema da pesquisa, o mais

    rigorosamente possvel, em torno a uma reflexo sobre a teoria da crise no

    11 Somos conscientes que a refutao mais custica pertinncia do tema ser o argumento que defende que a poca das revolues ficou para trs e, portanto, os conceitos que pretendemos explorar pertenceriam s turbulncias de um passado que no teria deixado saudades, e de discusses que o tempo teria demonstrado estreis: ferramentas tericas da paleontologia marxista. De acordo com essa crtica, a ltima vaga revolucionria teria sido a de 1989/1991 que sacudiu a Europa do Leste e a URSS. Depois desse processo essas categorias teriam ficado ultrapassadas, ou at, obsoletas. Vale a pena observar, entretanto, com indiscreta satisfao, que, na ltima dcada, situaes e crises revolucionrias continuaram se abrindo (e depois se fechando) nos mais diferentes pases: Albnia, frica do Sul, Cisjordnia, Zaire, Indonsia, Colmbia, e Equador, entre outros. Esses processos testemunham que a transformao poltica e social continuou recorrendo ao mtodo das mobilizaes revolucionrias de massas. O tema das pocas, etapas, situaes e crises revolucionrias permaneceu, portanto, no centro do debate terico poltico e historiogrfico, mesmo aps a queda do Muro. Talvez no seja sequer um excesso de ousadia considerar at que com uma maior intensidade do que h cinco anos atrs, quando comeamos esta investigao para buscar, antes de mais nada, uma explicao para ns mesmos. No somente como uma necessidade do debate terico entre historiadores para interpretar o passado, mas tambm como conceitos que podero ser teis para compreender o futuro. A seguir, uma passagem de um recente artigo de Wallerstein no Le Monde diplomatique sobre a atual crise mundial: A economia-mundo capitalista parece estar no seu apogeu: e no entanto, est em plena crise. Na realidade, o sistema-mundo que se desagrega(...) A fase B do ciclo de Kondratiev assiste transferncia de liquidez do setor produtivo (menos lucrativo) para o da especulao, com a conseqncia das crises de endividamento e dos macios deslocamentos dos capitais acumulados. Ao perodo dos "trinta gloriosos" do ps-guerra segue-se uma longa "fase B", caracterizada pela estagnao econmica e o aumento do desemprego. Velhas indstrias so deslocadas para zonas, cuidadosamente escolhidas devido aos baixos salrios, as quais, de repente, do a impresso de se desenvolverem. Essa fase B do ciclo de Kondratiev, alis, sempre comporta a transferncia, sob outros domnios de produo, de antigas fontes importantes de acumulao que o deixaram de ser quando perderam seu carter de monoplio. Para os pases que as acolhem, trata-se de um desenvolvimento de "segunda mo". Porm, essa fase tambm assiste transferncia de liquidez do setor produtivo (menos lucrativo) para o da especulao, com a conseqncia das crises de endividamento e dos macios deslocamentos dos capitais acumulados. A expanso inacreditvel desses ltimos anos explica-se pelo fato de que os exerccios especulativos que caracterizam o final de uma fase B coincidem com a substituio de novos monoplios que devem permitir o incio de uma nova fase A. Pretender que o mercado imponha o nvel dos salrios enganoso, pois o salrio tambm decorre da fora poltica dos trabalhadores e das possibilidades de deslocamento que se apresentem ao patronato A primeira tendncia secular de peso que se aproxima de seu limite refere-se porcentagem do custo da produo representada pelo conjunto mundial de salrios reais. Quanto mais baixa for essa porcentagem, maiores sero os lucros. Porm o nvel do salrio real determinado pelas relaes das foras no interior de diferentes zonas da economia-mundo. Mais precisamente, ele est ligado ao peso poltico de grupos antagonistas - o que se chama

  • 24

    marxismo do incio do sculo, o que somente um aspecto da leitura que

    esses pensadores fizeram do materialismo histrico, evidente a tentao de

    ir alm. Nesse sentido, o mais importante que o trabalho reconhea seus

    limites, e se atenha estritamente ao tema em questo. Esperamos t-lo feito.12

    Algumas observaes metodolgicas, so tambm

    necessrias, em funo da escolha de um tema, essencialmente, terico.

    Seria, afinal, possvel a formulao de leis histricas? Uma das objees mais

    comuns, e mais perturbadoras, ao marxismo como teoria da Histria, a

    acusao feita a Marx de determinismo e objetivismo, uma vez que teria teria

    construdo uma teoria que buscava interpretar a evoluo da histria humana

    como um fluxo de processos dotado de compreensibilidade, que poderiam ser

    analisados com a ambio da busca de fatores de regularidade, de causas

    condicionadoras de tendncias, em uma palavra, enfim, a identificao de

    foras motrizes que poderiam ser interpretadas como a presso da

    necessidade histrica.

    luta de classes.(grifo nosso)(WALLERSTEIN, Immanuel, A economia-mundo em crise, Le Monde Diplomatique, 9/9/2000) 12 No entanto, talvez o mais importante seja, desde o incio, identificar o perigo de dois erros simtricos. O primeiro seria o de fazer uma leitura desses autores que no fosse solidamente enraizada nas circunstncias histricas em que suas reflexes se desenvolveram. Historicizar a produo terica em um universo to complexo e rico, como o que cercou essa gerao marxista do incio do sculo, no certamente tarefa fcil ou simples. Mas pr-condio para evitar erros de leitura e mal-entendidos que, no entanto, so comuns e freqentes. Ser conscientes deste perigo, no oferece claro nenhuma garantia, j que a ambio da produo terica justamente a de produzir um edifcio conceitual que, a partir da experincia histrica concreta, consiga encontrar noes mais abstratas, elementos generalizantes que construam uma interpretao. Essa era a ambio desses pensadores, quando produziram as suas obras, e por isso no estranho que tenham criado e inspirado modelos que possuem uma vocao universalizante. Mas o pesquisador tem de ser consciente que a aproximao com essas obras deve estar condicionada a uma leitura crtica das circunstncias histricas nas quais foram elaboradas. Em que medida fomos bem sucedidos, ou no, se ver. O segundo erro seria o inverso: o de diminuir o significado e a importncia de um debate construdo por uma gerao excepcional de marxistas, a mais notvel deste sculo. Os homens pensam e agem dentro de uma totalidade, que o meio e o tempo histrico em que vivem e atuam, mas alguns, pelos seus talentos e dons extraordinrios, se elevam acima do horizonte mais imediato de sua gerao, e portanto, das presses mais imediatas nas quais esto inseridos. esses homens e mulheres, Bernstein, Kautsky, Rosa, Lenin, Trotsky, Bukharin, Paul Levy, Lukcs e Gramsci, entre outros, foram gigantes do seu tempo, foram interlocutores mtuos e se influenciaram reciprocamente, mesmo quando se afastavam e polemizavam duramente entre si. Seus escritos, em geral, e suas concluses sobre a crise do capitalismo e seus esforos de construir uma resposta terica para a questo da luta pelo poder e da transio, se desenvolvem no marco de uma reflexo sobre a Histria. Foram estudiosos da Histria, conheciam a produo historiogrfica do seu tempo sobre as revolues burguesas e pensavam a teoria da crise muito alm de um reducionismo politicista.

  • 25

    A demolidora acusao final contra o marxismo seria a

    arrogante pretenso de descoberta de uma direcionalidade perceptvel que,

    sendo conhecida, poderia ser alterada, dominada, reorientada, como se fosse

    possvel um domnio sobre um sentido histrico imanente, o controle de uma

    obra de engenharia econmico-social: o socialismo seria, assim, o

    reconhecimento de um sujeito social que no existe, mais um fatalismo

    milenarista e apocalptico precedido por uma revoluo escatolgica. O

    marxismo seria uma teleologia igualitarista da histria, entendida como um vir

    a ser... que j , porque o destino do futuro, j teria sido revelado pelo

    determinismo histrico. Finalmente, a previsibilidade histrica seria um

    exerccio de fantasia racionalista.

    Em oposio a esta pretenso do marxismo, que, em

    suma, teria restringido a histria a uma interpretao exaltada do sentido do

    progresso, argumenta-se que a histria seria um processo em aberto, de um

    fazer-se sempre renovado e livre, impossvel de ser apreendido sob a forma

    de leis. Premissas falsas, concluses apressadas: erro de sujeito e predicado.

    Porque o marxismo no afirma que a Histria esteja prenhe de sentido.

    Ao contrrio, o marxismo defende, condicionalmente,

    que a Humanidade poder vir a oferecer uma direo ao seu futuro, se

    conseguir superar os desenlaces cegos das lutas de classes que dilaceram a

    vida social. Reconhece a incerteza, em funo do antagonismo classista, que

    no possui um desenlace pr-estabelecido. Identifica a possibilidade, mas no

    anuncia o impondervel. A ausncia de finalismo no se deve confundir com a

    ausncia de protagonismo. Esta questo no secundria. Se admitissimos a

    hiptese inversa, ou seja, que a esfera da transformao social no poderia

    ser dominada, em alguma medida, pela ao dos sujeitos sociais em luta, e

    pela vontade dos sujeitos polticos que expressam os interesses das classes,

    ento, seramos obrigados a admitir que os atuais impasses da civilizao

    seriam insolveis. A Histria deixaria de ser processo e passaria a ser sujeito.

    Mas, em decorrncia, o que insolvel, no um problema. O cepticismo

    histrico, nesse nvel, portanto, s pode ser a ante-sala do relativismo e do

    cinismo.

  • 26

    O que nos diz, ento, o marxismo? Identifica nas classes

    dominadas e oprimidas, e em especial nos trabalhadores assalariados, a

    liderana do protagonismo social de um desafio que sempre se renova. Afirma

    que essa possibilidade uma encruzilhada entre a defesa da civilizao e a

    barbrie. Mas no reduz esse novo sentido a uma luta pelo progresso. Insiste

    na causa de um combate pela liberdade e pela igualdade, enfim, indivisveis.

    Em uma palavra: o marxismo no aconselha o fatalismo, mas o mximo

    ativismo. Mas uma pergunta se impe: qual seria o lugar de uma cincia que

    renuncia busca de uma explicao de sentido para as mudanas de seu

    objeto? Ou porque to irritativa a idia da necessidade histrica?13

    Diz-se que todas as grandes revolues cientficas

    alimentaram uma perturbadora redefinio da conscincia que a humanidade

    construiu sobre si mesma. A revoluo cosmolgica deslocou a imagem de

    um universo geocntrico e imps um universo heliocntrico: aprendemos que

    o nosso endereo csmico a periferia de uma galxia, entre centenas de

    milhes de galxias. A revoluo darwiniana nos ensinou que no somos os

    filhos prdigos da criao, ou sequer o resultado de um progresso evolutivo

    provvel ou previsvel, mas um acidente biolgico fortuito, ao longo das

    imensas eras de sucessivos abismos genticos e cataclismas galticos, uma

    seleo evolutiva cujas medidas de durao tem uma escala de pesadelo,

    quase inapreensvel. A revoluo freudiana nos revelou que nossa

    conscincia escapam boa parte dos impulsos profundos e inconfessveis que

    motivam as nossas escolhas.14

    13 O ps-modernismo penetra no debate sobre a histria com um arsenal poderoso e atraente, em uma poca em que a angstia da busca de um sentido histrico para a existncia humana parece ter naufragado em um oceano de cepticismos lcidos. um mal-estar fin de sicle? O certo que a crtica das grandes snteses, condenadas no tribunal do conhecimento como meta-narrativas, se apia na noo, de que em Histria (pelo menos, j que os critrios de indeterminao e incompreensibilidade se extendem s outras cincias sociais), no seria possvel a formulao de leis. Tampouco seria possvel a identificao de sentido: o fluxo descontnuo e sempre imprevisvel dos acontecimentos, regulados somente pela encadeao do fortuito e aleatrio, excluiria qualquer direcionalidade. A histria seria sempre uma narrativa nica de processos singulares, que contm em si mesmos, na sua unicidade e excepcionalidade, a sua essncia indivisvel. Logo, se conclui, que da ambio iluminista-cientificista-marxista, s poderia ter resultado uma monstruosidade, uma tirania totalitria como foi o estalinismo, que se autoproclamou agente da necessidade histrica que o futuro iria absolver. Os pressupostos tericos tm, portanto, uma instrumental utilizao poltica. 14 A passagem que se segue de Stephen Jay Gould, paleontlogo e divulgador cientfico, e contm

  • 27

    A revoluo terica que o marxismo trouxe para a

    Histria, e as Cincias Sociais, em geral, tambm foi uma mudana profunda

    de paradigma cultural: ele revelou, que existe uma explicao histrica para

    os desajustes e impasses, que dilaceram a sociedade humana. Afirma que as

    irreconciliveis contradies que dividem a humanidade, corresponderam a

    uma fase da evoluo, mas no so um destino maligno. Logo seria possvel

    tentar mudar o mundo, como expresso poltica de um projeto de vontades

    conscientes. Essa explicao no moral, embora a civilizao viva uma crise

    moral. O que provoca irritao contra o materialismo histrico no a

    afirmao da necessidade que ele traz, mas a promessa de liberdade que ele

    reivindica: ela se choca contra a fora de inrcia de sculos de prostrao

    politica, resignao moral, ceticismo ideolgico e fatalismo religioso,

    uma interessante observao sobre as resistncias enormes que todas as grandes revolues cientficas enfrentam. natural que a nfase esteja colocada na dificuldade e reservas profundas que uma parcela bastante significativa da humanidade mantm em relao teoria da evoluo. Mas ele talvez se engane quando conclui que se trata da revoluo cientfica que tem o mais radical impacto sobre a finalidade de nossa existncia. Tanto a revoluo freudiana quanto a marxista tocam em tecidos mais sensveis e nervos mais expostos. certo que na escala colossal das duraes da seleo natural, os acidentes bizarros da evoluo, as dizimaes em massa, os abismos genticos em que espcies mais duradouras que a nossa sucumbiram, enfim a completa ausncia de moralidade na natureza, uma vertigem desesperadora para a conscincia humana, porque coloca sob uma nova perspectiva a possibilidade da extino. Mas a maioria dos seres humanos vai dormir todos os dias sem perder o sono com a nossa solido csmica. J o medo dos atavismos do subconsciente, a angstia com as pulses mais elementares da condio humana, o pavor da morte, fazem estremecer os alicerces mesmos de uma sociedade que tem enormes dificuldades em aceitar a indivisibilidade de uma inteligncia que racional sendo emocional e emocional sendo racional. Por ltimo, os medos sociais esto de tal forma enraizados sob camadas de preconceitos de classe, raa e nao, que a idia mesmo da indivisibilidade da liberdade e igualdade, fundamento filosfico essencial do marxismo, desperta dios e frias irredutveis:No precisamos de nenhuma grande sagacidade filosfica ou cul-tural para reconhecer por que a revoluo darwiniana to difcil de aceitar e por que ainda est longe de ser concluida na acepo freudiana do termo. Creio que nenhuma outra revoluo ideolgica na histria da cincia teve um impacto to forte e direto sobre como concebemos o sentido e a finalidade da nossa existncia. (Algumas revolues cientficas, embora igualmente portentosas e inovadoras quanto reconstruo fsica, simplesmente no tm o mesmo impacto sobre a alma humana. Por exemplo, a geotectnica modificou completamente nossa maneira de encarar a histria e a dinmica da Terra, mas o fato de a Europa e as Amricas terem formado outrora um s continente ou de os continentes situarem-se sobre finas placas que flutuam sobre o magma terrestre pouco afetou a forma de as pessoas encararem o sentido de suas vidas.)Gosto de resumir o significado da destruio de pedestais da revoluo darwiniana, tal como eu o interpreto, na seguinte frase (que poderia ser entoada vrias vezes ao dia, como um mantra Hare Krishna, para ajudar a penetrar na alma): os seres humanos no so o resultado final de um progresso(...), e sim um pormenor csmico fortuito, um pequenino ramo da espantosa arborescncia da vida; se a semente fosse replantada, quase certo que no voltaria a produzir o mesmo ramo e, possivelmente, nenhum outro galho com uma propriedade que pudssemos chamar de conscincia (grifo nosso) (GOULD, Stephen Jay. Dinossauro no Palheiro. So Paulo, Companhia das Letras, 1997, p. 395)

  • 28

    profundamente sedimentados na cultura humana para justificar uma ordem de

    desigualdade social.

    Mas o mais importante a destacar, metodologicamente,

    que o materialismo histrico afirma que o estatuto de compreensibilidade

    dos fenmenos sociais radicalmente diferente do estatuto dos fenmenos

    naturais; que a dialtica entre necessidade e acaso, que para o fundamental,

    regula o movimento da evoluo na natureza, embora tambm opere na

    histria humana, mediada pelos crescentes espaos de liberdade que a

    humanidade conquistou: (a) seja pelo progresso material no domnio

    crescente dos recursos naturais, que subordina aos seus interesses, e que o

    liberta da tirania da escassez e da penria; (b) seja pelo relativo domnio que a

    nova primazia da poltica, a praxis social, ao longo dos ltimos dois sculos,

    veio permitindo, sobre as definies do seu futuro, e que poderia libert-la da

    tirania da explorao.

    Explicar esses dois processos, esse o lugar que o

    marxismo reservou Histria. Excesso de optimismo filosfico? Se o

    marxismo exagera ou no o lugar da praxis social, ou se acentua a tal ponto o

    lugar da luta de classes, como fora motriz do processo histrico, que se faz

    prisioneiro de uma viso voluntarista, uma questo polmica muito atual.15

    Reconhecer o lugar da incerteza no o mesmo que

    confundi-la com a indeterminao. Os que desprezam o momento do

    consciente na Histria, por esse caminho, fazem, talvez involuntariamente, o

    elogio do triunfo da natureza sobre a Histria. Mas o fortuito , sua maneira,

    um determinismo ainda mais naturalista, porque essa , strictu sensu, a

    dialtica do movimento da natureza. Certo, admitamos, ela no tem

    direcionalidade. Mas a fora da necessidade opera na natureza em graus

    incomensuravelmente superiores aos condicionamentos que impe

    15 As margens dos espaos da vontade consciente ainda so estreitas? Certamente. A auto-emancipao humana, ainda no , seno, uma fugidia miragem de esperana, em um mundo ameaado por exploses de irracionalismo cego, que podem ameaar a prpria espcie de autodestruio? Sem dvida. O livre arbtrio, democraticamente autoconstitudo, ou seja a ao consciente dos sujeitos sociais, opera, ainda, em um terreno muito limitado, por todo tipo de coeres? Com certeza. Mas tambm certo que a histria humana no pode ser explicada, pela sucesso de acasos aleatrios, o

  • 29

    civilizao. Portanto os indeterministas se vem prisioneiros de uma insolvel

    armadilha: so mil vezes mais objetivistas do que o marxismo. 16

    caos como nica regularidade: os que se rebelam contra o lugar da necessidade na histria, no se do conta, que o que colocam no lugar do marxismo, o imprio do acidental. 16 A frmula do socialismo cientfico soa, no entanto, envelhecida ou at irritativa nesse final de sculo. Essa discusso tem uma histria, tambm, no interior do marxismo, que remonta aos esforos de Engels, depois da morte de Marx, de demonstrar que a dialtica materialista seria o instrumento terico-lgico, que permitiria explicar, de forma mais apropriada, os fenmenos que governam, tanto as transformaes na natureza, quanto na sociedade, e, por essa via, afirmar a condio cientfica do marxismo. A crtica aos esforos de Engels, uma velha discusso filosfico-histrica, afirma que ele teria diminuido a especificidade da operao da dialtica na histria, no seu esforo de defesa do materialismo. E teria, assim, escorregado para excessos deterministas, e para uma leitura evolucionista do progresso. Se a diferena metodolgica entre essas obras filosficas de Engels e a aproximao de Marx questo so somente matizes ou no, uma questo muito discutida. A esse propsito, transcrevemos um fragmento de Ricardo Musse, que relocaliza bem o marco da preocupao de Engels, e explica as razes do seus excessos cientificistas: A adoo, por Engels, de uma mesma dialtica uniforme, abrangente o suficiente para compreender seja o andamento histrico seja o processo natural, no chamou tanto a ateno quanto a novidade da atribuio da natureza como pedra de toque da dialtica, em torno da qual concentrou-se, em grande parte, o debate na gerao de Korsch e Lukcs. A prioridade que a posteridade concedeu ao problema de uma dialtica do mundo natural, amplificada pela publicao, em 1925, dos fragmentos de um manuscrito indito de Engels, intitulado Dialtica da natureza, por mais parcial e anacrnica que possa parecer hoje, justifica-se ainda em pelo menos um ponto: o enfoque que Engels concedeu s cincias da natureza tornou essa questo uma mediao imprescindvel para uma clarificao da sua verso da dialtica e, por conseguinte, da forma pela qual estruturou o nexo entre mtodo e sistema. A ocupao de Engels com as cincias naturais(...) um enfrentamento hoje inslito para um marxista, visava estabelecer uma alternativa influncia exercida sobre o movimento operrio por parte de ideologias que se apresentavam como ecos da ltima novidade cientfica, em uma conjuntura em que se tornava cada vez mais patente a importncia das cincias naturais para o desenvolvimento do aparato produtivo. O prestgio, crescente e incontestado, dessas cincias prestava-se tanto a reativaes da insepulta filosofia da natureza, maneira do sistema filosfico de Dhring, quanto disseminao de variantes do materialismo francs do sculo XVIII, tarefa empreendida na Alemanha por Bchner, Vogt, Moleschott & cia. Paralelamente a isso, nos quadros da diviso do trabalho intelectual, sucedia-se uma modificao de vulto: as cincias naturais emancipavam-se da filosofia. Os textos de Engels, dirigidos simultaneamente ao operrio culto que acompanhava de longe o debate intelectual e ao cientista ainda indeciso acerca do teor do resultado do seu afazer, procuravam destacar, ao mesmo tempo -contra o filsofo natural- o novo arcabouo cientfico do conhecimento da natureza e -contra os materialistas vulgares- o carter dialtico das leis recm-descobertas. A condio para essa juno de cientificidade e dialtica ou, no vocabulrio de Engels, para a transformao das cincias metafsicas em cincias dialticas -ausente tanto no materialismo francs do sculo XVIII quanto na filosofia da natureza alem- foi o desenvolvimento, no decorrer do sculo XIX, de uma concepo histrica da natureza(...). Posto isso, ressalta-se o mtodo dialtico pela sua contribuio para a compreenso e fixao das leis gerais do movimento (em particular de suas trs leis gerais: passagem da quantidade qualidade, interpenetrao dos contrrios e negao da negao), base primeira de um esclarecimento do teor objetivamente dialtico da natureza. Para demonstrar a veracidade e a universalidade de tais leis, Engels, dado o carter indutivo-dedutivo do seu empreendimento, optou pela via de um acompanhamento exaustivo, isto , pelo procedimento infindvel de decifrao caso a caso das mais importantes descobertas da cincia em seu tempo.(grifo nosso) (MUSSE, Ricardo, De socialismo cientfico teoria crtica: modificaes na autocompreenso do marxismo entre 1878 e 1937, captulo A superao da filosofia; So Paulo, Tese de doutoramento apresentada FFLCH da USP, 1998)

  • 30

    Diz-se que foi Gramsci, quem cunhou a famosa frase,

    sobre a necessidade de unir o cepticismo da razo ao otimismo da vontade. O

    certo, que existe um nexo, pouco refletido, entre o tempo e os dilemas

    morais da condio humana. A histria no estuda a unicidade substantiva do

    tempo pelos mesmos olhos da fsica. As medidas cosmolgicas do tempo no

    so humanas, e por isso nos esmagam.

    Os tempos histricos so tempos subjetivos, ainda que

    nossos esforos de classificao estejam governados pela necessidade de

    comparabilidade. A apreenso das medidas do tempo , no entanto, sempre

    uma experincia subjetiva, logo falvel, sempre parcial e incompleta,

    subjugada possibilidade do erro. Os graus de incerteza so grandes, as

    margens de imprevisibilidade so largas. Essa incompreenso pode alimentar

    avaliaes equivocadas, em especial para os marxistas, sobre a verdadeira

    aferio dos tempos da transformao social. So os ossos do ofcio. Os

    revolucionrios expressam um projeto poltico que tem pressa.17

    Nos referimos aos tempos rpidos de nossa existncia

    quando, na verdade, queremos dizer que nos sentimos aturdidos pela

    intensidade dos acontecimentos. E s podemos viver a velocidade do tempo

    presente porque recebemos a informao em ritmos e volumes vertiginosos.

    17 Os ltimos 150 anos tm sido prdigos de exemplos de geraes de revolucionrios socialistas que generosamente foram vtimas do auto-engano em relao avaliao das situaes e conjunturas nas quais estavam chamados a atuar. A aferio das relaes de fora entre as classes com certeza uma das questes decisivas do abecedrio marxista, o que no impediu que os erros facilistasou ufanistas tenham sido recorrentes. em um certo sentido, nem Marx, nem Engels ficaram imunes a esse tipo de erros, o que pode ser tambm, em alguma medida, reconfortante. A seguir uma arguta e fina localizao do tema, das medidas subjetivas do tempo, e da pressa dos revolucionrios: A sofreguido de Marx e Engels no difcil de explicar. A expectativa de realizao de um ideal revolucionrio no pode ser postergada para alm da vida do revolucionrio. Se este no tiver em vista a possibilidade do xito do seu esforo ainda em sua gerao, estar, na verdade, adotando um credo religioso. A esperana da realizao de um ideal pelas geraes seguintes equivale f na vida aps a morte, crena no sobrenatural. O revolucionrio luta para que ele prprio e seus contemporneos faam a revoluo. E se convence de que sua perspectiva acertada. Marx e Engels se distinguiram dos utopistas sectrios pelo projeto de elaborao de bases cientficas para o objetivo comunista e pelo encaminhamento do movimento operrio no sentido da luta poltica. Mas se identificavam com eles no que se refere paixo revolucionria(...) O que sucede que, ao lutar pelo triunfo revolucionrio em seu proprio tempo, os revolucionrios, no melhor dos casos, contribuem para que a revoluo triunfe em algum tempo. No deles ou no dos seus sucessores.(grifo nosso) (GORENDER, Jacob, Marxismo sem Utopia, So Paulo, tica, 1999, p.16)

  • 31

    Mas, na verdade, o tempo de uma vida humana

    dramaticamente escasso, e vivemos com irremedivel angstia a perspectiva

    da finitude. Aprendemos a conviver com a presena da morte para poder

    definir as dimenses do tempo de uma vida. Sendo, portanto, os limites de

    nossa existncia inflexveis, esse o nico inexorvel que no merece

    discusso. O tempo assim a medida humana do sentido da vida e, portanto,

    tem uma dimenso moral. Este o inelutvel absoluto da condio humana.

    E, por isso, os fatalismos exercem uma fora de atrao to poderosa. Assim,

    o destino, , ainda hoje, um ponto de apoio, que oferece uma explicao para

    uma busca de sentido para a vida, para a maioria dos seres humanos. Mas a

    idia do destino no seno a necessidade de resposta antecipao do

    futuro, ou seja, do tempo que ser: a imagem que temos do que seria um

    futuro desejvel define, portanto, a nossa atitude em relao ao presente e o

    nosso julgamento do passado. A existncia do homem, como ser social, est

    na raiz de uma identidade como ser moral, mas a moral sendo uma

    construo histrica tem na viso do tempo uma das medidas que expressa

    os valores de uma civilizao.18

    tambm por isso que o materialismo histrico

    reconhece que o progresso a substncia da histria, e uma medida das

    periodizaes e classificaes: compreender o tempo do mundo para

    transform-lo. Substncia, mas no o sentido. A Histria tem sido a aventura

    humana que escapa tentao de pr-determinao de direcionalidade. A

    imprevisibilidade governa o desenlace de lutas titnicas que esto sempre

    18 O tempo no pra, mas a compreenso do tempo, tambm, muda. O sacrifcio do presente em troca de uma recompensa no futuro (seja ela moral, a salvao, ou material, o enriquecimento) uma escolha moral. Tambm o elogio do tempo presente, como a nica medida da experincia humana, a renncia ao amanh,