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Anne Perry - Série Pitt 23 - Os Segredos de Connaught Square

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Esse e-book foi traduzido, revisado e formatado pela equipe doProjeto Democratização da Leitura e Projeto Revisoras Traduções.

 

 Anne PerrySérie Thomas Pitt, Livro 23

Os Segredos de Connaught Square

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 Anne Perry – Thomas Pitt 23 – Os Segredos de Connaught Square 

Informações 

 Autor (a): Anne Perry

Título da Série: Thomas Pitt

Título da Série Traduzido: Thomas Pitt

Livro, Título Traduzido: Livro 23, Os Segredos de Connaught Square

Título Original: Seven Dials

 Ano: 2003

Sinopse 

Pitt, agora o suporte principal da Brigada Especial de Sua Majestade, é chamado

para Connaught Square mansão onde o corpo de um diplomata júnior jaz amontoado em

um carrinho de mão.

Perto permanece o inquilino da casa, a mulher bonita e notória egípcia, Ayesha

Zakhari, que cai debaixo da sombra de suspeita.

 As ordens de Pitt são para proteger - a todo custo - o bom nome da terceira pessoa

no jardim, o ministro de gabinete sênior, Saville Ryerson.

 A jornada do Pitt o leva para Alexandria e depois para Londres, para o cortiço de

Seven Dials, e para uma sala de tribunal abarrotada. Os segredos chocantes são

revelados...

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 Anne Perry – Thomas Pitt 23 – Os Segredos de Connaught Square 

Sobre a Autora 

 Anne Perry nasceu em Blackheath, Inglaterra, em 1938. Sua escolarização foi

interrompida em várias ocasiões pelas freqüentes mudanças de domicílio e sucessivas

enfermidades, que a ajudaram a dedicar-se à leitura apaixonadamente.

Seu pai trabalhou como astrônomo, matemático e físico nuclear. Ele foi quem a

animou a dedicar-se à escrita. Demorou vinte anos para publicar seu primeiro livro.

Durante todo este tempo teve diferentes trabalhos para poder viver e dedicar-se ao

que realmente era sua paixão: escrever.

Sua primeira novela sobre a série do inspetor Pitt, editada em 1979, foi Crimes do

Cater Street, publicada também nesta coleção.

 Anne Perry se consagrou como consumada especialista na recreação dos claros

escuros, contraste e ambigüidades da sociedade vitoriana.

Sua série de novelas protagonizadas pelo inspetor Pitt e sua perspicaz esposa

Charlotte é seguida por milhões de leitores em todo mundo.

Dedicatória 

Dedicado ao Doriss Platt, por nossa amizade

 Anne Perry

Créditos 

Disponibilização: PRTRevisão Inicial: Edith Suli

Revisão Final: PDL

Formatação: PDL

Logo / Arte: Projeto Revisoras Traduções e PDL

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Capítulo 1 

Pitt abriu os olhos, mas os golpes não cessaram. Através das cortinas entrava a

primeira luz cinzenta do dia. Era princípios de setembro, ainda não tinham dado as seis da

manhã e alguém batia na porta.

 A seu lado, Charlotte se moveu ligeiramente em sonhos. O ruído não demoraria

para despertá—la também.

Pitt se levantou da cama, cruzou a toda pressa o quarto e saiu ao patamar. Desceu

correndo as escadas descalço, desprendeu seu casaco do cabideiro do vestíbulo e,

enquanto o punha, abriu o ferrolho da porta.

—Bom dia, senhor -disse Jesmond em tom de desculpa, com a mão ainda no ar,

pronta para bater de novo. Tinha uns vinte e quatro anos, tinham-no transferido

temporariamente de uma das delegacias de polícia de Londres à Brigada Especial, coisa

que considerava uma importante ascensão-. Desculpe, senhor – continuou-, mas o senhor

Narraway quer lhe falar imediatamente.

Pitt viu atrás de Jesmond a carruagem que esperava; o cavalo se movia nervoso e

expulsava o fôlego em forma de bafo.

—Está bem - respondeu irritado. O caso no qual trabalhava não era particularmente

interessante, mas quase havia resolvido; só ficavam por atar alguns fios soltos e não

queria que o distraíssem—. Entre. -Apontou com um gesto o corredor que conduzia à

cozinha—. Pode acender o fogão e pôr água a ferver, se souber como fazê-lo.

—Sinto muito, senhor, mas não há tempo - replicou Jesmond sombrio—. Não posso

lhe dizer do que se trata, mas o senhor Narraway disse que vá agora mesmo.

Jesmond permaneceu com resolução na calçada como se pelo fato de ficar parado

em seu lugar Pitt fosse dar-se mais pressa em estar preparado.Pitt suspirou e fechou a porta para que não entrasse o ar úmido do exterior.

Subiu as escadas ao mesmo tempo que tirava o casaco, e estava no quarto de

banho, vertendo água do jarro à bacia, quando Charlotte se endireitou na cama e afastou o

cabelo dos olhos.

—O que acontece? -perguntou a mulher.

Embora passassem mais de dez anos de matrimônio nos quais ele tinha trabalhado

primeiro na polícia e os últimos meses na Brigada Especial, já sabia. Começou a levantar-se da cama.

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—Não se mova - se apressou a dizer Pitt—. Não é necessário.

—Preparar-lhe-ei ao menos uma xícara de chá - respondeu ela, em pé no tapete

 junto à cama, sem lhe fazer caso—. Além disso, esquentarei água para que se barbeie.

Só serão vinte minutos.

Ele deixou o jarro, aproximou-se dela e a tocou com delicadeza.

—Teria pedido ao agente que o fizesse se dispusesse de tempo. Mas é urgente.

Melhor ficar na cama, quentinha.

Pitt rodeou a sua mulher com os braços e, atraindo-a para si, beijou-a ao menos

duas vezes.

Em seguida, voltou junto à bacia de água fria e começou a lavar-se, preparando-se

para apresentar-se ante Victor Narraway, que, pelo que ele sabia, era o chefe do Serviço

Secreto do enorme Império da rainha Vitória. Se havia alguém acima dele, Pitt não tinha

percebido isso.

 À essa hora mal havia movimento na rua. Era muito cedo para as cozinheiras e as

camareiras, mas as criadas, os engraxates e os lacaios já estavam em pé, colocando

carvão nas casas e recebendo todo tipo de pedidos de peixe, verdura e carne.

 As portas dos pátios estavam abertas e as copas se viam brilhantemente iluminadas

na escuridão anterior ao amanhecer.

Não havia muita distância do Keppel Street, onde vivia Pitt, em uma zona modesta

mas muito respeitável do Bloomsbury, até a discreta casa em que Narraway tinha nesse

momento seus escritórios, mas já era de dia quando entrou e subiu as escadas.

Jesmond ficou embaixo. Aparentemente, sua missão tinha terminado.

Narraway o recebeu sentado na grande poltrona que parecia levar consigo de uma

casa a outra.

Era um homem não muito corpulento, magro e robusto, ao menos oito centímetros

mais baixo que Pitt. Tinha cabelo moreno com as têmporas ligeiramente salpicadas de cãse os olhos tão escuros que pareciam negros.

Não se desculpou por tê-lo tirado da cama, como teria feito Cornwallis, o chefe do

Pitt na polícia.

—Cometeu-se um assassinato no Eden Lodge -lhe comunicou Narraway com

suavidade. Sua voz era grave e muito clara, a dicção perfeita—. Não nos concerniria se a

vítima não fosse um diplomata com pouca experiência e não especialmente destacado,

mas, além disso, morreu com um tiro no jardim da amante egípcia de um ministro dogabinete, e pelo visto este por desgraça se achava presente.

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Narraway olhou ao Pitt sem alterar-se.

Pitt respirou fundo.

—Quem lhe disparou? -perguntou.

Narraway nem sequer piscou.

—Isso é o que quero que você averigue, mas de momento e infelizmente parece

que o senhor Ryerson está comprometido, posto que a polícia não achou ninguém mais na

casa, à exceção dos criados, que dormiam. Pior ainda, quando chegou à polícia achou à

mulher tratando de desfazer-se do cadáver.

—Muito embaraçoso - concordou Pitt com secura—. Mas não vejo o que podemos

fazer. Se a mulher egípcia atirou nele, a imunidade diplomática não consegue encobrir um

assassinato, não é? Seja como for, nós não podemos influir nisso.

Pitt teria gostado de acrescentar que não tinha nenhum desejo ou intenção de

encobrir o fato de que um ministro do gabinete tivesse estado presente em um caso de

assassinato, mas temia muito que isso era exatamente o que Narraway ia pedir lhe que

fizesse, por alguma finalidade de força maior do governo, ou por preservar a segurança de

alguma negociação diplomática.

Pertencer à Brigada Especial tinha aspectos que desagradavam intensamente ao

Pitt, mas desde o caso do Whitechapel não restava muita escolha.

Tinham-no relevado do comando da delegacia de polícia do Bowl Street e tinha

aceito que o transferissem temporariamente à Brigada Especial para proteger a si mesmo

da perseguição que seguiu a sua denúncia do poder e os crimes do Círculo Interior.

Era também a única opção para ganhar a vida e manter a sua família empregando

suas aptidões.

Narraway lhe dirigiu um leve sorriso, reconhecendo certa ironia na situação.

—Limite-se a ir e averiguar, Pitt. Levaram a mulher à delegacia de polícia do

Edgware Road. Parece que a casa está no Connaught Square. Alguém está pagando umaboa soma por ela.

Pitt fez rilhar os dentes.

-O senhor Ryerson, imagino, se ela for realmente sua amante. Suponho que não o

diz você à ligeira.

Narraway suspirou.

—Vá e averigue-o, Pitt. Precisamos saber a verdade antes de fazer algo a respeito.

Deixe de sopesar e julgar, e vá cumprir com seu dever.

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—Sim, senhor - respondeu Pitt com aspereza e permaneceu uns instantes mais

erguido antes de virar sobre seus calcanhares e sair, colocando as mãos até o fundo dos

bolsos de sua jaqueta e deformando-a.

Pitt pôs-se a andar pela rua em direção oeste para o Hyde Park e Edgware Road,

com a intenção de deter uma carruagem de aluguel assim que visse uma.

Começava a haver mais pessoas ao redor e mais tráfego pelas ruas. Passou junto

a um jovem vendedor de jornais com a última edição que anunciava em manchetes à

ameaça de greves nas fábricas de algodão do Manchester.

Fazia tempo que havia mostras de descontentamento e a situação parecia estar

piorando. O algodão era a principal indústria de todo o noroeste e, de um modo ou outro,

dezenas de milhares de pessoas ganhavam a vida com ele.

O algodão em ramo se importava do Egito, tecia-se, tingia e convertia em produto

manufaturado ali na Inglaterra, e voltava a vender-se a todo mundo.

Uma greve teria amplas e profundas conseqüências.

Na esquina havia uma mulher que vendia café. O céu estava tranqüilo e imóvel,

coberto de nuvens desfiadas, mas fazia frio e Pitt gostava de tomar algo quente.

Era provável que não tivesse tempo para tomar o café da manhã, assim se deteve.

—Bom dia, senhor — saudou-a alegremente e ao sorrir deixou ver dois ocos em sua

dentadura—. Um dia lindo, senhor. Mas faz um pouco de frio, né? Que tal um café para

começar a manhã?

—Sim, por favor.

—São dez pennies, senhor.

 A mulher estendeu uma mão nodosa, com os dedos escuros dos grãos de café.

Pagou-lhe e aceitou em troca a bebida quente; em seguida, ficou ali, bebendo

devagar para não queimar a boca, pensando como abordar à polícia quando chegasse à

delegacia de polícia do Edgware Road.Incomodaria-lhes que se intrometesse. Sabia como se sentiu ele mesmo quando

esteve à frente do Bowl Street.

Bem ou mal, queria encarregar-se pessoalmente dos casos e que suas decisões

não se vissem anuladas pelas dos oficiais superiores, que conheciam menos a zona e as

provas, e nem sequer tinham tratado com as pessoas implicadas, por não falar de

interrogá-las.

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Os casos dos que se ocupara até então na Brigada Especial tinham sido em grande

medida preventivos: dar com indivíduos que provavelmente causariam conflitos, violência,

intimidação, incitando aos desamparados, famintos e empobrecidos a amotinar-se.

De vez em quando seu trabalho tinha consistido em localizar a um anarquista ou

terrorista em potencial.

 A Brigada Especial foi criada a princípio para lutar com o problema irlandês, e tinha

tido certo êxito, ao menos em manter a violência sob controle. Na atualidade seu encargo

era combater qualquer ameaça contra a segurança do país, de modo que certamente a

queda de uma importante personalidade do governo podia considerar-se dentro dessa

categoria.

Terminou seu café e devolveu a xícara à mulher, lhe agradecendo, e seguiu

andando pela calçada. Percorreu os últimos metros correndo ao ver uma carruagem de

aluguel vazia deter-se no cruzamento, e fez gestos ao cocheiro.

Na delegacia de polícia do Edgware Road, um tal inspetor Talbot levava o caso e

recebeu ao Pitt em seu escritório com uma impaciência mal dissimulada.

Era um homem de meia estatura, magro como um galgo, com uns olhos tristes de

um azul ligeiramente esvaído. Ficou em pé atrás de seu escrivaninha, coberto de montões

de informes escritos lindamente à mão, e olhou fixamente ao Pitt, esperando que falasse.

—Thomas Pitt da Brigada Especial - se apresentou Pitt lhe estendendo seu cartão.

O rosto do Talbot se escureceu, mas fez um gesto ao Pitt convidando-o a sentar-se

em uma das rígidas cadeiras de espaldar duro.

—É um caso claro - disse o inspetor de modo peremptório—. As provas não se

prestam a equívocos. Achou-se à mulher com o cadáver, enquanto tratava de transladá-lo.

Foi sua pistola que disparou a bala e estava no carrinho de mão junto ao corpo.

Graças à rápida reação de alguém, pilhamo-la com as mãos na massa.

 A expressão do rosto do Talbot era de provocação, desafiando ao Pitt a contradizerfatos tão claros.

— A reação de quem? -perguntou Pitt, mas lhe fez um nó no estômago ao intuir já

uma espécie de impotência.

Seria simples, comum e desagradável, e, como havia dito Talbot, não havia forma

de evitá-lo.

—Não sei - respondeu Talbot—. Alguém deu o alarme assim que ouviu os disparos.

—Como deu o alarme? -perguntou Pitt, notando como despertava ligeiramente suacuriosidade.

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—Por telefone - lhe esclareceu Talbot, captando imediatamente o que queria dizer

Pitt. — Isso reduz bastante a lista, não é? Antes que me pergunte, não sabemos quem foi.

Não deu seu nome; além disso, estava tão assustado que sua voz soou rouca e lhe

tremia tanto que o operador não soube dizer com segurança se era homem ou mulher.

—Então se achava o bastante perto para ouvir os disparos - concluiu imediatamente

Pitt—. Em quantas casas a cem metros no entorno de Eden Lodge têm telefone?

Talbot contraiu a boca em uma expressiva careta.

—Em mais do que se imagina. Em um raio de uns cento e cinqüenta metros,

provavelmente haverá quinze ou vinte. É um bairro muito bonito, de pessoas enriquecidas.

Tentaremos averiguar, é claro, mas o fato de que o informante não nos deu seu

nome significa que não quer implicar-se. -O inspetor deu de ombros—. Lástima.

Pode ser que visse algo, mas suponho que é mais provável que não fosse assim.

Encontraram o corpo no jardim, bem escondido entre arbustos que ainda não tinham

perdido as folhas e mal tinham começado a trocar de cor. Louros e arbustos pelo estilo,

plantas de folha perene.

— Mas o acharam logo? -indicou Pitt.

—Era impossível deixar de vê-lo  –  respondeu Talbot com tristeza—. Ela estava lá

com um vestido branco e o homem morto estendido em um carrinho de mão frente a ela,

como se acabasse de lhe soltar os braços para ouvir aproximar-se do agente.

Pitt tratou de imaginar a cena: o profundo negrume do jardim no meio da noite, a

folhagem densa, a terra úmida, uma mulher com um traje de noite e um cadáver em um

carrinho de mão.

—Não há nada que possa fazer você - assegurou Talbot, interrompendo seus

pensamentos.

—É possível. -Pitt se negou a ser despedido—. Mencionou uma pistola?

—Sim. Ela reconheceu que era dela. Era mais sensato que tentar negá-lo. Umabonita arma, com a culatra esculpida. Ainda estava quente e cheirava a pólvora.

Não há dúvida de que foi a arma que matou à vítima.

—Não poderia ter sido um acidente? -perguntou Pitt, apesar de não albergar

verdadeiras esperanças.

Talbot grunhiu fracamente.

— A vinte metros, talvez, mas dispararam a queima roupa. E o que estaria fazendo

uma mulher com uma arma no jardim às três da madrugada, a não ser que fossedeliberado?

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—Dispararam nele, fora? -inquiriu Pitt rapidamente, com a idéia de que Talbot

estivesse dando por assentado alguns fatos e talvez equivocado-se.

Talbot esboçou um sorriso, torcendo ligeiramente o gesto.

—Ou isso ou o deixaram deitado ali fora bastante tempo, porque havia sangue no

chão. E dentro da casa não havia ninguém, por certo. -O inspetor tinha a expressão tensa,

os olhos pálidos e brilhantes—. Não é fácil explicar, não é verdade?

Pitt não disse nada. Que diabos esperava Narraway que fizesse ele? Se a amante

do Ryerson tinha atirado nesse homem, não havia motivos para que a Brigada Especial

considerasse sequer protegê—la, e menos ainda que mentisse para fazê-lo.

—Quem era a vítima? -quis saber então Pitt.

Talbot se apoiou contra a parede.

—Surpreende-me que não me tenha perguntado isso antes. Edwin Lovat, ex-

tenente do exército e diplomata ajudante com, ao que parece, uma boa folha de serviços e,

até ontem à noite, um futuro prometedor à frente.

De família respeitável, sem nenhum inimigo que tenhamos descoberto até a data,

nem dívidas que nós saibamos.

O inspetor se interrompeu, esperando que Pitt lhe fizesse a seguinte pergunta.

Pitt dissimulou sua irritação.

—E por que ia querer disparar contra ele essa mulher egípcia, dentro ou fora de sua

casa? Suponho que está descartado que o homem tratasse de entrar pela força.

Talbot arqueou de repente as sobrancelhas, franzindo o sobrecenho.

—Por que demônios ia fazê-lo?

—Não tenho nem idéia -respondeu Pitt tenso—. Por que ia estar ela no jardim com

uma arma? Nada disto tem sentido!

-Oh, é claro que tem! -replicou Talbot com veemência, inclinando-se para diante e

apoiando os cotovelos na escrivaninha—. Serve no exército no Egito! Em Alexandria, paraser exato. Que é de onde procede ela. Quem sabe o que acontece na cabeça das

mulheres de lá.

Não são como as mulheres brancas, já sabe. Mas ela subiu no escalão. É a amante

de um ministro do gabinete, um deputado pelo Manchester, onde temos neste dia todo o

conflito do algodão.

Ela não dispõe de tempo para um soldado que está no degrau mais baixo da

carreira diplomática.

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 Atreveria-me a dizer que ele se negou a aceitar uma negativa por resposta, e ela

não quis que ele interferisse em seu novo idílio e contrariasse ao senhor Ryerson com

histórias do passado.

—Há alguma prova nesse sentido? -perguntou Pitt.

Estava zangado e queria demonstrar ao Talbot que tinha preconceitos e era pouco

exato, mas o inspetor não lhe desagradava de tudo; de fato, não lhe desagradava

absolutamente.

O homem enfrentava uma tarefa em que não poderia agradar a seus superiores

nem seguir mantendo a honra.

Tampouco poderia conservar a confiança que tinham depositado nele os homens a

suas ordens, com os que teria que seguir trabalhando quando terminasse o caso.

—É claro que não as há! -exclamou Talbot—. Mas aposto o que queira a que se a

Brigada Especial ou outros como eles não se intrometem nem põem travas, terá-as em

alguns dias. Só passaram quatro horas desde que se cometeu o crime!

Pitt sabia que estava sendo injusto.

—Como o identificou? -perguntou a seguir.

—Tinha cartões com ele - se limitou a dizer Talbot, se erguendo de novo—. Ela

pensava em se desfazer do cadáver. Não se tinha incomodado sequer em tirá-los.

—Isso é o que lhe disse ela?

—Pelo amor de Deus, homem! -estalou Talbot—. A surpreenderam no jardim com o

cadáver em um carrinho de mão! Que outra coisa ia fazer com ele? Não o levava ao

médico! Já estava morto. Não chamou à polícia, como teria feito uma mulher inocente, mas

foi procurar o carrinho de mão do jardineiro, colocou-o nele e começou a empurrá-lo.

—Para ir aonde? -expôs então Pitt, tratando de imaginar o que tinha passado pela

cabeça da mulher, além da histeria.

Talbot parecia ligeiramente desconcertado.—Nega-se a falar -respondeu o inspetor.

Pitt arqueou um pouco as sobrancelhas.

—E o que há sobre o senhor Ryerson?

—Não o perguntei! -replicou Talbot—. E não quero saber! Ele não estava no lugar

do crime quando se chegou à polícia. Chegou uns momentos depois.

—Como diz? -perguntou Pitt com incredulidade.

Talbot se ruborizou.—Chegou uns momentos depois - repetiu o inspetor com obstinação.

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—Deu-se a casualidade de que passava por ali às três da madrugada, viu a luz da

lanterna do agente apontando à mulher com um cadáver em um carrinho de mão e se

deteve para ver se podia ajudar? -replicou Pitt com sarcasmo—. Chegou em uma

carruagem, da rua, suponho. Não saiu por acaso da casa em camisa de dormir!

—Não, não o fez! -exclamou Talbot com veemência e aceso seu fino semblante—.

Ia completamente vestido e chegou da rua.

—Sem dúvida sua carruagem ficou esperando—o, não é assim?

-disse que tinha vindo em uma carruagem de aluguel -respondeu Talbot.

—Com a intenção de visitar a dama, e a pegou totalmente despreparada! -observou

Pitt mordazmente—. E você acreditou nele?

— Acaso tenho outra alternativa? —Talbot ergueu a voz pela primeira vez e o

desespero transpassou sua frágil serenidade—. É ilógico, sei! É claro que já estava ali.

Em realidade veio das cavalariças, onde foi pôr os arreios a um cavalo, suponho, e

a enganchá-lo a uma carruagem ligeira, ou o que seja que ela tenha, para levar o cadáver

a algum lugar e desfazer-se dele. Estão a um tiro de pedra do Hyde Park, onde o poderiam

deixar.

É claro, antes ou depois do cadáver ter sido descoberto, mas não haveria nada que

os relacionasse a nenhum dos dois. Mas chegamos ali muito rápido. Nesse momento

Ryerson não estava no jardim com ela e a mulher não disse nada.

—E você não o pergunta ao Ryerson porque não quer saber - terminou Pitt por ele.

— Algo parecido - admitiu Talbot, com uma expressão furiosa e desventurada—.

Mas a Brigada Especial é muito livre de fazê-lo. Adiante! Vá e lhe pergunte.

Vive no Paulton Square, em Chelsea. Não sei em que número, mas o averiguará em

seguida. Não podem viver muitos ministros do governo ali.

—Falarei antes com a mulher egípcia. Como se chama?

— Ayesha Zakhari -respondeu Talbot—. Mas não pode vê-la. São ordens de cima, epor muito que você seja da Brigada Especial, não vou permitir se ela não implicou o senhor

Ryerson, de modo que não está dentro de sua competência.

Se a embaixada da mulher intervém, converterá-se em um problema do Ministério

de Assuntos Exteriores, ou do lorde chanceler, ou de quem é. Mas até agora não o fez.

Ela só é uma mulher normal que foi detida pelo assassinato de um ex-amante, e

está fora de toda dúvida que o fez ela.

 Assim são as coisas, senhor, e assim vão ficar, pelo que a mim respeita. Se vocêquer mudá-las, terá que fazê-lo em outra parte, mas não aqui.

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Pitt colocou as mãos nos bolsos de suas calças e achou um pequeno pedaço de

corda, meia dúzia de moedas, uma lanterna surda envolta em papel, dois pedaços soltos

de lacre, uma navalha e três alfinetes. No outro havia um caderno, o cabo de um lápis e

dois lenços. Passou-lhe pela cabeça que levava muitos objetos.

Talbot ficou olhando-o fixamente. Pela primeira vez Pitt viu medo em seu rosto.

Tinha motivos para o ter. Se se equivocasse, a favor ou contra Ryerson, nem tanto nos

fatos como em sua forma de interpretá—los, afundaria-se.

Jogariam-lhe a culpa, possivelmente dos enganos cometidos por outros, homens

mais poderosos e que tinham mais que perder que ele.

—Então, o senhor Ryerson está em sua casa? -perguntou Pitt.

—Que eu saiba, sim - respondeu Talbot—, Certamente aqui não está. Perguntamo-

lhe se podia nos ajudar em algum sentido e disse que não.

 Acrescentou que, em sua opinião, a senhorita Zakhari era inocente.

Que não achava que tivesse matado a ninguém a menos que a tivessem ameaçado,

em cujo caso não seria um crime. -O inspetor deu de ombros—. Eu mesmo podia ter

escrito tudo isso sem me incomodar em interrogá-lo.

Disse o único que podia dizer, que não sabia nada, que acabava de chegar, para

proteger a honra dela e demais. E, como disse, ela não negou que a arma fosse dela.

Interrogamos a seu criado e também o reconheceu. Era ele quem a mantinha limpa e

engraxada.

—Por que tinha essa mulher uma arma?

Talbot estendeu as mãos.

—Ou seja! Tinha-a e isso é o que conta. Olhe, senhor o agente Cotter a achou no

 jardim com o cadáver de um ex-amante metido em um carrinho de mão. Que mais quer de

nós?

—Nada - concedeu Pitt—. Obrigado por sua paciência, inspetor Talbot. Se houveralguma novidade voltarei. —Hesitou um momento, logo sorriu—. Boa sorte.

Talbot revirou os olhos, mas por um instante sua expressão se suavizou.

—Obrigado - respondeu o inspetor com um tom sarcástico—. Tomara pudesse me

desentender disto tão facilmente!

Pitt sorriu e se dirigiu à porta com uma entristecedora sensação de alívio. O pobre

Talbot podia ficar com o que quase com segurança só era uma tragédia doméstica, depois

de tudo, apesar do ministro do gabinete.

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 Anne Perry – Thomas Pitt 23 – Os Segredos de Connaught Square 

Mesmo assim, antes de voltar a apresentar-se ante Narraway para lhe dar parte,

decidiu passar pelo Eden Lodge e dar uma olhada, Connaught Square estava a menos de

dez minutos de distância e fazia uma manhã muito agradável. Havia mais vendedores

pelas ruas e se ouvia o tamborilar dos cascos dos cavalos.

No portal de uma grande casa, uma criada de uns quatorze anos sacudia com

entusiasmo um tapete vermelho e azul, levantando uma fina nuvem de pó ao sol. Pitt se

perguntou se só era vitalidade ou se o tapete representava a alguém por quem sentia

aversão.

Cruzou a rua, cujos paralelepípedos ainda brilhavam de orvalho, e lançou um penny

a um dos meninos que varria os excrementos quando era necessário.

Era muito cedo para que tivesse muito que fazer, de modo que se apoiou na

vassoura, com sua boina de lã com viseira, um par de talhe muito grande para ele,

colocada atrás das orelhas.

—Obrigado, senhor! -exclamou o moço sorrindo.

Eden Lodge era uma casa imponente em frente ao espaço aberto do Connaught

Square e com uma vista ainda mais ampla do cemitério do Saint George por detrás, no

fundo das cavalariças.

Seria interessante averiguar se a senhorita Zakhari era a proprietária ou só a tinha

alugada, e se era assim, a quem. Ou se não se tinham incomodado em ser tão discretos e

a alugava diretamente o próprio Ryerson.

Mas mais importante era ver o jardim onde tinham encontrado o cadáver. Para isso

era necessário percorrer a breve distancia até o final do quarteirão e, rodeando a casa,

dirigir-se à entrada traseira.

Junto às cavalariças havia encostado um agente de polícia e Pitt teve que

identificar-se para que lhe permitisse cruzar a grade que se abria a um jardim úmido e

frondoso de princípios de outono.Limitou-se a seguir o atalho, embora poucas provas poderia ocultar ou danificar.

O carrinho de mão de madeira seguia ali, com manchas de sangue no lado direito,

onde devia ter estado a pessoa que a tinha empurrado, e um atoleiro escuro, quase

congelado, no fundo. O homem morto estaria estendido de través, com a cabeça para esse

lado e as pernas para o outro.

Pitt se agachou para examinar com mais vagar o terreno. A roda se afundava uns

dois centímetros na terra, dando testemunho do peso do carregamento.

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O sulco que tinha deixado era profundo ao longo de quase três metros e a partir dali

havia rastros de por onde tinham empurrado o carrinho de mão vazio e onde o tinham

girado e carregado.

Ergueu-se e percorreu os escassos metros. Umas marcas débeis e indefinidas

mostravam onde se detiveram uns pés, mas era impossível saber de quantas pessoas se

tratava, e nem digamos sim eram de homem ou de mulher, ou de ambos.

Pelo terreno tinha esparramadas folhas caídas, ramos e algum ou outro calhau que

tinham deixado um rastro muito tênue do passo de pessoas.

Entretanto, quando Pitt olhou mais de perto, viu com bastante clareza os sinais de

sangue seco. Ali era onde tinha estado Lovat quando caiu.

Olhou ao redor. Entrou cinco metros no jardim, entre louros e rododendros, debaixo

da salpicada sombra de umas árvores que se erguiam muito acima destes.

Ficava totalmente oculto das cavalariças e, como era evidente, também da rua,

protegido pela própria casa.

Estava a uns cinco metros do muro de pedra que impedia de ver a entrada traseira

ao pátio e à copa, e mais adiante, do outro lado de uma franja de grama ladeada de flores,

havia uma porta-janela que se abria à parte principal da casa.

Que demônios tinha estado fazendo ali Edwin Lovat? Parecia improvável que

tivesse chegado pelas cavalariças com a intenção de entrar por aí, a menos que tivesse

combinado previamente com a mulher e esta o tivesse estado esperando atrás das portas-

 janelas.

Se ela não tivesse querido recebê-lo, lhe teria bastado não abrir a porta. Os criados

poderiam havê-lo despedido, ou expulsado se fosse necessário.

Se com efeito Lovat acabava de chegar, dava a desagradável impressão de que ela

o tinha feito ir ali deliberadamente com a intenção de matá-lo, posto que o esperava no

 jardim com uma pistola carregada.Do contrário, ele se dispunha a ir-se da casa depois de ter discutido com ela, e a

mulher tinha saído atrás dele com a pistola.

Quando tinha chegado realmente Ryerson? Antes dos disparos ou depois? Tinha

carregado ela sozinha o cadáver no carrinho de mão? Seria interessante averiguar a

constituição e a estatura tanto do morto como da egípcia.

Se ela o tivesse levantado, haveria sangue e talvez terra em seu vestido branco. Era

preciso fazer essas perguntas ao Talbot, ou talvez ao agente que primeiro chegou ao lugardo crime.

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Pitt voltou sobre seus passos e saiu de novo pela grade às cavalariças, onde achou

ao agente estirando um pouco as pernas de aborrecimento. Este se virou ao ouvir o trinco

da grade.

—Esteve de serviço ontem à noite ? -perguntou Pitt.

O homem parecia bastante cansado para levar muitas horas levantado.

—Sim, senhor.

—Viu como detinham a senhorita Zakhari?

—Sim, senhor. -Animou-lhe a voz com um princípio de interesse.

—Me pode descrever

O agente pareceu surpreso por um instante, logo franziu o sobrecenho com um

gesto de concentração.

—Era bastante alta, senhor, e muito magra. E estrangeira, é claro, muito

estrangeira. Era... bom, movia-se com muita elegância, mais que a maioria das damas,

não é que não o façam...

—Não se preocupe agente - respondeu Pitt—. Necessito que seja sincero, não que

tenha tato. O que pode me dizer do homem morto, que constituição tinha?

-Oh, mais corpulento que a maioria, senhor, e largo de costas. É difícil fazer uma

idéia exata de sua altura porque não o vi em pé, mas diria que um pouco mais alto que eu

embora não tanto como você.

—Levou o carruagem do necrotério?

—Sim senhor.

—Entre quantos homens o levaram?

—Dois, senhor. -O rosto do agente deixou transparecer compreensão—. Está

pensando que não pôde carregá-lo até o carrinho de mão ela sozinha?

—Sim, -Pitt apertou os lábios—. Mas seria mais prudente não expressar essa

opinião a outros, no momento. Ia vestida de branco, conforme me hão dito. É certo?—Sim, senhor. Uma espécie de vestido muito apertado, muito diferente dos que

levam a maioria das senhoras, ao menos as que eu vi. Muito bonito. -O agente se

ruborizou ligeiramente, considerando se era apropriado dizer que uma assassina era

bonita, e mais ainda sendo estrangeira. Mas se negou a acovardar-se. Um objeto mais

natural - continuou—. Sem... - levou uma mão ao outro ombro—… as mangas sanfonadas.

Mas bem deixava ver as verdadeiras formas de uma mulher.

Pitt dissimulou um sorriso.

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—Entendo. E estava manchado de barro ou esse sangue vestido branco?—um

pouco de barro, ou mais pó das folhas secas -concordou o agente.

—Por onde?

—Pelos joelhos, senhor. Como se se tivesse ajoelhado no terreno.

—Não havia sangue em sua roupa?

—Não, senhor. Não que eu visse. -Abriu muito os olhos—. Está dizendo que não o

carregou no carrinho de mão ela sozinha?

—Não, agente, acredito que isso o está dizendo você. Mas lhe agradeceria que não

o repetisse, a menos que lhe ponham em uma situação em que não fazê-lo exija mentir.

Não minta a ninguém.

—Não, senhor! Espero que ninguém me pergunte isso.

—Sim, isso seria o melhor - assentiu Pitt com veemência—. Obrigado, agente.

Como se chama?

—Cotter, senhor.

— Continua na casa o criado?

—Sim, senhor. Ninguém saiu desde que a levaram.

—Então entrarei para falar com ele. Sabe seu nome?

—Não, senhor. Uma pessoa de aspecto estrangeiro.

Pitt voltou a lhe agradecer e percorreu a breve distancia até a porta traseira. Bateu

com firmeza e esperou uns minutos antes que abrisse um homem de tez escura vestido

com roupa cor pedra.

Tinha boa parte da cabeça coberta com um turbante e a barba salpicada de cinza.

Seus olhos eram quase negros.

—Sim, senhor? -perguntou, na defensiva.

—Bom dia -saudou Pitt—. É você o criado da senhorita Zakhari?

—Sim, senhor. Mas a senhorita Zakhari não está em casa.  –disse-o em tomperemptório, como se pusesse fim a qualquer possível discussão. Era evidente que se

dispunha a fechar a porta.

—Estou informado disso! -exclamou Pitt com brusquidão. — Como se chama você?

—Tariq O Abd, senhor - respondeu o homem.

Pitt voltou a tirar seu cartão e o estendeu, dando por assentado que O Abd sabia ler

inglês.

—Sou da Brigada Especial. Acredito que a polícia já falou com você, mas precisolhe fazer algumas perguntas.

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—OH, entendo,

O criado abriu mais a porta e permitiu a contra gosto que Pitt cruzasse a copa e

subisse os degraus que levavam a uma cozinha onde fazia calor e flutuavam aromas

exóticos. Não havia ninguém mais ali.

Certamente O Abd cozinhava quando era necessário, e o resto do pessoal

doméstico acudia diariamente para ocupar-se da limpeza e a lavagem da roupa.

—  Quer um café, senhor? -perguntou O Abd com gentileza, como se a cozinha

fosse sua. Falou em voz baixa, quase sem acento.

—Sim, obrigado.

Pitt aceitou mais por curiosidade que porque de verdade gostasse.

Cheirava a especiarias e em uma bandeja perto da janela esfriava um pedaço de

pão com uma forma estranha. Em uma terrina, sobre a mesa, havia frutas maduras e

brilhantes que não lhe eram conhecidas.

 Abd mal demorou uns minutos em esquentar de novo o café e oferecer ao Pitt uma

pequena xícara, depois o convidou a sentar-se e lhe perguntou se estava cômodo.

Era um homem magro que se movia com silenciosa elegância, pelo que era difícil

fazer uma idéia de sua idade, mas a curtida pele de suas mãos levou ao Pitt a calcular

mais de quarenta, talvez rondando os cinqüenta.

Pitt lhe agradeceu pelo café e tomou um gole. Era quase tão espesso como um

xarope e não gostou muito, mas se limitou a adotar uma educada expressão de

circunstâncias.

—O que ocorreu aqui ontem à noite? -perguntou.

O Abd ficou em pé, de modo que Pitt se viu obrigado a levantar a vista para olhá-lo.

—Não sei, senhor - respondeu o criado—, despertou um ruído e me levantei para

ver se a senhorita Zakhari tinha chamado, mas não a encontrei em nenhuma parte. -

Vacilou.—Sim? -insistiu-O Pitt.

O Abd olhou ao chão.

— Apareci na janela, mas não vi nada na parte dianteira, de modo que me dirigi à

parte traseira e vi que algo se movia através dos arbustos, esses que têm as folhas lisas e

brilhantes.

Esperei uns momentos, mas não se ouvia nada mais e não havia motivos para

supor que ocorresse nada fora do normal. Pensei que talvez me tivesse despertado o ruídoda porta.

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—O que fez então?

O criado ergueu os ombros muito ligeiramente,

—Não me necessitavam, senhor. Voltei para a cama. Não sei quanto tempo passou

até que ouvi vozes e a polícia me fez descer.

— Mostraram-lhe uma arma?

—Sim, senhor.

—E lhe perguntaram de quem era?

—Sim, senhor. Disse que era da senhorita Zakhari. - baixou de novo a vista ao

chão—. Então ainda não sabia para que se utilizara. Mas eu sou quem a limpa e a

engraxa, assim a conheço bem.

—Por que tem uma arma a senhorita Zakhari?

—Não me corresponde fazer tais perguntas, senhor.

—E não sabe?

—Não, senhor.

—Já. Mas saberá se ela a tinha utilizado em alguma ocasião, posto que você a

limpa.

—Não, senhor, nunca a tinha utilizado.

—Obrigado. Conhecia você o tenente Lovat… o morto? 

—Não acredito que tenha estado aqui antes.

Isso não era o que Pitt tinha perguntado e se deu conta da evasiva. Era deliberada,

ou simplesmente o homem falava um idioma que não era o seu?

—Tinha-o visto com antecedência?

O Abd baixou os olhos.

—Nunca o tinha visto, senhor. Soube que a polícia soube quem era pela roupa e o

que levava nos bolsos.

De modo que não tinham perguntado a O Abd se tinha visto o Lovat antes. Isso erauma omissão, mas talvez não tivesse tanta importância.

 Ao fim e ao cabo, era o criado da senhorita Zakhari, posto que sabia que a

acusavam de havê-lo assassinado, provavelmente negaria conhecê-lo de todo modo.

Pitt bebeu seu café e se levantou.

—Obrigado por me atender - disse, tratando de tragar o último gole de líquido doce

e enjoativo e tirar o sabor da boca.

—Senhor. - O Abd se inclinou ligeiramente, apenas um gesto.

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Pitt saiu pela porta traseira, agradeceu ao agente Cotter ao passar por seu lado e se

afastou pela ruela flanqueada de cavalariças até o Connaught Square, onde tomou um

coche de aluguel que o levaria de novo ao escritório do Narraway.

Narraway levantou a vista dos papéis que lia. Tinha o rosto um pouco carrancudo, o

olhar espectador.

—E então?

— A polícia deteve à mulher, Ayesha Zakhari, e deixou de lado a possível implicação

do Ryerson - resumiu Pitt—. Não estão investigando o assassinato muito exaustivamente

porque não querem saber a resposta.

Depois de dizer isto, aproximou-se e se sentou na cadeira situada frente à

escrivaninha.

Narraway tomou ar devagar e exalou.

—E qual é a resposta? -perguntou a seguir em voz baixa e muito serena.

O superior do Pitt permanecia completamente imóvel, como se estivesse tão

concentrado que não se atrevesse a distrair-se com o mínimo movimento.

Pitt se surpreendeu a si mesmo imitando-o, contendo-se de cruzar as pernas.

—Que Ryerson a ajudou, ao menos a tentar desfazer do cadáver - respondeu.

—Não me diga... -Narraway exalou de novo, embora sem dar sinais de sentir-se

menos tenso—. E que provas o demonstram?

—É uma mulher magra e usava um vestido branco - respondeu Pitt—. O homem

morto era alto e de compleição forte, mais do que o habitual.

Necessitaram-se dois empregados do necrotério para transportá-lo do carrinho até a

carruagem, embora, é claro, pode ser que tivessem mais cuidado de fazê-lo que quem

quer que seja que tratasse de desembaraçar-se dele.

Narraway assentiu, com os lábios apertados.

—Entretanto, o vestido branco não estava manchado de barro nem sangue -continuou Pitt—. Só tinha um pouco de pó das folhas secas por haver-se ajoelhado,

certamente ao lado de onde jazia ele.

—Entendo. -A voz do Narraway era tensa, quase inexpressiva—. E Ryerson?

—Não o perguntei - disse Pitt—. O agente se deu perfeita conta de por que o

perguntava e das conclusões óbvias. Quer que volte e o pergunte? Não tenho

inconveniente em fazê-lo, mas então...

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—Posso deduzi-lo sozinho, Pitt! -replicou Narraway—, Não, não quero que o faça,

ao menos no momento. -Piscou um instante e em seguida desviou o olhar à parede do

fundo—. Esperaremos ver o que acontece.

Pitt ficou imóvel, consciente de que em todo aquilo havia algo estranho, algum

detalhe que lhe escapava, informação valiosa a que não tinha acesso.

Narraway tinha calado algo. Tinha importância? Ou só eram seus anos de

experiência, uma sensação de inquietação e não um pensamento concreto?

Narraway também pareceu hesitar, depois o momento passou e voltou a levantar a

vista para o Pitt.

—Bem, continue! -apressou o superior, mas com menos aspereza que antes—. Me

disse o que viu e o que lhe comunicou o agente. Se for possível, deixaremos Ryerson à

margem. O seguinte passo o tem que dar a polícia. Vá a casa e almoce. Talvez lhe

necessite mais tarde.

Pitt se levantou sem afastar a vista de Narraway, que lhe sustentava o olhar com os

olhos brilhantes, diria-se que quase desprovidos de emoção, embora não cabia dúvida de

que só era por cobrir as aparências.

Pitt estava tão seguro disso como da carga elétrica que havia na habitação,

semelhante a que flutuava no ar um dia rude.

—Sim, senhor - disse em voz baixa, e com o olhar do Narraway ainda cravado nele,

saiu pela porta.

Era meio-dia quando chegou a sua casa. As crianças, Jemima e Daniel, estavam no

colégio e Charlotte e a criada, Gracie, achavam-se nesse momento na cozinha.

Mal abriu a porta e as ouviu rir. Sorriu para si enquanto se inclinava para tirar as

botas.

Os sons o envolveram como um bálsamo, vozes femininas, ruído de vasilhames,

estridente assobio da chaleira de água. A casa estava quente pelo fogão da cozinha echeirava a tecido de algodão recém lavado, ainda úmido, a madeira limpa do chão

esfregado e a pão assando.

Um gato de pelagem estriada saiu pela porta da cozinha e se estirou languidamente;

depois se aproximou correndo dele, com a cauda levantada em forma de sinal de

interrogação.

—Olá, Archie - saudou Pitt em voz baixa, acariciando-o enquanto o animal se

removia sob sua mão, apertando-se contra ele e ronronando—. Suponho que quer quecompartilhe meu almoço com você, né? -acrescentou—. Bom, vamos.

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Pitt se ergueu e se dirigiu sem fazer ruído à porta, seguido pelo gato.

Na cozinha, Charlotte estava tirando o pão da bandeja para que esfriasse e Gracie,

ainda miúda e magra apesar de já ter quase vinte anos, colocava no aparador galês a

baixela de porcelana azul e branca.

Percebendo sua presença antes de vê-lo, Charlotte se voltou com uma expressão

interrogante.

—Devo almoçar - respondeu ele sorrindo.

Gracie não perguntou nada. Não andava com circunlóquios uma vez que se

implicava. Não o considerava uma rabugice, mas parte de suas funções na hora de ajudar

e cuidar dele que se adotou quase desde que chegou à casa, aos treze anos, meio morta

de fome e com a roupa muito folgada.

Então levava o cabelo penteado muito esticado, deixando a descoberto sua carinha

radiante, e embora nessa época ainda não sabia ler nem escrever, era tão esperta como

qualquer um.

Depois tinha amadurecido, e se considerava a si mesma uma valiosa empregada do

detetive mais inteligente da Inglaterra, em realidade o mais inteligente do mundo, situação

que não teria trocado nem para servir à rainha em pessoa.

—Não se trata de novo do Círculo Interior, não é? -perguntou Charlotte com medo

na voz.

Gracie ficou paralisada, com os pratos nas mãos. Ninguém tinha esquecido essa

terrível organização secreta que havia custado ao Pitt sua carreira na polícia metropolitana

e quase também a vida.

—Não - negou Pitt imediatamente com firmeza—. Só é um assassinato doméstico...

—Viu incredulidade no rosto de sua esposa e acrescentou—: É quase seguro que o

cometeu a amante de um ministro do governo. E igualmente certo que ele estivesse ali, se

não nesse momento, sim justo depois, e a ajudasse a desfazer do cadáver.—OH, já vejo - disse ela, compreendendo em seguida—. Mas não saíram impunes,

não?

—Não. -Pitt se sentou em uma das cadeiras de madeira de espaldar reto e estirou

as pernas-. Deu o alarme um homem que ouviu os disparos e a polícia chegou a tempo

para surpreendê-la no jardim traseiro com o cadáver em um carrinho de mão.

Charlotte ficou olhando-o fixamente com ceticismo, logo viu por sua expressão que

não brincava.

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—Deve ser um maldito idiota - respondeu Gracie com franqueza—. Espero que não

lhe acusem de nada que seja importante para o governo ou estaremos todos em apuros!

—Sim -assentiu Pitt com veemência. O gato se sentou de um salto em seu regaço e

ele o acariciou distraído, percorrendo com os dedos o abundante pelo. —Receio que o

estaremos.

Gracie suspirou e começou a dispor na mesa os pratos que ele ia necessitar para o

almoço e lhe preparar uma xícara de chá. Charlotte se aproximou do fogão para cozinhar,

com uma expressão que deixava transparecer os conflitos que pressagiava.

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Capítulo 2 

Nos jornais vespertinos só tinha aparecido uma breve noticia sobre o achado do

corpo sem vida do Edwin Lovat em Éden Lodge; entretanto, na manhã seguinte

informavam do assassinato com todo luxo de detalhes.

— Aí o tem! -exclamou Gracie deixando The Time e o London Illustrated News na

mesa do café da manhã frente a Pitt—, Está em toda parte. Dizem que o fez a mulher

estrangeira e que o homem que morreu era muito respeitável e tudo isso. —Charlotte lhe

tinha ensinado a ler e era um obtenho do que se sentia extremamente orgulhosa.

Tinha-lhe aberto uma porta a novos mundos que até então nem sequer era capaz

de imaginar, mas, ainda mais importante, tinha a sensação de que podia enfrentar em pé

de igualdade com qualquer um intelectualmente, embora não socialmente. O que não

sabia, averiguaria-o. Sabia ler e, portanto, podia aprender —. Não dizem nada

absolutamente do homem do governo! -acrescentou.

Pitt pegou os jornais e se dispôs a folheá-los, desdobrando-os na mesa. Charlotte

continuava no andar de cima. Jemima entrou; parecia muito maior com o cabelo recolhido

em dois acréscimos e o avental do colégio sobre o vestido. Tinha dez anos e estava muito

dona de si mesma, ao menos na aparência. Era bastante alta para sua idade e os

pequenos saltos de suas botas aumentavam sua estatura.

—Bom dia, papai -disse recatadamente, detendo-se frente a ele e esperando sua

resposta.

Ele levantou o olhar e deixou o jornal a um lado, consciente de que a menina

necessitava sua atenção, sobretudo nos últimos tempos, depois que suas vidas correram

perigo por causa de sua aventura no Dartmoor, quando pela primeira vez foi incapaz de

protegê-los. O sargento Tellman o tinha feito extraordinariamente bem, até com risco deque o expulsassem da polícia.

Continuava na delegacia de polícia do Bowl Street sob as ordens de um novo

superintendente, um homem chamado Wetron que era frio e ambicioso, e com uma boa

causa; achavam que era um membro importante do Círculo Interior, possivelmente com o

olhar posto em chegar a dirigi-lo.

—Bom dia - respondeu muito sério, olhando-a.

—Diz algo importante? -perguntou ela, dando uma olhada ao jornal desdobrado namesa.

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Ele vacilou só um momento. De forma instintiva, seu primeiro impulso era proteger a

seus dois filhos, mas, sobretudo a Jemima, talvez porque era uma menina.

Entretanto, Charlotte lhe havia dito que as evasivas e o mistério eram muito mais

aterradores que os piores fatos, e doía sentir-se excluído, até pelos melhores motivos.

Jemima em especial quase sempre se dava conta de se a deixavam à margem.

Daniel tinha quase três anos menos que sua irmã e era muito mais independente,

preferia ocupar-se de seus assuntos e não era um espelho do estado de ânimo do Pitt.

Observava e escutava, mas não como o fazia ela.

—Não acredito que diga nada - manifestou ele com sinceridade.

—Falam de seu caso? -insistiu ela, olhando-O com solenidade.

—Não é um caso perigoso - a tranqüilizou Pitt, sorrindo enquanto o dizia—. Parece

que uma senhora deu um tiro a alguém e é possível que estivesse ali um homem

importante.

Temos que fazer tudo o que esteja em nossas mãos para nos assegurar de que ele

não se mete em problemas.

—Por que? -quis saber Jemima.

—Boa pergunta - concordou ele—. Porque está no governo e seria uma

vergonha.

—Deveria ter estado em outra parte? -observou ela, compreendendo-O no ato.

—Sim. Deveria ter estado dormindo em sua casa. Ocorreu no meio da noite.

—Por que a mulher atirou no homem? Tinha-lhe medo?

Era o pensamento mais claro para ela. Fazia apenas uns meses tinha

experimentado o que supunha levantar-se em plena noite, recolher os pertences e fugir em

uma carruagem puxada por um pônei bordeando o páramo na escuridão.

—Não sei, querida - disse ele, acariciando-lhe sua face firme e sem imperfeições—.

 Ainda não disse nada. Ainda temos que averiguar. É como o trabalho de polícia, o quefazia faz um ano, antes de ir ao Whitechapel. Não é nada perigoso.

Ela o olhou fixamente, tratando de decidir se seu pai lhe dizia a verdade ou não.

convenceu-se de que sim e lhe iluminou o rosto de satisfação.

—Bem.

Sem esperar mais, Jemima se sentou à mesa. Gracie lhe serviu um prato de papa

de aveia com leite e açúcar e a menina começou a comer.

Pitt voltou a prestar atenção ao jornal. O artigo do The Teme não deixava lugar adúvidas.

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 Anne Perry – Thomas Pitt 23 – Os Segredos de Connaught Square 

Publicava um elogioso obituário do Edwin Lovat no qual se lia que tinha sido um

distinto soldado antes que a enfermidade o obrigasse a voltar para a vida civil, em que

tinha aplicado de forma eficiente suas aptidões e experiência no Oriente Próximo no corpo

diplomático.

Tinha pela frente um brilhante futuro até que morreu à mãos de uma ambiciosa e

desumana mulher que se cansou de suas atenções, pois pretendia procurar uma clientela

mais rica e influente.

Não se mencionava o nome do Saville Ryerson, nem sequer se dava a entender.

Deixava-se à imaginação do leitor discernir que classe de clientes procurava Ayesha

Zakhari. O que ficava muito claro era a indiscutível culpa da mulher no crime e o fato de

que tinha que ser levada a julgamento e enforcada sem demora.

Pitt se inquietou pela ligeireza com que se dava por fato o ocorrido, mesmo sabendo

muito mais coisas que o autor do artigo.

Havia algo essencialmente absurdo em negá-lo, posto que a arma pertencia a

 Ayesha Zakhari e a tinham surpreendido tratando de desfazer do cadáver.

Ela conhecia homem, e não tinha dado nenhuma explicação, razoável ou não, sobre

o que aconteceu.

Talvez o que lhe irritava era que não se mencionasse ao Ryerson, assim como que

o jornalista não tivesse feito indagações sobre o caso e se apressou a tirar conclusões em

lugar de limitar-se a informar das provas.

Jemima olhou muito séria a seu pai. Lhe sorriu e viu como desaparecia a tensão de

seus ombros e lhe devolvia o sorriso.

Terminou de tomar o café da manhã e se levantou enquanto Charlotte e Daniel

entravam na cozinha. A conversa derivou para outros temas: o colégio, o que havia para

comer e se iriam à partida de criquet no sábado à tarde, desde que não o cancelassem

pela chuva, ou ao teatro ao ar livre do bairro.Seguiu uma discussão sobre o que podiam fazer se chovesse, que não terminou até

que as crianças foram ao colégio e Pitt se encaminhou ao escritório do Narraway.

Encontrou as salas vazias e fechadas, mas Jesmond, que esperava na rua, disse-

lhe que Narraway voltaria em menos de uma hora e se zangaria se Pitt não estivesse ali

esperando- o.

Pitt dissimulou sua impaciência pelo tempo perdido. Poderia ter estado fechando o

caso no qual trabalhava, antes que tivesse lugar o crime, que, pelo que ele via, nãoguardava nenhuma relação com a Brigada Especial.

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Passeou pela pequena sala que havia ao pé das escadas, dando voltas uma e outra

vez na cabeça a uma possível conexão, sem nenhum resultado.

Narraway chegou quarenta e cinco minutos mais tarde com expressão séria. Vestia

um traje cinza claro de corte impecável à última moda, com as lapelas altas, e um colete

de seda cinza debaixo.

—Entre- disse com brusquidão, abrindo a porta de seu escritório e deixando que Pitt

o seguisse.

Sentou-se atrás de sua escrivaninha sem dirigir nenhum olhar aos papéis que havia

nela e Pitt se deu conta de que já os tinha lido.

Tinha chegado cedo e saído pouco depois para ir a algum lugar importante, ao que

sabia de antemão que iria e para o que se vestiu em conseqüência. Tinha que tratar-se de

um alto cargo do governo.

Preocupava-lhes realmente o assassinato do Edwin Lovat ou que acusassem a

 Ayesha Zakhari? Ou tinha ocorrido algo mais?

Pitt se sentou na cadeira de frente.

Narraway tinha o rosto tenso, os olhos muito abertos e cheios de receio, como se

até em seu escritório houvesse algo do que proteger-se.

—O embaixador egípcio foi ontem à noite ao Ministério de Assuntos Exteriores -

disse medindo cuidadosamente as palavras. — Estes falaram por sua vez por telefone com

o senhor Gladstone e me pediram que fosse esta manhã.

Pitt esperou que seu superior seguisse falando sem interrompê-lo, sentindo um frio

cada vez maior em seu interior.

—Estavam à corrente do assassinato ocorrido no Eden Lodge ontem pela tarde -

continuou explicando Narraway—. Mas apareceu nos jornais vespertinos, de modo que

meia Londres se inteirou. -Voltou a guardar silêncio.

Pitt observou que seu superior tinha as mãos rígidas sobre a escrivaninha, os finosdedos duros.

—E a embaixada já sabia que tinham detido a Ayesha Zakhari -concluiu Pitt por

ele—. Como é cidadã egípcia, suponho que é natural que se interessem por seu bem-estar

e se assegurem de que está devidamente representada.

Eu esperaria o mesmo da embaixada britânica se me detivessem em um país

estrangeiro. Narraway torceu ligeiramente o gesto.

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—Esperaria que o embaixador britânico chamasse em seu nome o primeiro-ministro

desse país? Superestima-se, Pitt. Talvez um cônsul com poucos anos de experiência se

encarregaria de ver se lhe designaram um advogado, mas nada mais.

Não havia tempo para sentir-se envergonhado ou zangado. Saltava à vista que tinha

ocorrido algo que preocupava profundamente ao Narraway.

—É a senhorita Zakhari mais importante do que acreditam? -perguntou Pitt.

—Que eu saiba não -respondeu Narraway—. Embora isso propõe a questão. - Sua

expressão de ansiedade se acentuou. Abriu e fechou os dedos, para assegurar-se de que

ainda os sentia—. Nos expôs a questão da justiça. -Respirou fundo, como se lhe custasse

dizê-lo, inclusive ao Pitt—. O embaixador estava informado de que Saville Ryerson se

achava no Eden Lodge quando a polícia surpreendeu à senhorita Zakhari com o cadáver, e

quer saber por que não o detiveram também a ele.

Era uma pergunta totalmente razoável, mas não foi esse pensamento o que fez

estremecer ao Pitt.

—Como se inteirou? -perguntou. — Com certeza ninguém permitiu que ela ficasse

em contato com sua embaixada e dê essa informação. Além disso, não disse à polícia

quando a detiveram que estava sozinha? Quem o disse ao embaixador?

 A boca do Narraway se torceu em um sorriso amargo e lhe endureceu o olhar.

—Uma boa pergunta, Pitt. De fato, é a pergunta principal e não sei a resposta. Só

que não foi a polícia, nem o advogado da senhorita Zakhari, porque ainda não solicitou um.

O inspetor Talbot assegura que não respondeu mais pergunta nem mencionou a

ninguém o nome do Ryerson.

—O que se sabe sobre o agente que chegou primeiro ao lugar do crime? Cotter?

—Talbot o repreendeu severamente ao menos duas vezes, me acredite, e Cotter

 jura que não falou com ninguém de fora da delegacia de polícia além de você.  –Na voz do

Narraway não havia acusação, nem sequer dúvida.—Só fica nosso informante anônimo que ouviu os tiros e chamou à polícia - concluiu

Pitt—. Ficaria por ali para ver o que acontecia, assim certamente viu o Ryerson e o

reconheceu.

—Cabe pensar que não era a primeira vez que Ryerson visitava a casa - indicou

Narraway—. Pode ser que o tivessem visto com antecedência em mais de uma ocasião. -

Franziu o sobrecenho, com os dedos ainda rígidos em cima da mesa—. Mas se propõe

mais algumas perguntas interessantes, começando pelo motivo para dizer à embaixada doEgito, e não à imprensa, que quase com certeza pagaria ao informante.

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Pitt não disse nada e Narraway o olhou fixamente.

—Ou ao próprio Ryerson - acrescentou Narraway—, A chantagem poderia lhe haver

suposto uma boa soma de modo regular.

—Pagaria Ryerson? -perguntou Pitt.

No rosto do Narraway se refletiu uma expressão estranha: incerteza, tristeza, mas

também algo que era indubitavelmente doloroso. Apagou-a com esforço, concentrando-se

nos aspectos práticos da resposta.

—Em realidade o duvido, sobretudo, porque embora a senhorita Zakhari tenha

optado por negar que ele esteve ali, ficaria como mentiroso quando fosse aos tribunais,

porque à polícia consta que estava. É alguém fácil de reconhecer.

—É? Não acredito havê-lo visto nunca. -Pitt tratou em vão de lhe pôr rosto.

—É um homem corpulento -disse Narraway com voz muito baixa, um tanto

descarnada—. De mais de metro oitenta de estatura, largo de costas, robusto. Tem muito

cabelo grisalho e feições angulosas. De jovem foi um bom atleta.

Suas palavras estavam cheias de orgulho e, entretanto, pronunciou-as como se

tivesse que obrigar-se a fazê-lo, por uma questão de justiça antes que de vontade.

Por alguma razão pessoal se sentia obrigado a ser justo.

—Conhece-o, senhor? -perguntou Pitt.

Imediatamente desejou não havê-lo feito, embora fosse uma pergunta necessária.

 Algo no rosto do Narraway lhe deu a entender que se intrometeu.

—Conheço todo mundo - respondeu Narraway—. É parte de meu trabalho. E do seu

também.

Disseram-me que o senhor Gladstone deseja manter o nome do senhor Ryerson à

margem do caso, se for humanamente possível. Não especificou como quer que se faça e

suponho que não quer sabê-lo.

Pitt não pôde dissimular sua cólera ante a injustiça que isso supunha e lhe ofendeua insinuação de que devia tentá-lo.

—Muito bem! -replicou—. Então se nos vemos obrigados a lhe dizer que foi

impossível, não contará com informação para nos contrariar.

Não havia nem rastro de humor no rosto de Narraway; até a habitual ironia cortante

de seu olhar estava ausente. De algum modo, a situação abria nele uma ferida que ainda

não tinha cicatrizado o bastante para estar a salvo.

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—Sou eu quem deve responder ante o senhor Gladstone, Pitt, não você, e não

estou disposto a lhe dizer que fracassamos, a menos que possa demonstrar que era

impossível antes de começar.

Vá ver o Ryerson e fale com ele. Se tivermos que protegê-lo não podemos trabalhar

às cegas.

Preciso saber a verdade imediatamente e não posso esperar que nos revele isso,

pouco a pouco, a polícia. Ou o embaixador egípcio, que Deus nos livre!

Pitt ficou confuso.

- disse que o conhecia, Não seria muito melhor que falasse você com ele? Seu alto

cargo lhe impressionaria.

Narraway levantou o olhar com uma expressão irritada e os dedos de suas finas

mãos, apoiadas sobre a escrivaninha, ficaram brancos.

—Meu alto cargo não parece impressionar a você! Ao menos não o suficiente para

que obedeça sem discutir. Não lhe estou fazendo uma sugestão, Pitt, mas sim lhe estou

dizendo o que deve fazer.

E não tenho nenhuma intenção de me justificar. Devo dar contas ao senhor

Gladstone de meu êxito e responder de meu fracasso ante ele. Você me dá contas. -Sua

voz soou áspera—. Vá ver o Ryerson.

Quero saber tudo sobre sua relação com a senhorita Zakhari, e muito especialmente

o que ocorreu essa noite. Volte aqui quando puder, se puder ser amanhã.

—Sim, senhor. Sabe onde posso achar ao senhor Ryerson a esta hora do dia? Ou

deveria fazer indagações?

—Não, não faça indagações! -replicou Narraway com as faces acesas—. Não dirá a

ninguém salvo ao Ryerson quem é você, ou o que quer. Comece por sua casa do Paulton

Square. Acredito que é o número sete.

—Sim, senhor. Obrigado.Pitt ocultou seus sentimentos. Levantou-se, deu meia volta e saiu da sala,

aborrecido com a tarefa que lhe tinham encomendado, mas absolutamente surpreso.

O que não entendia era por que em um assunto tão importante para que estivesse

comprometido Gladstone, não ia Narraway pessoalmente ver Ryerson.

Não havia possibilidade de que o reconhecessem. À essa hora não haveria nenhum

 jornalista no Paulton Square, mas mesmo que o houvesse, Narraway não era um

personagem público que as pessoas conhecessem de vista.

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Devia haver algo, e importante, que Narraway lhe ocultava, e essa certeza o

incomodava.

Deteve um coche de aluguel e pediu ao condutor que o levasse ao Danvers Street,

que não estava longe do Paulton Square. Faria a pé o resto do trajeto.

Desde que estava na Brigada Especial tinha aprendido a tratar de passar

inadvertido.

Era uma precaução, nada mais. Desagradavam-lhe os subterfúgios, mas

compreendia que eram necessários.

 Antes de chegar aos degraus do número sete já tinha decidido como abordar a

quem lhe abrisse a porta do Ryerson.

—Bom dia, senhor - saudou inexpressivo um lacaio loiro com libré—. No que posso

ajudá-lo?

—Bom dia - respondeu Pitt, erguendo-se e olhando nos olhos ao criado—. Teria a

amabilidade de dizer ao senhor Ryerson que o senhor Victor Narraway lhe transmite suas

saudações e lamenta não poder vir pessoalmente visitá-lo, mas que me enviou em seu

lugar? Meu nome é Thomas Pitt. -Tirou seu cartão, o simples em que só aparecia seu

nome, e o deixou cair na bandeja prateada que segurava o lacaio.

—É claro, senhor - replicou o lacaio, sem olhar o cartão—. Quer esperar no salão da

manhã enquanto pergunto ao senhor Ryerson se pode recebê-lo?

Pitt assentiu sorrindo. Era uma resposta muito direta, e não o habitual eufemismo

com o que se fingia não saber se o senhor estava em casa.

O lacaio conduziu-o por um suntuoso corredor de um recarregado estilo italiano,

com as paredes de um quente terracota, bonitos bustos de mármore e bronze sobre

pedestais e quadros de cenas de canais que pareciam Canalettos autênticos.

O salão da manhã também era de tons quentes, com uma tapeçaria de deliciosa

fartura em uma das paredes que representava com o mais mínimo detalhe uma cena decaça, a erva em primeiro plano salpicada de pequenas flores.

Era um homem rico com um gosto pessoal.

Pitt teve que esperar dez minutos em um estado de grande tensão, tratando de

ensaiar mentalmente a conversa.

Dispunha-se a interrogar a um ministro do gabinete sobre questões sem dúvida

embaraçosas de sua vida pessoal, entre elas sua implicação em um crime. Tinha ido

averiguar a verdade e não podia permitir-se fracassar.

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Entretanto, tinha interrogado antes pessoas importantes sobre suas vidas, lhes

surrupiando quão feridas os tinham levado a cometer um assassinato. Era uma habilidade

que tinha.

Dava-se bem, inclusive era brilhante. Tinha colhido muitos mais êxitos que

fracassos. Não devia duvidar de si mesmo.

Deu uma olhada aos livros que havia em uma das estantes. Viu tomos do

Shakespeare, Browning, Marlowe e, um pouco mais separados, Henry Rider Haggard e

Charles Kingsley, assim como dois volumes de Thackeray.

De repente, Pitt ouviu abrir a porta e se voltou rapidamente.

Como havia dito Narraway, Ryerson era um homem corpulento que devia estar

rondando os sessenta anos, mas se movia com a ligeireza de alguém habituado ao

exercício físico e que desfrutava com ele.

Não lhe sobrava um grama de gordura, nem havia nele indícios de que cometesse

excessos ou se desse a boa vida.

Irradiava a segurança em si mesmo de alguém cujo corpo lhe responde. Estava

nervoso e um pouco cansado, mas mesmo assim em perfeito controle de suas emoções.

—Meu lacaio diz que vem de parte do Victor Narraway. -Pronunciou o nome com tal

indiferença que Pitt se perguntou imediatamente se era resultado de um esforço

deliberado—. Posso lhe perguntar a razão?

—Sim, senhor - respondeu Pitt com seriedade. Já tinha decidido que a franqueza

era a única maneira de conseguir seu objetivo, se é que tinha alguma possibilidade.

Qualquer subterfúgio ou ardil por sua parte que lhe saísse mal destruiria toda a

confiança—.A embaixada do Egito está à corrente de que se achava no Eden Lodge

quando dispararam contra o senhor Edwin Lovat e exige que também o interroguem sobre

sua participação nesses fatos.

Pitt contava com que, de entrada, Ryerson o negasse suavemente, e logo ficassetalvez como um galo de briga e se enfurecesse à medida que se apoderava dele o medo.

 A possibilidade mais desagradável seria a autocompaixão e que recorresse à

lealdade para escapar da vergonha de ter tido uma aventura amorosa que se tornara

amarga.

 Aterrava-lhe a lástima e a repulsão que isso suscitaria nele. Sentia frio só de pensá-

lo.

Não era por essa razão pela que Narraway se negou a acudir pessoalmente, se poracaso seu velho amigo tinha uma reação indigna ante ele, porque achava que era melhor

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para ambos que isso não ocorresse? Assim poderia ao menos seguir fingindo que não se

inteirara disso.

Entretanto, a reação do Ryerson não foi à esperada. Em seu rosto se traduziu

confusão e medo, mas não cólera nem fanfarronice.

—Cheguei ali justo depois - corrigiu ao Pitt—. Embora não tenho nem idéia de como

pode haver-se informado a embaixada egípcia, a não ser que lhes tenha informado a

senhorita Zakhari.

Pitt o olhou fixamente. Nem sua voz nem seu rosto refletiam indignação. Não

parecia acreditar na possibilidade de que ela o tivesse traído.

Por outra parte, segundo Narraway, a mulher não tinha mencionado em nenhum

momento seu nome. De fato, não tinha tido oportunidade de falar com ninguém, à exceção

dos agentes de polícia que a tinham interrogado.

—Não, senhor, não foi a senhorita Zakhari -respondeu Pitt—. Não falou com

ninguém desde que a detiveram.

—Necessita de um advogado -disse Ryerson imediatamente—. A embaixada

deveria ocupar-se disso, seria mais discreto que se o fizer eu, mas o farei se for

necessário.

— Acredito que seria muito melhor que não o fizesse! -respondeu Pitt, a quem o

tinha pegado despreparado semelhante idéia—. O remédio poderia ser pior que a

enfermidade -acrescentou—. Poderia me contar o que ocorreu essa noite, senhor, que

saiba?

Ryerson convidou ao Pitt a sentar-se em uma das grandes poltronas de couro,

depois se sentou frente a ele, mas não de forma relaxada, mas jogado ligeiramente para

frente, com o rosto completamente concentrado.

Não lhe ofereceu nada, não por falta de cortesia, mas sim porque era evidente que

não tinha pensado nisso. Estava absorto no problema e não tratou de dissimular.—Estive até muito tarde em uma reunião. Minha intenção era estar em casa da

senhorita Zakhari por volta das duas da madrugada, mas me atrasei. Quando cheguei

eram quase três.

—Como foi até aí, senhor? -interrompeu-o Pitt.

—Em carruagem de aluguel. Desci no Edgware Road e caminhei um par de ruas.

—Viu alguém sair do Connaught Square, fosse a pé, em carruagem particular ou em

carruagem de aluguel? -perguntou Pitt.

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—Não recordo ter visto ninguém. Mas não me fixei. Poderiam ter ido em qualquer

direção.

—Chegou ao Eden Lodge -insistiu Pitt—. Por onde entrou?

Ryerson se ruborizou ligeiramente.

—Pelas cavalariças. Tenho a chave da porta da copa.

Pitt tentou que sua expressão não refletisse seus pensamentos. Os julgamentos

morais não serviriam de nada e, além disso, tinha pouco direito a fazê-los.

Por estranho que parecesse, não sentia nenhum desejo de emitir julgamentos.

Ryerson não encaixava com a imagem que formara dele antes de conhecê-lo, e se via

obrigado a começar de zero, abrindo passagem com provas através de suas próprias e

contraditórias emoções.

—Entrou pela copa? -perguntou.

—Sim. -O olhar do Ryerson se turvou ao recordar —. Mas estava justo na porta

quando ouvi um ruído no jardim e voltei a sair. Quase imediatamente me encontrei com a

senhorita Zakhari, que estava muito alterada. -Tomou ar e exalou devagar —. Me disse que

tinham matado com um tiro a um homem no jardim. Perguntei-lhe se o conhecia e se sabia

o que tinha ocorrido. Disse-me que era o tenente Lovat, a quem tinha tratado levianamente

na Alexandria fazia vários anos. Era admirador seu então... -titubeou uns instantes

escolhendo as palavras, depois continuou, confiando em que Pitt o interpretasse a sua

maneira— e agora desejava reatar a amizade.

Ela se tinha negado, mas ele não quis conformar-se com um não.

Pitt adotou um tom neutro.

—Entendo, E o que fez você?

—Pedi-lhe que me levasse junto a ele e a segui até onde Lovat jazia no chão, meio

escondido sob os louros. Pensei que talvez não estivesse morto. Confiei em que ela o

tivesse encontrado inconsciente e talvez tivesse tirado precipitadamente essa conclusão.Mas quando me ajoelhei para examiná-lo, fez-se evidente que ela tinha razão. Tinham-lhe

disparado a queima roupa no peito, não havia nenhuma dúvida de que estava morto.

—Viu a arma?

Ryerson não desviou o olhar, mas claramente lhe supunha um esforço responder.

—Sim. Estava a seu lado no chão. Era a arma da Ayesha. Soube imediatamente,

porque a tinha visto antes. Sabia que ela a tinha, para proteger-se.

—Contra quem?—Não sei. Perguntei-lhe, mas não me quis dizer.

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—Pôde ter tido medo do tenente Lovat? -observou Pitt—. Tinha-a ameaçado?

Ryerson tinha o rosto tenso e o olhar abatido. Titubeou antes de responder.

— Acredito que não - disse por fim.

—Perguntou-lhe o que tinha acontecido?

—É claro! Disse que não sabia. Ouviu os tios e se deu conta de que tinham sido

muito perto.

Estava no andar de cima, esperando desperta e completamente vestida. Desceu

para ver o que tinha ocorrido, se por acaso havia alguém ferido, e achou Lovat deitado no

chão com a arma a seu lado.

Era uma história tão estranha que ao Pitt era quase impossível acreditar, e,

entretanto, enquanto olhava ao Ryerson, teve a certeza de que este acreditava, ou era o

melhor ator que jamais tinha conhecido. Falava com clareza, sereno, sem dramatismos.

Havia nele uma franqueza que se era artificiosa, parecia admirável. Confundiu ao

Pitt e o deixou em uma situação incômoda, absolutamente desconcertado.

—Então você viu o homem morto - recapitulou Pitt—. E sabia pela senhorita Zakhari

quem era. Tinha alguma idéia ela de que fazia ele aí ou de quem lhe tinha disparado?

—Não - respondeu Ryerson imediatamente—. Supunha que tinha ido vê-la, mas

isso era o mais claro. Não podia haver outra explicação. Perguntei-lhe se sabia o que tinha

ocorrido e me disse que não. —Falava de modo terminante e com uma convicção que ia

contra toda lógica.

—Não o havia convidado nem lhe tinha dado motivos para acreditar que seria bem

recebido? -pressionou Pitt, sem saber que tom adotar.

Irritava-lhe mostrar-se diferente; a situação era absurda e, entretanto, seu instinto o

fazia acreditar no ministro, inclusive compadecer dele em certo modo.

Ryerson apertou os lábios.

—Dificilmente ia convidá-lo à mesma hora que me esperava, senhor Pitt. É umamulher muito inteligente.

Não havia tempo para cumprimentos.

—Sabe-se de mulheres que as engenham para que os amantes sintam ciúmes,

senhor Ryerson - respondeu Pitt, e viu o Ryerson fazer uma careta—. É uma tática muito

antiga e pode dar bons resultados - continuou—. Naturalmente, a você o negaria.

—É possível - disse Ryerson secamente, mas em sua voz não havia cólera, mas

resignação—. Mas se você a conhecesse, não lhe passaria pela cabeça essapossibilidade.

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Seria absurdo, não só por seu caráter, mas também porque, se fosse esse seu

propósito, porquê demônios teria atirado nele?

Pitt tinha que admitir que isso carecia de sentido, até tendo em conta o

temperamento, a paixão ou um possível acidente.

Se Ayesha Zakhari era bastante lúcida para ter concebido de antemão tal plano, era

muito inteligente para haver-se comportado depois de forma tão insensata.

—Poderia havê-la ameaçado Lovat de algum modo?

—Não o convidou a entrar, senhor Pitt - respondeu Ryerson—. Não se se houver

alguma forma de demonstrá—lo, mas ele não entrou na casa.

—Mas ela estava fora - observou Pitt—. No jardim não teria podido defender-se

muito.

—Está insinuando que levou consigo sua pistola? —Nos lábios do Ryerson se

desenhou um esboço de sorriso. —Parece uma forma excelente de defender-se. E se

disparou porque ele a ameaçou ou inclusive a atacou, então seria um ato de defesa própria

e não um assassinato. -Logo o brilho de seus olhos se apagou—. Mas não é isso o que

ocorreu. Ela saiu pouco depois de ouvir o disparo e o achou já morto.

—Como sabe? -limitou-se a perguntar Pitt.

Ryerson suspirou e crispou o rosto de forma tão imperceptível que não lhe alteraram

as feições, só desapareceu todo vestígio de animação.

—Não sei —murmurou—. Isso é o que me disse ela e a conheço imensamente

melhor que você, senhor Pitt. —Havia tanta tristeza em suas palavras e uma emoção tão

intensa que Pitt se sentiu envergonhado. Tinha a sensação de intrometer-se e, entretanto,

não ficava mais remédio que estar ali—. Possui uma honestidade interior que irradia dela

como uma luz - continuou Ryerson—. Não se rebaixaria a mentir, nem em seu próprio

benefício, já que se sentiria mal consigo mesma, nem por ninguém.

Pitt o olhou fixamente. Ryerson estava preocupado; no fundo de seus olhos haviainclusive um vislumbre de medo autêntico, firmemente controlado, mas não era por ele por

quem temia.

Pitt nunca tinha visto a mulher egípcia. Tinha imaginado-a formosa e sensual, uma

mulher que satisfaria um apetite enfastiado, que adularia e se renderia, que incitaria, mas

só para seus próprios fins.

Seria a amante de um homem com dinheiro e poder, dos que se casam só para

cumprir suas ambições políticas ou ter descendência, mas que procuram resolver suasnecessidades físicas em outra parte.

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—O que fez então, senhor?

Ryerson se ruborizou.

—Disse-lhe que devíamos transladar o cadáver quando soube que era sua pistola.

—Foi sua idéia mover o cadáver do senhor Lovat?

O rosto do Ryerson se endureceu um pouco mais, alterando os músculos das faces

e a mandíbula.

—Sim.

Pitt se perguntou se tratava de proteger à mulher, mas não tinha nenhuma dúvida

de que se fosse mentira, Ryerson não se retrataria.

Comprometeu-se e não parecia próprio dele voltar atrás, fosse por orgulho ou por

honra, ou simplesmente porque o que contava era a verdade.

—Ok. Quem foi procurar o carrinho de mão, você ou ela?

Ryerson hesitou.

—Ela. Sabia onde estava.

—E o levou até onde estava o cadáver.

—Sim, e a arma. Ajudei-a à carregá-lo no carrinho de mão.

Pesava muito e era extremamente desajeitado. Parecia de trapo e não parava de

escapulir-se nos das mãos.

—Você segurou a cabeça ou os pés ? - Pitt já sabia a resposta, mas lhe interessava

comprovar se Ryerson dizia a verdade.

— A cabeça, é claro - disse Ryerson um pouco cortante—. Pesava mais e as feridas

estavam no peito, de modo que era por aí por onde sangrava. Com certeza sabe.

Pitt se irritou consigo mesmo ao descobrir-se envergonhado, e lamentou ter feito

essa pergunta.

—Carregaram-no no carrinho de mão, e o que se propunham fazer com ele? -

continuou.—Levá-lo ao Hyde Park - respondeu Ryerson—. Está a menos de cem metros de

distância.

—No carrinho de mão? -perguntou Pitt surpreso.

O rosto do Ryerson deixou transparecer seu mau humor.

—Não, é claro que não! Não podíamos levar um cadáver pela rua em um carrinho

de mão, nem sequer às três da madrugada! Eu tinha ido enganchar o cavalo a calesa e

 Ayesha se dispunha a levar o carrinho de mão às cavalariças.

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Então chegou a polícia. Mal ouvi as vozes retornei. O sangue do Lovat não se via

em meu traje escuro, de modo que o agente supôs que acabava de chegar.

Para me proteger, Ayesha confirmou imediatamente essa idéia. Eu estive a ponto de

desmenti-lo, mas vi que tinha mais sentido permanecer à margem para fazer todo o

possível para ajudá—la.

De novo Pitt se surpreendeu. De qualquer outro homem teria posto em tecido de

 julgamento semelhante afirmação, mas do Ryerson a aceitou.

Não tinha tentado nenhuma só vez negar sua presença ou sua participação, e tinha

que saber que tentar levar um cadáver do lugar do crime era em si mesmo um delito.

—E o que pensa fazer para ajudá-la? -inquiriu Pitt sem piscar.

De repente, os olhos do Ryerson refletiram desespero e o terror se apoderou dele

por um instante, fazendo que perdesse o controle.

—Tratar de averiguar que demônios se passou em realidade! - disse com voz

áspera—.Quem o matou e por que? Por que em Eden Lodge e por que no meio da noite?

Estendeu ligeiramente as mãos, fortes, mas elegantes para um homem tão corpulento—.

Que fazia ali? Seguiu-o alguém? Reuniu-se com alguém ali? Para que? Isto não tem

nenhum sentido.

Não se senta com ninguém no jardim de outra pessoa no meio da noite para brigar!

-Olhava fixamente ao Pitt, desejando com toda sua alma que acreditasse—. Ayesha não

lhe teria aberto a porta. Propunha-se entrar pela força? Ou montar uma cena e despertar

aos vizinhos? -Estava pálido—. Sei que não foi ela quem o matou, mas não me ocorre

nenhuma resposta plausível sobre o que pode ocorrer. -Nem sequer tentou dissimular seus

sentimentos.

Narraway havia dito ao Pitt que fizesse todo o humanamente possível para manter

ao Ryerson à margem.

Tendo em conta o que sentia Ryerson, talvez a única maneira de fazê-lo eraaveriguar a verdade, com a esperança de que se demonstrasse que Ayesha Zakhari era

menos culpada do que parecia agora.

—Tentarei averiguá-lo - respondeu Pitt—. Mas será necessária certa cooperação de

sua parte, senhor.

—Se estiver em minha mão cooperar -respondeu Ryerson. Não estava tão

desesperado para fazer o jogo a ninguém com uma promessa que depois não pudesse

cumprir.

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 A isso Pitt pareceu vagamente reconfortante. Ao menos ficava um pouco de

discernimento e equilíbrio—. Mas não permitirei que responsabilize a ela de meus atos,

nem jurarei em falso para proteger minha reputação. Isso me faria um triste serviço, e o

senhor Gladstone sabe. Um homem que mente em interesse próprio acaba mentindo por

algo.

—Sim, senhor - concordou Pitt—. Não tenho intenção de lhe pedir que minta, mas

sim que me conte tudo o que sabe e que guarde para si que esteve no Eden Lodge a não

ser que se faça inevitável declarar ante a polícia. Mas acredito que se absterão de lhe

interrogar todo o tempo que possam.

Ryerson lhe dirigiu um sorriso agridoce.

—Imagino - assentiu—. O que lhe pedira Victor Narraway que faça, senhor Pitt?

Na expressão do Ryerson houve uma mudança tão imperceptível que Pitt não teria

podido descrevê-lo, mas sabia sem sombra de dúvida que era o reflexo de uma tortura

íntima.

—Que averigue a verdade - respondeu com uma ligeira careta, sabendo que

adotara uma tarefa inabarcável, e talvez impossível, e que embora tivesse êxito,

provavelmente seu descobrimento seria algo aborrecível.

Ryerson não respondeu. Limitou-se a levantar-se para lhe acompanhar

pessoalmente à porta, tirando os serviços do lacaio que esperava.

Pitt passou o resto da manhã e as primeiras horas da tarde em localizar ao oficial

médico da polícia, McDade, e conseguir que lhe prestasse atenção.

Era um homem corpulento, de costas largas e com uma papada fofa até o pescoço

que não lhe tirava distinção.

Levava um avental amarrado ao redor de seu volumoso talhe e tinha as mãos

avermelhadas de tanto lavar-se certamente para desfazer-se dos vestígios de sua tarefa,

por não falar do aroma de fenol e vinagre. Saudou o Pitt com irritado bom humor.— Acreditava me ter livrado de você quando se foi do Bowl Street - comentou

McDade com uma voz singularmente atraente.

Era seu único atributo físico agradável, à exceção do cabelo, espesso e

encaracolado, e tão limpo que brilhava à luz dos lampiões de gás de seu escritório.

 Arqueou ás sobrancelhas —. O que quer agora? Não conheço nenhum terrorista ou

anarquista.

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Minha ignorância em tais matérias me é muito valiosa e tenho intenção de conservá-

la até que morra de velho, sentado ao sol no banco de algum parque. Não posso ajudá-lo,

mas se se empenha o tentarei.

—O tenente Edwin Lovat - respondeu Pitt.

McDade lhe agradava e não tinha nada mais agradável ou mais útil que fazer que

lhe tirar informação a conta-gotas.

—Morto - se limitou a dizer McDade—. Um tiro no peito, no coração, em realidade.

Disparado com uma arma pequena, a queima roupa. Muito limpo.

—Requeria-se muita habilidade para fazê-lo? -inquiriu Pitt.

—Só para um cego com um alvo em movimento! -McDade olhou de esguelha ao

Pitt—. Não viu o cadáver. -Era uma afirmação, não uma pergunta.

— Ainda não - reconheceu Pitt—. Deveria vê-lo?

McDade encolheu seus enormes ombros e a papada lhe tremeu.

—Não a menos que precise saber que aspecto tinha, que é muito semelhante ao de

qualquer outro soldado inglês de constituição robusta que levava um estilo de vida folgado,

desfrutava de boas comidas e ultimamente fazia pouco exercício. Em dez anos seria um

homem gordo, assim que os músculos perdessem elasticidade.

— Adotou uma expressão triste—.Diria que de aparência agradável, quando estava

vivo. Feições atraentes, bom cabelo e todos os dentes, o que não está mal em seus

quarenta e tantos anos.

 A verdade é que se aprecia a alguém por sua inteligência e seu senso de humor,

qualidades difíceis de detectar quando só o viu morto.

Com um vislumbre de acanhamento, o médico desviou o olhar de Pitt. Desculpava-

se por seu aspecto físico e seu sobrepeso, defendendo-se das críticas mesmo que

ninguém tivesse dito nada?

—Exato - concordou Pitt.Ele tampouco se considerara nunca de aparência agradável. Sorriu.

McDade viu que sorria e ficou avermelhado.

—Bom, que mais quer? -perguntou, voltando—. Deram-lhe um tiro! No coração. Não

tenho nem idéia de se foi sorte ou perícia. Morreu no ato, não pôde ser de outro modo!

—Obrigado. Suponho que não pode me dizer nada mais.

—Como o que? — A voz do McDade se ergueu com incredulidade—. Que lhe

disparou um homem canhoto, estrábico e coxo? Não, não posso! Disparou a queima roupa

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alguém que era capaz de segurar a arma com firmeza e ver o que fazia. Serve-lhe isso de

ajuda?

—Não. Obrigado pelo tempo que me dedicou. Permite-me ver o cadáver?

McDade agitou um braço curto e grosso assinalando a sala geral do outro lado da

porta.

—Está em sua casa. Encontrará-o na terceira mesa. Mas não terá problemas em

reconhecê-lo, já que os outros dois cadáveres são de mulheres.

Pitt se absteve de comentar algo e se encaminhou aonde lhe tinham indicado.

Examinou o corpo sem vida de Edwin Lovat, esperando fazer uma idéia do homem

que tinha sido antes de morrer. Estudou as feições como cera, um pouco mais afundadas

por causa da rigidez, e tratou de imaginá-lo vivo, rindo e falando, cheio de sentimentos.

Sem movimento, nem som, nem os pensamentos ou as paixões que o tinham feito

único, seu exame não contribuiu nada que não lhe houvesse dito já McDade.

Uma mulher magra não teria podido mover o cadáver. Se tivesse percebido o

perigo, com certeza não teria permanecido tão perto de quem quer que seja que atirou

nele, o que significava que, ou era um amigo, ou não o viu até que se produziu o disparo.

 Ambas as possibilidades se ajustavam aos fatos e não havia forma de saber qual

delas era a correta. Em qualquer caso, com certeza era irrelevante. Tinha-o matado a

mulher.

 A única esperança que tinha Pitt para salvar ao Ryerson era averiguar alguma razão

atenuante que explicasse o porquê.

Passou o resto da tarde indagando todo o possível sobre o Ryerson: suas

responsabilidades atuais, relacionadas fundamentalmente com o comércio tão dentro

como fora do império; e o distrito eleitoral que representava em Manchester, no coração da

indústria do algodão.

Era a segunda maior cidade da Grã-Bretanha e também a cidade natal do primeiro-ministro, o senhor Gladstone.

Pitt voltou para o Keppel Street a tempo para o jantar.

—Pode fazer algo para ajudar? -perguntou-lhe Charlotte, levantando a vista de seu

trabalho de costura quando se sentaram depois no salão.

— Ajudar a quem? -disse Pitt—. Ao Ryerson?

—Sim claro, ao Ryerson.

Ela continou costurando; a luz se refletia nas agulhas como um raio prateado e seouvia um débil som metálico ao se chocar contra o dedal.

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Lhe parecia um som singularmente agradável; parecia representar tudo que era

delicado e familiar, e infundir uma sensação de segurança. Não tinha nem idéia de que

roupa remendava sua esposa, mas era de algodão recém lavado e o suave aroma que

desprendia chegava até ele.

—Pode? -insistiu Charlotte.

—Não sei - reconheceu ele, sentindo-se afligido pela responsabilidade, como se a

sala se tornara de repente mais escura—. Não estou certo se está disposto a ajudar-se a si

mesmo.

Ela o olhou fixamente, com a agulha imóvel na mão e uma expressão

desconcertada.

—O que quer dizer? Está me dando a entender que é culpado?

—Diz que não é - respondeu Pitt—. E eu me inclino a acreditar nele. —Recordou a

expressão no rosto do Ryerson enquanto defendia Ayesha Zakhari e voltou a ouvir sua voz

embargada pela emoção—. Ao menos isso acredito - acrescentou—. Está disposto a

admitir que esteve ali e que a ajudou a carregar o cadáver de Lovat no carrinho de mão

com a intenção de levá-lo ao Hyde Park.

—Então é cúmplice! -exclamou Charlotte assombrada—. Pretendeu encobrir o

assassinato.

—Sim, sei -respondeu ele.

—E o primeiro-ministro quer protegê-lo? -perguntou ela, resistindo à idéia.

Ele a olhou. A expressão de Charlotte traduzia muitas emoções para que ele

estivesse seguro de qual era a que prevalecia: incredulidade, cólera, horror, inquietação.

—Não tenho certeza - disse Pitt com sinceridade—. Não sei o que é pior.

Charlotte estava confundida.

—O que quer dizer? Isso não faria cair ao governo, não quando faz tão pouco tempo

desde as eleições. Ryerson teria que demitir-se de seu cargo, isso é tudo.E se ajudou a sua amante a assassinar a um ex-amante, deveria fazê-lo.

—Os operários das fábricas de algodão do Manchester estão ameaçando declarar-

se em greve - indicou Pitt—. É o território do Ryerson, seu distrito eleitoral.

Possivelmente é o único que tem alguma possibilidade de resolver o conflito e evitar

que se arruínem sabe Deus quantas pessoas, tanto os operários como os donos das

fábricas, assim como os lojistas, os homens de negócios e os artesãos das cidades

próximas.

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—Entendo - disse Charlotte muito séria—. O que pode fazer você? Não pode ocultar

que ele está comprometido, não? Faria-o?

Tinha deixado a costura e lhe prestava toda sua atenção, com um olhar sem brilho e

preocupado.

—Não acredito que se dê o caso - respondeu Pitt, desejando profundamente que

fosse verdade—. A embaixada do Egito sabe que ele esteve ali.

Charlotte arqueou as sobrancelhas, muito assombrada.

—Como sabem? Disse ela?

—Parece que não. Não teve oportunidade. Mas é uma pergunta muito interessante.

Parecia disposta a protegê-lo quando a detiveram.

Comportou-se como se se surpreendesse de vê-lo e ele acabasse de chegar,

embora Ryerson diz que estava ali há vários minutos pelo menos, e foi ele quem levantou

em realidade a parte mais pesada do cadáver para carregá-lo no carrinho de mão.

É evidente que alguém a ajudou. Lovat pesava muito para que ela o fizesse sozinha,

e em seu vestido não havia rastro de sangue.

—Precisa saber muito mais sobre ele - observou Charlotte com um olhar sombrio de

preocupação—. Não refiro ao que todo mundo sabe, mas a algo pessoal.

Precisa saber se pode confiar nele. Pensou em falar com a tia Vespasia? Se não o

conhecer pessoalmente, saberá de alguém que tenha relação com ele.

Charlotte se referia a Lady Vespasia Cumming Gould, em realidade a tia avó política

de sua irmã Emily, mas tanto Charlotte como Pitt lhe tinham tomado tanto afeto que a

tratavam como se de verdade fossem parentes.

—Irei vê-la o quanto antes possível - assentiu Pitt imediatamente. Dirigiu um olhar

ao relógio que havia na cornija da lareira. — Acha que é muito tarde para chamá-la e lhe

perguntar se for bem amanhã pela manhã? —Já se estava levantando.

Charlotte sorriu.—Se lhe disser que é algo relacionado com um crime que está investigando e com a

possibilidade de um escândalo governamental, imagino que o receberá ao amanhecer se

quer -respondeu.

Charlotte não andava muito desencaminhada; entretanto, Pitt tinha tomado o café

da manhã primeiro e tinha dado uma olhada aos jornais antes de sair.

Era 16 de setembro e todas as manchetes anunciavam a visita do senhor Gladstone

ao Gales, onde aparentemente tinha chegado a algum acordo sobre a separação entreIgreja e Estado nesse país.

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Do mesmo modo, os jornais se estendiam sobre os brotos de cólera em Paris e

Hamburgo e, quanto a temas menos sérios, sobre o fato de que o busto recém terminado

da rainha Vitória, esculpido pela princesa Luisa, permanecesse na Osbome House até que

o enviassem a Chicago para expô-lo ali.

Por volta das nove Pitt estava no salão luminoso, amplo e muito georgiano da

Vespasia, com suas janelas que se abriam sobre o jardim.

 A simplicidade do mobiliário, que não seguia as modas modernas pelo recarregado

de finais dos anos sessenta, recordou-lhe que a anciã tinha nascido em outros tempos e

sua memória se remontava à época anterior à rainha Vitória. De menina, tinha conhecido o

medo com a invasão do imperador Napoleão.

Vespasia estava sentada em sua poltrona predileta e o olhava com interesse.

Continuava sendo uma mulher de singular beleza, e não tinha perdido o engenho nem o

estilo que ao longo de três gerações tinham deslumbrado à alta sociedade.

Essa manhã ia vestida de cinza pomba e seu colar de pérolas favorito brilhava

fracamente sobre o peito.

—Bem, Thomas - disse com suas sobrancelhas prateadas ligeiramente

arqueadas—. Se quiser que o ajude, será melhor que me diga o que quer saber.

Não conheço a desafortunada jovem egípcia que ao que parece matou com um tiro

o tenente Lovat. Diria que é uma forma pouco civilizada e ineficaz de livrar-se de um

amante pouco grato.

Em geral basta um firme desprezo, mas se não for suficiente, continua havendo

maneiras menos drásticas de obter o mesmo fim.

Uma mulher inteligente pode conseguir que seus amantes se desfaçam uns de

outros sem transgredir a lei.

Olhou-o com seriedade, mas em seus olhos cinza prateado havia ironia, e por um

instante ele se atreveu a imaginar que não era só uma opinião, mas sim falava porexperiência.

—E como se assegura de que seu amante não transgredirá a lei? -perguntou Pitt

educadamente.

— Ah! -exclamou Vespasia compreendendo imediatamente—. Isso é o que

ocorreu?Quem é o amante que se comportou de forma tão estúpida e incontrolável?

Suponho que não foi em defesa própria. -Em seu rosto se traduziu preocupação—. Para

isso veio ver-me, Thomas, para falar em nome do amante?

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—Sim, temo que assim é. Se não para falar em seu nome, sim para defender seus

interesses.

—Entendo. De modo que ela não estava sozinha e ele é uma pessoa a quem Victor

Narraway quer proteger. De quem estamos falando?

—Do Saville Ryerson.

Vespasia ficou completamente imóvel, olhando-o com uma expressão fixa e

inclusive triste.

—Conhece-o? -perguntou ele com suavidade.

—É claro - respondeu ela—. O conheço desde que mataram sua mulher faz vinte

anos, pelo menos. De fato, receio que faz mais, talvez vinte e cinco.

Pitt sentiu uma opressão em seu interior. Estudou o rosto da Vespasia e tratou de

vislumbrar até que ponto ia doer lhe que Ryerson fosse culpado.

O que lhe importaria mais, que perdesse o prestígio político ou que tivesse sido

bastante imprudente para permitir que uma aventura amorosa sem transcendência com

uma mulher de diferente raça e religião e leal a outro país dominasse suas paixões até o

ponto de ser cúmplice em um assassinato? Pode-se ter relação com alguém durante anos

e conhecer só o que essa pessoa quer mostrar de si mesma. Em seu interior pode haver

intensas motivações que nem sequer se suspeitam.

—Sinto -disse ele com sinceridade. Tinha acudido a Vespasia para lhe pedir ajuda,

sem parar para pensar que a verdade podia lhe ser dolorosa. Envergonhou-se de havê-lo

dado por assentado—. Preciso saber mais dele do que se diz por aí - explicou.

—É claro - concordou ela com aspereza—. Posso lhe perguntar que suspeitas tem

dele? Sem dúvida, não pensará que seja o assassino.

—Não acredito capaz de matar, nem sequer para proteger sua reputação?

—Está me respondendo com evasivas, Thomas! -recriminou-lhe Vespasia, mas lhe

tremia ligeiramente a voz—. É essa sua forma de me dar a entender que você acreditanisso?

— Não - se apressou a dizer Pitt, ainda mais aflito pelos remorsos—. Falei com ele

e fiquei confundido. Quero fazer uma idéia mais clara do Ryerson sem te predispor falando

muito.

—Não sou uma criada a que lhe influi facilmente - replicou ela com desdém mal

dissimulado.

Depois, ao ver que ele se ruborizava, sorriu com o encanto que tinha empregadotoda sua vida para derrotar aos homens, e de vez em quando também às mulheres—. Não

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acredito nem por um momento que Saville Ryerson assassinasse a alguém para proteger

sua reputação - acrescentou com convicção—. Mas não me é impossível acreditar que o

fizesse para defender sua vida ou a de outra pessoa, ou por uma causa que ele

considerasse suficientemente importante.

O que ponho seriamente em dúvida é que tenha relação com as greves das fábricas

de algodão do Manchester.

Que outras questões há em jogo?

—Nenhuma, que eu saiba - respondeu ele, e a opressão que sentia no peito

diminuiu com a calidez dela—. E não sei de nenhum motivo real pelo que Lovat tivesse

podido supor uma ameaça para a senhorita Zakhari.

—Pode havê-la agredido ou tentado abusar dela? Nesse caso, não seria estranho

que ela o tivesse rechaçado - observou Vespasia com o sobrecenho franzido.

— Às três da madrugada no jardim traseiro? -disse ele secamente.

Vespasia adotou uma expressão cômica.

—Oh, dificilmente - concordou —. Duas pessoas não se reúnem nessas

circunstâncias a menos que se trate de uma entrevista secreta. -De repente voltou a ficar

séria—. E ninguém leva uma pistola inocentemente. Suponho que a pistola era dela. - A

esperança de que Pitt a tirasse de seu engano apenas lhe durou um instante—.

Reconheço que só tenho lido as manchetes. Não me pareceu que a notícia me

concernisse.

—Sim - disse Pitt—. A pistola era dela, mas disse que a tinha encontrado ali.

Segundo sua versão ouviu o disparo e saiu. Já estava morto quando se aproximou dele.

—E o que diz Saville Ryerson? -quis saber Vespasia.

—Que Lovat estava morto quando ele chegou à casa -respondeu Pitt—. E ajudou a

carregar o cadáver em um carrinho de mão, para levá-lo ao Hyde Park e abandoná-lo ali.

 A polícia recebeu uma chamada, não sabemos de quem, e chegou a tempo parasurpreendê-la com o cadáver. Ryerson tinha ido às cavalariças para enganchar um cavalo

a calesa.

Vespasia suspirou, com uma expressão preocupada.

—Meu deus. Suponho que as provas o confirmam.

 A anciã imaginava a resposta a essa questão.

— Até agora sim. É evidente que alguém carregou o cadáver por ela. -Pitt a olhou

tentando lhe ler o pensamento—. Não custa acreditar?Vespasia desviou o olhar.

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—Não. Talvez seja melhor que lhe explique isso desde o começo.

—Por favor.

Pitt se recostou ligeiramente na cadeira, sem deixar de observá—la.

—Os Ryerson eram da alta burguesia -começou a contar ela em voz baixa, absorta

em suas lembranças—. Mal mantinham vínculos com a aristocracia, mas possuíam muito

dinheiro.

Eram duas ou três irmãs, acredito, e Saville era o único varão. Recebeu uma boa

educação no Eton e depois em Cambridge, e esteve um tempo no exército.

Distinguiu-se, mas não quis fazer carreira. Por volta de mil oitocentos e sessenta se

apresentou para o Parlamento e ganhou com uma margem ampla. - O pesar transpareceu

de forma tão imperceptível em sua voz que Pitt mal o percebeu—. Fez umas boas bodas -

continuou Vespasia—. Não acredito que fosse um matrimônio por amor, mas tinham uma

relação bastante amistosa, que é o que a maioria das pessoas esperam.

 Atrás das janelas, no jardim um pássaro saltava pela grama e as rosas tardias

brilhavam em intensos vermelhos e âmbares.

— Algum tempo depois, a mataram - prosseguiu Vespasia, sobressaltando ao Pitt

que proferiu um grito abafado e tossiu.

Ela o olhou com um sorriso irônico.

—Não a assassinaram, Thomas. Foi um acidente. Suponho que se ocorresse agora

poderiam encarregá-lo a investigação, mas duvido que descobrisse algo mais do que

averiguaram então. —Permaneceu muito quieta enquanto seguia seu relato—Estava de

férias na Irlanda. Foi durante um desses distúrbios que ocorrem periodicamente nesse

país, e ela se viu apanhada no fogo cruzado.

Estavam-se matando a tiros, assim pode dizer-se que foi um crime. Trata-se de uma

emboscada dirigida a vítimas políticas, foi uma casualidade que Libby Ryerson se cruzasse

 justo nesse momento em seu caminho.Pitt o sentiu muitíssimo pelo Ryerson, Era uma maneira dura de perder a alguém.

—Onde estava ele?

—Em Londres.

—Que fazia ela na Irlanda?

—Tinha muitas amigas anglo-irlandesas. Era uma mulher bonita e ansiosa de

experiências… de viver aventuras.

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Pitt não tinha certeza do que ela queria dizer com isso e não sabia se perguntava.

Parecia-lhe uma indiscrição, não só para com a defunta, mas também com Vespasia, que

dava a impressão de entender as motivações da senhora Ryerson.

—Tinham filhos? -limitou-se a dizer.

—Não - respondeu ela com tom de tristeza—. Só estavam casados há dois ou três

anos.

—E ele alguma vez voltou a casar-se?

—Não. - Sustentou-lhe o olhar com franqueza—. E antes que me pergunte porque,

direi-lhe que não sei. Sem dúvida teve amantes de sobra e muitas mulheres que o teriam

aceito. -Um vislumbre de sorriso curvou seus lábios—. Se está procurando algum segredo

escuro em sua vida pessoal, não acredito que o encontre, não nesse terreno, ao menos, E

não sei de nenhum outro escândalo, econômico ou político.

Pitt refletiu antes de fazer a seguinte pergunta, mas enquanto a formulava

mentalmente, deu-se conta de que era a que tinha impulsionado a todas as demais e a que

mais pesava sobre ele.

—Sabe de algo que o relacione com o Victor Narraway, profissional ou

pessoalmente?

Vespasia abriu ligeiramente os olhos.

—Não. Acha que há algo que os vincule?

—Não sei. -Não mentia. Não sabia de uma forma racional, mas estava

completamente seguro de que ao Narraway invadia uma intensa e profunda emoção

quando pensava no Ryerson.

Tinha enviado a ele para falar com Ryerson em lugar de ir pessoalmente por alguma

razão tão poderosa que ofuscava o entendimento.

Pitt o tinha compreendido depois de receber o encargo—. Tenho essa impressão -

acrescentou por fim.Vespasia se inclinou um pouco para ele, embora sem mal variar a postura erguida.

—Tome cuidado, Thomas. Saville Ryerson é uma pessoa inteligente e de profundas

convicções políticas, mas acima de tudo é um homem sensível.

Trabalhou duro por defender suas idéias e pela pessoas a que representa. Não

regulou nem tempo nem meios para obter o melhor para Manchester e grande parte do

norte da Inglaterra, e o fez ele só, e muito freqüentemente sem que nem sequer lhe

agradecessem. -Vespasia levantou muito ligeiramente seus magros ombros—. A gente do

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Lancashire é leal, mas têm um caráter forte e não gosta muito das decisões que se tomam

em Londres. Nem sempre lhe compreenderam.

Sua inteligência lhe granjeou inimigos no Westminster, jovens ambiciosos que

querem acabar com ele e ocupar seu cargo. Assegure-se muito bem antes de fazer

alguma acusação contra ele. Isso arruinaria sua carreira, e não poderá emendá-lo

retirando as acusações depois.

—Estou tratando de salvá—lo, tia Vespasia! -respondeu Pitt com veemência—. E

não sei como fazê-lo!

Lhe deu as costas e ficou olhando o espelho de moldura dourada da parede do

rondo, o cristal biselado onde se refletiam as folhas dos abedules que se sacudiam na

ligeira brisa do exterior.

—Talvez não possa - replicou ela com um tom tão fraco que Pitt mal entendia o que

dizia—.

Pode ser que ame o bastante a essa mulher egípcia para ter sido sua cúmplice no

assassinato. Faça o que tenha que fazer, Thomas, mas, por favor, faça-o com toda a

delicadeza possível.

— Assim o farei - prometeu ele, perguntando-se como demônios ia consegui-lo.

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Capítulo 3 

Quando terminou suas tarefas na casa, Gracie saiu para fazer os recados da

manhã. Era um dia ensolarado e de temperatura suave sem vento, e desfrutou do passeio

apesar de suas botas novas.

Estas eram excelentes, com botões negros e saltos que pela primeira vez em sua

vida a faziam parecer mais alta de metro e meio.

Caminhou com passo vivo pelo Keppel Street e Store Street até o Tottenham Court

Road, onde se deteve na peixaria e selecionou uns arenques de aspecto suculento,

formosos e grossos, de uma intensa cor defumada.

Não confiava no menino que os trazia em um carrinho de mão; tendia a exagerar

sobre quão frescos eram.

 Acabava de sair de novo à rua quando viu sua amiga Pontua Garvie, que servia em

uma casa do Torrington Square.

Pontua era uma jovem de aparência agradável, uns centímetros mais alta que

Gracie e bastante mais roliça, embora isso não lhe tirasse atrativo a sua esbelta figura. Em

geral irradiava uma alegria que a convertia em uma companhia agradável.

Entretanto, nesse dia, passou diante da vendedora de flores sem que nem sequer

reparasse em sua presença. Seu rosto revelava uma intensa preocupação e parecia olhar

a seu redor absorta, como se não visse realmente nada.

—Pontua! - chamou Gracie.

Pontua se deteve e se voltou para Gracie, e sua expressão se iluminou de alívio.

Quase tropeçou com uma mulher corpulenta que segurava uma cesta de compra contra o

quadril enquanto com a outra mão arrastava um menino claramente em plena manha.

—Gracie! -exclamou Pontua sem fôlego, evitando por muito pouco que a mulher alevasse por diante e sem incomodar-se em desculpar-se por lhe haver cortado o passo—.

Quanto me alegro de vê-la!

—O que acontece? -perguntou Gracie, enquanto conduzia Pontua para o centro da

rua para tirá-la do meio—. Tem cara de ter perdido algo. Caiu-lhe o moedeiro?

Foi o primeiro que lhe ocorreu. Tinha-lhe ocorrido uma vez e ainda se lembrava de

quão horrível tinha sido. Tinha perdido quase seis xelins, o que gastavam em pão em toda

uma semana.

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Pontua sacudiu a cabeça tão levemente que mal podia interpretar-se como uma

negação.

—Posso falar com você um momento, por favor, Gracie? Estou tão preocupada que

não sei o que fazer. Esperava vê-la. Se for sincera, por isso vim aqui.

 A preocupação de Gracie foi imediata. Vieram a sua mente todo tipo de

possibilidades domésticas. A casa em que Pontua trabalhava era bastante grande e havia

mais criados além de sua amiga.

Os problemas mais freqüentes eram as acusações de roubo ou as propostas

desonestas por parte de algum criado. Gracie nunca tinha temido nenhuma das duas

coisas, mas sabia muito bem que podiam ocorrer. Pior ainda, é claro, era que o senhor da

casa fizesse tais propostas desonestas.

Tanto se as recusava como se as aceitava era cheio de perigos.

O de menos era que lhe surpreendessem e lhe despedissem sem referências. Podia

ficar facilmente grávida! Ou que a senhora da casa a acusasse de todo tipo de maldades!

Brigar com outros criados, perder uma bagatela, fazer mal uma tarefa, quebrar um

objeto decorativo favorito da senhora ou estragar um vestido com a prancha eram

problemas tão simples em comparação que quase não contavam.

—O que se passou? -inquiriu Gracie com ansiedade—. Venha, temos tempo para

tomar uma xícara de chá. Há um estabelecimento à volta da esquina. Vamos sentar-nos e

me conta.

—Não tenho dinheiro para um chá. -Pontua ficou imóvel na calçada—. E acredito

que engasgaria.

Gracie começou a dar-se conta de que, fosse o que fosse ocorrido, tratava-se de

algo muito sério.

—Posso ajudá-la? -limitou-se a dizer —. A senhora Pitt é muito boa, e também muito

esperta.Pontua franziu o sobrecenho.

—Bom, era no senhor Pitt em quem estava pensando, se- quero dizer se - se

interrompeu, pálida, lhe suplicando com o olhar.

—É um delito? - quis saber Gracie engolindo saliva.

Encheram-se os olhos de Pontua de lágrimas.

—Não sei, ainda não. De qualquer modo Oh, por favor. Deus, que não o seja!

Gracie a pegou pelo braço e quase a arrastou pela calçada para protegê-la dasmulheres ocupadas que utilizavam as cestas quase como armas.

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—Vai vir comigo para tomar um chá -ordenou—. Lhe assentará bem algo quente.

Depois poderá me explicar do que está falando. Vamos, move os pés ou cairá de

bruços sobre o meio-fio, e isso não ajudará a ninguém.

Pontua fez um esforço por sorrir e apressou o passo para não ficar atrás.

Na cafeteria, Gracie se dirigiu à criada com muita firmeza, sem fazer caso das

queixas desta sobre o cedo da hora, e a empregada se apressou a preparar o que lhe

tinha pedido.

—Vamos - apressou Gracie quando ficaram sozinhas—. O que aconteceu?

—Trata-se do Martin - disse Pontua com voz rouca—, Meu irmão - acrescentou

antes que Gracie o compreendesse—. Desapareceu. Não está em casa e não me disse

nada.

E ele não faria uma coisa assim, porque só tem a mim. Nossos pais morreram de

cólera quando eu tinha seis anos e Martin oito. Sempre cuidamos um do outro. É

impossível que se foi sem me dizer nada.

Pontua piscou muito depressa, tentando conter as lágrimas sem obtê-lo.

Escorregaram-lhe ao momento pelas faces e as secou com a manga sem dar-se conta do

que fazia.

Gracie tratou de ser prática e se obrigou a pensar com clareza.

—Quando foi à última vez que o viu, Pontua?

—Faz três dias - respondeu sua amiga—. Era nosso dia livre. Compramos dois

pedaços de bolo quente ao vendedor da esquina e passeamos pelo parque. Tocava uma

banda.

Comentou-me que ia ao Seven Dials. Só ir e voltar, não pensava ficar lá.

 A criada retornou com um bule e dois pão-doces quentes. Observou o rosto

manchada de lágrimas de Pontua e pareceu a ponto de dizer algo, embora depois mudou

de opinião.Gracie agradeceu à criada e pagou, e deixou um par de pennies de gorjeta pelo

trabalho.

 A seguir serviu as duas xícaras e esperou que Pontua bebesse um gole da sua e

comesse uma dentada do pão-doce com manteiga.

Tratou de ordenar seus pensamentos e comportar-se como achava que teria feito

Pitt nessas circunstâncias.

—Com quem falou de seu trabalho? -perguntou—. Onde trabalha, por certo?

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—Trabalha para o senhor Garrick - respondeu Pontua, ao mesmo tempo que

deixava o pão-doce no prato—. No Torrington Square, junto ao Gordon Square. Não muito

longe daqui.

—Com quem falou? -repetiu Gracie.

—Com o senhor Simms, o mordomo.

—O que disse ele exatamente?

—Que Martin se foi e que não podia me dizer aonde - respondeu Pontua,

esquecendo do chá, com os olhos fixos em Gracie—. Pensou que saía com ele. Expliquei-

lhe que era meu irmão, embora demorei horas a convencê-lo.

Mas Martin e eu nos parecemos, assim ao final me acreditou. -Sacudiu a cabeça—.

Mas não quis me dizer aonde tinha ido.

 Assegurou que Martin ficaria em contato comigo, mas não o fez, Gracie.

Ontem foi meu aniversário e Martin nunca se esqueceria de algo assim a menos que

tivesse ocorrido algo terrível. Nunca o fez, nem sequer quando eu era pequena. -Engoliu a

saliva e piscou, e voltaram a lhe correr as lágrimas pelas faces.

Sempre me dá de presente algo, embora só seja uma fita para o cabelo ou um

lenço. Dizia que era mais importante que o Natal porque era um dia especial para mim.

O Natal pelo contrário é para todos.

Gracie sentiu uma pontada de ansiedade. Talvez se tratasse de algo mais que de

um contratempo doméstico, por desagradáveis que estes pudessem ser.

Possivelmente Pitt deveria estar à corrente do que aconteceu. Só que já não

trabalhava para a polícia.

Ela não sabia realmente que fazia a Brigada Especial, só que era secreta e que ela

se inteirava de muito menos coisas que quando ele se ocupava de delitos comuns que

apareciam nos jornais para informação de qualquer um.

Fosse o que fosse o que lhe tinha ocorrido ao Martin, correspondia a ela averiguá-lo,ao menos de momento. Bebeu um gole de chá para dar-se tempo para pensar.

—Falou com alguém mais além do mordomo? -inquiriu Gracie ao cabo de uns

instantes.

—Sim. -Pontua assentiu—. Perguntei ao engraxate, porque os engraxates sempre

vêem tudo, e a maioria deles são muito descarados para não falar disso.

Ninguém lhes faz muito caso, de modo que têm que aproveitar quando podem. -A

animação zombadora que tinha aparecido fugazmente em seu rosto se desvaneceu—. Me

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disse que Martin tinha desaparecido de repente. Um dia estava ali, como sempre, e no dia

seguinte já não estava.

—Mas ele vive na casa, não? - observou Gracie desconcertada. —Sim, é claro que

sim! É o valete do senhor Stephen Garrick. Ocupa-se de todas suas coisas. O senhor

Stephen lhe tem uma confiança absoluta.

Gracie respirou fundo. A situação era muito grave para andar-se com rodeios por

temor a ferir suscetibilidades.

—É possível que o senhor Garrick perdesse o controle por alguma questão e o

despedisse, e que Martin se sentisse tão envergonhado que preferisse não lhe contar isso

até não achar outro emprego?

Gracie se incomodava ter que insinuar algo assim, e viu na expressão descomposta

de Pontua o muito que lhe doía essa possibilidade.

—Não! -Pontua sacudiu a cabeça com energia—. Não! Martin nunca daria motivos

para que o despedissem. O senhor Garrick confia nele. E não só para que lhe faça os nós

das gravatas e lhe tenha a roupa preparada. -Fechou os punhos, esqueceu-se por

completo de comer —. Cuida dele quando bebe muito ou fica doente, ou faz alguma tolice.

Não é tão fácil achar a alguém que faça isso por você. É lealdade.

 A jovem olhou fixamente ao Gracie com os olhos brilhantes e assustados, lhe

suplicando que a compreendesse e acreditasse que a lealdade era muito valiosa para que

não fosse recíproca.

Merecia algo melhor que ser desprezada só porque um deles tinha poder para fazê-

lo.

Gracie não tinha tanta fé no sentido da honra dos patrões.

Trabalhava para os Pitt desde os treze anos, assim não tinha experiência com

ninguém mais, mas tinha ouvido suficientes historias de outros amos para não ser tão

ingênua.—Falou pessoalmente com o senhor Garrick? -perguntou.

Pontua deu um pulo.

—É claro que não! Meu Deus, nem você, Gracie, tem tanto descaramento para fazê-

lo! Como quer que fale com ele? -Elevou a voz cheia de assombro—. Tive que reunir toda

minha coragem para ir perguntar ao senhor Simms, e me olhou como se tivesse passado

dos limites.

Não lhe faltou vontade de me expulsar com caixas destemperadas, até que se deuconta de que Martin era meu irmão. Terá que respeitar à família. É a única coisa decente.

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—Bom, não se preocupe -disse Gracie com determinação. Tinha tomado uma

decisão. Pitt talvez estivesse muito ocupado com os assuntos da Brigada Especial, mas o

sargento Tellman não.

Trabalhava às ordens do Pitt no Bowl Street, e o tinham promovido.

Fazia tempo que estava apaixonado por Gracie, embora só ultimamente começava

a reconhecê-lo, não com muito gosto.

Lhe explicaria a situação, e ele poderia fazer as indagações oportunas e resolver o

caso. Porque era um caso, disso tinha certeza—. Me ocuparei de que alguém o faça -

acrescentou sorrindo a Pontua com confiança—. Conheço alguém que se ocupará

devidamente disso e averiguará o que de verdade se passou.

Pontua se relaxou por fim e lhe devolveu timidamente o sorriso.

—Fará-o? Pensei que se alguém podia fazê-lo, seria você. Muitíssimo obrigado.

Não sei o que dizer, só que lhe estou muito agradecida.

Gracie se sentiu envergonhada e temeu ter prometido muito. É claro que Tellman se

faria cargo da situação, mas a resposta talvez não fizesse feliz a Pontua.

— Ainda não fiz nada! - protestou, ao mesmo tempo em que baixava o olhar e se

concentrava em tomar o chá—. Mas resolveremos. Agora será melhor que me explique

tudo sobre Martin, os lugares onde trabalhou e coisas assim.

Gracie não tinha lápis e papel consigo, mas tinha aprendido a ler e escrever fazia

pouco tempo, de modo que podia seguir confiando em sua memória para reter o que fosse

preciso.

Pontua começou a falar, recordando detalhes que tinha memorizado por essa

mesma necessidade.

Quando terminou de contar-lhe tudo, saíram à buliçosa rua e se separaram.

Pontua para continuar seus recados, com a cabeça mais erguida, o passo mais vivo

que antes, Gracie para voltar para o Keppel Street e perguntar ao Charlotte se podia tomara tarde livre para ir falar com Tellman.

Charlotte não mostrou nenhum inconveniente em conceder-lhe.

Gracie teve sorte em sua segunda tentativa.

Tellman não estava na delegacia de polícia do Bowl Street, mas o achou a dois

quarteirões de distância em uma taverna, tomando uma cerveja com um agente com quem

tinha estado trabalhando.

 A moça se deteve justo na entrada, com os pés no pisoteado serrín, envolta noaroma de cerveja que flutuava no ar, o ruído de vozes masculinas e o tinido de copos.

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Passaram vários minutos antes que localizasse ao Tellman no outro extremo, com a

cabeça baixa, olhando sombrio seu copo. O jovem sentado frente a ele o olhava com

deferência.

Desde que Pitt se fora Tellman tinha sido promovido, mas ainda se sentia algo

incômodo no novo posto.

Tinha mais informação que a maioria de seus companheiros sobre como tinham

conspirado contra Pitt e quem era o responsável. Detestava ao homem que o tinha

substituído e, ainda pior, desconfiava dele.

Desde que Wetron tinha chegado, tudo nele indicava que esse homem tinha

motivações e ambições que pouco tinham que ver em resolver crimes.

Era inclusive possível que ficasse tão alto para fazer-se encarregado de dirigir a

terrível organização secreta do Círculo Interior.

Gracie sabia que tanto o senhor Pitt como Tellman temiam que o fizesse, mas ela só

o tinha ouvido por acaso e não se atrevia a perguntar abertamente a nenhum dos dois.

Olhou para o Tellman e se perguntou até que ponto o perturbava seu chefe. Não o

via tão relaxado como quando trabalhava com Pitt, mesmo que ele nunca o teria admitido.

 A moça abriu passagem através das pessoas, afastando a cotoveladas a homens

que não pareciam vê-la e empurrando-os para que se fizessem a um lado, e quase tinha

chegado até onde estava sentado Tellman quando este levantou a vista e a viu.

Pareceu alarmar-se, como se a jovem só pudesse trazer más notícias.

—Gracie? O que acontece?

Tellman se levantou imediatamente e fez caso omisso de seu companheiro, sem ver

a necessidade de apresentá-los.

Ela quase tinha esperado tocar o assunto como de passagem, e que se alegrasse

de vê-la, mas tinha que reconhecer que no passado só tinha ido a ele por iniciativa própria

quando tinha necessitado sua ajuda.Quando se tratava de algo pessoal, era Tellman o que dava o primeiro passo.

Depois de tudo, a princípio ela tinha sido receosa a lhe oferecer algo mais que uma

amizade sem compromisso.

Ele tinha treze anos mais que ela, e estava firmemente entrincheirado em suas

convicções, que na maioria dos casos eram contrárias às dela.

Desaprovava completamente que ela servisse em uma casa, pois atentava contra

todos seus princípios sobre a justiça social, enquanto que ela o via como uma formahonrada de ganhar a vida, assim como uma existência muito confortável.

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Não se sentia subjugada o mínimo e se impacientava por causa do orgulho

suscetível e pouco realista dele.

Gracie se esforçou por mostrar-se mais educada do que costumava a ser com o

Tellman. Ao fim e ao cabo, estava acompanhado por um subordinado e devia tratá-lo com

respeito.

—Vim para lhe pedir conselho - expôs com seu tom mais suave—. Se pudesse me

dedicar meia hora.

Surpreendeu-o sua murmurada delicadeza e em seguida se deu conta de que se

devia ao agente. Suas finas feições se relaxaram com um pouco freqüente mostra de

ironia.

—É claro. Como se encontra a senhora Pitt?

Não era uma simples fórmula de cortesia. Importava-lhe sinceramente. Sentia muito

afeto por Pitt e Charlotte.

Era um homem solitário, orgulhoso e rígido que não fazia amizades com facilidade.

Tinha guardado rancor ao Pitt quando se conheceram.

Pitt tinha sido elevado a um cargo que, em opinião do Tellman, só devia ostentar um

cavalheiro ou alguém que tivesse servido no exército ou na marinha.

O filho de um guarda-florestal não estava qualificado para o comando, e que se

esperasse de homens como Tellman que o tratassem de "senhor" e mostrassem

deferência para seu cargo lhe engasgava. Pitt tinha ganho pouco a pouco seu respeito,

mas uma vez que o fez, a lealdade foi tão profunda como um laço de parentesco.

—Bem, este não é um lugar adequado para você - disse Tellman quando Gracie lhe

assegurou que a senhora Pitt estava bem. Olhou-a ligeiramente carrancudo—. Me contará

tudo enquanto a acompanho à parada do ônibus. —voltou-se para o agente—. Até manhã,

Hotchkiss.

Hotchkiss se levantou obediente.—Sim, senhor. Boa noite, senhor. Boa noite, senhorita.

—Boa noite, agente - respondeu Gracie.

 A seguir se voltou para o Tellman, quem passou por seu lado e a precedeu, lhe

abrindo passagem entre as pessoas.

Ela saiu detrás dele à calçada, onde se acharam de repente sós.

—É importante ou não te teria incomodado -disse muito séria—. Desapareceu

alguém.

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Ofereceu-lhe o braço e ela o aceitou um tanto impaciente, embora descobriu

surpreendida que era bastante agradável caminhar agarrada dele. Percebeu que Tellman

cortava o passo para acomodar-se ao dela.

Sorriu, mas se deu conta de que não lhe tinha passado inadvertido seu sorriso e

ficou séria imediatamente. Não estava bem que ele percebesse que não lhe era

indiferente.

—Trata-se de minha amiga, Pontua Garvie - disse com tom profissional—. Seu

irmão, Martin, desapareceu da casa em que trabalha. Não disse nada nem a ela nem a

ninguém, simplesmente se foi. Vai fazer três dias.

Tellman apertou os lábios, com o rosto sombrio, as sobrancelhas juntas. Caminhava

um pouco curvado, como se tivesse os músculos rígidos.

Fazia uma bonita noite, mas os lampiões estavam acesos e a brisa que chegava do

rio cheirava a umidade. A rua estava silenciosa, só havia ao longe uma carruagem que

dobrava a esquina, e na outra um par de homens que discutiam afavelmente.

— As pessoas trocam de emprego -comentou Tellman com cautela—. Ou o que é

mais provável, perdem-no. Poderia ser por um montão de razões, não necessariamente

por sua culpa.

—Teria dito a ela! -apressou-se a dizer Gracie—. Foi seu aniversário e não lhe

enviou um cartão, nem flores nem nada.

— As pessoas se esquecem dos aniversários - respondeu ele—. Embora não

aconteça nada de mal, e nem digamos se ficarem sem emprego e sem teto! —argumentou

com tom impaciente.

 A jovem sabia que era a injustiça da condição de dependência o que o fazia

acalorar, não ela, mas mesmo assim lhe incomodou, talvez porque não queria que fosse

certo, e no mais recôndito de sua mente tinha medo. Não estava preparada para ouvir o

ponto de vista de um policial.—Ele nunca se esqueceu de seu aniversário antes - replicou, mantendo com

esforço o passo.

Ele não se deu conta de que andava mais depressa—. Desde que tinham oito anos!

-acrescentou.

—Talvez nunca o mandaram embora de um trabalho antes -indicou Tellman.

—Se o mandaram embora, por que não o disse o mordomo? -observou ela, ainda

agarrada em seu braço.

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—Certamente porque esta classe de assuntos domésticos não sejam seu assunto -

respondeu ele—. Um bom mordomo não fala com desconhecidos de questões domésticas

desagradáveis. Sem dúvida, sabe melhor que eu.

Olhou-a de soslaio, com o cenho ligeiramente franzido, como se fosse uma

pergunta. Tinham discutido antes sobre a obrigação de um criado de agradar a seus

senhores, e o frágil que era o bem-estar, a comida e o teto que estes lhe proporcionavam.

—Sei o que quer dizer! -exclamou Gracie zangada, soltando-se de seu braço—.

Estou farta de lhe dizer que nem sempre é assim! É claro que há casas horríveis e más

pessoas nelas.

Mas também há boas casas. Imagina à senhora Pitt me pondo de quatro na rua

porque fiquei dormindo ou respondi de forma descarada ou o que seja? -Sua voz ressou

com desafio—. Atreva-se a dizer que sim e farei que deseje não ter aberto nunca a boca!

—É claro que não! -replicou ele. Deteve-se em seco e a levou a um lado da calçada,

perto da parede, para deixar passar a dois homens que caminhavam atrás deles—. Mas

isso é diferente.

Se Martin deixou a casa dos Garrick foi por algo. Viu-se obrigado ou decidiu fazê-lo.

Seja como for, não é assunto da polícia, a menos que os Garrick o denunciem. E imagino

que isso é o último que quer Pontua.

—Denunciá-lo por que? -disse ela furiosa—. Não fez nada! Só desapareceu. Não

escuta o que lhe digo? Ninguém sabe onde está!

—Não - a corrigiu ele—. Pontua não sabe onde está.

—O mordomo tampouco sabe! -respondeu ela exasperada—. Nem o engraxate!

—O mordomo não o disse a Pontua, e por que diabos ia saber o engraxate? -

perguntou ele de forma razoável.

Gracie começava a sentir que a invadia o desespero. Não queria discutir com o

Tellman, mas estava a ponto de fazê-lo e não podia controlar-se.Tinham chegado à esquina da rua principal e os envolvia o estrondo das ruas,

rodas, cascos de cavalos, vozes.

 As pessoas iam daqui para lá, e um homem passou tão perto dela que lhe roçou as

costas. O medo de Pontua tomou conta dela e estava perdendo a capacidade para pensar

sem que o pânico a dominasse.

—Porque os engraxatse vêem e ouvem um montão de coisas! -disse ao Tellman—.

Não averigua coisas interrogando às pessoas? Trabalhou muitas vezes em crimes emcasas grandes! Escutou ao senhor Pitt, não? Alguma vez passa por cima a alguém porque

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trabalha na copa ou na despensa? As pessoas se dão conta de coisas. Tem olhos e

ouvidos!

Ele conteve sua impaciência com um esforço que a jovem pôde perceber à luz do

lampião, e soube que só se dominava porque lhe importava.

Em certo sentido o fazia mais irritante, porque era uma pressão moral, uma espécie

de obrigação respeitá-lo quando em seu foro interno morria por gritar.

—Sei, Gracie -disse ele com tom desapaixonado—. Eu mesmo interroguei a muitos

criados. E o fato de que o engraxate não saiba nada é uma boa prova de que

provavelmente não aconteceu nada de mau.

Martin poderia ter sido despedido, e se isso é assim, talvez não queira que sua irmã

se inteire antes de achar outra casa. -Soava extremamente razoável—. Está tratando de

evitar que ela se preocupe ou talvez se sente envergonhado.

Talvez o despediram por algo vergonhoso, por ter feito algo mal. Seria natural que

não quisesse que se inteirasse sua família.

—Então, por que não lhe enviou um cartão ou uma carta para seu aniversário de

onde está? —desafiou-o ela, afastando-se dele e olhando-o nos olhos—. Não o fez, de

modo que agora ela está o dobro de preocupada!

—Se perdeu seu emprego, e com ele o alojamento e o sustento - replicou Tellman,

tratando de manter um tom anormalmente sereno—, então me atreveria a dizer que tem

preocupações mais prementes, como onde dormir ou o que comer! Não devia lembrar-se

do dia que era.

—Então, se estiver em um apuro tão grande, ela tem motivos para estar

preocupada, não? -observou Gracie com ar triunfal.

Tellman deixou escapar o fôlego em um prolongado suspiro.

—Preocupada, sim, mas não até o ponto de ir à polícia. Gracie apertou os punhos

aos flancos em um esforço por dominar seu mau gênio.—Não vai à polícia, Samuel! Disse-me —e eu lhe estou pedindo isso a você! Você

não é a polícia, é meu amigo! Ao menos achava que era. Estou te lhe pedindo ajuda, não

que trate de empreender uma investigação oficial.

—E que espera que faça? -Ele ergueu a voz ante a acrimonia irrazoável da jovem.

Com grande esforço, ela se calou o que realmente pensava e se obrigou a sorrir

com doçura.

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—Obrigada - disse de forma encantadora—. Sabia que podia contar com sua ajuda

quando o entendesse. Poderia começar perguntando ao senhor Garrick onde está Martin.

Não tem que lhe dizer por que, é claro. Poderia ser uma testemunha.

—Do que? -Tellman marcou as sobrancelhas com incredulidade. Ela o passou por

cima.

—Não sei! Pensa algo! -Desta vez falou como se fosse o mais razoável do mundo.

—Não posso me aproveitar de minha condição de polícia para interrogar a alguém

sobre algo que inventei! —Parecia ofendido, como se tivessem insultado seus princípios.

—Oh, não seja tão...… tão... —Gracie quase ficou sem palavras.

Queria-lhe tal como era, severo, torpe, com grande sentido da justiça, encobrindo

sua compaixão com o regulamento e as normas sociais, a forte disciplina que lhe tinham

inculcado, mas às vezes ele a enfurecia mais do que podia suportar e essa era uma

delas—. Não é capaz de ver além de seu nariz? —recriminou a jovem—. Às vezes acredito

que tem o cérebro encerrado no livro de normas! Não vê que o importante são as vidas, os

sentimentos, o que há no interior das pessoas? —Gracie tomou ar antes de continuar —:

 As pessoas são feitas de carne e osso, e equívocos. E sonhos! Pontua precisa saber o que

foi feito dele e isso é algo real!

O rosto do Tellman se endureceu. Aferrava-se ao que compreendia.

—Se quebrar as normas, elas acabam destruindo a você -disse Tellman com

obstinação.

Nesse instante, a jovem se deu conta de que tinha perdido a partida. Fazia uma

afirmação da qual não podia retratar-se. Ele tinha razão, e ela o compreendia melhor do

que era capaz de reconhecer nesse momento.

Tinha sido injusta, esquecendo que ele já não trabalhava para o Pitt, a não ser para

o Wetron, e que não gozava de liberdade de movimentos.

Já tinha posto seu emprego em perigo uma vez para salvar a ela, a Charlotte e ascrianças, e o tinha feito sem pensar em si mesmo.

Outro dia, quando não estivesse zangada, e quando não parecesse uma desculpa

ou que tratava de ganhar o diria. Nesse momento estava concentrada em Pontua e o que

podia haver ocorrido a seu irmão.

—Bom, pois se você não a ajuda terei que fazê-lo eu! -disse por fim, lhe dando as

costas.

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Não lhe ocorreu nada cortante e concludente que dizer, o que foi muito frustrante.

Limitou-se a ficar ali e olhá-lo um instante, como se estivesse a ponto de dar o golpe final,

depois deixou escapar um suspiro e partiu.

—Não o fará! -exclamou Tellman bruscamente—. Não fará nada disso!

Ela se voltou de novo para ele.

—Não me diga o que devo fazer, Samuel Tellman! Farei o que tiver de fazer, e você

não tem nada que dizer a respeito! —gritou, mas se sentia muito melhor ao ver que ele

tinha reagido.

—Gracie!

Tellman deu uma grande passada para ela como se fosse sujeitá-la pelo braço.

 A jovem deu de ombros de forma exagerada e deu um pequeno salto para esquivar-

se dele; em seguida, pôs-se a andar o mais depressa que pôde sem olhar atrás.

Sobretudo porque preferia pensar que ele a estava olhando, talvez até seguindo, e

não queria comprovar que não era assim.

De volta no Keppel Street, quando entrou pela copa se sentia tão desventurada que,

a seu pesar, não era capaz de continuar zangada. Não tinha levado bem a conversa com o

Tellman.

Embora não tivesse podido persuadi-lo para que investigasse o desaparecimento do

Martín Garvie, e possivelmente ele tinha seus motivos para não fazê-lo, ao menos poderia

haver-se comportado de forma que se separassem como amigos.

Nesse momento, não sabia como dar marcha atrás para poder falar tranqüilamente

com ele quando voltassem a ver-se. Era assombroso o muito que lhe doía. Não tinha

esperado que lhe afetasse tanto.

Por sorte, não havia ninguém mais na cozinha, de modo que se asseou e lavou

rapidamente o rosto, e tratou de fingir que não acontecia nada. Tinha posto água a ferver

quando entrou Charlotte.—Quer uma xícara de chá? -propôs-lhe Gracie quase alegremente.

—Sim, por favor —aceitou Charlotte, apesar de só serem seis e meia. Sentou-se à

mesa e ficou cômoda—. Ocorre algo? -perguntou, esperando muito quieta como se

exigisse uma resposta.

Gracie hesitou uns instantes, debatendo-se entre dizer que não passava nada ou

lhe contar ao menos uma parte, no que concernia ao Martin Garvie. Não era consciente de

que Charlotte pudesse lhe ler tão bem o pensamento. Isso à desconcertou um pouco.

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—Vi Pontua Garvie esta manhã - respondeu, deixando cair a tampa da caixa do chá

com muita força e mantendo-se de costas à mesa—. Faz dias que não vê seu irmão e está

muito preocupada se por acaso lhe aconteceu algo.

—Como o que? -interessou-se Charlotte.

 A chaleira começou a apitar e Gracie a pegou pela alça para não queimar os dedos

enquanto o retirava do fogão. Escaldou o bule e o esvaziou na pia; depois depositou as

folhas de chá e o encheu de água. Já tinha levado o leite à mesa e nenhuma das duas

tomava açúcar.

Não lhe ocorreram mais desculpas para não sentar-se, de modo que o fez com

estupidez, fugindo o olhar do Charlotte.

—Não está na casa do Torrington Square onde trabalhava -explicou a sua

senhora— e o mordomo diz que já não trabalha ali, mas não lhe contou o que aconteceu

nem aonde foi.

—Não tinha intenção de olhar ao Charlotte nos olhos, mas de repente a realidade da

situação do Martin pôde mais que seu amor próprio—. E se as coisas fossem bem, ele não

teria desaparecido assim, porque estão muito unidos -se apressou a acrescentar. — Só se

têm o um ao outro. Seja o que for que passou, ele o teria dito, mas sobretudo se esqueceu

de seu aniversário, algo que nunca antes tinha feito.

Charlotte franziu o sobrecenho.

—Que fazia na casa do Torrington Square?

—Era valete do senhor Stephen Garrick -respondeu Gracie imediatamente—, Não

era um lacaio nem nada parecido.

Pontua diz que o senhor Garrick confiava nele. Sei que a pessoa pode ser

despedida facilmente se fizer uma tolice ou parece que a fez, mas por que não avisar a

Pontua e evitar que se preocupasse?

—Não sei - disse Charlotte pensativa. Estendeu um braço, serviu chá para as duase depois deixou o bule no descanso. —  Devia estar muito angustiado por algo ou

certamente lhe diria que partia. Pode ser inclusive que tenha conseguido um emprego

melhor. Sabe ler Pontua?

Gracie levantou a vista, surpreendida.

—Bom, não acredito que lhe enviasse uma carta se não sabe - raciocinou

Charlotte—. Embora suponha que alguém poderia haver-lhe lido.

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Gracie sentiu como aumentava seu desgosto. Tinha uma sensação de vazio no

estômago e, entretanto, a idéia de comer lhe repelia. Tomou um gole de chá quente, mas

isso não a fez sentir-se melhor.

—Que mais? -perguntou Charlotte com suavidade.

Gracie ainda hesitava. De certo modo, era reconfortante que a compreendessem tão

bem, mas seguia envergonhada de quão inepta tinha sido ao enfrentar Tellman.

 Agravava-o o fato de que até então sempre o tinha dirigido bem. Charlotte esperaria

algo melhor dela. Decepcionaria—a.

Supunha-se que as mulheres eram inteligentes e não se comportavam com tanta

estupidez. Bebeu outro gole. Estava muito quente, teria que ter esperado que se esfriasse.

— Averiguou algo? -perguntou Charlotte.

Isso foi fácil de responder.

—Não. Embora quando lhe explicou ao mordomo que era sua irmã, não lhe disse o

que tinha acontecido ao Martin nem aonde se foi.

Charlotte baixou a vista à mesa.

—O senhor Pitt já não está na polícia. Talvez deveríamos falar com o senhor

Tellman e tentar lhe pedir ajuda.

Gracie sentiu um repentino golpe de calor nas faces. Não tinha escapatória.

—Já o pedi - confessou com tristeza, com o olhar fixo na mesa—. Diz que não há

nada que ele possa fazer, porque Martin tem direito a ir e vir sem dizer a sua irmã. Não é

um delito.

—Oh. —Charlotte permaneceu sentada em silêncio uns minutos. Provou com

cuidado seu chá e comprovou que se tinha esfriado o suficiente para não queimar a

boca—. Então teremos que fazer algo nós - disse por fim. — Me conte tudo o que sabe de

Pontua e Martin, e da casa dos Garrick do Torrington Square.

Gracie se sentiu como um marinheiro perdido que avista por fim terra no horizonte.Havia algo que podiam fazer.

Descreveu obediente ao Charlotte sua amizade com Pontua, selecionando o

importante: sua honradez, sua perseverança, as lembranças da infância que lhe tinha

explicado, seus sonhos de ter algum dia sua própria família e tudo o que tinha

compartilhado com seu irmão ao longo dos solitários anos em que cresceram juntos.

Charlotte escutou sem interrompê-la e ao final assentiu. — Acredito que tem motivos

para preocupar-se - disse—. Precisamos averiguar onde está e se se acha bem. Se tiverperdido seu emprego e se sente muito envergonhado para dizer-lhe a sua irmã, então

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devemos nos assegurar de que ela o compreende, e depois, se for possível, ajudar a ele a

achar outro trabalho.

Suponho que não tem nem idéia se existe alguma possibilidade de que tenha

cometido uma estupidez.

—Não sei - reconheceu Gracie—. Pontua não faria nenhuma tolice, mas isso não

significa que ele não a fizesse. Ela acredita que não, mas o que vai dizer.

—É difícil pensar mal dos seus - concordou Charlotte.

Gracie levantou a vista para ela, com os olhos muito abertos.

—O que vamos fazer?

—Diga a Pontua que a ajudaremos - respondeu Charlotte—. Tentarei me inteirar do

que possa sobre à casa do Garrick.

Sem dúvida, Stephen Garrick terá conhecimento do ocorrido, embora não saiba

onde está Martin Garvie neste momento.

—Obrigada - disse Gracie muito séria—. Muito obrigada.

 Ao quarto dia do descobrimento do assassinato do Edwin Lovat, os jornais exigiam

abertamente que detivessem, ou ao menos interrogassem, ao Saville Ryerson.

Sabia-se que se achava na casa no momento do crime, e o autor do artigo só teve

que expor que assunto lhe tinha levado ali para insinuar a resposta.

Pitt se sentou à mesa do café da manhã com os lábios apertados, o rosto pálido.

Charlotte não fez nenhum comentário nem interrompeu os pensamentos dolorosos que

saltava à vista que o atormentavam.

 A defesa do Ryerson, que tinha exigido o senhor Gladstone, começava a ser cada

vez mais difícil. Ela observou a seu marido discretamente e desejou que houvesse algum

modo de lhe oferecer, se não ajuda, ao menos consolo.

Mas se fosse sincera, achava que Ryerson era culpado, se não do crime, de ter

tentado encobri-lo.Se alguém não tivesse chamado à polícia, teria retirado o cadáver do lugar do crime

e teria feito todo o possível por ocultar as provas.

Isso era um delito que nenhuma aptidão para solucionar os problemas na indústria

algodonera do Manchester podia justificar; em realidade, não tinha nada que ver com o

fato de que tivesse uma amante no Eden Lodge.

Isso era uma debilidade pessoal, um luxo que lhe havia custado muito caro.

Olhou a ansiedade refletida no rosto de Pitt e a invadiu uma onda de cólera aopensar que se esperasse dele a responsabilidade de resgatar a um homem de sua própria

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Emily já a esperava, vestida com sua habitual elegância em seu verde pálido

favorito que tão bem assentava a seu tom de tez.

Mal Charlotte entrou na sala, levantou-se com uma expressão emocionada, os olhos

brilhantes. Aproximou-se dela e a beijou um pouco impaciente; depois se afastou.

—O que se passou? -quis saber —. Disse que era importante. Pareço terrivelmente

cruel ao expressá—lo em palavras, sei, quando foi um verdadeiro golpe para o Thomas, e

absolutamente injusto, mas não sabe o que lamento que deixasse Bowl Street! Não tenho

nem idéia de que casos leva agora, mas todos parecem segredos. —Retrocedeu e indicou

ao Charlotte com um gesto uma das macias cadeiras com estofo de flores—. Estou tão

aborrecida da alta sociedade e inclusive a política parece terrivelmente tediosa neste

momento - prosseguiu, recolhendo a saia e sentando-se ela também—. Não houve nem

um escândalo decente, além do da mulher egípcia. -inclinou-se para diante, com uma

expressão animada—. Sabia que os jornais exigem que detenham também ao Saville

Ryerson? Não é absurdo? —Esquadrinhou o rosto de Charlotte de maneira inquisitiva.

—Sponho que Thomas teria trabalhado no caso se continuasse no Bowl Street!

Talvez seja melhor que não o faça. Não acredito que eu gostaria que desembaraçassem

esse assunto!

—Receio que o caso que me trouxe é mais prosaico -disse Charlotte, tratando de

manter seu rosto inexpressivo.

Não podia se permitir desviar do tema que trazia entre mãos nem pelo mais picante

dos escândalos. Recostou-se na cadeira. A sala estava decorada em tons dourados e

cinzas e na mesa havia um vaso com rosas amarelas tardias e crisântemos com aroma de

terra.

Por um instante, viu-se transportada à casa onde tinha crescido, alheia à escuridão

e a pobreza do mundo maior que havia fora.

 A lembrança passou.—Do que se trata? -perguntou Emily juntando as mãos no regaço e lhe prestando

toda sua atenção—. Me dê algo no que ocupar a mente que não sejam trivialidades. Estou

mortalmente aborrecida de falar de coisas que não importam. -Sorriu com fingida

brincadeira de si mesma. — Receio que minha superficialidade social era passageira. Não

é alarmante? A busca do prazer já não me diverte. É como comer muito suflé de chocolate,

algo que faz uns anos me teria parecido impossível.

—Então deixa que lhe fale de algo muito mais comum - replicou Charlotte.

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Dispunha-se a explicar a situação que tanto preocupava ao Gracie quando se

ouviram uns bruscos golpes na porta, como efetuados com o cabo de uma bengala, e um

momento depois a porta se abriu de repente e apareceu na soleira uma anciã miúda e de

aspecto feroz.

Ia vestida de cor ameixa e negro e sua expressão era de mal dissimulada

indignação, embora não tinha soubesse a quem dirigi-la, se à Emily ou à Charlotte.

Talvez tivesse sido inevitável. Charlotte se levantou e com um grande esforço se

obrigou a sorrir.

—Bom dia, avó - disse, aproximando-se da velha dama—.Tem bom aspecto.

—Não dê por assentado como me encontro, jovem! -admoestou a anciã—. Faz

meses que não vem ver-me! Desde que se casou com esse policial perdeu todo sentido do

decoro.

 A decisão do Charlotte de mostrar-se educada desapareceu no ato.

—Mudou de opinião então! -replicou.

 A anciã ficou desconcertada. Isso a irritou ainda mais.

—Não entendo do que se refere. Não pode falar mais claro? -Olhou furiosa a sua

outra neta—. vai convidar me a que tome assento, Emily? Ou também perdeu suas

maneiras?

—Pode se sentar quando quiser, avó -disse Emily com tom de resignação—. Sabe

de sobra.

 A anciã se sentou com decisão na terceira cadeira e segurou em equilíbrio sua

bengala ante ela. Voltou-se para Charlotte.

—O que quer dizer com se mudei de opinião? Eu não mudo de opinião!

—Disse que perdi o sentido do decoro -lhe recordou Charlotte.

—E o fez! -exclamou a anciã cortante—. Isso não mudou!

Charlotte lhe sorriu.— Antes assegurava que não tinha nenhum pingo.

—Vai permitir que me insultem? -perguntou a anciã à Emily.

— Acho que é Charlotte quem foi insultada, avó - indicou Emily, mas desta vez um

sorriso aparecia em seus lábios e lhe custava ocultá-lo.

 A anciã grunhiu.

—Bom, se o foi, sem dúvida o procurou. Quem a insultou? Mistura-se com pessoas

de classe muito baixa. Atreveria-me a dizer que isso é a única coisa que pode aspirar.

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É conseqüência de haver-se casado abaixo de sua posição social. Sempre disse

que traria problemas. Mas alguém me fez conta? É claro que não. Bom, vê agora o que

acontece? Embora não sei que espera que faça Emily.

Charlotte pôs-se a rir e ao cabo de um momento de hesitação, Emily a secundou.

 A anciã não tinha nem idéia do que lhes parecia tão divertido, mas sem dúvida não

ia admiti-lo.

Considerou por um instante o que fazer, depois decidiu que tinha menos que perder

se se somava às risadas e assim o fez. Foi um som estranho, como oxidado, que nem

sequer Emily, em cuja casa vivia, tinha ouvido em anos.

Ficou outros dez minutos. Passado esse tempo, e apesar de que ardia em desejos

de saber do que se devia a visita do Charlotte, levantou-se com dificuldade e saiu pisando

com decisão.

Era evidente que ninguém ia dizer e ela não renunciaria a sua dignidade para

perguntar.

Mal a porta se fechou, Emily se virou para frente.

—E então? –perguntou-. O que é esse problema tão prosaico que a preocupa?

—Gracie tem uma amiga, Pontua Garvie - começou a explicar Charlotte—. Seu

irmão, Martín, é valete do Stephen Garrick, que vive no Torrington Square.

Pontua e Martin são muito unidos, já que são órfãos desde os seis e oito anos,

respectivamente.

—E então? -Emily tinha os olhos muito abertos.

—Ninguém viu ao Martin há quatro dias, e segundo o mordomo do Garrick, já não

trabalha na casa, mas não quis dizer a Pontua onde se foi nem por que.

—Um valete desaparecido? -Na voz do Emily não houve nenhuma inflexão que

traísse suas emoções.

—Um irmão desaparecido - corrigiu Charlotte—. Mais significativo que sua ausênciaé o fato de que coincidiu com o aniversário de Pontua, que ele nunca tinha esquecido até

então.

Se tivesse ficado sem emprego, e, portanto, sem alojamento, por muito vergonhosas

ou lamentáveis que tivessem sido as circunstâncias, com certeza teria encontrado o modo

de informá-la de seu paradeiro.

—O que acha? -Emily franziu o sobrecenho—. Denunciaram seu desaparecimento

os Garrick?

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—Não sei! -limitou-se a dizer Charlotte com tom impaciente—. Não posso ir à

delegacia de polícia mais próxima e perguntar. Mas se o fizeram, por que não o

comunicaram a Pontua, se por acaso ela soubesse algo?

—Pareceria inteligente - concordou Emily—. Mas as pessoas nem sempre são tão

preparadas como acham. A pessoa mais surpreendente carece de sentido comum.

Que outras possibilidades há? -Contou com os dedos—. O despediram por roubar?

Fugiu com uma mulher, uma criada de outra casa? Fugiu com a filha de alguém, ou ainda

pior, com uma senhora casada? Ou com uma prostituta? -Começou a contar com os da

outra mão—. Contraiu dívidas e teve que escapar de seus credores? Ou pior ainda, sofreu

um acidente ou o agrediram, e está morto em alguma parte, mas ainda não o

identificaram?

Charlotte tinha considerado já a maioria dessas possibilidades, sobretudo a última.

—Sim, sei -disse em voz baixa—, eu gostaria de averiguar qual delas corresponde

com a verdade, por Pontua e Gracie. Acredito que há brigado com o inspetor Tellman a

respeito porque lhe disse que não era um caso policial e não podia fazer indagações.

—Inspetor! Ah… sim. -A expressão de Emily se animou—. Que tal vai o idílio? Acha

que ela se abrandará e se casará com ele? O que fará você sem ela? Contratará a uma

boa criada com experiência ou lhe ensinará de novo a outra criança? Não pode, não?

—Não sei se o fará - respondeu Charlotte com tristeza—. Acredito que sim. Isso

espero, porque ele a quer muito e está começando a dar-se conta disso, embora lhe custa

reconhecê-lo.

Não tenho nem idéia do que farei sem ela. Não quero nem pensar. Pelo que a mim

respeita, já houve muitas mudanças em minha vida.

 A compaixão de Emily foi instantânea e sincera.

—sei! -disse com suavidade—. E o sinto muito. Era muito mais divertido antes,

quando ajudávamos ao Thomas em seus casos, nossos casos, não é?Charlotte mordeu o lábio, em parte para dissimular um sorriso, em parte para não

deixar-se levar pelas lembranças e voltar para o presente.

—Preciso averiguar todo o possível sobre o Stephen Garrick - respondeu com

firmeza—. O suficiente para fazer uma idéia do que ocorreu ao Martin Garvie, ou, se for

necessário, perguntar-lhe.

— Ajudarei-a - afirmou Emily sem vacilar —. O que sabe dos Garrick?

—Nada, só onde vivem, mais ou menos.Emily se levantou.

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—Então é preciso que nos inteiremos. -Olhou de cima abaixo ao Charlotte para

avaliar seu aspecto—. Está preparada para fazer uma visita, só necessita de um chapéu

melhor.

Emprestarei-lhe um de meus. Estarei pronta em quinze minutos. -Reconsiderou—

o—. Ou talvez meia hora.

Em realidade, partiram quase uma hora depois na carruagem de Emily, primeiro

para visitar uma amiga bastante íntima para poder lhe perguntar abertamente.

—Não, não está casado - as informou a senhora Edsel, bastante séria. Era uma

mulher agradável de aspecto bastante comum, a quem a distinguia sua expressão

animada e um gosto pouco afortunado quanto aos brincos. —  Ele está considerando

alguma conhecida sua?

— Acredito que sim - mentiu Emily com perita desenvoltura. Estava acostumada a

adaptar-se às convenções sociais—. Deveria fazê-lo?

—Bom, acredito que tem muito dinheiro. — A senhora Edsel se inclinou ligeiramente,

com uma expressão ávida.

 As intrigas eram para ela como um alimento, mas também desejava sinceramente

prestar sua ajuda—. De muito boa família. Seu pai, Ferdinand Garrick, é um homem muito

influente. Uma folha de serviços irrepreensível, ou isso diz meu marido.

—Por que não seria seu filho um bom partido então? -perguntou Emily com tom

inocente.

—Bom, talvez poderia sê-lo para a mulher adequada.

 A senhora Edsel recordou suas aspirações sociais e se tornou mais circunspeta.

—E se não se tratasse da mulher adequada? —Charlotte não pôde seguir contendo-

se.

 A senhora Edsel a olhou com um vislumbre de receio.

Tinha relacionamento com Emily, mas Charlotte era uma desconhecida da qual nãosabia sua possível utilidade nem o perigo que entranhava.

Emily dirigiu a sua irmã um olhar de advertência, assim como de censura por ter

interrompido.

Não havia forma de voltar atrás, Charlotte se esforçou por sorrir, conseguindo mal

mostrar os dentes.

—Estou preocupada com uma amiga - confessou com absoluta sinceridade.

 Apesar de sua diferente posição social, Gracie era sem dúvida uma amiga e dasmelhores.

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 A senhora Edsel se tranqüilizou um pouco.

—É jovem sua amiga? -perguntou.

—Sim. —Charlotte supôs que essa era a resposta adequada.

—Então acredito que faria bem em procurar em outra parte a não ser que seja muito

pouco agraciada.

Desta vez Charlotte mordeu a língua.

—Que defeito tem? -perguntou Emily com extraordinário descaramento. —  Tem

amigos de duvidosa reputação? Quem poderia conhecê-lo?

—Oh, bom... — A senhora Edsel estava dividida entre a preocupação de cometer

uma indiscrição irreparável e uma intensa curiosidade—, Bom, soube que é sócio dos

clubes habituais -prosseguiu.

Essa observação era pouco comprometedora.

—Sim? - Emily abriu muito seus olhos azuis—. Não recordo ter ouvido meu marido

mencionar seu nome. Talvez não tenha reparado nele.

—Estou certa de que é sócio do White —afirmou a senhora Edsel—. E é quase o

melhor.

—Sem dúvida - concordou Emily.

—Todo o que é alguém —murmurou Charlotte sentenciosamente.

 A senhora Edsel soltou um gritinho abafado e a seguir um risinho que se apressou

em conter.

—Se for sincera, não sei! Mas meu marido diz que bebe muito mais do que é capaz

de agüentar, bastante freqüentemente.

Não é um defeito terrível, sei, mas eu particularmente não gosto. E tem um caráter

bem taciturno. Isso me parece o mais difícil. Prefiro um homem cuja conduta seja serena e

previsível.

—O mesmo digo - assentiu Emily, evitando o olhar de Charlotte se por acaso risse,pois sabia que era mentira. Isso soava profundamente aborrecido.

—E eu! -acrescentou Charlotte com sentimento quando a senhora Edsel a olhou

procurando sua aprovação—. De fato, para conviver com uma pessoa, é essencial!

Uma mulher não pode estar perguntando-se eternamente o que esperar.

—Tem toda a razão - observou a senhora Edsel sorrindo—. Confio em lhes parecer

atrevida, mas aconselharia sem dúvida a sua amiga que esperasse uns meses mais.

É sua primeira temporada?

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Charlotte e Emily disseram "sim" e "não" ao mesmo tempo, mas a senhora Edsel

olhava ao Charlotte.

Durante a seguinte meia hora falaram com grande cordialidade da dificuldade de

contrair um bom matrimônio, pelo que se alegravam de estar já situadas, assim como de

não ter ainda que enfrentar a obrigação de casar a suas filhas, Charlotte teve que fazer um

grande esforço, pinçando em sua memória, para achar as frases adequadas durante a

conversa.

Também foi um malabarismo digno de um artista de circo não revelar o cargo

socialmente inaceitável do Pitt.

Embora a Brigada Especial possivelmente soasse melhor que a polícia a secas,

supunha-se que não devia falar disso.

Feria-lhe em seu orgulho fingir que não sabia nada, e nessa época de progressos,

até à senhora Edsel surpreendeu uma simplicidade tão feminina.

Mal estiveram de novo na carruagem, Emily estalou em grandes gargalhadas que

deram passagem ao soluço. Charlotte não sabia se rir ou ir às nuvens.

—Ria ! -ordenou Emily enquanto o cocheiro esporeava aos cavalos para as levar a

sua seguinte entrevista—. Esteve esplêndida e absolutamente absurda! Se se inteirasse,

Thomas lhe recordaria isso freqüentemente.

—Bom, pois não sabe! -disse Charlotte com tom de advertência.

Emily se recostou comodamente no assento acolchoado da carruagem, sem deixar

de sorrir.

— Acredito que deveria contar-lhe só que não saberia fazer bem. Em realidade,

deveria fazê-lo eu.

—Emily!

—Oh, vamos! —Era mais um protesto por sua atitude pusilânime que um pedido—.

Estou certa de que apreciaria uma boa brincadeira e esta é!Charlotte teve que admitir que era verdade.

—De acordo, mas escolhe bem quando fazê-lo. Neste momento está levando um

caso lamentável.

—Podemos ajudar? -perguntou Emily imediatamente, ficando completamente séria.

—Não! -replicou Charlotte com firmeza—. Ao menos, ainda não. De todo modo,

precisamos achar ao Martin Garvie.

—Faremo—lo! -assegurou Emily com confiança—. Vamos almoçar com a pessoaadequada. Arrumei-o enquanto me vestia.

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Essa pessoa resultou ser um jovem protegido do marido do Emily, Jack. Era seguro

de si mesmo e ambicioso, e parecia encantado de que a esposa de seu mentor o

convidasse a almoçar. E dado que a irmã desta estava presente, não havia nada incorreto

no convite.

Para começar, conversaram de todo tipo de temas de interesse geral. A convenção

social permitia falar da triste situação do Manchester e seus trabalhadores das fábricas de

algodão, e daí a conversa derivou de forma bastante natural para o assassinato do Edwin

Lovat, por causa da implicação do Ryerson, embora em realidade, nenhum deles a chegou

a mencionar.

O garçom lhes trouxe o primeiro prato de seu excelente almoço, um delicado patê

belga para o senhor Jamieson e consomé para Charlotte e Emily.

Emily não perdeu mais tempo, sabendo que Jamieson teria que voltar logo para

suas obrigações. Não podia abusar mais.

—Trata-se de uma investigação que está levando a cabo um departamento muito

secreto do governo -começou a dizer Emily descaradamente, depois de dar um pontapé

em Charlotte por debaixo da mesa, para adverti-la que se mostrasse surpreendida e não

lhe ocorresse contrariar —. Minha irmã -olhou ao Charlotte—  fez ver um modo em que

posso oferecer minha ajuda, da forma mais discreta, compreende?

—Sim, senhora Radley? -disse Jamieson com gravidade.

— A vida de um jovem poderia depender disso -advertiu Emily—. De fato, poderia

estar morto, embora espere sinceramente que não seja assim, —Passou por cima a

expressão de alarme dele—. O senhor Radley me disse que é você sócio do White. É

certo?

—Sim, sim, sou-o. Sem dúvida não há...

—Não, é claro que não - se apressou a tranqüilizá—lo Emily—. O White não está

comprometido. —inclinou-se ligeiramente para ele, sem fazer caso do consomé, com umaexpressão de concentração—. Será melhor que seja franca com você, senhor Jamieson.

Ele também se inclinou, com os olhos muito abertos.

—Prometo-lhe, senhora Radley, que pode contar com minha absoluta reserva.

—Obrigada.

O garçom retornou para retirar os pratos e servir o prato principal, peixe cozido para

as damas, rosbife para o Jamieson.

Mal se foi, Charlotte tomou ar e sentiu como Emily lhe dava uns golpecitos notornozelo com o pé. Fez uma ligeira careta de dor.

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— Acredito que um jovem chamado Stephen Garrick poderia facilitar informação que

nos seria de utilidade -disse.

Jamieson franziu o sobrecenho, mas não pareceu perplexo ou surpreso como ela

tinha esperado.

—Lamento ouvi-lo - comentou em voz baixa—. Todos sabíamos que se passava

algo.

—Como chegaram a essa conclusão? -apressou-o Charlotte, tratando de que não

lhe notasse a impaciência e o medo repentino que sentia.

Ele a olhou com franqueza, seus olhos azul claros muito abertos.

—Bebia muito mais do que alguém bebe por prazer -respondeu—. Era como se

tratasse de afogar alguma pena dentro dele. —Havia compaixão em seu rosto—. A

princípio pensei que só se excedia, como pode fazê-lo qualquer um, já sabe.

Para seguir o ritmo, sem querer ser o primeiro em voltar atrás. Mas logo comecei a

me dar conta de que havia algo mais. Beber lhe assentava mal, mas continuava fazendo-o.

E tanto bebia só como acompanhado.

—Entendo -reconheceu Emily—. É evidente que há algo que lhe causa uma grande

aflição. Suponho que não sabe do que se trata, posto que não o mencionou.

—Não. -Jamieson deu ligeiramente de ombros—. E, sinceramente, não sei como

poderia averiguá—lo. Faz dias que não o vejo, e a última vez não estava em condições

para responder com coerência a nenhuma pergunta. Eu... Sinto muito.

Não estava claro se se desculpava por sua possível negligência ou por falar de um

tema tão desagradável.

—Mas conhece-o? -pressionou Charlotte—. São amigos?

Jamieson se mostrou indeciso, como se percebesse de antemão o que ela ia

perguntar lhe.

—Sim - admitiu na defensiva—. Bom, não exatamente. Não sou um de seu... -seinterrompeu.

—O que? -perguntou Emily.

Jamieson a olhou. Ela estava sentada muito erguida, como a tia avó Vespasia,

sorrindo-lhe na expectativa, com um ar que a fazia muito atraente.

—Um de seu círculo - concluiu Jamieson a seu pesar.

—Mas poderia perguntar por aí -começou a dizer Emily—. Ao menos sobre sua

situação atual e onde poderia estar.—Sim - aceitou ele a contra gosto—. Sim, é claro.

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—Bem. -Emily era implacável—. Existe um grande perigo. Não há tempo que perder

ou poderia ser muito tarde. Poderia ir vê-lo esta mesma tarde?

—Seriamente é... tão...? —Jamieson não estava seguro de se acalorar-se ou

alarmar-se.

—Sim -lhe assegurou ela.

Jamieson levou a boca um bocado de carne e batata assada.

—Muito bem. Como a ponho à corrente depois do que averigüei?

—Por telefone - disse Emily imediatamente. Tirou um cartão de visita de uma

pequena caixa gravada que levava na bolsa—. Aí está o número. Por favor, não fale disso

com ninguém além de mim, com ninguém absolutamente. Compreendido?

—Sim, senhora Radley, é claro.

Charlotte agradeceu à Emily de todo coração e aceitou seu oferecimento de

acompanhá—la a casa na carruagem. Às oito e meia, enquanto ela e Pitt estavam

sentados no salão, soou o telefone. Pitt o respondeu.

—É Emily, para você - disse da soleira.

Charlotte saiu ao corredor e pegou o aparelho.

—Sim?

—Stephen Garrick não está em sua casa. — A voz do Emily se ouvia estranha e

muito fraca pela linha—. Ninguém o viu há dias, e o mordomo disse que não podia informar

ao senhor Jamieson de quando voltaria.

Charlotte, parece que também desapareceu! O que vamos fazer?

—Não sei. —Charlotte se deu conta de que estava tremendo—. Ainda não...

—Mas faremos algo, não é? -disse Emily ao cabo de um segundo—. Parece sério,

não? Quero dizer, mais sério que a demissão de um valete.

—Sim -concordou Charlotte com a voz um pouco rouca—. Sim, parece.

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Capítulo 4 

No dia que Charlotte se comprometeu em ajudar Gracie, e indiretamente à Pontua,

Pitt retornou ao escritório do Narraway e o achou dando voltas nervoso pela sala.

Voltou-se quando Pitt abriu a porta. Estava abatido, cansado, com os olhos muito

brilhantes. Olhou-o interrogante.

Pitt fechou a porta atrás de si e permaneceu em pé.

—Ryerson esteve ali - informou sem rodeios—. Não o nega. Ajudou-a à transladar o

cadáver e não pensou em ir à polícia. Ela não disse nada, mas ele o contará se a polícia o

chamar para lhe interrogar. Protegerá-a a toda custo.

Narraway guardou silêncio, mas pareceu ficar ainda mais tenso, como se as

palavras do Pitt tivessem um significado mais profundo que os simples fatos.

— A versão dela não tem sentido - prosseguiu Pitt, desejando que Narraway

respondesse, que dissesse algo para fazer mais fácil a conversa, mas parecia tão aflito

que era incapaz de reagir com sua habitual inteligência incisiva.

Esperava que Pitt tomasse a iniciativa—. Se ela não estava implicada, por que ia

querer transladar o cadáver? -acrescentou Pitt—. Por que não chamou à polícia, como

faria qualquer pessoa em sua situação?

Narraway o olhou furioso e lhe quebrou a voz quando falou.

—Porque ela preparou tudo! Queria que a surpreendessem. Pode inclusive ser que

fosse ela quem chamou à polícia. Lhe ocorreu pensá—lo?

—Que se incriminasse a si mesmo? -disse Pitt com total incredulidade.

Narraway torceu o gesto com amargura.

— Ainda não começou o julgamento! Espere a ver o que declara ela. Até agora, se

Talbot não mente, não disse nada. E se reconhecer, como por puro desespero, queRyerson disparou ao Lovat em um arrebatamento de ciúmes? -Sua voz imitava cruelmente

o tom que imaginava que ela empregaria—. Tratou de ocultá-lo, porque o ama e se sente

culpada por havê-lo provocado, sabendo que tem um temperamento incontrolável, mas

não pode seguir protegendo-o, e não quer que a enforquem por sua culpa.

Narraway olhou ao Pitt, desafiando-o a que demonstrasse que estava equivocado.

Pitt estava perplexo.

—Para que? -perguntou.

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Mal lhe brotaram as palavras dos lábios, dançaram ante ele um sem-fim de

possibilidades horríveis, violentas, pessoais, políticas.

Narraway lhe dirigiu um olhar furioso.

—Ela é egípcia, Pitt. Para começar, me ocorre a questão do algodão! Já há

alvoroços no Manchester pelos preços. Nós queremos baixá-los e Egito quer subi-los.

Desde que a guerra civil norte-americana cortou nosso fornecimento do sul e

passamos a depender do Egito, o equilíbrio de forças mudou.

 A América do Norte tece seu próprio algodão. A indústria européia nos está

alcançando e necessitamos ao Império não só para comprar, mas também para vender.

Pitt franziu o sobrecenho.

—Não compramos quase todo o algodão ao Egito de todo modo?

—É claro que sim! -exclamou Narraway com impaciência—. Mas um trato que deixa

a uma das partes insatisfeita ao final não serve a nenhuma das duas, porque não pode

durar, Ryerson é um dos poucos homens cuja visão de futuro abrange mais de dois anos e

é capaz de negociar um acordo que deixe tanto aos cultivadores egípcios como aos

tecedores britânicos com a sensação de que ganharam algo. -seu rosto ficou ainda mais

tenso—. Além disso, está a questão do nacionalismo egípcio.

Por Deus, não queremos voltar a ter que enviar cañoneras! Já bombardeamos uma

vez Alexandria nos últimos vinte anos! - Olhou a careta de Pitt—. E há o ardor religioso -

prosseguiu—.

Não preciso lhe recordar o levantamento em Suam.

Pitt não respondeu. Todo mundo recordava o lugar do Jartum e o assassinato do

general Gordon.

—Também terá que considerar o benefício pessoal, ou o ódio ou a vingança -

concluiu Narraway—. Necessita algo mais?

—Então precisamos averiguar a verdade antes que comece o julgamento -respondeu Pitt—. Embora duvide de que sirva de algo.

—Terá que conseguir que sirva! - balbuciou Narraway entre dentes, com a voz

embargada pela emoção—. Se condenarem ao Ryerson, o governo terá que substituí—lo

pelo Howlett ou Maberley.

Howlett cederá ante os trabalhadores e descerá tanto os preços que afundará aos

egípcios. Teremos uns anos de riqueza e depois sobrevirá o desastre, a pobreza, um Egito

sem algodão que vender, nem dinheiro com que comprar nada. Possivelmente inclusive arebelião.

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Maberley cederá ante os egípcios e teremos distúrbios por todo o noroeste do país,

e a polícia se verá obrigada a reprimi—los, talvez até terá que intervir o exército. -Tomou ar

para acrescentar algo mais, mas mudou de parecer e deu as costas ao Pitt—. Até agora

tudo incrimina a essa mulher e Ryerson está disposto a ser seu cúmplice. -Agitou uma mão

no ar —.

Necessitamos de outra explicação. Indague na vida do Lovat. Quem mais poderia

havê-lo matado. Quem era. Que relação mantinha com a mulher. Suponho que cabe

esperar que exista uma justificativa para que ela o matasse.

Não havia rastro de esperança no Narraway e, entretanto, por debaixo da amargura,

Pitt acreditou detectar uma débil confiança em que houvesse outra explicação melhor.

—Você conhece o Ryerson, senhor - começou a dizer Pitt—. Se a mulher for a

 julgamento, permitirá realmente que o impliquem? Se for culpado de algum modo, não se

demitirá primeiro, para não ser ministro do governo durante o julgamento?

Narraway seguiu de costas a ele, para ocultar seu rosto. —Provavelmente -

concordou. — Mas não estou disposto a lhe pedir que o faça até não estar convencido de

que tem alguma responsabilidade na morte do Lovat. - Havia desgosto em seu tom, assim

como na rigidez de seus ombros, enquanto a luz que entrava pela estreita janela caía

sobre sua cabeça. — Apresente se aqui depois de amanhã - disse por último. Voltou-se no

preciso momento em que Pitt estava chegando à porta—. Pitt!

—Sim, senhor?

— Aceitei-o na Brigada Especial porque Cornwallis me assegurou que era seu

melhor detetive e conhece a alta sociedade. Sabe andar-se com pés de chumbo, mas

mesmo assim averigua a verdade.

Era uma afirmação, mas também uma pergunta, inclusive uma súplica.

Por um instante, Pitt teve a sensação de que lhe pedia sua ajuda de um modo que

não podia descrever ou explicar. Logo a impressão se desvaneceu.—Comece de uma vez - ordenou Narraway.

—Sim, senhor -voltou a dizer Pitt. Em seguida, Pitt saiu e fechou a porta atrás dele.

Dirigiu-se diretamente aos escritórios onde Lovat trabalhava como diplomata desde

há mais ou menos um ano antes de morrer. A polícia já tinha estado ali, é claro.

Tratava-se de uma informação tão pública que tinha aparecido no necrológio do

Lovat, de modo que quando Pitt chegou, recebeu-o com cansada resignação Ragnall, um

oficial de mais de quarenta anos de idade que era evidente que já tinha respondido todasas perguntas de rigor nesses casos.

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Ragnall permaneceu em pé no silencioso escritório discretamente mobiliado com

vistas a Horse Guards Parade e olhou ao Pitt com paciência, mas com muito pouco

interesse.

—Não sei que mais posso lhe dizer - observou, convidando-o com um gesto a

sentar-se na poltrona frente à escrivaninha—. Não posso lhe dar outra explicação que a

evidente.

 Assediou à mulher até que ela se desesperou e lhe deu um tiro, bem em defesa

própria ou mais provavelmente porque ele a ameaçou transtornando seus planos.

—Em seu rosto se traduziu uma expressão de ligeiro desagrado—. E antes que me

pergunte isso, não tenho nem idéia de quais eram esses planos.

Pitt tinha poucas esperanças de obter grande coisa da entrevista, mas por algum

lugar tinha que começar. Acomodou-se na poltrona e olhou ao senhor Ragnall.

— Acredita que Lovat poderia ter assediado à senhorita Zakhari até o ponto de que

ela acreditasse que um simples desprezo não bastava para fazê-lo desistir? -perguntou.

Ragnall deu a impressão de surpreender-se.

—Bom, parece que isso foi o que ocorreu, não? Está dando a entender que ela o

incentivou deliberadamente, por alguma razão, e depois o matou? Por que, pelo amor de

Deus? Por que ia fazer uma mulher algo assim? -Franziu o sobrecenho—. Disse que era

da Brigada Especial.

— A Brigada Especial não tinha notícia da existência da senhorita Zakhari antes da

morte do senhor Lovat - respondeu Pitt à pergunta implícita—. Desejo saber se sua opinião

sobre o senhor Lovat concorda com a de um homem que continuaria assediando uma

mulher que lhe deixou claro que não deseja suas atenções.

Ragnall pareceu ligeiramente desconfortável. Seu rosto liso e bastante bonito se

ruborizou, embora de forma tão imperceptível que poderia ter sido uma mera mudança de

luz.—Suponho que diria que sim. - Soou como uma desculpa—. Acredito que a

senhorita Zakhari é muito atraente. Ao menos, isso é o que ouvi dizer. A pessoa pode

obcecar-se. -Apertou os lábios, dando uns momentos para procurar as palavras

adequadas com as que fazer compreender ao Pitt—. É egípcia. É pouco provável que haja

muitas mais egípcias em Londres. Não era uma mulher comum, fácil de substituir por

outra. Alguns homens se sentem atraídos pelo exótico.

—Você via o senhor Lovat com regularidade. -Pitt também abria passagem comtato. — Dava a impressão de estar "obcecado", como o expressou?

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—Bom... -Ragnall tomou ar e voltou a exalar.

—Poderia condenar a outro homem por proteger a reputação do Lovat - observou

Pitt sombrio.

Por um instante, Ragnall pareceu perplexo.

—Outro homem? -Logo o entendeu—, Oh, refere-se a essas tolices que dizem os

 jornais sobre o Ryerson? Com certeza só são... -Abriu as palmas das mãos para expressar

sua impotência na hora de descrever exatamente o que pensava.

—Isso espero - concordou Pitt—. Estava Lovat obcecado com ela?

—Eu não tenho nem idéia. -Ragnall se sentia visivelmente incômodo—. Nunca me

inteirei de que mantivesse uma relação séria com nenhuma mulher, ao menos não por

muito tempo.

Ele - nesse momento, já não podia ocultar o rubor de seu rosto—. Parecia lhe

resultar bastante fácil seduzir a uma mulher e depois trocá-la por outra.

— Assim, tinha muitas aventuras amorosas? -concluiu Pitt.

—Sim, sim. Receio que sim. Costumava ser bastante discreto, é claro. Mas a gente

acaba inteirando.

Ragnall era muito consciente de estar falando de temas íntimos com alguém

socialmente inferior, Pitt o tinha posto na situação de trair a sua própria classe ou seus

princípios.

Tanto o um como o outro era duro para ele e excedia suas profundas convicções

sobre si mesmo e seu lugar no mundo,

—Com que tipo de mulheres? -perguntou Pitt, com um tom ainda despreocupado e

cortês, Ragnall abriu muito os olhos, Pitt lhe sustentou o olhar.

—O senhor Lovat foi assassinado, senhor - lhe recordou Pitt. —  Receio que os

motivos de um crime assim não são freqüentemente tão simples como nós gostaríamos,

nem estão tão longe das transgressões sociais. Necessito mais informação sobre o senhorLovat e sobre as pessoas que o conheciam bem.

—Sem dúvida o matou a mulher egípcia, a senhorita Zakhari - disse Ragnall,

recuperando a calma—. Talvez fosse um néscio ao persegui-la quando suas atenções não

pareciam ser bem acolhidas, mas não há necessidade de implicar nisto a ninguém mais,

não lhe parece? -Olhou ao Pitt com uma expressão de desagrado.

—Tudo aponta a que o fez ela - concedeu Pitt—. Embora ela o nega. E, como você

diz, parece uma forma extremamente violenta e desnecessária de rechaçar a umpretendente não desejado.

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Pelo que ouvi dizer dela até agora, era uma mulher mais sutil. Devia ter tido antes

outros pretendentes não desejados. No que era diferente Lovat?

O rosto do Ragnall ficou tenso, e voltaram a acender-se o as faces e a mostrar uma

atitude contrariada.

—Tem razão - aceitou a contragosto—. Se ganhava a vida desse modo, e eu tinha

dado por feito que assim era, deveria ter sabido desembaraçar-se de um lastro com mais

habilidade do que isto parece indicar, a fim de melhorar sua situação.

—Exato - concordou Pitt com veemência. Pela primeira vez, alguém apresentava

um argumento a favor da Ayesha Zakhari. Surpreendeu-lhe o muito que lhe agradou—.

Como era Lovat? E não me repita seu obituário. Só a verdade pode ser justa com

todos.

Ragnall refletiu uns momentos.

—Com franqueza, era um mulherengo - disse a contragosto.

—Gostava das mulheres? -Pitt tratava de averiguar o que queria dizer exatamente

Ragnall—. Se apaixonava com facilidade? Utilizava-as? Poderia ter feito inimigos?

Claramente, Ragnall se sentia desventurado.

—Eu não sei em realidade.

—O que lhe faz pensar que era mulherengo, senhor? -perguntou Pitt sem rodeios—.

É sabido que há homens que exageram suas conquistas para impressionar a outros.

 As indiscrições não significam que o que se conta seja verdade.

No rosto do Ragnall se percebeu um vislumbre de mau gênio.

—Lovat não falava desses temas, senhor Pitt, ao menos eu não lhe ouvi fazê-lo. É o

que eu observei, assim como meus colegas.

—Que tipo de mulheres? -repetiu Pitt—. Como Ayesha Zakhari?

Ragnall se surpreendeu ligeiramente.

—Refere-se à estrangeiras? Ou...? -Não quis utilizar a palavra rameira. Descrevianão só à mulher, mas também aos homens que utilizavam seus serviços —. Que eu saiba

não - terminou bruscamente.

—Refiro a mulheres que não têm marido nem família em Londres -corrigiu Pitt—. E

que superaram a idade habitual para casar-se e talvez abram caminho como amantes.

Ragnall respirou fundo, como se tomasse uma decisão que lhe era difícil.

Pitt esperou. Talvez estivesse a ponto de averiguar algo que não implicasse ao

Ryerson.

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—Não - disse Ragnall por fim—. Não me pareceu que lhe importasse especialmente

e não tinha meios para manter uma amante, não muito bem. -interrompeu-se, ainda

resistente a comprometer-se mais.

Pitt o olhou fixamente.

— As esposas de outros homens? Suas filhas?

Ragnall esclareceu a voz.

—Sim, às vezes.

—Quem eram seus amigos? -perguntou Pitt—. De que clubes era membro?

Interessavam-lhe os esportes? Era aficionado ao jogo, ia ao teatro? Que fazia em seu

tempo livre?

Ragnall hesitou.

—Não me diga que não sabe - advertiu Pitt—. Estava no corpo diplomático! Você

não podia permitir-se não estar à corrente de seus costumes. Isso seria uma negligência

de sua parte. Deve conhecer seus colegas, seus problemas, sua situação econômica.

Ragnall se olhou as mãos, que estavam estendidas na escrivaninha, depois

levantou de novo o olhar para o Pitt.

—Lovat morreu - disse em voz baixa—. Não tenho nem idéia de se foi má sorte ou

se contribuiu de algum modo a isso.

Era bom em seu trabalho e não estou à corrente de que devesse dinheiro ou

favores. Pertencia a uma boa família e quando dava sua palavra, cumpria-a.

Sua carreira no exército foi honrosa e nunca lhe faltou à coragem, nem física nem

moralmente. Nunca o surpreendi mentindo nem conheço ninguém que o tenha feito.

Era leal a seus amigos e sabia comportar-se como um cavalheiro. Tinha certo

encanto e não havia nada mesquinho nele.

Pitt sentiu a habitual onda de remorsos que se apoderava dele quando investigava

um assassinato. De repente, a busca de informação parecia não importar nada ante aperda de uma vida, a vitalidade, os pontos débeis, virtudes e idiossincrasias.

Truncou-se uma vida, não de forma natural com a idade, senão sem prévio aviso,

deixando-a incompleta. Os defeitos ou os pecados da pessoa em questão que tinham

contribuído ao fatal desenlace pareciam tão pouco relevantes para esquecê-los.

Mas os sentimentos diminuiriam sua capacidade de análise e tinha o dever de

averiguar a verdade, custasse o que custasse, por complicada ou dolorosa que fosse.

—Os nomes de seus amigos - pediu Pitt—. Pode ser que descubra que é inocentede todo cargo, senhor Ragnall, mas não posso dá-lo por assentado. Se enforcarem à

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senhorita Zakhari, ou a alguém mais, por seu assassinato será porque sabemos o que

ocorreu e por que.

—Sim, é claro.

Ragnall pegou uma folha de papel e uma pena, mergulhou-a no tinteiro e começou a

escrever. Secou a folha e a estendeu ao Pitt.

—Obrigado.

Pitt tomou a lista, leu os nomes e os clubes onde os podia achar, e se despediu.

Pitt entrevistou algumas das pessoas que Ragnall tinha cotado na lista, embora

averiguou muito pouco mais.

Ninguém se sentia cômodo falando de um companheiro que estava morto e já não

podia defender-se. Não era tanto uma questão de afeto como de lealdade a seus próprios

ideais, talvez porque achavam que a traição supunha expor-se a que as pessoas o

traíssem de forma similar quando ficassem em tecido de julgamento seus pontos fracos.

No meio da tarde Pitt tinha perdido a esperança de averiguar algo útil desse modo,

pelo que decidiu ir ver seu cunhado, Jack Radley, que era deputado desde há alguns anos,

e nesse tempo tinha estabelecido contato com o Ministério de Assuntos Exteriores.

Não se achava na Câmara dos Comuns e Pitt deu com ele passadas as quatro da

tarde, quando cruzava um ensolarado Saint James Park, onde uma ligeira brisa formava

redemoinhos sobre a erva com algumas folhas amarelas precoces.

Jack se deteve e se voltou quando ouviu que Pitt o chamava. Surpreendeu-lhe vê-lo,

mas não lhe desagradou.

—O caso do Eden Lodge? -perguntou com ironia quando Pitt se acomodou a seu

passo.

—Sinto muito - se desculpou Pitt.

Tinham-se sincera simpatia, mas tanto seus círculos sociais como suas profissões

os mantinham afastados quase sempre.Jack não possuía dinheiro próprio, mas sempre tinha conseguido viver de forma de

acordo com seu bom berço. A princípio tinha sido mediante o generoso desdobramento de

seu grande encanto pessoal. Desde que se casara com Emily, o fazia com a fortuna que

ela tinha herdado de seu primeiro marido.

Durante os dois primeiros anos de matrimônio se contentou em seguir divertindo-se

na alta sociedade. Depois, animado pelo Emily e pelo exemplo do Pitt, e inclusive talvez

pelo respeito que tinha observado tanto em sua esposa como na irmã desta pelos lucros

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pessoais, interessou-se ativamente na política. Isso não tinha mudado o fato de que ele e

Pitt se vissem muito pouco.

—Não conheço o Ryerson - disse Jack com pesar —. Está um pouco acima de meu

âmbito político... no momento, —Viu a expressão do Pitt e se apressou a retificar —: Me

refiro a que tenho intenção de ascender, não que acredite que ele vá perder sua posição.

Pode ocorrer tal coisa? -pôs-se repentinamente muito sério.

—É muito cedo para sabê-lo -respondeu Pitt—. Não, não estou sendo discreto. A

verdade é que não sei.

Meteu-se as mãos nos bolsos, gesto que contrastava com a atitude do Jack, quem

 jamais teria sonhado fazer algo parecido. Estragaria a linha impecável de seu traje e, além

disso, sua educação lhe impedia tais coisas.

—Tomara pudesse ajudar - disse Jack com tom de desculpa—. Tudo parece tão

absurdo, pelo que ouvi.

Um cão branco e negro de pequeno tamanho corria ao redor deles, meneando a

cauda excitado. Não parecia pertencer ao casal que flertava perto das árvores, nem à babá

de uniforme engomado, cuja mecha de cabelo loiro que não cobria a touca branca brilhava

ao sol enquanto empurrava um carrinho de criança pelo atalho.

Pitt se agachou para recolher um palito e o atirou o mais longe que pôde. O cão

correu atrás dele, ladrando emocionado.

—Conhecia o Lovat? -perguntou.

Jack o olhou de esguelha, com tristeza nos olhos.

—Não muito bem.

Pitt não podia permitir-se lhe deixar escapar tão facilmente.

—Foi assassinado, Jack. Se não fosse importante, não lhe perguntaria isso!

Jack pareceu surpreso.

— A Brigada Especial? -disse com incredulidade—. Por que? Há algo de verdadenas especulações sobre o Ryerson? Pensei que era coisa dos jornais.

—Não sei do que se trata - replicou Pitt—. E preciso averiguar, se puder antes que

eles o façam. Conhecia o Lovat? Deixa a um lado a consideração pelos finados, e me

conte o que saiba.

Jack apertou a boca e olhou ao longe.

O cão se aproximou correndo de Pitt, deixou o pau no chão e dançou para trás

olhando-O esperando.

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Ele se inclinou, recolheu o pau e o lançou outra vez o mais longe que pôde. O cão

correu atrás dele, agitando as orelhas e a cauda.

—Um homem difícil - disse Jack por fim—. Suponho que, em certo sentido, era um

candidato ideal para um assassinato. Em realidade, lamento muitíssimo o ocorrido.

—Voltou-se para olhar ao Pitt—. Ande com pés de chumbo, Thomas, se for

possível. Há muitas pessoas que poderiam sair prejudicadas e não o merecem. Esse

homem era um mal nascido em seu tratamento com as mulheres.

Se se tivesse conformado com mulheres casadas dessas que vai têm filhos e se

dedicam à alternar um pouco, a ninguém teria importado muito, mas cortejava às mulheres

como se as amasse, mulheres jovens que desejavam casar-se, que precisavam contrair

matrimônio, e uma vez que as possuía, voltava atrás.

Deixava a todo mundo perguntando-se qual problema tinham. A conclusão

costumava ser que tinham perdido sua honra. Depois, é claro, já não as queria ninguém.

Não lhe foi preciso dar mais detalhes. Os dois sabiam o que aguardava a uma

mulher que não tinha possibilidades de casar-se.

—Por que? -perguntou Pitt com tristeza—. Por que cortejar uma mulher decente

com quem não tem intenção de contrair matrimônio? É cruel e perigoso! Eu...

Interrompeu-se, mas pensou por um momento em Jemima, confiante, impaciente,

tão fácil de ferir.

Se um homem lhe tivesse feito isso, Pitt teria querido matá-lo, mas não lhe dar um

tiro limpo no jardim de outro no meio da noite.

Teria querido lhe fazer mingau antes, sentir ranger osso após osso, o golpe de seu

punho na carne, vê-lo sofrer e assegurar-se de que compreendia a causa da agressão.

Provavelmente era algo primitivo, e não ajudaria em nada a Jemima, salvo para lhe

fazer saber que a valorizava muitíssimo e que não estava sozinha em sua dor. Ao menos

serviria para que o homem pensasse duas vezes antes de fazê-lo de novo.Pitt olhou de esguelha ao Jack e viu em sua expressão parte dessa mesma cólera

muda.

Talvez pensasse em sua própria filha, apenas um bebê.

—Sabe com segurança? -perguntou em voz baixa.

—Sim. Suponho que quererá nomes...

—Não, não os quero - replicou Pitt—. Preferiria deixar que as pobres desventuradas

conservassem para si seu doloroso segredo. Mas os necessito. Se não agarrarmos aohomem que o fez pendurarão a um inocente ou à mulher.

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—Suponho que sim.

Jack lhe proporcionou quatro nomes e lhe disse onde achava que podia encontrá-

los.

Pitt não precisou anotá-los. Teria gostado não ter que falar com eles nem lhes fazer

perguntas, podia entender facilmente como se sentiam.

O cão retornou, tremendo de emoção e regozijo, e deixou cair o pau aos pés do Pitt

e brincou de correr a seu redor esperando que voltasse a arrojá-lo.

Não achava freqüentemente a pessoas tão disposta a jogar e que entendesse tão

claramente as regras.

Pitt o agradou e ele voltou a sair correndo. Adoraria ter um cão. Diria ao Charlotte

que os gatos teriam que acostumar-se.

—Pode perguntar a Emily - comentou Jack de repente, olhando ao Pitt e mordendo

o lábio inferior. Pareceu envergonhar-se ligeiramente ao dizer: é muito

observadora...Deixou a frase inacabada.

Os dois eram conscientes dos casos nos que Charlotte e Emily tinham intervindo no

passado, às vezes correndo perigos, mas sua profunda discrição e sua compreensão dos

detalhes sutis tinham sido chave em sua resolução.

Nenhum dos dois queria expressá-lo em palavras. Alguns deles tinham sido

dolorosos, deixando descoberto, feridas muito fundas e mostrando facetas deles mesmos

que não tinham conhecido.

—Sim - concordou Pitt, surpreso de que não lhe tivesse ocorrido antes — o farei.

Estará em casa?

Jack sorriu de repente.

—Não tenho nem idéia!

Pitt demorou duas horas para localizar Emily. Seu mordomo lhe informou que tinha

ido a uma exposição de arte recém inaugurada e depois tinha previsto passar por sua casasó para trocar-se e ir jantar a casa de lady Mansfield em Belgrave.

Pitt lhe agradeceu, perguntou como ir à exposição e se encaminhou imediatamente

até ali.

 A galeria estava abarrotada de mulheres com formosos vestidos e alguns homens

que as escoltavam, e que paqueravam um pouco, fazendo solenes e pedantes

comentários sobre os quadros.

Pitt só os olhou brevemente, o que lamentou. Pareceram-lhe não só bonitos, mastambém muito interessantes. Eram de um estilo impressionista que nunca tinha visto,

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impreciso e brumoso, e que, entretanto, criava uma sensação de luz que lhe agradou

enormemente.

Mas não tinha ido ali pelos quadros. Devia achar Emily antes que partisse, e isso

requeria concentração e inclusive um considerável esforço físico só para desculpar-se sem

cessar e abrir caminho a empurrões entre grupos de pessoas que falavam e mulheres com

saias que se roçavam entre si e que bloqueavam a passagem em qualquer direção.

Lançaram-lhe vários olhares autoritários e fulminantes e em mais de uma ocasião

ouviu murmurar "Mas bem!", mas não podia permitir-se esperar que se movessem e lhe

deixassem passar por própria vontade.

Encontrou Emily na terceira sala, conversando com uma jovem com um vestido azul

aciano e um chapéu extravagante que lhe pareceu muito favorecedor. Conferia-lhe um ar

de mistério que não possuía por si mesma.

Perguntava-se como atrair a atenção de Emily sem ser mal educado quando ela

reparou nele, talvez porque desafinava notoriamente com o resto das pessoas.

 A consternação se refletiu em seu rosto. Desculpou-se apressadamente com a

mulher de azul e se dirigiu para ele.

—Não aconteceu nada - a tranqüilizou Pitt.

—Não me ocorreu pensá-lo - replicou ela, sem mudar sua expressão o mínimo—.

Meu temor era ficar adormecida de aborrecimento e perder o equilíbrio. Não há nada aqui

que me retenha.

—Você não gosta dos quadros? -perguntou ele.

—Thomas, não seja tão prosaico. Ninguém vem aqui para olhar os quadros. Em

realidade não os olham, só lhes dão uma olhada para fazer comentários que acreditam

terrivelmente profundos e que esperam que logo alguém repita. Por que veio? Não são

roubados, não é?

—Não, não o são - respondeu Pitt, sem poder evitar sorrir —. Jack pensou quetalvez poderia me ajudar.

O rosto de Emily se iluminou.

—É claro! -exclamou impaciente—. O que posso fazer?

—Só quero informação e talvez que me dê sua opinião.

—Sobre quem?

Emily o pegou pelo braço e se aproximou de um dos quadros, como se o estudasse

com atenção.

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Não era realmente o lugar apropriado para manter uma conversa discreta, mas se

ele falasse em voz baixa, ninguém os ouviria nem faria nenhum comentário sobre eles.

—Sobre o tenente Edwin Lovat - respondeu Pitt, ao mesmo tempo que olhava

também o quadro.

Ela se sobressaltou, embora sua expressão se manteve serena.

—Está levando esse caso?

O tom de sua voz refletia a emoção que sentia. Não mencionou a Brigada Especial,

estava muito atenta a não dizer nada inconveniente para incorrer nesse deslize, mas Pitt

era consciente de que sua mente se pôs a funcionar a grande velocidade.

—Sim - respondeu ele muito baixinho—. O que sabe dele, Emily? Ou o que ouviu?

Necessito que distinga uma coisa de outra.

Ela manteve a vista cravada no quadro. Representava um raio de luz que brilhava

através de árvores até refletir-se em um atoleiro de água.

Possuía uma beleza extraordinariamente serena, como uma descrição da solidão

em um dia ensolarado e sem vento. A pessoa quase esperava ver o brilho das asas de

uma libélula.

—Sei que era um homem perigosamente desventurado - explicou Emily—. Parecia

estar sempre meio apaixonado, mas assim que obtinha o compromisso de alguém, fugia

como apavorado de permitir que o conhecessem.

Fazia muito dano, mas nunca se arrependia o suficiente para não cair no mesmo.

Se não foi a egípcia quem o matou, há muitas outras possibilidades que considerar.

—Perigosamente desventurado? -repetiu ele com curiosidade.

—Bom, não se comporta assim a não ser que te corroa algo por dentro, não? -

desafiou-lhe Emily, que seguia olhando o quadro—. Se for egoísta ou avaro, pode se casar

por dinheiro, por conseguir um título nobiliárquico ou com alguém cuja beleza admira, mas

o que fazia ele só lhe granjeava inimigos.E não era tão estúpido para não dar-se conta. Saltava bem à vista! Era um homem

inteligente e, entretanto, se comportava de um modo que qualquer néscio saberia que era

autodestrutivo.

Pitt refletiu uns minutos em silêncio, dando voltas na cabeça às palavras de Emily.

Era uma idéia que não tinha considerado.

Ela esperou.

— Acha que ele pensou sobre isso tão a fundo? -disse Pitt por fim.

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—Não me pediu que fosse lógica, Thomas, perguntou-me o que penso do tenente

Lovat.

—Tem toda a razão. Obrigado. Pode me dar os nomes dessas pessoas?

—Naturalmente - disse ela, ao mesmo tempo que fazia um gesto com a mão para

indicar a luz do quadro, como se esse fosse seu tema de conversa.

Depois, Emily pronunciou meia dúzia de nomes e Pitt os anotou, junto com uma

idéia vaga de onde viviam e quais eram seus passatempos.

Tratava-se de uma desagradável enxurrada de esperanças e humilhações,

vergonha e sentimentos feridos, alguns mais superficiais, outros fundos.

Pitt lhe agradeceu e partiu da galeria.

Durante o resto da tarde e todo o dia seguinte Pitt se dedicou a fazer discretamente

averiguações sobre onde tinham estado à noite do assassinato as pessoas cujos nomes

lhe facilitara Emily, mas ou todos tinham álibi, ou a ferida moral ou emocional era muito

antiga ou delicada para que não se prejudicassem a si mesmos tanto como ao próprio

Lovat com uma vingança depois de tanto tempo.

Não importava as voltas que lhe desse: tudo lhe levava ao Ryerson e a Ayesha

Zakhari.

No dia seguinte revisou a folha de serviços do Lovat no Egito, se por acaso jogasse

nova luz sobre seu caráter e suas relações com outros soldados, ou oferecia uma via para

outra conexão com alguém desse país que conduzisse de novo a Ayesha Zakhari e desse

mais sentido ao ocorrido no Eden Lodge.

Deu-se conta com um sobressalto do muito que desejava descobrir algo que

explicasse o que a seu pesar achava que tinha acontecido, que Ayesha tinha dado um tiro

em Lovat e que Ryerson estava tão apaixonado por ela que quis ajudá-la a encobrir o

crime.

Mas a folha de serviços não lhe revelou nada. Lovat parecia ter sido bastante aptoem sua profissão.

Tinha um dom natural para relacionar-se com pessoas e sabia comportar-se em

sociedade.

Sua carreira no exército tinha sido virtualmente irrepreensível e foi dado de baixa de

forma honrosa quando lhe quebrantou a saúde depois de sofrer umas febres enquanto

servia em Alexandria.

Não havia indícios de que tivesse sido covarde ou escapara de algum modo de seudever. Tinha sido um bom soldado muito apreciado por todos.

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Respondia o expediente à verdade ou tinham eliminado cuidadosamente os fatos

que podiam prejudicar sua carreira no futuro? Não seria a primeira vez que Pitt topava com

um acordo tácito para pôr a lealdade por diante da verdade apoiando-se no encargo de

que a honra mais elevada estava em proteger o bom nome do corpo diplomático.

Da folha de serviços era impossível extrair nada nesse sentido e os funcionários

com os quais falou não sabiam muito mais por si mesmos e estavam muito bem treinados

para aventurar-se a fazer hipótese. Olharam-no de forma inexpressiva e guardaram

silêncio.

Parecia que em sua vida pessoal Lovat granjeara inimigos.

Os que o tinham conhecido compartilhavam a opinião do McDade de que tinha sido

um homem de aparência agradável, não bonito ao modo convencional, mas com um

grande físico, um belo cabelo e um sorriso de grande encanto.

Pitt também averiguou que Lovat sabia dançar e tinha facilidade para entabular

conversa. Gostava da música e cantava com entusiasmo, sempre tinha nos lábios alguma

canção e recordava a letra de todas as baladas sentimentais de moda.

—Não sei que problema tinha - explicou um cavalheiro de idade avançada

sacudindo a cabeça com tristeza, sentado frente a Pitt no Clube do Exército e Armada do

Pall Mall essa noite, bebendo um brandy Napoleão, com os pés apoiados contra o guarda-

fogo da lareira, torrando as solas das botas—. Cortejou a um sem número de moças

agradáveis, que teriam sido boas esposas.

Mas assim que parecia que ia pedir lhes a mão, aborrecia-se, ou se desencantava,

ou o que fosse tinha medo, atreveria-me a dizer, e ia atrás de outra. -Virou o lábio inferior

em uma careta—. Tampouco lhe importava muito quem escolhia. Tinha a moral de um

gato de ruas, lamento dizê-lo.

Pitt se afastou um pouco do fogo, que ardia com um brilhante resplendor e dava

muito mais calor do necessário naquele benigno dia de setembro.O coronel Woodside parecia não dar-se conta disso, assim como tampouco do

aroma que desprendiam suas botas.

—Conhecia a mulher egípcia, a senhorita Zakhari? -inquiriu Pitt, sem saber se o

coronel o consideraria uma pergunta indecorosa.

—É claro que não a conhecia! -exclamou Woodside com irritação—. E se o tivesse

feito, não o admitiria ante alguém como você! Mas a vi uma vez. Uma criatura bonita, muito

bonita. Nunca vi uma mulher inglesa andar com semelhante garbo.

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Movia-se como plantas aquáticas na água com algo assim como fluidez.  –Sustentou

a mão em alto para fazer uma demonstração, depois a deixou cair bruscamente e olhou

furioso ao Pitt—. Se quiser que lhe diga que Lovat a assediou, não sei! Não tenho nem

idéia. Um homem não faz essas coisas em público.

Pitt desviou o assunto.

—Conhecia o senhor Lovat ao senhor Ryerson? -perguntou.

—Nem idéia! Não acredito. Maldita seja!

O coronel afastou os pés do guarda-fogo e embora os tivesse apoiado por um

momento no chão, levantou-os muito depressa com uma careta.

Embora lhe fosse difícil, Pitt manteve uma expressão de perfeita seriedade.

—Não freqüentavam os mesmos lugares - acrescentou Woodside, ao mesmo tempo

em que cruzava com cuidado os tornozelos para não apoiar as solas das botas no piso —.

Os afastava uma geração, para não falar de status, dinheiro e gosto pessoal. Está

pensando na mulher? Pelo amor de Deus! É bonita, mas carece da necessária

respeitabilidade.

Nenhum homem vai casar se com ela! Claro que ela escolheu ao Ryerson. -Olhou

ao Pitt carrancudo—. Tem riqueza, posição, reputação, elegância. Além disso, possui um

encanto que o jovem Lovat nunca conseguiu.

E sabe Deus por que não tornou a casar-se depois de que matassem a sua mulher,

um mau esse assunto, mas agora já não o fará, de modo que a mulher estaria mais tempo

segura gozando de seus favores que com um jovem como Lovat, que poderia cansar-se

dela ou considerar oportuno deixá-la de lado se lhe apresentava umas boas bodas e tinha

alguma possibilidade de custeá-la, é claro.

Tinha embaciado um pouco sua reputação tonteando por aí, e não era o que todos

os pais querem para sua filha.

 Atreveria-me a dizer que uma herdeira escolheria a alguém muito melhor. -Grunhiu—. Mesmo assim, pode ser que as mulheres egípcias não saibam isso. É muito

mais prudente ir ao seguro.

—Não acredita que Ryerson tivesse podido pensar em casar-se com ela? -

perguntou Pitt, mais para ver a reação do Woodside que porque esperasse uma resposta

afirmativa.

Sentia tal compaixão por ela que nem sequer era uma verdadeira pergunta. Podiam

utilizá-la, desfrutar dela, mas em nenhum caso contrair matrimônio.

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Havia milhões como ela, por todo tipo de razões: linhagem, dinheiro, aspecto físico...

ninguém mudaria isso, mas mesmo assim lhe enfurecia.

Sabia o que era ver-se excluído, embora não lhe tivesse ocorrido muito

freqüentemente.

Woodside se olhou fixamente os pés.

—Ryerson nunca superou a morte de sua mulher. Não sei realmente por que.

 Alguns homens tomam assim, mas não o teria esperado dele. Sua mulher era bonita, mas

inquieta, sempre em busca de novas experiências.

Eu não me teria incomodado com alguém como ela. Não me importa que as

mulheres sejam pouco inteligentes, às vezes são mais fáceis, mas não tenho paciência

com as idiotas. Não perderia meu tempo em vigiá-las. É exaustivo, sabe?

Pitt se surpreendeu. Não via o Saville Ryerson apaixonando-se por uma mulher que

não fosse inteligente. Tratou de imaginar-lhe a classe de beleza ou o porte que devia ter

tido para cativá-lo até o extremo de que um quarto de século depois ainda a chorava muito

profundamente para voltar a casar-se.

—Era muito...? -começou a dizer, embora se interrompeu ao dar-se conta de que

não sabia precisar a que se referia.

—Nem idéia - respondeu Woodside com tom de impotência—. Nunca compreendi

ao Ryerson. Um tipo brilhante às vezes, mas de jovem tinha muito mau caráter. Só um

néscio lhe teria contrariado, asseguro!

De novo Pitt ficou ligeiramente surpreso. Não parecia o homem que tinha tido diante

fazia um par de dias, sereno e com muito domínio de si mesmo, preocupado unicamente

pela mulher.

Tinha perdido toda sua psicologia para julgar às pessoas? Era possível que Ryerson

tivesse dado um tiro em Lovat em um arranque de ciúmes e a mulher tivesse assumido a

responsabilidade para protegê-lo? Por que? Por amor, ou na equivocada convicção de queele poderia e quereria protegê-la?

—Mudou, é claro -continuou dizendo Woodside pensativo, sem deixar de olhar os

pés, como se temesse haver-se queimado o couro das botas—. Sabe Deus que com seu

cargo o governo teve suficiente para pôr a prova o caráter de qualquer homem ao longo

dos anos. Que solitário é o poder para um homem, e os políticos são pessoas traiçoeiras,

se quer saber minha opinião. —Levantou de repente a vista—. Lamento não poder lhe

ajudar. Não tenho nem idéia de quem disparou ao Lovat nem por que.Pitt compreendeu que a conversa tinha chegado a seu fim e se levantou.

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—Obrigado pelo tempo que me dedicou, senhor. Fico muito agradecido.

Woodside recusou sua gratidão com um gesto e voltou a colocar os pés na lareira.

Pitt se dirigiu ao escritório do Ryerson no Westminster e solicitou falar com ele uns

minutos. Estava esperando a menos de meia hora quando um secretário com colarinho de

pontas e calça de raia diplomática veio buscá—-o e o fez passar.

 Ao Pitt surpreendeu a brevidade da espera.

Ryerson o recebeu em uma estadia de sombria opulência, com móveis cobertos de

couro, madeira velha tão encerada que semelhava vaso sob cristal, prateleiras com livros

encadernados em tafilete com letras douradas nos lombos, e janelas pelas quais se viam

as folhas cada vez mais descoloridas de uma tília que, agitadas pelo vento, projetavam

sombras sobre o tronco de duas cores.

Ryerson parecia cansado, tinha profundas olheiras e brincava com um charuto que

claramente não estava fumando.

—O que descobriu? -perguntou mal Pitt fechou a porta ao mesmo tempo que lhe

assinalava uma cadeira com um gesto. Ryerson permaneceu em pé. Pitt tomou assento

sem fazer-se de rogar.

—Só que, ao que parece, Lovat tinha aventuras com muitas mulheres e não era fiel

a nenhuma - explicou—. Pelo visto, feriu muito a muitas pessoas e deixava uma esteira de

infelicidade em sua passagem. Pitt esquadrinhou ao Ryerson abertamente, mas não viu

cólera nem surpresa em seu rosto. Era como se Lovat, por si mesmo, não lhe importasse.

—Desagradável - comentou Ryerson carrancudo—, embora por desgraça nada

excepcional. O que está insinuando? Que um marido ultrajado poderia lhe haver dado um

tiro? Isso é absurdo, Pitt.

Tomara pudesse acreditar, mas que fazia esse homem ultrajado às três da

madrugada no Eden Lodge? Com que tipo de mulheres se relacionava Lovat? Criadas?

Prostitutas?—Damas, conforme soube - replicou Pitt—. Jovens e solteiras. -Não afastou os

olhos do rosto do Ryerson e viu sua expressão de desgosto—. A classe de mulher a quem

arruinaria um escândalo - acrescentou desnecesariamente.

Foi à ira, e não a razão, o que impulsionou ao Pitt a fazer o comentário.

Ryerson jogou por fim seu charuto à lareira, mas errou o tiro por pouco e o ouviu

golpear com ruído surdo o metal que a rodeava e cair na pedra, enegrecida, embora, não

muito quente. Não lhe prestou mais atenção.

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—E está insinuando que o pai de uma dessas mulheres passou a noite seguindo ao

Lovat até que o surpreendeu entre os matagais de Éden Lodge e que então lhe deu um

tiro? Investigou muitos assassinatos que cedo ou tarde conduziram aos salões da

aristocracia. Tem muito bom senso para chegar a uma conclusão tão ridícula.

Ryerson olhou com atenção ao Pitt, como se tratasse de vislumbrar o motivo que

havia atrás dessa idéia absurda. Não havia desdém em seu olhar, só perplexidade, e no

fundo medo, sincero e profundo.

Com um repentino sobressalto Pitt percebeu algo mais, e imediatamente soube que

deveria havê-lo esperado.

—Esteve fazendo indagações sobre mim!

Ryerson deu ligeiramente de ombros.

—É claro. Não posso me permitir nada menos que o melhor. E Cornwallis diz que

você é o melhor.

Não era uma pergunta, mas havia uma ligeira inflexão em sua voz, como se

quisesse que Pitt o confirmasse, assegurasse-lhe que tinha feito tudo o que estava em sua

mão.

Pitt se desconcertou ao se descobrir incômodo. Estava zangado com o Cornwallis,

embora sabia que teria falado com total sinceridade; provavelmente não tinha mentido em

toda sua vida.

Sua transparência era, junto com seu sentido ético e sua coragem física, sua melhor

virtude, e ao mesmo tempo sua maior desvantagem nos tratos da administração policial.

Era completamente diferente do Victor Narraway, quem representava o súmmum da

sutilidad e da arte de enganar sem mentiras e de guardar-se para si seus conselhos.

Se tinha algum ponto fraco, Pitt não o tinha descoberto.

Compreendia os sentimentos de outros, mas Pitt não era capaz de intuir sequer o

que sentia ele, se é que tinha sentimentos, se em algum secreto rincão de seu coraçãoconservava sonhos não realizados, feridas sem cicatrizar ou temores que invadiam os

solitários momentos que permanecia acordado de noite.

Ryerson observava Pitt, à espera de uma resposta.

—Sim, investiguei muitos casos - respondeu Pitt—. Os suficientes para saber que

certas coisas são tão simples como parecem e outras não. Tudo aponta a que a senhorita

Zakhari tinha entrevista com o senhor Lovat, do contrário, por que saiu a seu encontro e

por que levou consigo a pistola? Se tivesse ouvido um intruso, teria enviado a seu criado,não teria saído ela sozinha. E como ia fazer ruído se Lovat andava sobre grama?

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—Sim - concedeu Ryerson com um tom seco—. Seu raciocínio tem lógica. É

possível que alguém o seguisse e o matasse no Eden Lodge para que outro carregasse

com a culpa. O que aparentemente conseguiu com grande êxito.

Pitt não disse nada. Pensava na arma de Ayesha Zakhari, que tinha sido utilizada

para matar ao Lovat e que estava a seu lado no chão úmido na escuridão.

Levantou a vista para o Ryerson e se deu conta imediatamente de que estava

pensando exatamente o mesmo que ele.

Soube, porque se ruborizou ligeiramente e pelo olhar de cumplicidade que

cruzaram. Em seguida Ryerson baixou os olhos.

—Conhecia o Lovat? -perguntou Pitt.

Ryerson se aproximou da janela e, de costas ao Pitt, olhou as folhas que revoavam

ao vento.

—Não. Não o conhecia. A primeira vez que o vi foi deitado no chão de Éden Lodge,

ao menos que eu tenha consciência.

—Tinha-lhe mencionado alguma vez a senhorita Zakhari?

—Não de nome. Encontrei-a um pouco alterada uma tarde que ficamos e me disse

que um antigo conhecido estava aborrecendo-a.

Poderia ter sido Lovat, mas suponho que não necessariamente. -Moveu as mãos

inquieto. Permaneceu com os ombros e o pescoço rígidos—. Averigúe a verdade - disse

em voz tão baixa que era como se falasse consigo mesmo, e, entretanto, havia nele tal

veemência que era evidente que suplicava, embora sem chegar a pronunciar as palavras.

—Sim, senhor, farei todo o possível para que assim seja.

Pitt se levantou. Havia muito mais coisas que queria saber, mas eram muito tênues

para expressá-las, hipóteses, emoções que não era capaz de pôr nome, e precisava ver o

Narraway antes que terminasse o dia.

—Obrigado - respondeu Ryerson.Pitt hesitou, perguntando-se se não seria justo lhe advertir que a verdade podia ser

dolorosa e muito diferente do que ele se empenhava em acreditar. Mas era inútil. Haveria

tempo para isso se fosse necessário.

Portanto, limitou-se a desculpar-se e partiu dali.

—O que conseguiu?

Narraway levantou a vista dos papéis que estudava e olhou ao Pitt com ar

desafiante. Também parecia cansado, com os olhos avermelhados e as faces um poucoabatidas.

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Pitt se sentou sem esperar que o convidasse a fazê-lo e tratou de ficar a vontade,

mas foi impossível.

Sentia-se tão tenso que lhe doía às costas e tinha as mãos rígidas.

—Nada que faça albergar alguma esperança de achar uma explicação mais

satisfatória -replicou Pitt, empregando deliberadamente palavras ásperas que doessem ao

Narraway e a si mesmo—. Lovat era um mulherengo bastante irresponsável para utilizar

 jovens solteiras e respeitáveis cuja reputação podia ver-se arruinada por suas atenções, e

passar de uma a outra, deixando à sociedade perguntando-se que grande pecado tinha

descoberto nelas.

Narraway apertou os lábios, molhando-os.

—Não seja tão afetado, Pitt. Sabe perfeitamente quão pecados a sociedade lhes

atribui, com razão ou sem ela. Não lhes importa quem é ou o que é, só o que outros

pensem de você.

 A pureza de uma mulher vale mais que sua coragem, ternura, compaixão, senso de

humor ou honestidade. Sua castidade significa que lhe pertence. Trata-se simplesmente de

uma propriedade.

Em sua voz se traduzia uma amargura que superava ao cinismo. Pitt teria jurado

que havia também dor.

Depois pensou em como se sentiria se Charlotte permitisse que alguém mais a

tocasse intimamente, por não falar de que ela se abandonasse à paixão, e todos os

raciocínios se viram arrasados.

—É importante. -Era uma afirmação, muito furiosa e áspera para que se tomasse

como um argumento contra.

Narraway sorriu, mas desviou o olhar.

—Fala em geral ou sabe os nomes dessas mulheres e, o que vem mas ao caso, dos

pais, irmãos ou outros amantes que poderiam ter vontade de seguir ao Lovat por Londres elhe dar um tiro?

—É claro - respondeu Pitt, alegrando-se de ter sido precavido.

Não obstante, Pitt sentia que seu superior tinha omitido um dado significativo.

Tratava-se só de que seus sentimentos eram muito profundos para ser expressos com

palavras, ou havia também parte de razão, um fato que no momento lhe escapava?

—E, a julgar por sua expressão - observou Narraway—, não contribuíram nada a

você.— A nós - corrigiu Pitt cortante—. Nada absolutamente.

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Ficou assombrado e um tanto doído ao ver como a esperança se apagava nos olhos

do Narraway, como se tivesse sido algo mais que um sentimento passageiro.

 Ao perceber o olhar do Pitt, Narraway se voltou pela metade, protegendo algo

dentro de si.

—Então, não averiguou nada além de que Lovat era um homem que se expunha a

um mal final?

Essa era uma forma fervene de expressá-lo, mas em essência certo.

—Sim.

Narraway tomou ar para dizer algo mais, mas se limitou a exalar.

—Fui ver o Ryerson - informou Pitt—. Continua convencido de que a senhorita

Zakhari é inocente.

Narraway o olhou de novo, com as sobrancelhas arqueadas.

—Quer dizer que não vai ajudar se a si mesmo distanciando do assunto e admitindo

que quando chegou achou ao Lovat já morto? -perguntou Narraway.

—Não sei o que vai declarar. A polícia sabe que ele estava ali, de modo que não

pode negá-lo.

—É muito tarde, de todo modo - replicou Narraway com repentina amargura—. A

embaixada do Egito sabia que estava ali.

Fiz todo o possível para averiguar quem lhes proporcionou a informação e quão

único tirei limpo é que não têm intenção de me dizer isso.

Pitt se ergueu ligeiramente em seu assento, muito devagar. Não tinha parado para

pensar no que tinha estado fazendo Narraway, mas, como se o percorresse uma carga

elétrica, deu-se conta da importância do que acabava de dizer.

Narraway sorriu com as comissuras da boca para baixo.

—Exato - disse—. Pode ser que Ryerson esteja fazendo ridículo, mas alguém o está

apoiando de forma discreta e muito poderosa. Pelo que não estou seguro é de qual é opapel da Ayesha Zakhari, e se é consciente dele. É a rainha ou uma boneca?

—Por que? -perguntou Pitt, virando-se para frente. -O algodão?

—Pareceria a explicação óbvia -respondeu Narraway—. Mas o claro não é

forçosamente a verdade.

Pitt ficou olhando-o, à espera que prosseguisse.

Narraway se recostou em sua cadeira, mais resignado que relaxado.

—Vá a casa e durma - disse—. Volte amanhã pela manhã.—Isso é tudo?

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—Que mais quer? -replicou Narraway—. Aproveite enquanto puder! Não durará!

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Capítulo 5 

Charlotte refletiu muito sobre Martin Garvie e o que poderia lhe haver ocorrido.

Era consciente do sem-fim de fatos desagradáveis ou trágicos que podiam

acontecer aos criados, assim como das desgraças que podiam lhes sobrevir.

 A opinião que tinha Pontua dele estava forzosamente influenciada pelo afeto, além

de por certa inocência inevitável em qualquer jovem com sua falta de experiência. Pelo

bem de Pontua, Charlotte não teria querido que fosse de outro modo.

Devia ter a idade de Gracie, mas carecia de sua têmpera ou de sua curiosidade, e

possivelmente também das amargas experiências da rua. Talvez Martin a tivesse protegido

delas?

Estavam na cozinha, e não fazia mais de uma hora que Pitt tinha saído.

—O que vamos fazer? -perguntou Gracie com uma torpe mescla de deferência e

resolução.

 Apesar de que nada podia detê-la, sabia, não obstante, que necessitava a ajuda de

Charlotte.

Envergonhava-se de ter ofendido ao Tellman, ao mesmo tempo em que se sentia

confusa por isso e, pela primeira vez, um pouco assustada de seus próprios sentimentos.

Nesse momento Charlotte se aplicava em tirar uma mancha de graxa de uma

 jaqueta de Pitt. Já tinha triturado as patas de ovelha até as converter em um pó fino.

Era algo que, naturalmente, armazenava, junto com outros ingredientes que serviam

de agentes de limpeza, como suco de acedera, giz, partes de cascos de cavalo (limpos, é

claro), cabos de velas, suco de limão ou o suco de uma cebola.

Estava concentrada no que fazia, esfregando a mancha com um trapo empapado

em essência de terebintina e evitando olhar ao Gracie para não dar a suas palavras umtom emocional.

—Provavelmente deveríamos falar outra vez com Pontua - propôs Charlotte

enquanto estendia a mão e pegava os pós que Gracie tinha preparados. Polvilhou um

pingo sobre a mancha úmida e a examinou com olho crítico—. Poderia nos ser útil dispor

de uma descrição do Martin.

—Vamos buscá-lo? -perguntou Gracie surpreendida—. Por onde começaremos?

Poderia estar em qualquer parte! Poderia ter desaparecido ou... - interrompeu-se.

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Charlotte sabia que tinha estado a ponto de dizer que podia achar-se morto.

Também a rondava esse pensamento.

—É difícil perguntar às pessoas se viram alguém se não formos capazes de dizer

que aspecto tinha-replicou Charlotte, utilizando uma pequena escova de cerdas rígidas

para tirar os pós.

 A mancha começava a desaparecer. Se insistisse um pouco mais, a jaqueta estaria

limpa. Esboçou um sorriso—. Daria a impressão de que não o conhecemos -

acrescentou—. Isso não nos convém, posto que a verdade não soa muito verossímil.

—Posso ir procurar a Pontua para que nos diga isso - se apressou a dizer Gracie—.

Faz seus recados à mesma hora quase todos os dias. -Apertou os lábios—. Mas não

posso lhe pedir que venha aqui porque perderia seu trabalho. Não é fácil conseguir outro

emprego se a despedirem por sua culpa, E se aconteceu algo ao Martin, um…... 

—Irei com você – interrompeu-a Charlotte.

Gracie abriu muito os olhos. O fato de que Charlotte estivesse disposta a sair à rua

e perambular por aí à espera de que passasse uma criada que não servia em sua própria

casa demonstrava a seriedade com que se tomou aquele assunto.

Era uma amostra de amizade extraordinária. Também deixava claro que achava que

Martin Garvie podia correr verdadeiro perigo. Olhou a jaqueta do Pitt e em seguida

levantou a vista para Charlotte com uma expressão interrogante.

—Terminarei quando voltarmos - disse Charlotte—. A que hora sai Pontua?

— A esta hora -respondeu Gracie.

—Então será melhor que ponha mais água na panela e a retire do fogão, para que

não se evapore, assim poderemos ir. -Charlotte secou as mãos no avental, depois o

desabotoou e o tirou—. Vá procurar seu casaco.

Demoraram quase uma hora para ver Pontua caminhar para elas pela rua, tão

absorta em seus pensamentos que Gracie teve que chamá-la duas vezes para que sedesse conta de que se dirigiam a ela.

—Oh, Gracie! -exclamou com profundo alívio, e o cenho franzido de ansiedade

desapareceu——me alegro tanto de ver você! Soube de algo? Não, não, é claro.

Sou uma idiota por lhe perguntar isso. Como iria ter notícias? Eu não soube nada.

Enquanto falava, o rosto da jovem voltou a escurecer e lhe encheram os olhos de

lágrimas. Teve que fazer um grande esforço por manter a compostura.

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—Não - disse Gracie, ao mesmo tempo que pegava Pontua pelo braço para a

separar de outros transeuntes—. Mas vamos fazer algo a respeito. Vim com a senhora Pitt.

Queria te perguntar algumas coisas.

Pontua olhou ao Charlotte, que nesse momento já estava junto a elas, com

expressão alarmada.

—Bom dia, Pontua - saudou Charlotte com ar resoluto. — Pode dispor de meia hora

sem que se zangue sua senhora? Eu gostaria de saber algo mais de seu irmão para que

possamos procurá-lo de uma forma mais efetiva.

Pontua ficou uns instantes sem saber o que dizer, depois seu medo pôde mais que

o acanhamento.

—Sim, senhora, estou certa de que não lhe importará se lhe explico que foi por algo

relacionado com Martin. Já lhe contei que desapareceu.

—Estupendo -aprovou Charlotte—. Dadas as circunstâncias, acredito que fez bem. -

Levantou a vista para o céu cinza e algo brumoso—. Falaremos melhor debaixo de algo

coberto, tomando uma taça de chá.

Sem esperar resposta, Charlotte se voltou e as conduziu a uma pequena padaria

onde também havia mesas, e quando se sentaram, para assombro de Pontua, pediu chá e

muffins quentes com manteiga.

—Quantos anos tem Martin? -perguntou Charlotte em primeiro lugar.

—Vinte e três -respondeu imediatamente Pontua.

Charlotte ficou impressionada. Era jovem para ser valete, um cargo que requeria

treinamento. A essa idade o usual teria sido que só fosse lacaio.

Ou tinha estado servindo desde uma idade muito jovem ou aprendia a uma

velocidade insólita.

—Quanto tempo está servindo em casa dos Garrick? -inquiriu a seguir.

—Desde os dezessete anos - disse Pontua—. Começou como lacaio, mas o senhorStephen tomou apreço. Antes tinha trabalhado de engraxate para os Furnival, mas não

necessitavam outro lacaio, de modo que trocou de casa e subiu. -Havia uma nota de

orgulho em sua voz e se sentou um pouco mais erguida, com os ombros retos, enquanto o

dizia.

—Parece que é muito bom em seu trabalho - disse Charlotte alto, e viu como Pontua

lhe devolvia o sorriso—. Estava contente ali, que você saiba?

Pontua se inclinou.

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—É claro que sim! Nunca me comentou que não gostasse, e eu me teria informado.

Entre nós não mentíamos.

Charlotte achava que isso era certo no caso de Pontua, a mais jovem dos dois

irmãos e, portanto, muito mais dependente, mas Martin poderia haver se calado sobre

determinadas questões.

Entretanto, não servia de nada pôr em interdição a idéia que Pontua tinha de seu

irmão.

—Como é fisicamente? -perguntou Charlotte, trocando de tema.

—Parece-se um pouco a mim -respondeu Pontua de forma prática—. Mais alto, é

claro, e mais corpulento, mas tem os olhos da mesma cor e o mesmo nariz. — Assinalou

suas próprias feições, chatas e limpas.

—Entendo. Isso ajuda. Pode nos dizer algo mais que nos seja de utilidade? -incidiu

Charlotte—. Há alguma jovem a que admire? Ou que talvez admire a ele?

— Acredita que uma mulher poderia haver-se proposto lhe conquistar e, ao ver que

ele a rechaçava, a coisa ficou feia? -disse Pontua com um calafrio.

 A criada chegou com o chá e os muffins quentes e esperaram que se fosse para

seguir a conversa. Charlotte lhes indicou por gestos que comessem e se serviu ela mesma

chá.

—É uma possibilidade -respondeu—. Precisamos saber muito mais. E posto que em

casa dos Garrick parece que não vão dizer nos de bom grado, teremos que averiguá-lo por

nós mesmas, e o antes possível.

Pontua, eles já lhe conhecem e sabem que está interessada no assunto. Acredito

que o mais prudente é que não volte por ali, ao menos no momento.

Eu não conheço a família, embora poderia arrumar para que me apresentassem.

Gracie, vai ter que começar você.

—Mas como o farei? -perguntou Gracie, que já comera meio muffin.Havia uma mescla de determinação e medo em sua voz. Teve muito cuidado em

evitar olhar para Pontua.

Charlotte se havia espremido os miolos e continuava sem sabê-lo.

—Falaremos disso quando chegarmos a casa - respondeu. Era possível que Gracie

tivesse percebido sua indecisão, mas não a trairia diante de Pontua—. Quer mais chá? -

ofereceu.

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Depois de acabar os muffins, Charlotte pagou e assim que estiveram de novo na

rua, Pontua, consciente de repente do tempo que levava fora fazendo recados, que

nenhuma fila poderia explicar, apressou-se a agradecer às duas e a despedir-se.

—Como vou entrar na casa dos Garrick e lhes fazer perguntas? -disse Gracie

quando Charlotte e ela ficaram sozinhas e empreenderam a volta ao Keppel Street.

Sua expressão contrita, como se soubesse que estava incomodando, mas não

pudesse evitá-lo, revelava que ela tampouco tinha nem idéia.

—Bom, não podemos dizer a verdade - replicou Charlotte olhando à frente—, É uma

lástima, porque isso complica sempre as coisas. De modo que terá que pensar em um

subterfúgio.

Charlotte não quis empregar a palavra "mentira". Não se tratava realmente de um

engano, posto que pretendiam um bom fim.

—Não me importa tomar liberdades com a exatidão - comentou Gracie criando seu

próprio eufemismo—, mas não me ocorre nenhum pretexto que me permita entrar! Tenho

quebrado a cabeça.

Tomara Samuel Tellman me acreditasse quando lhe disse que estava acontecendo

algo grave! Sabia que era teimoso, mas é mais teimoso que uma mula!

Meu avô tinha uma mula para puxar a carroça na qual transportava o carvão, Que

animal mais teimoso! Teria jurado que tinha os pés presos com cola ao chão.

Charlotte sorriu ao imaginar, mas também tratava de pensar. Giraram pela esquina

do Francis Street e entraram no Torrington Square, caminhando contra o vento.

Um engraxate segurava seu letreiro, que cambaleava e ameaçava derrubar. Gracie

pôs-se a correr e o ajudou.

—Obrigado, senhorita - disse ele agradecido, voltando a endireitar o letreiro com

dificuldade.

Charlotte deu uma olhada ao jornal que tinha evitado que saísse voando pelos ares.—Tudo são más notícias, senhora - sentenciou o menino com expressão enojada—.

 A cólera chegou também a Viena. Os franceses estão lutando na Mada não sei o que e

acusando a nossos missionários por isso. Dizem que a culpa é nossa.

—Madagascar? —apontou Charlotte.

—Sim, isso é -confirmou ele—. Vinte pessoas morreram em um acidente de trem na

França, justo quando alguém tinha ido inaugurar uma nova linha férrea que vai de Jaffa,

onde seja que esteja, a Jerusalém. E os russos detiveram aos canadenses por roubarfocas! Ou algo assim. Quer um? -acrescentou esperançado.

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Charlotte sorriu e lhe deu o dinheiro.

—Obrigado - disse agarrando o primeiro jornal do montão, que estava ligeiramente

amassado,

Depois ela e Gracie seguiram andando para o Keppel Street.

—Tem razão! -exclamou Gracie sombria—. Não põe nada bom neles. — Assinalou o

 jornal que tinha Charlotte na mão—. Tudo são conflitos e tolices, e coisas assim.

—Isso é o que consideramos notícias aparentemente — concordou Charlotte—. Se

se tratar de algo bom, pode esperar. —Uma parte dela seguia refletindo sobre como podia

entrar Gracie na casa dos Garrick. Então teve uma idéia—. Gracie - disse indecisa—, se

Pontua estivesse doente e não soubesse que Martin já não trabalha ali, não seria natural

que fosse dizer-lhe? Poderia estar muito doente para escrever, contando com que

soubesse.

 Ao Gracie lhe iluminaram os olhos e em seus lábios se desenhou um sorriso

esperançado.

—Sim! Suponho que isso é o que faria uma amiga, não? De repente, caiu doente e

tenho que dizer ao Martin, se por acaso demora para curar-se.

E sei onde trabalha porque Pontua e eu somos boas amigas, que é a pura verdade!

Será melhor que vá logo, não lhe parece? Darei-lhe tempo para que chegue a sua casa e

fique doente, e eu peça permissão a minha senhora, e como ela é muito boa, dirá-me que

vá em seguida!

Gracie sorriu, e seu pequeno e magro rosto se encheu de assombrosa vitalidade.

—Sim - assentiu Charlotte apressando o passo sem dar-se conta, e ao caminhar de

novo contra o vento depois de dobrar uma esquina, lhe formaram redemoinhos as saias e

o jornal se agitou em seus braços—. Não há nada em casa que não possa esperar.

Quanto antes vá, melhor.

Meia hora depois, com o ânimo fortalecido graças a outra taça de chá, Gracie saiu.Estava emocionada e tão assustada de cometer um engano que sentia um nó no

estômago; teve que respirar fundo e falar devagar para não gaguejar.

Estirou-se o casaco uma vez mais, engoliu a saliva e bateu na porta de serviço da

casa dos Garrick no Torrington Square. Não tinha sentido atrasar-se mais. A situação não

ia melhorar. Devia fazê-lo por Pontua, e pelo Martin, é claro, a menos que fosse muito

tarde.

Tinha preparado o que ia dizer assim que se abrisse a porta.

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Entretanto, ninguém acudiu até que levantou a mão de novo para voltar a bater,

desta vez com mais força, e quando a porta se abriu de repente, quase caiu dentro.

Ergueu-se sem fôlego e se achou a menos de um palmo de uma criada, uma jovem

de tez clara uns centímetros mais baixa que ela e com mechas de cabelo rebeldes que as

forquilhas torcidas não seguravam.

Começou a falar, sacudindo a cabeça.

—Não...

—Bom dia - saudou Gracie ao mesmo tempo, e quando a outra jovem se

interrompeu, continuou. Não podia permitir-se que a despedissem sem mais—. Devo dar

um recado.

Lamento incomodar você antes do almoço. Deve estar muito ocupada, mas se trata

de algo que não pode esperar.

Gracie não teve que fingir inquietação e sua preocupação devia refletir-se em seu

aspecto, porque imediatamente o rosto da jovem mostrou compaixão.

—Será melhor que entre —  ofereceu, afastando-se da porta para deixar entrar

Gracie.

Não havia dúvida de que era um gesto generoso.

—Obrigada - disse Gracie. Não estava mal para começar; de fato, a partir daí podia

considerar-se que começasse tudo. Dedicou um rápido sorriso a jovem—. Chamo Gracie

Phipps. Venho do Keppel Street, que está à volta da esquina, embora isso não tenha nada

que ver com o assunto que me trouxe aqui. O recado provém de outro lugar.

Gracie dirigiu um olhar a copa, bem provida de réstias de cebolas penduradas,

sacos de batatas no chão e couves brancas e outros tubérculos em prateleiras de madeira.

Nos ganchos das paredes havia panelas maiores, penduradas pelas alças, e em um

rincão do chão, jarras do que pareciam diferentes classes de vinagres, azeite e talvez

vinhos para cozinhar.—Eu sou Dorothy - respondeu a garota—. Minha mãe me chama Doura, mas aqui

me chamam Dottie e não me importa. A quem veio ver?

Gracie piscou como se contivesse as lágrimas. Não podia cair no engano de

mencionar de entrada o nome do Martin Garvie, limitariam-se a dizer que não estava ali,

convidariam-na a ir-se e não teria averiguado nada.

Requeria-se uma atuação um pouco melodramática.

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—Trata-se de minha amiga Pontua -respondeu Gracie—. Não a conheço muito, mas

não tem a ninguém mais e está muito doente. Seu irmão é sua única família e tem que

sabê-lo antes que...

Gracie deixou a frase no ar. Não queria dizer de modo explícito que Pontua se

estava morrendo, a menos que fosse absolutamente necessário, mas se alegrava de que

se subentendesse.

É claro, se tinha que fazê-lo, inventaria-se o que fosse!

—Oh, não! -exclamou Dottie, contraindo o rosto de compaixão—. Que terrível.

—Tenho que dizê-lo insistiu Gracie—. Não têm a ninguém mais, nenhum dos dois.

Ficará tão destroçado... — Tomou a liberdade de imaginar a situação.

—É claro! -assentiu Dottie, ao mesmo tempo que se dirigia à cozinha, ao calor e aos

aromas dos guisados que chegavam dela—. Entre e tome uma taça de chá. Parece

gelada.

—Obrigada -aceitou Gracie—. Muito obrigada.

Em realidade, não tinha frio, fazia um dia muito agradável e tinha andado a bom

passo, mas o medo lhe tinha impregnado fundo e devia ter o mesmo aspecto que se

estivesse transida de frio.

Entrar e fazer uma idéia da casa era justo o que queria. Seguiu ao Dottie pelas

escadas de madeira até uma grande cozinha de teto alto em que de um extremo a outro

pendia uma corda de estender, da qual nesse momento só pendiam uns trapos de cozinha

e vários molhos de ervas secas.

Nas paredes havia panelas de cobre brilhante.

 A cozinheira, uma mulher corpulenta que saltava à vista que degustava suas

criações, resmungava para si enquanto batia uma cremosa mescla em uma terrina,

marrom por fora e de louça branca por dentro. Levantou a vista quando Gracie entrou

vacilante.—Sim? -disse, enquanto a examinava com olhos críticos—. Quem é você? Não

necessitamos mais criadas, e embora assim fosse, buscaríamos-la por nossa conta.

Parece um coelho de dois pennies! Ninguém lhe dá de comer?

 Aos lábios de Gracie acudiu uma resposta muito cortante que teria posto à

cozinheira rapidamente em seu lugar, mas se conteve. Pontua merecia que tivesse

paciência!

—Não procuro trabalho, senhora - explicou receosa—. Tenho um emprego que émuito de meu agrado. Sou criada de uma senhora e um cavalheiro no Keppel Street, estou

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a cargo do serviço e tenho duas crianças que cuidar. —Era um pouco exagerado, posto

que só tinha sob suas ordens à mulher da limpeza, mas tampouco era do todo mentira.

Percebeu a incredulidade no rosto redondo da cozinheira e se apressou a acrescentar —

Vim dar um recado.

—Uma amiga sua se está morrendo, senhora Culpepper-acrescentou Dottie

solícita—, Gracie quer comunicá-lo a seu familiar, ao único parente que resta.

—Morrendo? -respondeu a senhora Culpepper com tom de surpresa. Claramente,

não era absolutamente o que tinha suposto—. Do que?

Gracie estava preparada.

—De febre reumática -respondeu sem vacilar —. Está muito delicada.

Gracie deixou que sua inquietação pelo Martin, que a atormentava profundamente,

aflorasse em uma expressão de aflição.

 A senhora Culpepper deve ter percebido.

—Sinto muito -disse, com um tom de sincera compaixão—. A quem busca? Não

fique aí parada. Dottie! Lhe traga uma xícara de chá! —voltou-se para Gracie—. Sente-se.

-indicou uma cadeira de cozinha de espaldar reto do outro lado da mesa.

Dottie se aproximou do fogão e pôs a chaleira de água ao fogo. Começou a apitar

quase imediatamente.

Enquanto isso a senhora Culpepper continuava batendo com sua colher de madeira.

— Agora— jovem... —Já tinha esquecido o nome de Gracie—. A quem busca? Para

quem é essa mensagem?

Gracie não podia andar com mais evasivas. Observou com atenção o rosto da

senhora Culpepper. Sua expressão podia lhe dar muito mais informação que suas

palavras.

— Ao Martin Garvie - respondeu—. É seu irmão. Não tem a ninguém mais. Seus pais

morreram faz anos.O rosto da senhora Culpepper era impenetrável, sua expressão ligeiramente triste

não se alterou e sua mão não titubeou ao bater a mistura para empanar.

—Oh - disse sem levantar o olhar —. É uma lástima, porque Martin já não trabalha

aqui e não sei aonde foi.

Gracie sabia que a mulher lhe ocultava algo, ou ao menos não lhe havia dito toda a

verdade, mas tinha a sensação de que o que a impulsionava era a tristeza e não um

sentimento de culpa.

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De repente, um medo muito intenso e real se apoderou dela, e a cozinha agradável

e que cheirava tão bem, com seus fornos quentes e suas panelas fumegantes, começou a

dar voltas ante ela. Fechou os olhos.

Quando os abriu a senhora Culpepper a olhava fixamente e Dottie estava ao outro

lado da mesa com uma xícara de chá nas mãos.

—Ponha a cabeça entre os joelhos - disse de forma prática.

—Não vou desmaiar! —Gracie ficou na defensiva, em parte porque não estava

absolutamente segura de se era verdade. Estavam sendo amáveis com ela. Não tinha

motivos de disputa e não sabia como canalizar suas emoções—. Se não está aqui, onde

está?

Não podia revelar que não havia dito a ninguém que se ia porque se supunha que

Pontua estava muito doente para sabê—lo.

Esperava fervorosamente que quando sua amiga foi ali pessoalmente para

perguntar pelo Martin, tivessem-na visto bastante angustiada para parecer à beira de uma

enfermidade grave.

—Não sabemos - respondeu Dottie antes de que a senhora Culpepper tivesse

considerado sua resposta.

 A cozinheira lhe dirigiu um severo olhar de advertência, mas não havia forma de

saber se era para guardar um segredo ou para evitar uma dor desnecessária.

—E por que iria saber você, menina? — A senhora Culpepper recuperou a fala—.

Não é seu assunto o que faz o senhor com o serviço, não?

Dottie deixou o chá em frente à Gracie.

—Beba, lhe ordenou.

—É claro que não, senhora Culpepper -assentiu total—. Mas penso que Bela

poderia sabê-lo. -voltou-se de novo para o Gracie—Bela é a criada e gostava de Martin.

Era um menino bonito. Eu mesma gostava como amigo - se apressou a acrescentar.—Fala muito! -criticou—a a senhora Culpepper —. Se Bela soubesse onde se foi,

acha que lhe diria isso, né?

Dottie deu de ombros.

—Sei! -disse ela sem ressentimento. Depois lhe escureceu o rosto—. Mas também

eu gostaria de saber o que ocorreu ao Martin.

—Não fale assim, estúpida! -replicou à senhora Culpepper com repentina cólera, o

rosto aceso. Deixou bruscamente a terrina na mesa—. Qualquer um diria que morreu ou

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lhe aconteceu algo! Não lhe aconteceu nada! Já não trabalha aqui, isso é tudo. Fecha a

boca, menina, e faz algo útil.

Vá descascar as batatas velhas para as pôr de molho. Nunca se tem muito amido.

Não fique aí como uma paspalha!

Dottie retirou uma mecha de cabelo com a mão, deu de ombros de bom aspecto e

saiu da cozinha para fazer o que lhe tinham pedido.

—Me alegro de que não lhe tenha passado nada - comentou Gracie com a devida

humildade—. Mas ainda tenho que lhe contar sobre Pontua. —Sabia que estava tentando

ao diabo, mas não tinha escolha.

De momento não tinha averiguado nada que Pontua não lhe houvesse dito—.

 Alguém tem que sabê-lo, não?

—É claro - concordou a senhora Culpepper, pegando uma forma e um trapo de

musselina com um pouco de manteiga. Lubrificou a forma com gestos de profissional —

Mas eu não sei.

Gracie bebeu um gole de chá.

—Pontua me disse que era o valete do senhor Stephen. Assim, agora tem outra

pessoa?

 A senhora Culpepper a olhou com severidade.

—Não, não tem ninguém. Não vá... -Então seu rosto se suavizou—. Olhe, menina,

entendo que esteja afetada, e sei quão duro é ver alguém realmente doente e não poder

lhe ajudar.

Sabe Deus que não quereria ver morrer a um cão só, mas me escute, não sei aonde

foi Martin, essa é a pura verdade. Só sei que é um bom homem e que não acredito que dê

problemas nunca a ninguém.

Gracie respirou fundo e piscou, pensando em Pontua e em seus temores. Já tinham

passado vários dias. Por que não lhe tinha enviado uma carta, uma mensagem?—Como é o senhor Stephen? Seria capaz de despedir a um empregado que não fez

nada mau?

 A senhora Culpepper se secou as mãos no avental, deixou a massa e se serviu um

chá.

—Quem sabe, menina - disse, ao mesmo tempo que sacudia a cabeça—. É um

pobre homem confuso. Mas duvido muito que nem em seu pior dia despedisse o Martin,

porque é o único que sabe dirigi-lo quando fica mal.

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Gracie fez um esforço por manter sua expressão serena, embora compreendesse

que não tinha conseguido de tudo.

Esse dado não o conheciam e a inquietou, mesmo que não estivesse certa de ter

entendido cabalmente.

Levantou a vista para a senhora Culpepper, piscando várias vezes para tratar de

ocultar seus pensamentos.

—Quer dizer que está doente?

 A senhora Culpepper deu um pulo e não respondeu. Deixou a mão imóvel na asa da

xícara.

Gracie temeu ter cometido o primeiro engano sério, mas tinha suficiente bom senso

para não tratar de emendá-lo. Guardou silêncio, esperando que a senhora

Culpepper falasse primeiro.

—É uma maneira de dizê—lo - concedeu a senhora Culpepper por fim, levando—a

xícara aos lábios e bebendo o chá quente—. E não serei eu quem diz o contrário!

Era uma clara advertência.

Gracie compreendeu imediatamente. "Doente" era um eufemismo para descrever

algo muito pior, quase certo que bêbado perdido.

 Alguns homens se desabavam ou vomitavam, mas havia os que se tornavam

agressivos e provocavam brigas com as pessoas, ou se despiam ou faziam qualquer outra

coisa vergonhosa e molesta. Ao que parecia, Stephen Garrick era dos últimos.

—É claro que não - comentou Gracie recatadamente—. Ninguém diz o contrário.

Não nos corresponde.

—Não é que não me sinta às vezes tentada de fazê-lo! - acrescentou à senhora

Culpepper com certa veemência, mas se interrompeu de repente quando nesse momento

entrou na cozinha a atraente criada—. Não me diga que deves busca o almoço - disse

assombrada—. No que me foi o dia? Ainda não está preparado!—Não, não! —tranqüilizou—a Bela—. Há tempo de sobra. —Olhou com curiosidade

ao Gracie. Devia ter ouvido sem querer as últimas palavras da conversa—. Não me viria

mal uma xícara de chá, se ainda está quente - acrescentou.

—Esta é Gracie. — A senhora Culpepper recordou de repente seu nome—. veio

porque é amiga da irmã do Martin e parece que a pobre garota tem febre reumática e está

à beira da morte, de modo que Gracie está procurando o Martin para contar-lhe o que é

muito duro.Bela sacudiu a cabeça, muito séria.

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—Tomara pudéssemos ajudá—la, mas não sabemos onde está -disse com

franqueza—. Em geral, o senhor Stephen sai de viagem a no meio de amanhã e todos

sabemos com dias de antecipação, mas desta vez é diferente. Simplesmente não se

encontra em casa!

Gracie não ia se render sem tentar tudo o que estivesse em suas mãos.

— A senhora Culpepper foi muito amável -disse com efusão—. Diz que o senhor

Garrick dependia realmente do Martin, que não o teria despedido em um arrebatamento.

O rosto de Bela deixou transparecer seu aborrecimento.

— Às vezes se comporta muito mal. Minha mãe me teria batido com o chinelo se eu

tivesse tido essas manhas, dando pontapés e gritando, e...

—Bela! -exclamou a senhora Culpepper com tom áspero, advertindo—a.

— Às vezes se comporta como um pirralho de três anos! —protestou Bela com as

faces acesas—. E o pobre Martin o suporta sem uma palavra de queixa. Limpando atrás

dele, escutando-o chorar e mugir por algo, ou vendo-o aí sentado, como se carregasse

com todo o sofrimento do mundo. Qualquer diria...

—Será melhor que controle essa língua, menina, ou será você quem terá em suas

mãos todo o sofrimento do mundo —acautelou a senhora Culpepper —. Pode ser que seja

bonita e que fale como uma senhora, mas estará na rua rapidamente, com as malas na

mão e nenhuma recomendação, se o senhor a surpreende falando do senhorzinho

Stephen com desconhecidos, tenha como certo!

Na voz da cozinheira se apreciava uma nota de obrigação e seus olhos negros

tinham uma expressão severa. Gracie estava certa de que não era a cólera nem a

antipatia, mas o afeto o que a impulsionava a falar assim.

Bela se sentou na outra cadeira da cozinha e recolheu as saias a seu redor: seu

avental de renda luzia limpo e engomado.

—Não é justo! -exclamou com veemência—. O que ele suportou é mais do queagüentaria ninguém! E se o jogaram...

—É claro que não o jogaram, boba!

Entrou um jovem lacaio com topete e as calças excessivamente longas para ele.

Gracie supôs que tinha subido de engraxate nas últimas semanas.

Bela se voltou para ele.

—E você como sabe tanto, Clarence Smith?

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—Porque vejo coisas que você não vê! -replicou ele—. Ninguém pode com ele

exceto Martin quando cai em uma de suas depressões. E ninguém o tenta sequer quando

tem um ataque de cólera.

Eu não o faria nem por todo o ouro do mundo! Até o senhor Lyman lhe tem medo e

a senhora Somerton.

E jamais diria que a senhora Somerton tivesse medo a algo! Teria apostado um

xelim por ela contra o dragão, dá-me igual são Jorge e todo isso!

—Vá fazer suas tarefas, Clarence, antes de que informe ao senhor Lyman de sua

insolência -disse a senhora Culpepper de maneira cortante—. Se te pilhar ele, jantará só

na copa e, se tiver sorte, comerá pão com gordura de carne.

—Só disse a verdade! -exclamou Clarence indignado.

— A verdade não tem nada que ver com isto, estúpida criatura -replicou a

cozinheira—. Às vezes acredito que lhe abrandaram os miolos! Vá procurar o carvão para

Bela. Vamos!

—Sim, senhora Culpepper - disse ele obediente, talvez percebendo na voz dela

mais preocupação que censura.

Gracie pensou por um momento que talvez seria divertido trabalhar em uma grande

casa, só durante um par de semanas. Mas, é claro, não era tão importante como o que ela

fazia.

Observou como Clarence saía para realizar a tarefa. Pegou sua xícara e bebeu o

chá.

—Perdoa, querida, mas não podemos ajudá-la - manifestou a senhora Culpepper,

sacudindo a cabeça e jogando por fim a massa na forma. — Tenho que seguir com as

bolachas para o chá. Nunca se sabe quem pode vir. Dottie! Dottie, venha se ocupar da

verdura!

Gracie se levantou para partir e depositou sua xícara vazia no aparador junto à pia.—Obrigada - disse com sinceridade—. Terei que seguir tentando, embora não sei

aonde acudir.

Dottie voltou da copa, secando as mãos no avental.

—Bom, Martin ia ver um tal senhor Sandeman no East End - disse esperançada—.

Talvez ele saiba algo.

Gracie deixou a xícara com cuidado, pois lhe começaram a tremer as mãos.

—Sandeman? -repetiu—. Quem é? Sabe?Dottie pareceu desconsolada.

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—Sinto muito, mas não tenho nem idéia.

Gracie encaixou a decepção.

—Não importa, talvez alguém saiba. Obrigado, senhora Culpepper.

 A senhora Culpepper sacudiu a cabeça.

—Sinto muito. Pobrezinha. Pode ser que melhore, nunca se sabe.

—Sim - concordou Gracie, sem envergonhar-se por mentir porque pensava no

Martin, não em Pontua—. Não se deve perder a esperança.

Dottie a acompanhou à porta traseira e um momento depois Gracie estava na

calçada, andando tão depressa como podiam levá-la seus pés para o Keppel Street.

É claro, que ao retornar, contou a Charlotte tudo o que tinha averiguado. Mas expô-

lo ao Tellman seria muito mais difícil.

De entrada, tinha que localizá-lo, e não sabia por onde começar além da delegacia

de polícia do Bowl Street ou a pensão onde vivia. Cabia a possibilidade de que de noite,

uma vez acabadas suas tarefas, voltasse diretamente para seu alojamento, e isso podia

ser a qualquer hora.

 Além disso, não tinha nenhum desejo de envergonhá-lo deixando-se ver no Bowl

Street, onde saberiam quem era embora não perguntasse por ele.

 Ainda mais importante, talvez a recordassem como a criada do Pitt, e dariam por

feito que essa era a razão pela que queria ver o Tellman, o que podia lhe pôr as coisas

difíceis com o novo superintendente.

De modo que, a última hora da tarde, Gracie se postou frente a sua pensão, olhando

fixamente as janelas de seu quarto do segundo piso; tudo estava escuro e, se ele

encontrava-se em casa, teria se vislumbrado luz entre as cortinas.

Ficou ali indecisa uns minutos, depois se deu conta de que ele podia demorar uma

hora ou inclusive mais se estivesse trabalhando em um caso importante.

Sabia onde havia uma agradável cafeteria a uns cem metros de distância, e pensouque poderia passar um momento ali e retornar mais tarde para ver se já havia voltado.

Mal tinha andado cinqüenta passos quando pensou que o mais provável era que se

visse obrigada a voltar meia dúzia de vezes antes de poder falar com ele ou que tivesse

que esperar muito.

Deu meia volta e desandou o caminho; bateu na porta da pensão e, quando a

proprietária lhe abriu, disse-lhe muito educadamente que tinha que informar ao inspetor

Tellman de algo importante e que o esperaria na cafeteria se ele podia reunir-se ali comela.

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 A proprietária a olhou um pouco receosa, mas aceitou dar o recado e Gracie partiu

satisfeita.

Cansado e com frio, Tellman entrou no estabelecimento quase uma hora depois.

Tinha sido uma jornada longa e tediosa, e o único que queria era jantar frugalmente e

deitar-se logo.

 Assim que viu seu rosto e quão tenso estava, Gracie compreendeu que se lembrava

da rixa que tinham tido e que se sentia inseguro de como falar com ela.

O fato de que a jovem tivesse ido para tratar de novo o tema só podia piorar as

coisas, mas não achava ter escolha.

 A vida do Martin Garvie podia estar em jogo, e que valor tinha o amor ou o consolo

de alguém se, ante a perspectiva de algo desagradável ou uma diferença de opinião,

vinha-se abaixo e desaparecia?

—Samuel - começou a dizer mal Tellman se sentou frente a ela e encarregou algo

de jantar à criada.

—Sim? -respondeu ele na defensiva.

Deu a impressão de que Tellman ia acrescentar algo mais, mas se calou.

 A única coisa que Gracie podia fazer era ir direta ao assunto. Quanto mais tempo

permanecesse ali sentada, com o silêncio entre ambos ou uma conversa forçada, falando

de banalidades e com o pensamento em outra parte, pior seria.

—Estive em casa dos Garrick - disse, lhe olhando de seu assento. Viu como o rosto

dele ficava ainda mais tenso com os dedos brancos obstinados à mesa—.

Não passei da cozinha - se apressou a acrescentar —. Perguntei à cozinheira e à

criada, lhes contando que Pontua estava doente e que Martin era a única família que tinha.

—Está doente? -perguntou ele em seguida.

—Só de preocupação —reconheceu Gracie com sinceridade—. Mas lhes disse que

tinha contraído febres. -sentiu-se envergonhada. Ele não aprovaria que tivesse mentido edesejou não ter tido que confessar-lhe, mas ocultá-lo significaria mentir a ele, e isso era

algo que não estava disposta a fazer.

 Apressou-se a continuar para dissimular —. Só lhes perguntei onde estava Martin,

para lhe explicar o de sua irmã. Não sabem, Samuel, quero dizer que é verdade que não

sabem.

Eles também estão preocupados. —  Inclinou-se, aproximando-se dele—. Me hão

dito que o senhor Stephen bebe muito e tem ataques de cólera horríveis, depressões e umsofrimento terrível.

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Que ninguém pode o ajudar exceto Martin, e que por essa razão ele nunca o

despediria.

Gracie o olhou fixamente, vendo como se debatiam a preocupação e a incredulidade

nos olhos dele.

—  Tem certeza de que lhe contaram tudo isso? -perguntou carrancudo—. Se

dissessem isso a qualquer um que batesse na porta, o senhor Garrick os mandaria embora

sem uma carta de recomendação! Nunca me encontrei com criados que falem mal de seus

senhores, a menos que já os tenham despedido ou estejam buscando problemas.

— As coisas não aconteceram assim! -explicou ela com paciência—. Me sentei na

cozinha e me ofereceram uma xícara de chá enquanto lhes falava de Pontua, e me

estiveram explicando o bom profissional que era Martin. Saiu à tona quão bom era e por

que.

Um fugaz sorriso aflorou aos lábios do Tellman. Poderia ter sido de admiração ou só

de diversão.

Gracie se surpreendeu ruborizando-se, algo que costumava controlar, e isso a

irritou porque delatava suas emoções. Não tinha nenhum desejo de que Samuel Tellman

se fizesse ilusões de que sentia algo por ele.

—Me dou muito bem em fazer as perguntas pertinentes! -disse ela

acaloradamente—. Faz muitos anos que trabalho para o senhor Pitt! Mais tempo que você!

Ele tomou ar bruscamente e sorriu. Em seguida, exalou sem dizer o que pensava.

—De modo que estão seguros de que Garrick não o teria deixado partir. E não

poderia haver-se cansado Martin de agüentar o mau gênio do Garrick e tomar a decisão de

ir-se sem mais?

—Sem dizer a Pontua nem a ninguém? -observou Gracie com incredulidade—. É

claro que não! Avisa com antecipação, não vai pelas boas! —Viu como o desdém se

refletia no rosto dele, lhe recordando sua opinião sobre o conceito de viver e trabalhar paraoutros—. Não comece outra vez! —advertiu-lhe—. Há alguém em perigo, essa é a

realidade, e poderia ser sério. Não temos tempo para discutir sobre o bom e o mau da

forma de viver das pessoas. —Olhou-o no rosto e estremeceu de emoção ao perceber a

intensidade com que lhe sustentava o olhar —. Temos que passar à ação para ajudar. —

Falou em plural de forma deliberada—. Eu não posso fazer muito mais sem você, Samuel.

Por favor, não me obrigue a ter que tentá-lo. -Acabava de pôr sua relação na

balança, e era assombroso que tivesse assumido tal risco, porque lhe importava muitomais do que tinha acreditado até esse instante—. Lhe aconteceu algo -acrescentou em voz

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 Anne Perry – Thomas Pitt 23 – Os Segredos de Connaught Square 

De entrada, retornou ao Eden Lodge. A casa parecia curiosamente vazia nessa fria

manhã outonal.

Os prolongados raios de sol cruzavam dourados a tranqüila rua e na intensa

quietude nem sequer se moviam as folhas dos abedules. Ouviu cascos de cavalo ao longe

e o gorjeio de um pássaro por cima dele. Um pequeno gato negro ziguezagueou entre os

caules dos lírios secos que esperavam para ser cortados.

 Abriu-lhe a porta Tariq O Abd.

—Bom dia, senhor -saudou educadamente, com o rosto inexpressivo—. No que

posso ajudá—lo?

—Bom dia - respondeu Pitt—. Preciso fazer mais averiguações e você pode me

ajudar.

O Abd o convidou a passar e o conduziu ao salão. Parecia lhe incomodar um pouco

ter à polícia nessa zona da casa, tendo em conta que mal se conheciam, mas as cozinhas

e a lavanderia eram seu domínio, e tampouco o queria ali.

Pelas manhãs, negava-se a oferecer às visitas algo de beber.

—O que deseja me perguntar, senhor? -disse permanecendo em pé de modo que

Pitt se visse obrigado a não tomar assento.

Pitt malteve tempo para percorrer a sala com o olhar, mas percebeu cores sutis e

luz. A decoração era menos recarregada do que ele estava acostumado a achar-se, tudo

era mais simples.

Em uma das mesas laterais tinha escondido um elaborado objeto decorativo de um

cão de caça de orelhas longas, que media meio metro de longitude. Era um objeto de

grande beleza.

O Abd seguiu seu olhar.

— Anubis, senhor - explicou—. Um dos antigos deuses de nosso país. As pessoas

que acreditavam nele há tempo morreram, é claro.— A beleza de seu trabalho perdura -respondeu Pitt com sentimento.

—Sim, senhor. Que deseja me perguntar? -O rosto do Abd seguia quase desprovida

de expressão.

—Estavam acesas as luzes desta sala quando dispararam no senhor Lovat?

—Perdoe, senhor? Não o entendo. Ao senhor Lovat atiraram no jardim fora. Não

entrou na casa.

—Estava você acordado? -perguntou Pitt surpreso.

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O rosto do Abd revelou uma perda de serenidade que em seguida voltou a

recuperar.

—Não, senhor, não até que ouvi o disparo. A senhorita Zakhari disse que ele não

tinha entrado e eu acredito. Não havia ninguém aqui. As luzes não estavam acesas.

—E em alguma outra parte da casa?

—Não havia nenhuma luz acesa no piso de baixo, salvo no saguão. Nunca se

apagam todas.

—Entendo. E no piso de cima?

—Não compreendo aonde quer ir parar, senhor. Estavam acesas as luzes do

dormitório da senhorita Zakhari, as de sua sala de estar e as do patamar do piso de cima,

como sempre.

—Essas estadias estão na parte dianteira da casa ou na traseira?

—Na dianteira, senhor.

Era natural. Os aposentos principais costumavam dar à parte dianteira.

—De modo que não chegava nenhuma luz da casa ao jardim traseiro onde o senhor

Lovat recebeu o tiro - concluiu Pitt.

O Abd vacilou, como se percebesse uma armadilha.

—Não, senhor.

—É possível que a senhorita Zakhari não estivesse à corrente da identidade do

senhor Lovat? Poderia lhe haver confundido com outra pessoa?

O Abd não só pareceu sobressaltado, mas sim como se corresse um verdadeiro

perigo. Mas se tratou de algo passageiro e sustentou o olhar do Pitt, embora piscando

ligeiramente.

—Nunca me ocorreu pensá-lo, senhor. Não sei o que dizer a respeito. Se se tivesse

acreditado que era um ladrão, certamente me teria chamado. Sabe que eu a defenderia. É

meu dever.—É claro - assentiu Pitt—. Não estava pensando em um ladrão, senão em alguma

pessoa que a senhorita Zakhari conhecesse, alguém que representasse de algum modo

uma ameaça para ela.

Nesta ocasião O Abd falou com tom de segurança, pois tinha recuperado o controle

de si mesmo.

—Não sei nada de tal pessoa, senhor. Se fosse assim, é de supor que ela haveria

dito à polícia que se tratara de um acidente. Um engano em defesa própria. É permitidodisparar em defesa própria na Inglaterra?

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Pitt lhe agradeceu e se despediu. O livro de visitas era interessante. Havia nele mais

nomes do que tinha esperado achar, e lhe levaria algum tempo averiguar quem eram

todos. Suspeitava que a folha de papel não lhe seria de nenhuma utilidade.

Passou o resto da tarde identificando a diferentes homens da cidade, a maioria

relacionados de um modo ou outro com o negócio do algodão, mas também outros que

eram artistas, poetas, músicos e intelectuais.

Seria interessante saber por que tinham visitado a Ayesha Zakhari, o que pensaria

ao respeito Saville Ryerson, se é que sabia. Não estavam anotadas as horas do dia, só a

data.

Na manhã seguinte, sentado ainda à mesa do café da manhã, Pitt recebeu uma

mensagem na qual lhe pedia que se apresentasse em menos de uma hora no escritório do

Narraway.

Deixou a faca e o garfo. Os arenques defumados tinham perdido seu sabor.

 Ainda ficavam por identificar vários nomes, tanto do livro de visitas como da folha

adicional, e lhe irritou ter que acudir quando ainda não dispunha de informação útil para

oferecer.

Meia hora depois, explicava ao Narraway sua visita ao Eden Lodge, assim como os

nomes que tinha obtido do livro de visitas e do criado. O Abd.

Narraway permaneceu sentado absorto em seus pensamentos, com o rosto abatido

e com sinais de cansaço, embora havia nele um repentino vislumbre de esperança,

embora lutasse para que não lhe notasse.

—E acredita que ela o confundiu com outra pessoa? -perguntou com cepticismo,

recostando-se em sua poltrona e esquadrinhando ao Pitt com os olhos entrecerrados e

pesados, como se tivesse estado acordado toda a noite.

—Tem mais sentido que a hipótese de que soubesse que era Lovat e disparasse

contra ele -replicou Pitt.—Não tem - lhe contradisse Narraway com amargura—. Se Lovat a estava

chantageando e tinha ido cobrar, ela pôde aproveitar a oportunidade para lhe dar um tiro e

resolver o assunto. Isso é perfeitamente verossímil e assim o entenderá qualquer jurado.

—Chantageá-la por que? -perguntou Pitt.

—Pelo amor de Deus, Pitt! Utilize a imaginação! É uma moça e bonita cujo passado

ninguém conhece.

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 Anne Perry – Thomas Pitt 23 – Os Segredos de Connaught Square 

Ryerson tem vinte anos mais que ela, é extremamente respeitado e vulnerável -

pronunciou a palavra com a mesma dor com que teria falado de uma ferida interna. Inalou

silenciosamente.

Pode ser que estivesse a par de que ela tinha outros amantes e de fato, seria

estúpido que acreditasse o contrário. Isso não significa que possa suportar ouvir falar

deles, talvez com detalhe.

Pitt tratou de ficar no lugar do Ryerson, embora não o conseguisse.

Se escolhia a uma mulher por sua beleza física, sua cultura exótica e sua boa

disposição a exercer-se de amante antes que de esposa, sem dúvida também aceitava

como um fato que não foi o primeiro nem seria o último.

O acordo funcionaria sempre que satisfizesse aos dois.

Mas ao observar com atenção ao Narraway não viu em seu olhar esse raciocínio,

mas só uma intensa e inescrutável emoção que lhe advertiu que se se encontrasse na

tesitura de ter que desafiá-lo, a disputa que seguiria não seria fácil de ganhar.

Ignorava por completo por que o tema lhe tocava uma fibra sensível, só sabia que

assim era.

—E acredita que Lovat poderia havê-la chantageado para que guardasse silêncio

sobre algo relacionado com o Egito? -comentou Pitt.

—Isso é o que deduzirá o promotor - replicou Narraway—. Não o faria você?

—Se não se propuser nada mais - concedeu Pitt—. Mas terão que demonstrá-lo.

Narraway se tornou bruscamente para diante, os ombros tensos, o corpo rígido.

—Não o farão! -disse entre dentes—. A menos que lhes demos algo melhor, optarão

por esse enfoque. Utilize a cabeça, Pitt! Um antigo amante sem dinheiro ou posição é

encontrado morto em seu jardim às três da madrugada, ela tem o cadáver em um carrinho

de mão e sua pistola ao lado. Que demônios vai pensar qualquer um?

Pitt sentiu o sombrio peso dos fatos sobre ele, quase como se o esmagassefisicamente.

—Quer dizer que só estamos cumprindo com a formalidade de procurar uma

defesa? -perguntou em voz muito baixa—Por que? Para que Ryerson acredite que não o

abandonaram? Tanta importância tem isso?

Narraway não o olhou,

—Pediram-nos isso homens que conhecem realidades diferentes das nossas -

respondeu—. Não se importam com Ayesha Zakhari, mas precisam salvar ao Ryerson.

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Serviu a seu país muito tempo e bem. A ele se deve grande parte da prosperidade da

indústria do algodão de Manchester, que significa dezenas de milhares de empregos.

E se alguém não chega a um acordo sobre os preços, têm muitas possibilidades de

enfrentar-se a uma greve. Pode fazer uma idéia de quanto lhes custará? Não serão só os

operários das fábricas de algodão, mas também todos aqueles cujos negócios dependem

deles: os lojistas, os pequenos comerciantes, os exportadores, todo mundo em definitivo,

dos vendedores de casas até o varredor do cruzamento que quer ganhar uns pennies.

—Será uma vergonha para o governo se declararem Ryerson culpado de ter sido

cúmplice do crime ao tentar encobri-lo - concordou Pitt—. Nesse caso, terão que nomear a

outro que controle o comércio com o Egito.

 A julgar pela maneira em que Ryerson levou o assassinato do Lovat, preferiria que

não estivesse em suas mãos nenhuma crise nacional.

 A cólera acendeu as faces gastas do Narraway, que fechou os punhos sobre a

escrivaninha, mas a conteve com um esforço tão grande que saltava à vista.

—Não sabe do que está falando, Pitt! —resmungou entre dentes.

Pitt se ergueu no assento.

—Então, diga-me! —exigiu—. Até agora só vejo um homem apaixonado por uma

mulher muito pouco recomendável e resolvido a defendê-la embora ela seja culpada de

assassinato.

Ele não pode ajudá-la. Seu testemunho só piora a situação, em vez de melhorá-la.

Mas ou não é consciente disso, ou é tão incrivelmente arrogante que acredita que

seu testemunho a salvará, ou simplesmente não lhe importa.

Narraway se mexeu na cadeira, ficando de lado.

—É você um néscio, Pitt! É claro que ele sabe o que ocorrerá. Será sua ruína. A não

ser que possamos demonstrar alguma outra possibilidade, pode ser que até o enforquem

com ela. -Olhou para trás e, quando falou, tremeu-lhe a voz—. De modo que averiguequem mais estava comprometido com a mulher ou quem odiava ao Lovat tanto para matá-

lo.

E me traga as provas, entendido? Não diga nada a ninguém. Seja discreto, ou

melhor ainda, mantenha-o em segredo. Interrogue com cuidado. Use o tato do que tanta

fama tem… ao menos segundo Cornwallis. Averigue-o tudo e não revele nada. -voltou-se

de novo e olhou Pitt no rosto como se, voluntariamente ou não, pudesse lhe ler o

pensamento—. Se lhe escapa algo, Pitt, não voltarei a lhe necessitar. Recorde—o! Queroa verdade e quero ser o único que saiba.

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Pitt sentiu frio, mas também irritação, assim como curiosidade por saber por que o

caso parecia importar tanto ao Narraway.

Este escondia tanta informação como a que lhe revelava, talvez mais, e entretanto

exigia em troca lealdade absoluta. A quem protegia e por que? Era a si mesmo, ou

inclusive a ele, de um perigo que não compreendia por causa do pouco tempo que levava

nesse trabalho? Ou ao Ryerson, por lealdade pessoal ou outro motivo que ele

desconhecia? Queria lhe pedir em troca sua confiança, para ter mais possibilidades de

obtê-lo, e também para proteger-se se descobria provas que pusessem em perigo inimigos

poderosos.

Mas era inútil. Narraway só confiava nas pessoas estritamente necessárias. Talvez

era assim como tinha sobrevivido em um mundo infestado de segredos e exposto a todo

tipo de traições.

—Não posso lhe prometer a verdade - manifestou Pitt friamente—. E certamente

não será você o único que saberá! —Viu como Narraway ficava rígido e isso lhe produziu

certa satisfação, embora muito leve, quase se perdeu na consciência de que havia muitas

coisas que lhe escapavam. —Duvido que chegue ao fundo de tudo isto, mas quem é que

matou Lovat se inteirará de minhas averiguações, e pode ser que saiba que eu sei,

dependendo de se foi um plano engenhoso, ou de um delito irresponsável de encobrimento

de um homem muito indulgente consigo mesmo, ou de uma mulher.

—Por isso lhe encarreguei o caso, Pitt, e não a um de meus homens, que estão

habituados a perseguir anarquistas e sabotadores -disse Narraway secamente—. Parto da

base de que você tem certa sutileza.

Sabe Deus que não distingue uma bomba de uma bolacha de frutas, mas se supõe

que é você um detetive competente quando se trata de um assassinato, sobretudo se for

um crime passional e não político.

Siga com isso! Localize ao resto das pessoas de sua lista. E atue rápido. Não restamuito tempo antes que o governo se veja obrigado a entregar ao Ryerson.

Pitt se levantou.

—Sim, senhor. Não tem nada mais que me dizer que possa me ser útil? -Permitiu

que sua expressão fizesse ter sabor de Narraway que era consciente de que lhe ocultava

algo, mesmo que não soubesse do que se tratava.

O rosto do Narraway se crispou e lhe marcaram os músculos do pescoço.

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—Cornwallis confiava em você e pode ser que eu algum dia o faça, mas ainda não é

assim, e isso é algo pelo que deveria sentir-se agradecido. Tem sorte de economizar-se

grande parte da informação de que eu disponho.

Com o tempo, pode ser que perca esse privilégio e deseje recuperá-lo. -inclinou-se

ligeiramente sobre a escrivaninha que os afastava—. Mas, me acredite, Pitt, quero que

Ryerson se salve se for possível, e se houvesse algo que pudesse lhe ajudar a consegui-

lo, o diria, independentemente das conseqüências.

Mas se ficou de acordo com essa maldita mulher para matar ao Lovat, ou inclusive

para ocultar o fato de que ela o fez, e foi um simples assassinato, sacrificarei-o sem

pensar.

Há em jogo questões mais importantes que as que você conhece e não podem

afastar —se para salvar a um homem, a nenhum homem.

—Como uma greve do algodão no Manchester? -disse Pitt devagar.

Narraway não respondeu.

—Vá fazer seu trabalho - apressou—. Não fique aí plantado perdendo o tempo e me

pedindo uma ajuda que não posso lhe proporcionar.

Pitt saiu à rua e não tinha caminhado nem vinte metros quando passou junto a um

vendedor de jornais e reparou nas manchetes, que ainda não tinha visto porque tinha

chegado ao escritório do Narraway pelo outro extremo.

O menino o viu hesitar.

—Um jornal, senhor? —ofereceu ansioso—. Todos dizem agora que deveriam deter

o senhor Ryerson junto com essa mulher estrangeira, e enforcá-los aos dois! Quer inteirar-

se das notícias, senhor? —Estendeu-lhe um jornal esperançoso.

Pitt fez um esforço para ser amável. Pegou-o e pagou; em seguida, afastou-se

rapidamente para onde pudesse lê-lo sem chamar a atenção.

Deu-se conta surpreso de que não queria deixar ver suas emoções. Podia ser muitoevidente que lhe afetava.

Subiu a um ônibus, com o jornal ainda dobrado, e se apeou perto de um dos

numerosos lugares pequenos e frondosos, onde se dirigiu a um banco vazio e se sentou.

 Abriu o jornal. Não houve surpresas.

Um deputado da oposição tinha exigido saber por que Ayesha Zakhari estava sob

custódia policial pelo assassinato do Lovat, um soldado honorável com uma reputação

irrepreensível, e, entretanto, não tinham interrogado sequer ao Ryerson, cuja presença às

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três da madrugada na casa dela não só não tinha sido explicada mas era inadmissível do

ponto de vista da decência.

De fato, pedia em nome da justiça que o primeiro-ministro desse conta à Câmara

dos Comuns, e ao povo britânico, a que era devido, e quanto tempo ia durar essa situação.

Por volta de meia tarde, antes de que o entardecer tivesse feito algo mais que tingir

o horizonte e roubar algo da cor às folhas, o governo se viu obrigado a ceder. O ministro

do Interior informou à Câmara de que o senhor Ryerson daria explicações completas e

satisfatórias à polícia.

Para quando se acenderam as primeiras luzes, Ryerson estava detido para todos os

efeitos.

Pitt não necessitava que o fizessem voltar para o escritório do Narraway. Não

dispunha de mais informação que merecesse a pena e não se incomodou sequer em

revelar o pouco que tinha, só algumas pessoas do livro de visitas do Eden Lodge limpas de

toda implicação. Só ficava uma meia dúzia por localizar.

Permaneceu em pé ante a escrivaninha do Narraway, esperando que falasse.

—Sim, sei -disse Narraway com a mandíbula tensa e os olhos cravados na brilhante

escrivaninha que tinha ante si, coberta de papéis, todos de barriga para baixo —. Não

acredito que diga à polícia nada que não lhe haja dito a você.

—Ele não me conhece - indicou Pitt, embora tivesse a inexplicável sensação de que

ele conhecia o Ryerson. Recordava com exatidão seu rosto, cada ruga e cada sombra, o

apresso e a emoção de sua voz, e como se havia sentido pessoalmente comprometido

quando o político tratou de lhe explicar seus atos e o que faria se processassem Ayesha

Zakhari—. Não tem motivos para confiar mais em mim que o que lhe obrigam as

circunstâncias - continuou—. Talvez lhe diria mais coisas.

Pitt não acrescentou que Ryerson e Narraway pertenciam à mesma classe social,

tinham o mesmo nível cultural, a mesma maneira de ver a vida, porque ficava implícito.Narraway fez caso omisso de suas palavras. Abriu uma gaveta de sua escrivaninha

e tirou uma pequena caixa metálica. Não parecia estar fechada com chave, de modo que

se limitou a abri-la e a extrair um maço de bônus do Tesouro. Deviam valer ao menos cem

libras.

—Eu me ocuparei de seguir a pista das provas de Londres - manifestou sem olhar

ainda ao Pitt—. Me deixe seus informes. Vai a Alexandria para averiguar tudo que seja

possível da mulher e do Lovat no período em que esteve ali.Pitt tomou ar, surpreso. Demorou uns momentos em recuperar a fala.

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—Mas eu não sei nada do Egito! -protestou—Nem sequer conheço o idioma que

falam ali! Não...!

—Se arrumará muito bem em inglês - o interrompeu Narraway—, e não disponho de

nenhum perito em assuntos egípcios. Você é um bom detetive. Averigue tudo sobre a

estadia do Lovat ali, mas em especial investigue à mulher, a família da que procede, sua

vida, suas idéias, suas ambições, o que sabe e lhe interessa.

 Averigue se haveria algo pelo qual Lovat poderia havê-la chantageado. -Adotou uma

expressão enojada—. Por que veio a Inglaterra. Quem é sua família. Se tiver no Egito,

amantes, dinheiro, lealdades, ideais religiosos ou políticos.

Pitt o olhou fixamente enquanto, pouco a pouco, compreendia a magnitude do que

seu superior lhe estava pedindo. Sentiu-se aflito por isso. Não tinha nem idéia de por onde

começar, e nem digamos como chegar a alguma conclusão.

Não sabia nada do Egito além da informação fragmentada que tinha obtido de

conversas e jornais, e nos últimos tempos sobre a produção de algodão ali, e não sabia

sequer se era correta.

Tampouco conhecia a cidade de Alexandria; estaria completamente perdido. O

clima não seria como o de Londres, nem tampouco a comida, o traje, os costumes.

Entretanto, ao mesmo tempo em que se apoderava dele o medo o invadia a

emoção, que aumentava por segundos, e as palavras para aceitar foram a seus lábios até

antes que tivesse pensado com clareza como levar a cabo sua missão.

—Sim, senhor. O que me recomenda? Thomas Cook?

Uma ameaça de sorriso aflorou aos lábios do Narraway.

—Era uma ordem, Pitt, não um pedido. Sua única alternativa teria sido demitir-se.

Mas me alegro de não ter tido que lhe pôr nessa tessitura. -Depois seu olhar se voltou

cautelosa e se suavizou por uns instantes—. Tome cuidado, Pitt. O Egito não é um lugar

tranqüilo neste momento, e você vai ali para indagar em assuntos delicados.Quero que volte com informação, mas também com vida. Sua morte em um beco

poria em tecido de julgamento minha reputação profissional. -Pegou o dinheiro da

escrivaninha junto com um envelope branco. — Aqui estão as passagens e acredito que,

com estes recursos terá suficiente.

Se necessitar mais dinheiro, vá ao Senhor Trenchard do consulado britânico, mas

não lhe diga mais do que necessário.

Pitt pegou o dinheiro e as passagens.—Obrigado.

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8/18/2019 Anne Perry - Série Pitt 23 - Os Segredos de Connaught Square

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—Seu navio zarpará do Southampton amanhã com a maré da tarde - acrescentou

Narraway.

Pitt se virou para partir. Teria que tomar o primeiro trem da manhã e devia fazer a

bagagem. Não lhe tinha ocorrido pensar de que roupa dispunha que pudesse ser

apropriada.

—Pitt - chamou-o Narraway com tom áspero.

Voltou-se.

—Sim?

—Tome cuidado. O mais provável é que seja exatamente o que parece, um homem

com mais paixão que bom senso.

Mas no caso de que se trate de um assunto político, algo relacionado com o algodão

ou... Deus sabe o que, procure escutar antes que falar. Aprenda a observar sem fazer

perguntas. Não pertence à polícia da Alexandria.

De repente, seu rosto parecia gasto, como se antecipasse problemas que ainda não

tinham ocorrido ou recordasse conflitos do passado—. Não haverá ninguém ali para

protegê-lo.

Longe de o favorecer, sua pele branca pode o prejudicar. Pelo amor de Deus, tenha

um pouco de cuidado! -exclamou zangado, como se Pitt costumasse correr riscos

imprudentes.

Isso precisamente foi o que provocou ao Pitt um calafrio de medo, porque ele

poucas vezes, para não dizer nenhuma, tinha posto em perigo sua vida, salvo talvez no

Whitechapel, em sua primeira missão para Narraway.

Estava acostumado à segurança de um escritório, que não era o mesmo que um

uniforme, mas igualmente eficaz.

Surpreendeu-se com a boca seca quando respondeu.

—Sim, senhor-disse com formalidade.Em seguida saiu antes que Narraway pudesse lhe dizer nada mais ou que ele

mesmo traísse seus sentimentos.

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Capítulo 6 

—Egito! -exclamou Charlotte com incredulidade quando Pitt o explicou.

Pitt tinha chegado tarde a casa e o jantar estava servido.

—Sei onde está o Egito - manifestou Daniel—. Acima da África. -disse-o com a boca

cheia, mas Charlotte se sentia muito perplexa para repreendê—lo—. Terá que ir em navio -

acrescentou solícito.

—Mas será... -começou a dizer Charlotte, então viu o rosto de preocupação da

Jemima e terminou torpemente—… inter essante. E fará calor, não é? Que roupa vai levar?

—Terei que comprar algo quando chegar ali - respondeu ele.

Havia tantas coisas que queria lhe dizer, mas sabia que ela se preocuparia,

sobretudo depois do perigo em que se haviam visto imersos fazia tão pouco, quando

tiveram que abandonar Dartmoor no meio da noite.

Tellman os tinha resgatado, carregando todos seus pertences em uma carruagem

puxada por um pônei e conduzindo-os à estação mais próxima. Assaltaram-nos pelo

caminho. Tellman lutou corpo a corpo com o homem até deixá-lo quase sem sentido no

chão.

Jemima ainda o recordava muito vividamente. Pitt sorriu a sua filha.

—Trarei-lhe algo bonito - prometeu—. A todos - acrescentou quando Daniel estava a

ponto de falar.

Não foi tão fácil distrair ao Charlotte quando ficaram a sós.

—O que pode fazer você no Egito? -perguntou—. É um protetorado britânico ou algo

assim.

Não temos polícia ali? Poderiam enviar uma carta ou, se não se confiarem em

serviço postal, um mensageiro.— A polícia local não saberia o que procurar, ou não o reconheceria se o

encontrasse -respondeu ele.

Enquanto Pitt caminhava a bom passo pelo Keppel Street para sua casa, com o

vento lhe jogando chuva no rosto, a calçada molhada brilhante à luz das luzes e as

carruagens que passavam levantando cortinas de água, tinha pensado iludido na aventura

de ir a uma antiga cidade banhada pelo sol em um extremo da África.

O fato de que não entendesse o idioma ou que desconhecesse a comida, a moedae os costumes carecia de importância. Aprenderia o suficiente. Faria tudo o que estivesse

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em suas mãos para averiguar algo sobre a Ayesha Zakhari, provavelmente coisas que

preferiria não saber, mas ao menos teria a certeza de que era a verdade. Talvez

explicasse o ocorrido.

Entretanto, na comodidade íntima de seu lar, pareceu-lhe que era a última coisa que

queria fazer.

 Ali se sentia emocionalmente agasalhado e desfrutava de prazeres tão simples

como sua poltrona, sua cama, o saber onde estava cada coisa, pão recém feito e torrado

com geléia de laranja amarga e chá quente para tomar o café da manhã.

Mas acima de tudo estavam os seus. Sentiria falta deles embora se tratasse só de

uns dias, nem digamos então de estar fora semanas.

Ele manifestou ao Charlotte, uma e outra vez, com palavras, carícias e silêncio.

Na coberta do navio, Pitt olhou por cima da água azul para um horizonte que era

uma cintilante franja entre mar e céu, não interrompida por sinal algum de terra.

 Alegrou-se de escapar de seu camarote, do qual de fato só lhe pertencia à metade.

Via-se obrigado a compartilhá-lo com um homem magro e taciturno do Lancashire

que fazia a viagem com regularidade por motivos trabalhistas. Vaticinava maus tempos e

tinha uma espécie de prazer em dizê-lo a menor oportunidade.

 Aos olhos do Pitt, a única virtude que tinha era que não lhe interessavam os outros.

Em nenhum momento tinha envenenado ao Pitt com perguntas a respeito do que se

dedicava, de onde era ou por que ia ao Egito.

Narraway não tinha dito a Pitt um pretexto que explicasse sua viagem, mas sim

deixou a seu critério que inventasse o que quisesse.

Em sua opinião, se a pessoa elaborava sua própria história era mais provável que

acreditasse e não caísse em deslizes que o delatassem.

Pitt tinha passado às duas horas de viagem em trem de Londres ao Southampton

espremendo os miolos em busca de alguma justificação que não requeresse determinadainformação que não dispunha.

Não tinha nenhum sentido que argüira algum tipo de negócio. Em cinco minutos de

conversa ficaria demonstrado que não sabia uma palavra de comércio.

Não era uma pessoa erudita, menos ainda um perito na história ou nas antiguidades

do Egito, temas que despertavam nesses dias um interesse que não cessava de aumentar.

Poria de manifesto sua ignorância à primeira pergunta.

Que tipo de homem ia só de férias a um país estrangeiro do qual não sabia nada eonde não tinha amigos nem família? Um homem casado certamente que não, e tinha

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decidido ater-se todo o possível à verdade, por comodidade e segurança, e porque

psicologicamente lhe proporcionava um sustento, mas se não viajava por prazer, então

tinha que ser por causa de necessidade.

Optou por inventar um irmão que tinha ido aí para atender um negócio e de quem

fazia dois meses que não tinha notícias. Isso lhe proporcionava um motivo convincente e

ao mesmo tempo uma justificativa para fazer perguntas, e explicava sua ignorância sobre

determinados temas.

De momento, tinha respondido todas as perguntas que lhe tinham feito,

aparentemente a inteira satisfação de seus interlocutores.

Seu companheiro de camarote só lhe tinha advertido de que se o negócio de seu

irmão era o algodão, estava condenado, e que mais valia que Pitt começasse procurando

seus restos nos becos ou inclusive no rio. Pitt não fez nenhum comentário.

Contemplou a água azul, sentindo a agradável e cálida brisa na pele, e pensou

iludido no interesse que encerrava um lugar novo que não se parecia com nada do que

tinha imaginado, e menos ainda visto.

 Assim que desembarcou, apresentou seu passaporte e se assegurou de que lhe

desciam a bagagem.

Com a mala na mão, permaneceu em pé no mole em meio dos gritos e o bulício.

Ouvia uma dúzia de idiomas diferentes, dos quais não entendia nenhum, mas os portos de

todo o mundo tinham algo em comum.

Em Londres teria sido um dia ensolarado ao menos, mas a brisa procedente do mar

sempre era fria. Ali pelo contrário o calor envolvia como uma manta úmida e abrigada.

Os aromas lhe resultaram familiares em seguida, alcatrão, sal, peixe, mas também

aromas diferentes, a especiarias, a pó, a calor e a suor.

 Alguns dos homens trabalhavam nus da cintura para cima. Outros, vestidos com

longas túnicas e turbantes, falavam entre si, inspecionando uma caixa aqui ou um fardo lá.Com a ajuda do capitão, Pitt já tinha trocado um pouco de dinheiro na moeda local

de piastras, e embora suspeitava que o tipo de câmbio não tinha sido muito favorável,

tinha valido a pena a comodidade.

Era meia tarde e devia achar alojamento antes que anoitecesse. Pegou sua mala e

saiu do porto em direção à concorrida rua. Haveria alguém que ao menos entendesse o

inglês, embora não o falasse? Que tipo de transporte público havia?

Junto ao meio-fio, viu uma carruagem aberta puxada por um cavalo, certamente oequivalente alexandrino de um carruagem de aluguel.

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Justo quando se dispunha a aproximar-se e perguntar ao condutor pelo consulado

britânico, um homem vestido com roupa ocidental lhe cortou bruscamente o passo, subiu

ao veículo e gritou instruções em inglês.

Pitt decidiu ser mais rápido da próxima vez. Demorou vinte minutos em achar outra

carruagem e cinco mais em persuadir ao condutor de que o levasse ao consulado pelo que

considerava um preço razoável.

Naturalmente, não tinha nem idéia de se, em efeito, o homem se dirigia aonde lhe

tinha pedido ou não.

Devido a seu desconhecimento da cidade, poderia ter acabado no deserto, mas

estava muito fascinado para deixar de olhar ao redor enquanto o coche estralava pelas

ruas. Os estreitos becos se abriam a longas vias intensamente iluminadas pelo sol.

Uma quente cor areia que se fundia com um terracota mais escuro dominava tudo, e

destacavam os suaves marrons das janelas de madeira que se sobressaíam por cima das

pedras e o chão sem pavimentar.

Uns toldos desbotados pelo sol pendiam imóveis. Os frangos e as pombas se

moviam a vontade, bicando e grasnando.

De vez em quando, um camelo cambaleava com a peculiar graça de um navio

sacudindo-se contra a maré. Uns burros muito carregados avançavam com dificuldade.

 As pessoas vestiam roupas de tons pálidos, os homens com turbantes, as mulheres

com lenços largos e soltos que também lhes cobriam a metade inferior do rosto.

 Aqui e lá tinham pinceladas de vermelho ou verde azulado.

Parecia haver insetos por toda parte. Uma e outra vez Pitt sentiu a picada de algum

mosquito, mas não conseguiu reagir bastante depressa para matá-lo com um tapa.

Fez-se repentinamente de noite, e em um céu como de esmalte que ia de um azul

intenso a um turquesa luminoso flutuou o mais inesquecível grito, semelhante a um canto e

ao mesmo tempo diferente de tudo o que Pitt tinha ouvido alguma vez.Diria-se que a voz se erguia e descia sem tomar ar, que flutuava do alto, penetrando

a noite até que tremeu desde as torres e as paredes de todos os edifícios.

Ninguém pareceu sobressaltar-se. Eram como se o esperassem no preciso instante

em que brotou.

 A carruagem se deteve ante um edifício de fachada de mármore de grande beleza,

cujas pedras de superfície lisa se combinavam em cores pálidas e escuras para lhe

conferir um aspecto faustoso.

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Pitt agradeceu ao cocheiro, pagou-lhe a quantidade acordada e se apeou na

ardente calçada.

 A seu redor o ar era suave e quente sobre a pele, como se estivesse em um

aposento orientado ao sol, embora tivesse escurecido tão depressa que mal via do outro

lado da rua à profundidade das sombras sob os muros. Não tinha havido entardecer. O sol

 já se ocultara e em seguida se fez de noite. As calçadas já começavam a encher-se de

pessoas que riam e falavam.

Mas ele não tinha onde alojar-se, e essa necessidade premente devia prevalecer

sobre sua curiosidade. Subiu as escadas do edifício e entrou.

Um jovem egípcio com uma túnica de cor terra se dirigiu a ele em perfeito inglês e

lhe perguntou no que podia ajudá- lo.

Pitt respondeu que necessitava que o assessorassem e repetiu o nome que lhe

tinha dado Narraway.

Cinco minutos depois se achava no escritório do Trenchard, onde os lampiões de

azeite iluminavam fracamente uma sala cheia de antiguidades e de uma beleza de uma

assombrosa simplicidade.

Em uma mesa auxiliar havia uma escultura grega junto a um papiro enrolado e um

objeto decorativo dourado que poderia ter saído do sarcófago de um faraó.

—Gosta? -perguntou Trenchard com um sorriso, devolvendo ao Pitt ao presente.

—Sim - disse Pitt com tom de desculpa—. Perdoe. Devia estar muito cansado ou

impressionado pelas novas sensações para pensar com clareza.

—Não se preocupe -o tranqüilizou Trenchard—. É impossível que lhe fascine mais

que a mim o mistério e o esplendor do Egito. Sobretudo Alexandria! Aqui as diferentes

culturas do mundo se misturam com uma vitalidade que não achará em nenhum outro

lugar. Roma, Grécia, Bizâncio e Egito! —Pronunciou os nomes como se encerrassem em

si mesmos uma magia impressionante.Era um homem de grande encanto pessoal e uma dicção perfeita, como se lesse

poesia em voz alta para seu próprio prazer.

De meia estatura, embora sua esbeltez o fizesse parecer mais alto, moveu-se com

uma elegância inusitada quando rodeou a escrivaninha para estreitar a mão do Pitt.

Tinha um rosto patrício, com um nariz aquilino bastante largo, e seu cabelo

castanho claro se ondulava de um modo um tanto exagerado.

Pitt teve a impressão de que se tratava de um cavalheiro, possivelmente destinadoali para satisfazer os desejos de sua família e nem tanto por inclinação pessoal.

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Claramente, era versado em clássicos, e talvez tivesse inclusive um interesse de

aficionado em egiptología, mas parecia dessas pessoas que tomam a sério seus prazeres

e relativamente à ligeira seu trabalho.

—O que podemos fazer por você? —solicitou Trenchard com cordialidade—.

Jackson me disse que perguntou por mim.

Não cabia dúvida de que Trenchard o estava convidando educadamente a dar uma

explicação.

—O senhor Narraway me comentou que talvez pudesse me dar algum conselho -

respondeu Pitt.

Houve um brilho de compreensão nos olhos do Trenchard.

—Certamente - admitiu. -sente-se, por favor. Acaba de chegar ao Egito?

—Mal faz uma hora que desci do navio —esclareceu Pitt, aceitando agradecido o

assento.

Embora não tivesse andado muito, tinha permanecido muito tempo em pé na

coberta, já que sua impaciência e sua curiosidade não lhe deixaram esperar embaixo

tranqüilamente em seu camarote.

—Tem onde alojar-se? -perguntou Trenchard, dando a entender com sua expressão

que estava convencido de que não—. Lhe sugiro o Cassino São Stefano. É um hotel muito

bom, com cem quartos, de modo que não terá problemas em que lhe dêem um livre. Custa

vinte e cinco piastras ao dia e a comida é excelente.

Se não gostar da egípcia, servem também comida francesa. E, ainda mais

importante, pode chegar a ele em carruagem de aluguel pela Strada Rossa, ou, e talvez

menos caro e mais discreto, mediante uma excelente linha de bonde, vinte e quatro

bondes ao dia, e tanto o Schatz como o Racos morrem no terminal São Stefano.

—Obrigado -manifestou Pitt com sinceridade.

Era um bom começo, mas estava aflito por sua ignorância, e tinha a sensação deestar em uma cidade em que até o aroma do ar lhe era desconhecido.

Nunca havia se sentido tão perdido nem tão só. Tudo o que lhe era familiar se

achava a milhares de quilômetros de distância.

Trenchard o observava, esperando que continuasse falando.

Poderia ter perguntado a qualquer pessoa a respeito de um hotel. Pitt compreendeu

que devia explicar ao menos parte de seu propósito ali.

Expôs o que era sabido por todos, ao menos em Londres. Ofereceu-lhe os fatos nussobre o assassinato do Lovat e a detenção da Ayesha Zakhari.

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—Zakhari! -Trenchard repetiu o nome com curiosidade, ao mesmo tempo que seu

rosto refletia grande interesse.

—Conhece sua família? -apressou-se a perguntar Pitt. Talvez fosse ser fácil, depois

de tudo.

—Não, mas é um sobrenome copto, não muçulmano. —Viu a expressão do Pitt de

não compreender —. Cristão - explicou.

Pitt se surpreendeu. Não tinha considerado sequer a questão da religião, mas então

se deu conta de sua importância.

Um momento depois, Trenchard, com a boca torcida em um ligeiro sorriso irônico e

os olhos cravados nos do Pitt, acrescentou: —Pelo que se diz, é mais que uma prostituta,

talvez uma cortesã bastante seleta.

Se fosse muçulmana, sua própria gente lhe faria o vazio por relacionar-se de tal

modo com um homem não muçulmano, até de forma discreta.

Como cristã, se tiver supremo cuidado, pode manter as aparências da

respeitabilidade.

—Não me consta que seja cortesã! -exclamou Pitt com bastante veemência, mas ao

observar a brincadeira nos olhos do Trenchard se envergonhou de sua falta de

objetividade profissional.

Trenchard se absteve de fazer qualquer comentário, embora o dissesse tudo com

sua expressão, não hostil, simplesmente com o ligeiro aborrecimento de um homem de

mundo que trata com alguém de uma ingenuidade assombrosa.

Pitt lançava faíscas! Era um policial profissional que conhecia muito melhor as

escuras curvas da natureza humana que esse diplomata aristocrata. Controlou seu ataque

de mau gênio com dificuldade.

— A única relação de que temos segurança é a que mantinha com o Saville Ryerson

- disse com um tom mais frio que o que se proposto—. Ao parecer, Lovat era um ardenteadmirador dela quando serviu aqui na Alexandria faz quinze anos, mas não sabemos se

chegou a ser algo mais que isso.

Trenchard juntou as mãos, totalmente impertérrito.

—E quer sabê-lo?

—Entre outras coisas, sim.

— Assim, devo entender que sua missão consiste em limpar o nome do Ryerson?

Tratava-se de um convite a explicar suas necessidades concretas antes que umapergunta, mas Trenchard era um homem a quem nunca lhe falhava a cortesia.

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De repente, Pitt teve a profunda sensação de que se o diplomata se visse obrigado

a dar um tiro em alguém, faria-o com educação.

Era inútil ficar grosseiro; Trenchard só o consideraria ainda mais estúpido.

—Se isso for possível -confirmou.

Trenchard o viu vacilar, embora brevemente, e assim o refletiu em sua expressão.

—Precisamos averiguar a verdade - se apressou a continuar Pitt—. Por que

quereria ela matar ao Lovat? Por que foi a Londres? Procurava o Ryerson ou o conheceu

por acaso?

Enquanto o dizia, Pitt se deu conta do pouco provável que era que uma mulher

egípcia tão bela se apaixonasse por acaso do ministro do governo responsável pelas

exportações de algodão.

Entretanto, a história estava cheia de encontros improváveis que tinham alterado

irrevogavelmente seu curso.

—Sim - disse Trenchard, apertando os lábios—. É claro. Dá-lhe uma aparência

completamente distinta. Por que se supõe que disparou contra esse tal Lovat?  – Abriu os

olhos ligeiramente—. Quem é ele, por certo?

—Um diplomata aparentemente de pouca importância-respondeu Pitt. Decidiu não

revelar nada ainda sobre a possibilidade de uma chantagem—. E embora a tivesse estado

assediando — continuou—, Ryerson está bastante apaixonado por ela para fazer todo o

possível para protegê-la da acusação de assassinato, até a custa de sua própria

reputação.

Ela não tinha motivos para temer que um amante do passado lhe retirasse seu

afeto.

—Certamente - respondeu Trenchard com suavidade—. Neste assunto há algo que

não encaixa, e as possibilidades são múltiplas. Fez bem em vir aqui.

Perguntava-me por que Narraway não se limitava a pedir a alguém do consuladoque o investigasse, mas agora compreendo que o que é preciso é um detetive.

 A resolução do caso pode ser complexa e pode ser que certas pessoas não queiram

que se saiba. —Sorriu, um gesto franco e encantador —. Sabe um pouco do Egito, senhor

Pitt?

Pitt percebeu atrás dos tranqüilos modos do Trenchard um vislumbre da paixão que

tinha mostrado pouco antes ao falar da beleza e a antigüidade do Egito, e o brilho da

cultura, sobretudo aí onde o Nilo confluía com o Mediterrâneo, no sentido de que a Áfricase imbricava com a Europa.

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—Dê por sentado que não sei nada - manifestou Pitt com humildade—. O pouco que

aprendi é insignificante.

Trenchard assentiu mostrando uma expressão de aprovação em seu rosto.

— A história deste país se remonta a quase cinco mil anos antes de Cristo. —Suas

palavras tinham grande transcendencia e, apesar de seu tom despreocupado, havia um

respeito reverencial em seu semblante—. Mas para o assunto que lhe trouxe aqui, não

precisa saber nada até a conquista napoleônica e o curto período de ocupação francesa de

há quase um século.

Sem dúvida estará à corrente da vitória de Lorde Nelson no Abukir, que me parece

que pelo geral se conhece como a batalha do Nilo. Sim, supunha-o. —Havia uma nota

indefinível em sua voz, uma emoção impossível de catalogar —. O Egito forma parte do

Império turco só nominalmente, e portanto deve lealdade ao sultão da Turquia -

continuou—. Mas em realidade durante os últimos quinze anos formou parte do nosso,

embora seja extremamente pouco prudente fazer algum comentário desse teor. —

encolheu os ombros, e até esse gesto tinha um ar de elegância—. Ou sobre o fato de que

bombardeamos Alexandria faz dez anos, obedecendo ordens do senhor Gladstone.

Pitt fez uma careta, mas Trenchard mal deu amostras de perceber.

—O quediva é vassalo do sultão - continuou explicando o diplomáta—. Há um

primeiro-ministro egípcio, um parlamento, um exército egípcio e uma bandeira egípcia.

Provavelmente para vocês sua economia não tem mais interesse que o algodão,

que é o único cultivo que se exporta aqui e que compra por inteiro a Grã —Bretanha, um

detalhe que não carece de importância.

—Sim - disse Pitt sombrio—. Estou à corrente disso, E acredito que o aspecto

econômico poderia estar na medula da questão. Mas -se apressou a acrescentar- neste

momento não necessito uma aula sobre a matéria. O que me diz da polícia?

Trenchard se mexeu em sua cadeira.—Eu se fosse você esqueceria de tudo o que tenha que ver com a lei e os tribunais

-manifestou com secura—. Neste país a jurisdição sobre os estrangeiros recai em toda

uma série de tribunais, um para cada consulado, e as arrevesadas intrigas de qualquer

deles, por não dizer todos, confundiriam até ao Teseo, deixando um fio atrás dele. -Abriu

suas elegantes mãos—. De fato, os britânicos controlam o Egito, mas o fazemos com

discrição.

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Somos centenas, e todos respondemos ante o cônsul geral, Lorde Cromer, a quem

se conhece com o simples apelativo do ―Lorde". E suponho que sabe você o que dizem

dele.

—Não tenho nem idéia —confessou Pitt.

Trenchard arqueou ligeiramente as sobrancelhas, com um sorriso nos lábios.

—"De nada serve ter a razão de sua parte se lorde Cromer se voltar contra ti" —

citou—. Acredito que, nas pressente circunstâncias, é melhor que ele não se inteire de sua

existência.

—Farei o possível para que assim seja - prometeu Pitt—. Mas preciso obter

informação sobre essa mulher, quem era antes de transladar-se a Inglaterra, se é

realmente tão impulsiva e...

—Néscia - concluiu Trenchard por ele, com os olhos muito abertos—. Sim,

compreendo que é preciso. Começaremos entre os coptas. Proporcionarei-lhe um plano da

cidade e lhe indicarei os bairros mais prováveis,

Diria que vem de uma família de bastante dinheiro, já que é evidente que fala ingles

e dispõe de meios para viajar.

—Obrigado. -Pitt se levantou; então se deu conta de que tinha o corpo rígido e fez

um esforço por conter um bocejo. Continuava fazendo muito calor, a roupa lhe grudava no

corpo e estava muito mais cansado do que pensava. — Onde tomo o bonde para São

Stefano?

—Tem piastras?

—Sim, obrigado.

Trenchard se levantou também.

— Assim, se andar à direita e caminhar uns cem passos, achará uma parada a sua

esquerda, justo ao outro lado da rua. Mas lhe aconselho que a esta hora da tarde,

enquanto não se familiarize com a cidade, tome uma carruagem de aluguel.O trajeto não lhe custará mais de oito ou nove piastras e vale a pena se tiver que

levar uma mala. Boa sorte, Pitt. - Estendeu-lhe a mão—. Se posso lhe ser de alguma

ajuda, por favor, diga—me.

Se me inteirar de algo que lhe resulte útil para sua investigação, enviarei-lhe uma

nota ao São Stefano.

Pitt lhe estreitou a mão, voltou a lhe agradecer e aceitou seu conselho de pegar uma

carruagem.

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O trajeto não foi longo, mas o calor não tinha afrouxado nas concorridas ruas e de

novo o devoraram os mosquitos.

Quando chegou, estava exausto e lhe picava todo o corpo.

Entretanto, o hotel era excelente e dispunha de quartos livres a vinte e cinco

piastras À noite, tal como havia dito Trenchard.

Também lhe ofereceram comida excelente e abundante, mas ele só aceitou o pão e

a fruta, e quando terminou subiu a seu quarto.

 Assim que a porta se fechou, tirou os sapatos, aproximou-se da janela e ficou

contemplando o céu negro brilhante e tachonado de estrelas. Cheirava o calor e a brisa

salina que chegava do mar. Inalou fundo e deixou escapar o ar em um longo suspiro

nostálgico.

Era formoso e estimulante; sentia-se emocionado, tão longe de seu lar. Conseguia

ouvir o ruído do mar, alguma ou outra gargalhada e um contínuo ruído de fundo, como o

dos grilos na erva do verão. Recordou-lhe os verões de sua infância no campo, mas estava

muito cansado para desfrutar da evocação.

Desejava com todas suas forças que Charlotte estivesse ali, para que escutasse

com ele as vozes longínquas que falavam em línguas totalmente diferentes, e as risadas, e

cheirasse os estranhos aromas de especiarias da noite.

Retirou-se da janela, enfrentando o quarto desconhecido, despiu-se e se lavou para

tirar o pó, e abriu o mosquiteiro que rodeava a cama.

Deitou-se e o fechou com cuidado, e dormiu quase imediatamente.

Despertou uma vez na escuridão e por um instante não soube onde estava. Sentiu

falta o vaivém do navio. Por estranho que parecesse, sentia-se enjoado sem ele.

Depois recordou tudo, virou-se na cama e se afundou de novo no esquecimento até

quase o meio-dia do dia seguinte.

Empregou os dois primeiros dias em conhecer o máximo a cidade. Começou porcomprar roupa adequada para a temperatura de vinte graus de noite e mais de trinta

durante o dia.

Beneficiou-se do excelente sistema de transporte público de bondes, todos recém

pintados, e de trens, de fabricação britânica e estranhamente familiares, até a

deslumbrante luz do sol que o fazia entrecerrar permanentemente os olhos.

 Às vezes caminhava pela rua escutando as vozes, observando os rostos, notando-

se na extraordinária mescla de idiomas e raças.

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 Além de egípcios havia gregos, armênios, judeus, levantinos, árabes, algum ou

outro francês, e ingleses por toda parte. Viu soldados com uniforme tropical, expatriados

com aspecto de sentir-se tão a gosto ali como se esse fosse seu lar, o calor, o ruído, o

regateio no mercado, o brilho cegador que inundava tudo.

Havia turistas de tez pálida, cansados e emocionados, decididos a não deixar nada

por visitar. Ouvia-os conversar sobre ir até o Cairo e tomar um dos numerosos navios que

subiam pelo Nilo até Karnak e mais longe.

Um vigário de idade avançada, cujo bigode branco destacava sobre sua pele

mogno, falou-lhe com entusiasmo de sua recente viagem.

Enquanto tomava o café da manhã, descreveu como tinha contemplado o Nilo

atemporal como se tivesse sido a própria eternidade, com seu Gazette Egyptian aberto

ante ele, sua geléia Dundee estendida sobre sua torrada e as pirâmides funerárias dos

faraós que se recortavam no horizonte ao fundo do deserto.

—Uma perfeição! -exclamou com um tom de voz que poderia ter-se ouvido em um

clube de cavalheiros de Londres.

Isso recordou ao Pitt bruscamente a urgente missão que lhe tinha levado ali, e o

obrigou a começar a fazer perguntas sobre a família copta do Zakhari.

Os milênios de faraós, os séculos da Grécia e Roma, o idílio da Cleopatra, a

chegada dos árabes, os turcos e os mamelucos, a conquista do Napoleão e depois do

Nelson tudo isso teria que esperar.

Nesses dias os que mandavam eram os britânicos, apesar da farsa de que o poder

o ostentava o califa de Istambul, e eram os navios de todo o mundo os que cruzavam o

canal do Suez para a Índia e Oriente.

Eram às fábricas de algodão inglesas, envoltas em fumaça no inverno cada vez

mais lúgubre do Manchester, Burnley, Salford e Blackburn, onde vendia o Egito suas

colheitas.E dessas mesmas fábricas inglesas voltavam a sair os produtos acabados, através

de Suez e mais longe.

Havia pobreza nessas ruas quentes, infestadas de excrementos e moscas. Havia

fome e enfermidade.

Viu mendigos sentados a semipenumbra dos muros endurecidos ao sol, que se

moviam com as sombras, pedindo esmola em nome de Deus misericordioso.

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 Às vezes seu aspecto físico era normal, mas outras estavam mutilados ou cheios de

chagas, ou cegos ou aleijados. Alguns tinham o rosto marcado pela varíola ou desfigurado

pela lepra, e para Pitt era difícil não desviar o olhar.

Em algumas ocasiões lhe cuspiram e uma vez o alcançou no cotovelo uma pedra,

mas quando se virou não havia ninguém.

Entretanto, na Inglaterra também havia pobreza, frio e chuva, bocas-de-lobo

transbordadas e as enfermidades de um clima diferente, como a tosse seca da

tuberculose, e tanto em um lugar como no outro, a agonia da cólera e tifo. Não podia

comparar os dois países.

Pitt voltou para o bairro principal onde viviam os coptas cristãos.

Sentado em um pequeno restaurante ante uma xícara de café tão espesso e doce

que não foi capaz de beber começou a fazer perguntas.

Utilizou como desculpa a verdade: que Ayesha tinha problemas em Londres e que

procurava a sua família, ou a qualquer amigo ou parente que pudesse ajudá-la. Ao menos

deviam estar à corrente de seus apuros.

Levou-lhe quase dois dias averiguar algo mais que rumores e conjeturas. Por fim

ficou de reunir-se com um homem cuja irmã tinha sido amiga da Ayesha, e reservou uma

mesa no Cassino São Stefano.

Esperava sentado à mesa quando um homem egípcio de uns trinta e cinco anos se

deteve na entrada do restaurante. Ia vestido com a roupa tradicional do país, mas o tecido

era bom, de uma quente cor areia.

Olhou ao redor alguns minutos, depois, identificando aparentemente ao Pitt entre

outros hóspedes europeus, abriu caminho entre as mesas e se inclinou, apresentando-se

formalmente.

—Boa tarde, effendi. Meu nome é Makarios Yacoub e conforme acredito você é o

senhor Pitt.Pitt se levantou e inclinou ligeiramente a cabeça.

—Encantado. Sim, sou Thomas Pitt. Muito obrigado por vir. Indicou com um gesto a

outra cadeira, convidando ao Yacoub a sentar —. Quer comer? A comida é excelente, mas

estou certo de que já sabe.

—Vai comer você? -perguntou Yacoub, tomando assento.

Nos poucos dias que estava ali Pitt já tinha aprendido a falar de modo indireto. A

pressa não suscitava mais que desdém.—Seria agradável - respondeu.

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—Então não é preciso mais - assentiu Yacoub—. É muito gentil de sua parte.

Pitt fez vários comentários sobre o muito que gostava da cidade, ressaltando a

beleza do que tinha visto até então, sobretudo o quebra—mar que unia o velho farol e a

cidade.

—Tive a sensação de que se fechasse os olhos e os abrisse de repente, veria faróis

tal como era quando se contava entre as sete maravilhas da Antigüidade -disse, depois se

sentiu coibido por ter expresso em alto tal fantasia íntima.

Mas viu imediatamente que Yacoub o entendia. Seu rosto se suavizou e se relaxou

ligeiramente em seu assento. Era alexandrino e lhe agradava ouvir elogiar sua cidade.

—O quebra—mar se chama Heptastadion -explicou—  e o construiu Dinócrates.

Para oeste estava o velho porto medieval.

Mas há outras muitas coisas que ver. Se o que lhe interessa é o passado, pode

visitar a tumba do Alexandre Magno. Alguns dizem que se encontra debaixo da mesquita

do Nabi Daniel, outros na necrópole próxima. —Sorriu a modo de desculpa—. Perdoe se

falo muito. Eu gosto de compartilhar minha cidade com todo o que a olhe com os olhos da

amizade.

Deve passear pelo canal da Mahmudiya até os jardins do Antoniadis, onde há um

fragmento de história em cada punhado de terra. Ali viveu e ensinou a seus alunos o poeta

Calímaco. —  encolheu ligeiramente os ombros—. E há uma tumba romana - concluiu

sorrindo ao ver aproximar-se o garçom—. Está familiarizado com nossa comida?

—Muito pouco —  reconheceu Pitt, disposto a deixar-se recomendar tanto por

motivos práticos como por cortesia.

—Então lhe aconselho que tome mulujiz -respondeu Yacoub—. É uma sopa verde,

um aprimoramento. Gostará. E de segundo prato heman mahshi que é pombinho cheio.

Olhou ao Pitt interrogante.

—Excelente, obrigado - disse Pitt.Fez mais perguntas sobre a cidade até que lhes serviram a comida.

Estavam pela metade da sopa, que era realmente deliciosa, quando Yacoub falou

por fim so bre o assunto pelo qual se reuniram.

—Disse você que a senhorita Zakhari está atravessando por certas dificuldades -

comentou, deixando a colher um momento e olhando com mais vagar ao Pitt.

O tom de voz do egípcio era despreocupado, como se ainda falassem da cidade,

mas havia intensidade em seu olhar.

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Pitt era consciente de que a cidade contava com um excelente serviço telefônico,

mais confiável as vezes que o de Londres, e que havia muitas possibilidades de que

Yacoub já estivesse à corrente da detenção e das acusações formuladas contra ela.

Não devia surpreendê-lo fazendo uma declaração falsa, e menos ainda mentindo

descaradamente.

—Temo que se trata de algo sério -afirmou—. Não tenho certeza se teria tido a

oportunidade de informar a sua família, ou talvez não quis os preocupar.

Mas se fosse minha filha ou minha irmã, preferiria estar a par de todos os detalhes

possíveis, para saber como ajudar.

Se Yacoub conhecia a situação, não se traduziu em seu rosto.

—É claro —murmurou—. Naturalmente.

Mas não pareceu surpreendê—lo a notícia de que Ayesha Zakhari estivesse em

apuros ou corresse perigo. Pitt teria esperado perplexidade, inclusive alarme.

Já estava à corrente de sua detenção através dos jornais ou era algo que cabia

esperar dela conhecendo—a? Recordou a advertência do Narraway com um calafrio até

em meio dessa sufocante sala de jantar, com seus aromas de comida e a brisa marinha

que entrava pelas portas abertas.

O homem que tinha ante si era encantador e estava tão relaxado que Pitt teria

podido esquecer facilmente que seus interesses talvez fossem diferentes dos seus ou os

do governo britânico.

—Conhece sua família? -perguntou então Pitt.

Yacoub ergueu ligeiramente os ombros, um gesto elegante que poderia ter

significado várias coisas.

—Sua mãe faleceu faz muitos anos e seu pai faz três ou quatro que também morreu

-respondeu.

Pitt se surpreendeu a si mesmo compadecendo-se dela.—Não tem a ninguém mais? Irmãos? Alguma irmã?

—Ninguém -replicou Yacoub—. Era filha única. Talvez por isso seu pai se esmerou

tanto em educá—la. Desfrutava enormemente de sua companhia. Ela fala francês, grego e

italiano, além de inglês, é claro. E o árabe é sua língua materna.

Mas era em filosofia onde se sobressaía, na história do pensamento e idéias. —

Observava ao Pitt e não lhe passou por cima sua surpresa—. Olha-se a uma mulher

formosa e acredita que só procura prazer —comentou.

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Pitt já se dispunha a abrir a boca para negá—lo quando caiu na conta de que era

verdade. Notou que se ruborizava e não disse nada.

—Ela pelo contrário não se importava com o prazer - continuou Yacoub, sorrindo

com os olhos mais que com os lábios, e continuou comendo, partindo o pão com os

dedos—. Talvez não fosse preciso.

—Não tinha interesse seu pai em que contraísse matrimônio com alguém

adequado?

Pitt sabia que era uma pergunta algo impertinente, mas necessitava todo tipo de

informação, e se ela não tinha nenhum parente vivo, Yacoub era o único amigo ao que

recorrer. Yacoub lhe sustentou o olhar.

—Talvez. Mas Ayesha era obstinada, e o senhor Zakhari a queria muito para obrigá-

la a fazer algo contra sua vontade. -Tomou várias colheradas mais de sopa antes de

decidir-se a continuar —. Ela tinha meios suficientes para não precisar casar-se, e não se

importava com os convencionalismos.

—Ou o amor? —arriscou-se a perguntar Pitt.

De novo, Yacoub fez um gesto delicado que poderia ter significado quase algo.

— Acredito que ela amou muitas vezes, mas ignoro com que intensidade.

Era um eufemismo? Pitt dava paus de cego em uma cultura muito diferente da sua.

 Ainda não tinha uma idéia muito clara de que classe de mulher era Ayesha Zakhari, salvo

que era diferente a todas as que conhecia.

Teria gostado de poder perguntar à Charlotte. Ela talvez teria sabido abrir caminho

entre as palavras até fazer uma idéia cabal da realidade.

— A que tipos de homens amava? -perguntou.

Yacoub terminou sua sopa; o garçom retirou os pratos e voltou com os pombinhos.

Yacoub não olhou ao Pitt, mas a um ponto na distância.

—Só conheci um pessoalmente -respondeu. Depois, erguendo a vista de repentepara o Pitt, inquiriu—: No que poderia lhe ajudar que lhe fale do Ramses Ghali? Não vive

na Inglaterra. Não há forma de que tenha algo que ver com os problemas atuais dela.

— Tem certeza?

No rosto do Yacoub não havia sombra de dúvida.

—Totalmente.

Pitt não estava convencido.

—Quem é?

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Yacoub o olhava com afabilidade, mas em sua expressão havia uma mescla

inescrutável de cólera e dor.

—Está morto - explicou com serenidade—. Morreu faz mais de dez anos.

—OH, —De novo a morte. Tinha amado Ayesha Zakhari realmente a esse homem?

Poderia ser essa a explicação de seu comportamento? Pitt se pegava a um prego ardendo,

mas não tinha nada mais—. Se teria casado com ele se não tivesse falecido?

Yacoub sorriu.

—Não. —De novo parecia completamente seguro.

—Mas disse você que ela o queria.

Yacoub se mostrou paciente, como com um menino que necessita que lhe dêem

minuciosas e intermináveis explicações.

—Queriam-se como amigos, senhor Pitt. Ramses Ghali acreditava

apaixonadamente no Egito, assim como seu pai.

O rosto do Yacoub se escureceu e deixou ver uma emoção que Pitt não soube

interpretar, mas que parecia conter raiva, algo escuro.

Dez anos atrás tinha tido lugar o bombardeio de Alexandria. Devia-se a isso a frieza

que percebia Pitt? Ou era mais profundo, os sucessos do general Gordon e o lugar do

Jartum ao sul dali, em Suam? Em 1882 as forças britânicas tinham defendido ao Urabi no

Tel—o—Kebir, e seis mil egípcios foram assassinados pelo Mahdi em Suam.

No ano seguinte, um exército egípcio ainda mais numeroso foi esmagado de forma

similar e em 1884 outro exército tinha sido derrotado; então chegou o general "chinês"

Gordon. Em janeiro Gordon tinha morrido, e menos de seis meses depois morria o Mahdi;

mas ainda não tinham recuperado Jartum.

De repente Pitt se sentiu muito longe de seu país, e apesar de toda a decoração

européia do restaurante do hotel e de seu nome italiano, foi intensamente consciente da

antiga e profundamente diferente herança cultural do homem que tinha ante si e do aromade especiarias e o calor do ar africano no exterior. Teve que fazer um esforço para pensar

com clareza.

—Disse que Ayesha Zakhari acreditava no Egito com a mesma paixão —comentou,

e começou a comer seu pombinho, pensando distraído que era o melhor que tinha provado

alguma vez—. É uma pessoa que atua de acordo com seus princípios? Falava de uma

causa, tratava de persuadir a outros?

Yacoub soltou um risinho quase afogado, mas se interrompeu imediatamente.

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—Tanto mudou? Ou simplesmente não sabe nada dela, senhor Pitt? —Entrecerrou

os olhos e deixou de comer —. Tenho lido os jornais e acredito que o governo britânico

tentará pôr em liberdade a seu ministro e enforcar a Ayesha. — Desta vez havia muita

amargura em sua voz, e sua firme tez azeitonada adotou uma expressão desagradável,

tão profundos eram a ira e a dor que sentia. — Que busca aqui? Uma testemunha que lhe

diga que é uma mulher perigosa, uma fanática capaz de matar a qualquer um que se

interponha em seu caminho? Que talvez esse tal tenente Lovat soubesse algo dela que

podia arruinar sua luxuosa vida na Inglaterra e tinha ameaçado trazê-lo a luz?

—Não - disse Pitt imediatamente, e a veemência que queria expressar ficou

flutuando entre ambos.

Yacoub exalou devagar e adotou uma atitude que dava a entender que se dispunha

a escutar sem interromper o que Pitt tivesse que lhe dizer.

—Não -continuou Pitt—. Eu gostaria de averiguar a verdade. Não me ocorre à razão

pela que quereria matar ao Lovat. Tudo o que ela tinha que fazer era limitar-se a lhe dar de

lado, e ele não teria tido mais remédio que desistir, ou suportar como ela se via com ele,

possivelmente de forma desagradável, por ser insistente. —Percebeu incredulidade no

semblante do Yacoub—. Lovat tinha uma profissão - explicou—. Uma carreira no corpo

diplomático. Que possibilidade tinha de ascender se se granjeava a inimizade de um

ministro tão veterano como Saville Ryerson?

—Utilizará sua influência para salvá—la? -perguntou Yacoub vacilante.

—Sim! Ryerson já se comprometeu a ajudá—la, até a risco de ir ao cárcere por isso!

Duvido que tivesse reparos em afundar a um jovem cujas atenções não eram bem

recebidas. Uma palavra a seu superior no corpo diplomático e Lovat estaria acabado.

Yacoub continuava indeciso.

No restaurante se ouvia um intermitente murmúrio de conversas ao redor deles.

Uma atraente loira de tez de porcelana riu, jogando a cabeça para trás de tal modo que aluz a iluminou.

Seu par a olhava fascinado. Pitt se perguntou se era um idílio que ela não se teria

atrevido a ter em seu país. Imaginava Yacoub que na sociedade britânica existia essa

maior liberdade? Como podia lhe explicar que não era assim?

Yacoub baixou a vista para seu prato.

—Não o entendo —murmurou—. Não sabe nada dela.

—Então me explique você! —suplicou Pitt.

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Esteve a ponto de acrescentar algo mais, mas se conteve. Via no rosto do Yacoub

como se debatia entre o desejo de combater por um pouco de justiça, por que a verdade

prevalecesse sobre a ignorância, e a imperiosa necessidade de não trair os segredos da

paixão ou a dor de outra pessoa.

Pitt tratou de pensar em um argumento convincente, embora guardasse silêncio.

Yacoub retirou o prato a um lado e pegou sua taça. Bebeu devagar, depois a deixou

na mesa e olhou ao Pitt.

—O pai do Ramses foi um dos líderes que lutaram por nossa independência quando

o endividamento se disparou sob o quediva Ismail, antes que o depusessem e ocupasse

seu lugar seu filho Tewfik, e os britânicos tomassem as rédeas da economia do Egito.

Ramses era um homem brilhante, filósofo e erudito. Falava grego e turco além de

árabe, e escrevia poesia em todos esses idiomas.

Conhecia nossa cultura e nossa história, desde os faraós que mandaram construir

as pirâmides do Gizeh, passando por todas as dinastias até Cleópatra, o período grego—

latino, a chegada dos árabes e a lei da Mahoma, a arte e a medicina, a astronomia e a

arquitetura. Tinha força e um grande encanto.

Pitt não o interrompeu. Não tinha nem idéia de si isso estava relacionado com o

assassinato do Edwin Lovat, ou se Narraway poderia tirar algo em claro disso, mas

escutava fascinado porque fazia parte da história dessa cidade extraordinária.

—Era capaz de o fazer ver a magia do reflexo da lua sobre blocos de mármore de

cem anos de antigüidade -continuou Yacoub, dando voltas à taça em suas mãos—.

Podia trazer de volta a vida e as risadas do passado como se nunca nos tivessem

abandonado e só tivessem sido momentaneamente deixadas de lado por pessoas muito

insensíveis para as apreciar. Com ele via as cores do mundo, ouvia música no vento que

soprava sobre a areia.

O aroma da terra e das bocas—de—lobo, as moscas das ruas, os mosquitos, sóeram o fôlego da vida.

—E Ayesha? -perguntou Pitt, temendo já a resposta. -Oh, lhe queria -replicou

Yacoub, torcendo ligeiramente a boca para um lado—. Ayesha era jovem e dava muita

importância à honra.

Também amava seu país, sua história, suas idéias, mas sentia afeto pela gente e

odiava a pobreza que os emergia na ignorância quando poderiam ter aprendido a ler e a

escrever, que os mantinha doentes quando poderiam ter gozado de saúde.

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Pitt esperou. Pela emoção contida no rosto do Yacoub e a escuridão em seus olhos,

sabia que esse só era o começo da história.

—Era um homem capaz de quase tudo - prosseguiu Yacoub em voz muito baixa—.

Inclusive teria devolvido ao Egito sua independência e o controle de sua economia.

Mas tinha defeitos. Mimava a sua família. Deu poder a seus filhos e a seus irmãos, e

estes eram ambiciosos.

Ele era um homem a quem lhe bastava as sortes do espírito e o mundo das idéias,

mas não tinha coragem para negar nada aos que o rodeavam.

Os líderes devem estar dispostos a caminhar sós, se for necessário, e ele não o

estava.

O egípcio inalou profundamente e deu a volta a sua taça nas mãos como se fosse

beber de novo, mas não o fez.

Em seu rosto se refletiu a crispação de uma velha dor que ainda não tinha

cicatrizado.

— Ayesha o queria, e ele a traiu a ela e a sua gente. Não sei se ela tornou a querer

de verdade a um homem depois do ocorrido, a menos que se apaixonou por esse tal

Ryerson. —Ergueu a vista e a cravou na do Pitt—. Poderia ser também ele um traidor?

Pitt se perguntou se essa era a razão pela qual Ayesha não havia dito nada à

polícia. Estava aturdida, esperando que se repetisse a história?

—Traindo-a a ela ou traindo a sua própria gente? -perguntou Pitt.

Nos olhos do Yacoub houve um brilho de compreensão.

—Está pensando no algodão? Acredita que viajou a Londres para tentar convencê-

lo de que nos deixasse tecer nosso próprio algodão em lugar de enviá-lo em navio a

Manchester, onde os trabalhadores britânicos obtêm o melhor proveito dele e se

enriquecem em vez de nós? É possível. Seria muito próprio dela.

—Então estava pedindo a Ryerson que escolhesse entre o Egito e Inglaterra -indicou Pitt. —Fosse qual fosse à decisão que ele tomasse, alguém seria traído.

—Sim, é claro. —Yacoub apertou os lábios—. Não sei se ela poderia perdoá—lo por

isso. —Pegou por fim sua taça—. Não posso lhe dizer nada mais. Lá onde irá comprovará

que o que lhe disse é verdade.

—O que me diz do tenente Lovat?

Yacoub o rechaçou com um gesto.

—Carece de importância. Apaixonou-se por ela e pode ser que Ayesha estivessebastante ferida para achar consolo em suas ateções. Durou um tempo, uns meses.

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Enviaram-no de volta a Inglaterra. Acredito que, então, supôs um grande alívio para

ela. Talvez também para ele. Lovat não tinha intenção de casar-se com alguém que não

pertencesse a sua classe ou posição.

—Sabe algo do próprio Lovat?

—Não. Mas talvez encontre a alguém entre os soldados britânicos que tivesse

relacionamento com ele. Há muitos por aqui.

Pitt não disse nada. Era muito consciente da presença britânica em todos os níveis,

não só no elevado número de soldados, mas também de civis em postos administrativos.

Egito não era uma colônia, e, entretanto, para efeitos práticos era como se fosse.

Se Ayesha Zakhari tinha querido liberar a seu país da dominação estrangeira, ele

podia entendê-lo facilmente.

Mudou-se para Londres por essa razão, não para forjar um futuro, mas para ajudar

a sua gente? Se assim fosse, certamente tinha escolhido ao Ryerson de propósito, ao

tratar-se de um homem que poderia ajudá-la se ela pudesse persuadi-lo em tal sentido.

Como pensava fazê-lo? Por muito apaixonado que estivesse ele, dificilmente podia

mudar a política governamental para agradá-la, não? Além disso, segundo a descrição do

Yacoub do caráter da Ayesha Zakhari, ela o teria desprezado se ele o tivesse feito.

Mas isso não teria lhe importado, a não ser que lhe tivesse tomado afeto. Era isso o

que tinha ocorrido? Apaixonou-se inesperadamente por ele e tinha deixado de repente de

ser uma simples questão de dever patriótico?

Ou tinha previsto chantagear ao Ryerson e o assassinato do Lovat fazia parte desse

plano?

Um plano que por alguma razão tinha saído terrivelmente mal ao acabar ela detida e

a essas alturas era provável que também acusada. Qual tinha sido sua intenção? Oferecer

ao Ryerson sair impune e aumentar assim a pressão sobre ele para que concedesse mais

autonomia ao Egito?Ou arruinar a carreira do Ryerson e que outro, talvez mais flexível, ocupasse seu

lugar, alguém disposto a pagar o preço egípcio?

Mas isso não tinha muito sentido. Nenhum ministro do comércio devolveria ao Egito

o algodão, a menos que se visse obrigado por circunstâncias muito mais poderosas que o

amor, ou até a ruína. Com o tempo seria substituído por outro homem mais forte e menos

vulnerável.

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Pitt bebeu sua taça e agradeceu a Yacoub. Rodeavam-nos vozes e risadas, mas

não lhe ocorreu nenhuma outra pergunta, assim mudaram de assunto e voltaram a falar da

intensa e intrincada história da Alexandria.

Na manhã seguinte, enquanto Pitt tomava o café da manhã, um mensageiro

entregou uma nota de Trenchard, em que lhe perguntava se tudo ia bem e se necessitava

mais ajuda.

Também lhe propunha almoçar com ele, depois do que se oferecia encantado a lhe

mostrar alguns lugares de interesse pouco conhecidos da cidade.

Pitt pediu papel, respondeu aceitando e se despediu do mensageiro antes de seguir

dando conta de seu excelente pão recém feito, fruta e peixe. Estava se acostumando

rapidamente à comida exótica e desfrutava muitíssimo dela.

Passou parte da manhã em uma biblioteca inglesa, lendo o que pôde achar sobre a

insurreição do Urabi, em busca de alguma alusão a alguém chamado Ghali que estivesse

metido naquele tempo em política.

 A paixão e a traição que gotejavam esses fatos eram substâncias tão absorventes

que quase se esqueceu do almoço com o Trenchard, e chegou ao consulado justo à uma.

Trenchard não fez nenhum comentário; levantou-se de sua cadeira sorridente e lhe

convidou a entrar.

—Me alegro de que tenha vindo - saudou com cordialidade. Reparou na camisa e as

calças de algodão em tom claro do Pitt, em seu rosto e antebraços já bronzeados, e

acrescentou:—Parece que se adaptou bem, além de umas poucas picadas de mosquito.

—Muito bem -assentiu Pitt—. Poderia se passar um ano percorrendo esta cidade e

não teria feito senão começar.

 Algo no semblante do Trenchard se relaxou. As linhas de sua boca se suavizaram e

à cordialidade de seu olhar somou um novo brilho.

—O Egito o cativou, não é verdade? -disse com visível prazer —. E ainda não esteveno Cairo nem Nilo acima. Tomara sua investigação o levasse ao Heliópolis, ou às tumbas

dos califas, ou ao bosque petrificado.

Não poderia ir muito longe sem passar pelas pirâmides do Gizeh e, é claro, a

esfinge, e não descansaria até ver ao menos as pirâmides do Abusir e Cortasse, e as

ruínas de Menfis. —Trenchard sacudiu ligeiramente a cabeça, como se se tratasse de

alguma brincadeira local bem conhecida—.

Então nada no mundo poderia impedi-lo de seguir percorrendo as ruínas maiores eantigas de todas até chegar ao Tebas e o templo de Karnak. Não pode imaginar-se tanta

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beleza. -Observava o rosto de Pitt enquanto falava—. Acredite-me, nenhum ocidental é

capaz de conceber sua grandiosidade, sua enormidade.

O diplomata não esperava nenhum comentário. Permaneceu imóvel no meio da

sala, alheio ao mobiliário moderno e aos papéis que o rodeavam. Sua mente vagava pelas

intemporais areias do deserto.

Pitt não o interrompeu; não era preciso que dissesse nada. —Depois se dirigiria ao

sul do Luxor - prosseguiu Trenchard—. Terá que cruzar o rio ao amanhecer.

Nunca em sua vida verá nada como as primeiras luzes do dia sobre o deserto,

movendo-se pela superfície da água. Depois só ficariam seis quilômetros até o vale dos

Reis.

"Se se viajar em um camelo rápido se vê o amanhecer sobre as tumbas dos faraós

cujos pais governaram esta terra durante milhares de anos antes que nascesse Cristo. Já

existiam antes que Abraham partisse de Ur em tempos dos caldeos. Tem alguma idéia do

que isso significa, inspetor Pitt? —  Desta vez havia desafio em seu olhar —. O Império

britânico que agora rodeia tudo isso nasceu nos últimos cinco minutos em comparação. —

deteve-se de repente e respirou fundo—. Mas você não tem tempo para essas visitas. Sei.

 Além disso, sem dúvida Narraway não lhe paga para isso. me perdoe. Estará

desejando ir a seu alojamento e é o bastante honrado para não responder à chamada do

dever.

Pitt sorriu.

—O dever não me prohíbe aprender algo da história do Egito ou desejar que minha

investigação sobre o passado da Ayesha Zakhari me levasse a menos até o Cairo! Ainda

não encontrei nenhuma desculpa, mas não me dou por vencido!

Trenchard riu e lhe conduziu através dos escritórios à concorrida rua, onde

puseram-se a andar em uma direção que Pitt não tinha tomado antes.

Surpreendeu-se contemplando os bonitos edifícios decorados com gregas de pedratão intrincadas que pareciam rendas, e os balcões com cobertos suportados por colunas

simples.

Viu um, protegido do calor, onde havia um grupo de homens de idade sentados

sobre grossas almofadas turquesa e douradas, comendo pão, tâmaras e outras frutas, e

conversando apaixonadamente entre si.

Mal olharam aos dois ingleses, deixando ver por um instante desprezo e aversão em

seus olhos para mascará-los em seguida, porque não se atreviam a manifestá-losabertamente.

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 Atrás deles, um homem corpulento, de pele quase tão negra como sua barba,

vestido com calças folgadas seguras por debaixo do joelho, parecia esperar suas ordens

enquanto as pombas revoavam ao redor, e havia um vaso alto de boca estreita cheio de

rosas.

Pitt pensou que mil anos atrás poderia haver-se dado uma cena exatamente igual a

essa.

Trenchard achou o estabelecimento que procurava e pediu para os dois sem

consultar ao Pitt, e quando chegaram os pratos, não fez o menor gesto de seguir as

maneiras européias.

Comeram com os dedos, e a comida era deliciosa. A cor, o aroma, a textura, tudo

era prazenteiro.

—Estive fazendo algumas indagações sobre a Ayesha Zakhari por minha conta —

anunciou Trenchard na metade do almoço.

Pitt se deteve com um bocado na mão.

—Sim?

—Como supúnhamos, é cristã copta -explicou Trenchard—. Parece que teve uma

relação muito intensa com um dos cabeças nacionalistas egípcios da insurreição do Urabi,

pouco antes dos bombardeios de Alexandria de há dois anos. Sinto muito, Pitt - parecia

arrependido—. Perguntei discretamente entre os amigos que tenho aqui, e não seria

desatinado pensar que fosse a Londres com a intenção expressa de estender uma

armadilha ao Ryerson, com a néscia idéia e muito pouco prática de que poderia persuadi-

lo para que mudasse os acordos econômicos britânicos com o Egito em relação com o

algodão ao menos, talvez em alguma questão mais.

Seu idealismo sempre foi muito forte. Apaixonou-se pelo Ramses Ghali e, embora

ele traísse sua causa, ela foi das últimas pessoas em aceitar a verdade sobre ele.

O rosto do diplomata se inundou de profunda emoção, uma mescla de compaixão edesdém tão intensas que bastou que mencionasse quão feitos a provocavam para que

ficasse rígido e suas elegantes mãos parecessem de repente torpes.

Pitt sentiu também uma sensação de vazio.

— A decepção é muito amarga -disse em voz baixa—. A maioria de nós resistimos a

aceitá—la tudo o que podemos. Trenchard levantou rapidamente a vista. —Sinto muito,

Pitt. Receio que é provável que averigue que é impulsiva e romântica, uma idealista que foi

traída e que agora atua impulsionada pela dor, tratando de fazer realidade os velhossonhos, por pouco realistas que sejam os meios.

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Pitt baixou o olhar para a comida que tinha na mão. Já não possuía o mesmo

encanto exótico que fazia uns minutos. Era absurdo que se sentisse assim. Nunca tinha

visto a Ayesha Zakhari.

Não deveria lhe importar, salvo profissionalmente, que ela fosse irresponsável, uma

fracassada política que tinha permitido que a dor pessoal lhe nublasse a razão.

Entretanto, de repente se sentia cansado, como se ele também tivesse perdido um

sonho.

—Verei que mais posso averiguar do Lovat - comentou então.

Trenchard o observava com uma expressão de pesar. —Sinto-o -repetiu—. Teria

sido muito mais agradável acreditar que havia outra explicação. Mas é possível que Lovat

fizesse inimigos na Inglaterra.

—Deram-lhe um tiro no jardim da senhorita Zakhari às três da madrugada! -replicou

Pitt com certa amargura—. E com a pistola dela!

Trenchard fez um ligeiro gesto de resignação, garboso e triste. Tinha elegância,

como se se tivesse contagiado da dignidade natural da civilização que tanto admirava.

Terminaram de comer. Trenchard insistiu em pagar, depois de agradecer ao dono

em árabe fluido e coloquial.

 A seguir acompanhou ao Pitt ao bazar e lhe ajudou a regatear por um jogo de

braceletes com comalina para Charlotte, uma figurinha de um hipopótamo para o Daniel,

uns laços de seda de vivas cores para a Jemima e um lenço vermelho para o Gracie.

 Ao final da tarde Pitt dispunha de uma informação que aceitou como uma verdade

irrefutável, embora tivesse preferido que não o fosse, e de presentes com os que estava

encantado e pelos que sabia que tinha pago realmente pouco.

 Agradeceu a Trenchard e voltou em bonde a São Stefano, decidido a dar com os

quartéis onde tinha servido Lovat e a passar o resto de sua estadia na Alexandria

investigando a carreira militar e pessoal do Lovat, tudo o que pudesse averiguar sobre ele.Em algum momento seu caminho se cruzou com o da Ayesha, tinha que haver algo mais

que lhe escapava.

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Capítulo 7 

Para Charlotte era muito difícil manter a mente ocupada com algo, sabendo que Pitt

estava só no Egito, em um país desconhecido.

Mais perigoso que sua ignorância era o fato de que estivesse ali para fazer

perguntas sobre uma mulher que podia ser considerada uma heroína na luta contra o

domínio britânico sobre os assuntos egípcios.

Tratava de distrair-se com outros pensamentos, a maioria corriqueiros, mas todos

escapavam ante a realidade esmagadora da ausência dele uma vez que apagava os

últimos lampiões de gás do piso de baixo e subia sozinha a seu quarto. Deitada na

escuridão, as idéias lhe amontoavam na cabeça.

 Alegrou-se, portanto, de ver Tellman no terceiro dia da partida do Pitt. Gracie abriu a

porta traseira e o achou fora cansado e com frio, contraindo o rosto por causa do vento.

Entrou à convite dela e golpeou um pouco os sapatos no chão da copa para sacudir

a água, porque embora nesse momento não chovesse, até um pouco antes sim. Tirou o

casaco.

—Boa tarde, senhora Pitt - disse olhando—a com preocupação, como se de algum

modo seguisse sendo seu dever cuidar dela em ausência do Pitt.

O velho costume não se perdia facilmente, como tampouco o fingir indiferença.

—Boa tarde, inspetor - saudou ela, sorrindo divertida assim como encantada de vê-

lo. Chamou-o assim a propósito. Nunca o tinha chamado por seu nome de batismo.

Nem sequer estava segura de se Gracie o fazia normalmente, além de em alguma

ou outra ocasião muito informal—. Entre e tome uma xícara de chá —ofereceu—. Parece

que tem frio. Já jantou?

— Ainda não - respondeu ele, afastando uma cadeira de espaldar duro da mesa esentando-se.

—Trarei-lhe algo - se apressou a dizer Gracie, pondo água a ferver enquanto o

dizia—. Mas hoje não há sobras, só cordeiro frio e repolho com batatas.

—Estupendo, obrigado -disse Tellman sem prazer, olhando ao Charlotte para

assegurar-se de que ela também o fazia.

— Adiante -respondeu ela imediatamente—. Averiguou algo sobre o Martin Garvie?

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Tellman olhou primeiro a ela e depois à Gracie, com o rosto inundado de compaixão

e de uma delicadeza acentuada pelo tênue resplendor do lampião de gás que iluminava os

ângulos de suas altas maçãs do rosto e suas faces afundadas.

—Não —confessou—. E o tentei até onde me foi possível sem recorrer à autoridade

da polícia.

 A convicção de sua voz fazia impossível contrariá—lo.

—O que conseguiu saber? -perguntou Gracie, enquanto deixava a frigideira sobre o

fogão e se inclinava para retirar a cinza e conseguir que o fogo ardesse de novo com força.

Fez-o quase distraída, olhando sobretudo ao Tellman.

—Martin Garvie desapareceu sem deixar rastro -respondeu com ar desgraçado—.

Ninguém o viu há mais de duas semanas, assim como tampouco viu ninguém ao Stephen

Garrick.

Nenhum dos criados, como você disse, de modo que a princípio acreditaram que

estava em seus aposentos, que tinha caído doente ou tido uma de suas rabujices.

—Duas semanas são muito tempo sem que se desse conta ao menos a cozinheira

—interrompeu Charlotte—. Fosse qual fosse a enfermidade, lhe prepararia algo de comer.

E em algum momento com certeza teriam chamado a um médico.

—Que eu tenha podido averiguar, não foi nenhum médico - respondeu Tellman,

sacudindo ligeiramente a cabeça—, e não recebeu nenhuma visita. —Tinha o rosto tenso e

o olhar sombrio—. Não está na casa e Martin Garvie tampouco. Lhe teriam enviado

comida, ou trocado os lençóis no mínimo.

Gracie foi procurar as batatas frias na despensa. Começou a cortá—las e a cortar as

cebolas com uma desculpa, ao mesmo tempo que pegava um lenço.

—O repolho não está tão bom sem cebola - disse a modo de explicação.

 A frigideira começava a esquentar-se.

—Não recebeu cartas? -perguntou Charlotte—. Convites? Com certeza osresponderiam ou os enviariam ao novo endereço ao menos.

Tellman mordeu o lábio inferior.

—Não pude ser tão direto, mas perguntei por aí sobre o senhor Garrick e parece

que não tem muitos amigos. Não é uma companhia agradável. Ao menos é o que me

deram a entender.

Gracie fungou e secou os olhos com o lenço, depois jogou as cebolas cortadas na

manteiga quente e o chiado afogou suas seguintes palavras.

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—Tem que haver alguém! -repetiu—. O senhor Garrick não trabalha e não está em

sua casa, assim aonde foi? Ninguém sentiu falta dele?

—Bom, que eu saiba, ninguém o vê o bastante freqüentemente para perguntar-se

aonde foi -respondeu Tellman olhando ao Gracie, depois se voltou em sua cadeira para

Charlotte—. Não parece levar o mesmo tipo de vida que a maioria dos homens de sua

idade e de sua posição social.

Não vai a nenhum clube com regularidade, de modo que ninguém estranhou não vê-

lo. Não há nenhum lugar onde lhe conheçam, nem ninguém com quem conversa ou com

quem pratica algum esporte, ou com o que faça apostas, nada que componha uma vida! -

Pigarreou—. Eu vejo as

mesmas pessoas quase diariamente. Se não aparecesse não demorariam para

sentir minha falta, fariam-se perguntas.

Charlotte franziu o sobrecenho. Era preocupante, mas ainda não tinham nada

concreto.

 A pergunta que foi a sua mente era pouco delicada, mas se tratava de um assunto

muito sério para andar-se com escrúpulos.

Entretanto, era consciente da suscetibilidade do Tellman, sobretudo frente a Gracie.

—Não está casado - disse, medindo o terreno—. E não cortejava a ninguém, que

nós saibamos. Tem...? —Não estava segura de como expressá—lo.

—Não pude averiguar nada - se apressou a responder Tellman, interrompendo—a—

. Pelo que soube, é um homem infeliz. —Olhou ao Gracie—. Tal como você disse. Bebe

muito e causa problemas.

Ultimamente perdeu muitos de seus amigos. Já não o visitam. Não é que tenha tido

tempo de investigar a fundo, mas ninguém o viu e não parece que tivesse planos de ir a

nenhuma parte, assim, esteja onde estiver, foi ali com pressa.

—E levou consigo ao Martin Garvie? -perguntou Gracie, removendo as cebolas semas olhar —.Então, por que não sabia a cozinheira? Ou Bela? Seguro que se teriam

informado. Partiu sem bagagem. Os cavalheiros não fazem isso.

—Não, isso é certo - concordou Charlotte—. E não me respondeu a respeito da

correspondência. Enviam-lhe as cartas ao lugar onde está? Deve haver alguém

encarregado de declinar os convites, mas não há dúvida de que quererá receber suas

cartas.

—Seu pai? —apontou Tellman.

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—Provavelmente - se mostrou de acordo Charlotte—. Mas as leva ele em pessoa ao

correio? A maioria das pessoas como ele tem um lacaio que se ocupa disso. Foi a algum

lugar tão secreto que o serviço não está autorizado a saber? E por que Martin não avisou a

Pontua?

—Não houve tempo - respondeu Tellman—. Foi um convite repentino, ou ao menos

uma decisão repentina de sua parte.

— A algum lugar do que Martin não poderia enviar uma carta, se não a Pontua, ao

menos a alguém que pudesse dizer a ela? -manifestou Charlotte cheia de dúvidas.

Gracie jogou as batatas e a couve à frigideira para que se esquentassem,

misturassem-se com as cebolas e que estas dourassem.

—Não me parece normal —murmurou a jovem—. Não é natural. Acredito que deve

ter acontecido algo.

—Eu também. —Charlotte olhou ao Tellman sem piscar.

Tellman lhe sustentou o olhar sem afastar os olhos nem por um momento.

—Não sei que mais posso fazer eu, senhora Pitt. A polícia não tem motivos para

interrogar a ninguém.

Mostraram-me a porta com brutalidade, por assim dizer, mais de uma vez, e me

disseram que me ocupe de meus assuntos. Tive que inventar que se tratava de algo

relacionado com um roubo.

 Aleguei que o senhor Garrick poderia ter sido testemunha.

Tellman contraiu o rosto, deixando ver como detestava ter que mentir.

Charlotte se perguntou se Gracie sabia o preço que ele tinha pago por agradá—la.

Olhou—a, com as costas rígidas e retas enquanto prestava atenção ao repolho com

batatas da frigideira, levantando-o devagar com a paleta para evitar romper a rangente

superfície e deixando-o no prato junto ao cordeiro frio.

Talvez a jovem fosse consciente do sacrifício do Tellman.—Obrigado.

Tellman aceitou o prato agradecido e depois de um segundo de vacilação começou

a comer quando Charlotte fez um sinal de aprovação.

—Então, o que vamos fazer? -perguntou Gracie, baixando o fogo e enchendo o

bule—. Não podemos ficar com os braços cruzados! Não o engoliu a terra! Se lhes

aconteceu algo aos dois ou só ao Martin, é um delito. -voltou-se para o Charlotte—,

 Acredita que o senhor Garrick sofreu um de suas explosões e golpeou ao Martin, talvez tão

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forte que o matou? E o estão encobrindo, para salvá—lo? Enviaram—no ao campo ou algo

assim ?

Charlotte estava a ponto de responder "é claro que não", quando se deu conta de

que estava considerando a sério a possibilidade.

Tellman inalou como se fosse falar, mas tinha a boca cheia. — Acredito que

precisamos saber muito mais sobre a família Garrick - disse Charlotte, escolhendo as

palavras com cuidado.

O semblante de Gracie mostrou expectativa.

—vai perguntar a Lady Vespasia? -perguntou esperançada.

Não só estava à corrente da ajuda que Vespasia tinha prestado em outros casos,

mas a tinha conhecido e falado com ela em mais de uma ocasião. Vespasia tinha estado

no Keppel Street. Gracie não teria ficado mais impressionada de haver-se tratado da

rainha.

Depois de tudo, a rainha era de curta estatura e bem roliça, enquanto que Vespasia

tinha um aspecto tão régio e era tão bonita como deveria ser uma rainha. E, ainda mais

importante, estava disposta a ajudar sem reservas a resolver os crimes.

Podia ser uma verdadeira dama, com todo o glamour inimaginável que isso

supunha, mas lhes ajudava a identificar ao delinqüente e essa era a melhor qualidade que

se podia ter. — Acaso saiba algo - acrescentou alentadora.

Charlotte olhou a cara de impaciência de Gracie, depois ao Tellman, que odiava aos

aristocratas e a quão afeiçoados interferiam no trabalho policial, sobretudo se eram

mulheres, e viu em seus olhos um brilho de ironia além de rechaço.

Hesitou como se respeitasse sua opinião, depois, ao ver que ele guardava silêncio,

fez um gesto de assentimento.

—Não me ocorre nada melhor. Como já comentamos, não há caso policial que

investigar, mas é quase certo que ocorreu algo - concedeu ele—. Não temos mais remédioque reconhecê-lo.

Era muito tarde para ir ver tia Vespasia nesse dia, mas na manhã seguinte Charlotte

colocou seu melhor vestido de visita, embora o corte fosse claramente do ano anterior

porque ainda não tinha tido motivo nem incentivo para arrumá—lo.

Desde o rebaixamento de categoria do Pitt de chefe do Bowl Street à Brigada

Especial, não lhe tinha surgido nenhuma desculpa ou oportunidade para assistir a algum

ato social de certa importância.

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 Até esse momento, olhando seu vestuário que já fazia tempo que não renovava, não

tinha percebido.

Entretanto, não dispunha de dinheiro para gastar em caprichos supérfluos como um

vestido na moda quando os que tinha abrigavam; além disso, eram favorecedores e

perfeitamente apropriados.

Não tinha transcorrido tanto tempo desde que se preocupavam se tinham comida e

carvão.

O que mais lamentava era não ter tido oportunidade de ajudar ao Thomas, o que em

si mesmo teria sido importante, e, como estímulo acrescentado, lhe teria dado um pretexto

para pedir emprestado algo glamuroso para Emily, ou até para a própria Vespasia, que

apesar de ser da geração anterior, tinha sua mesma estatura.

Desprendeu seu vestido cor ameixa e o pôs, e ficou agradada ao ver que ao menos

lhe assentava bem. Encontrar o chapéu adequado foi menos fácil, e se decidiu por um

negro com um suave toque rosa avermelhado.

Não gostava em realidade, mas não tinha nada melhor e ninguém podia ir visita sem

um chapéu ou um toucado.

 Acima de seus sentimentos, não queria envergonhar Vespasia se coincidia com

outra visita.

Ninguém queria parentes pobres, embora longínquos, e menos ainda com mau

gosto para vestir-se.

Gracie se despediu dela com entusiasmo e conselhos de última hora e instruções.

Não se teria mostrado tão impertinente se se tivesse parado a pensar, mas sua

impaciência pôde mais que o decoro.

—Precisamos saber como é a vida nessa casa - disse carrancuda—. Lhe fizeram

algo. Temos que averiguar o que e por que.

—Direi a tia Vespasia a verdade -respondeu Charlotte em pé nos degraus daentrada, olhando o céu.

Fazia um bonito dia ensolarado mas frio.

—Não vai chover -observou Gracie com tom contundente.

—Não, isso já o vejo. Só pensava que é o típico dia em que a todo mundo ocorre

sair com sua mãe para fazer uma visita.

Tomara tenha sorte e a encontre sozinha, porque não é o tipo de conversa que eu

gostaria que alguém interrompesse.

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—Bom, tem que tentá—lo a apressou Gracie—. E não me ocorre ninguém melhor

que Lady Vespasia. Não conhecemos ninguém mais, a menos que sejam amigos da

senhora Radley. Poderia expor-lhe é claro.

—Farei—o, mas não acredito que Emily seja de grande ajuda - respondeu Charlotte,

saindo ao meio—fio—. Não leva suficiente tempo aqui. Voltarei quando já não puder fazer

nada mais. Adeus.

Charlotte pôs-se a andar com resolução, concentrada em achar um coche de

aluguel antes que economizar dinheiro e perder tempo pegando vários ônibus.

Se fizesse o segundo, teria que descer a considerável distancia de casa da

Vespasia. A pessoa dificilmente podia ir ver Lady Vespasia Cumming—Gould em um

ônibus público.

Entretanto, quando chegou à casa, a criada da Vespasia, que a conhecia bem,

disse-lhe com muito pesar que, com o tempo tão clemente, a senhora tinha decidido ir de

carruagem até o parque e dar um passeio.

Charlotte se sentiu tão decepcionada que se surpreendeu. Londres estava cheio de

parques, mas quando a alta sociedade se referia ao parque só podia tratar-se do Hyde

Park, de modo que não pôde fazer outra coisa que deter outro carruagem e dar instruções

ao condutor para que a levasse ali.

 A começo do ano, em plena temporada social, teria encontrado centenas de

carruagens dentro ou nos arredores do parque, e procurar a alguém teria sido uma perda

de tempo, mas com o sol mais fraco de finais de setembro e o ar claramente frio, não havia

mais que uma dúzia de carruagens no extremo mais próximo do Rotten Row, e talvez o

mesmo número no mais afastado.

Os lacaios e cocheiros esperavam mexericando à salpicada sombra, atentos se por

acaso voltava o senhor ou a senhora para não serem surpreendidos.

Os cavalos esperavam ociosos, movendo-se só de vez em quando com um tinido dearnês, os medalhões de latão brilhantes ao sol.

Charlotte estava completamente decidida a localizar a Vespasia e conversar com

ela, mesmo que isso significasse interromper pouco menos que à princesa do Gales.

Mas como a princesa estava muito surda, seria estranho que encontrasse a

Vespasia conversando com ela, embora fossem amigas desde anos.

Se Vespasia falasse com uma duquesa ou condessa, era provável que Charlotte a

reconhecesse.

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Deu-se conta com uma brusca inalação que o melhor era que se comportasse com

absoluta circunspeção, embora a dama em questão resultasse não ter nenhuma

importância social.

Vespasia era perfeitamente capaz de falar com uma atriz ou uma cortesã, se a

pessoa lhe interessava.

Esteve quase meia hora caminhando a passo vivo, indo de um grupo de pessoas a

outro com uma bolha na planta do pé esquerdo, até que por fim viu a Vespasia.

Esta passeava sozinha, com a cabeça erguida e um chapéu cinza marengo de

ampla aba com uma magnífica pena de avestruz prateada.

Seu vestido era de um cinza mais pálido, e no pescoço levava um babado de renda

tão assombroso que parecia espuma ao sol.

Voltou-se ao ouvir os passos de Charlotte que faziam ranger o pavimento.

—Está sem fôlego, querida -disse com as sobrancelhas arqueadas—. Não duvido

que é algo importante o que a trouxe aqui com tantas pressa. —Olhou a poeirenta bainha

do vestido do Charlotte e a postura assimétrica em que se deteve, devido à bolha. — Quer

se sentar um momento?

Vespasia percebeu em seu rosto que não se tratava de nada de aparência íntima.

—Obrigada -aceitou Charlotte, sentindo de repente que a bolha lhe incomodava

ainda mais intensamente.

Fez o possível para andar erguida até o seguinte banco, onde se deixou cair

agradecida. Em um momento desabotoaria a bota e veria o que podia fazer para aliviar a

dor.

Vespasia a olhou divertida.

—Estou morta de curiosidade -comentou sorrindo—. O que a trouxe a um lugar tão

pouco habitual, só e em aparentes apuros?

— A necessidade de saber -respondeu Charlotte, fazendo uma careta ao movertentativamente o pé.

 Alisou a saia e se sentou um pouco mais erguida, consciente de que as pessoas

que passavam a olhava, muito discretamente, é claro, e quase sem dúvida porque estava

com Vespasia.

Sem dúvida, perguntavam-se quem demônios era. Se a Vespasia tivesse importado

sua reputação, a teria envergonhado, mas não lhe importava o mínimo, deixava que o

mundo pensasse o que quisesse.

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—Mais sobre o Saville Ryerson? -disse Vespasia em voz baixa—. Não estou certa

de poder te ajudar. Tomara fora assim.

—Em realidade é sobre o senhor Ferdinand Garrick —a corrigiu Charlotte.

Vespasia abriu muito os olhos.

—Ferdinand Garrick? Não me diga que está relacionado com o caso do Eden

Lodge! Isso é absurdo! Tanto que é quase o único que poderia redimi-lo da absoluta

tragédia. Converteria-se então em uma farsa.

Charlotte ficou olhando-a, sem saber até que ponto falava a sério. Tinha um senso

de humor agudo e pessoal que não fazia distinção de pessoas.

—Por que? -perguntou.

 A expressão da Vespasia era triste, irônica, refletia uma ligeira aversão mesclada

com lembranças.

—Ferdinand Garrick é o que algumas pessoas chamam um "cristão robusto",

querida -respondeu, e viu compreensão no rosto de Charlotte—. Um homem de virtude

oficiosa e entusiasta-continuou—. Come de forma sã, faz muito exercício, desfruta

mostrando-se frio e fazendo sentir a todos os de seu círculo igualmente incômodos.

Nega-se a si mesmo e a outros acreditando estar mais perto de Deus por isso.

Como o óleo de rícino, pode ser que em alguns casos lhe funcione, mas é extremamente

difícil que desperte simpatias.

Charlotte dissimulou um sorriso.

—Em realidade, não tem nada que ver com o senhor Ryerson -disse—. Thomas foi

a Alexandria para obter mais informação sobre a Ayesha Zakhari.

Vespasia permaneceu totalmente imóvel. Um par de cavalheiros que passavam

inclinaram o chapéu para ela. Ela não parecia havê-los visto sequer.

— Alexandria —murmurou—. Santo céu! Imagino que o enviou Victor Narraway. Não

teria ido de outro modo. Não, perdoa. É idiota de minha parte que o exponha sequer —

Exalou o ar muito devagar —. De modo que vai chegar ao fundo do assunto, depois de

tudo. Alegra—me sabê—lo. Quando se foi?

—Faz quatro dias - respondeu Charlotte, surpreendida de que lhe parecessem

muitos mais.

Embora passasse todo o dia fora de casa, às noites lhe pareciam terrivelmente

vazias sem ele, como se se tivesse esquecido de acender as lareiras. O calor e a alma do

lar tinham desaparecido. Sentia tanto sua falta nas poucas vezes que ela partia? Esperavaque assim fosse. — Já deve estar ali - acrescentou.

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—Certamente - concordou Vespasia—. Lhe parecerá extremamente interessante.

Imagino que não terá mudado muito, não no fundamental. —Torceu ligeiramente o gesto—

.

Embora não voltei ali desde que o senhor Gladstone decidiu bombardeá —la. Isso

não pode ter aumentado o afeto dos alexandrinos por nós. Não é que isso nos preocupe

muito em geral.

Mas Alexandria não é rancorosa. Simplesmente absorve tudo o que chega aí, como

se tratasse de comida, converte-o em parte de si mesmo.

Fez isso com os árabes, os gregos, os romanos, os armênios, os judeus e os

franceses, por que não também com os britânicos? Temos algo que oferecer, e ela aceita

tudo.

Tem um gosto extremamente eclético. Nisso está sua genialidade.

De bom grado, Charlotte lhe teria feito pergunta e escutado suas explicações todo o

dia, mas se obrigou com esforço a concentrar-se no único aspecto do curso dos

acontecimentos em que ela podia influir de maneira decisiva.

—Preciso saber um pouco do Ferdinand Garrick porque uma amiga do Gracie tem

um irmão que desapareceu -explicou.

—Gracie? -O interesse da Vespasia foi imediato—. Essa criada miúda sua, a que

tem o brio de duas garotas do dobro de seu tamanho? De onde desapareceu o jovem, e

por que está relacionado nada menos que com o Ferdinand Garrick? Se tiver se despedido

de um criado, acreditará havê-lo feito por uma razão excelente e não haverá forma de

raciocinar com ele.

Tem umas idéias inamovíveis sobre a virtude, e a justiça está muito acima da

compaixão em sua estima.

—Não o despediu, que eu saiba - replicou Charlotte, embora sentiu um calafrio ao

ver o olhar de ansiedade da Vespasia. Seguiu falando com tom despreocupado, mas aspalavras sobre a compaixão tinham sido cuidadosamente escolhidas, e sabia—. Em

realidade, Martin trabalhava para o filho do Garrick, Stephen. Era seu valete. - Sacudiu a

cabeça, impacientando-se consigo mesma—. Não sei por que digo "era". Pelo que eu sei,

continua sendo—o. Só que não se pôs em contato com Pontua, que é a única família que

tem, há quase três semanas, e isso é algo que nunca tinha ocorrido antes.

E quando Gracie foi à casa do Garrick para perguntar discretamente, o serviço não

parecia saber onde estava.

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De fato, o próprio Stephen não parece achar-se na casa. Ao princípio supuseram

que se encerrou, o que parece que acontece de vez em quando. Mas nem subiu comida

nem desceu roupa suja.

—Gracie foi à casa? -disse Vespasia com uma nota de admiração na voz—. Me

teria gostado de vê-lo! O que averiguou, além de que nenhum dos dois homens está na

casa e que o serviço não sabe seu paradeiro? Ou ao menos não o diz - se corrigiu.

—Que Stephen Garrick é um homem infeliz de caráter violento que se permite

excessos, que bebe muito e que ninguém sabe levar suas mudanças de humor ou seus

momentos de desespero exceto Martin - esclareceu Charlotte sucintamente—. De modo

que teria pouco sentido despedirem Martín, porque teriam tido muita dificuldade para

substituí-lo.

Vespasia permaneceu imóvel uns momentos, como se observasse o desfile de

damas com seus melhores ornamentos agarradas ao braço de cavalheiros vestidos com

trajes escuros ou em brilhante esplendor militar.

— A não ser que fosse bastante desafortunado para presenciar um incidente

particularmente desagradável - disse por fim, em voz baixa e triste—. E bastante

imprudente para pedir uma remuneração extra por isso.

Poderiam ter considerado que era muito caro retê-lo e havê-lo despedido sem

referências.

—Não seria muito estúpido fazer algo assim? -perguntou Charlotte—. Se meu criado

estivesse informado de segredos de família, querer-lhe-ia perto de mim, não procurando

emprego em outra parte cheio de ressentimento, e com razão.

Vespasia sacudiu a cabeça muito ligeiramente.

—Querida, um homem da posição do Ferdinand Garrick não se rebaixa a dar

explicações, e os possíveis senhores não perguntam a um criado que estão considerando

empregar quais foram seus motivos para atuar como o fez.Limitar-se-iam a aceitar que tinha ameaçado Garrick divulgar segredos de família. A

indiscrição é o pior pecado em um criado doméstico.

Teria sido menos grave que levasse o faqueiro de prata antes que a reputação da

família. A pessoa sempre pode comprar prata, ou, no pior dos casos, até sobreviver sem

ela! Mas ninguém sobrevive sem reputação.

Charlotte sabia que tinha razão.

—Mesmo assim preciso saber o que ocorreu ao Martin -insistiu—. Se só lhedespediram, por que não o disse a Pontua? Sobretudo se foi injusto!

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—Não sei - admitiu Vespasia, saudando com a cabeça a um conhecido que a tinha

visto e se descoberto ante ela. Olhou rapidamente ao Charlotte, para que o homem não

tomasse a saudação como um convite para unir-se a elas—. Acredito que tem motivos

para estar preocupada.

—Como é Ferdinand Garrick, além de religiosamente insuportável?

Charlotte moveu o pé, esperando que a bolha tivesse baixado um pouco. Não,

continuava igual.

—Pelo amor de Deus, menina, tire a bota! -disse Vespasia. — Aqui? -perguntou

Charlotte atônita. Vespasia sorriu.

—Montará menos espetáculo tirando a bota que coxeando até minha carruagem. As

pessoas pensarão que está ébria! Não conheço bem ao Ferdinand Garrick e não tenho

nenhum interesse em fazê-lo.

É o tipo de homem que não me interessa. Carece de senso de humor, e cheguei a

acreditar que o senso de humor é quase o mesmo que o sentido da medida. -observou

com prazer como um cãozinho ágil dava saltos—. É o absurdo da desproporção o que nos

faz rir - continuou—. Há algo instintivamente divertido em quebrar a prepotência, em aliar-

se cotovelo com cotovelo com o incongruente. Se tudo fosse conveniente e apropriado, o

mundo seria insuportavelmente aborrecido.

Sem a risada, algo na vida se perderia. —Sorriu, mas em seu olhar havia uma

repentina e profunda tristeza. — Talvez a prudência - acrescentou em voz baixa.

Depois levantou o queixo.

—Mas me porei em contato com o Ferdinand Garrick e verei o que posso averiguar.

Não tenho nada mais interessante que fazer e certamente nada mais importante.

Talvez esse seja o maior absurdo? -O cãozinho tinha desaparecido do outro lado da

esplanada de erva, e ela observava a um casal de uns cinqüenta anos, vestidos com um

gosto delicioso na moda, que descia pelo centro do atalho, inclinando a cabeça por voltade um ou outro lado quando viam algum conhecido.

Saudavam alguns e olhavam a outros como se não existissem, vacilando de vez em

quando até que se cruzaram um olhar e tomaram uma decisão—. Encher seu tempo com

 jogos - comentou Vespasia—. E acreditar que são importantes, porque não lhe ocorre

nada que o seja. Ou lhe ocorre, mas não o faz.

—Tia Vespasia -disse Charlotte com pouca confiança, Vespasia se voltou para

olhá—la interrogante.

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—Sei que você não gostaria de pensar que o senhor Ryerson matou ao Lovat -

comentou Charlotte—. Ou inclusive que ajudou deliberadamente à senhorita Zakhari para

que saísse impune do assassinato, mas, enfrentando o pior, o que acha em realidade? —

Viu como Vespasia sorria—.

Não podemos nos defender do pior se não soubermos o que é - indicou, mas com

suavidade, consciente dos sentimentos da Vespasia—. Que classe de homem é? Não me

refiro só ao que descobrirá a polícia, mas ao que você sabe.

Vespasia guardou silêncio tanto tempo que Charlotte pensou que não ia responder.

Deixou de esperar que falasse e se inclinou para desabotoar a bota.

Tirou—a com dor. Tinha um buraco no talão da meia, que era a causa do problema.

Lhe tinha levantado a pele, mas ainda não sangrava.

Tocaram-lhe o braço e levantou o olhar. Vespasia lhe oferecia um grande lenço de

seda e umas tesouras de unhas diminutas.

—Se corta a meia e envolve o pé com o lenço de seda - disse—, poderá voltar para

casa em muito boas condições.

Charlotte pensou no aspecto que teria com a seda de cor sobre sua bota se lhe

levantava a saia.

—Sorri —aconselhou Vespasia—. É melhor chamar a atenção por levar um calçado

excêntrico que por ter um rosto avinagrado. Além disso, a quem vai encontrar aqui que vai

voltar a ver, ou cuja opinião a importe o mínimo?

— A ninguém -concordou Charlotte, sorrindo muito mais do que seria necessário—.

Obrigada.

—É muito delicada com suas perguntas, querida. —Vespasia olhou as árvores ao

longe, que só luziam alguma ou outra folha tinta das cores quentes do outono—.

Mas tem toda a razão. Saville Ryerson é um homem de sentimentos profundos,

impulsivo, que precisa recorrer ao contato físico para expressar suas emoções. —mordeuo lábio inferior muito ligeiramente—. Perdeu a sua mulher em um triste e lamentável

acidente no setenta e um… mas foi mais que isso, houve traição de no meio, embora  não

sei de que tipo e certamente não quero saber por parte de quem. —Baixou ainda mais a

voz—. Estava muito zangado, até antes de que ela morresse.

Tinham tido uma forte discussão e acredito que lhe custou ainda mais agüentá —lo

por causa disso. Não só chorava por sua morte, e por não ter sido capaz de salvá—la, mas

sim se sentia culpado por não poder apagar as coisas que havia dito, embora acreditasseque eram certas.

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Charlotte terminou de abotoar a bota.

—Deve ter sido duro. Mas é de supor que Lovat não teve nada que ver com isso.

Ocorreu faz vinte anos.

—Nada absolutamente - concordou Vespasia—. Lhe digo isso só para que faça uma

idéia mais aproximada da classe de homem que é. Depois esteve só. Serviu a seu partido

e a seus eleitores. São exigentes, volúveis, exigem muito e dão pouco em troca, às vezes

nem sequer são leais. Mas a maioria o apreciam, e ele sabe.

Mas lhe deixaram exausto, e não recebeu ajuda. —Fez um débil gesto de

desaprovação com sua pálida mão enluvada—. Não estou dizendo que se absteve de

satisfazer seus desejos, é claro, só que foi discreto, e que manteve poucas relações

afetivas se é que teve alguma.

— Até a Ayesha Zakhari.

—Exato. E um homem apaixonado que não dá nem recebe nada durante mais de

duas décadas, quando se apaixona o faz com grande intensidade, maior do que

compreende ou pode dominar.

Torna-se excepcionalmente vulnerável. -disse-o em voz baixa, como se soubesse

por própria experiência do que falava.

—Sim -respondeu Charlotte pensativa, tratando de imaginar-lhe imaginar a espera,

a solidão ao longo dos anos, e depois a força do sentimento quando por fim chegava.

—O que não entendo -replicou Vespasia, com um tom repentinamente áspero e de

novo muito prático— é por que essa mulher atirou em Lovat.

Se não era um homem muito agradável e tinha estado envenenando—a, por que

demônios não se limitou a lhe dar de lado? Se de verdade era uma aborrecimento, por que

não chamou à polícia?

Um pensamento ainda mais desagradável assaltou ao Charlotte.

—Talvez ele a estivesse chantageando, possivelmente por algo que ocorreu em Alexandria e que ameaçava dizer ao Ryerson. Isso explicaria por que ela não podia lhe

confessar a verdade.

Vespasia baixou a vista para a erva a seus pés.

—Sim —reconheceu a contragosto—. Sim, isso tem lógica. Espero de coração que

não seja verdade. Qualquer um pensaria que ela tinha suficiente bom senso para não fazê-

lo justo a noite que esperava a visita do Ryerson.

Mas talvez as circunstâncias não lhe permitiram escolher.

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—Isso também poderia explicar por que continua sem confiar em ninguém -

acrescentou Charlotte, odiando seus pensamentos, mas segura de que era melhor

expressá—los que deixar que se amontoassem em sua cabeça sem achar resposta,

impossíveis de sossegar —. Embora não posso imaginar qual poderia ser a chantagem,

além de algum plano que pusesse ao Ryerson em uma situação comprometedora, algo

relacionado com seu cargo no governo.

—Um espião? -disse Vespasia—. Ou suponho que agente provocador seria mais

correto. Pobre Saville, seduzido para ser de novo traído. —Inalou fundo e deixou escapar o

ar em um suspiro—. Que frágeis somos. —dispôs-se a levantar-se—. Que extremamente

fácil é fazer mal.

Charlotte se apressou a lhe oferecer o braço.

—Obrigado -respondeu Vespasia com tom seco—. Choro em meu foro interno pela

dor de um homem que apreciei, mas sou perfeitamente capaz de me levantar sozinha e eu

não tenho bolhas nos pés.

Talvez você queira se agarrar a meu braço para que a ajude a chegar até minha

carruagem?

Será um prazer levá—la de novo ao Keppel Street, se for ali aonde se dirige.

Charlotte conteve um sorriso, ao menos pela metade.

—É muito amável — aceitou, agarrando o braço da Vespasia, mas sem apoiar-se

nela—. Sim, vou a casa. Possivelmente queira tomar uma xícara de chá quando

chegarmos.

—Obrigada, eu adoraria. —Vespasia aceitou com um brilho de regozijo em seus

olhos cinzas—. Sem dúvida a jóia da Gracie nos preparará isso enquanto me conta mais

coisas desse valete.

Vespasia desfrutou de seu chá. Insistiu em tomá—lo na cozinha, uma estadia que

nunca pisava em sua própria casa. Quando a cozinheira se recuperasse de seu assombro,teria se ofendido.

Reuniam-se diariamente no salão da manhã da Vespasia, onde a cozinheira ia

receber instruções e contra—atacar com suas próprias sugestões, e com o tempo tinham

chegado a um compromisso.

 A cozinheira não entrava no salão. Vespasia não invadia a cozinha. Era um acerto

decidido de comum acordo.

Mas a cozinha do Charlotte era o centro nevrálgico da família, onde não só sepreparava a comida, mas também se comia. A luz dos lampiões de gás se refletia no cobre

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gentil das frigideiras, das cordas do varal no alto do teto chegavam o aroma de roupa limpa

e a mesa de madeira e o chão estavam desbotados de ser esfregados diariamente.

 A princípio Gracie guardou silêncio, apesar de todas suas melhores intenções de

fazer o contrário, intimidada pela presença de uma autêntica aristocrata em sua cozinha,

sentada à mesa, como se ela fosse uma pessoa qualquer.

É claro, até então, lady Vespasia continuava sendo a mulher mais formosa que

Gracie jamais tinha visto, de cabelo prateado, olhos de pálpebra caída, maçãs do rosto

frágeis e marcadas e pele de porcelana.

Mas sua paixão pela causa tinha podido mais, e explicou a Vespasia exatamente o

que achava, ou temia, e esta partiu finalmente com tanta informação sobre o problema

como tinham Charlotte e Gracie.

Por essa razão pouco depois das sete e meia dessa tarde Vespasia se achava no

vestíbulo do Teatro Real da Ópera, com os diamantes de sua tiara cintilando, o cetim cinza

azulado de seu vestido, uma coluna de quietude no meio do tinido e o frufru de rosas e

dourados.

Examinou às pessoas que passavam a seu lado procurando a figura vagamente

familiar do Ferdinand Garrick.

Tinha-lhe levado quase toda a tarde averiguar, com a maior discrição, onde tinha

previsto passar essa noite, e logo tinha persuadido a uma amiga que lhe devia um favor

para que lhe desse suas entradas.

No último momento tinha chamado o juiz Theloneus Quade e o tinha convidado a

acompanhá—la, pedido que tinha claro que ele não ia rechaçar, o que lhe causou uma

pontada de remorsos. Sabia o que sentia por ela, mas desde a volta do Mario Corena, a

honra a obrigava a não induzir a engano a ninguém, e a não dar a impressão de utilizar o

afeto de outra pessoa de que era mais que consciente.

 Além disso, a intensidade desse amor de seus anos de mais vitalidade tinharetornado nesses dias em forma de ternura, uma realidade que debilitava todas as demais

possibilidades, e não estava preparada ainda para desprender-se dele.

Mario tinha morrido, mas o que ela sentia estava entretecido em seu interior para

sempre.

Entretanto, no que devia concentrar-se nesse momento era no perigo que percebia

que corria Martin Garvie e achava que era real. Não tinha permitido que Gracie, ou

Charlotte sequer, visse o preocupada que estava.

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Sabia pouco do Ferdinand Garrick e não lhe tinha simpatia. Não teria sabido explicar

por que, era algo instintivo, mas devido a não haver motivos concretos para isso, era

impossível eliminá—lo com argumentos.

É claro, confiou-se ao Theloneus, não só porque lhe devia ao menos uma

explicação por tão indecorosa pressa para assistir a uma ópera que sabia que gostava tão

pouco como ela, mas também porque valorizava muito sua amizade e sua discrição para

não servir-se de sua ajuda em uma causa que podia distar de ser fácil.

Viu o Garrick ao mesmo tempo que Theloneus.

—Diretamente? -disse ele com suavidade; era só uma pergunta pela metade.

—Temo que sim -respondeu ela, e lhe agarrando o braço começou a abrir caminho

entre a multidão.

Entretanto, quando alcançaram a este Garrick estava ocupado falando com um

bispo muito conservador de quem Vespasia não podia fingir sequer ter boa opinião.

Respirou fundo três vezes para tentar colocar vazão na conversa e as três vezes

descobriu que as palavras morriam em sua língua.

Havia certos graus de hipocrisia que não era capaz de alcançar, até pelas melhores

causas. Não lhe foi preciso olhar ao Theloneus para perceber sua diversão.

—Haverá dois intervalos -comentou ele em apenas algo mais que um sussurro,

quando Garrick e o bispo se afastaram e chegou o momento de ocupar seus assentos.

 A ópera era uma obra prima barroca cheia de sutileza e luz, mas não tinha as

melodias familiares, a paixão e o lirismo do Verdi que ela amava.

Concentrou-se em fazer planos para o primeiro intervalo. Não podia permitir-se

esperar ao segundo, em caso de que algum contratempo lhe impedisse de fazer uma visita

ao Garrick a seu camarote.

Ele poderia enfrascar-se em uma conversa que fosse descortês interromper.

Requeria-se certo grau de sutileza. Lhe tinha tão pouca simpatia como ele a ela.Quando desceu o pano de fundo e chegaram os entusiasmados aplausos, Vespasia

se levantou como uma mola.

—Não sabia que você gostasse tanto -observou Theloneus surpreso—. Não me deu

essa impressão!

—E eu não gosto -replicou ela, desconcertada de que ele a tivesse estado

observando a ela em lugar de prestar atenção ao palco; tinha esquecido sinceramente os

profundos sentimentos que ele sentia por ela—. Eu gostaria de ir ver o Garrick antes que

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saia de seu camarote -explicou—. E, se puder ser, antes que outra pessoa monopolize a

conversa.

—Se o bispo estiver ali, provocá-lo-ei para que me convença de algo —ofereceu

Theloneus com um sorriso sardônico, com os olhos brilhantes.

Era consciente do sacrifício que isso supunha, e de que ela sabia.

—"Ninguém tem amor maior que este" —murmurou ela—. Estarei em dívida com

você.

—É claro que sim -assentiu ele com veemência.

No final sua intervenção foi necessária. Vespasia quase se chocou com o bispo fora

do camarote do Garrick.

—Boa noite, eminência -disse ela com um sorriso glacial—. Me alegra ver que foi

capaz de descobrir uma ópera cuja trama não ofende sua moralidade.

Dado que a ópera em questão tratava de incesto e assassinato, a observação era

profundamente sarcástica, e ela se arrependeu assim que lhe saiu dos lábios, até antes de

ouvir o Theloneus afogar uma gargalhada e convertê-la em tosse, e ver como o semblante

do bispo adquiria um apagado tom arroxeado.

—Boa noite, lady Vespasia -replicou ele com frieza—. É você lady Vespasia

Cumming—Gould, não é?

O bispo sabia perfeitamente quem era ela, todo mundo sabia. Só pretendia insultá—

la.

Vespasia sorriu de forma encantadora, um sorriso que em sua primeira juventude

tinha deslumbrado a príncipes.

— Assim é -respondeu—. Me permita que o presente ao juiz Quade. —Fez um

delicado gesto—. O bispo do Putney, acredito, ou algum lugar similar, célebre por sua

defesa das virtudes cristãs, em particular a pureza da mente.

—Seriamente? —murmurou Theloneus—. Encantado. —Uma expressão de intensointeresse inundou seu rosto ascético, seus olhos azuis serenos e brilhantes—. Que

afortunado sou de poder falar com você.

Eu adoraria ouvir sua opinião, como fonte informada e, é claro, iluminada, sobre a

escolha do argumento para esta encantadora música.

É instrutivo contemplar tão terrível conduta em que o mal é castigado ao final? Ou

teme que a beleza com que se apresenta possa corromper os sentidos antes que o bom

 julgamento chegue a perceber a moral que há detrás?—Bom - começou a dizer o bispo.

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Vespasia não ficou com eles. Bateu na porta do camarote do Garrick e um momento

depois, quando responderam, entrou.

Estava aterrada. Ia ser desconfortável porque os dois sabiam que ela nunca teria ido

a seu encontro pela amizade que lhes unia, e não tinham nenhum interesse em comum.

Garrick era viúvo e lhe acompanhava uma pequena escolta composta de sua irmã

com seu marido, que era um banqueiro de pouca subida, e uma amiga de ambos, uma

viúva que vivia em um dos condados dos arredores de Londres e que se achava na cidade

por alguma razão. Foi ela quem brindou uma desculpa a Vespasia.

—Lady Vespasia? —Garrick arqueou as sobrancelhas muito ligeiramente. Distava

de ser uma expressão de boas—vindas—. Que prazer vê-la.

Garrick teria utilizado o mesmo tom de voz se tivesse encontrado uma semente de

maçã em sua sobremesa.

Ela inclinou a cabeça.

—Que generoso por sua parte dizer tal coisa - respondeu ela, rechaçando-o como

se tivesse sido um ordinarismo da que alguém se desculpa sentado à mesa.

O rosto dele se escureceu. Não tinha outra escolha que continuar a farsa lhe

apresentando a sua irmã, seu marido e a dama que os acompanhava. A ausência de um

motivo que justificasse a intromissão da Vespasia flutuava no ar.

Ele não queria lhe perguntar abertamente o que queria, mas a atitude de seu corpo

e o gesto espectador de sua cabeça exigiam que se explicasse.

Vespasia sorriu à senhora Arbuthnott.

—Uma amiga minha, Lady Wilmslow, falou-me muito bem de você -mentiu—. E me

pediu que se nos encontrássemos, fizesse o possível por conhecê—la.

 A senhora Arbuthnott piscou de prazer. Nunca tinha ouvido falar de Lady Wilmslow,

quem não existia, mas sem dúvida sabia quem era lady Vespasia, e se sentiu

extremamente adulada.Vespasia sossegou sua consciência com um gesto de generosidade.

—Se permanecer na cidade o resto do mês - continuou—, estarei em casa às

segundas-feiras e as quartas—feiras, e se achar um momento para me fazer uma visita,

será muito bem recebida.

 A aristocrata tirou de uma caixa de prata que levava na bolsa um cartão com seu

endereço e o estendeu.

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 A senhora Arbuthnott a pegou como se fosse uma jóia, e de fato, em termos sociais,

era—o, uma que o dinheiro não podia comprar. Gaguejou um obrigado e a irmã do Garrick

ocultou com muita dificuldade sua inveja.

Mas se se conduzia com cuidado, poderia acompanhar à senhora Arbuthnott, que

era sua hóspede, sem que se considerasse uma rabugice.

Vespasia se voltou para o Garrick.

—Espero que esteja bem, Ferdinand.

Tratava-se de uma mera cortesia, algo que alguém diria por educação. Requeria

uma resposta afirmativa, sem mais detalhe.

—Em excelente forma - respondeu ele—. Igual a você, claro que em você é o

habitual. Garrick não ia permitir que o induzisse a cair nas más maneiras, e menos ainda

diante de seus convidados.

Vespasia lhe sorriu como se aceitasse o elogio, embora sabia que só o dizia para

impressionar, não porque o pensasse de verdade.

—Obrigado. Fala com tal generosidade que caberia pensar que só trata de ser

cortês.

Uma parte escura e perversa da Vespasia desfrutava com a situação. Tinha

esquecido o muito que lhe desagradava Garrick. Recordava a outras pessoas virtuosas até

o extremo que tinha conhecido, mais amealhadas a ela, obcecadas com a observância das

regras e o autocontrole, lentas em perdoar, receosas da risada e que obtinham um prazer

glacial em ter sempre a razão.

Talvez a opinião que formara dele respondia a seus próprios preconceitos. Estava

incorrendo exatamente no mesmo defeito do que o acusava. Mais tarde, quando estivesse

sozinha, devia tratar de recordar o que em realidade sabia dele.

Manteve uma expressão deliberadamente afável e interessada.

—Como está Stephen? Pareceu-me vê-lo no parque o outro dia, mas ia tãodepressa que poderia me haver equivocado. É possível que estivesse passeando com a

 jovem Marsh, não recordo seu nome, a que tem esse magnífico cabelo?

Garrick ficou paralisado. Apesar de não ter provas, Vespasia teria jurado que sua

mente funcionava a toda velocidade em busca de uma resposta.

—Não - disse Garrick por fim—. Deve tê-lo confundido com outra pessoa.

Vespasia ficou olhando-o com expectativa, como se a cortesia exigisse alguma

explicação mais. Não fazer nenhum comentário seria um desprezo.O rosto do Garrick refletiu por um instante uma cólera inconfundível.

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Vespasia considerou se fazer o notar ou não. Temia que trocasse de assunto.

—Desculpe - se apressou a dizer, justo antes de que seu cunhado saísse em seu

resgate—. Não era minha intenção lhe incomodar.

 A ira coloriu de um vermelho apagado as faces do Garrick, que esticou os músculos

do corpo.

—Não seja absurda! -replicou cortante, esfaqueando—a com os olhos—. Só estava

tratando de pensar a quem podia ter visto você. A saúde do Stephen não é boa.

O inverno que se avizinha agravará seu estado. -Tomou ar —. Foi ao sul da França

para uma temporada. O clima é mais suave. Mais seco.

—Muito prudente —reconheceu Vespasia, sem saber se lhe acreditava ou não. Era

uma explicação extremamente razoável em todos os sentidos, e entretanto, não encaixava

com o que Gracie tinha ouvido na cozinha do Torrington Square—. Espero que conte com

alguém de confiança que dele cuide - disse com suficiente solicitude para ser cortês; ele

não teria acreditado o contrário.

—É claro - respondeu—. Se levou consigo seu criado.

Não havia nada que ela pudesse acrescentar sem mostrar uma curiosidade

indecorosa, e a curiosidade era uma ofensa social em que nunca tinha incorrido. Era

vulgar, e implicava que a vida de uma pessoa não era bastante interessante para lhe

ocupar a mente. Ninguém quereria reconhecer isso, era o maior fracasso.

—Estou certa de que lhe será muito benéfico —comentou—. Reconheço que

tampouco eu gosto muito dos meses de janeiro e fevereiro.

São mais suportáveis quando passo mais tempo no campo.

Um passeio pelo bosque é um prazer em qualquer época do ano. As ruas de

Londres cobertas de neve oferecem bastante menos sobretudo saias molhadas até os

 joelhos, a menos que tenha sorte. O sul da França cada vez soa mais atraente.

Garrick lhe dirigiu um olhar glacial. Não eram só representações da Vespasia quetambém havia nela aversão, a convicção de que a dama jamais se teria aproximado de

uma desconhecida só por cortesia.

— Agrada—me enormemente havê-la conhecido, senhora Arbuthnott -manifestou

Vespasia com elegância—. Estou certa de que desfrutará de sua estadia em Londres.

—Inclinou a cabeça para a irmã e o cunhado—. Boa noite, Ferdinand - se despediu.

Sem esperar resposta, Vespasia se voltou e saiu de novo ao corredor que conduzia

de um camarote a outro.

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 A uns passos de distância, Theloneus seguia conversando com o bispo com uma

expressão ligeiramente vidriosa.

—… má compreensão da virtude - dizia o bispo com veemência—. É uma das

maldições da vida moderna que...

Theloneus necessitava urgentemente que o resgatassem.

—Bispo, deseja nos acompanhar a tomar champanha? —convidou Vespasia com

um sorriso deslumbrante—. Ou nos dirá que bebemos em excesso? Atreveria-me a

observar que tem razão e, é claro, está moralmente obrigado a nos dar exemplo a todos.

Em seguida, a dama ofereceu uma mão ao Theloneus, que a pegou imediatamente,

fazendo um grande esforço por conter uma gargalhada.

 A visita ao Saville Ryerson foi muito mais difícil de conseguir, e apesar de que a

Vespasia preocupava sinceramente que Martin Garvie tivesse sofrido uma desgraça, por

muito que Garrick tivesse afirmado que se achava no sul da França, seus temores pela

sorte do Ryerson eram mais profundos.

No melhor dos casos, levaria-se uma decepção com a mulher que amava, talvez

não sabiamente, mas sem dúvida com toda a força de sua natureza. Descobrir-se traído,

não só com fatos senão nas próprias esperanças, ver os sonhos quebrados sem remédio,

achava-se entre as mais duras provas da alma.

No pior dos casos, podia acabar no banquinho dos acusados junto à Ayesha

Zakhari, e talvez também até na forca.

Vespasia não se incomodou em tentar o caminho fácil. Não podia permitir o tempo

que suporia fracassar, e tampouco queria que se advertisse que tinha tanto interesse que

estava disposta a reclamar velhos favores para vê-lo.

De modo que se dirigiu diretamente para ver o subinspetor de polícia pertinente.

Fazia muito tempo, quando ambos eram jovens, ele a tinha cortejado, e mais tarde,

quando os dois estavam casados, tinham se encontrado em uma festa de fim de semanaem uma das suntuosas mansões do duque não sei quantos.

 A sua mente foi em especial uma tarde no atalho de ciprestes. Desgostava-lhe

evocar tais lembranças, carecia de elegância, mas era extremamente útil, e a situação do

Ryerson era muito apurada para que essas delicadezas se interpusessem no caminho da

Vespasia.

Ele a recebeu sem fazê-la esperar. Os anos o tinham tratado bem, embora não

tanto como a ela. Estava em pé no centro de seu escritório quando a fizeram entrar.Parecia mais magro que no passado e tinha o cabelo muito cinza.

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—Querida... -começou a dizer.

O homem não soube muito bem como dirigir-se a ela. Tinha transcorrido muito

tempo desde que mantiveram uma relação estreita.

Ela acudiu rapidamente em seu resgate.

— Arthur, obrigada por me receber em seguida, sobretudo quando deve estar

convencido de que se tiver vindo com tão pouco decorosas pressas é porque quero lhe

pedir um favor.

Vespasia ia vestida com suas costumeiras cores pálidas cinza pomba e marfim, e

levava um colar de pérolas que lhe iluminava o rosto.

Com os anos tinha aprendido a saber o que mais a favorecia. Até as mulheres mais

formosas, ou as mais jovens, existiam cores e linhas que não lhes sentavam bem.

—Sempre é um prazer vê-la, seja qual for à razão - replicou ele, e se só dizia o que

se esperava dele, fez-o com ar de autêntica sinceridade—. Por favor...- indicou a cadeira a

um lado de sua escrivaninha e esperou que ela se sentasse e se colocasse as saias com

um só movimento, de modo que caíssem sem enrugar-se—. O que posso fazer por você?

Vespasia se tinha debatido entre ser direta ou indireta, Arthur tinha sido uma pessoa

afável no passado, mas o tempo podia havê-lo mudado, e já não estava apaixonado por

ela, o que aumentaria sua capacidade para julgar. Já não havia uma paixão sentimental

que o nublara a mente. A dama optou por ser direta.

Tratar de induzi-lo a engano seria insultante. Mas também o seria lhe pedir um favor

sem fazer alusão ao menos ao passado e às delicadas lembranças.

—Da última vez que nos vimos, adquiri uns parentes interessantes - comentou ela

com quietude, como se fora o mais natural do mundo falar disso—. Através do matrimônio,

é claro. Recordará a meu finado sobrinho neto, George Ashworth.

O rosto do Arthur se inundou imediatamente de sincero pesar.

—Sinto-o muitíssimo! Que tragédia.Essas palavras permitiram a Vespasia economizar uma enxurrada de explicações.

—Uma grande tragédia, com efeito - disse ela com um leve sorriso—. Mas através

de seu matrimônio ganhei uma sobrinha neta cuja irmã está casada com um policial de

notável talento. —Viu-o sobressaltar-se—. De vez em quando me vi implicada em algum

caso e aprendi a compreender algumas das causas dos crimes de um modo que não era

capaz quando era mais jovem. Diria que o mesmo pode dizer-se de você...—Deixou a

frase em suspense, não como uma pergunta.—OH, sim, o trabalho policial é... —Ele ergueu os ombros.

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Vespasia percebeu de novo quanto tinha emagrecido, mas não lhe assentava mal.

—Exato! -assentiu com firmeza—. Por isso vim vê-lo. Está em uma posição única

para me fazer um pequeno favor. —antes que ele pudesse lhe perguntar do que se tratava,

ela se apressou a acrescentar —: Estou certa de que está tão perplexo e compungido como

eu pelo desgraçado caso do Eden Lodge. Faz muitos anos que conheço o Saville Ryerson.

 Arthur sacudiu a cabeça.

—Não posso lhe dizer nada, Vespasia, pela simples razão de que não sei nada.

—É claro! -Ela sorriu—. Não estou lhe pedindo informação, querido. Isso seria de

tudo indecoroso. Mas eu gostaria de ver pessoalmente ao Saville, com urgência e em

privado.

Vespasia não queria dar nenhuma explicação, mas tinha preparado uma razão

convincente em caso de que ele a pedisse.

—Seria muito desagradável para você - respondeu ele com estupidez—. E não há

nada que possa fazer por ele. Todas suas necessidades estão cobertas e desfruta de

todos os luxos que lhe estão permitidos.

 Acusam-no de ser cúmplice de assassinato, Vespasia. Para qualquer homem é

grave, mas para alguém da posição e confiança que este goza, é devastador.

—Sei isso, Arthur. Como disse, desde a morte do pobre George tive oportunidade

de descobrir os aspectos menos atraentes da natureza humana.

Prestei ajuda de vez em quando em algum caso. Se o puser em uma posição difícil

que a honra o obriga a recusar, tenha, por favor, a amabilidade, pela amizade que nos

uniu, de me dizer isso sem rodeios.

—Não, não é isso! -apressou-se a dizer ele—. Eu só estava pensando em sua

sensibilidade e desconforto se o achar extremamente mudado. Talvez não possa evitar

acreditar que é culpado, depois de tudo. Eu...

—Pelo amor de Deus, Arthur! -exclamou ela com impaciência—. Me estáconfundindo com outra pessoa dos agradáveis verões de seu passado? Lutei nas

barricadas em Roma no quarenta e oito.

Não sou alheia às coisas desagradáveis! Vi todo tipo de miséria, traição e morte,

inclusive na alta sociedade! Posso ver o Saville Ryerson ou não?

—É claro que pode, querida. Encarregar-me-ei disso esta mesma tarde. Far-me-ia

acaso a honra de comer comigo? E falaremos das festas que organizávamos quando os

verões eram mais longos… e mais quentes do que parecem ser agora.

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Sorriu-lhe com sincero afeto, recordando o atalho de ciprestes e certo canteiro com

um esbanjamento de esporas de cavalheiro azuis.

—Obrigado, Arthur. Com muito prazer.

Fizeram—na entrar na estadia onde tinham preparado seu encontro com o Ryerson;

depois o guarda se retirou e a deixou sozinha.

Eram pouco mais das seis da tarde, e os lampiões de gás já estavam acesos porque

a única janela era alta e estreita.

Estava há pouco tempo esperando quando se abriu a porta e entrou Ryerson.

Cansado como estava, com a camisa imaculada e o lenço que normalmente levava,

estava pálido e um pouco desalinhado, mas continuava sendo um homem corpulento que

não se arredava nem se acovardava pelo medo, e ela o viu em seus olhos mal a porta se

fechou de novo e ele se virou.

—Boa noite, Saville -saudou Vespasia—. Sente-se, por favor. Desagrada—me ter

que estirar o pescoço para vê-lo.

—Por que veio? -perguntou ele obedecendo—a, com o rosto triste, os ombros um

pouco afundados—. Este não é um lugar para você e não me deve nada. Suas cruzadas

pela justiça social não incluem as visitas aos culpados. —Não fugiu seu olhar —. E sou

culpado, Vespasia. Teria ajudado ela a transladar o cadáver ao parque e deixá—lo ali.

De fato, levantei-o e o carreguei no carrinho de mão junto com a pistola. Agradeço

sua amabilidade, mas se deve a uma má interpretação dos fatos.

—Por Deus bendito, Saville! -exclamou ela cortante—. Não sou estúpida! É claro

que transladou o cadáver desse desgraçado homem! Thomas Pitt é meu sobrinho neto, ao

menos é em virtude de vários matrimônios. Sei provavelmente mais do assunto que você!

 A Vespasia agradou vê-lo sinceramente surpreso.

—Que matrimônios, Por Deus? -perguntou.

—O seu, é claro, bobo! -replicou ela—. Não ia ser o meu!O rosto do Ryerson se relaxou em um sorriso, inclusive a tensão de seus ombros

pareceu diminuir um pouco.

—Não pode me ajudar, Vespasia, mas traz luz à escuridão e lhe agradeço isso.

Ryerson estendeu uma mão para lhe pegar a sua, depois mudou de opinião e a

retirou.

—Me alegro - respondeu ela—. Mas isso é secundário. Eu gostaria de fazer algo

mais prático e mais duradouro.

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Thomas foi a Alexandria para ver o que pode averiguar da Ayesha Zakhari antes

que se transladasse a viver aqui, e do Edwin Lovat… se houver algo que averiguar. —Viu-

o ficar tenso de novo—. Saville, tens medo à verdade?

—Não! -exclamou ele imediatamente, quase antes que ela pronunciasse a última

palavra.

—Bem! -continuou ela—. Então falemos disto sem jogos de palavras nem manobras

para evitar o que é menos que agradável. Onde conheceu a senhorita Zakhari?

—Como? —Ele se sobressaltou.

—Saville! -exclamou ela com impaciência—. É um ministro do governo de meia

idade e ela é uma mulher egípcia de quantos anos? Trinta e cinco? Seus mundos são

muito diferentes, e menos ainda se cruzam.

É deputado pelo Manchester em um país tecedor de algodão. Ela é de uma zona do

Egito onde se cultiva algodão. Não se faça de idiota!

Ryerson suspirou e despenteou seu cabelo espesso e abundante. —É claro que ela

ficou em contato comigo pelo do algodão - disse com tom lento—. E claro que tratou de me

persuadir para que reduzisse a indústria no Manchester e investisse para que o Egito

fiasse e tecesse seu próprio algodão. O que esperaria de uma patriota egípcia?

O olhar do Ryerson era franco e desafiante, seus olhos tão intensamente escuros

como se ele mesmo fosse egípcio.

Vespasia sorriu.

—Não tenho nada contra os patriotas, Saville, nem contra seus argumentos a favor

da justiça. Se eu tivesse estado em seu lugar quero acreditar que teria tido a paixão e a

coragem de fazer o mesmo. Mas, por louvável que seja a causa, há certos atos que não

está justificado cometer para defendê—la.

—Ela não matou ao Lovat!

Era uma simples afirmação.— Acredita -o ou sabe? -perguntou ela.

Sustentou seu olhar sereno e cinza prateado, e foi o primeiro em piscar.

— Acredito, Vespasia. Jurou—me isso, e se duvidar dela então duvido de tudo o que

amo e entesouro, o que faz a vida valiosa para mim!

 A dama tomou ar para falar, mas se deu conta de que não podia dizer nada que

ajudasse ou respondesse às necessidades do Ryerson. Era um homem ardente que,

depois de reprimir muito tempo sua natureza, estava profundamente apaixonado. Ascomportas do dique tinham arrebentado.

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—Então, quem o fez? -perguntou Vespasia—. E por que?

—Não tenho nem idéia —reconheceu ele em voz baixa—. Mas antes que insinue

que o fizeram para me implicar, me desonrar e me fazer perder o cargo, dir-lhe-ei que isso

com muita dificuldade beneficiaria a indústria do algodão no Egito.

Qualquer ministro que me sucedesse teria menos possibilidades de lhes oferecer

ajuda.

Não há um só homem que tenha o poder de mudar toda uma indústria, queira ou

não.

 Ayesha sabe isso agora, embora a princípio acreditou que poderia me persuadir

para que começasse a reforma.

—Então, por que continuava em Londres?

Vespasia não tinha outra alternativa que ser cruel se quisesse ser de mais ajuda

que dando um consolo que, quando muito, duraria enquanto permanecesse na sala com

ele.

—Porque eu queria que ficasse - respondeu Ryerson. E acrescentou com indecisão,

como se em certo sentido temesse que ela duvidasse dele—: E acredito que ela me ama

tanto como a amo eu.

Para seu grande assombro ela acreditou, ou ao menos não duvidou que fosse

sincero a respeito de seus próprios sentimentos.

Não estava tão segura do que sentia Ayesha, mas ao olhar ao Ryerson frente a ela,

viu tanta paixão nele, tal poder de convicção, uma vontade tão férrea, que não lhe custou

acreditar que uma jovem descobrisse que as barreiras da idade, da cultura e inclusive da

religião podiam desaparecer.

Também se surpreendeu a si mesma pensando que Ryerson deixaria que o

levassem a julgamento, e inclusive condenassem, antes que traí-la.

Com ele sempre era ou tudo ou nada; fazia tempo que o conhecia, e os anoshaviam agudizado seu caráter em lugar de suavizá—lo.

Era mais sábio, mais amadurecido em seu julgamento e em seu temperamento que

quando era jovem, mas, no fim de contas, seu coração sempre controlaria sua cabeça.

Tinha madeira de cruzado, de mártir.

O que averiguaria Pitt na Alexandria? Provavelmente nada importante. Era uma

cidade onde não conhecia ninguém, onde até o idioma lhe era desconhecido, assim como

as crenças, ou as amplas e intrincadas conexões de quem conhecia quem, de dívidas e deódios, de relações, dinheiro e religião.

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 A menos que Ayesha, ou o próprio Lovat, tivesse sido extraordinariamente

negligente, haveria pouco que averiguar para um policial estrangeiro que nem sequer

estava seguro do que procurava.

O que lhe levou a perguntar-se porque Victor Narraway o tinha enviado. Tinha

interesse em que investigasse na Alexandria ou em afastá—lo de Londres?

Esteve com o Ryerson outro quarto de hora, mas não se inteirou de nada mais que

fosse de utilidade.

Não mentiu lhe oferecendo ânimos, limitou-se a lhe perguntar se havia algo que

quisesse que lhe enviasse para aliviar seu desconforto.

—Não, obrigado - disse ele imediatamente—. Tenho tudo que necessito. Mas lhe

agradeceria imensamente que procurasse alguma comodidade a Ayesha.

Que se assegurasse de que tenha lençóis limpos, artigos de toucador. Eu... Outra

mulher teria...

—É claro - respondeu Vespasia antes que ele terminasse—. Duvido que me deixem

vê-la, mas me ocuparei de lhe fazer chegar esses artigos.

Posso imaginar o que quereria eu, e me encarregarei de que o façam chegar.

O rosto do Ryerson se inundou de gratidão.

—Obrigado. —Falhou-lhe a voz de emoção—. Estou profundamente...

—Por favor! -disse ela subtraindo importância—. Não é nada. —Já estava em pé—.

Já os ouço vir me buscar.

Vespasia o olhou nos olhos. Queria acrescentar algo mais, mas as palavras

morreram em seus lábios. Sorriu e se voltou para ir-se.

Vespasia precisou outro dia e uma investigação exaustiva, de novo questão de

reclamar discretamente favores passados, adular um pouco e demonstrar muito encanto,

para averiguar onde podia achar Victor Narraway e conseguir se encontrar com ele.

Tratava-se de uma recepção a que a haviam convidado e que ela tinha declinado.Ter que inventar a essas alturas uma desculpa e aceitar era uma situação embaraçosa que

detestava.

Devido ao desagradável que tinha sido, acreditou que podia escolher entre vestir-se

com um gosto excelente, mas discreto, algo convencional de uma cor suave, ou ser o mais

ousada e escandalosa possível, desafiando qualquer comentário sobre sua mudança de

parecer em relação ao convite.

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Poderia falar com o Narraway com menos observações das pessoas ou

interrupções se optava pelo primeiro, mas vestisse o que vestisse, não era uma pessoa

que passasse despercebida.

Inclinou-se pelo segundo, e pediu à criada que tirasse um vestido que tinha

encomendado em um momento de extraordinária segurança em si mesma, de uma seda

azul anil intenso de tão fina textura que parecia flutuar.

O pronunciado decote e a cintura estavam bordados com fio prateado e pérolas em

um intrincado motivo medieval.

Em pé frente ao espelho, surpreendeu-se do efeito espetacular. Normalmente se

inclinava pelo comedimento aristocrático; cetins de tons neutros e renda que

harmonizavam com seu cabelo prateado e seus olhos claros.

Mas esse vestido era magnífico, cativante em sua simplicidade de linhas, e a cor

escura era como um sussurro na noite, elementar e misterioso.

Chegou tarde à recepção, causando considerável rebuliço. Não tinha por costume

chamar tanto a atenção. O atraso se devia mais a um engano de previsão que a um

propósito deliberado.

Tinha saído com pouco tempo de casa porque não queria chegar logo, e tinha

indicado ao cocheiro que tomasse uma rota ao redor do parque que, por desgraça, tinha

estado bloqueada por causa de um acidente de tráfego, uma carruagem tinha perdido uma

roda ou algo parecido, de modo que tinham terminado chegando tarde.

Entrou sozinha na sala e se produziu um silêncio momentâneo. Várias pessoas, a

maioria homens, ficaram olhando—a abertamente. Ela se perguntou por um instante se

tinha cometido um engano de cálculo e se equivocara de vestido depois de tudo. Não

levava mais jóias que uns brincos de pérola. Talvez estivesse muito pálida ou muito

descolorida para levar um tom tão intenso?

Viu o príncipe de Gales, que abriu muito seus olhos azuis, de assombro e a seguirde admiração. A seu lado, um jovem que ela não conhecia pigarreou, mas seguiu

olhando—a fixamente.

 A anfitriã se aproximou para saudá—la e ao cabo de cinco minutos lhe

apresentaram ao príncipe. Ao parecer, tinha expressado seu desejo de falar com ela.

Conheceram-se fazia anos, mas mesmo assim era uma ocasião muito formal.

Ninguém podia dar nada por descontado.

Transcorreu uma hora antes de que conseguisse localizar ao Victor Narraway econversar com ele sem que ninguém os ouvisse.

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—Boa noite, Victor.

Vespasia marcou o tom da conversa que se propunha sustentar. Não o conhecia

bem, mas estava à corrente de quem era e do alto conceito em que o tinham nas mais

altas esferas políticas, tanto por suas virtudes como por suas limitações.

Mas era um homem muito reservado e de sua verdadeira identidade sabia muito

pouco.

Importava-lhe por Ryerson e, ainda mais, tinha que reconhecê-lo, porque em suas

mãos estava grande parte do futuro do Thomas Pitt.

—Boa noite, Lady Vespasia -respondeu ele, com um vislumbre de diversão em seus

olhos escuros, mas também de cautela.

Narraway tinha muita experiência para acreditar que esse encontro se tratasse de

uma casualidade.

Não havia tempo a perder; alguém podia unir-se a eles em qualquer momento.

—Ontem fui ver o Saville Ryerson -explicou ela, e não viu nenhuma mudança em

sua expressão—. Não vai dizer lhe nada, em parte porque acredito que não sabe nada.

Não tem sentido que a mulher se propusesse arruiná—lo e esperasse que quem

substituísse fosse mais favorável à independência econômica do Egito.

Tal pessoa não existe, e ela deve ter sido tão consciente disso como nós.

—É claro -concordou ele.

Se estava intrigado pelo que ela queria dele, não ia dar mostras disso. mostrou-se

educadamente interessado, um homem solícito com uma senhora de maior status, mas

que carecia de importância para ele.

Isso a irritou.

—Victor, não me trate como a uma néscia! -disse em voz baixa, mas com uma

dicção tão clara que cortava—. Sei que enviou ao Thomas a Alexandria. Para que? A

primeira resposta que me ocorre é para mantê-lo afastado de Londres.Ficou satisfeita ao ver como ficava rígido de forma tão imperceptível que ela não

teria sabido dizer que músculo tinha movido, só que tinha aumentado a tensão de seu

corpo.

—Lovat e essa tal Zakhari se conheceram em Alexandria - respondeu ele. Suas

palavras eram inocentes, mas lhe sustentou o olhar medindo, tratando de ver o que queria

dele—. Seria negligente de nossa parte não fazer indagações ao menos.

—Para averiguar o que? —Vespasia arqueou ligeiramente as sobrancelhas—. Quetiveram uma aventura amorosa? Isso se dá por assentado. Ryerson a ama, e imagino que

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não quer saber nada de seus antigos admiradores, mas não é tão ingênuo para acreditar

que não houve nenhum.

Interrompeu-se quando uma mulher miúda e magra vestida de seda pêssego

passou junto a eles, agarrada ao braço de um cavalheiro a quem lhe clareava o cabelo.

Narraway sorriu para si, sua compostura perfeita.

Vespasia lamentou não conhecê-lo melhor. Dava-se conta divertida de que, se fosse

mais jovem, ele a teria achado atraente. A inacessibilidade dele era em si mesmo uma

provocação.

Não havia emoção atrás da fria inteligência cuja natureza ela não conhecia. Havia

coragem moral ou espiritual? A resposta era importante, devido ao poder que tinha sobre o

Pitt.

—Se estiver considerando a possibilidade de que houvesse algum escândalo pelo

que Lovat poderia lhe haver feita chantagem -continuou ela quando voltaram a deixá—los

sós—, então poderia ter escrito uma carta às autoridades britânicas para que o

averiguassem por você e lhe informassem devidamente.

Eles falam o idioma, conhecem a cidade e sua população, e têm contatos com o tipo

de pessoas que informam tais coisas.

Narraway respirou fundo para discutir com ela, depois a olhou mais intensamente

nos olhos e mudou de opinião.

—É possível - concedeu—. Mas me responderiam só o que eu lhes perguntasse,

enquanto que Pitt pode averiguar outras coisas, respostas a perguntas que não me

ocorreram.

— Ah...

Vespasia acreditou, ao menos nisso. Havia muito mais que não pensava lhe dizer,

mas se ela tivesse sido capaz de lhe surrupiar, não teria sido bom em seu trabalho, e

semelhante pensamento suscitaria nela um medo profundo e pertinaz.Narraway esboçou um sorriso. Possuía um encanto que a surpreendeu. Pela

primeira vez se perguntou se tinha amado a alguém o bastante intensamente para

desprender-se dessa grossa capa de autoproteção que o rodeava, e se fosse assim, que

tipo de mulher tinha sido.

—É claro, você está investigando pessoalmente ao Ryerson e às demais pessoas

relacionadas com o Lovat, ou tem a alguém fazendo-o - afirmou a dama—. Queria saber

se essa outra pessoa é mais capaz de investigar em Londres do que é capaz Thomas em Alexandria.

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Não o expôs como uma pergunta porque sabia que ele não responderia.

O sorriso do Narraway permaneceu imutável, mas aumentou a tensão de seu corpo,

talvez lhe custasse manter-se perfeitamente sereno.

—É um assunto delicado -manifestou em voz tão baixa que ela com muita

dificuldade o ouviu—. Estou totalmente de acordo com você em que, a julgar pelo que

sabemos agora, não tem sentido. Lovat não era ninguém. Pode ser que Ayesha Zakhari

fosse vulnerável à chantagem, mas duvido seriamente que o que um homem como Lovat

pudesse dizer a Ryerson mudasse os sentimentos deste para ela.

Seria muitíssimo mais provável que Lovat terminasse acusado, ou expulso

simplesmente de seu cargo no corpo diplomático, e incapaz de achar outro emprego em

alguma parte. Não há dúvida de que também lhe fariam o vazio em seu clube.

Já tinha feito para granjear-se inimigos mais que suficientes. Também o patriotismo

da senhorita Zakhari é bem compreensível, mas até no suposto de que pudesse afetar à

política britânica no Egito, denota uma ingenuidade que uma mulher inteligente dificilmente

teria conservado muito tempo uma vez aqui em Londres.

—Exato - concordou Vespasia, atenta a cada matiz de seu rosto.

—Portanto - concluiu ele sombrio em apenas mais que um sussurro, quase um

chiado — , vejo—me obrigado a me perguntar o que é isso tão profundo pelo qual vale a

pena cometer um assassinato e acabar na forca, que não consideramos ainda.

Vespasia não respondeu. Tinha tratado de evitar esse pensamento, mas de repente

se erguia no horizonte de sua mente tão escuro e inevitável como no do Victor Narraway.

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Capítulo 8 

Pitt estava formando uma impressão cada vez mais clara da Ayesha Zakhari, assim

como da gente e das questões políticas que a tinham motivado.

Mas em pé junto à janela do quarto do hotel enquanto contemplava a vasta noite

balsâmica, com o intenso aroma de especiarias e a sal que flutuava no ar, caiu na conta

com um sobressalto de que nunca tinha visto um retrato seu.

Teria a tez morena, naturalmente, e se imaginava sua beleza, porque tinha dado por

assentado que ganhava a vida com ela.

Mas enquanto contemplava o mar e as trepadeiras que se agitavam ligeiramente na

brisa, e levantava a vista para a abóbada celestial, pálida por causa das estrelas, pensou

nela de forma diferente.

 Ayesha se tinha convertido em uma pessoa inteligente e com força de vontade,

alguém que lutava por princípios com os que ele podia simpatizar facilmente.

Como se teria sentido ele se fosse à Inglaterra e não o Egito a ocupada, e

virtualmente governada, por uma nação não só estranha em seu idioma e seus traços

físicos, mas também em suas crenças e em seu patrimônio, uma nação relativamente nova

que tinha sido civilizada, que construía, escrevia e sonhava quando sua própria gente

continuava sendo selvagem? O vento lhe trouxe o som de umas risadas, uma voz

masculina e logo outra feminina, e um instrumento de corda, cheio de curiosos semitons.

Tirou a jaqueta; até a essa hora o ar era tão quente que com a camisa de algodão

tinha mais que suficiente. Tinha posto -a para jantar como uma formalidade.

Olhou ao redor, tratando de gravar tudo em sua mente para poder descrever ao

Charlotte, os sons tão diferentes dos da Inglaterra, a agradável carícia do ar na pele quase

úmida, o aroma intenso, a suor, às vezes quase viciado, e, é claro, as onipresentesmoscas.

O vento não era cortante, soprava, mas bem entorpecido, disfarçando de

tranqüilidade o perigo, ocultando o ressentimento atrás dos rostos sorridentes.

Pensou nas enchentes e enchentes de pessoas que tinham chegado aí ao longo

dos séculos como soldados, conquistadores, religiosos, exploradores, mercados ou

colonos. Como cada um deles tinha sido acolhido pela cidade, instalando-se nela e

trocando sua natureza.

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Nesses dias lhes tocava os ingleses, inconfundivelmente estrangeiros com sua pele

pálida e voz anglo—saxã, suas costas rígidas e suas idéias inamovíveis sobre o bem e o

mal.

Era ao mesmo tempo admirável e absurdo. Embora, acima de tudo, era

imensamente incongruente.

Tratava-se de uma cidade egípcia e eles não tinham nenhum direito a estar ali a

menos que os convidassem. Pensou no Trenchard e seu manifesto amor por essa terra e

seus habitantes.

Depois de acompanhá-lo ao bazar, tinha-lhe falado um pouco de sua vida ali. Ao

que parecia, já não conservava parentes próximos na Inglaterra, e a mulher que tinha

amado, embora não se casasse com ela, era egípcia.

Falou dela só brevemente. Era muçulmana, de fato a filha de um imam, um de seus

homens Santos. Tinha morrido fazia menos de um ano em um acidente do qual Trenchard

não quis falar e, naturalmente, Pitt não o tinha pressionado.

Junto à janela, Pitt se sentia envolvido em um torvelinho de sentimentos confusos,

sem estar preparado ainda para ir-se à cama porque sabia que não poderia conciliar o

sono.

Entendia muito bem a Ayesha, seu patriotismo, sua indignação ante a forma em que

roubavam a sua gente, a pobreza e a ignorância em que a mantinham, e depois em

Londres, com o Ryerson, o conflito de lealdades.

Mas a tinha levado isso a cometer um assassinato? Pitt ainda não tinha descartado

que assim fosse. Se não tinha sido ela, então quem?

Na manhã seguinte começaria a averiguar todo o possível sobre o Edwin Lovat.

 Ainda devia haver ali, pessoas que o tinham conhecido e que seriam mais vitais,

mais observadoras e talvez mais sinceras que os documentos escritos.

Retirou-se da janela e se preparou para deitar-se.Pitt não demorou muito a descobrir exatamente onde tinha passado Lovat a maior

parte de seu tempo, e foi encaminhar-se ali quando cruzou um bazar de tapetes.

Era uma rua de barro endurecido de uns doze metros de largura, com um telhado à

altura do terceiro piso, construído com grandes vigas de madeira que a percorriam de um

extremo ao outro e madeiras soltas no meio, de modo que projetava uma sombra

salpicada e a franjas sobre o chão.

Por toda parte havia toldos: nas portas, nas janelas, sobre paus como os que secolocam horizontalmente para pendurar deles bandeiras.

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Havia muitíssimas pessoas sentadas por ali, quase todos homens, com fardos de

roupa, tapetes enrolados, objetos de latão e magníficos narguilés dos quais se erguia

languidamente fumaça.

Preponderavam os vermelhos —escarlate, carmim, carmesim, terracota—  e os

crema, os quentes tons terra e o negro.

O ruído e a cor o invadiam tudo no calor.

Pitt caminhava pelo centro da rua, tratando de não dar a impressão de que estava

ali para comprar, quando se produziu uma refrega diante dele e vozes elevadas em cólera.

 A princípio acreditou que era um simples regateio que lhes tinha ido das mãos.

Depois caiu na conta de que havia ao menos meia dúzia de homens implicados, e

que o ambiente que se respirava era mais desagradável que o de uns meros curiosos

olhando uma briga.

Deteve-se. Se realmente se tratava de uma refrega, não queria ver-se apanhado

nela. Era preciso que saísse dos limites da cidade para dirigir-se ao povoado onde estava

o acampamento militar no qual tinha servido Lovat.

 Achava-se no leste, para o ramal do delta do Nilo mais próximo e o canal da

Mahmudiyya, do outro lado do qual estava Cairo e, mais à frente do deserto, Suez.

Não podia permitir-se ver-se apanhado em uma rixa local, e se se tornasse

desagradável, era o dever da polícia dali intervir, pois ele carecia de autoridade.

Voltou sobre seus passos. Sabia que havia outro caminho se tomasse a rua

paralela. Era mais longo, mas nessas circunstâncias era preferível.

 Avivou o passo, mas o ruído a suas costas aumentou. Voltou-se para olhar. Dois

homens com túnica longa discutiam, agitando os braços e gesticulando, aparentemente

pelo preço de um tapete vermelho e negro aos pés de ambos.

 Atrás dele se apinhava um grupo de homens, também intrigados por ver que se

devia o barulho.Pitt se voltou de novo para continuar, mas a rua já estava bloqueada. Teve que

fazer-se a um lado para não ver-se apanhado no meio. Desenrolaram outro tapete, lhe

impedindo o caminho por completo. Alguém gritou o que parecia uma advertência.

Elevaram-se vozes ao redor dele, mas não entendeu nada.

Por cima de sua cabeça, as vigas escuras projetavam uma sombra parcial, mas o

calor seguia sendo intenso devido a não correr o ar.

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O pavimento parecia abrasar sob seus pés e o aroma de lã, incenso, especiarias e

suor era muito forte no ar imóvel. Picou-lhe outro mosquito ao qual deu imediatamente um

tapa.

Um jovem corria gritando. Ouviu-se um disparo e se produziu imediatamente um

silêncio, seguido de uivos de cólera.

Parecia haver polícia de algum tipo, quatro ou cinco homens, ao fundo do bazar, e

outros dois a uns metros de distância.

Eram europeus, provavelmente britânicos.

 Alguém jogou um recipiente metálico, que golpeou a um dos policiais na têmpora.

Este perdeu um pouco o equilíbrio, pego por surpresa.

Ouviram-se gritos que eram inconfundivelmente de aprovação e fôlego. Pitt não

precisava saber o idioma para entender seu significado ou ver o ódio nos rostos barbudos,

a maioria com turbante, morenos e mais africanos que mediterrâneos.

Tratou de afastar-se da crescente violência e se chocou com um montão de tapetes

que balançaram.

Voltou-se rapidamente para impedir que caíssem, segurando-os com as duas mãos

e afundando os dedos no duro algodão, mas foi em vão.

Viu-se impulsionado para diante, perdeu pé, e um momento depois estava

escancarado sobre um montão de tapetes que caíam rodando ao chão.

Os homens corriam, as túnicas se agitavam. Ouviram-se mais gritos, o ruído de aço

contra aço e mais disparos.

Tratou de levantar-se e tropeçou com uma vasilha de argila, que rodou até outro

homem e lhe fez perder o equilíbrio. Este caiu pesadamente de costas, amaldiçoando

furioso em inglês.

Pitt ficou em pé e correu para o homem, que continuava deitado, aparentemente

aturdido. Pitt lhe estendeu uma mão para o ajudar a levantar-se e então recebeu um golpemuito forte por detrás, que o mergulhou na escuridão.

Despertou deitado de barriga para cima, com a cabeça a ponto de estalar. Achava

que só tinham transcorrido uns momentos desde que caíra no bazar de tapetes, mas ao

abrir os olhos viu que o teto era de um branco sujo e quando se moveu ligeiramente viu

paredes a seu redor.

Não havia rastro de vermelho nem das cores intensas do algodão, só linho a raias

ocres e negras aglomerado em um canto.

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Sentou-se muito devagar, um pouco enjoado. O calor era sufocante, e por toda

parte havia moscas, às que em vão dava tapas.

 Achava-se em um pequeno aposento e o vulto de roupa era outro homem. Havia

uma terceira pessoa contra a parede do fundo e uma quarta sob a alta janela de barrotes,

atrás da qual se via um quadrado de céu azul abrasador.

Voltou a olhar aos homens. Um era barbudo, levava turbantes e tinha ao redor do

olho esquerdo um grande hematoma, com aspecto de ser doloroso.

O segundo estava barbeado salvo por um longo bigode negro. Pitt supôs que era

grego ou armênio. O terceiro lhe sorriu, sacudindo a cabeça e apertando os lábios.

Estendeu-lhe um cantil de couro, convidando-o a beber.

—Lacheim -disse com ironia—, Bem—vindo.

—Obrigado -respondeu Pitt, ao mesmo tempo que aceitava a água.

Tinha a boca seca e a garganta irritada. Um árabe ou turco, um grego ou armênio,

um judeu, e ele, um inglês. O que estava fazendo no que parecia um calabouço?

Voltou-se devagar, olhando para a porta. Não havia cabo.

—Onde estamos? -perguntou, bebendo outro gole de água.

Não devia exceder-se. Podia ser toda água que tinham. Devolveu o cantil ao

homem.

—Inglês - exclamou o judeu com perplexo regozijo—. O que fazia brigando com a

polícia inglesa em um motim? Você não é um dos nossos!

Todos o olhavam com curiosidade.

Pouco a pouco, Pitt compreendeu que sua torpe queda devia ter parecido um

assalto deliberado. Tinham-no detido como parte dessa manifestação de aversão contra a

autoridade britânica no Egito.

Ele tinha percebido o ressentimento, a cólera que se cozia a fogo lento sob a

superfície desde o segundo ou terceiro dia de sua estadia ali.Começava a dar-se conta de quão estendido estava, e o fino que era o verniz da

cotidianidade que o ocultava a simples vista.

Talvez tivesse sido um golpe de sorte que o tivessem encerrado ali, se soubesse

aproveitá—lo. Mas devia pensar na resposta adequada.

—Pude vislumbrar outra versão dos fatos -respondeu—. Conheço uma mulher

egípcia em Londres. —Devia tomar cuidado em não cometer nenhum engano. Se o

pilhavam mentindo, podia lhe custar muito caro—. Ouvi—a falar da indústria do algodão. —

Viu como o semblante do árabe se escurecia—. Tinha bons argumentos a favor de instalar

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as fábricas aqui em lugar de na Inglaterra -continuou, sentindo—a pele ardida e

percebendo no ar o aroma de suor e medo.

Tinha as mãos úmidas.

—Como te chama? -perguntou o árabe bruscamente.

—Thomas Pitt. E você?

—Musa. Isso é suficiente para você —foi a resposta.

Pitt se voltou para o judeu.

— Avram -respondeu com um sorriso.

—Cyril -disse o grego, lhe dando também seu nome de batismo.

—O que vão fazer conosco? -perguntou Pitt.

Seria possível enviar uma nota ao Trenchard? E mesmo que pudesse, estaria

disposto Trenchard a ajudá—lo?

 Avram sacudiu a cabeça.

—Soltarão você porque é inglês -disse—, ou lhe faram com resolução por trair aos

teus.

Em qualquer caso, por que atacou à polícia? Assim vai conseguir que construam as

fábricas de algodão aqui! —Não se apagou o sorriso de seus lábios, mas havia receio em

seus olhos.

Os outros dois observavam, sem saber o que pensar dele.

Pitt lhe devolveu o sorriso.

—Não ocorreu assim -admitiu—. Tropecei com um tapete.

Houve um momento de silêncio absoluto, depois Avram estalou em gargalhadas e

ao cabo de um instante os outros dois o secundaram.

Mas seguiam sem formar uma opinião dele. Ali havia algo mais que aprender, além

de sobrevivência, e Pitt sabia.

Perfeitamente podiam pensar que o tinham metido ali para que identificasse aoslíderes de um conflito em potencial. Não era desatinado que na Alexandria houvesse um

equivalente da Brigada Especial britânica.

Não devia fazer perguntas, salvo sobre a Ayesha, e talvez também sobre Lovat,

embora Lovat se fora dali fazia doze anos.

Cada vez lhe parecia mais importante não só averiguar os fatos, mas entendê—los,

embora não teria podido justificá—lo facilmente ante o Narraway se lhe tivesse perguntado

a razão.Os três homens esperavam que falasse. Devia responder com convicção.

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—Tropeçou com um tapete -repetiu Avram assentindo devagar, ainda com um brilho

de brincadeira no olhar —. Pode ser que acreditem em você. Só é uma possibilidade.

É importante sua família?

— Absolutamente - respondeu Pitt—. Meu pai trabalhava na propriedade de um

homem rico, assim como minha mãe. Os dois estão mortos.

—E o homem rico?

Pitt deu de ombros, recordando vividamente.

—Ele também está morto. Mas se comportou bem comigo. Educou—me com seu

filho para que lhe servisse de estímulo. Não podia derrotá—lo o filho de um criado -

acrescentou para justificar sua perfeita dicção.

Provavelmente conheciam o bastante bem aos ingleses para distinguir uma classe

social de outra.

Os dois o observavam, Cyril com profundo cepticismo. Musa com uma hostilidade

mais manifesta. No exterior começou a ladrar um cão. Ali dentro parecia fazer ainda mais

calor. Pitt sentia como lhe escorregava o suor pelo corpo.

—E o que está fazendo na Alexandria? -perguntou Musa, em voz baixa e um pouco

áspera—. Não está aqui só para ver se queremos fábricas de algodão, e não veio sem

nenhuma razão!

Era um convite a justificar-se, talvez uma advertência.

Pitt decidiu adornar um pouco a verdade.

—É claro que não —acessou—. Um diplomata britânico e antigo soldado foi

assassinado. Esteve um tempo destinado aqui, faz doze anos.

 Acreditam que o matou uma mulher egípcia em Londres. Pagaram—me para que

demonstre que ela não o fez.

—Policial! —zombou Musa, movendo-se ligeiramente como se fora levantar-se.

—Pagam à polícia para que demonstre que alguém é culpado, não que não é! -replicou Pitt—. Ao menos, assim funciona em Londres! E não, não sou policial. Se o fosse,

não acham que já teria saído daqui?

—Estava inconsciente quando o trouxeram - indicou Avram. — A quem ia dizer.

—Há um guarda aí fora? -Pitt indicou a porta com a cabeça.

 Avram deu de ombros.

—Provavelmente, embora ninguém acredita que vamos sair pela força, o que é uma

lástima.Pitt olhou a janela com os olhos entrecerrados.

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Cyril se levantou, aproximou-se da janela, e puxou de forma experimentada do

barrote de no meio.

Voltou-se e olhou ao Pitt furioso, com uma careta ligeiramente zombadora nos

lábios.

—Para sair daqui é preciso cérebro, não força -observou Musa—. Ou dinheiro. —

 Arqueou as sobrancelhas interrogante.

Pitt entendeu a insinuação. Valia a pena gastar o que tinha, se ainda o conservava,

para ganhar aliados? Provavelmente não saberiam nada sobre a Ayesha ou Lovat, mas

poderiam lhe ajudar a averiguar algo, se havia algo que averiguar. E começava a duvidar.

Não afastaram o olhar dele; mal piscaram.

Pitt extraiu umas duzentas piastras, o bastante para alojar-se oito dias no hotel.

—Isso bastará! -exclamou Avram imediatamente.

 Antes que Pitt pudesse considerar a decisão, o dinheiro tinha desaparecido e Avram

esmurrava a porta com os punhos.

Musa assentiu, relaxando os ombros.

—Bem - disse com satisfação—. Sim, estupendo.

—São duzentas piastras! — As palavras saíram da boca do Pitt antes que parasse a

pensar —. Quero algo em troca!

Musa arqueou as sobrancelhas.

— Ah, sim! E o que quer?

 A mente do Pitt funcionava a toda velocidade.

— Alguém que me ajude a obter informação confiável sobre o tenente Lovat quando

serviu aqui com o exército britânico há doze anos. Não falo árabe.

—De modo que quer cinqüenta piastras de meu tempo? -concluiu Musa—. Bem,

não lhe posso dar isso se estiver no cárcere, não?

—Quero cento e cinqüenta piastras do tempo de alguém -respondeu Pitt—. Ouficamos todos aqui.

 Avram o olhou profundamente divertido.

—Está fazendo um trato? -perguntou interessado.

—Não sei - respondeu Pitt—. Me diga isso você.

 Avram dirigiu a vista para a janela, depois para a porta sem cabo. Olhou aos outros

arqueando as sobrancelhas interrogantes e comentou algo em árabe.

Mantiveram uma breve conversa.—Sim-disse por fim ao Pitt—. De acordo.

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Pitt esperou.

—Levarei-o ao vilarejo onde os soldados britânicos passavam seu tempo livre.

Falarei com os egípcios por você. - Estendeu uma mão—. Agora saiamos daqui, antes que

venham e façam algo desagradável.

Pitt não tinha nem idéia do que haviam dito ao guarda, mas viu como o dinheiro

trocava de mãos, e meia hora depois caminhava atrás de Avram por um beco nos limites

da cidade, de novo em direção leste.

Como de costume, as moscas e os mosquitos eram cruéis, mas se tinha

acostumado a lhes dar tapas sem pensar. Ainda lhe doía a cabeça do golpe que tinha

recebido no bazar.

Um aroma delicado e agradável se mesclou com o da imundície geral quando

passaram diante de um cozinheiro sentado no chão, com um ombro apoiado contra a

parede.

Levava uma túnica totalmente informe de linho de cor parda e sapatos de borracha.

 A seu lado tinha uma cesta de vime aberta cheia de tâmaras, cebolas e o que pareciam

uma cenoura e uma granada.

 Atrás dele havia uma grande jarra de barro com o pico quebrado, e, em frente, um

braseiro suportado sobre tijolos com uma panela também de barro em cima. Era a mescla

que havia dentro o que ele revolvia e a fumaça que se erguia dela o que apanhava aos

viandantes.

O homem tinha a tez escura como as tâmaras, uma barba curta e a cabeça tão bem

barbeada que parecia calvo.

Em suas feições havia uma harmonia e uma simetria que o faziam quase atraente.

Não prestou atenção ao Pitt e Avram, como se não tivessem mais interesse para ele

que os burros que passavam pela rua ou o dromedário que aguardava paciente na entrada

da praça. Avram ia vários metros adiante do Pitt e este apressou o passo para alcançá-lo.

Extraviar-se ali não só suporia uma perda de tempo, mas sim podia ser perigoso.

Desde o incidente no bazar de tapetes, era mais que consciente do aspecto

subjacente dos homens que pareciam falar ou regatear entre eles.

 Às vezes havia em seus rostos uma serenidade que ele percebia que mascarava

uma profunda cólera que não se atreviam a expressar abertamente.

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Era sua cidade e ele era um estrangeiro ali, um membro de uma raça estrangeira

que lhes tinha arrebatado o que lhes pertencia. Que os britânicos o utilizassem com muito

mais eficácia e tino era irrelevante.

 Avram se voltou para assegurar-se de que Pitt o seguia e lhe indicou bruscamente

por gestos que não ficasse atrás. Depois, caminharam depressa e em silêncio.

Era avançada a tarde e nessa época do ano os dias se cortavam com muita rapidez.

Precisavam chegar ao povoado mais próximo ao posto militar antes que se fizesse

de noite, e aparentemente ainda ficava um bom trecho.

Pitt avançava com esforço através do pó, pensando que qualquer vendedor do

mercado que descobrisse um ungüento para repelir os mosquitos se faria de oro em

menos de uma semana.

Deixaram atrás vários homens com camelos, uma anciã que ia a pé, um menino

com um burro e um grupo de meia dúzia de pessoas que era evidente que voltava de uma

celebração, cantando alegremente e agitando os braços ao ar.

Chegaram a um largo canal quando o sol se punha, enchendo o céu de uma suave

luz amarela.

Nas bordas, a escassa distância dos roucos, caminhavam pela água uns pássaros

de pico longo, uma meia dúzia que uns metros mais longe dobrava o número. As paredes

de pedras quadradas da maioria dos edifícios pareciam de bronze, e as palmeiras se

erguiam como absurdos tocados sobre pilares, ligeiras como penas no ar imóvel.

O único som que se ouvia era o que faziam seis bois ao beber, com as patas

inundadas na água, a cabeça baixa e uns grandes chifres polidos que pareciam dourados

ao sol poente. As sombras se faziam mais profundas, tornando-se vermelhas e violáceas.

—Ficaremos aqui -lhe informou Avram—. Comeremos algo e depois começaremos

a fazer perguntas.

Pitt assentiu, posto que não podia fazer nada mais. Até então não tinha averiguadonada que ajudasse a Ayesha Zakhari, por não falar do Ryerson.

Se o assassinato do Lovat era conseqüência de algo que tinha ocorrido no Egito,

Pitt não tinha nem idéia do que tinha sido, e só Avram, ou alguém como ele, podia

interrogar às pessoas que viviam aí.

Entraram em um dos edifícios mais baixos de tijolo cru. Saiu a recebê-los um

homem de uns vinte e cinco anos, com uma túnica a listas vermelhas e pardas, e um

turbante de um tom pálido, impossível de distinguir à luz das velas e de um pequeno fogo.

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Cruzou umas palavras com o Avram. Depois, este apresentou ao Pitt e explicou

quem era, e certamente o que queria.

 Avram se voltou para o Pitt.

—Este é Ishaq o Sharnoubi. Seu pai Mohamed era imam, um homem santo. Estava

muito à corrente do que ocorria aqui, assim como entre os soldados no passado.

Ishaq fazia recados para eles de vez em quando, e tem boa memória quando quer.

Entende muito melhor o inglês do que faz ver.

Pitt sorriu. Imaginava vividamente, embora talvez não com muita exatidão. Também

supunha que para os soldados britânicos um árabe jovem podia ser virtualmente invisível,

como um criado na Inglaterra.

 As línguas podiam ser igualmente imprudentes, apoiando-se no encargo de que eles

não repetiriam o que tinham ouvido dizer a seus superiores.

Inclinou-se para o Ishaq.

Ishaq se inclinou por sua vez, com os olhos tão escuros que pareciam negros à luz

piscante.

O entardecer tinha passado de amarelo pálido a um dourado brunido muito mais

escuro e a luminosidade tinha desaparecido. No exterior, os bois se moviam na água e Pitt

os ouvia chapinhar.

 Avram lhe tinha advertido de antemão que aceitasse a comida que lhe oferecessem

como um gesto hospitaleiro e não fizesse gesto de pagá-la.

Podia fazer um presente mais adiante quando não parecesse um pagamento, o que

teria sido um insulto.

Também lhe tinha advertido desnecessariamente que comesse e deixasse que o

 jantar transcorresse em paz antes de tocar o tema, embora fosse de forma indireta.

Pitt se sentou com as pernas cruzadas no chão, como lhe convidaram a fazê-lo, e

confiou em que ao cabo de uma hora fosse capaz de sustentar-se em pé quando sevoltasse a levantar.

Mas à medida que avançava o jantar, começou a duvidá-lo. Moveu-se nervoso um

par de vezes e viu o olhar de advertência que lhe lançou Avram.

Este parecia haver-se metido no papel, como se averiguar a verdade sobre o Lovat

fora tão importante para ele como para o Pitt.

Este se perguntou se se devia a sua curiosidade inveterada, a seu amor à verdade e

ao emprego de suas aptidões para desentranhá-la, ou se ele também esperava que lhefizesse algum presente mais adiante.

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Nesse momento, sentado muito incômodo na cálida noite a mais de mil e quinhentos

quilômetros de seu lar e de algo que lhe resultasse familiar, era importante para ele não

ofender ou decepcionar a esse homem singular, e ia ter que agir com discernimento para

obtê-lo.

Por fim comeram a última tâmara e, com um sorriso, Ishaq perguntou ao Pitt o que

havia lhe trazido para o Egito. Era o sinal de que estava preparado para lhe dar sua ajuda.

— Assassinaram a um soldado britânico em Londres - respondeu Pitt com tom

despreocupado, tratando o mais discretamente possível de desdobrar as pernas e não

refletir em seu rosto a dor de seus membros com cãibras. Deixou escapar um ofego que

converteu em tosse—. Não é importante em si mesmo, mas sua morte ameaça criar um

escândalo devido à pessoa a quem se acusa de ter disparado contra ele -continuou, e viu

como a perplexidade dava passagem à compreensão no rosto do Ishaq.

Depois de tudo, se assassinassem a um egípcio em Londres, que repercussão teria

na Alexandria? Assentiu educadamente—. Serviu aqui no exército faz uns treze anos  – 

acrescentou Pitt—. Na Inglaterra não foi possível averiguar grande coisa sobre ele. Quero

saber que reputação tinha, assim como se se granjeou inimigos entre seus companheiros.

Desta vez era melhor não mencionar a Ayesha. Sempre podia fazê-lo mais tarde, se

lhe parecesse oportuno—. Se chamava Edwin Lovat.

Ishaq esperou, com o olhar cravado no Pitt. Pitt nomeou o regimento e o posto do

Lovat, depois deu uma breve descrição de seu aspecto físico, tratando de não soar

desesperado ao não perceber nenhuma expressão no rosto do Ishaq. Ishaq assentiu.

—Recordo—os -disse sem revelar nenhuma emoção.

—Recorda—os? -observou Pitt, sem esperança.

Talvez para Ishaq os soldados britânicos fossem todos iguais.

E não era de estranhar. Pitt tinha sido treinado para observar e identificar, mas se

alguém lhe tivesse pedido que distinguisse a um egípcio de outro na rua, não teria podidofazê-lo.

— A esses quatro -replicou Ishaq—. Sempre estavam juntos. Loiros, de olhos azuis,

caminhando como... -se rendeu e levantou a vista para o Avram. Disse algo em árabe.

—Patos - lhe ajudou Avram.

—Sabe os nomes dos outros? -perguntou Pitt.

Em caso de não ser assim, podia perguntar aos oficiais atuais. Ao menos lhe diriam

isso. Não era nenhum segredo com que companheiros se relacionava um homem em seutempo livre.

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—Yeats - disse Ishaq pensativo—. E Garrick -acrescentou—. Não me lembro do que

falta.

—Isso é muito útil, obrigado -manifestou Pitt com energia—. Eram bons soldados,

Lovat em particular?

 Assim que o disse, pensou que era uma pergunta estúpida. Como podia ser "bom"

um soldado britânico aos olhos de um egípcio?

 Avram disse algo em árabe e Ishaq assentiu. Respondeu ao Pitt como se este lhe

tivesse perguntado a ele.

—Tinha coragem e cumpria as normas importantes.

De repente Pitt se sentiu interessado.

—E as outras? -perguntou em voz baixa.

Ishaq sorriu e seus dentes brilharam brancos à luz do fogo: depois ficou sério de

repente.

— As demais procurava infringir quando ninguém olhava -respondeu.

Pitt inalou ar para perguntar o claro.

 Avram o interrompeu.

—Era valente. Isso é bom. Um covarde não serve para nada.

E era obediente. Um soldado que não obedece as ordens é um perigo para seus

companheiros, não lhe parece? —Desta vez olhou ao Pitt.

—Certamente -concordou Pitt, não muito certo por que o tinha interrompido. Tinha

sido muito direto, ou era uma pergunta cuja resposta envergonharia ao Ishaq? Por que?

Fazia entendimentos fraudulentos de alguma classe? Algo imoral.

— Passavam suas folgas aqui no vilarejo ou iam a Alexandria? —inquiriu.

Ishaq estendeu as mãos.

—Depende dos dias que tivessem livres -replicou—. Há pouco que fazer aqui, mas

na cidade necessita-se de dinheiro para se divertir.—É uma cidade linda só para passear -comentou Pitt, com bastante sinceridade—.

Há muito que aprender da história e a cultura de outros muitos povos, não só o Egito, mas

também da Grécia, Roma, Turquia, Armênia, Jerusalém... - se deteve o ver a expressão do

Ishaq—. Eu não conhecia o Lovat - concluiu.

—Já o vejo - observou Ishaq secamente—. Os soldados de licença gostam de

comer e beber, buscar-se uma mulher e às vezes explorar um pouco, ir à caça de

tesouros, divertir-se.

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Parecia uma perda de tempo se alguém se permitia excluir todo o resto, mas

inofensiva. Não havia tocado o tema de infringir as normas, nem sequer de passagem.

Dava a impressão de que ia ser uma noite longa, mas ao menos Pitt já não tinha as

pernas cruzadas, embora o chão estivesse duro, e se tinha acostumado tanto aos

mosquitos que lhes dava tapas sem pensar.

—Fazendo o que? -perguntou Avram, mas com expressão aborrecida, como se só

quisesse encher o silêncio.

Ishaq deu de ombros.

—Indo caçar aos pântanos - respondeu com ar despreocupado—. Pássaros, e de

vez em quando em busca de crocodilos. Acredito que foram algumas vezes rio acima. Eu

me encarreguei de tudo.

—Para ver os templos e as ruínas? -perguntou Pitt, tentando manter o mesmo tom

que Avram.

— Acredito que sim - assentiu Ishaq—. Uma vez foram até o Cairo. Para ver as

pirâmides do Gizeh e todo o resto. —Sorriu—. Pegou—os uma tempestade de areia, ou

isso disseram. Mas a maioria das vezes ficavam por aqui.

Não valia a pena continuar, mas havia pouco mais que dizer para manter viva a

conversa. Pitt começava a perder a esperança de descobrir algo sobre o Lovat que lhe

revelasse sequer seu caráter, e menos ainda alguma pista de por que o tinham

assassinado.

Talvez tudo o que ia averiguar no Egito era que Ayesha Zakhari era uma patriota

muito culta e apaixonada e não uma mulher que utilizava sua beleza para dar uma vida de

luxos.

—Costumavam ir juntos, os quatro? -perguntou.

Possivelmente poderia localizar ao menos a um par desses outros homens e

averiguar mais coisas sobre o Lovat.—Quase sempre -assentiu Ishaq—. Não é muito seguro ir só por aí.

Então olhou ao Pitt intensamente, para ver se o compreendia sem ter que lhe

explicar letra por letra que os britânicos eram invasores, um exército armado em uma terra

estrangeira, e, como tais, eram logicamente objeto de muitos sentimentos de aversão,

alguns deles violentos.

Pitt o compreendia muito bem. Respirava-se no ambiente, notava-se nos olhares

furtivos que lançavam as pessoas, tanto homens como mulheres, quando achavam queninguém os olhava.

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Podia haver gratidão por havê-los resgatado economicamente, mas ninguém

gostava de sentir-se em dívida ou dependente.

Haveria simpatias e ódios individuais, como o amor do Trenchard por sua amante

egípcia.

Haveria certo respeito, certamente curiosidade, às vezes inclusive uma

compreensão paulatina.

Mas a cólera sempre estaria bordeando a superfície.

 A lembrança dos bombardeios da Alexandria a intensificava nesses dias, mas os

mesmos sentimentos deviam ter existido então, só que enterrados mais profundamente.

Guardaram silêncio uns minutos. O ruído dos bois movendo-se na água era

relaxante, um ruído constante, natural.

 A brisa noturna trazia um frescor que era agradável depois de um longo dia quente.

—É claro, também havia essa mulher -disse Ishaq, observando ao Pitt mais

atentamente do que aparentava—. Mas se alguém tivesse querido matá—lo por isso, o

teria feito então.

Era a filha de um homem rico, um homem erudito mas cristão. Não era o mesmo se

ela tivesse sido muçulmana. Isso teria causado problemas… muitos problemas. Era muito

cristão, o senhor Lovat.

Na escuridão da cabana seu semblante era inescrutável, mas Pitt percebia uma

dúzia de emoções diferentes em sua voz. Se Ishaq tivesse sido inglês, Pitt talvez teria

reconhecido—as, desenredando—as entre si, mas estava em uma terra estrangeira, de

uma cultura antiga e imensamente complexa, e falava com um homem cujos antepassados

tinham criado essa extraordinária civilização milhares de anos antes de Cristo, por não

falar do Império britânico.

De fato, os faraós tinham regido seu próprio império antes que nascesse Moisés, ou

de que Abraham fugisse da destruição de Sodoma e Gomorra. A terra debaixo dele era dura, o ar seguia sendo sufocante e quente, e ouvia as

bestas mover-se de vez em quando no exterior na noite estrelada, tudo era tão real como o

chão duro e o zumbido dos mosquitos e, entretanto, tinha uma sensação de irrealidade,

como se sua presença ali fosse um sonho.

Custava recordar que Saville Ryerson estava encarcerado em Londres e que

Narraway esperava que Pitt achasse o modo de impedir o escândalo.

—Muito cristão? -perguntou intrigado.

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—Sim -assentiu Ishaq, sem deixar transparecer suas emoções—. Ia a esse velho

lugar, o santuário junto ao rio. Adorava. Estava aborrecido porque era um lugar muito

santo, um santuário também para nós.

—Nós? -Pitt estava desconcertado—. Os muçulmanos?

—Sim. Antes que fosse —Ishaq se interrompeu. Avram o olhou com o rosto

sombrio. Ishaq cravou o olhar ao longe.

—Foi meu pai quem os enterrou a todos -explicou em voz tão baixa que Pitt mal

ouvia as palavras—. Recordo sua expressão durante os meses que seguiram.

Pensei que nunca o superaria. Talvez não o fez. Sonharia com isso o resto de sua

vida. Piorou pouco antes de morrer. -Tomou uma profunda e trêmula baforada de ar e

exalou devagar —. Minha irmã o cuidou, fez o que pôde para que sofresse o menos

possível, mas não pôde evitar que voltassem os fantasmas. —Fez uma careta e a emoção

lhe embargou a voz—. Falava com ela durante horas, não podia remediar, contar-lhe,

Tinha sonhos terríveis.

O sangue e os corpos arrebentados, cozidos como se fossem carne, os rostos

carbonizados até que não se podia discernir que tinham sido seres humanos. Eu lhe ouvia

gritar… -se interrompeu.

Pitt se voltou para o Avram, mas este sacudiu a cabeça.

Esperaram em silêncio.

—Um incêndio —revelou Ishaq por fim—. Trinta e quatro mortos, conforme puderam

contar nas cinzas. Ficaram apanhados dentro.

—Sinto muito -disse Pitt em voz baixa.

Tinha visto incêndios na Inglaterra; conhecia a devastação, o aroma de carne

queimada que perseguia a pessoa.

Ishaq sacudiu a cabeça.

—Meu pai está morto e também minha irmã. Avram pareceu surpreso.

—Não sabia!

Ishaq se mordeu o lábio e engoliu a saliva.

—Em Alexandria, um acidente.

—Sinto muito. — Avram sacudiu a cabeça—. Era muito bela -manifestou como se se

referisse a algo que ultrapassava ao olho humano.

Ishaq abriu a boca para dizer algo, mas por um instante não teve o domínio de simesmo para conter sua dor.

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Pitt e Avram guardaram silêncio. No exterior já tinha escurecido. Através da janela

aberta se viam as estrelas, muito nítidas no céu aveludado. O ar por fim era mais fresco.

 Ao cabo de uns instantes, Ishaq levantou o olhar.

— Acredito que o tenente Lovat também adoeceu no incêndio —comentou, de novo

com voz serena—. Pouco depois disso caiu doente. Disseram que eram febres. Parecia

haver-se estendido pelo acampamento. Enviaram—no a casa. Nunca voltei a vê-lo.

—Ficaram seus amigos? -perguntou Pitt.

—Não -replicou Ishaq com suavidade—. Todos se foram, por motivos diferentes.

Não sei o que foi deles. Destinaram—nos a outros lugares, suponho.

O Império britânico é muito grande. Talvez à Índia? Podem navegar até além do

Suez e descer esse novo canal até a metade da terra, não?

Era uma afirmação, não uma pergunta. Não havia nenhuma nota em sua voz que

implicasse dúvida.

—Sim —murmurou Pitt.

Confiava em localizar ao menos a um deles em Londres e não ter que realizar

interrogatórios por telégrafo através de algum oficial.

 Além disso, Ishaq tinha razão: Grã—Bretanha tinha acesso a meio mundo graças a

essa obra genial produto da negociação e engenharia, o canal de Suez.

Tendo em conta a vital importância do canal na economia e o domínio da lei em

todo o Império, com tudo o que isso implicava, era inconcebível que Grã—Bretanha

devolvesse algum dia a completa autonomia ao Egito.

O algodão só era uma minúscula parte de um grande vigamento. Como tinha

acreditado Ayesha Zakhari que podia ter êxito? O refém da dependência econômica era

muito valioso para entregá—lo.

Sentiu sobre ele o peso da escuridão, como se tratasse de desfazer um nó

intrincado e com cada fio que estirava só conseguisse apertá—lo mais.—Obrigado por sua hospitalidade - respondeu Pitt, inclinando a cabeça para o

Ishaq—. Tanto a comida como a conversa foram extremamente enriquecedoras. Estou em

dívida com você.

Ishaq ficou satisfeito; havia algo indefinível em sua expressão, e o ângulo de seu

corpo se via vagamente à moribunda luz das velas.

Permaneceram ali uns minutos mais e logo partiram, agradecendo uma vez mais.

De novo no caminho junto ao canal, em cuja superfície ondulada se refletia a luz dasestrelas, era difícil ver por onde iam, e Pitt se deu conta de quão cansado estava.

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Doía-lhe o corpo não só de ter permanecido tanto tempo sentado no chão, mas

também pelos hematomas que lhe tinham saído depois do incidente no bazar de tapetes, e

o martelava as têmporas dos golpes que lhe tinham dado a polícia.

Mais que nenhuma outra coisa, inclusive achar uma solução perfeita ao enigma da

morte do Lovat que exonerasse tanto ao Ryerson como a Ayesha, queria deitar-se em um

lugar brando e entregar-se a um sono profundo.

Seguiu ao Avram, guiando-se quase tanto pelo ruído de seus passos sobre a terra

seca como pela vista, durante outro quilômetro e meio pelo menos, até que quase se

chocou com ele quando chegaram a uma grande cabana solitária afastada da água.

 Ali lhes ofereceram hospitalidade a um preço que Avram pagou, atendo-se à

promessa de que Pitt contribuiria com sua parte quando voltassem para Alexandria e ao

Santo Estevão.

 Ao ritmo que estava gastando, Pitt ia ver-se obrigado a pedir ao Trenchard que lhe

subministrasse mais recursos, e que os reclamasse ao consulado e este ao Narraway.

Na manhã seguinte a temperatura era mais fresca que a do dia anterior. O ar tinha

uma luminosidade prateada longe da cidade, e entre a enorme via fluvial ao sul de

 Alexandria e o canal da Mahmudiyya que conduzia ao Nilo propriamente dito, os reflexos

da luz de primeira hora da manhã eram de uma beleza extraordinária.

 A escura silhueta dos camelos, com seu passo silencioso e oscilante, parecia um

sonho e não algo real.

Nesse dia Pitt tinha previsto ir às autoridades do quartel militar onde tinha servido

Lovat. depois de um café da manhã consistente em tâmaras e outras frutas, pão e um café

negro espesso que chegou em uma xícara um pouco maior que um vasinho, se pôs em

caminho.

 Avram o acompanhou, embora nessa ocasião sua presença fosse desnecessária.

Pitt tinha o forte pressentimento de que o fazia em grande medida para não lhe dara oportunidade de escapar sem cumprir com seus compromissos econômicos.

Embora não o tivesse expresso de forma tão insultante, velava por seu

investimento.

Depois de quase uma hora de intensas discussões com tom desanimado, Pitt se

achou ante um oficial magro de tez mogno que ao parecer tinha muito mau caráter e sentia

aversão pelos civis curiosos.

Permaneceram em pé um ao lado do outro em um pequeno alpendre resguardado,olhando para o pátio de instrução banhado pelo sol. Avram esperava fora.

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— A Brigada Especial? -disse Margason com desdém—. Uma espécie de polícia

especial! Santo céu! No que se está se convertendo o mundo? Nunca pensei que Londres

cairia tão baixo! —Olhou ao Pitt furioso—. Bom, o que quer? Não estou à corrente de

nenhum escândalo e, se assim fosse, resolveria cara a cara com a pessoa em questão,

não iria murmurando a suas costas.

Pitt estava cansado, dolorido e coberto de picadas de mosquitos. Não havia

nenhuma parte de seu corpo que não lhe doesse de um modo ou outro.

—Então, se tiver a desgraça de receber instruções de capturar a um espião a suas

ordens, saberei que não devo esperar nenhuma ajuda sua, senhor – disse com irritação, e

viu como Margason se ruborizava de cólera—. Entretanto - prosseguiu—, estou fazendo

indagações sobre um homem que foi assassinado em Londres.

Sua morte parece estar relacionada com o Egito, e o único dado que conhecemos

com certeza é que serviu neste quartel, fará uns doze anos.

Seria agradável poder limpar sua reputação de qualquer difamação com que possa

enfrentar-se seu advogado ante os tribunais, em lugar de simplesmente as negar às cegas,

o que com muita freqüência não inspira credibilidade.

Margason grunhiu. A antipatia se assentou com mais firmeza entre ambos, mas o

argumento era irrefutável, e independentemente do que sentisse pelo Pitt, defenderia a

honra de seu regimento.

—Como se chamava? -perguntou.

—Edwin Lovat -respondeu Pitt.

Em seguida, sentou-se com cuidado em uma das cadeiras, como se tivesse

intenção de ficar o tempo que fosse necessário para lhe surrupiar até a última palavra.

Em realidade, era uma cadeira dura e não particularmente cômoda. Se ressentiu

 justo nas zonas do corpo que o chão tinha deixado doloridas no dia anterior, por não falar

do catre onde tinha dormido toda a noite.—Lovat - repetiu Margason pensativo, ainda em pé—. Esteve aqui antes que eu

tomasse o comando, mas verei o que posso fazer. Garrick estava no comando então e

retornou.

Suponho que o achará em Londres. —Sorriu sarcástico—. Poderia haver-se

economizado a viagem! Ou não lhe ocorreu olhar nos expedientes? Que Deus ajude à

Brigada Especial se todos seus membros forem como você!

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—Não acreditamos na declaração de um homem se não foi corroborada, coronel

Margason -replicou Pitt com toda a serenidade que foi capaz—. Nem nos apoiamos

unicamente em informação militar.

 Assassinaram ao Lovat em circunstâncias extraordinárias e um ministro do governo

está comprometido. Não podemos nos permitir passar por cima nenhuma possibilidade.

Margason voltou a resmungar e seguiu cravando os olhos no pátio descascado e

muito pisoteado, rodeado de edifícios cor terra e areia.

—Não leio esse tipo de notícias nos jornais. Não tenho tempo. Há muito que fazer.

—Grunhiu um pouco. O sol era abrasador fora. — Aqui há muitos descontentes.

Mais de que acreditam em Londres, sentados em suas escrivaninhas. Um incidente

e poderíamos perder tudo!

—Já me dei conta - lhe deu a razão Pitt—. Ontem me vi envolvido em um incidente

desagradável no bazar de tapetes. Um agente britânico teve sorte de que não o

matassem.

Margason apertou os lábios.

—Tinha que acontecer. Assassinaram Gordon no Jartum, e seguimos sem havê-lo

resolvido.

O Mahdi maldito morreu, mas isso não significa grande coisa. Há fanáticos por todo

o país. Malditos loucos! —Tremeu-lhe ligeiramente a voz—. Matariam a todos se lhes

déssemos a oportunidade.

E você veio aqui para perguntar pela reputação de um soldado que serviu em

 Alexandria há doze anos e a quem assassinaram em Londres.

Santo céu, não são capazes de manter à margem a um maldito ministro do governo

sem ter que vir até aqui para me fazer perder o tempo com suas perguntas?

—Eu também perderia menos tempo se me falasse do Lovat - replicou Pitt—. Não

há nenhum oficial que lhe recorde com mais detalhe e mais honestidade que seuexpediente de serviço? A mulher acusada é alguém a quem conheceu quando esteve aqui.

—Seriamente? Ele a deixou plantada e lhe guardou rancor todos estes anos?

 Assombroso. Violou—a?

Margason falava com desdém, mas não parecia pessoalmente ofendido. Pitt não

estava certo sequer de se o desdém ia dirigido contra Lovat ou contra sua vítima.

—É habitual que os soldados violem às mulheres do lugar? -perguntou Pitt quase

com inocência—. Talvez se detivessem isso, teriam menos dificuldades em impedir queestalassem os ressentimentos.

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—Olhe, insolente - disse Margason zombador, voltando-se para ele com o corpo

tenso e a agilidade de um animal a ponto de saltar.

Pitt não se moveu.

—Sim? — Arqueou as sobrancelhas.

Margason se ergueu.

—Eu estava aqui naquela época, mas só era comandante. Não sei nada do Lovat

além de que era um bom soldado, nada excepcional. Cortejou a uma mulher daqui, mas,

conforme ouvi dizer, tudo partiu perfeitamente bem.

Só foi uma fantasia romântica de um jovem com o exótico. Ela certamente nunca

teve nenhuma queixa. Reformaram—no por invalidez.

—De que tipo?

—Nem idéia -respondeu Margason—. Febres. Ninguém prestou muita atenção

então. Todos esperávamos problemas. Foi pouco depois do incidente no santuário. Mais

de trinta pessoas morreram no incêndio, todas muçulmanas, mas o santuário também era

cristão e se exaltaram os ânimos. Temíamos que explodissem lutas religiosas.

O coronel Garrick desempenhou um papel decisivo. Sufocou-o imediatamente.

Ocupou-se do enterro, da cerimônia religiosa, de tudo.

Postou em um guarda no santuário. Depois disso, a todo que surpreendesse

tratando a um muçulmano com pouco respeito prendia—o.

—E houve mais incidentes? -perguntou Pitt, recordando o que havia dito Ishaq.

—Não - replicou Margason com hesitação—. Já o disse. Garrick dirigiu muito bem a

situação. Mas precisou usar muita habilidade e uma forte disciplina.

Um caso de febre que se curou dificilmente ia ficar gravado na lembrança em um

momento assim.

—É habitual reformar um homem por umas febres?

—Se a afecção for recorrente, é possível. Malária ou algo pelo estilo —Margasonsacudiu a cabeça—. Se o desejar, pode consultar a parte médico. Não tenho tempo para

procurar.

Que eu saiba, Lovat foi um bom oficial a quem enviaram a casa por motivos

médicos. Foi uma perda para o exército, mas tinha muito que fazer na Inglaterra. Fale com

quem quiser, mas não espalhe rumores e não nos faça perder tempo.

Pitt se levantou. Margason não ia dizer lhe nada mais e ele tampouco queria perder

tempo.

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 Agradeceu-lhe e se valeu da autorização que lhe tinha dado para falar com outros

homens.

Passou o resto do dia perguntando e escutando, e se fez uma idéia mais exata do

Lovat, sobretudo graças a um primeiro sargento magro e com o rosto curtido pelo vento, a

quem finalmente persuadiu para que falasse com franqueza.

Pitt teve que recorrer a suas lembranças do East End londrino, onde o primeiro

sargento tinha crescido, e oferecer uma descrição, um tanto sentimental, dos moles e o

lance de rio para Greenwich, mas ao final o homem se relaxou.

Passeavam devagar junto a um dos numerosos ramais do delta de um dos rios

maiores da África, a suave luz cor pêssego de um entardecer, quando o soldado falou do

Lovat.

—Eu pessoalmente não o suportava - disse com despreocupado desdém, seguindo

com o olhar um bando de pássaros negros que destacavam contra o céu luminoso—. Mas

não era mal soldado.

—Por que não lhe agradava? -perguntou Pitt intrigado.

—Porque era um hipócrita mal nascido -sentenciou o sargento—. Julgo a um

homem como se comporta quando as coisas ficam feias e quando se embebeda. Dá-se

conta de muitas coisas quando um homem tem a guarda baixa. —Olhou de esguelha ao

Pitt para ver se o compreendia. Aparentemente, ficou satisfeito—. Eu não gosto de perder

tempo com um homem que toma tão a peito sua religião.

Não me interprete mal, não sou seguidor de Maomé nem nada parecido. E sua

forma de tratar às mulheres era terrível. Mas às vezes nós não o fazemos melhor. Vive e

deixa viver, como digo eu.

—Não respeitava Lovat a religião do islã? -perguntou Pitt, não muito certo se isso

mudava a situação. Dificilmente lhe teriam matado por essa causa em Londres.

—Pior que isso -replicou o primeiro sargento, contraindo todo o rosto, escuro comouma estátua de bronze à luz cada vez mais tênue—. Estava furioso com tudo o que

conservavam porque achava que devia ser cristão. Revoltava-lhe que tivessem tomado

Jerusalém. A cidade Santa, chamava—a. E todos os lugares desse tipo.

—Entretanto, apaixonou-se por uma mulher egípcia -indicou Pitt.

—OH, sim. Estou à corrente. Durante um tempo esteve louco por ela. Mas ela era

cristã copta, de modo que isso solucionava o problema. —Pôs uma expressão de

desgosto—. Não é que ele tivesse intenção de casar-se com ela.

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Era uma dessas coisas que se fazem quando se é jovem e está em um país

estrangeiro. Teria havido uma comoção em seu círculo social se houvesse voltado com

uma mulher estrangeira!

—Conhecia—a você? -perguntou Pitt.

—Não diria que a "conhecia" -respondeu o primeiro sargento—. Era formosa -disse

nostálgico—. Se movia como os pássaros. —Fez um gesto para outro bando de pássaros

de rio que planavam através do entardecer.

—Conhecia os amigos do Lovat? Garrick e Yeats? -perguntou a seguir Pitt.

—É claro. E ao Sandeman. Todos já voltaram para casa. Reformaram—nos a todos

ao mesmo tempo por invalidez. A mesma febre, suponho.

—Deixaram o exército? Todos?

O primeiro sargento deu de ombros.

—Não sei. Ouvi dizer que Yeats tinha morrido, pobre diabo. Em alguma missão

militar, de modo que suponho que ficou, só o destinaram a outro lugar com um clima

diferente. Eles também lhe interessam? Acredita que poderiam havê-lo matado eles? —

Sacudiu a cabeça—. Não me ocorre a razão! Mesmo assim, graças a Deus é seu trabalho,

não o meu.

Eu só tenho que me encarregar de que esta gente —lançou as mãos para a escura

silhueta dos barracos- mantenha a ordem aqui no Egito.

— Acredita que vai ser difícil? -perguntou Pitt.

Pitt fez essa pergunta mais por dizer algo que por que esperasse que o homem

soubesse, e de repente se deu conta de que lhe importava. A beleza intemporal dessa

terra permaneceria com ele muito depois de que retornasse ao frenesi moderno de

Londres.

Sempre desejaria ter tido tempo, e dinheiro, para ir rio acima e ver o vale dos Reis,

os grandes templos e as ruínas de uma civilização que tinha governado o mundo queconhecia antes que nascesse Cristo.

Do mesmo modo, deu-se conta de quão veemente era seu desejo de que Ayesha

fora inocente, e poder demonstrá—lo. Acreditava firmemente que ela tinha ido a Inglaterra

para tratar de conseguir algo pela liberdade econômica de seu povo.

Não tinha tido suficiente experiência para saber que procurava uma justiça que

nunca seria concedida enquanto as fábricas de algodão do Lancashire alimentassem e

vestissem a um milhão de pessoas que também eram pobres, com toda a desdita e aenfermidade que trazia consigo a pobreza, mas que tinham poder político em Londres.

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E, até maior que isso, a poucos quilômetros através de um deserto mais antigo que

a humanidade, ocre e negrume sob as primeiras estrelas, achava-se o milagre moderno de

um canal que comunicava o Mediterrâneo com o mar Vermelho e a outra metade do

Império britânico.

Em pé junto ao sargento, Pitt contemplou como se apagava a última luz do dia antes

de lhe agradecer e ir procurar ao Avram, para lhe anunciar que ao dia seguinte voltariam

para a Alexandria, onde trataria de recompensar o de forma adequada.

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Capítulo 9 

Gracie estava sentada em um canto afastado da taverna olhando ao Tellman, que

compartilhava mesa com ela.

Ele a observava com atenção, mais o que requeria o que ela dizia, e com uma

agradável sensação ao mesmo tempo reconfortante e coibida, ela compreendeu que ele a

teria olhado desse modo embora tivesse estado dizendo tolices.

Era um fato com o qual ia ter que enfrentar cedo ou tarde. Tellman tinha

demonstrado por ela toda classe de sentimentos, da inicial falta de interesse, até irritação

como aceitava ser uma criada em casa de outros, totalmente dependente deles até para

ter um teto.

Viu-se obrigada a sentir a contragosto respeito por sua inteligência, quando a jovem

ajudou ao Pitt em algumas de suas investigações, e tinha demonstrado mais claramente

do que era consciente, lutando com todas suas forças por não admitir a ninguém, e menos

ainda a si mesmo, que estava apaixonado por ela. No presente já não fingia que não o

estava; ao menos não todo o tempo.

Tinha-a beijado uma vez, com uma doce e feroz paixão que ela ainda era capaz de

recordar, e se fechava os olhos e se isolava do resto do mundo, podia voltar a senti—lo

como se tivesse ocorrido fazia um momento.

Quando se surpreendeu a si mesmo fazendo—o, só em uma ventosa cale e

sorrindo, compreendeu que tinha chegado o momento de reconhecer que ela também

estava apaixonada por ele.

Não é que estivesse preparada para admitir ante ele algo semelhante! Mas era

importante saber ao menos o que queria, mesmo que não soubesse quando.

Gracie tinha estado lhe explicando o que tinha averiguado Lady Vespasia emrelação à casa dos Garrick, e que se supunha que Stephen Garrick tinha viajado ao sul da

França, por motivos de saúde.

—Mas teve tempo de sobra para escrever a Pontua, não? -concluiu—. De fato,

poderia lhe haver deixado um recado antes de ir-se! Não custa tanto, e certamente o

senhor Garrick não teria se incomodado.

Tellman franziu o sobrecenho. Todo o assunto de ter que pedir permissão a outros

para atender compromissos familiares era um tema delicado do qual já tinham discutidomuitas vezes.

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—Não deveria! -exclamou ele com emoção—. Mas não pode sabê—lo. —Olhou—a

intensamente, como se os murmúrios de vozes a seu redor não fossem reais—. Mas se

estiver no sul da França, deve ter levado consigo um pouco de bagagem, e ou tomou um

coche de aluguel ou foi em sua própria calesa, ao menos até a estação.

Terá ficado registrado o navio no qual cruzaram o Canal. Asseguraremo-nos de que

Martin Garvie foi com ele. Simplesmente, não sei por que não tem escrito.

—Talvez poderíamos pedir um endereço ao senhor Garrick, que continua estando

em Londres -propôs Gracie—. É justo que sua família queira saber onde lhe escrever.

Tellman apertou os lábios.

—É justo - concordou. — Mas já o tentamos. Tentou-o Pontua pessoalmente e o

tentou você. Verei o que posso averiguar sobre sua partida.

Ela o olhou fixamente. Conhecia cada expressão de seu rosto; poderia havê-lo

desenhado com os olhos fechados. Sabia que estava preocupado e também que tratava

de dissimulá—lo, para protegê—la, e em parte porque tinha dúvidas.

— Acha que aconteceu algo, não é? -perguntou ela em voz baixa—. A pessoa não

mente sem um motivo.

Tellman se mostrou prudente e amável.

—Não sei. Pode tomar a tarde livre depois de amanhã?

—Se for necessário. por que?

—Dir-lhe-ei o que averigüei. Pode ser que me leve um tempo. Preciso conseguir

testemunhas, e comprovar os trens, ferries e demais.

—É claro. A senhora Pitt nunca se interpõe em uma investigação! Estarei aqui. Só

me diga a que hora.

—O que lhe parece cedo? Poderíamos ir a um teatro de variedades e ver algo.

No rosto do Tellman se traduzia entusiasmo, mas seu olhar sombrio delatava que

lhe importava que ela aceitasse, e que não dava por assentado nada.Tratava-se de uma entrevista, algo que fazer juntos por gosto e não só como parte

de um caso.

Era a primeira vez que lhe propunha tal coisa e os dois eram muito conscientes

disso.

Ela se surpreendeu ruborizando-se. Sentiu o calor em suas faces. Queria

comportar-se com despreocupação, como se não significasse nada especial, mas não o

conseguiu. Voltava a sentir-se desconfortável.

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—Sim - disse, tratando de adotar um tom natural e obtendo só que tivesse soluço. Ia

ter que tomar uma importante decisão logo e não estava preparada para isso. Fazia

séculos que sabia o que sentia ele. Já deveria ter decidido algo—. Sim, eu adoro a música.

O que usaria? Teria que ser o bastante bonito. Queria que ele a encontrasse bonita,

mas ao mesmo tempo estava muito assustada! E se ele se emocionava e ela não sabia

como levar a situação? Talvez deveria haver dito que não, deixá —lo em uma relação

profissional.

—Estupendo.

Não lhe deu tempo para mudar de opinião. Tinha visto a indecisão em seu rosto?

—Bom... -começou a dizer ela.

— Às sete -continuou ele rapidamente—. Comeremos algo e lhe direi o que

averigüei. Depois iremos ao teatro de variedades.

Tellman se levantou, como se ele também estivesse muito coibido e queria fugir

antes de fazer algo que o fizesse sentir ainda mais néscio.

Gracie também ficou em pé, golpeando-se contra a mesa. Graças a Deus não havia

nada que derramar; só fez tilintar um pouco os copos.

Ele esperou que ela passasse por seu lado e a seguiu até a rua. Fora era mais difícil

falar que na taverna. Uma carroça carregada de barris girava torpemente em marcha ré

para introduzir-se no pátio de uma taverna, enquanto o condutor segurava o cavalo pelas

bridas e gritava ordens.

Outro homem empurrava um carrinho com meia dúzia de barris através dos

paralelepípedos, fazendo—os soar a cada passo.

 As carruagens passavam estralando pela rua no meio do ruído de cascos e o tinido

de arnês.

Gracie se alegrou do estrondo e distração, e ao olhar fugazmente ao Tellman no

rosto, pareceu-lhe que ele também o fazia. Acovardar-se-ia e não diria nada em séculos? Isso daria a ela mais tempo para

pensar. Sobre o que? Dir-lhe-ia que sim. Era só como dizer o que ainda tinha que

considerar. A mudança a assustava.

Estava com os Pitt desde os treze anos. Não podia deixá—los!

—Sim! -concordou ela, assentindo—. Estarei aqui às sete depois de amanhã. Você

averigua o que foi feito de Martin Garvie. Adeus.

Sem esperar que ele dissesse algo mais, Gracie sorriu radiante e virou sobre seuscalcanhares.

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Duas tardes depois se acharam na mesma mesa do canto da taverna. Tellman ia

vestido com um traje escuro simples, e o colarinho de sua camisa branca parecia ainda

mais rígido do habitual.

Gracie tinha posto seu melhor vestido azul e um chapéu, e se tinha penteado com o

cabelo menos esticado que de costume, mas essas eram todas as concessões que estava

disposta a fazer a uma ocasião especial.

Entretanto, mal viu o rosto do Tellman e sua preocupação por seu aspecto se

desvaneceu.

—Sim? -perguntou com obrigação assim que se sentaram e pediram o jantar —. O

que se passa, Samuel?

 A jovem nem sequer se deu conta de que o tinha chamado por seu nome de

batismo.

Ele se inclinou para diante.

—Muitas pessoas afirmam ter visto o Stephen Garrick sair de sua casa, e me

descreveram o homem que o acompanhava, loiro, de uns vinte anos, com um rosto

agradável.

Pelo que viram, era o criado, quase certo que o valete, mas só levavam duas malas

pequenas, não havia baús nem caixas.

O senhor Garrick estava doente. Teve que ser tirado da casa quase nas costas e

foram precisos dois homens para o ajudar a subir à carruagem, mas era sua própria

carruagem, não uma ambulância, e o conduzia o cocheiro da casa.

—Quem lhe disse? -perguntou ela imediatamente.

—O faroleiro - replicou ele—. Começava a trabalhar.

— Às seis da tarde? —Gracie estava surpreendida—. Não é uma hora um pouco

estranha para empreender uma viagem a França? Tem que ver com as marés ou algo

assim? De onde zarpava o navio? Dos moles de Londres?—Da manhã - corrigiu ele—. Quando começou a apagar os lampiões, não acendê—

los. Mas isso é o estranho.

Comprovei o movimento dos moles de Londres esse dia, e não zarpou nenhum

navio para a França, nem com segurança, nenhum senhor Garrick, nem só nem

acompanhado.

Chegaram seus pratos, um jantar muito saboroso consistente em caracóis com pão

e manteiga, e bolo de sobremesa.

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Tellman agradeceu à criada e afirmou que tudo estava perfeito. Gracie pegou as

pinças para arrancar a carne da concha e as segurou em alto.

—Talvez saíssem de Dover. Há pessoas que o fazem, não?

—Sim. Mas fui à estação de trens, e o moço que tinha estado na plataforma do trem

ao Dover disse que não tinha visto ninguém que respondesse a essas descrições esse dia.

Teria recordado a um inválido, mas ninguém tinha necessitado ajuda exceto com a

bagagem pesada.

 A jovem estava perplexa.

—Então, não saíram de Londres nem do Dover? Que mais opções há?

—Bom, poderiam ter ido a qualquer outro lugar, como outro país que não fosse a

França, ou a qualquer parte na Inglaterra, ou Ardia em realidade - replicou ele—. Mas se

Stephen Garrick tinha uma saúde precária e o clima inglês é muito rigoroso para ele,

duvido que fora passar o inverno a Escócia!

Gracie não saía de seu assombro.

—Mas Lady Vespasia deixou muito claro que isso era o que havia dito o senhor

Ferdinand Garrick - argüiu—. E por que ia mentir ele? A pessoa rica viaja muitas vezes

por motivos de saúde.

—Não sei - admitiu Tellman—. Não tem sentido. Mas em qualquer lugar que

fossem, não subiram a nenhum navio para cruzar a França. —Estava muito sério—. Tem

motivos para estar preocupada, Gracie. Quando a pessoa mente e não vê que razões

podem ter para fazê-lo, costuma significar que a causa é ainda pior do que acreditava.

Tellman guardou silêncio um momento, carrancudo.

—O que? -apressou-o ela.

Ele levantou a vista.

—Se não pegaram um trem nem um navio, por que se foram a essa hora da

manhã? Devem ter levantado às cinco, quando ainda era de noite.Invadiu em Gracie uma sensação de peso.

—Porque não queriam que ninguém os visse - respondeu.

De repente o assunto de quem amava a quem, ou o que dizer ou fazer a respeito,

tinha deixado de ser urgente. Olhou-o sem nenhum dissímulo—. Samuel, temos que

averiguar, porque se alguém como o velho senhor Garrick está mentindo, inclusive a seus

próprios criados, e Pontua não sabe onde está seu irmão, a resposta é que aconteceu

algo.Ele não a contradisse.

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—O problema é que não se cometeu nenhum delito, que nós saibamos -respondeu

sombrio—.

E o senhor Pitt está no Egito, de modo que não podemos lhe pedir ajuda sequer.

—Então teremos que fazê-lo nós sós -disse ela em voz muito baixa—. Isto eu não

gosto, Samuel. Tomara não tivéssemos que fazê-lo.

Tellman estendeu uma mão sem pensar e a pôs com suavidade sobre a dela,

cobrindo—a totalmente.

—Eu também o preferiria, mas não temos escolha. Não ficaríamos satisfeitos se nos

esquecêssemos disso. Amanhã voltaremos a falar com Pontua e lhe pediremos que nos

diga tudo o que lhe disse Martin alguma vez sobre os Garrick. Temos que saber mais. Tal

como estão as coisas, não temos nenhuma pista para seguir.

—Irei encontrar-me com ela quando sair a fazer seus recados, por volta das nove e

meia -respondeu ela assentindo—. Mas nunca me disse o que lhe explicava Martin, de

modo que é possível que não saiba nada dos Garrick. O que faremos logo?

—Voltaremos a falar com a criada da casa dos Garrick que o conhecia tão bem -

replicou Tellman—. Mas isso será mais difícil. Se está ocorrendo algo, ela não poderá falar

sem disfarces enquanto trabalha ali, e temerá perder seu emprego. —Fez um grande

esforço por ocultar seus sentimentos, sem êxito—. Quer bolo de maçã?-perguntou.

—Sim, por favor.

O peixe era muito saboroso, mas não enchia muito, e não havia nada mais delicioso

que um bom bolo de maçã com a massa rangente e creme bastante espesso para fincar

nele a colher.

Quando terminaram, Tellman pagou e saíram ao frescor da tarde. Caminharam um

ao lado do outro pela abarrotada calçada durante quase um quilômetro até a entrada do

teatro de variedades.

Havia uma vintena de pessoas, muito parecidas com eles, alguns vestidos maisvistosamente, mas a maioria de braços dados, os homens pavoneando-se um pouco, as

mulheres rindo-se e fazendo frufrú com suas saias. Apertavam-se e empurravam

emocionados para entrar.

Um homem com um realejo tocou um ar popular e algumas pessoas cantaram com

ele. detiveram-se vários carruagens de aluguel e se incorporou mais pessoas à multidão.

Os vendedores de ruas apregoavam doces, bebidas, bolos de carne, flores e

bagatelas.

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Gracie teve que se pendurar ao braço do Tellman para impedir que a levasse a

massa de corpos que empurravam sem muito olhar.

O ruído de vozes elevadas pela emoção era terrível e a jovem recebia

constantemente golpes e pisões.

Por fim entraram. Tellman tinha comprado entradas nas primeiras filas. Foram

sentar se onde pudessem ver e ouvir bem. Ela nunca o tinha feito antes. No par de

ocasiões que tinha estado ali ficara ao fundo, onde não se via nada. Isso era fantástico.

Deveria estar pensando no Martin Garvie e na pobre Pontua, e em como demônios

iriam averiguar o que tinha ocorrido, mesmo que fosse muito tarde para ajudar.

Mas as luzes e a emoção que se respirava no ambiente, e a certeza que se instalara

agradavelmente em seu interior de que essa não ia ser uma noite mais, a não ser o

princípio de algo permanente, afastou temporariamente de sua mente todo o resto.

Começou a música. O mestre de cerimônias fez umas assombrosas apresentações

com trabalenguas que foram recebidas com exclamações e gargalhadas do público.

Levantou-se o pano de fundo, deixando ver um palco vazio. Uma jovem com um

vestido de lantejoulas apareceu sob o foco de luz.

Cantou canções joviais e bastante atrevidas, e apesar de saber perfeitamente bem o

que significavam, Gracie se surpreendeu cantando com o público. Eram alegres, cheias de

calor.

Seguiu a jovem um cômico vestido com um traje folgado e com um companheiro

que devia ser o homem mais alto e mais magro do mundo.

 Ao público lhe pareceu risível, e quase não pôde parar de rir quando saiu o

contorcionista, depois o histrião, os acrobatas, um mago e por último as bailarinas.

Todos eram bons, mas o que mais gostou Gracie foi a música, canções tristes ou

alegres, sós ou duetos, e o melhor de tudo quando todos cantavam os estribilhos.

Mal se lembrou do mundo fora desse círculo de feitiço temporário até que esteve naporta de serviço do Keppel Street e se voltou para agradecer a noite ao Tellman e lhe dar

boa noite.

Propôs-se a mostrar certa dignidade e dizer que tinha sido agradável, sem deixar

que a ele lhe subisse à cabeça, como se a tivesse levado a alguma parte onde ela nunca

tinha estado.

Era uma tolice deixar que um homem crescesse e acreditasse que era muito esperto

ou que estava em dívida com ele.

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Mas se esqueceu de seus bons propósitos e todo seu entusiasmo se traduziu em

sua voz quando lhe disse:

—Foi maravilhoso! Nunca tinha visto... -se interrompeu. Era muito tarde já para ser

sutil. Respirou fundo. Viu à luz do lampião a satisfação no rosto do Tellman e de repente

esteve totalmente segura do muito que significava isso para ele.

Era tão vulnerável que ela só queria que soubesse o feliz que se sentia. Inclinou-se

muito rapidamente para ele e o beijou na face—. Obrigada, Samuel. Foi à melhor noite de

minha vida.

 Antes que pudesse retroceder, ele a rodeou com um braço e voltou ligeiramente à

cabeça para beijá—la nos lábios. Foi muito delicado, mas não tinha intenção de soltá—la

até estar preparado para fazê-lo.

Ela tratou de separar-se um pouco, só para ver se podia, e sentiu uma onda de

prazer ao comprovar que era impossível.

Depois ele a soltou e ela se ergueu, ofegando. Quis dizer algo engenhoso, ou

ligeiramente gracioso, mas não lhe ocorreu nada. Não era momento para palavras vãs.

—Boa noite - disse sem fôlego,

—Boa noite, Gracie. — A voz do Tellman soou ligeiramente rouca, como se também

tivesse sido pego despreparado.

Ela se voltou e procurou com a mão a maçaneta da porta, virou-a e entrou, notando

como lhe palpitava com força o coração, e sabendo que sorria como se lhe houvessem dito

a palavra mais graciosa e maravilhosa do mundo.

Na manhã seguinte Gracie achou Pontua fazendo seus recados, e voltou com ela à

cozinha do Keppel Street, onde Tellman estava sentado à mesa em frente a Charlotte,

falando já do assunto.

Só por um instante, muito breve para ser percebido, seus olhares se cruzaram e ela

viu nos lábios dele um meio sorriso, um gesto afetuoso.Depois o sorriso se apagou e ele se concentrou no tema que os ocupava.

—Sente-se, Pontua —  convidou Charlotte com suavidade, indicando a quarta

cadeira da mesa.

Gracie ocupou a terceira. O bule já estava na mesa e não foi necessário fazer

cumprimentos.

—Sabem algo? -perguntou Pontua ansiosa—. Gracie não quis me dizer nada.

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—Não sabemos onde está -respondeu Charlotte sem rodeios. Não queria que se

aferrasse a falsas esperanças; era mais cruel à longo prazo—. Mas averiguamos mais

coisas.

Uma amiga minha falou com o senhor Ferdinand Garrick, e este lhe disse que

Stephen se partiu ao sul da França, por motivos de saúde, e tinha levado seu valete

consigo para que cuidasse dele enquanto estava fora. —Viu como o rosto de Pontua se

iluminava e sentiu uma pontada de remorsos—. Mas o senhor Tellman tratou que

comprovar se era certo e falou com alguém que tem certeza de ter visto Stephen Garrick e

Martin sair da casa do Torrington Square.

Mas não há segurança de que tomassem um navio a França, de Londres ou Dover.

Tampouco localizou o trem que pegaram. De modo que parece que Martin não foi

despedido, mas não sabemos onde está, ou por que não lhe escreveu para explicar sua

situação.

Pontua ficou olhando, tratando de compreender o que tudo isso significava.

—Então, aonde foram? Se não viajaram para a França, por que partiram?

—Não sabemos, mas nos propomos averiguar -respondeu Charlotte—. Que mais

pode nos dizer sobre Martin, ou sobre o senhor Stephen? —Viu o desconcerto total no

rosto de Pontua e desejou poder ser mais clara, mas nem ela mesma sabia aonde queria ir

parar —. Tenta recordar tudo o que Martin lhe disse em alguma ocasião sobre a família

Garrick, em particular sobre o Stephen. Deve ter lhe falado de sua vida na casa.

Pontua parecia à beira das lágrimas. Lutava por sossegar o medo e a onda de

solidão que a tinha invadido. Martin era toda a família que tinha, representava toda a vida

que conseguia recordar. Mal conservava lembranças de seus pais.

Gracie se tornou para diante, sem prestar atenção à xícara de chá que Tellman lhe

tinha servido.

—Não é momento para ser discreta! -apressou—. Todos falamos com nossa família.Ele confiava em ti, não? Deve ter lhe explicado algo sobre a vida na casa. Era boa a

comida? Tinha mau gênio a cozinheira? Era o mordomo um amargurado? Ou a chefa, a

governanta?

Pontua relaxou um pouco enquanto um débil sorriso aparecia em seus lábios.

— A governanta não -replicou—. E o mordomo era incapaz de dizer algo a seu

senhor, mas era muito cortante com todos outros, ao menos isso é o que me disse Martin.

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Dava ordens a todos menos ao Martin, devido ao senhor Stephen. Martin era o

único que sabia cuidar dele, e ninguém queria fazê-lo, apesar de suas pretensões de

superioridade moral.

—Por que não? -perguntou Charlotte—. Era um homem difícil?

—Ficava assim quando tomava essa coisa - disse Pontua em voz muito baixa—.

Mas Martin nunca me perdoaria se soubesse que lhes disse isso! Nunca terá que explicar

a ninguém o que acontece nos aposentos de seus senhores ou nunca voltará a trabalhar.

 Acabará no arroio, porque ninguém mais a quererá em sua casa.

E pior que isso é que está traindo, e não há nada pior que um traidor.

Pontua falou em voz baixa e rouca, como se até expressá—lo com palavras a

poluísse.

—O que é essa coisa? -perguntou Charlotte, com um tom tão despreocupado que

poderia ter estado falando de papa de aveia.

—Não sei -respondeu Pontua com tanta franqueza que Charlotte teve que acreditar

nela.

Tellman deixou a xícara.

—Tinha ido Martin antes de férias com o senhor Stephen? A qualquer lugar.

Pontua sacudiu a cabeça.

—Que eu saiba não. Teria lhes dito.

—Tinha amigos? -insistiu Tellman—. Que fazia Stephen por prazer? O que gostava?

Da música, das mulheres, dos esportes, o que?

—Não sei! -exclamou ela desesperada—. Era um homem desgraçado! Martin dizia

que não desfrutava com nada. Dormia mal, tinha uns pesadelos espantosos. Acredito que

padecia de uma enfermidade terrível. —Baixou tanto a voz que com muita dificuldade a

ouviam—. Martin me disse que ia procurar um sacerdote para ele, um que atendia

especialmente aos soldados.—Um sacerdote? -disse Tellman surpreso. Olhou ao Gracie e ao Charlotte, e de

novo a Pontua—. Sabe se o senhor Garrick era religioso?

Pontua o pensou durante uns momentos. —Eu suponho que sim - manifestou

devagar —. Seu pai é... Disse-me isso Martin. Leva a casa como se fora um clérigo. Os

criados rezam juntos pela manhã e de noite. E benzem a mesa antes de comer. Claro que

a maioria o fazem, é claro.

"Mas havia outras coisas, como o exercício e a água fria, e ser exageradamentelimpo e pontual em tudo.

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Martin me contou como se colocavam todos em fileira pela manhã antes de tomar o

café da manhã e que o mordomo os fazia rezar pela rainha, o Império e seu dever com

Deus, e voltava a fazê-lo antes que pudesse deitar-se alguém.

De modo que suponho que o senhor Stephen também era religioso. Não podia

evitá—lo.

—Então, por que não falava com seu próprio sacerdote? -perguntou Charlotte, não a

Pontua em particular, mas a todos em geral—. Iriam à missa, não?

—Oh, sim - respondeu Pontua com segurança. — Todo domingo, como um relógio.

Todos os que viviam na casa.

 A cozinheira deixava frios cortados para almoçar e esquentava rapidamente a

verdura quando voltava. O senhor Garrick era muito estrito com isso.

— Assim, por que Martin queria que um sacerdote especial atendesse ao Stephen?-

perguntou Charlotte pensativa. Pontua sacudiu a cabeça.

—Não sei, mas me falou disso. É alguém que o senhor Stephen conheceu faz muito

tempo. Trabalha com soldados que estão passando um mau momento e se deram à

bebida, ao ópio e coisas assim. —estremeceu ligeiramente—.Está em Seven Dials, que é

um bairro bastante perigoso.

Dormem nos portais, transidos de frio e famintos, e quase desejando estar mortos,

pobrezinhos. Essa não é forma de que acabe um soldado da rainha.

Ninguém lhe respondeu em seguida. Gracie olhou ao Charlotte e viu como o rosto

lhe inundava de compaixão e confusão, depois se voltou para o Tellman e ficou

desconcertada ao notar pelo brilho de seus olhos que lhe tinha ocorrido algo.

—No que pensa? -quis saber.

Tellman se voltou para Pontua.

—Martin conseguiu falar com esse homem? -perguntou.

—Sim. Disse-me isso. Por que? Acha que poderia saber o que aconteceu aoMartin? — A esperança em sua voz era evidente.

—Poderia saber algo. —Tellman tratou de ser cauteloso para não decepcioná—la—.

Recorda se disse seu nome?

—Sim —Pontua contraiu o rosto com o esforço—. Sand… não sei o que, Sandy...

Tellman olhou primeiro ao Gracie e depois a Pontua.

—Sandeman?

Pontua abriu muito os olhos.—Sim! Isso. Conhece—o?

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—Ouvi falar dele.

Então Tellman olhou para Charlotte.

—Sim -assentiu ela antes de que lhe perguntasse—. Deveríamos tentar encontrá—

lo. O que lhe disse Martin poderia ser importante. —mordeu o lábio—. Além disso não

temos nada.

—Pode ser que não seja tão fácil —advertiu Tellman—. Poderia nos levar um

tempo. Ainda não temos provas de que tenha havido um assassinato, assim...

—Eu o buscarei - interrompeu Charlotte.

—No Seven Dials? —Tellman sacudiu a cabeça—. Não tem nem idéia de como é

aquilo! É um dos piores bairros...

—Irei de dia - se apressou a dizer ela—. E porei minha roupa mais velha, me

acredite, parecerei uma mais.

Haverá muitas mulheres pelas ruas entre as oito da manhã e às seis da tarde. E

estarei procurando um padre.

Devem fazer o mesmo outras mulheres com parentes que foram soldados.

O olhar do Tellman se deslocou dela ao Gracie, Suas emoções contraditórias se

refletiam com surpreendente clareza em seu rosto.

Charlotte sorriu.

—Irei eu -disse com decisão—. Se o achar, tenho mais possibilidades de averiguar

algo sobre o Martin, se foi realmente de parte do Stephen Garrick.

Sairei para ali agora mesmo. —voltou-se para Pontua—. Você volte para suas

obrigações. Não pode se permitir que sua senhora a despeça, por justificada que esteja

sua ausência.

Olhou ao Tellman—. Obrigado por tudo o que fez. Sei que lhe levou muito tempo.

Tirou importância, mas não tinha facilidade para expressar-se nem sequer para

pensar as palavras e nem digamos para dizer a ela por que era tão importante para ele.Charlotte se levantou e outros o interpretaram como lhes dando permissão para ir-

se.

Charlotte percorreu as ruas do bairro do Seven Dials a partir do meio—dia.

Pôs uma saia muito velha, que rasgou sem querer e tratou de cerzir com pouco

êxito.

Em lugar de uma jaqueta sobre a blusa simples pôs um xale, que era mais de

acordo com o que levariam as demais mulheres que faziam a compra ou trabalhavamnesse bairro.

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Mesmo assim, estava claramente desconjurada. A pobreza tinha um fedor muito

particular. Charlotte acreditou que o conhecia, mas tinha esquecido como as pessoas se

sentavam nas calçadas, se encolhiam nos portais ou permanecia em pé com olhar triste e

impotente ao redor de montões de roupa puída ou botas, em espera de que alguém

regateasse um preço e talvez partisse sem nada.

Pelo centro da rua corria a boca—de—lobo aberta, em cujo leve pendente mal havia

movimento.

Em todas partes havia imundície humana viciando o ar porque havia pouca água até

para beber, e não havia nem sabão, nem calor que combatesse a umidade, nem nada que

aplacasse a fome e resolvesse a falta de intimidade.

Com cautela, começou a perguntar pelo sacerdote que atendia aos soldados. Teve

que se encher de considerável determinação para aproximar-se de alguém sequer e falar.

Sua dicção delatava que não era daí, mas não tinha modo de ocultá-la.

Imitar sua forma de falar teria sido zombar deles e a teria delatado como desonesta

até antes de fazer perguntas, para não falar de receber uma resposta.

Quão único obteve o primeiro dia foi descartar certas possibilidades. Até pela tarde

do segundo dia não teve êxito por fim, e este chegou sem prévio aviso.

Estava no Dudley Street, tratando de abrir passagem através dos sapatos de

segunda mão não só aglomerados nos paralelepípedos rachados da calçada, mas também

esparramados pelo meio-fio.

Junto a eles havia crianças sentadas sem que ninguém as olhasse, algumas

chorando, muitas só observando meio distraídas às pessoas que passavam caminhando

com dificuldade a seu lado.

O homem se aproximava dela, movendo-se com soltura como se estivesse

acostumado à agitação do bairro.

Tinha um aspecto muito comum, aparentava quarenta e poucos anos, e pareciamagro sob seu casaco puído. Tinha a cabeça descoberta e seu cabelo castanho

necessitava urgentemente um corte de cabelo.

Charlotte se deteve para deixá—lo passar. Via-se um propósito em suas grandes

passadas e ela não queria ser nenhum obstáculo em seu caminho.

Com grande surpresa, viu que ele se detinha.

—Ouvi dizer que me está procurando. —Tinha uma voz suave e bem educada—.

Me chamo Morgan Sandeman. Trabalho aqui com todo aquele que me necessita, massobretudo com soldados.

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—O senhor Sandeman?

Charlotte ergueu a voz mais do que tinha sido sua intenção, como se fosse

realmente uma esposa desesperada em busca de um marido perdido de quem ele podia

conhecer seu paradeiro.

—Sim. No que posso ajudá—la?

Sandeman ficou a seu lado entre os montões de sapatos. Não tinha sentido andar-

se com rodeios e talvez não houvesse tempo a perder.

—Estou procurando a alguém que desapareceu - respondeu ela—. Acredito que

poderia ter falado com você pouco antes da última vez que o viram. Pode me dedicar uns

minutos, por favor?

—É claro. — Estendeu-lhe uma mão—. Se quer me acompanhar, podemos ir a meu

escritório.

Receio que não tenho igreja, é mais uma velha sala paroquial, mas serve.

—Sim, sim, eu adoraria - manifestou ela sem vacilar.

Ele pôs-se a andar sem dizer nada mais e ela o seguiu pelos paralelepípedos entre

a gente silenciosa e, depois de dobrar uma esquina, ao longo de um beco que

desembocava em uma pequena praça.

Os edifícios, altos e estreitos, de quatro ou cinco andares, apoiavam-se uns contra

outros rangendo na umidade, e o aroma acre e ao mesmo tempo adocicado da madeira

podre impregnava tudo, irritando as gargantas.

Não se ouvia nenhum ruído nítido e, entretanto, não havia silêncio.

Pela pedra, brincavam de correr ratos, gotejava água, voava e se formava

redemoinhos o lixo no vento ligeiro, curvava-se a madeira.

—É ali.

Sandeman indicou uma porta e se adiantou.

Estava coberta de manchas de umidade e se abriu assim que a tocou. No interiorhavia um estreito vestíbulo e, ao fundo, uma sala mais ampla em que ardia um pequeno

fogo em uma grande lareira aberta.

Frente a ela havia meia dúzia de pessoas sentadas no chão, apoiadas umas contra

outras, mas que não falavam entre si. Charlotte demorou uns minutos em dar-se conta de

que estavam inconscientes ou adormecidos.

Sandeman levou um dedo aos lábios para lhe rogar silencio e cruzou quase sem

fazer ruído o chão de pedra até uma mesa no canto da direita onde havia duas cadeiras.Ela o seguiu e se sentou quando ele a convidou a fazê-lo.

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—Sinto muito - se desculpou ele—. Não tenho nada que lhe oferecer, e nenhum

lugar melhor que este - disse sorrindo, como se não se envergonhasse disso. Dizia—o

mais por ela que por ele. Tinha o rosto gasto e em suas faces afundadas se viam os

rastros da fome—. A quem está procurando? -perguntou—. Se não me é possível lhe

revelar onde está, ao menos posso dizer a ele que você perguntou, e talvez ele fique em

contato com você.

Compreenderá que não posso repetir o que me conta de forma confidencial.

 Algumas vezes quando um homem...

Sandeman vacilou, observando—a intensamente, talvez tratando de averiguar algo

do homem que ela procurava a partir das emoções que refletia.

Charlotte se sentiu uma farsante ao imaginar às mulheres desesperadas, esposas,

mães ou irmãs, que tinham ido a ele para achar a homens que tinham amado e perdido em

experiências que estes não eram capazes de compartilhar com elas, ou cujas cargas não

se viam com forças de levar sem refugiar-se na bebida ou ópio.

Tinha que ser honesta com ele.

—Não é meu parente, mas o irmão de uma jovem que conheço. Desapareceu e ela

está muito angustiada para buscá—lo por si mesma; além disso, não dispõe de tempo.

Poderia perder seu emprego e não lhe seria fácil conseguir outro. A expressão de

preocupação dele não se alterou.

—De quem se trata?

 Antes que ela pudesse responder, a porta se abriu de par em par, ricocheteou

contra a parede e alcançou à pessoa que acabava de entrar nas costas.

Golpeou—o com tanta força que perdeu seu precário equilíbrio e se desabou no

chão, onde ficou deitado como um montinho de roupa puída.

Sandeman olhou para Charlotte muito fugazmente para lhe fazer qualquer

comentário, depois se levantou e se aproximou da porta. Agachou-se, pôs as mãos debaixo do homem e, com considerável esforço,

levantou—o. Saltava à vista que estava bêbado.

 Aparentava uns cinqüenta e cinco anos, mas tinha as faces afundadas, o olhar

extraviado e uma barba de vários dias.

Levava o cabelo emaranhado e a imundície que cobria sua roupa podia cheirar-se

até de onde estava Charlotte. Sandeman o olhou exasperado.

—Entre, Herbert. Venha sentar-se. Está empapado! —Caí —balbuciou Herbert,arrastando os pés enquanto caminhava atrás do Sandeman.

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—Na boca—de—lobo, a julgar por seu aspecto -observou Sandeman com ironia.

E o aroma, pensou Charlotte. Sentiu desejos de afastar-se, mas a dignidade com

que Sandeman falava com homem a fez envergonhar-se disso.

Herbert não respondeu, mas deixou que o acompanhasse ao banco junto ao fogo e

se sentou pesadamente nele como se estivesse exausto. Nenhum dos que já estavam ali

pareceu reparar o mínimo nele.

Sandeman se aproximou de um armário que havia contra a parede. Tirou uma

chave do chaveiro que lhe pendia do cinturão e abriu a porta. Procurou uns minutos,

depois tirou uma grande manta cinza, áspera e tosca, mas que sem dúvida abrigava.

Charlotte o observava com curiosidade. Não bastava para fazer as vezes de cama,

e o homem não estava doente, no sentido de que pudesse lhe servir de algo descansar.

Sandeman fechou o armário com chave e voltou junto ao Herbert com a manta.

—Tire a roupa molhada —ordenou—, e se envolva com isto para se esquentar.

Herbert olhou para Charlotte.

—Vai virar-se -prometeu Sandeman.

Disse-o bastante alto para que Charlotte o ouvisse e ela obedeceu, virando a

cadeira para olhar em sentido contrário.

Depois não o viu levantar-se, mas ouviu o frufru da roupa e o golpe surdo das

roupas molhadas ao cair pesadamente ao chão.

—Dar-lhe-ei um pouco de sopa quente e pão -continuou Sandeman—. Lhe

assentará bem. —Não se incomodou em dizer ao homem que deixasse de beber porque o

álcool lhe estava envenenando. Certamente já o havia dito tudo e não tinha servido de

nada—. Lavarei a sua roupa. Mas terá que esperar aqui enquanto seca,

Charlotte ouviu pés que se aproximavam até deter-se justo detrás dela.

—Já pode voltar-se —sussurrou. — Receio que tenho coisas a fazer, mas posso

falar com você enquanto trabalho.—Quer que eu vá a procurar a sopa e o pão? —ofereceu ela.

O fedor da roupa lhe revolvia o estômago, mas tentou que não se refletisse em seu

rosto.

—Obrigado —aceitou Sandeman—. Há uma espécie de copa por aí. — Assinalou

uma porta à esquerda da lareira—. Falaremos enquanto lavo isto. Estaremos sós.

Voltou a pegar a roupa e conduziu Charlotte a um pequeno cômodo de pedra onde

sobre um enorme fogão havia água fervendo em dois caldeirões, uma panela de sopa que

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fervia e várias panelas velhas cheias de água quente, certamente prontas para lavar roupa

quando fosse necessário.

Uma tina de estanho sobre uma mesa auxiliar servia de pia, e havia baldes de água

fria trazidos da bomba mais próxima, a um par de ruas de distância.

Charlotte achou o pão e uma faca, e cortou com cuidado duas fatias bastante finas.

Não foi difícil porque o pão estava rançoso. Procurou algo para passar, mas não havia

manteiga.

Talvez com a sopa não importasse. Qualquer alimento serviria para amenizar os

efeitos do álcool.

Levantou a tampa da panela e viu uma sopa de ervilhas quase tão espessa como

papa de aveia e em que apareciam de vez em quando borbulhas. Em um banco havia

terrinas, assim Charlotte pegou uma e a encheu com a concha de sopa.

Com o pão em uma mão e a terrina com uma colher na outra, coberta com um

trapo, voltou para a sala e se aproximou do Herbert.

Deteve-se frente a ele e o homem levantou a vista para ela. Charlotte percebeu em

seu rosto o instinto de ficar em pé, a velha disciplina demorava para perder-se. Tinha sido

soldado uma vez, antes de que a dor ou o desespero o destruíssem. Mas ao mesmo

tempo era profundamente consciente do fato de que só levava uma manta em cima, e que

não a tinha o bastante firmemente agarrada para proteger sua decência.

Já era bastante terrível a nudez de sua situação sem necessidade de pôr ao

descoberto também seu corpo.

—Por favor, não se levante -se apressou a dizer ela, como se o homem já quase o

tivesse feito—. Deve segurar a sopa com cuidado. Está muito quente. Já necessita usar as

duas mãos. Por favor, tome cuidado em não queimar-se.

—Obrigado, senhora —murmurou ele, relaxando-se de novo e agarrando a terrina

de suas mãos com cautela.Em seguida a apoiou na manta sobre seus joelhos. Estava muito quente para

segurá—la muito tempo com as mãos, e ele era consciente de que tinha os dedos torpes.

Sorriu-lhe, embora ele não percebesse; depois caiu na conta de que talvez o estava

fazendo envergonhar, voltou-se e entrou de novo na copa.

Sandeman estava inclinado sobre a tina, esfregando a roupa. Utilizava um sabão

tosco feito de potássio, ácido fénico e lejía.

Era tão forte que sem dúvida lhe danificaria a pele, mas eliminaria a maior parte daimundície, assim como dos piolhos, e do fedor e a infecção que os acompanhavam.

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—Senhor Sandeman - disse Charlotte com tom premente—. É muito importante que

fale com você. O jovem que desapareceu poderia estar em perigo, e nos disseram que

veio a este bairro para buscá—lo. Se o achou, poderia lhe ter dito algo que nos desse uma

pista de aonde foi e por que.

Ele a olhou de esguelha, descansando seus magros braços na borda da tina e

apoiando neles seu peso. Era um trabalho exaustivo.

—Quem é? -perguntou.

—Martin Garvie.

 As palavras mal tinham saído de sua boca quando ela o viu ficar rígido e perder a

cor, que voltou a afluir a seu rosto como se o sangue tivesse retornado em uma maré.

Encolheu-se o coração de Charlotte de medo. Tinha os lábios tão tensos que lhe era

difícil falar.

—O que lhe ocorreu? -perguntou com voz rouca.

—Não sei. —Ele se ergueu muito devagar.

Voltou-se para ela, esquecendo a roupa e deixando—a de molho. — Sinto, mas não

posso lhe dizer nada que a ajude. De verdade que não posso.

Sandeman respirava pesadamente, como se sentisse uma opressão no peito e ao

mesmo tempo lhe faltasse o ar.

—Poderia estar em perigo, senhor Sandeman - se apressou a dizer ela—.

Desapareceu! Faz três semanas que ninguém o viu nem teve notícias dele! Sua irmã está

morta de preocupação.

 Até seu amo, o senhor Stephen Garrick, aparentemente não partiu para aonde disse

que se dirigia. Não há provas de que pegasse um trem ou navio.

Necessitamos alguma informação que nos ajude a averiguar o que ocorreu.

Fez-se dolorosamente evidente que Sandeman experimentava uma intensa

emoção, tão profunda que não podia controlar o tremor de seu corpo nem sua respiraçãoentrecortada, mas quando conseguiu recuperar a voz, não houve indecisão nele, nem

possibilidade de que mudasse de opinião.

—Não posso ajudá—la —voltou a dizer —. O que me diz como uma confissão da

alma é sagrado.

—Mas e se a vida de um homem está em jogo? -argüiu ela, embora compreendia

muito bem que estava condenada ao fracasso.

Via-o nos olhos dele. Na palidez de seu rosto, nos músculos tensos de suamandíbula e pescoço.

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—Só posso confiar em Deus - respondeu tão fracamente que ela mal o ouviu —.

Está em suas mãos. Não posso lhe revelar o que me disse Martin Garvie.

Se pudesse, o diria tudo. Embora não sei se lhe serviria para dar com ele.

—Está vivo?

—Não sei.

Ela tomou ar para tentar uma vez mais, depois o deixou escapar em um suspiro, viu

a determinação nos olhos do Sandeman e afastou o olhar. Não lhe ocorria o que podia

dizer.

—Senhora... -começou a dizer ele, e deixou a frase suspensa porque não sabia

como se chamava.

—Pitt -respondeu ela—. Charlotte Pitt.

—Senhora Pitt, trata-se de algo relacionado com muitas outras pessoas. Se só fora

um segredo pessoal e revelá—lo servisse de algo… mas não é o caso. 

É uma longa história que ocorreu faz muito tempo para que possamos fazer algo

agora.

—Está relacionada com o Martin Garvie? —Charlotte se sentia desconcertada—.

Lhe disse algo.

—Não posso ajudá—la, senhora Pitt. Acompanhá-la-ei ao Dudley Street, se por

acaso se perde. —Havia apreço em sua voz, e seus olhos escuros estavam cheios de

preocupação—. Por favor, volte para sua casa. Este não é um lugar para você. Poderiam

lhe fazer dano e isso não servirá de nada, me acredite.

Vivo aqui e o conheço tão bem como pode fazê-lo um intruso, mas quase nunca

saio depois do anoitecer. Venha... -secou as mãos com um trapo rasgado e voltou a pôr

sua jaqueta—. Saberá voltar para sua casa desde Dudley Street?

—Sim, obrigado.

Charlotte só podia aceitar. Estava claro que não havia nada que ela pudesse fazer,por muito que o pressionasse. Além disso, tinha que reconhecê-lo, importava-lhe o que ele

pensasse dela.

Sem Pitt em casa, Charlotte não tinha nenhuma vontade de acender a lareira do

salão e sentar-se ali sozinha depois que Daniel e Jemima se deitavam.

 Assim, sentou-se na quente e luminosa cozinha e contou ao Gracie o que tinha

surrupiado ao Sandeman. Mas nenhuma das duas sabia o que fazer a seguir, a menos que

averiguassem algo mais.

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 Apesar da calidez do ambiente, com os dois gatos meio adormecidos na cesta da

roupa junto ao fogão, e o repicar da chuva contra a janela, as duas experimentaram em

silêncio um amargo sentimento de derrota.

 A tarde seguinte não foi melhor, mas ao menos havia obrigações domésticas que

atender e isso era mais satisfatório que estar de braços cruzados.

Gracie ordenava os armários e Charlotte remendava umas capas de travesseiros

quando pouco depois das nove bateram na porta.

Gracie estava em pé sobre um tamborete com os braços cheios de roupa, de modo

que foi abrir Charlotte.

Na soleira havia um homem esbelto com um traje de corte muito elegante que teria

assombrado ao Pitt.

Tinha um rosto magro e inteligente, profundamente sulcado de rugas, e uns olhos

tão escuros que pareciam negros à luz do lampião. Seu cabelo moreno estava

profusamente salpicado de cãs.

—Senhora Pitt -disse.

Era mais uma apresentação que uma pergunta.

—Sim -assentiu ela com cautela. Não tinha intenção de convidar a passar a um

desconhecido. De fato, não seria boa idéia lhe dizer que Pitt estava de viagem —. O que

posso fazer por você? -acrescentou.

Ele esboçou um sorriso de desculpa como se se reprovasse a intromissão, e

entretanto, saltava à vista que destilava segurança em si mesmo.

Era um gesto de um encanto possivelmente inconsciente.

—Que tal está? Meu nome é Victor Narraway. Estando seu marido na Alexandria,

onde lamento me haver visto obrigado a enviá—lo, quis passar para visitá—la para me

assegurar de que se encontra sã e salva e que tudo irá bem.

—Tem alguma dúvida, senhor Narraway? —Charlotte se sobressaltou ao averiguarsua identidade, e lhe inquietou que ele pudesse saber um pouco do Pitt que ela ignorava.

Quanto a sua visita, tinha que tratar-se de um assunto desagradável. Ainda não

tinha tido notícias do Pitt, mas era muito cedo. O correio demoraria dias. Tratou de

serenar-se—. Por que veio, senhor Narraway? Rogo-lhe que fale com franqueza.

—Exatamente pelo que lhe disse, senhora Pitt - respondeu ele—. Posso entrar?

Charlotte se fez a um lado, convidando-O tacitamente a entrar, e ele passou junto a

ela, lançando um olhar às delicadas molduras de gesso do teto do vestíbulo.Ela fechou a porta e Narraway entrou no salão seguindo suas indicações.

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Ela o seguiu e acendeu os lampiões. Esperava que não ficasse tanto tempo para

que importasse que não tivesse acendido a lareira.

Encarou-o quase desafiante, com o coração lhe palpitando com força.

—Teve notícias do Thomas?

—Não, senhora Pitt -respondeu imediatamente—. Lamento se lhe dei essa

impressão. Pelo que sei, tudo vai bem e goza de boa saúde.

Se não fosse assim, me teria informado. É a sua segurança que me preocupa.

Mostrou-se muito educado, mas ela detectou um vislumbre de condescendência em

sua voz.

Devia-se a que ele era um cavalheiro e Pitt o filho de um guarda—florestal, apesar

de sua perfeita dicção? Sempre havia algo no comportamento, nas maneiras, que revelava

uma segurança na pessoa que não se aprendia, mas era inata.

Charlotte não era aristocrata, como o era Vespasia, mas sem dúvida provinha de

boa família. Olhou-o com uma fria arrogância que Vespasia teria podido reconhecer como

própria. Seu velho vestido com as mangas cerzidas carecia de importância.

—Seriamente? É muito amável de sua parte, senhor Narraway, mas completamente

desnecessário. Thomas deixou as coisas em ordem antes de ir-se e tudo marcha como é

devido.

Charlotte se referia às disposições econômicas relacionadas com o pagamento, mas

teria sido uma grosseria dizê—lo.

Narraway esboçou um sorriso que suavizou ligeiramente sua expressão.

—Contava com isso - respondeu—. Mas talvez você não lhe tenha informado de sua

intenção de investigar o suposto desaparecimento de um dos criados do Ferdinand

Garrick.

Pegou—a totalmente despreparada. Ela procurou uma resposta que o mantivesse a

distância e impedisse que adivinhasse o que estava pensando.—Suposta? -perguntou ela, com os olhos muito abertos—. Parece saber mais que

eu. Também esteve investigando? Me alegro muito, de fato me agrada enormemente.

Requer mais recursos dos que eu disponho.

Tocava a ele parecer surpreso, mas o mascarou tão rapidamente que ela apenas

se dispôs.

—Não acredito que compreenda o perigo que poderia correr se continua - disse ele

com cuidado, lhe sustentando o olhar, para assegurar-se de que entendia a seriedade desuas palavras.

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Sem parar para pensar, lhe dedicou um sorriso deslumbrante.

—Então será melhor que me explique isso, senhor Narraway. De que perigo se

trata? Quem poderia me fazer dano e como? É evidente que sabe, ou não teria roubado

tempo à investigação que o ocupa para dever m e dizer a estas horas!

Ele estava desconcertado. Recuperou o domínio em seguida, mas ela o percebeu

com profunda satisfação.

Tinha esperado que ela se sentisse acovardada e humilde pela reprimenda, e em

lugar disso havia voltado suas palavras contra ele.

Narraway evitou seu desafio.

—Teme que tenha ocorrido algo ao Martín Garvie? -perguntou.

Charlotte não quis ficar na defensiva.

—Sim - respondeu com franqueza—. O senhor Ferdinand Garrick diz que se foram

ao sul da França, mas se for certo, por que nestas três semanas não tem escrito a sua

irmã para dizer-lhe?

Não ia informar ao Narraway de que Tellman também tinha tentado sem êxito achar

provas de que tinham ido em navio ou uma testemunha que confirmasse que tinham pego

um trem.

Tellman não podia permitir-se atrair a atenção de seu novo superior, e menos ainda

suscitar suas críticas, e ela não confiava em que Narraway não fosse utilizar a informação

a sua conveniência.

—Teme que tenha ocorrido um acidente? -perguntou ele.

Jogava com ela, e Charlotte sabia.

—De que tipo? — Arqueou as sobrancelhas—. Não me ocorre que tipo de acidente

poderia me causar o perigo que sugere.

Ele relaxou e sorriu.

—Touché - disse em voz baixa—. Mas falo totalmente a sério, senhora Pitt.Soube que se implicou no suposto desaparecimento desse jovem que é, ou era,

criado do Stephen Garrick.

 A família Garrick goza de poder na alta sociedade e nos círculos políticos. Ferdinand

Garrick tem uma boa carreira militar, terminou com um elevado cargo de tenente general

antes de retirar-se. Rígido, firmemente leal ao Império, a Deus, à rainha e a sua pátria.

Charlotte estava perplexa. Permaneceu no meio da sala olhando ao Narraway, que

relaxava cada vez mais. Se Garrick era tão reto e honorável como dizia Narraway, o"cristão robusto" que Vespasia conhecia, simplesmente não seria cúmplice do mau trato

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para um criado, e nem digamos o tipo de perigo que ela e Gracie tinham começado a

temer.

Narraway viu sua indecisão.

—Mas é um homem pouco compassivo se acreditar que está sendo criticado -

prosseguiu—. Não gostaria que ficassem em tecido de julgamento seus assuntos. Como

muitos homens orgulhosos, é muito ciumento de sua intimidade.

Charlotte levantou ligeiramente o queixo.

—E o que poderia me fazer, senhor Narraway? Arruinar minha reputação na alta

sociedade? Careço dela. Meu marido é oficial da Brigada Especial, um homem que as

autoridades utilizam mas fingem que não existe.

Quando era superintendente do Bowl Street poderia ter tido aspirações sociais, mas

agora já não há possibilidade disso.

Narraway se ruborizou ligeiramente.

—Sei, senhora Pitt. Muita gente faz grandes coisas que não são reconhecidas

publicamente e talvez nem sequer agradecidas.

O único consolo é que se não lhe elogiarem por seus êxitos, tampouco podem lhe

 jogar na cara seus fracassos. -seu rosto se escureceu e conteve uma intensa emoção—. E

todos os temos.

Havia tanta tristeza em sua voz, por muito que tratasse de dissimulá—la, que ela se

deu conta de que falava de si mesmo, e de algo que tinha aprendido dolorosamente e não

observado em outros. Não se tratava de uma mera opinião, mas sim de uma certeza.

—Estou preocupado por você, senhora Pitt - continuou—. É claro, Garrick não

mudará o conceito que têm seus amigos de você, mas pode exercer uma cruel influência

em toda sua família, se o propõe ou se sente vulnerável.

Narraway a observava com muita atenção. Pareceu-lhe que tinha um olhar

cativante, quase como se a dominasse fisicamente.— Acredita que fez mal ao Martin Garvie? -perguntou—. Lhe rogo que seja sincero,

tanto se posso fazer algo por ajudar como se não. As mentiras, embora convenientes, não

mudarão minha conduta, asseguro.

Nos olhos do Narraway houve um brilho, um brilho de humor apesar das demais

emoções que espreitavam.

—Não tenho nem idéia. Não me ocorre por que deveria ser assim. O que sabe dele?

—Muito pouco. Mas sua irmã, Matilda, viveu com ele toda sua vida e ela é a queestá assustada - respondeu Charlotte.

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—Ou doída? -replicou ele com as sobrancelhas ligeiramente arqueadas—. Não

poderia ser que se distanciaram e lhe custa aceitá—lo? Talvez se sente sozinha, e os

laços são mais estreitos para ela que para ele. Se for assim, acreditará o que seja, até um

perigo do que deve resgatá—lo, porque é mais fácil que aceitar que ele não a necessita.

De novo Charlotte detectou uma tristeza em sua voz, uma sombra do lampião de

gás que deixava ver uma antiga dor nem sempre visível, e lhe surpreendeu o fato de que

ele também soubesse algo de Pontua.

—É claro que é possível - manifestou Charlotte com suavidade—. Mas essa

possibilidade não exime da necessidade de assegurar-se que Martin esteja bem, não lhe

parece?

Esteve a ponto de acrescentar que ele devia sabê—lo tão bem como ela, mas antes

que as palavras fossem a seus lábios viu que ele compreendia e não houve necessidade

de falar.

Ficaram ali em pé uns segundos. Depois ele se ergueu. —De todos os modos,

senhora Pitt, por sua segurança, rogo-lhe que não continue fazendo indagações sobre o

senhor Garrick.

Não temos motivos para acreditar que tenha feito mal a um criado, que não seja a

sua reputação, e isso é algo que você não pode reparar.

—Eu gostaria de lhe agradar, senhor Narraway -replicou ela com serenidade—. Mas

me acho em condições de ajudar a Pontua Garvie, de modo que não posso cruzar os

braços.

Não me ocorre de que modo pode incomodar isso ao senhor Garrick, a não ser que

tenha cometido uma injustiça. Se for assim, então, como qualquer outra pessoa, deve

responder por isso.

O rosto do Narraway refletiu exasperação.

—Mas não ante você, senhora Pitt! Não há...? -se interrompeu.Ela sorriu com grande encanto.

—Não -disse ela—, não o tenho feito. Posso lhe oferecer uma xícara de chá?

Tomamos na cozinha, mas é muito bem recebido.

Ele ficou imóvel, como se algo muito importante dependesse dessa decisão, como

se até do salão pudesse perceber a calidez, o agradável ambiente caseiro do chão

esfregado, a roupa limpa, a reluzente porcelana a China do aparador e o persistente aroma

de comida da cozinha.

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—Não, obrigado. Devo ir -disse por fim. Sua voz continha o pesar que não era

capaz de expressar com palavras—. Boa noite.

—Boa noite, senhor Narraway.

Charlotte o acompanhou à porta e observou como sua figura esbelta e erguida se

afastava com uma elegância quase militar pelo atalho molhado pela chuva para a rua.

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Capítulo 10 

Pitt agradeceu ao Trenchard sua ajuda e partiu de Alexandria com uma pontada de

pesar que o surpreendeu.

Sentiria falta das noites cálidas, pálidas de estrelas, a brisa procedente do mar que

trazia um aroma de limpo por cima do das especiarias e a imundície das calorosas ruas, o

som da música e de vozes que não compreendia, as cores dos bazares, a fruta.

Mas em Londres haveria menos mosquitos e nenhum escorpião. Sem dúvida, no

inverno que se aproximava não faria um calor abafadiço e pegajoso que lhe fizesse suar a

mares, nem haveria uma luz que o deslumbrasse e obrigasse a entrecerrar os olhos à

todas as horas.

 Além disso, deixaria de ter a sensação de ser um estrangeiro que se intrometia em

uma terra onde as pessoas como ele eram diferentes e mal recebidas, e de lhe remoer a

consciência por ter contribuído à pobreza do país.

Na Inglaterra também havia pobreza, é claro. As pessoas morriam de fome, frio e

enfermidade, mas era sua gente, ele era um deles e não tinha a culpa.

Em pé na coberta do navio, com a água brilhante agitando-se a seu redor enquanto

a cidade desaparecia ao longe, tinha a sensação de que sua missão tinha ficado

incompleta.

O que ia dizer a Narraway? Sabia muito mais da Ayesha Zakhari, e não era

absolutamente o que tinham acreditado, o que obrigava a reformular a pergunta de por que

tinha sido assassinado Lovat.

Parecia não conduzir a nada, e Ayesha não era estúpida.

 Acima de tudo queria estar em casa com Charlotte, as crianças, o calor de seu lar e

a familiaridade das ruas que conhecia como a palma de sua mão e onde entendia oidioma.

Demoraram outros três dias em atracar no Southampton e, continuando, o trajeto

em trem de volta a Londres, que em realidade foram menos de duas horas, mas que lhe

pareceram eternas.

Por volta das sete estava na porta do escritório do Narraway, decidido a deixar uma

nota se não o achasse, mas desejando com veemência dar essa mesma noite toda a

informação e assim poder voltar para sua casa e dormir tudo o que quisesse, rodeado de

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luxo e de tudo o que era doce, íntimo e querido, sem a necessidade de ocupar sua mente

no que diria ou faria na manhã seguinte.

Narraway se achava em seu escritório. De modo que já não havia escapatória.

Recostou-se em sua poltrona enquanto Pitt entrava e fechava a porta atrás de si. Seu olhar

era penetrante, mas cauteloso, estava preparado para defender-se contra suas

indagações.

Pitt estava muito cansado, tanto físico como emocionalmente, para prestar atenção

ao protocolo. Sentou-se frente a ele e estirou as pernas. Doíam-lhe os pés e tinha frio por

causa do esgotamento e o repentino ar fresco próprio do outubro inglês.

Narraway se limitou a esperar que falasse.

—É uma mulher extremamente inteligente, culta e instruída, de família cristã -

explicou Pitt—. Mas também uma patriota egípcia a quem preocupa os pobres de seu país

e a injustiça de uma dominação estrangeira.

Narraway apertou os lábios e juntou os dedos, com os cotovelos apoiados nos

braços de sua poltrona.

—De modo que é uma mulher que veio aqui com um objetivo político e não só para

fazer fortuna -disse sem surpresa na voz. Sua expressão não se alterou o mínimo—.

 Achava que poderia influir na indústria do algodão através do Ryerson?

—Isso parece -respondeu Pitt.

Narraway suspirou e seu rosto se inundou de tristeza.

—Que ingênua —murmurou.

Pitt teve um forte pressentimento de que não falava unicamente da Ayesha Zakhari

e seu desconhecimento dos meandros da política.

Recostou-se em sua cadeira para tentar ficar a vontade, mas não conseguiu relaxar

o corpo.

Havia uma tensão dentro dele que era evidente na sala.—Disse instruída. No que? -perguntou.

—História, idiomas, sua própria cultura — esclareceu Pitt—. Seu pai era um homem

erudito e ela sua única filha. Ao que parece, descobriu nela uma excelente companheira e

lhe ensinou grande parte do que sabia.

O semblante do Narraway se escureceu. Parecia extrair das palavras do Pitt muito

mais que os meros fatos que aludiam.

Pensava que tinha sido educada na companhia intelectual de um homem maisvelho, que se sentia cômoda nela e estava acostumada tanto as suas vantagens como

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talvez as suas inconveniências? Pitt se perguntou se isso lhe tinha servido de treinamento

para cativar ao Ryerson sem dar a impressão de ser muito jovem, ingênua e impaciente.

Ou a tinha convertido em uma mulher para quem os homens jovens eram tão pouco

sutis e superficiais que se sentia incômoda com eles. Podia estar realmente tão

apaixonada pelo Ryerson como ele achava?

Então, por que demônios tinha assassinado Lovat? Tinha lhe escapado algo crucial

em Alexandria, depois de tudo?

Narraway o observava.

—O que acontece, Pitt? -perguntou bruscamente.

Estava inclinado para frente, As mãos lhe tremiam ligeiramente.

Pitt era muito consciente das ondas de emoção que subjaziam sob os fatos. Odiava

trabalhar com um superior que era evidente que confiava muito pouco nele, fosse qual

fosse à razão.

Era por sua segurança? Pela de outra pessoa? Ou protegia algo dentro de si que

Pitt não podia adivinhar sequer?

—Nada que pareça estar relacionado com o Lovat ou com o Ryerson -respondeu—.

Ela era uma seguidora apaixonada de um dos cabeças da insurreição do Urabi, um

homem mais velho.

 Apaixonou-se por ele, mas ele a traiu a ela e à causa. Foi um golpe amargo.

Narraway tomou uma profunda baforada de ar e exalou em silêncio.

—Sim — limitou-se a dizer.

Pitt esperou uns segundos, convencido de que Narraway ia acrescentar algo.

Parecia que na mente de seu superior se amontoavam centenas de idéias difíceis de

expressar.

Mas quando falou mudou de assunto.

—O que tem sobre Lovat? -perguntou—. Estabeleceu contato com alguém que oconhecesse? Deve haver algo mais que o que põe nos expedientes. Pelo amor de Deus, o

que esteve fazendo na Alexandria todo este tempo?

Pitt dominou sua irritação e explicou brevemente o que tinha feito, suas posteriores

indagações sobre o Edwin Lovat e sua carreira militar no Egito, e Narraway voltou a

escutar em um silêncio desconcertante.

—Não pude averiguar nada que indique um motivo para havê-lo assassinado -

terminou Pitt—. Parecia um soldado normal e comum, competente embora não brilhante,um homem bastante decente que não fez particularmente inimigos.

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—E sua reforma por invalidez? -perguntou Narraway.

—Febres -replicou Pitt—. Malária, que eu saiba. Não foi o único que a pegou nessa

época. Não parece que houvesse nada singular nisso. Enviaram—no de volta a Inglaterra,

mas de forma honrosa. Não há nada que ponha em dúvida sua folha de serviços nem sua

carreira.

—Isso já sei - disse Narraway cansativamente—. Seus problemas pareceram

começar a sua volta.

—Problemas? -insistiu Pitt.

 A expressão do Narraway era amarga.

—Pensava que tinha investigado ao homem pessoalmente.

—Fiz isso - replicou Pitt com tom seco—. Se se lembrar, o disse. —Era consciente

de quão cansado estava. Ardiam-lhe os olhos do esforço por mantê-los abertos e lhe doía

o corpo das horas que tinha permanecido sentado no trem.

Tinha frio apesar do fogo que ardia na lareira do escritório.

Talvez a tudo isso se somavam a fome e o esgotamento. Ardia em desejos de ir-se

a casa, ver Charlotte e estreitá—la em seus braços, e lhe era um esforço enorme mostrar-

se cortês com o Narraway.

Deu a muitos homens e mulheres motivos para que o odiassem -continuou

bruscamente—. Mas não temos nada que indique que um deles esteve no Eden Lodge a

noite que o mataram. Ou descobriu algo?

Narraway contraiu o rosto, Pitt se surpreendeu ao ver o poder que irradiava.

Narraway não era um homem corpulento e, entretanto, sua mente e suas emoções

dominavam a estadia, e o teriam feito independentemente do número de pessoas que se

acharam nela.

Pela primeira vez, Pitt se deu conta do pouco que sabia do homem em cujas mãos

estava seu destino, às vezes inclusive sua vida. Não sabia nada de sua família ou de suaformação, mas isso carecia de importância.

Tampouco tinha sabido tais coisas do Micah Drummond, ou do John Cornwallis, e

não lhe tinha importado. Sabia no que acreditavam, o que lhes preocupava, e os

compreendia, às vezes melhor do que eles se compreendiam a si mesmos.

Mas ele tinha mais experiência, conhecia melhor que eles a natureza humana, da

qual só tinham visto uma pequena parte por si mesmos.

Narraway era um homem muito mais inteligente, mais sutil. Nunca revelava nada desi mesmo.

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O mistério, os equívocos, o averiguar informação sem dá-la era sua profissão. Mas

ver-se obrigado a confiar às cegas era uma experiência nova para o Pitt, e não muito

agradável.

—Fez isso? -repetiu.

Desta vez era um desafio.

Por um momento se olharam em silêncio, de forma desapaixonada. Pitt não estava

seguro de se podia permitir um enfrentamento, mas estava muito cansado para andar-se

com pés de chumbo.

Narraway falou com muita firmeza, como se de repente tivesse decidido tomar as

rédeas da conversa.

—Por desgraça, não, Mas nossa missão é proteger ao Ryerson, se for possível.

— A custa de levar a forca uma mulher inocente? -manifestou Pitt com amargura.

— Ah! —Narraway deixou escapar o ar em um suspiro, relaxando o semblante, como

se tivesse descoberto algo de grande interesse—. Agora é você da opinião de que Ayesha

Zakhari é inocente? Se for assim, então averiguou algo no Egito que não me disse.

 Acredito que é o momento de fazê-lo! O julgamento começa amanhã.

Pitt sentiu uma sacudida tão forte como se o tivessem esbofeteado.

No dia seguinte! Isso não lhes deixava tempo para nada! A verdade foi a seus lábios

quase como se não tivesse poder para impedi—lo.

—Fui ao Egito acreditando que era uma mulher muito atraente de duvidosa moral,

disposta a utilizar seus encantos para procurá—la riqueza e os luxos que de outro modo

não poderia obter. —Via os olhos do Narraway cravados nos seus, e a leve curva de um

sorriso em seus lábios—. E eis voltado sabendo que é de bom berço, que sabe expressar

suas idéias e que provavelmente é muito mais culta que nove décimos parte dos homens

da alta sociedade londrina, por não falar das mulheres.

 Acredita apaixonadamente na causa da independência econômica e o bem—estarde seu país. Foi traída uma vez, e pode ser que lhe custe voltar a confiar em um homem,

qualquer que sejam seus ideais. Entretanto, desde que está no cárcere não disse nada

para implicar ao Ryerson.

—E o que demonstra isso? -perguntou Narraway.

—Que há algo de vital importância que não sabemos! -replicou Pitt, empurrando a

cadeira para trás—. Não o temos feito muito bem. -levantou-se—. Nenhum dos dois.

Narraway inclinou um pouco a cabeça para olhá—lo nos olhos.

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—Sei que Edwin Lovat foi um homem profunda e destrutivamente desventurado -

declarou em voz baixa—. E nenhum dos dois descobrimos o motivo.

Pode ser que não tenha nada que ver com seu assassinato, mas isso tem tanto

sentido como todo o resto.

—Bom, não tenho nem idéia do que se trata - replicou Pitt—. Segundo seus

superiores na Alexandria, era um homem de convicções religiosas, apreciado e bom em

seu trabalho, que se apaixonou pela Ayesha, mas sem tomá—la muito a sério.

O idílio terminou antes que partisse do Egito. Certamente, não ficou com o coração

destroçado, nem ela tampouco.

—Ninguém está insinuando essa classe de paixão, Pitt - disse Narraway com uma

nota áspera na voz—. Era uma mulher formosa e ele estava longe de seu país.

Desde que voltou do Egito foi de mulher em mulher, mas não foi por seu amor a ela.

Ela só foi uma mais.

—Tem certeza?

—Sim. Falei com pessoas de seu círculo. Viu—a várias vezes em Londres antes de

incomodar-se em localizá—la. Estava implicando-se mais do que queria com outra mulher

e queria escapar do enredo.

Que o vissem cortejar à senhorita Zakhari podia servir para esse propósito. Gostava

de caçar não que caçassem a ele.

Pitt vacilou na porta. Estava muito cansado para pensar com clareza.

—Então, que problema tinha? O que ocorreu no tempo transcorrido desde que

partiu do Egito e chegou a Inglaterra?

— Ainda não sei -respondeu Narraway—. Mas não estou certo de que esteja

relacionado com sua morte.

—E a senhorita Zakhari?

—Como disse você, há algo que não sabemos, algo que poderia derivar em maisque um simples assassinato sem sentido.

Pitt abriu a porta e se deteve com uma mão nela.

—Boa noite.

Narraway esboçou um sorriso.

—Boa noite, Pitt.

Estava escuro quando Pitt chegou ao Keppel Street.

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 As luzes brilhavam ao longo da calçada como uma série de luas refletidas

interminavelmente, que se foram enfraquecendo na bruma até que a última que conseguia

ver era apenas uma insinuação, uma luminescência sem forma.

 Abriu a porta com suas chaves e ficou imóvel saboreando o momento, inalando os

aromas familiares a cera, roupa limpa e a agradável fragrância dos crisântemos da mesa

do vestíbulo.

 As luzes do salão estavam apagadas. As crianças deviam estar acima, e Charlotte e

Gracie na cozinha. Tirou as botas, desfrutando da sensação do frio linóleo sob seus pés.

 Aproximou-se sem fazer ruído à porta e a abriu.

Por um instante, Charlotte não se deu conta de sua presença—estava sozinha na

estadia, com a cabeça inclinada sobre a agulha, o semblante sério, seu abundante cabelo

desprendendo-se das forquilhas e brilhante à luz do lampião de gás.

Nesse instante, essa visão lhe pareceu mais formosa que nada do que pudesse

imaginar, mais que o entardecer sobre o Nilo ou o céu do deserto tachonado de estrelas.

—Olá -disse em voz baixa.

Ela deu um pulo e o olhou um instante com incredulidade, depois deixou cair o

trabalho de costura ao chão e se jogou em seus braços.

 Até muitos minutos depois, até ouvir os passos de Gracie no vestíbulo, não se

separaram, e Charlotte, com o rosto ruborizado, pôs água a ferver.

—Voltou para casa! -exclamou Gracie com profunda alegria. Logo, recordando sua

dignidade, baixou a voz até um tom quase normal e acrescentou—: Bom, me alegro de vê-

lo são e salvo. Suponho que tem fome.

Isso era esperado. Que tivesse fome significava voltar para a normalidade. Ao ver

que ele não respondia em seguida, olhou-o com um vislumbre de preocupação.

—Sim, por favor - disse ele sorrindo-lhe, e se sentou em sua cadeira de sempre —.

Mas um sanduíche de frios é suficiente. Tudo vai bem por aqui?—É claro que sim -respondeu Gracie com firmeza - Charlotte se voltou do fogão

enquanto esperava que fervesse a água. Tinha os olhos brilhantes.

—Muito bem - confirmou, sem olhar para Gracie.

Ele não passou por cima a insistência, nem a cumplicidade que denotava o fato de

que não se olharam sequer, quase como se se pusessem de acordo em dar essa resposta

antes de ele chegar.

—O que têm feito em minha ausência? -perguntou para iniciar conversa.

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Charlotte o olhou, mas depois de uma hesitação tão fugaz que a ele lhe teria

escapado se não estivesse observando muito atento. Era como se tivesse estado a ponto

de voltar-se para Gracie, mas tivesse mudado de opinião.

—O que têm feito? -repetiu ele, antes que Charlotte tivesse tempo de responder

uma verdade pela metade que logo seria incapaz de retirar.

Ela respirou fundo.

—Gracie tem uma amiga cujo irmão parece ter desaparecido. Tentamos averiguar o

que aconteceu a ele.

Leu-lhe a expressão.

—Mas não o conseguiu -disse.

—Não. Não, não sabemos que mais fazer. Explicar-lhe-ei isso tudo amanhã.

—Por que não esta noite?

 A pergunta brotou da ansiedade dela adiar porque havia algo que o desagradaria ou

preocuparia.

Ela sorriu.

—Porque está cansado e tem fome, e temos coisas muito mais agradáveis de que

falar. Tentamo—lo, mas não conseguimos grande coisa.

Como liberada de estar pendente de cada palavra, Gracie deu meia volta e saiu

disparada à despensa para cortar os frios, e Charlotte subiu para despertar as crianças.

Daniel e Jemima desceram correndo as escadas e se jogaram nos braços do Pitt,

quase atirando o da cadeira, abraçando—o, lhe fazendo uma pergunta atrás de outra,

sobre o Egito, Alexandria, o deserto, a travessia em navio, e interrompendo continuamente

as respostas.

Depois ele abriu a mala e lhes deu os presentes que havia trazido, e todos ficaram

encantados.

Entretanto, na manhã seguinte ele voltou a puxar o tema quando Gracie saiu paracomprar e Daniel e Jemima estavam no colégio.

Tinha adormecido até tarde e quando desceu achou Charlotte assando pão.

—Quem é o irmão desaparecido? -perguntou, aceitando o chá e a torrada, e abrindo

o bote de geléia para ver se havia suficiente para satisfazer seu apetite.

Seu sabor azedo era um de seus favoritos, e lhe parecia que tinham transcorrido

meses desde a última vez que tinha desfrutado de uma torrada rangente.

Pensou que havia a quantidade justa. Levantou a vista para ela—. E então? A ela tinha escurecido o rosto. Seguiu amassando de forma mecânica.

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—Era o valete do Stephen Garrick, no Torrington Square. Uma família muito

respeitável, embora a tia Vespasia não gosta nada do pai, Ferdinand Garrick, um…... - se

interrompeu, com as mãos imóveis—. O que acontece?

—Ferdinand Garrick? -perguntou ele.

—Sim. Conhece—o?

Nesse momento ela só estava intrigada.

—Stephen Garrick era o oficial em comando na Alexandria quando reformaram

Lovat por invalidez.

Ela deixou de amassar e levantou a vista para ele.

—Significa algo isso? -perguntou devagar, lhe dando voltas na cabeça—. Só é uma

coincidência, não é?

Mas até enquanto falava, outros pensamentos se amontoaram em sua mente,

dúvidas, indícios, lembranças do que havia dito Sandeman.

—O que acontece? -perguntou Pitt.

Ela se secou as mãos no avental.

—Receio que tenha acontecido realmente algo grave ao Martin Garvie - respondeu

muito séria—. E talvez também ao Stephen Garrick. Encontrei ao sacerdote que Martin foi

ver no bairro do Seven Dials pouco antes de desaparecer.

Trabalha, sobretudo com soldados que estão passando um mau momento, —Viu a

ansiedade no rosto do Pitt e se apressou a continuar antes de que pudesse expressá —

la—. Fui de dia. Tudo foi muito normal! Thomas, ficou profundamente afetado.

Recordou-o com um calafrio, não pela sujeira ou o desespero, mas sim pela dor que

tinha percebido muito fundo em Sandeman.

Pitt esperava rígido, o chá esquecido e esfriando-se na xícara.

—Um sacerdote? -perguntou intrigado—. por que? Pôde lhe dizer algo?

—Não, não com palavras.—O que quer dizer? Se não foi com palavras então, como? Como?

—Com sua reação - replicou ela. Sentou-se frente a ele, desatendendo o pão. Não

se danificaria se o deixava repousar um momento—. Thomas, quando lhe mencionei o

nome do Martin ficou tão horrorizado que perdeu a fala. —Sabia que sua voz estava

carregada da emoção que retornava a ela a torrentes, invadindo todo seu ser —.

Sabe algo terrível - continuou em voz baixa—, mas como o disseram em confissão

não pode repeti—lo. Nada do que lhe disse pôde persuadi—lo, nem sequer que a vida doMartin poderia estar em perigo.

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Esperou, observando seu rosto, desejando que a livrasse da confusão e lhe

indicasse alguma maneira que a ela não tinha ocorrido para poder seguir ajudando.

—Perigo por causa de quem? -perguntou ele.

—Não sei —reconheceu ela. Explicou-lhe brevemente o pouco que tinha sido capaz

de averiguar e o que tinha deduzido—. Mas, seja o que fosse o que lhe disse Martin, o

senhor Sandeman não... -se interrompeu.

Pitt tinha os olhos muito abertos, o rosto pálido, o corpo repentinamente rígido,

como se o tivessem surpreendido em um instante de pânico.

—Thomas, o que acontece?

—Disse Sandeman? -manifestou Pitt com um nó na garganta.

—Sim, por que? Conhece—o? -sem ter nenhum pensamento claro, Charlotte

percebeu a ansiedade dele como se compreendesse—. Quem é? —Não queria averiguar

nada desagradável do sacerdote, que lhe tinha parecido um homem de profunda e sincera

compaixão, mas não podia permitir-se outra coisa que a verdade, e lhe dar as costas a

essas alturas não serviria de nada.

O medo seria tão dilacerador como algo que ele pudesse lhe dizer —. Sabe? —

voltou a perguntar.

—Não sei - respondeu ele—. Mas no exército Lovat tinha três amigos com quem

passava a maior parte de seu tempo livre: Garrick, Sandeman e Yeats. Disseram que tanto

Garrick como Sandeman poderiam estar em perigo ou apuros. Custa acreditar que seja

uma casualidade.

—O que tem sobre Yeats?

—Ouvi dizer que está morto, mas devo me assegurar.

—De modo que a morte do Lovat está relacionada com o Egito e não

necessariamente com o Ryerson? -perguntou ela, mas surpreendentemente sem o tom

esperançado que teria esperado fazia apenas uma hora.—É possível - concordou ele—. Mas continua sem ter sentido. Por que agora, anos

depois de ir-se da Alexandria? E o que tem que ver Ayesha Zakhari com isso? Lovat não

quis casar-se com ela, foi só um capricho. E pelo que sei, ela tampouco esteve apaixonada

por ele.

—Não? -disse Charlotte cética.

Ele sorriu.

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—Não. Tinha querido muito a um homem. Era totalmente diferente do Lovat, um

homem de seu país, mais velho que ela, um patriota que se corrompeu e a traiu a ela e

tudo aquilo no que os dois acreditavam.

—Sinto - murmurou ela, e o dizia a sério. Nunca tinha visto a Ayesha e sabia pouco

dela, mas tratou de imaginar a amargura da desilusão, a magnitude da dor —.

Mas o fato de que Lovat fora assassinado em seu jardim não pode ser uma

coincidência.

Olhou-o fixamente, vendo nele compaixão e reserva, e um novo sentimento

descarnado da tragédia. Estendeu uma mão e a pôs sobre a dele.

Ele voltou a sua, com a palma para cima, e fechou os dedos com suavidade.

—Suponho que não - assentiu—. Mas devo achar ao Yeats, e se estiver morto,

averiguar como ocorreu e por que.

—O julgamento do Ryerson começa hoje - disse ela, observando seu semblante.

—Sim, sei. Tentarei localizá—lo antes que comece.

Pitt hesitou só um momento; depois, lhe soltando a mão, empurrou a cadeira para

trás e se levantou.

Pitt se deteve na escadaria piscando, nem tanto pela suave luz outonal mas pelo

que lhe havia dito o rígido oficial de expressão taciturna.

 Arnold Yeats tinha morrido. Tinha ocorrido menos de quatro anos depois de sua

volta ao Egito. Tinham-lhe destinado à a Índia uma vez que recuperou de todo a saúde.

Era um oficial de talento que tinha se destacado por sua extraordinária coragem.

Não parecia conhecer o medo, e seus homens o tinham visto como a um herói a quem

teriam seguido a qualquer parte.

—Valente - manifestou o oficial olhando ao Pitt com aflição no olhar —. Inclusive

imprudente. Arriscava-se muito. Condecoraram—no com caráter póstumo. Uma lástima.

Não podemos nos permitir perder homens como ele.—Disse imprudente? -perguntou Pitt.

O rosto do oficial se contraiu e algo em seu interior se fechou.

—Não era a palavra adequada - disse secamente.

Pitt não conseguiu lhe surrupiar nada mais. Agradeceu-lhe e partiu.

 Assim, dos quatro amigos da Alexandria, dois tinham morrido, um no campo de

batalha e outro assassinado, o terceiro aparentemente tinha desaparecido e o quarto era

sacerdote no Seven Dials e ficou horrorizado ao ouvir mencionar o nome do Garrick.

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Pitt virou sobre seus calcanhares e se dirigiu diretamente ao meio—fio, onde agitou

o braço para deter a próxima carruagem de aluguel que passasse.

O Old Bailey estava abarrotado de pessoas que empurravam-se para frente,

gritando-se uns aos outros, queixando e brigando para entrar.

Com dificuldade, Pitt se abriu caminho a cotoveladas para a parte dianteira até que

o deteve por fim um agente, plantando-se em seu caminho.

—Desculpe, senhor. Não pode entrar. Se queria um assento deveria ter vindo antes.

Os primeiros em chegar são os primeiros em entrar, essa é a regra. É justo, não?

Pitt inalou ar para discutir, mas se deu conta de que era inútil. Não tinha autorização

que mostrar ao agente para que lhe desse preferência.

Para ele era um espectador curioso mais que tinha ido ver a queda de um homem

poderoso e contemplar a uma mulher exótica acusada de assassinato.

E não eram poucos os que pretendiam o mesmo. Empurravam—no por detrás, lhe

pisoteando os pés, lhe golpeando e lhe dando cotoveladas nas costas. O agente mantinha

a calma com muita dificuldade, com o rosto ruborizado e brilhante de suor.

Esperarei aqui - disse Pitt.

—É inútil. Não vai haver lugar hoje.

O agente indicou com a cabeça a sala do tribunal.

—Preciso falar com alguém que está dentro -replicou Pitt.

O agente não pareceu acreditar nele, mas não disse nada.

Pitt passou de comprimento a sala do tribunal onde estavam julgando ao Ryerson e

 Ayesha Zakhari, e esperou impaciente junto à seguinte.

Transcorreu uma hora sem que ninguém saísse e começou a perguntar-se se não

estava perdendo o tempo. Talvez Narraway não estava ali, depois de tudo.

Mas se obrigou a esperar até o descanso e a observar a todas as pessoas que

saíam. Por fim se abriram as portas e saiu um homem magro e miúdo de cabelo castanho.Olhou a esquerda e direita antes de pôr-se a andar. Pitt se aproximou dele.

—Desculpe. Você estava no julgamento do Ryerson. —Era mais uma afirmação que

uma pergunta, mas as palavras lhe saíram sem pensar.

—Sim - assentiu o homem—. Mas está abarrotada. Não poderá entrar.

—O que aconteceu até agora?

O homem deu de ombros.

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—Só o que cabia esperar, um montão de policiais expondo o que acharam ao

chegar à cena do crime. Ela o fez, é claro, o único mistério aqui é como pôde acreditar que

sairia impune!

Pitt olhou às pessoas que esperava em vão a seu redor, como se ainda houvesse

alguma possibilidade de presenciar o drama.

—Poderia derrocar o governo à longo prazo — acrescentou o homem, respondendo

a pergunta que Pitt só tinha formulado em sua mente—. Uma maioria escassa e um

ministro importante comprometido com uma mulher assim. Problemas no Manchester. —

Fez uma careta ligeiramente zombadora—. Pensei que seria mais interessante. O

advogado não tem nada. Pode ser que volte amanhã.

Sem esperar, abriu passagem a empurrões e desapareceu entre a multidão.

Pitt se aproximou mais à porta se por acaso tinha uma oportunidade melhor para ver

o Narraway, se é que realmente estava dentro.

Tal como resultaram as coisas, alcançou-o quando cruzava o vestíbulo para as

escadarias para partir.

Olhou ao Pitt com uma irritação momentânea, acreditando que tinha se chocado

com um desconhecido, depois o reconheceu e seu rosto se iluminou de interesse.

—Sim? -perguntou.

—O que aconteceu dentro? -replicou Pitt.

Narraway se deteve e olhou ao Pitt com os olhos muito abertos.

—Veio para me perguntar isso?

Havia uma nota perigosa em sua voz e Pitt viu as rugas de tensão que sulcavam

seu rosto.

Dominava-se com esforço. Não tinha podido ajudar ao Ryerson, e Pitt voltou a

recordar vivamente a profunda importância que por alguma razão tinha para ele.

Narraway esperava.—Vim para lhe dizer que Arnold Yeats está morto - respondeu Pitt—. Era o quarto

soldado do grupo dos amigos do Lovat. Lovat foi assassinado, Garrick desapareceu e

Sandeman se converteu em um escuro sacerdote nas ruelas do Seven Dials.

Narraway permaneceu totalmente rígido.

—Seriamente? E como sabe?

—Perguntei no Ministério de Guerra!

Era a resposta óbvia. Logo se deu conta de que Narraway não se referia ao Yeats,mas a Garrick e a Sandeman.

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—Mantenha a sua mulher à margem disto, Pitt! -disse Narraway em voz baixa,

cautelosa, com o sobrecenho franzido.

Passou por cima o brilho de cólera nos olhos do Pitt— Ela é a única que relacionou

ao Lovat com o Garrick e Sandeman, que eu saiba. E ainda não sei com o que nos

enfrentamos.

Estendeu uma mão, pegou Pitt pelo cotovelo e, aferrando-o com força, conduziu-o a

uma porta lateral.

—Vai mal o julgamento? -perguntou Pitt. Mal era uma pergunta.

Narraway se apoiou contra o arco da porta, mas tinha o corpo rígido, não havia

elegância nele. Parecia muito tenso para permanecer muito tempo em alguma postura.

—Não estão aqui para examinar as provas de culpa ou inocência - replicou

amargamente—. Dão por assentada sua culpa, e acredito que os jurados provavelmente

também são dessa opinião.

Pelo que aqui se trata é de se o governo poderá suportar o escândalo. É o mesmo

instinto que leva às pessoas a caçar cervos ou dar tiros em animais selvagens, o

espetáculo de ver como se afunda alguém com mais galhardia e poder que eles mesmos.

Não têm a capacidade para criar, só para destruir, e isso é mais embriagador que

nenhuma outra coisa.

Pitt viu ira e impotência refletidas no rosto do Narraway, e de novo se sentiu quase

contagiado por sua emoção.

—Está dizendo que se trata de um problema político por acaso ou de propósito? -

perguntou.

 A cólera inundou os olhos do Narraway, logo desapareceu.

—Não sei! -respondeu com uma nota de desespero.

—Eu não acredito que Ayesha Zakhari seja culpada do estúpido assassinato de um

homem a quem já não tratava nem lhe importava - disse Pitt com ar abatido.—E se sua intenção era derrubar ao Ryerson de qualquer forma? -perguntou

Narraway, seus olhos negros implacáveis e furiosos.

—Veio a Inglaterra porque era uma idealista que achava que podia contribuir para a

independência econômica de seu país - manifestou Pitt com profunda convicção—. Isso

não é tão pouco realista.

—Conheço tão bem como você a história econômica do Egito! -replicou Narraway—.

E foi a expansão sob o Said Pasha, e mais tarde sob o quediva Ismail, e a volta do algodãoamericano depois de sua guerra civil, o que afundou aos fabricantes de algodão e obrigou

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ao Ismail a abdicar em setenta e nove, e abriu o caminho para que nos fizéssemos com o

controle que agora temos.

Se Ayesha Zakhari é instruída como diz você, sem dúvida sabia ainda melhor que

nós.

Pitt não tinha resposta para isso. Estavam apanhados em um labirinto de fatos que

não tinham outra explicação coerente que o impulso e a idiotice, e isso não era o que

queria acreditar.

—Será melhor que continue indagando - disse Narraway em voz baixa voltando-se,

quase como se não quisesse que Pitt visse esperança em seu rosto —. Apresente se em

meu escritório às sete da manhã - ordenou—. Depois de amanhã.

Narraway se afastou, deixando ao Pitt só.

Pitt averiguou todo o possível sobre o Arnold Yeats, mas isso não lhe ajudou a

compreender a morte do Lovat nem o que lhe tinha ocorrido no Egito, e continuava sem

ver nenhuma conexão com a Ayesha Zakhari.

Tampouco havia nada na folha de serviços do Morgan Sandeman, nem em sua

decisão de deixar o exército e fazer-se sacerdote que parecesse estar relacionado com o

crime.

O único fato que para ele tinha interesse era que a amizade que os tinha unido tão

estreitamente aos quatro na Alexandria parecia ter desaparecido de todo a sua volta a

Grã—Bretanha. Mas se tivessem mantido o contato por carta, Pitt dificilmente se teria

informado.

No dia que Pitt partiu cedo de casa para reunir-se com Narraway, Charlotte também

saiu, mas em direção oposta. Não disse ao Gracie aonde ia, porque não queria pô—la na

situação de ter que mentir se Pitt retornava antes que ela.

Tomou o ônibus a Oxford Street, e daí se encaminhou ao sul até o Dudley Street.

Titubeou um momento, tratando de recordar exatamente por onde a tinha levadoSandeman.

Era para a pracinha dos Seven Dials, mas antes de chegar a ela. Pôs-se a andar

pelo Great White Lion Street, virou à esquerda e entrou no beco. Estava diferente à luz da

manhã, um pouco mais pálido e descolorido, como se estivesse coberto por uma capa de

pó.

Tudo parecia menor.

Quantos metros tinham caminhado naquele dia? Não tinha nem idéia. Nessa manhãtudo lhe parecia muito longe.

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Um homem curvado e com o corpo contrafeito se aproximava dela. Não havia

malícia em seu rosto, mas algo em sua forma de andar dando tombos a assustou.

Tomou uma decisão repentina e começou a afastar-se dele, encaminhando-se ao

portal mais próximo.

Era uma loja difícil de catalogar. Pelo chão havia montões de roupa que cheirava a

mofo e umidade, assim como várias caixas torpemente colocadas umas sobre as outras.

—Sinto muito! -disse com pressa, e caminhou para trás, virou sobre seus

calcanhares e quase se chocou com uma mulher grosa de rosto pálido e sobrancelhas tão

finas que lhe conferiam uma expressão surpreendida e franca—. Sinto - repetiu, passando

por seu lado.

Desorientou-se por completo. Deu meia volta e experimentou outra porta. Tremia

apesar de não fazer frio. Tinha a mão levantada para bater, depois trocou de opinião e

decidiu abrir sem mais.

Deu-se conta de que a mulher a observava. Deteve-se tão perto que se retrocedia

um passo me chocaria com ela. Sentiu-se encurralada.

Empurrou a porta com todo o peso de seu corpo e abriu. O alívio a inundou quando

viu o vestíbulo e o longo corredor ao fundo.

Rezou para que Sandeman estivesse ali. Se a pegassem sozinha com a mulher

atrás dela, não teria escapatória! Isso era ridículo. A mulher certamente estava ali para

ajudar, assim como ela!

Cruzou o chão de pedra até a seguinte porta tão depressa que quase corria.

Tinha fechado a segunda porta e se aproximava da grande lareira quando

Sandeman saiu da copa, com uma expressão intrigada e cálida até que a reconheceu.

—Senhora Pitt. -secou as mãos com o trapo áspero que segurava. Tinha a pele

avermelhada, como se a tivesse queimado o sabão—. O que posso fazer por você?

Em sua voz havia rechaço e sua expressão se tornou hermética.Charlotte tinha contado com isso e tinha tratado de preparar-se. Mesmo assim, algo

em seu foro interno se desmoronou.

Tinha tido intenção de sorrir, mas o sorriso morreu antes de chegar a seus lábios.

—Bom dia, senhor Sandeman -respondeu em voz baixa. —  Voltei porque as

circunstâncias mudaram desde a última vez que falamos.

Interrompeu-se. Sabia que ele não acreditaria. Pelo bem de Pontua estava disposta

a lhe revelar algo mais, inclusive a pôr uma paixão que não teria posto antes.— As minhas não -replicou ele, lhe sustentando o olhar sem piscar.

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Ela se sentiu de novo impressionada ante a força que irradiava, como se dentro de

sua mente houvesse uma ilha de conhecimentos absolutos que não se viram afetados

pelas idas e vindas do acaso ou as paixões de outras pessoas.

—Sinto muito - acrescentou para suavizar sua negativa.

Ela continuou adiante embora só fora porque era absurdo ter chegado até ali e partir

de novo sem tentá—lo uma vez mais.

—Não esperava que o tivesse feito, senhor Sandeman. Mas desde a última vez que

o vi, meu marido voltou de Alexandria e me disse...

Calou-se. Ele tinha ficado pálido, e quando olhou nas mãos, viu que aferrava o trapo

com tanta força que a beira ameaçava lhe deixar marca na pele. Charlotte aproveitou a

oportunidade.

—E me explicou o que averiguou ali, em relação com a atividade militar do senhor

Lovat no Egito, e outras coisas... —Não queria ser mais específica, para impedir que se

desse conta do pouco que sabia em realidade—. Senhor Sandeman, temo que a vida do

Martín Garvie esteja em perigo.

Um membro veterano da Brigada Especial veio pessoalmente ver —me para me

advertir de que me estava metendo em assuntos realmente perigosos e que devia deixá —

lo estar, mas não posso fazê-lo quando acaso está em minhas mãos salvar alguém.

Receio que deixem que matem ao Martín Garvie porque não tem importância para

eles.

Sandeman tinha os olhos muito abertos, como se olhasse algo que o tinha deixado

petrificado.

— A Brigada Especial? - Parecia ter os lábios secos—. O que tem que ver com o

Martin Garvie?

—Já deve estar à corrente de que assassinaram ao Edwin Lovat. Apareceu em

todos os jornais - respondeu ela—. E que estão processando a uma mulher egípcia no OldBailey.

Inclusive aqui no Seven Dials se deve estar falando disso. É um grande escândalo

porque há um político importante comprometido. Poderia derrocar ao governo.

—Sim - assentiu Sandeman em voz baixa—. É claro que ouvi falar disso. Mas isto é

outro mundo. Para nós é uma notícia, nada mais.

Disse-o como se tratasse de acreditar ele mesmo, afastando o de si como se não

fosse sua responsabilidade.

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Charlotte percebeu como lhe escapava das mãos a escassa vantagem que tinha

conseguido, e não sabia como recuperá—la. Invadiu-lhe uma ligeira onda de pânico. Devia

tentar algo, ou ele voltaria a fechar-se em banda e então seria muito tarde.

—O senhor Yeats também está morto, sabe? -disse bruscamente.

Foi como se o tivesse golpeado. Abriu a boca e exalou com dificuldade. Ela

compreendeu que lhe havia dito algo que ele não sabia e que lhe tinha doído

profundamente.

Teria tempo mais tarde para sentir-se culpada, nesse momento devia lhe surrupiar o

que lhe tinha confiado Martin Garvie. Estava a ponto de falar, mas percebeu algo em seu

rosto que a deteve.

—Como... como morreu? -perguntou ele torpemente.

Desta vez era ele quem queria informação dela, e era consciente da ironia da

situação.

—Em combate -respondeu ela—. Em alguma parte da Índia. Parece que era

valente, embora imprudente. —interrompeu-se, ao ver que empalidecia.

—Em combate? —Ele se aferrou a isso como se se tratasse de uma espécie de

esperança se desesperada—, Quer dizer em uma missão militar?

—Sim.

Ele desviou o olhar.

—Por favor, senhor Sandeman! -disse ela com urgência—. Meu marido é um

homem inteligente e resuluto.

Conto com que averigue o que você sabe, mas poderia ser muito tarde para ajudar

ao Martin Garvie ou ao senhor Garrick, se estiverem juntos.

Charlotte não estava segura de se isso era prudente, ou se tinha ido muito longe e

sua ignorância a tinha traído. Viu a indecisão em seu rosto, e o coração lhe pulsou com

força enquanto esperava em tensão.Ele piscou, depois desviou o olhar dela e o cravou em suas mãos.

—Não acredito que possa fazer grande coisa por ajudar - declarou ele em tom

peremptório, e sua voz refletiu uma dor terrível—. Embora lhe revele tudo o que me disse

Martin, acredito que é muito tarde para todos.

O frio da sala a engoliu e se surpreendeu tremendo, com o corpo rígido.

— Acredita que também assassinaram ao Martin? Quem será o seguinte? Você? —

desafiou-o ela—. Vai ficar aqui esperando que venham também atrás de você? —Tremeu-lhe a voz de ira e de medo, e estirou o braço em um gesto inútil—. Não lhe importa esta

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gente o suficiente para querer salvar-se por ela? Quem vai cuidar desses desgraçados se

você não o faz?

Ele a olhou. Charlotte tinha posto o dedo na chaga.

—É seu trabalho! -exclamou frenética.

Não era justo, nem tampouco verdade em realidade. Não sabia nada dele e não

tinha direito a fazer tal afirmação. Se se tivesse zangado com ela o teria entendido.

—Martin tinha ouvido falar de mim -disse ele em voz muito baixa, mas como se

estivesse absorto em seus pensamentos, não hesitante como se pudesse interromper-se

em qualquer momento—. Tenho feito amizade com muitos soldados que estão

atravessando um mau momento e bebem muito porque vivem atormentados por

pensamentos e lembranças que não são capazes de esquecer.

Ou porque não sabem como voltar a integrar-se na vida que tinham antes de ir à

guerra. —Respirou fundo—. Pode ser que só sejam uns poucos dias para os que ficam em

casa, cuja vida é igual cada dia, pequenos sonhos. Para eles o mundo não mudou.

Ela não o interrompeu. Sua exposição não parecia guardar relação no momento,

mas ele se abria caminho para algo.

—No exército não é assim. Pode ser que seja muito pouco tempo, mas é toda uma

vida -continuou ele.

Falava do Egito, de si mesmo, do Stephen Garrick e do Lovat? Ou de todos os

homens perdidos e sem esperança que tinha atendido ali nos becos do Seven Dials?

—Martin tratou de ajudar ao Garrick. —Sandeman olhava fixamente o chão, fugindo

seu olhar —. Mas não sabia como fazê-lo. Seus pesadelos pioravam e eram cada vez mais

freqüentes.

Bebia para tentar aturdir-se, mas o álcool cada vez sortia menos efeito. Começou a

tomar também ópio.

Sua saúde se deteriorava e estava perdendo o controle de si mesmo. —Sandemandesceu ainda mais a voz e Charlotte teve que inclinar-se para ele para ouvi—lo. — Não

podia confiar em ninguém - prosseguiu—. Exceto no Martin, porque estava desesperado.

Martin acreditou que eu talvez pudesse lhe ajudar, se Garrick vinha ver —me ou se eu ia

vê-lo.

—Por que não foi? -perguntou ela, e percebeu em sua voz um tom áspero que não

tinha pretendido adotar, mas ele estava muito absorto em seus pensamentos para que lhe

doesse—. Só porque viva no Torrington Square em lugar de Seven Dials não significa quenão necessite sua ajuda! —acusou—o—. Era evidente que vivia em seu próprio inferno!

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Ele levantou a vista para ela, com os olhos inexpressivos.

—É claro! —encolerizou-se—. Mas eu não posso ajudá—lo! Não quer nem ouvir

falar da única coisa que sei dizer!

Ela não compreendeu.

—Se você não pode lhe ajudar com os pesadelos, quem então? Não é o que faz

aqui por estes homens? Por que não pelo Stephen Garrick?

Ele não disse nada.

—No que consistiam seus pesadelos? -insistiu ela, sabendo que fazia mal, mas sem

poder Conter-se. —  Disse-lhe Martin? Por que não podia lhe ajudar você a enfrentar a

eles?

—Diz isso como se fosse fácil. —Havia uma nota de ira em sua voz, assim como na

rigidez de seu corpo—. Não tem nem idéia do que está falando.

—Então, diga—me isso! Pelo que diz, estava-se sumindo na loucura. Que tipo de

sacerdote é você se não pode estender uma mão a ele nem me ajudar a mim?

Desta vez ele a olhou com ira e impotência.

—Que remédio conhece contra a loucura, senhora Pitt? Pode deter os sonhos que a

assaltam de noite, de sangue e fogo, de gritos que lhe fazem em pedacinhos a mente e

deixam as lascas para que se corte quando está acordada? —Tremia-lhe todo o corpo—.

O que pode fazer com o calor que lhe torra a pele quando ao abrir os olhos se encontra

coberta em suor e transida de frio? Está dentro de você, senhora Pitt! Ninguém pode o

ajudar! Martin Garvie o tentou e o engoliu a ele também.

Veio para ver —me porque temia pelo Garrick, mas deveria ter temido também por

ele. A loucura consome não só aos que a padecem, mas também aos que estão em

contato com ela.

—Está dizendo que Stephen Garrick está louco? -perguntou ela—. Por que sua

família não o levou a um especialista? Estão muito envergonhados para reconhecer queesse é o problema? — A situação começava a ter sentido por fim, Muita gente negava a

enfermidade mental, como se fosse um pecado e não uma enfermidade.

Se tivesse sido a cólera, ou a varíola, ninguém o teria oculto. —  Levaram—no a

algum centro? —Não era sua intenção elevar a voz, mas estava fora de si—. É isso? Mas

por que também ao Martin? E por que não pôde escrever a sua irmã ao menos para lhe

dizer onde estava?

O rosto do Sandeman se inundou de uma compaixão tão profunda que parecia quea dor persistiria muito depois de ter tentado fazer entender Charlotte,

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—Desde o Bedlam? —limitou-se a dizer.

 A palavra fez estremecer ao Charlotte. Todo mundo conhecia esse hospital

psiquiátrico que era um autêntico inferno humano.

O próprio nome era uma obscenidade, uma abreviatura do Bethlehem, a cidade

mais Santa, o refúgio dos sonhos, e não era senão a prisão dos pesadelos onde a pessoa

era encerrada na tortura de sua própria mente, gritando a seres invisíveis.

Ela lutou uns instantes por recuperar a voz.

—E você permitiu que ocorresse? —sussurrou.

Não queria que fosse uma acusação, ao menos não de tudo. Tinha admirado ao

Sandeman, tinha visto nele uma compaixão muito profunda para acreditá—lo de repente

indiferente, pela razão que fosse.

O que tinha visto era real, tinha-o percebido em sua forma de olhar ao bêbado no

dia que o conheceu.

Ele a olhou doído e ao mesmo tempo desafiante.

—Como poderia havê-lo impedido? Todos devemos procurar nosso próprio caminho

para a salvação, senhora Pitt. Disse ao Garrick o que devia fazer faz anos, mas não obtive

nada.

Ela estava a ponto de corrigi—lo, lhe dizer que em quem pensava era no Martin

Garvie, depois se deu conta do que insinuava.

—Está dizendo que Stephen Garrick é culpado de sua loucura? -perguntou com

incredulidade.

—Não.

Ele desviou o olhar, e pela primeira vez ela soube que mentia.

—Senhor Sandeman!

Em seguida não esteve muito certa do que podia acrescentar que servisse de algo.

Ele levantou a cabeça e a olhou.—Senhora Pitt, disse-lhe mais do que queria se por acaso pode ajudar ao Martin

Garvie, que é um bom homem que trata de ajudar a alguém com uma dor muito mais

intensa do que ele pode compreender, e que pode sofrer por ele terrivelmente. —Havia

súplica em sua voz—, Se estiver em suas mãos ir a alguém que possa liberá—lo, antes

que seja muito tarde ...se... se for ali onde está.

—Farei—o! -disse ela com mais paixão que fé—. Ao menos agora sei algo, sei por

onde começar. Obrigado, senhor Sandeman. —Hesitou. — Suponho que não sabe nadada morte do senhor Lovat, não é?

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Uma ameaça de sorriso se desenhou nos lábios dele.

—Não. Se me pedisse que fizesse conjeturas, diria que é exatamente o que parece,

a mulher egípcia o matou, por alguma razão pessoal. Talvez se remonta a algo que

ocorreu entre eles na Alexandria. Naquela época pensei que não lhe tinha feito mal, mas

talvez me equivoquei.

—Entendo. Obrigado.

Desta vez não se ofereceu a acompanhar a à rua e ela partiu sozinha, decidida a

ficar em contato com o Pitt o antes possível, para lhe dizer onde estava Martin Garvie e

persuadi—lo para que o tirasse dali, custasse o que custasse.

Charlotte passou toda a tarde começando e terminando pela metade diferentes

tarefas em casa, detendo-se cada vez que ouvia passos, esperando que fosse Pitt que

voltava, para poder falar com ele.

Quando ele por fim retornou a casa, percorreu como sempre sem sapatos o

corredor da cozinha, de modo que ela não o ouviu até que falou.

Sobressaltou-se tanto que deixou cair a batata que tinha na mão, e se voltou para

ele segurando ainda a faca de cortar.

—Sei o que passou ao Martin Garvie —declarou—. Ao menos, acredito que sei e ao

Stephen Garrick, Thomas, temos que fazer algo! Imediatamente!

 A expressão dele se escureceu.

—Como sabe? Onde esteve? Tornou a ver Sandeman?

Ela levantou ligeiramente o queixo. Se iam ter uma discussão ou algo pior por isso,

teria que esperar.

—É claro. É o único que sabe algo.

—Charlotte - começou ele.

—Está no Bedlam! -interrompeu-o ela.

Teve o efeito que tinha previsto. Pitt abriu muito os olhos e seu rosto empalideceu.— Tem certeza? -disse em voz baixa.

—Não —reconheceu—. Mas encaixa com a informação que temos.

Stephen Garrick tinha terríveis pesadelos, muito piores que os da pessoa comum, e

continuavam até estando acordado, imaginava sangue, fogo e gritos.

Tinha ataques incontroláveis de cólera e pranto. —Custava-lhe falar —. Bebia muito

para tratar de livrar-se do que o atormentava, e tomava ópio. Martin Garvie sabia tudo isso,

porque era o único que podia ajudá—lo.

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Mas estava perdendo o controle da situação e foi ver Sandeman para lhe pedir

conselho. Mas não havia nada que pudesse fazer Sandeman.

Pouco depois Stephen Garrick e Martin partiram do Torrington Square muito cedo,

sem a bagagem adequada, e não temos provas de que se foram de Londres.

 A carruagem voltou para o Torrington Square ao cabo de umas horas, de modo que

ou viajaram de transporte público ou não foram muito longe.

Pitt permaneceu imóvel, lhe dando voltas na cabeça ao que havia dito ela. Via a

seriedade em seu rosto. Se ia criticá-la por ter voltado para o Seven Dials, seria muito

depois de ocupar-se disso.

—Podemos tirá—lo dali? -perguntou ela em voz muito baixa—. Ao menos ao Martin,

não lhe corresponde estar ali. Sei que poderia ter ido em princípio para ajudar ao Garrick,

mas não o teria feito voluntariamente sem dizer a Pontua. Isso demonstra que algo vai mal.

—Sim - concordou ele, mas ela viu que continuava imerso em seus pensamentos—.

Mas devemos tomar cuidado. Alguém tinha autoridade para colocá—lo ali. Só pode ter sido

seu pai.

—Para encerrar ao Stephen Garrick, sim, mas não tinha direito a encerrar também

ao Martin! —protestou ela—. Ao menos não moralmente! Suponho que é um criado, de

modo que segundo a lei...

—Sim, sei - o interrompeu ele—. Mas devemos tomar cuidado.

—Faça que o senhor Narraway se ocupe da situação! -disse ela com obrigação—.

Ou ao menos que esteja presente.

Necessita ao Stephen Garrick porque esteve em Alexandria com Lovat, e agora que

Yeats também está morto... -se interrompeu. Assaltou—a um pensamento horrível, e o viu

também nos olhos dele—. Acha que seu pai o colocou ali por isso? —sussurrou—. Para

protegê-lo? Há alguém do Egito atrás de todos eles? Seus pesadelos são realmente tão

espantosos?—Não sei -respondeu ele—. Mas é possível.

Ela detectou desdita em sua voz.

—Não quer que seja ela... não é? -disse com suavidade.

—Não... não quero. Mas parece cada vez mais provável que o seja. Inteirei —me

que o que ocorreu hoje no tribunal. -seu rosto se encheu de indignação—. Não sei se isso

é o que quer Ryerson, mas seu advogado está fazendo todo o possível para manchar a

reputação do Lovat.

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Suponho que pretende demonstrar que poderia haver muitas outras pessoas que

queriam matá—lo. Duvido que sirva de muito. Ayesha Zakhari se achava no Eden Lodge.

Se foi outra pessoa quem matou ao Lovat por questões pessoais, dificilmente o

teria seguido às três da madrugada até o jardim de um desconhecido.

Charlotte se deu conta enquanto ele falava de que quase admitia sua derrota.

Desde o começo, não desejava que Ryerson e Ayesha fossem culpados. Fazia todos os

malabarismos mentais possíveis para defender outra explicação, e ao final lhe tinham

esgotado as forças para seguir enganando-se.

—Sinto-o -disse ela com suavidade, lhe estendendo uma mão—. Mas salvemos ao

menos ao Martin Garvie.

—Sim, sim, é claro. Irei ver o Narraway agora mesmo. Obrigado. —Sorriu sombrio,

lhe agarrando a mão e sustentando—a entre as suas com suma delicadeza—. Falaremos

mais tarde de sua volta ao Seven Dials.

Pitt a beijou com muita ternura antes de voltar-se para partir.

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Capítulo 11 

Pitt partiu do Keppel Street com a cabeça lhe dando voltas. Bedlam! Se Ferdinand

Garrick tinha encerrado a seu filho em um manicômio cujo nome era em si mesmo

sinônimo de horror, devia ter tido uma razão poderosa para fazê-lo.

Estava louco Stephen Garrick? Em seu expediente militar não se mencionava

nenhum tipo de debilidade mental. De fato, era irrepreensível.

Tinha demonstrado coragem e iniciativa, habilidade física e agilidade mental. Talvez

tivesse sido o mais promissor dos quatro amigos.

Encaminhou-se a grandes passadas para o Tottenham Court Road e deteve uma

carruagem de aluguel, subiu e gritou ao condutor o endereço do Narraway.

Se Garrick estava realmente louco, o que lhe tinha causado a loucura? Devia-se ao

abuso de ópio? Por que tinha começado a beber em excesso e a fumar uma substância

que alterava as emoções e a percepção?

Ou tinha visto algo no Egito que tinha levado ao Yeats à imprudência que tinha

resultado em sua morte, ao Sandeman a exilar-se no Seven Dials e ao Lovat a ser vítima

de um assassinato? Tinha encerrado Ferdinand Garrick a seu único filho no Bedlam para

proteger sua vida?

De quem? Da Ayesha Zakhari? Por Deus, por que?

 Ainda lhe produzia rechaço esse pensamento, mas não podia continuar passando-o

por alto. Tinha que enfrentar às provas.

Chegou à rua onde vivia Narraway, apeou-se, pagou ao condutor e cruzou a

grandes passadas a calçada molhada envolvido na névoa.

Não se ouvia o eco de seus passos, tudo era amortecido. Deteve-se na entrada da

casa e bateu a aldrava em forma de cabeça de leão. Abriu um discreto criado de cabelo grisalho que o reconheceu imediatamente.

—Boa tarde, senhor Pitt -disse, retrocedendo para lhe deixar passar.

O criado não teve necessidade de perguntar para que estava aí, ou se era urgente.

Viu a resposta às duas perguntas no rosto do Pitt antes de precedê—lo pelo corredor e

bater brevemente à porta do gabinete antes de abri—la.

—O senhor Pitt está aqui, senhor —anunciou.

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Narraway estava sentado em uma poltrona, com os pés sem sapatos em um

tamborete e um prato de sanduiches em uma mesa auxiliar a seu lado. Junto a ele havia

uma taça de cristal esculpida cheia de vinho tinto.

—Será melhor que valha a pena! -disse com a boca cheia.

O criado se retirou e fechou a porta atrás dele.

Pitt se sentou na outra poltrona depois de girá—la ligeiramente para seu superior.

Narraway suspirou.

—Sirva-se de vinho — insistiu indicando a garrafa do aparador —. As taças estão no

armário.

Pitt voltou a levantar-se e obedeceu, e enquanto enchia a taça observou como o

escuro líquido refletia facetas de luz prateada.

—Charlotte achou ao Martin Garvie e ao Stephen Garrick —anunciou.

Narraway ofegou e tossiu quando lhe engasgou o sanduiche.

Estendeu uma mão e pegou a taça de vinho.

Pitt sorriu para si. Era exatamente o que tinha pretendido.

Narraway engoliu a saliva, pigarreou e se recostou.

—Seriamente? -disse, não tão cortante como teria feito se não tivesse engasgado—

. Parece que não controla a sua esposa! Vai dizer-me onde está ou tenho que adivinhá—

lo?

Pitt se voltou com a taça de vinho e se sentou de novo antes de responder.

—Para falar a verdade, foi ver outra vez ao Sandeman. —Não comentou que não

tinha obedecido suas instruções. Cruzou as pernas comodamente e bebeu um gole de

vinho.

Era extraordinário, mas não teria esperado outra coisa do Narraway—. Persuadiu-o

para que lhe dissesse a verdade, ou ao menos parte dela. Garvie confiou ao Sandeman

que Garrick estava em muito mal estado, com pesadelos e delírios. Sandeman está quaseseguro de que levaram aos dois ao Bedlam. —Passou por cima o horror refletido no

semblante do Narraway e continuou: —É possível que ao Garvie contra sua vontade, dado

que não teve oportunidade de avisar a sua família.

Encaixa com toda a informação de que dispomos. A questão é se os pesadelos do

Garrick são conseqüência de seu consumo de ópio, ou de uma loucura inata nele, ou se

trata de algo muito mais sério que ocorreu durante sua estadia no Egito. E...

—Já está bem, Pitt! —interrompeu-lhe Narraway bruscamente—. Não tem que medizer isso letra por letra! —levantou-se com um movimento ágil, com o último sanduíche

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ainda na mão—. Yeats está morto, Lovat foi assassinado, Sandeman se perdeu no Seven

Dials e parece que Garrick está em um manicômio com pesadelos que o têm feito

enlouquecer. — Agarrou a taça e a bebeu. -será melhor que vamos buscá—lo. Ver se

podemos lhe tirar algo com sentido.

Narraway olhou de forma significativa a taça que Pitt tinha na mão.

Pitt não ia desperdiçar um vinho dessa qualidade. Era uma lástima não saboreá-lo,

mas não havia tempo a perder. Bebeu a taça e a depositou na mesa.

Narraway terminou o sanduíche enquanto se aproximava da porta e desprendeu o

casaco do cabideiro.

Já no exterior, pôs-se a andar a passo vivo até o final da rua, seguido de perto pelo

Pitt, e deteve uma carruagem de aluguel. Gritou ao condutor uma só palavra a modo de

instrução:

—Bedlam!

 A carruagem se precipitou para diante e Pitt se viu arrojado contra o espaldar de seu

assento.

Não disse nada. Acharia as respostas a todas suas perguntas sobre como iriam

conseguir pôr em liberdade Garrick quando chegassem ao Bedlam.

O trajeto era bastante longo e até que não cruzaram estralando a ponte do

Westminster, com as luzes do mole refletindo-se a intervalos sobre o rio através da névoa,

Narraway não pronunciou uma palavra.

—Me dê razão em tudo e esteja preparado para atuar rapidamente se for necessário

—ordenou que—. Permaneça perto de mim e não permita sob nenhum conceito que nos

separem. Não atue de forma arbitrária, aconteça o que acontecer. E não permita que lhe

distraiam seus sentimentos, por mais humanitários ou elogiáveis que sejam.

—Estive no Bedlam antes - disse Pitt secamente, negando-se a evocar a lembrança.

Narraway o olhou quando chegaram ao final da ponte e começaram a subir aencosta do outro lado, deixando atrás a via férrea que cruzava a estação do Waterloo.

Em Cristos Church, viraram à direita e se introduziram no Kennington Road, onde se

erguia o enorme edifício do hospital psiquiátrico do Bethlehem contra o céu negro.

 A carruagem se deteve, e Narraway deu ao condutor um soberano e lhe disse que

esperasse.

—Receberá quatro mais se continuar aqui quando precisar de você -disse

sombrio—. E se não o fizer, lhe retirarei a licença. Espere o que seja necessário. Pode serque seja pouco tempo ou que estejamos horas.

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Se até a meia—noite não sair, vá com este cartão à delegacia de polícia mais

próxima e volte com uma dúzia de agentes uniformizados.

Narraway entregou um cartão ao homem, que tinha os olhos esbugalhados e o

olhava seriamente alarmado.

Depois cruzou a passadas a calçada e subiu a escadaria até a entrada principal do

hospital, com o Pitt atrás.

Recebeu—os em seguida um encarregado, que lhes impediu o passo com firmeza e

educação.

Narraway lhe informou que se tratava de um assunto governamental relacionado

com a segurança da nação e que tinha autorização da rainha para levar o assunto tão

longe como fosse necessário.

Um dos internos contava com informação que se necessitava com urgência e devia

falar com ele sem demora.

 Ao Pitt lhe encolheu o estômago ao compreender o risco que estavam correndo.

Tinha aceito sem questionar que Charlotte tinha razão e Garrick estava ali.

Se ela se equivocara ou o tinham levado a outro hospital psiquiátrico, como

Spitalfields, ou inclusive a um centro privado, Narraway não o perdoaria.

Surpreendeu-se ao perceber que Narraway tinha confiado plenamente nele, e ainda

mais quando recordou que era a palavra do Charlotte em que tinha confiado em realidade.

—Sim, senhor. E de quem se trata? -perguntou o homem.

—Veio aqui numa manhã da primeira semana de setembro - respondeu Narraway—

. Trouxe consigo a um criado. Sofria delírio, pesadelos e os efeitos do ópio. Não pôde

ingressar mais de uma pessoa esse dia.

—Não sabe como se chama, senhor? —repreendeu-o o homem.

—É claro que sei como se chama! -replicou Narraway—. Não sei o nome com o qual

o internaram aqui, Não se faça de idiota! Já lhe disse que estou trabalhando em umassunto de Estado de Sua Majestade! Tenho que explicar-lhe mais claro?

—Não, não, senhor, eu...

O homem não sabia como terminar a frase. Voltou-se e cruzou correndo o vestíbulo,

depois virou à direita e se meteu pelo primeiro corredor largo, com o Narraway lhe pisando

os calcanhares.

Pitt tinha a boca seca e lutava por respirar enquanto os seguia pelos desertos

corredores de paredes cegas e portas fechadas com chave por ambos os lados.

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Ouviu gemidos abafados, risadas que se erguiam cada vez mais altas e terminavam

em um grito. Queria afastá—los de sua mente, mas não podia.

Chegaram por fim ao final da ala e o encarregado vacilou, agarrando as chaves de

seu cinturão e olhando nervoso ao Narraway.

Narraway lhe lançou um olhar glacial e então o homem tratou de colocar torpemente

a chave na fechadura até que Pitt notou que Narraway estava a ponto de arrebatar-lhe

 A chave se introduziu por fim na fechadura e virou. Pitt esperava ouvir gritos e se

preparou para o intento de fuga de um louco.

Em lugar disso, a porta se abriu de par em par deixando ver dois catres no chão, um

deles ocupado por uma figura encolhida, com a cabeça meio oculta sob uma manta cinza,

o cabelo alvoroçado e o que parecia ser um rosto sem barbear.

No outro catre, um homem se sentou devagar e os olhou piscando, com os olhos

inundados de medo e uma espécie de desespero, como se já não esperasse nada mais

que dor.

Mas ainda estava cordato, ao menos nesse momento.

—Como se chama? -perguntou Narraway, plantando-se imediatamente diante do

encarregado e lhe impedindo que se adiantasse.

Dirigia-se ao homem sentado. Sua voz era firme, mas não havia aspereza nela, só

um tom que exigia resposta.

—Martin Garvie -respondeu o homem com voz rouca.

Suplicava com o olhar que acreditasse e o medo que viu nele deixou ao Pitt gelado.

Narraway tomou ar devagar. Quando voltou a falar lhe tremeu um pouco a voz,

apesar de ter tal controle sobre seu rosto que era como uma máscara.

—Suponho que ele é seu senhor, Stephen Garrick. — Assinalou à desgraçada

criatura que seguia encolhida no catre.

Garvie assentiu cansativamente.—Por favor, não lhe faça mal —suplicou—. Não tem más intenções, senhor. Não

pode evitar comportar-se assim. Está doente! Por favor...

—Não tenho intenção de lhe fazer mal - respondeu Narraway. Em seguida engoliu a

saliva como se mal pudesse respirar —. Vim para lhes levar a um lugar melhor, mais

seguro.

—Não pode fazê-lo, senhor! —protestou o encarregado—. Custaria meu emprego

lhe permitir...Narraway se voltou para ele, lançando fogo pelos olhos.

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—Custará-lhe seu pescoço me impedir isso ameaçou—. Posso esperar que venha a

polícia, se insistir, mas lhe prometo que o lamentará se me obriga a fazê-lo.

Não fique aí como um paspalho ou também o prenderam!

O homem se encolheu de medo, talvez pela última ameaça. —Não, senhor! Juro-lhe

que sou um cidadão honrado! Eu...

—Bem - o interrompeu Narraway. Voltou-se para o Pitt—. Levante esse tipo e lhe

ajude a sair. — Assinalou ao Garrick, que não se moveu, como se toda a intrusão mal

tivesse penetrado sua mente consciente.

Pitt recordou que lhe tinha ordenado que se limitasse a obedecer e se aproximou do

homem recostado.

—Permita que o ajude a levantar-se, senhor - disse com delicadeza, tratando de

falar como um criado, uma figura familiar e não ameaçadora—. É preciso que se levante.

— Ele respirou, lhe deslizando uma mão por debaixo dos ombros e levantando o que era

quase peso morto—. Vamos, senhor - repetiu, lhe estirando as costas para que ficasse em

pé.

O homem gemeu com a dor mais intensa e Pitt se deteve bruscamente. Um

momento depois Garvie estava a seu lado, inclinando-se.

—Veio para o ajudar, senhor! -disse com obrigação—. Nos levará a um lugar

melhor. Vamos! Tem que pôr de sua parte! Vamos a um lugar seguro!

Garrick soltou um grito abafado, depois arqueou o corpo e abriu os braços, cobrindo

o rosto para defender-se. Agarrou ao Pitt por surpresa, lhe fazendo perder o equilíbrio e

 jogando-o contra Garvie. Percebia a impaciência do Narraway no ar.

—Vamos, senhor Stephen! -disse Garvie com aspereza—. Temos que ir daqui!

Depressa, senhor!

Isso pareceu ter o efeito desejado. Gemendo de medo, Garrick se levantou de modo

inseguro, dando sacudidas de um lado e outro, mas se apoiando no Garvie e Pitt.Cruzou cambaleando a porta, passou junto ao Narraway e o encarregado, e

percorreu o corredor.

Pitt olhou atrás uma vez, para assegurar-se de que Narraway os seguia. Viu-o

escrever algo em um cartão e dá—lo ao encarregado, e um momento depois ouviu seus

passos rápidos atrás dele.

Puxando a rastros Garrick, que só oferecia uma mínima ajuda, Pitt e Garvie abriram

caminho de novo até a porta.

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Mais de uma vez Pitt vacilou, sem saber se virava a esquerda ou direita, e ouviu a

voz do Narraway recordando-lhe em um sussurro imperioso.

Estava atento ao menor som e ao ouvir fechar uma porta, voltou-se e quase jogou

Garrick ao chão.

Narraway lhe gritou algo e apressou o passo.

Pitt voltou a agarrar ao Garrick e dobraram a última esquina que conduzia ao

vestíbulo. Viu dois encarregados ali em pé e se teria se detido imediatamente, mas Garrick

nem sequer os viu e seguiu arrastando os pés, assim Garvie não teve outra escolha que

seguir andando com ele ou deixá—lo cair.

Pitt os alcançou.

Os encarregados ficaram firmes com uma sacudida.

—Ei! Aonde vão? —gritou um.

—Sigam! —grunhiu Narraway atrás de Pitt, depois se voltou para encarar os

homens.

Pitt pegou ao Garrick com mais firmeza e, segurando-o com força, empurrou-o a um

passo mais rápido através da porta, pelas escadas e diretamente para a carruagem de

aluguel que esperava.

Rezou para que Narraway conseguisse tirar de cima esses homens e saísse

também, porque não tinha nem idéia de aonde levar ao Martin e Garrick.

Chegaram à carruagem e Garrick se deteve em seco, com o corpo trêmulo, as mãos

estendidas ante si para proteger-se de um ataque. Garvie o rodeou com os braços

delicadamente mas com considerável força e, ajudado pelo Pitt, subiu—o à carruagem.

O condutor estava sentado olhando para diante, alheio a eles, como se sua vida

dependesse de ver ou ouvir algo.

Pitt se voltou para ver se já tinha saído Narraway.

Dentro da carruagem, Garrick começou a agitar-se, gritando e chorando de terror.Pitt se sentou a seu lado para tentar impedir que escapasse ou, em seu delírio,

fizesse mal ao Garvie.

—Não se preocupe, senhor! Está a salvo! Ninguém vai fazer lhe mal! —Poderia ter

estado falando em outro idioma.

Garvie perdia o controle. Tinha o rosto pálido à luz do lampião de gás, e em seu

olhar havia pânico e impotência. Se Narraway não saísse logo, iriam ter que partir sem ele.

Transcorriam os segundos.—Dê volta ao hospital! —gritou Pitt ao condutor —. Agora mesmo!

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 A carruagem se precipitou para diante, jogando nos três contra o espaldar do

assento. Por uns momentos, Garrick esteve muito surpreso para reagir.

Por favor, Deus, que Narraway estivesse ali quando voltassem a deter-se diante da

porta! Os pensamentos se amontoavam na cabeça do Pitt enquanto tratava de discorrer

onde diabos levar ao Garrick em caso de que Narraway não aparecesse logo.

O único lugar onde estava seguro de que os ajudariam era sua própria casa. E o

que poderiam fazer Charlotte e ele com um louco delirante? De fato, estava muito melhor

Garvie?

Narraway tinha mencionado a delegacia de polícia local, mas Pitt estava quase certo

de que se tratava de uma fanfarronada. De todo modo, não tinha uma autorização que

mostrar.

Quando muito, limitariam-se a levar os de volta ao Bedlam e liberar o Narraway, o

que os deixaria em uma situação ainda pior que a que tinham ao começo, porque em

diante as autoridades do Bedlam estariam acauteladas.

Teria que ir a sua casa e deixar que Narraway se arrumasse só.

— Ao Keppel Street! —gritou ao condutor —. Devagar! Não há pressa!

Sentiu como ficavam em marcha com uma sacudida e como giravam no Brook

Street, continuando, quase imediatamente depois, introduziram-se no Kennington Road e

voltaram a cruzar a ponte do Westminster.

Foi um trajeto horrível. A névoa se tornara mais densa e se viram obrigados a ir

mais lentos. Não frearam o avanço de ninguém ao reduzir a velocidade.

Stephen Garrick se desabou para diante, e tão logo chorava como gemia como se o

conduzissem ao patíbulo e ao inferno que achava que havia depois da morte.

Garvie tratava de vez em quando de consolá—lo, mas era um esforço inútil, e seu

tom desesperado revelava que sabia.

Pitt tratou de pensar com todas suas forças que demônios ia fazer se Narraway nãoaparecesse logo, e imagens terríveis do que lhe tinha ocorrido invadiram sua mente.

Tinham-no detido por seqüestrar a um interno? Ou simplesmente o tinham

encerrado no Bedlam como se ele também estivesse louco? Tinham-lhe encerrado em um

de seus quartos isolados? Ou lhe tinham administrado um forte sedativo para que não

estivesse consciente para alegar prudência?

Estavam do outro lado do rio e se encaminhavam ao nordeste. Parte dele desejava

que se dessem pressa, para chegar a sua casa, ao calor e a luz de seu entorno familiar, epara que ao menos Charlotte pudesse ajudá—lo.

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Outra parte dele queria alongar todo o possível o trajeto, para dar ao Narraway a

oportunidade de alcançá—los e fazer-se encarregado da situação.

 Aachavam-se em uma via concorrida. Havia muitas outras carruagens, ruído de

campainhas na névoa que formava redemoinhos, tinido de arnês, luz dos lampiões de

outras carruagems, movimento que se refletia no brilhante latão.

Garrick se ergueu de repente e gritou como se temesse por sua vida. Pitt ficou

paralisado. Por um momento não pôde mover-se, depois se voltou bruscamente para um

lado, pegou ao Garrick pelo braço e o jogou contra o espaldar do assento.

 A carruagem balançou com violência, escorregou sobre os paralelepípedos

molhados e saiu disparada para diante a maior velocidade.

Pitt ouvia o cocheiro gritar enquanto avançavam a toda velocidade pela rua, mas em

uns vinte metros recuperaram a estabilidade e ao cabo de outros cem voltavam a ir a um

trote normal.

Pitt tratou de controlar seu coração acelerado e de não soltar ao Garrick, quem

balbuciava incoerentemente, apesar do que dizia ou fazia Garvie.

Pouco depois se detiveram; o cocheiro lhes disse com voz forte e trêmula de medo

que estavam no Keppel Street e que deviam descer imediatamente.

Não tinham outra alternativa que obedecer. Com dificuldade e rígido por ter

permanecido sentado com os músculos tensos, Pitt quase caiu à calçada e estendeu uma

mão para ajudar ao Garrick.

Garrick cambaleou atrás dele, desabou-se nos paralelepípedos, e sem prévio aviso,

conseguiu levantar-se de novo e pôs-se a correr, com passo desajeitado, mas cobrindo a

calçada molhada a uma velocidade surpreendente.

Garvie ficou olhando-o com silencioso e derrotado desespero.

Pitt pôs-se a correr atrás dele, mas Garrick chegou ao final do quarteirão e já se

dispunha a cruzar o meio—fio quando titubeou, agitando os braços, e por nenhuma razãoaparente caiu de bruços sobre os paralelepípedos.

Pitt se jogou sobre ele. Garrick gemia como um animal ferido, mas não tinha forças

nem vontade para lutar.

Pitt o levantou, com algo mais que um pouco de brutalidade, e quando se ergueu viu

um homem a um par de metros de distância. Estava a ponto de oferecer alguma

explicação desesperada quando com imenso alívio reconheceu a silhueta esbelta e bonita

a contraluz.

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Era Narraway. Por um instante se sentiu muito emocionado para falar. Permaneceu

imóvel, lutando por respirar, com o corpo trêmulo, aferrando ainda ao Garrick com as mãos

úmidas de suor.

—Bem - disse Narraway subitamente—. Já que estamos no Keppel Street, talvez o

mais prático seja entrar e falar.

 Atreveria—me a dizer que a senhora Pitt nos oferecerá chá. Ao Garvie, ao menos,

parece que não lhe viria mal.

Pitt não tentou sequer responder, limitou-se a seguir a elegante figura do Narraway

pelo atalho até a porta, onde Garvie os esperava, e os fez passar.

Charlotte e Gracie ficaram aniquiladas por um instante, depois o horror deu

passagem à compaixão.

—Estão mortos de frio! -exclamou Gracie furiosa—. O que se passou? -seu olhar ia

do Garrick ao Martin Garvie—. Tenho mantas no armário para arejamento. Sentem-se

aqui!

Dando a volta, a jovem desapareceu pela porta, Pitt ajudou ao Garrick a sentar-se

em uma cadeira e Martin achou outra para ele e se sentou pesadamente, como se não lhe

respondessem as pernas.

Charlotte pôs água a ferver e ordenou ao Pitt que atiçasse o fogo. Ninguém prestou

atenção ao Narraway.

Gracie voltou com os braços cheios de mantas e depois de um instante de

indecisão, envolveu o corpo trêmulo do Garrick, depois se voltou para o Martin com a

outra.

—Dir-lhe-ei a Pontua que está bem - disse com receio—. Ao menos não lhe fizeram

mal.

 Ao Garvie lhe saltaram de repente as lágrimas. Começou a falar, mas trocou de

opinião.—Ela está bem! -apressou-se a dizer Gracie—. Irei avisá—la. Alegrar-se-á! É graças

a ela que o encontramos.

Incluiu-se porque embora soubesse que Narraway não estava à corrente de sua

intervenção, e não lhe importava que assim fosse, ela tinha sido quem tinha insistido para

Tellman fazer indagações.

Observava ao Narraway discretamente e com o mesmo receio com que um olhe a

um inseto sem classificar que poderia ser venenoso. Muito interessante, mas era melhorsaber onde estava e permanecer o mais longe possível dele.

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 Achou graça, e Charlotte, ocupada fazendo chá, viu o brilho em seus olhos e ficou

satisfeita ao comprovar que sentia um respeito pela têmpera de Gracie que não tinha

esperado dele.

Também viu como a observava a ela e, absurdamente, algo em seu olhar a coibiu.

Voltou em seguida para sua tarefa e encheu seis xícaras de chá fumegante e mexeu o

açúcar.

Uma só estava meio cheia. Pegou—a, provou o chá para comprovar se havia

suficiente leite para que o bebessem sem queimar-se e então se aproximou do Garrick,

que estava sentado olhando ao vazio.

Com delicadeza, levou-lhe a xícara aos lábios e a inclinou para que bebesse.

Esperou com paciência a que bebesse e tomasse todo o chá.

Depois de observá—la um momento, Gracie fez o mesmo com o Martin, mas este

era mais que capaz de fazê-lo só.

Permaneceram assim uns minutos em silêncio até que Narraway falou por fim.

Dava-se conta de que podia lhes levar toda a noite averiguar algo de Garrick, mas

Martin já ardia em desejos de dar explicações.

—Como chegou ao hospital psiquiátrico do Bethlehem, senhor Garvie? -perguntou

bruscamente—. Quem o levou?

Martin hesitou. Estava muito pálido e tinha profundas olheiras por causa das

privações e da falta de sono.

—O senhor Garrick está doente, senhor. Fui ali para cuidar dele. Não podia deixá—

lo ali só, senhor.

Narraway não mudou de expressão.

—E por que não teve a amabilidade de dizer a sua irmã aonde ia? Esteve morta de

angústia por você.

Martin soltou um grito abafado, com o rosto brilhante de suor. Voltou-se pela metadepara olhar Garrick, depois mudou de opinião.

Sustentou o olhar do Narraway, com uma expressão abatida.

—Não sabia aonde ia quando me levaram - disse quase em um sussurro—. Pensei

que íamos ao campo e que poderia lhe escrever dali. Nunca imaginei que seria Bedlam. —

Pronunciou a palavra como se fosse uma maldição que o inferno podia ouvir sem querer e

fazer realidade de novo.

Narraway se sentou por fim e virou a cadeira para a mesa, Pitt permaneceu em pé,calado.

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—Estava transtornado o senhor Garrick quando entrou para trabalhar para ele? -

perguntou Narraway ao Martin.

Martin fez uma careta, talvez ante o pensamento de que Garrick pudesse ouvi—los.

—Não, senhor -replicou indignado.

Narraway sorriu com paciência e Martin se ruborizou, mas não discutiu com ele.

—O que lhe ocorreu? Preciso sabê—lo, pode ser que para lhe salvar a vida.

Martin não protestou, e isso em si mesmo não passou inadvertido. Charlotte viu

como algo, uma dúvida, uma cautela, fazia desaparecer as rugas do rosto do Narraway.

Olhou para Pitt, e viu que ele também se deu conta. Martin titubeou. Pitt deu um

passo adiante.

—Levarei o senhor Garrick onde possa ficar um momento.

—Fique com ele! —ordenou Narraway com um severo olhar de advertência.

Pitt não se incomodou em responder. Com considerável esforço, levantou o Garrick

com a ajuda do Gracie e o levou dali.

—O que lhe ocorreu, senhor Garvie? -repetiu Narraway.

Martin sacudiu a cabeça.

—Não sei, senhor. Sempre bebia um pouco, mas com o tempo piorou, como se algo

dentro dele estivesse a ponto de estalar.

—Piorou em que sentido?

—Padecia uns sonhos horríveis. —Martin fez uma careta—. Muitos cavalheiros que

bebem têm pesadelos, mas não como os dele.

Jazia na cama com os olhos abertos, gritando sobre sangue e fogo e aferrando—a

garganta como se se afogasse e não pudesse respirar. — Ele mesmo ficou a tremer. — E

eu tinha que sacudi—lo e lhe gritar que despertasse.

Depois chorava como um menino. Nunca ouvi nada igual. —Estava pálido, e

suplicava ao Narraway com o olhar que lhe deixasse deter-se ali.Charlotte seguiu sentada, lamentando a situação, mas sabendo que era inevitável.

Narraway a olhou com expressão vacilante. Sustentou-lhe o olhar com

determinação. Não pensava ir-se.

Ele o aceitou e se voltou de novo para o Martin Garvie.

—Sabe de algum fato que causasse esses sonhos?

—Não, senhor.

Narraway viu a ligeira dúvida.—Mas sabe que aconteceu algo!

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— Acredito que sim, senhor.

—Conhecia você o tenente Lovat, que foi assassinado no Eden Lodge? Ou à

senhorita Zakhari?

—Não conhecia a dama, mas sabia que o senhor Garrick conhecia o senhor Lovat.

Quando nos inteiramos da notícia, o senhor Garrick ficou pior que nunca. Acredito...

acredito que foi então quando perdeu a razão.

Martin se sentiu desconfortável e envergonhado de ter expresso com palavras o que

todos sabiam, porque mesmo assim lhe parecia uma deslealdade.

Houve um vislumbre de compaixão no rosto do Narraway, mas o ocultou mal

apareceu.

—Então, acredito que chegou o momento de que falemos com o senhor Garrick e

averigüemos exatamente o que o tortura.

—Não, senhor! —Martin se levantou—, Por favor, está... — Deteve—o o olhar do

Narraway.

Charlotte pegou ao Garvie pelo braço com suavidade.

—Temos que sabê—lo -disse—. A vida de alguém depende disso. Você pode nos

ajudar.

—Obrigado, senhora Pitt. —Narraway se aproximou dela—. Mas será desagradável

e não tem você porque presenciá—lo.

Charlotte lhe sustentou o olhar sem mover-se, com um fraco e educado sorriso nos

lábios.

—Sua consideração por meus sentimentos fala em seu favor. —Só era ligeiramente

sarcástica—. Mas dado que fui eu a que averiguou todo o assunto, não acredito que leve

mais surpresas que você. Ficarei.

Surpreendentemente, ele não discutiu com ela. Foram com o Martin ao salão onde

Pitt e Gracie estavam sentados, e Stephen Garrick descansava meio inconsciente no sofá.Levou-lhes toda a noite surrupiar ao homem em ruínas a terrível historia. Às vezes o

endireitavam e ele pronunciava quase coerentemente frases inteiras.

Em outros momentos se encolhia como um menino em posição fetal, calado e

tremendo, e se retraía mais à frente inclusive do alcance do Martin.

Foi Charlotte quem o segurou em seus braços quando chorava e quem o estreitou

contra seu peito enquanto os soluços lhe sacudiam o corpo.

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Pitt a observava com intenso orgulho, recordando a jovem estrita e protegida que

tinha sido quando se apaixonara por ela. No presente sua compaixão a fazia mais formosa

do que ele poderia ter sonhado que seria algum dia.

 Ao que parecia, os quatro tinham sido amigos quase desde seu primeiro encontro.

Tinham muitas coisas em comum, tanto o ambiente familiar no qual tinham crescido

como seus interesses pessoais, e tinham passado juntos a maior parte de seu tempo livre.

 A tragédia começou quando se inteiraram de que havia um santuário junto ao rio

que estava consagrado tanto aos cristãos como aos muçulmanos, pessoas que a seu

entender negavam a Cristo.

Uma noite, sob o efeito da bebida, decidiram profaná-lo de tal modo que nenhum

muçulmano voltasse a utilizá—lo.

Em um arrebatamento de fanatismo religioso, roubaram um porco, um animal

impuro para os muçulmanos, e o sacrificaram no coração do santuário, espalhando seu

sangue por todos os lados para fazê-lo abominável para sempre.

Chegado a esse ponto, Garrick ficou tão histérico que nem a interminável paciência

do Narraway conseguiu lhe arrancar nada mais com sentido.

Desabou-se para diante, apoiando-se ligeiramente em Charlotte, que estava a seu

lado no sofá.

Só seus olhos abertos, que olhavam algo horrível que havia dentro de sua mente,

indicavam que estava vivo.

Ela demoraria para esquecer os gritos que o tinham esmigalhado muito mais do que

tinha esperado.

Sorriu muito levemente ao Narraway.

—Precisará saber com mais exatidão o que aconteceu.

Ele abriu um pouco os olhos.

—Sandeman?—Terá que fazê-lo, não?

—Sim. Sinto muito. — A desculpa era sincera, ela soube sem dúvida nenhuma.

Por um momento Narraway pareceu a ponto de acrescentar algo, mas trocou de

opinião, e ela se concentrou no Garrick, não para falar com ele, porque era evidente que

não ouvia nada, mas simplesmente para lhe pôr uma mão no ombro e lhe acariciar com

indecisão o cabelo.

Fosse o que fosse o que tinha feito, atormentava—o além do que era capaz desuportar.

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Não tinha necessidade de julgá—lo, e nada do que ela ou outra pessoa pudesse

fazer lhe infligiria um castigo mais terrível que o que se impôs ele a si mesmo.

Narraway se voltou para o Pitt. Eram quase as quatro da madrugada.

—Não podemos fazer nada mais por ele. Sei de uma casa onde estará a salvo até

que encontremos algo permanente.

— Ajudarão—no? -perguntou Charlotte.

 A mulher lhes segurou a porta aberta enquanto se dirigiam a ela com o Garrick, e

Martin os ajudava a arrastar e a puxá—lo, lhe falando em voz baixa todo o tempo.

Estava claro que Garrick não queria ir-se, apesar de todas as palavras

tranqüilizadoras do Narraway de que não voltava para o Bedlam, e a promessa do Martin

de permanecer a seu lado.

Quando Garrick se virou desesperado no atalho para jogar um último olhar,

Narraway se deu conta de que era ao Charlotte a quem se aferrava, não à casa, e um

vislumbre de compaixão se refletiu por um instante em seu rosto, mas a conteve e um

momento depois desapareceu.

Ela retrocedeu, fechou a porta e se apoiou contra ela, quase afogando-se.

Sentia que tinha traído ao Garrick ao permitir que o levassem, e saber que não

havia outra solução não apagou de sua memória a angústia de seus olhos, o desespero ao

dar-se conta de que ela não ia acompanhá—lo.

—Vai ver o sacerdote outra vez? -perguntou Gracie em voz muito baixa quando

voltou a entrar na cozinha—. Tem que averiguar a verdade.

—Sim - disse Charlotte com indecisão—. Sem dúvida, ainda há muitas coisas que

não sabemos. —esfregou os olhos, irritados pelo cansaço—. Pode dizer a Pontua que

Martin está bem.

Pitt e Narraway voltaram para o Keppel Street às nove e meia, cansados e com o

corpo dolorido.Detiveram-se o tempo justo para tomar o café da manhã, depois Charlotte os levou

ao Seven Dials, onde lhes fez cruzar o beco e meter-se no pátio.

Desta vez não teve problemas em recordar que porta era, e ao cabo de uns

momentos estavam frente ao fogo que ardia sem chamas, enquanto Sandeman, com o

rosto pálido, olhava ao vazio com uma expressão de terrível sofrimento.

Charlotte tinha a sensação de havê-lo traído a ele também, e, entretanto, ele devia

ter sabido quando lhe falou dos pesadelos do Garrick que ela voltaria a ir a ele, e que

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quando o fizesse seria ao menos acompanhada pelo Pitt. Olhou a seu marido e viu

compaixão em seu rosto.

Não havia reprovação nele quando seus olhares se cruzaram. Compreendia a dor

que ela sentia e exatamente por que.

Ela notou que lhe saltavam as lágrimas e se voltou. Não era momento para permitir

que lhe governassem as emoções; não era um lugar apropriado para elas.

—Preciso saber o que aconteceu, senhor Sandeman -disse Narraway sem

compaixão na voz—. Independentemente de meus sentimentos ou desejos, não há

capacidade para nada mais que para a verdade.

—Sei - replicou ele—. Suponho que sempre soube que algum dia se descobriria.

Pode enterrar aos mortos, mas não sossegar os remorsos.

Narraway assentiu.

—Sabemos o do sacrifício do porco e a profanação do santuário. O que aconteceu

depois?

Sandeman falou como se a dor, longe de havê-lo abandonado, devorasse-lhe

fisicamente as entranhas.

—Uma mulher que voltava de cuidar dos doentes viu a tocha e se aproximou para

ver o que acontecia. Gritou. -sem ser consciente disso, moveu as mãos para tampar os

ouvidos e não escutar o som—. Lovat a segurou e ela lutou. —Não o ouvia—. Ela

continuou gritando. Era um ruído horrível, estava aterrorizada. Partiu-lhe o pescoço. Não

acredito que o fizesse de propósito.

Ninguém o interrompeu.

—Mas a tinham ouvido —sussurrou—. Chegaram mais, todo tipo de pessoas. Viram

a mulher morta ali tombada e Lovat...

O fogo ardia e, entretanto, a sala parecia gelada.

—Precipitaram-se sobre nós -prosseguiu Sandeman—. Não sei o que queriam, masentramos em pânico. Disparamo-lhes.

 Ao Sandeman lhe quebrou a voz. Tratou de acrescentar algo, a lembrança daquela

cena sufocou todo o resto.

Charlotte sentiu que lhe faltava o ar.

—Não descobriram o ocorrido —afirmou Narraway.

—Não. Pusemos fogo ao edifício. — A voz do Sandeman era rouca—. Os

queimamos a todos como se se tratasse de lixo. Não foi difícil… com as tochas.

 Acreditaram que tinha sido um acidente.

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Narraway hesitou só um momento.

—Quantas pessoas eram? -perguntou.

Sandeman estremeceu.

—Umas trinta e cinco —sussurrou—. Ninguém as contou, a não ser que o fizesse o

Imam que as enterrou.

 A sala mergulhou em um silêncio terrível. Narraway estava tão pálido como

Sandeman.

—O Imam? -repetiu com voz rouca.

Sandeman levantou o olhar.

—Sim. Lhes deu um enterro muçulmano como é devido.

—Meu deus! —Narraway deixou escapar um suspiro de angústia.

Charlotte sentiu uma pontada de medo em seu interior, muito abaixo da boca do

estômago.

Não estava segura ainda do por que, mas tinha ocorrido algo atroz e misterioso,

percebia-o no rosto do Narraway, na rigidez de seu corpo dentro do elegante traje.

—Quem o fez? -perguntou Narraway, com voz trêmula—. Quem o organizou? Quem

ficou em contato com o Imam?

—O oficial no comando - respondeu Sandeman—. O general Garrick. O lugar ardeu

como uma fogueira, mas deve ter ficado algo. —Engoliu a saliva. Tinha o rosto brilhante de

suor —. Alguém que examinasse os cadáveres saberia que tinham morrido de um disparo e

que não podia ter sido um acidente.

—Quem mais sabe? -perguntou Narraway com voz trêmula.

—Ninguém -replicou Sandeman—. Garrick o encobriu e o Imam enterrou os

cadáveres. Envolveram—nos a todos em sudários, e ele rezou todas as orações e ritos

pertinentes.

—E isso é o que enlouqueceu ao Stephen Garrick? -continuou Narraway—. Aculpa? Ou o medo de que algum dia alguém fosse atrás dele para vingar-se?

— A culpa - replicou Sandeman sem vacilar —. Em seus pesadelos o revivia. Eram

os homens e as mulheres que assassinamos os que o acossavam.

Narraway lhe sustentou o olhar sem piscar.

— A você também o perseguem os mortos?

—Não -respondeu Sandeman olhando-o por sua vez, sua expressão atormentada

pela dor, mas imutável—. Deixei que me agarrassem. Admiti minha culpa.

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Nunca poderei emendar o que fiz, mas passarei o que resta de minha vida tratando

de dar algo em troca. E se o que matou ao Lovat vem atrás de mim, achar-me-á aqui.

Se me matarem, que assim seja. Se quer me deter, não resistirei. Acredito que sou

mais útil aqui que pendurado de uma corda, mas não me defenderei.

Charlotte sentia uma opressão no peito tão intensa que quase lhe impedia de

respirar.

—Deus é seu juiz, não eu - se limitou a dizer Narraway—. Mas se voltar a

necessitá—lo, fará bem em estar aqui.

— Aqui estarei - respondeu Sandeman.

—E não conte isto a ninguém mais - acrescentou Narraway, com um tom

repentinamente mais áspero, com uma nota de ameaça nele—. Posso ser um inimigo

terrível, senhor Sandeman.

E se sussurrar sequer uma palavra a alguém, acharei—o, e a corda lhe parecerá

muito atraente em comparação com o que lhe farei eu.

Sandeman abriu os olhos com assombro.

—Santo céu! Acredita que é algo que relato com gosto?

—Conheci a homens que contam uma e outra vez seus crimes em busca de

absolvição -replicou Narraway—. Se alguém mais se inteira, poderia custar mil vezes as

vidas que já tirou você.

Recorde-o se se sente tentado de procurar alguma classe de consolo ao confessá—

lo.

No rosto do Sandeman apareceu uma expressão de ironia, afiada como uma faca

no coração.

— Acredito em você -disse—. E suponho que por essa razão não me detém agora

mesmo,

O rosto do Narraway se suavizou, mas só por um instante.—Oh e também por compaixão -respondeu—. Ou talvez é justiça? O que poderia

lhe fazer ninguém que se equipar à severidade com que se castiga você mesmo?

Voltou-se e percorreu muito devagar o corredor para a porta, e Pitt pegou ao

Charlotte pelo braço.

Ela se afastou dele o justo para olhar ao Sandeman e lhe sorrir, assim como

assegurar-se de que ele a tinha visto e a tinha compreendido; depois permitiu que Pitt a

conduzisse fora.

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Nenhum deles falou até que chegaram ao Seven Dials e viraram no Little Earl Street

para entrar no Shaftesbury Avenue.

Foi Charlotte quem rompeu o silêncio.

—Certamente o assassinato do Lovat está relacionado com isto -disse, olhando a

um e outro.

Narraway estava impertérrito.

—Com efeito, do contrário seria uma coincidência impossível de acreditar -

respondeu—. Mas isso não nos põe as coisas mais fáceis.

De fato, acrescenta uma dimensão tão terrível que seria melhor permitir que

pendurem ao Ryerson que...

Deteve-se porque Pitt o tinha segurado e voltado com tanta brutalidade que

Charlotte quase se chocou com os dois.

Narraway olhou a mão do Pitt em seu braço com uma intensidade que surpreendeu

a este e o fez estremecer.

— A alternativa —resmungou Narraway entre clientes—  é permitir que se saiba a

verdade e ver como todo o Egito se revolta.

Depois da insurreição do Urabi, o bombardeio de Alexandria, Jartum e o Mahdi,

esse lugar é como um paiol de pólvora. Uma faísca e poderia explodir tudo em chamas.

Perderíamos o canal do Suez, e com ele não só o comércio com o Egito, mas com toda a

metade oriental do Império.

Tudo teria que rodear o extremo da África, não só as importações de chá,

especiarias, madeira e seda, mas também todas nossas exportações.

O comércio voltaria a custar cinqüenta por cento mais. Por não falar do tráfego

militar e colonial.

Charlotte percebeu o medo em seu rosto tenso, e quando se voltou para o Pitt, viu

como também se apoderava dele à medida que compreendia a enormidade de tudo isso,como se o tivesse visto antes, mas se aferrasse à esperança de que não fosse real, senão

só um pesadelo pessoal.

—Quatro soldados britânicos bêbados matando a trinta e cinco muçulmanos

pacíficos em seu próprio santuário! -exclamou Narraway em apenas um sussurro. Só lhe

observando os lábios podiam estar seguros do que dizia—. Sabe qual será a reação no

Egito, Suão ou inclusive a Índia, se o assunto se vier à luz?

—Quer dizer que Ayesha matou Lovat para vingar a morte de sua própria gente? -perguntou Pitt devagar.

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Seu semblante traía o profundamente que lhe afetava essa possibilidade.

Charlotte teria gostado de consolá—lo, mas não havia nada que dizer. Quem podia

culpar a Ayesha? A lei não faria nada para castigar a matança, e, entretanto, enforcaria a

ela e provavelmente também ao Ryerson. Mas talvez não lhe importasse.

—Tem Ryerson algo que ver com isto? -perguntou Charlotte alto. — Ou só teve má

sorte? Apaixonou-se pela mulher equivocada no momento inoportuno?

Surpreendeu-lhe a dor que por um momento ficou descoberta no rosto do

Narraway, agudo e tão claramente pessoal. Logo ele o mascarou, como se soubesse que

ela o tinha visto.

—Provavelmente - assentiu, e se pôs de novo a andar.

Dobraram a esquina e cruzaram a rua até o Shaftesbury Avenue.

Charlotte não tinha nem idéia de aonde iam, e tinha a forte convicção de que Pitt e

Narraway tampouco sabiam. O terror que inundava suas mentes sufocava todo o resto.

Era consciente do tráfego que passava, mas tudo era uma confusão de movimento sem

sentido.

 Alexandria era outro mundo que ela só tinha visto em quadros e através das

descrições que lhe tinha feito Pitt.

Mas se sentia implicada com todo o dali como se o Egito estivesse do outro lado da

fronteira de seu próprio país. Seriam soldados britânicos a quem enviariam ali para lutar e

para morrer se havia uma revolta armada, como a tinha havido em Sudão.

Lembrava-se bastante bem das notícias dos jornais. Tinha conhecido e simpatizado

com uma mulher cujo único filho tinha morrido em Kartum.

E se Suez caísse, as repercussões afetariam todas as vidas de Grã—Bretanha.

Mas mesmo assim, não era justo que enforcassem a um homem inocente. Se é que

o era. Tia Vespasia queria acreditar que o era, mas essa convicção não o convertia em

inocente. Até ela poderia estar equivocada. A pessoa quando se apaixonava fazia coisas que

pareciam inconcebíveis a outros.

Narraway se deteve no atalho e olhou ao Pitt.

—Garrick está fora de perigo no futuro imediato, seja qual for. Fico menos tranqüilo

com o Sandeman, mas acredito que se entender os perigos guardará silêncio.

Se tivesse querido ser um mártir para aliviar sua própria consciência, o teria feito já.

Para ele é importante permanecer no Seven Dials.

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É sua forma de oferecer sua alma. Acredito que morreria antes que sacrificar isso. E

Yeats e Lovat estão mortos.

—Foi Ayesha? -perguntou Pitt quase vacilante—. Por vingança?

—Provavelmente - replicou Narraway—. E, que Deus me perdoe, não a culpo salvo

por ter comprometido ao Ryerson. Embora talvez não pudesse evitá-lo.

Foi uma coincidência o que o levou ali essa noite, justo quando ela se desfazia do

cadáver.

Ela não podia estar segura de se a ajudaria em vez de chamar à polícia, e se ele

tivesse tido um pingo de instinto de sobrevivência, o teria feito.

—Por que esperou ela todos estes anos? -interrompeu-o Charlotte—. Se tivessem

matado com esse modo a alguém de minha família, não o teria feito!

Narraway a olhou com uma curiosidade que em seguida deu passagem ao

interesse.

—Eu tampouco -declarou com sentimento—. Algo devia impedir-lhe. Falta de

informação? Ou de ajuda? De poder? A ajuda de alguém, sua fé e seu dinheiro? —Olhou a

ambos em busca de uma resposta—. O que lhe faria esperar a você, senhora Pitt?

Ela refletiu uns momentos. Passou ruidosamente uma carruagem puxada por seis

cavalos cinzas, golpeando com seus pesados cascos os paralelepípedos e sacudindo as

crinas, com os medalhões de latão brilhantes.

—Desconhecê-lo - disse por fim—. Não saber que tinha ocorrido, ou que minha

família tinha estado implicada, ou não saber quem o tinha feito e onde encontrá—lo.

 Alguma situação que não poderia deixar.

—Que tipo de situação? -perguntou Narraway interrompendo—a.

—Uma enfermidade -disse ela—. Alguém a quem tinha que cuidar, como um filho ou

um pai

Ou alguém a quem devia proteger, que podia sair mal parado se eu agisse. Alguém comprometido, talvez. Um compromisso pouco conveniente.

Ele assentiu devagar e a seguir se voltou para o Pitt com as sobrancelhas

arqueadas.

—Só o não sabê—lo - respondeu Pitt, e enquanto o dizia recordou algo—. Me

inteirei do incêndio, mas as pessoas com quem falei achava que tinha sido um acidente, ou

ao menos isso me disseram. Como se inteirou Ayesha de que não ocorreu assim?

O rosto do Narraway se endureceu.

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—Uma pergunta muito boa, Pitt, e eu adoraria saber a resposta, mas por desgraça

não tenho nem idéia de por onde começar a procurar.

Há muitas coisas sobre o assunto que eu gostaria de saber. Por exemplo, é Ayesha

Zakhari a impulsora ou está atuando com ou em nome de alguém? Quem mais está à

corrente da matança, e por que não veio a luz no Egito? Por que esperar, e por que em

Londres? —Baixou um pouco a voz, que se voltou tensa e severa por causa de uma

emoção que mal podia conter. — Acima de tudo, responde a uma vingança pessoal ou isto

só é o princípio?

Nem Pitt nem Charlotte responderam; a pergunta era muito ampla, a resposta muito

terrível.

Pitt rodeou os ombros de Charlotte, quase sem pensar, e a atraiu para si, mas não

havia nada que dizer.

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Capítulo 12 

Vespasia estava no salão, ocupada em dispor crisântemos brancos e folhas de haja

acobreadas em um prato plano do Lalique quando ouviu vozes encolerizadas no corredor.

Voltou-se surpreendida no preciso momento em que a porta se abria de par em par,

e viu o Ferdinand Garrick passar junto à criada e deter-se no bordo do tapete Aubuson, o

rosto vermelho de ira e de algo parecido ao desespero.

—Bom dia, Ferdinand - disse Vespasia fríamente, indicando com a cabeça à criada

que podia retirar-se. Teria adotado um tom bastante gélido para deter em seco ao príncipe

de Gales se não fosse pela emoção que detectou nele.

Fazia caso omisso de toda consideração pelas maneiras, inclusive da antipatia cada

vez mais profunda que sentia por ele—. Suponho que se passa algo grave e acredita que

posso ajudá—lo.

Ele se surpreendeu. Era muito consciente de sua quase imperdoável má educação,

e uma vez que pensava nisso, tinha esperado enfrentar uma atitude de indignada reserva

e não com um tom de compreensão.

Por um instante, perdeu a segurança em si mesmo. Ficou imóvel, respirando com

força. Até do outro extremo da sala ela via seu peito agitado.

Vespasia partiu os dois últimos caules, deixou cair às flores no leque de folhas e pôs

o prato na mesa auxiliar. O efeito era tão formoso como quando o fazia com peonías

vermelho intenso no verão.

—Diga - me o que ocorreu - manifestou—. Se deseja uma xícara de chá pedirei que

nos tragam isso, mas talvez seja um estorvo.

Ele sacudiu a mão, rechaçando a idéia.

—Meu filho corre um perigo muito grave por parte das mesmas pessoas queassassinaram ao jovem Lovat, e agora seu estúpido polícial o seqüestrou e tirou do único

lugar onde estava a salvo!—acusou, lançando fogo pelos olhos.

Tremeu-lhe a voz quando continuou, e lutou por recuperar o fôlego—. Pelo amor de

Deus, lhes diga que o deixem estar! Não têm nem idéia de onde estão se colocando! O

desastre será...

 A própria gravidade do assunto fazia impossível descrevê-lo e ficou olhando—a com

cólera impotente.

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Ela via que era inútil tratar de lhe fazer raciocinar, estava muito assustado para

escutar o que pudesse parecer um argumento.

—Se foi realmente Pitt quem tirou seu filho desse lugar, então será melhor que lhe

informemos do perigo - respondeu ela com calma—. A esta hora da manhã duvido que

esteja em sua casa, mas pode ser que o encontre.

Se o fizer, terei que lhe dizer concretamente de que perigo se trata para que proteja

ao Stephen.

—Esse homem é um néscio! —Garrick ergueu a voz, que tremeu até que quase se

entrecortou—. Se misturou sem entender nada, e poderia pegar fogo a todo um continente.

Vespasia estava surpreendida. As palavras do Garrick eram descabeladas, mas

apesar do que lhe desagradavam suas crenças rígidas e arrogantes, tinha sido um soldado

excelente.

Não tinha imaginação para ficar histérico.

—Ferdinand, rogo-lhe que se acalme o suficiente para me dizer o que devo lhe

explicar! -disse ela com firmeza—. Não posso lhe dar ordens, devo persuadi—lo.

Onde estava Stephen e quando se inteirou de que o tinham levado e que tinha sido

Pitt?

Garrick fez um esforço enorme por dominar seu pânico, mas seguia lhe tremendo a

voz pela angústia.

— As pessoas que mataram ao Lovat não se deterão ante nada até matar também

ao Stephen, e ao Sandeman, se conseguem dar com ele. Stephen sabia! —Tinha o rosto

tinto, dava lástima ver seu nervosismo, entretanto, continuou com certo domínio de si

mesmo. — Ele não... não estava bem.

Vespasia passou por cima o eufemismo. Conhecia os sintomas de sua enfermidade,

mas o que importava nesse momento era a causa, de modo que não o interrompeu.

—Tinha ataques de delírio - continuou ele com mais serenidade—. Fiz que ointernassem em um hospital... —Estremecido, tomou uma profunda baforada de ar —. O

hospital psiquiátrico do Bethlehem.

Vespasia estava à corrente da reputação do Bedlam, ele não tinha que lhe explicar

o horror que implicava. Que colocasse a seu filho em semelhante inferno feito pelo homem

revelava mais que nenhuma outra coisa seus temores.

—E Pitt o achou ali e o tirou? -perguntou com uma leve entonação interrogativa—.

 Acredita que talvez procurasse o Martin Garvie? Você enviou a seu filho com seu valete,não?

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Ele ficou boquiaberto pela surpresa, mas em seguida recuperou a compostura.

—Parece saber ainda mais do que tinha suposto. Sim, imagino que Garvie poderia

estar dentro de seu círculo de... - se interrompeu, consciente de repente de que corria o

risco de ganhar a aversão da Vespasia e que não podia permitir-se —  Encontre—o! -

disse desesperado—. Por favor.

Ela olhou seu rosto angustiado.

—E o que devo dizer ao Pitt, ou a quem é que esteja comprometido? -perguntou

ela—. Qual é o perigo temente, Ferdinand?

Vespasia cruzou até o sofá enquanto falava e lhe indicou com um gesto que se

sentasse, mas ele permaneceu em pé, inflexível.

—Devolva—me e eu me ocuparei disso! —resmungou entre dentes.

Ela se sentou com uma ameaça de sorriso que malsuavizou suas feições.

— Acredito que se estivessem tão pouco interessados nele para devolvê-lo só

porque eu o peça, não se teriam incomodado em tirá—lo dali - disse ela com tom

razoável—. Não acredita que é hora que enfrentemos à situação com mais realismo?

Ele começou a falar, mas se interrompeu.

Ela esperou. Não ia voltar a perguntar-lhe Ele conhecia os fatos. Stephen era seu

filho.

Garrick baixou o olhar.

—Tem uma informação que acredito que certas pessoas matariam por obter -disse.

Era uma explicação enviesada, que não respondia à verdade.

Entretanto, servia a seu propósito, e ela compreendeu que ele não ia dizer lhe a

menos que se visse obrigado a fazê-lo.

O deixaria ao Victor Narraway, posto que já tinha decidido que era a ele a quem ia

acudir.

—Informarei-lhes disso -prometeu ela.Então ele se relaxou ligeiramente, mas uma vez que tinha conseguido o que

procurava, apoiou-se em um pé e em outro, impaciente para que ela agisse.

Ela o olhou com frieza.

—Não tenho intenção de lhe pedir que me acompanhe, Ferdinand. Disse-me tudo o

que necessito. Como me deixou claro, o tempo é importante. Bom dia.

—Obrigado - disse ele com rigidez. Sua expressão era de alívio, gratidão e quase

decepção, posto que não podia fazer nada por sua própria causa. Odiava depender de

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algum modo de alguém, e ainda mais de uma mulher —. Sim, fico agradecido. Bom dia.

Eu...

—Informarei-lhe dos resultados - declarou ela com frieza—. Se não estiver em casa,

deixarei recado a seu mordomo.

—Estarei em casa!

Ela inclinou a cabeça de forma quase imperceptível.

Garrick se ruborizou intensamente, mas não protestou, e ela se levantou para lhe

permitir que se despedisse sem parecer grosseiro.

Continuando, utilizou o telefone. Era um instrumento que não tinha demorado para

adquirir e se impacientava com quem opunha resistência a sua velocidade e comodidade.

Por volta do meio-dia sabia com segurança que Victor Narraway estava assistindo

ao julgamento do Ryerson e a mulher egípcia, e que haveria uma pausa para comer à

uma.

Isso lhe dava uma hora para ir até ali e lhe comunicar que precisava falar com

urgência com ele.

Tal como resultaram as coisas, acharam-se nas escadarias quando ela chegou.

Narraway se aproximou dela com sua habitual elegância e fingida calma, mas até antes

que falasse, ela viu em sua expressão sombria, em toda a tensão que havia em seu

interior, que estava profundamente preocupado, talvez inclusive assustado.

—Boa tarde, Lady Vespasia -disse rapidamente. —Boa tarde, Víctor. Sinto lhe

distrair do julgamento, mas Ferdinand Garrick veio ver-me esta manhã profundamente

agitado. —Ela passou por cima a surpresa do Narraway. Não havia tempo para

explicações de cortesia—. Está à corrente de que Pitt achou ao Stephen Garrick no

Bedlam e o tirou dali. Acredito que ele não teria feito isso sem sua aprovação e,

possivelmente sua ajuda.

Narraway lhe ofereceu seu braço e a dama o aceitou. Era evidente que queriaafastar-se dessas escadarias onde alguém podia lhes ouvir sem querer.

—Em realidade, estávamos interessados no Garvie -disse ele. —Sim, estou à

corrente da preocupação do Charlotte por ele, não tem que me explicar.

—Lady Vespasia...

Um sorriso se desenhou nos lábios dele, logo desapareceu. —Foi a senhora Pitt

quem se inteirou de onde estava Garvie -disse com ironia—. Por um sacerdote do Seven

Dials. —Caminhavam o um ao lado do outro pela calçada, afastando-se do Old Bailey em

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direção ao Ludgate Hill e depois ao este, para a negra sombra do Saint Paul, com sua

cúpula escura contra o céu brilhante e ventoso.

—Parece muito próprio de Charlotte - respondeu ela, Narraway inalou ar para dizer

algo, logo o pensamento se desvaneceu e outro, mais escuro, substituiu—o.

—Cometeu-se uma atrocidade no Egito -disse ele falando tão depressa que ela

malpodia seguir suas palavras—. Faz doze anos. Lovat, Garrick, Sandeman e Yeats

estiveram implicados, Ferdinand Garrick o ocultou então.

Se se descobrir agora, ante qualquer um, poderia fazer explodir todo o Egito e nos

custar Suez. Há homens que matariam para mantê-lo em segredo.

—Entendo. —Ela tomou uma longa e trêmula baforada de ar. A notícia não lhe

surpreendeu. Havia dinheiro, poder e lealdades apaixonadas por jogo—. Acredita que

assassinaram ao Lovat para vingar-se disso?

—Parece isso. Deus nos ajude, quem não quereria fazê-lo? Mas protegerei ao

Stephen Garrick todo o tempo que seja necessário, pode dizer a seu pai.

Tenho tanto interesse como ele em mantê-lo a salvo de seus inimigos. Por favor,

não diga nada mais. Ainda não sei quem está comprometido nisto, nem em que bando.

Salvaria ao Ryerson se pudesse, mas não está em minhas mãos.

Ela vacilou só um momento.

—Posso visitá—lo, para lhe oferecer os serviços de uma amiga? -perguntou ela.

— Arrumarei para esta tarde - prometeu ele—. Poderá lhe dizer tudo o que queira

então. Uma vez que o juri emitir seu veredicto, acredito que não terá outra oportunidade.

Ela descobriu sem prévio aviso que lhe tremia a voz.

—Entendo. Obrigado.

—Lady Vespasia. —Não se arriscou a ser tão impertinente para chamá—la por seu

nome de batismo.

—Sim? —Ela tinha recuperado a compostura.—Sinto muitíssimo.

 A dor no rosto do Narraway foi evidente por um instante. Ela não sabia por que lhe

doía tanto que acusassem ao Ryerson, ou se achava culpado de algo mais que

imprudência, mas estava convencida de que toda essa emoção era profunda e pessoal,

que não tinha que ver com seu trabalho, mas com sua intimidade.

Ficou imóvel, olhando-o no tranqüilo atalho à sombra do Saint Paul.

—Há certas coisas que não está em nosso poder fazer -disse em voz baixa—. Pormuito que as desejemos.

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Ele estava coibido, algo que ela não tinha visto nunca nele.

—Vá à entrada do Newgate às oito -indicou ele.

Continuando, Narraway deu meia volta e retornou ao tribunal.

Nem sequer Narraway pôde consertar algo mais que uma visita muito breve para a

Vespasia. Ela tinha esperado que Ryerson desse amostras da tensão que devia estar

sentindo, mas apesar de haver-se preparado mentalmente, ficou perplexa ao vê-lo.

Recordava-o como um homem corpulento. A sensação de sua força física sempre

tinha sido enaltecedora, o mais singular dele, mais que a personalidade de seu rosto, a

inteligência ou o encanto.

Nesse momento, enquanto se levantava ao vê-la entrar na cela, parecia consumido.

Tinha o rosto pálido, a pele seca e apergaminada, e embora levasse a mesma roupa que a

última vez que o tinha visto, nesse dia parecia muito grande para ele.

—Vespasia... que amável é de vir -respondeu ele com voz rouca, estendendo uma

mão para saudá—la, mas a retirou justo antes de tocá—la, repentinamente consciente de

que talvez ela não quisesse.

 Assaltou-lhe o terrível pensamento de que a mudança produzida nele talvez se

devesse a que já não acreditava na inocência da Ayesha Zakhari. Já não parecia um mártir

de uma causa, mas sim um homem cujos sonhos se quebraram.

Obrigou-se a sorrir ligeiramente, a expressar um pouco de afeto em seu rosto.

—Querido Saville - disse—. Deverei favores a um sem—fim de pessoas por tal

privilégio. —Não era certo, mas sabia que isso lhe faria sentir melhor por um instante—.

E só disponho de uns minutos antes que algum desventurado, preso a seu dever,

volte a me buscar - continuou—. Ocorreu-me que talvez haja algum serviço que possa lhe

prestar e que não pôde pedir a ninguém mais.

Se for assim, rogo-lhe que me diga isso, se por acaso não tivermos outra

oportunidade para falar a sós.Era uma verdade brutal, mas não havia tempo para andar-se com rodeios. Esse era

o momento, ali, essa tarde.

Ryerson se dominou com um esforço extraordinário e respondeu com absoluta

calma. Já se tinha ocupado dos criados de sua casa que tão bem lhe tinham servido, mas

havia certas pessoas a quem desejava que alguém agradecesse ou alguma ou outra

desculpa.

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Era esse último o que mais lhe pesava e agradeceu que ela se comprometesse a

fazê-lo, em caso de que fosse necessário. Sabia que o faria com elegância, e com a

franqueza e a modéstia requeridas.

O guarda voltou. Lhe disse friamente que esperasse, mas ele o fez em pé junto à

porta.

—Necessita algo mais? -perguntou a dama ao Ryerson—. Posso lhe trazer algo

pessoal?

Um vislumbre de sorriso iluminou o rosto dele. —Não, obrigado. Meu valete o faz

todos os dias. Estou-lhe tão grato...

Ela levantou uma mão para o fazer calar.

—Sei -se apressou a dizer. Olhou ao guarda e lhe permitiu que lhe segurasse a

porta aberta—. Adeus, Saville, ao menos no momento.

Vespasia saiu sem olhar atrás. Ouviu o ruído de aço contra aço enquanto a porta se

fechava e as pesadas guardas da fechadura encaixavam.

Cruzava o vestíbulo para as portas exteriores quando reparou no egípcio

discretamente vestido que passou a seu lado em direção contrária, evitando seu olhar.

Segurava uma pequena bolsa macia na mão. Talvez fosse o criado da Ayesha

Zakhari, que lhe levava a roupa limpa ou o que ela tivesse pedido.

Era tão humilde que tinha chegado a dominar a arte de ser virtualmente invisível.

Com diferente roupa Vespasia não o reconheceria se voltasse a vê-lo. Viu-se

obrigada a recordar que pertencia a outra cultura.

Caiu na conta assombrada de que não tinha visto nunca a Ayesha Zakhari, que ela

recordasse. Se a tivesse conhecido em alguma parte, sem dúvida se lembraria.

Entretanto, Ayesha era o centro dessa tormenta que ia destruir ao Ryerson e

possivelmente também ao Stephen Garrick.

Vespasia saiu à rua onde a esperava sua carruagem, e permitiu que seu lacaio aajudasse a subir e a sentar-se comodamente, ainda absorta em seus pensamentos.

Gracie estava sozinha na casa quando ouviu que batiam na porta da copa. Era tarde

e fazia uma noite chuvosa e de vento. Charlotte e Pitt tinham saído para fazer uma curta

visita à mãe de Charlotte, a quem não tinham visto fazia bastante tempo.

Voltaram a bater, de forma premente e persistente.

 A jovem pegou o pau de macarrão da cozinha, depois o deixou e optou pela faca de

trinchar, e, ocultando—a entre as dobras da saia, aproximou-se nas pontas dos pés à portatraseira e a abriu bruscamente.

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Tellman estava na soleira, com a mão levantada para voltar a bater. Parecia ter frio

e estar preocupado.

—Deveria ter perguntado quem era antes de abrir! -disse ele imediatamente.

 A crítica doeu ao Gracie.

—Deixa de me dizer o que devo fazer, Samuel Tellman! -replicou—. Não tem

nenhum direito! Esta é minha casa, não a sua!

Enquanto falava, Gracie se deu conta de que o coração lhe pulsava de medo

contido e compreendeu que ele tinha razão.

Teria sido tão simples perguntar quem era, e não lhe tinha ocorrido, tão absorta

tinha estado pensando no Martin Garvie e nas pessoas que o tinham levado contra sua

vontade e encerrado no Bedlam, e no fato de que não tinham sido capazes de resolver o

caso de um homem assassinado de um tiro no jardim de uma mulher de noite.

Que fazia ali? Não estava bem esconder-se entre os arbustos.

Tellman entrou. Tinha o rosto pálido e sulcado de rugas de tensão.

— Alguém tem que lhe dizer o que tem que fazer! -disse ele, fechando a porta com

força—. Não tem cabeça! O que é isso?

Ela deixou a faca na mesa da cozinha.

—Uma faca de trinchar! O que acha que é? -replicou Gracie.

— Algo que um ladrão lhe tiraria das mãos e seguraria contra seu pescoço -disse

ele—. Se tivesse sorte!

—Isso é o que veio a me dizer? -perguntou a jovem, voltando-se para ele—. Não

sou eu quem não tem cabeça!

—É claro que não vim para lhe dizer isso. —Ele ficou em pé junto à mesa, muito

tenso para sentar-se—. Mas tem que se comportar com mais bom senso!

Se o tivesse dito outra pessoa, ela não teria feito conta, mas vindo dele lhe doeu

imensamente.Sentia-lhe muito longe e ao mesmo tempo muito perto. Odiava que lhe importasse

tanto porque a confundia, mexia com sentimentos que ela não sabia controlar, e não

estava acostumada a isso.

—Não me fale como se lhe pertencesse! -exclamou ela, contendo uma onda de

emoção, quase de solidão, que ameaçava afundá—la.

Ele pareceu surpreso por um instante, depois franziu ligeiramente o sobrecenho.

—Não quer pertencer a ninguém, Gracie? -perguntou. Ela estava perplexa. Era oúltimo que esperava que ele dissesse e não sabia o que responder. Não, isso não era

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certo, sim que sabia, mas não estava disposta a reconhecê-lo ainda. Necessitava mais

tempo para fazer-se à idéia. Engoliu em seco e abriu a boca para negá—lo, depois, como

se a varresse uma onda, soube que não era capaz.

Seria uma mentira, mas ele poderia acreditar nela e não voltar a perguntar-lhe.

Inclusive era possível que partisse.

—Bom... —gaguejou—. Bom... suponho que sim. —Havia-o dito em voz alta!

Ele também respirou fundo. Não havia indecisão nele, só medo de ser rechaçado.

—Então será melhor que me pertença - respondeu—. Porque não vai achar a

ninguém que te queira mais do que te quero eu.

Ela o olhou fixamente. Tinha chegado o momento. Então ou nunca. Sentiu um calor

em seu interior, como se se inundasse em água quente e agradável, quase como se

flutuasse. Não se deu conta de que não estava respondendo.

—Bom, é teimosa, e tem as idéias mais descabeladas que jamais ouvi sobre o lugar

que corresponde a cada um - continuou ele no crepitante silêncio—.

Mas, que Deus me ajude, não amo a ninguém mais de modo que se me aceitar... -

se interrompeu—. Está esperando que lhe diga que a quero? Pode ser que não tenha

cabeça, mas não é tão boba para não sabê—lo!

—Sim, sei! -apressou-se a dizer ela—. E... e...

Era justo que lhe respondesse com sinceridade, por muito que lhe custasse dizê—

lo.

—E eu também o quero, Samuel. Mas não tome liberdades! Isso não lhe dá direito a

me dizer o que tenho ou não tenho que fazer.

O rosto magro dele se iluminou com um grande sorriso.

—Fará o que eu diga! Mas quero paz em minha casa, assim suponho que não te

direi nada que lhe incomode muito.

—Bem. —Ela tomou uma baforada de ar —. Então estaremos bem quando chegar omomento.—Voltou a respirar —. Quer uma xícara de chá? Parece meio morto. —referia-se

a morto de frio.

—Sim —aceitou ele, afastando uma cadeira e sentando-se por fim—. Sim, eu

adoraria, por favor.

Conhecia—a o suficiente para não apressá—la a responder quando seria isso.

Tinha aceito, isso bastava.

Ela passou por seu lado, profundamente aliviada. Era tão longe quanto podia chegarde momento.

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—Veio para isso? -perguntou.

—Não. Tive-o presente... faz tempo que. Vim a dizer ao senhor Pitt que a polícia

tem uma nova testemunha no caso do Eden Lodge e que pinta bastante mal.

Ela pôs água a ferver e se voltou para ele.

—Que tipo de testemunha?

—Um que afirma que a mulher egípcia enviou uma mensagem ao senhor Lovat, lhe

dizendo que fosse vê-la —esclareceu com tom sombrio—. O farão subir ao estrado com

certeza.

—O que podemos fazer? -perguntou ela com ansiedade.

—Nada -respondeu Tellman—. Mas é melhor saber isso.

Ela não discutiu, mas estava preocupada com o Pitt, e nem sequer o calor que

sentia em seu interior, a formigante sensação de triunfo de haver enfrentado o momento da

decisão e ter aceito, com todas as mudanças enormes que isso significaria algum dia.

Conseguiu desvanecer sua inquietação pelo Pitt, e pelo caso que certamente já não

podiam ganhar.

Pitt voltou pouco depois, e quando ouviu tudo o que Tellman tinha que lhe dizer,

agradeceu-lhe, vestiu de novo o casaco e voltou a sair.

Não podia esperar a manhã seguinte para informar ao Narraway.

Era sexta—feira de noite. Havia dois dias de graça antes que se reatasse o

 julgamento, mas podia ser muito pouco tempo para conseguir algo.

Pitt não estava acostumado a fracassar tão estrepitosamente, e era uma sensação

fria e vazia, com um gosto amargo que achava que persistiria no tempo.

É claro, tinha deixado casos sem resolver, e tinha estado certo de saber a solução

de outros, embora não tinha podido demonstrá—la, mas nunca tinham sido de semelhante

magnitude.

Narraway levantou o olhar enquanto o criado fechava a porta, deixando ao Pitt empé no centro da sala. Leu-lhe imediatamente o pensamento.

—Bem? -perguntou, inclinando-se para levantar-se.

— A polícia tem uma testemunha que afirma que Ayesha enviou ao Lovat uma nota

em que lhe pedia que fosse vê-la-se limitou a dizer Pitt.

Não tinha sentido tentar lhe subtrair gravidade. Era consciente de tudo o que isso

significava antes que falasse Narraway.

—De modo que ela o atraiu deliberadamente ao jardim - disse Narraway comamargura—. Ou ele mesmo destruiu a nota ou ela a pegou antes que chegasse a polícia.

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—Franziu o rosto, pensativo—. Mas tinha intenção de implicar ao Ryerson ou foi

algo acidental?

—Se o fez -Pitt se sentou sem que o convidassem a fazê-lo—, devia estar

extraordinariamente segura dele. Como sabia que chegaria antes que a polícia e que a

ajudaria a desfazer do cadáver?

Tinha um plano alternativo se ele desse o alarme antes?

Narraway torceu o gesto.

—Certamente foi ela quem chamou à polícia, ou pediu a seu criado que o fizesse.

Se seu propósito era vingar a matança, ele estaria confabulado.

O sombrio rosto do Narraway estava carregado de pressentimentos. Ficou olhando

algum horror que só via com a imaginação.

—Chamarão a testemunha a declarar na segunda—feira? -perguntou sem voltar-se

para o Pitt.

—Suponho que sim -replicou Pitt—. Poderia demonstrar que foi um crime

intencional.

—Então ela subirá ao estrado e dirá ao mundo exatamente por que o fez -continuou

Narraway em voz baixa e severa—. Os jornais se apressarão a divulgá—lo e em umas

horas se saberá em todo o país e no mundo inteiro. -seu rosto parecia machucado, quase

como se o tivessem golpeado—. O Egito se revoltará e o conflito fará que o Mahdi e todo o

derramamento de sangue de Sudão pareçam uma festa paroquial a seu lado.

Inclusive Gordon no Jartum parecerá uma civilizada diferença de pareceres entre

povos, e perderemos indevidamente Suez. — Apertou os punhos, com os ombros tensos—.

Deus, que desastre! Estávamos condenados desde o começo, não é? —Não era uma

pergunta, só uma exclamação desesperada.

—Não o entendo - disse Pitt devagar, abrindo passagem com provas em uma

escuridão de motivos contraditórios—. Por que agora? E se o propósito que havia detrásdela vir a Londres e atrair ao Ryerson, todo o assunto de tratar de devolver ao Egito a

fabricação do algodão e o assassinato do Lovat, era revelar ao mundo a matança, por que

tiveram todo esse trabalho? —ficou olhando ao Narraway—, por que não se limitaram a

correr a voz no Egito? Os fatos estão ali!

Poderiam ter exumado os cadáveres. Com trinta e cinco vítimas mortas a balaços,

até depois do incêndio, alguns terão orifícios de bala ou marcas nos ossos que

demonstrem que não foi só um incêndio acidental.

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Por que este assassinato e o julgamento? Por que pôr em perigo sua própria vida?

Se souberem sobre a matança, o assassinato de um dos soldados responsáveis é

corriqueiro e quase sem sentido, comparado em trazer a luz. É ridiculamente pouco prático

fazer o deste modo!

Narraway ficou olhando—o, com os olhos muito abertos.

—O que está dizendo exatamente, Pitt? Que a está utilizando alguém mais? Que é

dispensável?

— Acredito que sim -assentiu Pitt—. Do que lhes serve implicar ao Ryerson?

—Publicidade -disse Narraway imediatamente—. O assassinato de um jovem

diplomata é irrelevante. É a implicação do Ryerson o que foi notícia em todos os países da

Europa.

Não tínhamos nenhuma possibilidade de mantê—la em segredo. Não só sairá à luz

toda a violência e o horror do fato, mas também todas as coisas feias e estúpidas que se

fizeram depois para ocultá—la.

—De modo que ela veio a Inglaterra acreditando que ia tentar ajudar à indústria do

algodão de seu país, mas quem quer que seja que a enviou tinha planejado isto desde o

começo? —Para o Pitt só era uma pergunta pela metade.

Por fim achava sentido ao que tinha averiguado da Ayesha na Alexandria.

Essa era a mulher que lhe haviam descrito. E uma vez mais tinha sido traída, só que

nesta ocasião ia custar lhe a vida. Só ficava uma pergunta por fazer: —  O que lhe

disseram para convencê-la de que matasse ao Lovat? Ou não o fez ela?

Narraway o olhou fixamente enquanto a surpresa dava passagem à compreensão

em seu rosto.

—Não sei -respondeu por fim—. Se ela não o fez, então, quem foi?

Pitt se levantou.

—Não sei. —Bulia de cólera em seu foro interno, pela Ayesha e pelo Ryerson, quesaltava à vista que tinham sido utilizados, por toda a gente que ia ver-se arrastada no

torvelinho no qual se converteria o Egito.

 A beleza e a calidez da Alexandria viriam abaixo, assim como os homens e

mulheres cujos rostos tinha visto quando esteve ali, sem saber sequer como se

chamavam.

E odiava não saber, ver como suas emoções eram sacudidas e a seguir

destroçadas pela compaixão por um e por outro, e não saber o que pensar —. Me dê aautorização que necessito para ir vê-la! —Era uma ordem, não um pedido.

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—Não posso conseguir-lhe até manhã - respondeu Narraway—. A necessitará por

escrito -acrescentou ao ver Pitt vacilar. — Ainda não a declararam culpada e tem seus

direitos.

 A embaixada egípcia a protegerá. Ter-lhe-ei a autorização amanhã preparada pela

tarde.

Pitt aceitou porque não tinha outra escolha.

No dia seguinte, depois de uma noite agitada em que as poucas horas que tinha

conseguido dormir tinha tido sonhos de violência e tensão quase insuportável, Pitt se

apresentou em casa do Narraway ao meio dia.

Viu-se obrigado à esperar duas horas só no salão até que seu superior voltou com

uma folha de papel dentro um envelope que lhe entregou sem lhe dar nenhuma

explicação.

—Obrigado. -Pitt o pegou, deu uma olhada às poucas linhas escritas nela e ficou

impressionado, embora não tinha intenção de deixar que Narraway se desse conta—. Irei

diretamente.

—Faça-o -assentiu Narraway—. Antes que mudem de opinião. E, Pitt, tome cuidado.

Poderia haver uma guerra em jogo. As pessoas que estão atrás disto não vão ter reparos

em desfazer-se de um policial mais ou menos.

Pitt não pôde evitar dar um pulo.

—Sei! -exclamou com aspereza.

Em seguida, Pitt se voltou e saiu, dizendo adeus por cima do ombro para que

Narraway não visse o quão desagradável e profundo se tornou seu pensamento.

Já tinha enfrentado antes ao perigo físico. Não era possível patrulhar pelos becos de

Londres como ele tinha feito sem expor-se a ele.

Mas desta vez era diferente, uma conspiração de uma magnitude que ele nunca

tinha conhecido. Não se tratava da ambição de um homem, mas sim do destino de umanação que podia conduzir morte e uma horrível destruição sem sentido.

Deteve a primeira carruagem de aluguel que passou e lhe pediu ao condutor que o

levasse o mais depressa possível ao Newgate.

Mal chegou, foi direto ao zelador responsável e lhe mostrou o papel que lhe tinha

dado Narraway. O homem o leu de cabo a rabo duas vezes, e depois consultou a um

superior.

Finalmente, quando Pitt estava a ponto de perder a calma, conduziram-no à celaonde tinham encerrada a Ayesha Zakhari e abriram a porta.

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Pitt entrou e ouviu o ruído do aço atrás dele. A mulher que se voltou para ele o

surpreendeu tão profundamente que ficou sem fala.

Criara uma imagem mental dela a partir de suas expectativas e da Alexandria

clássica que tinha visto. Talvez as velhas histórias sobre a cidade tinham influenciado em

sua imaginação sem que ele fosse consciente disso.

Imaginou-se a alguém de tez azeitonada, cabelo escuro brilhante, abundante e

sedoso, e um corpo suavemente curvilíneo, talvez de estatura média ou um pouco mais

baixa.

Era muito alta, apenas um par de centímetros mais baixa que ele, esbelta e de

ossos delicados. Levava um traje de seda pálido como os que tinha visto nas mulheres na

 Alexandria, mas de corte mais elegante.

Entretanto, o mais extraordinário dela era que sua pele era quase negra, e só uma

escura e lisa capa de cabelo cobria sua cabeça perfeitamente moldada.

Suas feições eram mais que formosas, eram tão deliciosas que parecia uma obra de

arte, e, entretanto, emanava uma vitalidade que a convertia em uma mulher de carne e

osso.

Não era egípcia do moderno e cosmopolita islã mediterrâneo, mas sim da antiga a

 África copta. Não tinha nada de Cleopatra, mas sim de uma época anterior, Nefertiti.

—Quem é você?

 A voz o devolveu ao presente. Era fraca e um pouco rouca, mas sem nenhum

sotaque que ele pudesse localizar, só uma dicção ligeiramente mais precisa do que teria

tido uma mulher inglesa, à parte talvez a tia avó Vespasia.

—Desculpe - disse ele sem pensar —. Me chamo Thomas Pitt. Preciso falar com

você, senhorita Zakhari, antes de que o julgamento se reate na segunda —feira pela

manhã.

Ocorreram certas coisas das quais talvez não esteja à corrente.—Pode me dizer o que deseja -disse ela sem emoção—. Não tenho nada que lhe

dizer, além do que já disse, E posto que não posso demonstrá—lo, não tem muito sentido

que o repita.

Está perdendo o tempo, senhor Pitt, o seu e também o meu. E acredito que poderia

não restar muito.

Disse-o sem autocompaixão e, entretanto, ele viu em seu rosto que por debaixo do

esforço por mostrar coragem havia uma dor incomensurável.

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Permaneceu em pé porque não havia nenhum lugar onde sentar-se além da cama

de armar, e para chegar a ela teria tido que passar a seu lado, e depois levantar a vista

enquanto ela permanecia em pé.

—Fui a Alexandria faz umas três semanas - começou a explicar ele, e viu como ela

dava um pulo e ficava tensa, mas permaneceu calada—. Queria averiguar mais coisas

sobre você -prosseguiu—. Reconheço que o que averigüei me surpreendeu.

Um vislumbre de sorriso se desenhou nos lábios da Ayesha, logo desapareceu.

Tinha uma habilidade para permanecer imóvel que era mais que uma mera

ausência de movimento, revelava um perfeito domínio de si mesma, uma grande

tranqüilidade de espírito.

— Acredito que veio a Inglaterra com a idéia de tratar de convencer ao Ryerson de

que influísse na indústria do algodão para que o algodão se tecesse onde se cultiva, de

modo que voltassem a ficar em marcha as fábricas no Egito, como em tempos do

Mohamed Alí.

Ela se surpreendeu de novo. Não foi mais que uma vacilação em sua respiração

que ele percebeu sem chegar a ver.

—Para que sua gente pudesse prosperar com seu trabalho - acrescentou ele—. Era

um plano ingênuo. Se tivesse compreendido você quanto dinheiro se investe no comércio

e quanto poder há em jogo, acredito que se teria dado conta de que nenhum homem por si

só, nem sequer com o cargo do Ryerson, pode mudar as coisas.

Ela tomou ar como se fosse discutir, mas exalou em silêncio e lhe voltou um pouco

às costas. Seu luminoso rosto brilhava como a seda, sem imperfeição alguma, com as

maçãs do rosto altas, o nariz largo e reto, os olhos ligeiramente rasgados para cima.

Era um rosto cheio de paixão e de imensa dignidade, mas, por estranho que

parecesse, não estava desprovido de senso de humor.

Os diminutos pés de galinha, que ele conseguia ver só pelo perto que estava dela,falavam de risadas que não só eram fruto de um caráter jovial, mas também da inteligência

e ironia.

— Acredito que o homem que a enviou sabia que não o conseguiria - continuou ele.

Não estava certo se se tinha movido uma sombra ou se ela se pôs um pouco rígida sob a

seda do vestido—. Acredito que suas intenções eram outras -prosseguiu—  e que a

indústria do algodão só era o pretexto que deu a você, porque era uma causa pela que

você lutaria com toda sua alma, custasse o que custasse.

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—Equivoca-se -replicou ela sem olhá—lo—. Se fui ingênua, paguei um preço muito

alto, mas eu não matei o tenente Lovat.

—Entretanto, está disposta a que a enforquem por isso? -observou Pitt surpreso—.

E não só a você, mas também ao Ryerson.

Ela se encolheu como se ele a tivesse golpeado, mas não fez nenhum som, nem

mudou de postura.

— Acaso acredita que porque é ministro do governo o deixarão em liberdade? -

perguntou Pitt.

Ela se voltou por fim para ele, com os olhos muito abertos e quase negros.

— Ainda não se deu conta de que ele tem inimigos? -disse Pitt em um tom de voz

mais alto do que era sua intenção. Mas não podia permitir-se ser amável. Ela podia voltar

atrás e evitar de novo a verdade—. E quem a enviou tem objetivos muito mais ambiciosos

que o algodão, no Egito ou Manchester.

—Isso não é verdade.

Ela o disse como um fato. Em seu olhar havia absoluto convencimento; depois,

enquanto ele a observava, essa convicção cambaleou até que ela conseguiu dominá—la.

—Se você não matou ao Lovat, quem o fez então? -perguntou ele em voz muito

mais baixa,

Não tinha decidido ainda se mencionava a matança ou inclusive insinuá—la.

Observava—a, esquadrinhando—a em busca de algo em sua expressão, por

passageiro que fosse, que traísse o ódio que podia haver detrás de um assassinato por

vingança. De momento não tinha visto nada, nem um indício sequer.

—Não sei -se limitou a dizer ela—. Mas disse que não estava relacionado com o

algodão. Então, com o que?

Era quase impossível acreditar que ela sabia. Se não era assim e ele o contava, seu

amor por seu país, ou pela justiça, podia obrigá—la a falar, talvez inclusive para fazer queseu crime parecesse justificado.

Reduziria um juiz a pena devido a tal provocação? Pitt o teria feito.

—Outras razões políticas - disse ele com evasivas—. Para trazer a luz velhos

enganos, com vistas a incitar violência, inclusive uma rebelião.

—Como os dervixes de Sudão? -perguntou ela com tom sombrio.

—Por que não? Sabendo o que agora sabe, acha realmente que tinha você alguma

possibilidade de modificar a indústria do algodão, antes que mudassem as marés políticase financeiras, independentemente do que acreditasse ou desejasse o senhor Ryerson?

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Ela refletiu uns momentos antes de dar-se por vencida.

—Não - disse muito baixinho.

—Então, é muito possível que quem a enviou também soubesse e tivesse outros

planos em mente - pressionou ele.

 Ayesha não respondeu, mas ele viu que tinha compreendido.

—E a essa pessoa não importa se a enforcam por um assassinato que você não

cometeu -continuou insistindo Pitt—. Ou se também enforcarem ao Ryerson.

Isso lhe doeu. Ficou tensa e perdeu parte da intensa cor de seu rosto.

—Poderia ter matado ele ao Lovat? -perguntou ele.

Ela moveu ligeiramente a cabeça, muito devagar, mas era um gesto de

assentimento.

—Como? -perguntou ele.

—Ele se fazia passar por meu criado.

É claro! Tariq O Abd, silencioso, quase invisível. Poderia ter pego a arma dela e

disparado ao Lovat, e a seguir chamar ele mesmo à polícia para assegurar-se de que

acudiam e achavam ali ao Ryerson.

Poderia ter organizado facilmente todo o assunto, porque ela, como era lógico, lhe

teria dado uma carta para que a entregasse ao Lovat. Ninguém o questionaria, de fato

teriam questionado antes a qualquer outra pessoa. Era perfeito.

—Obrigado - disse ele com repentino sentimento.

 Ao menos era uma solução ao mistério, mesmo que não resolvesse o problema. Até

esse momento, não se tinha dado conta do muito que lhe importava que ela fosse

inocente. Era quase como se lhe tivessem tirado de cima um peso físico.

—O que vai fazer, senhor Pitt? -perguntou ela com uma nota de medo na voz.

—Vou demonstrar que a utilizaram, senhorita Zakhari - respondeu ele, consciente

de que as palavras que tinha escolhido a fariam recordar aquela outra vez, fazia anos, emque tinha sido utilizada e traída—. Que nem você nem o senhor Ryerson são culpados de

assassinato.

E vou tentar fazê-lo sem que corra o sangue no Egito.

Temo que o segundo objetivo tem prioridade sobre o primeiro.

Ela não respondeu, mas permaneceu imóvel como uma estátua de ébano enquanto

ele se despedia sorrindo muito levemente e dava uns golpes à porta para chamar o

guarda.

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Debateu-se apenas uns momentos entre acudir só ou ir procurar Narraway e contar-

lhe Se Tariq O Abd era o impulsor do plano de trazer a luz a matança e fazer explodir o

Egito em chamas, então não aceitaria submissamente que Pitt ou qualquer outra pessoa o

detivesse.

Se ia só ao Eden Lodge podia não conseguir outra coisa que acautelá—lo e talvez

precipitar precisamente a tragédia que tanto temiam.

Deteve uma carruagem de aluguel na Strand e deu o endereço do escritório do

Narraway, rezando para que seu superior estivesse ali.

—O que acontece? -perguntou Narraway mal viu a cara de Pitt.

—O homem que há detrás da Ayesha é o criado da casa, Tariq O Abd - respondeu

Pitt.

Pela expressão do Narraway, compreendeu que não era necessário acrescentar

nenhuma explicação.

Narraway exalou um suspiro ao entender tudo e se enfureceu por não haver-se

dado conta antes.

—Maldita cegueira a nossa! —prorrompeu, levantando-se de um só movimento—.

Um criado e uma estrangeira, de modo que a ele nem sequer o vimos! Maldição! Deveria

me haver dado conta! -Abriu uma gaveta e tirou uma pistola, depois voltou a fechá—la e

saiu a passadas em frente a Pitt—. Confio em que tenha tido o bom senso de pedir ao

cocheiro que espere!

—É claro! -replicou Pitt.

Sem perder um segundo, seguiu ao Narraway a grandes passadas pelas escadas

até a calçada onde esperava a carruagem, com o cavalo movendo-se inquieto, talvez

percebendo a tensão do condutor.

—Eden Lodge! —gritou Narraway com rigidez, subindo antes que Pitt e fazendo

gestos ao condutor para que ficasse em marcha enquanto Pitt montava com dificuldadeatrás dele.

Nenhum dos dois falou em todo o trajeto ao longo das concorridas ruas, ao redor de

praças e sob árvores cortadas, até que a carruagem se deteve frente a Eden Lodge.

—Pela porta de trás! —ordenou Narraway, movendo-se rapidamente por diante do

Pitt.

Entretanto, não havia ninguém no Eden Lodge, Toda a casa estava deserta. A

estufa da cozinha estava fria, as brasas das lareiras se converteram em cinzas e a comidada despensa se estragara.

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Narraway amaldiçoou uma só vez furioso, mas não havia nada que ele nem

ninguém pudesse fazer.

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Capítulo 13 

Nem a polícia nem nenhum dos homens aos que chamou Narraway achou rastro

algum do Tariq O Abd.

O domingo foi um dia funesto, frio e ventoso, como se o tempo se agitasse com a

mesma sensação de catástrofe iminente que Pitt, encerrado todo o dia em casa porque

não tinha aonde ir nem nada que fazer que fosse de utilidade.

O julgamento se reataria na segunda—feira. Tariq O Abd certamente voltaria a subir

ao estrado e traria a luz toda a violenta e terrível verdade da matança.

Seria o começo do fim de qualquer possibilidade de paz no Egito, sem dúvida do

domínio britânico e de tudo o que Suez significava para o Império.

Pitt tinha explicado ao Charlotte tudo o que sabia. Não tinha sentido ocultar-lhe

posto que ela se inteirara antes dele da única parte perigosa.

 Almoçaram todos juntos. A comida do domingo era a mais formal da semana, e ao

Daniel e Jemima lhes parecia tão perturbadora como emocionante, quase como ser

maiores.

 Ardiam em desejos de sê—lo, fazia parte da vida, mas não necessariamente tão

cedo!

Depois, Pitt se sentou junto ao fogo, fingindo que lia, mas em realidade não passou

nenhuma página. Charlotte se sentou a costurar, mas era uma prega reta de um lençol e

não requeria muita atenção. Gracie e as crianças puseram os casacos e tinham saído a

dar um passeio.

—O que fará? -perguntou Charlotte quando o silêncio se fez muito insuportável —.

Se apresentará como uma testemunha da defesa e dirá que assassinou ao Lovat em

vingança pela morte de toda sua família ou algo parecido? E depois descreverá amatança?

Ele levantou a vista para ela.

—Sim, acredito que sim - assentiu.

Via o medo no rosto de sua mulher e morria por tranqüilizá—la lhe assegurando que

não seria assim, e inclusive lhe dando esperanças de que poderiam impedi—lo, mas não

havia nada que eles pudessem fazer. Seu desejo de protegê—la era veemente e,

entretanto, por estranho que parecesse, era agradável poder compartilhar com ela seustemores.

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Ela os compreendia. Pitt transbordava de gratidão por ter uma esposa que não

necessitasse nem queria ser protegida da verdade.

Não sabia como um homem era capaz de suportar essa solidão. As pessoas

protegiam uma criança, mas uma esposa era uma companheira que caminhava a seu lado.

—Suponho que o senhor Narraway advertirá ao advogado defensor - comentou ela

abrindo muito os olhos com uma expressão interrogante—. Ou acha que será o advogado

defensor quem o chama a declarar?

O desagradável desse pensamento ficou patente em seu olhar. Era uma idéia que

estava deslocada na comodidade desse conhecido aposento, com os móveis ligeiramente

gastos, os gatos dormindo junto ao fogo e as chamas projetando trêmulas chamas nas

paredes.

Mas tinha razão ela? O advogado, que tinha defendido de forma tão ardente ao

Ryerson, tinha estado desde o começo à corrente da participação do Abd? Pitt não tinha

nem idéia. Só a idéia de que pudesse ser assim era aterradora.

Havia uma brutalidade em todo o plano que não tinha nada da paixão atenuante de

um crime devido a causas mais pessoais.

Se era certo, havia nele uma traição deliberada muito profunda.

Eram pouco mais das três da tarde quando bateram na porta. Gracie continuava

fora, de modo que foi a abrir Pitt.

 Assim que viu a expressão do Narraway soube que tinha ocorrido algo inusitado.

—Está morto —anunciou Narraway até antes que Pitt perguntasse.

—Quem?

—Tariq O Abd! -respondeu Narraway secamente, passando junto a ele e sacudindo-

se. Embora não chovia nesse momento, o vento era frio e uma massa de nuvens pesadas

se concentravam pelo leste.

Ficou olhando ao Pitt com uma expressão tensa, invadida por um medo profundo epenetrante—. A brigada fluvial achou seu corpo pendendo da ponte de Londres. Ao que

parece, fez isso ele mesmo.

Pitt estava perplexo. Em umas poucas palavras, Narraway tinha desmantelado o

caso. Era essa a solução ou só piorava as coisas?

—Suicidou-se? -perguntou Pitt com incredulidade—. Por que? Estava ganhando!

 Amanhã pela manhã teria conseguido seu propósito!

—Com a forca como recompensa final - disse Narraway.—Perdeu a calma? -inquiriu Pitt com incredulidade.

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Narraway o olhou sem compreender.

—Só Deus sabe!

—Mas não tem sentido —protestou Pitt—. Tinha manipulado tudo até o extremo de

acabar subindo ao estrado como testemunha surpresa e falar para o mundo inteiro da

matança.

Narraway franziu o sobrecenho.

—Você falou ontem com a Ayesha Zakhari. Ela sabia que você estava informado de

que O Abd tinha matado ao Lovat.

—Embora ela o houvesse dito - o interrompeu Pitt—, ele dificilmente se teria tirado a

vida por esse motivo. Ela não teria podido demonstrá—lo. Tudo o que ele tinha que fazer

era subir ao estrado e declarar que era ela quem tinha perdido a parentes na matança, e

amigos, ou um amante e que por isso assassinou com um tiro ao Lovat.

Mesmo que ela o negasse e afirmasse que o tinha feito ele, não haveria provas. Seu

suicídio parece uma confissão, mas mantém a matança em segredo.

Estavam no vestíbulo; os dois se voltaram quando se abriu a porta do salão e

apareceu Charlotte na soleira, olhando—os com ansiedade.

Reconheceu ao Narraway no preciso momento em que ele se voltava e, à luz do

lampião de gás do corredor, viu como se suavizavam suas feições.

— Acharam morto ao criado da senhorita Zakhari -disse Pitt.

O olhar dela foi dele ao Narraway, para ver se a protegiam de um pouco mais grave.

—Parece que foi um suicídio —esclareceu Narraway—. Mas não lhe encontramos

sentido.

Charlotte retrocedeu, convidando—os tacitamente a passar, e os dois homens

entraram no quente ambiente do salão e fecharam a porta atrás deles.

Pitt atiçou o fogo antes de jogar mais carvão, nem tanto porque fizesse frio como

para que as novas chamas iluminassem mais.—Então, ou há algo que não sabemos - manifestou ela, sentando-se de novo no

sofá junto a seu trabalho de costura—, ou ele não se tirou a vida, mas sim o fez outra

pessoa.

Pitt olhou ao Narraway.

—Não disse nada a Ayesha da matança. Se não sabia, continua sem sabê—lo.

—Perdoe -disse Narraway, e se sentou na poltrona do Pitt perto do fogo, tremendo

ligeiramente—. Não deveria ter dado por feito que tivesse sido você tão imprudente.

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—Por que ia querer alguém matar ao criado? -perguntou Charlotte, olhando a um e

a outro—.

Essa classe de morte não pôde ser um acidente, e nem se tentou que o parecesse.

—Tem razão, senhora Pitt - assentiu Narraway, sombrio—. Portanto, foi alguém que

sabia quem era ele, assim como sua relação com o assassinato do Lovat e todo o plano de

fazer explodir o Egito em chamas. —voltou-se para o Pitt—. O Abd não era o impulsor do

plano. Há alguém mais detrás dele e, por alguma razão que ainda não sabemos, matou a

O Abd. —Fechou a mão inconscientemente—. Mas por que? Por que agora? Estavam a

ponto de obter seus propósitos.

Pitt se sentou frente à lareira, como se ele também tivesse frio.

—Talvez O Abd perdeu o valor e se negou a atestar -propôs. Assim que as palavras

brotaram de sua boca, soube que nem ele mesmo as achava possíveis—. Mas isso

tampouco tem sentido.

Por que não ia fazê-lo? Não tinha nada a perder. Não é que fosse assumir ele a

responsabilidade, ia assegurar a conexão dela com o assassinato ao lhe dar o móvel

perfeito.

Charlotte olhou ao Narraway.

— Ajudará isso ao Ryerson? Será você capaz de demonstrar que O Abd matou

Lovat sem trazer a luz a matança? Será—o? O poderia ter tido qualquer motivo para fazê-

lo, se nos remontarmos à época do Lovat na Alexandria, não?

—Sim-disse Narraway pensativo—. Sim se houver algo positivo de todo este

assunto é que poderíamos exonerar Ryerson e Ayesha Zakhari de toda culpa desde que

permitirmos que a morte de O Abd se considere suicídio.

O germe de uma idéia, desagradável e dolorosa, aturdiu de tal modo ao Pitt que se

negou a considerá—la.

—É o que vai fazer? -perguntou Charlotte.Pitt não respondeu.

—É tudo o que podemos fazer, de momento -replicou Narraway.

Ficaram sentados um momento mais, esquentando-se. Charlotte foi procurar chá.

Falaram durante aproximadamente meia hora das notícias de atualidade, inclusive da

recente morte de lorde Tennyson, e se perguntaram quem seria o próximo poeta laureado,

até que Narraway se levantou e se despediu.

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Mas assim que partiu, Pitt, inquieto e abatido, também saiu. Não deu nenhuma

explicação ao Charlotte porque o medo em seu foro interno era muito grande para

expressá—lo com palavras, inclusive a ela.

Era como se enquanto permanecesse não dito pudesse negá—lo durante um pouco

mais de tempo.

Pegou um ônibus ao caís do Tâmisa até os escritórios da brigada fluvial. Só havia

um agente de serviço, mas disse a que necrotério tinham levado o homem enforcado, e

meia hora depois Pitt estava em pé no chão de ladrilhos ofensivamente limpo, com o

familiar aroma de ácido carbólico e a morte na garganta.

Baixou a vista para a torcida cara vermelha do Tariq O Abd.

 A marca que tinha deixado a corda no pescoço era profunda e se torcia por debaixo

de uma orelha, e tinha a cabeça em um ângulo difícil.

Pitt moveu ligeiramente a cabeça do criado procurando outras marcas, o que fosse

que demonstrasse sem lugar a dúvidas que o tinham golpeado antes de morrer.

Ouviu passos detrás dele e se voltou mais depressa do que era sua intenção, como

se se acreditasse em perigo.

O coração lhe palpitava com força no peito e lhe supunha um esforço enchê —los

pulmões de ar.

McDade o olhou com irônica surpresa.

—Tem os nervos um pouco alterados, não, Pitt? O que quer saber? Morreu em

algum momento da noite. É difícil dizer quando posto que a água afeta à temperatura.

—Marés? -perguntou Pitt.

—Pensei nisso. —McDade apertou por um instante os lábios em uma fina linha—.

Tive em conta que a água do Tâmisa sobe e baixa com monótona e previsível

regularidade.

Mas o que não posso determinar bem é se o surpreendeu a esteira de um bote quepassava e que o empapou por cima do nível da água, ou inclusive escorregou e se molhou

muito mais do que tinha sido sua intenção.

—Pode dizer com segurança que se enforcou? -perguntou Pitt.

Mesmo que não encaixasse com a informação que tinha, esperava ansioso que

McDade confirmasse que se tratava de um suicídio.

McDade não vacilou.

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—Não, não posso -respondeu secamente—. Recebeu alguns golpes, vislumbram-se

hematomas debaixo da pele, mas poderiam haver-se produzido pouco antes da morte ou

 justo depois.

Não houve tempo para que se amontoe o sangue e se vejam marca. Brotou-lhe um

pouco de sangue por debaixo do cabelo, mas poderia lhe haver golpeado outra pessoa, ou

ter ocorrido quando caiu ou de um montão de formas depois, como que a água o

empurrasse contra os arcos, que o golpeasse um navio que passava ou inclusive madeira

de deriva ou os restos de algum naufrágio. —Encolheu seus enormes ombros—. Poderiam

havê-lo assassinado, mas não posso lhe dizer nada que demonstre uma coisa ou outra.

Sinto muito.

Pitt retirou o lençol e examinou o resto do torso. Havia outras marcas, como se o

tivessem sacudido daqui para lá e o tivessem golpeado com objetos contundentes, que lhe

tinham rasgado a pele por várias zonas. Estendeu o lençol e se voltou.

—Ocupar-se-á alguém de que o enterrem segundo sua fé? -perguntou.

McDade arqueou uma sobrancelha.

—Ninguém reclamou o corpo?

— Até agora não, que eu saiba. Acredito que o tribunal estabelecerá que foi ele

quem assassinou o tenente Lovat.

McDade sacudiu a cabeça e lhe tremeu a papada.

—Diz isso como se não estivesse seguro de que seja verdade —comentou.

—Estou certo de que é verdade -replicou Pitt—. Não estou tão certo de que seja

toda a verdade. Obrigado.

Deu por concluída a conversa e se voltou para partir. McDade lhe incomodava; era

muito observador.

E precisava falar uma vez mais com a brigada fluvial sobre onde tinham encontrado

exatamente a O Abd, o estado da roupa e as horas exatas das marés a noite anterior.Era muito importante saber à hora da morte, de fato, nesse momento a importância

disso varreu todo o resto em sua mente.

Duas horas depois, às nove menos quarto, tinha as respostas. Permaneceu no mole

ao açoite do vento racheado, com o casaco lhe golpeando as pernas e o cachecol os

flancos, olhando a água mover-se ao compasso da maré alta que retornava.

 As embarcações agitavam as águas do rio: barcos a vapor, barcaças, um iate

alongado de recreio com só meia dúzia de pessoas na coberta.

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Tariq O Abd tinha morrido entre a uma e as cinco da madrugada. A brigada fluvial

não podia concretizar mais. à essa hora a maioria das pessoas estava dormindo em sua

casa.

Pitt poderia ter demonstrado que tinha estado na cama porque Charlotte sempre

despertava se se levantava. Um homem que vivesse só não poderia prová—lo com tanta

segurança.

Deu-se conta do pouco que sabia da vida privada do Narraway, nem sequer se tinha

perguntado nada a respeito.

De fato, não sabia quase nada de seu passado, sua família ou suas crenças. Era

discreto até o ponto de parecer misterioso.

O único do que Pitt estava seguro era de que lhe importavam apaixonadamente seu

trabalho e as causas pelas que lutava, e que entre ele e Ryerson tinha havido uma relação

pessoal que lhe produzia um pesar profundo e do que não queria falar, sob nenhuma

circunstância.

Era isso o que naqueles momentos consumia ao Pitt com uma dor tão intensa e

violenta que não podia seguir negando. Tinha que ser antes que o julgamento se reatasse

se Narraway estava em sua casa.

Pitt o achou na porta, elegantemente vestido com seu habitual traje cinza escuro de

corte impecável. Narraway se deteve em seco, com os olhos muito abertos, o rosto pálido.

—O que acontece? -perguntou sem fôlego, com voz rouca.

Pitt nunca enfrentara Narraway antes, nem sequer o tinha desafiado. Sabia muito

bem que dependia dele, não só em seu trabalho na Brigada Especial, mas sim para que o

guiasse e protegesse enquanto abria caminho experimentando, adquirindo novas

habilidades. Mas a emoção que o atendia era o bastante poderoso para lhe fazer passar

por cima todas essas sensatas considerações.

—Entre! -disse Narraway com brutalidade.O vento era frio e caía uma fina chuva detrás do Pitt. Narraway endureceu o rosto.

—Será melhor que seja importante, Pitt - respondeu assim que controlou sua

surpresa inicial e uma expressão implacável retornou a seus olhos.

—É - respondeu Pitt entre dentes.

Talvez teria sido mais prudente dizer tudo ali fora. Pensou-o enquanto entrava atrás

dele e ouvia fechar a porta. Narraway o conduziu pelo corredor a seu gabinete e se voltou.

—E então? -perguntou—. Tem dez minutos. Depois irei, tenha terminado ou não. O julgamento se reata às dez e tenho intenção de estar ali.

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 À luz da manhã que entrava pela grande janela mostrava o rosto cinzento, sulcado

de finas rugas de tensão e falta de sono, ao redor dos olhos e boca.

—Mas a nova testemunha está morta -replicou Pitt—. Agora já não haverá quem

revele o móvel da Ayesha Zakhari. O suicídio do O Abd equivale quase a uma confissão!

—Quase -assentiu Narraway tenso—. Ainda é preciso que veja como os desculpam.

O que quer, Pitt?

—Por que supõe que O Abd se suicidou? -perguntou Pitt. Gostaria de estar em

qualquer parte menos ali, fazer algo menos isso—. Estava a ponto de conseguir o que se

tinha proposto.

—Nós sabíamos que era culpado -disse Narraway, mas em sua voz houve uma

vacilação quase imperceptível; talvez ninguém salvo Pitt a teria percebido.

Pitt o olhou fixamente.

—E teve medo? Assim de repente? Medo do que? De que o detivéssemos a

caminho do tribunal e lhe impedíssemos de atestar?

Narraway tomou ar e exalou devagar.

—O que está insinuando, Pitt? Não há tempo para jogos.

Se não o dissesse, o momento passaria e viveria sempre com a dúvida.

—Foi muito oportuno para nós -respondeu Pitt—  De fato, provavelmente salvou

Suez. —Sustentou o olhar do Narraway sem pestanejar.

Narraway estava muito pálido.

—Provavelmente - disse. De novo a dúvida se refletiu em seu rosto.

—Por que ia fazer isso O Abd? -perguntou Pitt.

—Não sei. Não tem sentido - admitiu Narraway ainda em pé, imóvel no centro da

sala.

—Se eu tivesse... -disse Pitt—. Ou você...

Narraway por fim compreendeu. O sangue abandonou do todo seu rosto, lhedeixando a pele cinzenta.

—Santo céu! Acredita que eu matei a O Abd!

—Fez?

—Não - se apressou a responder Narraway—. Não, não o fiz. —Não perguntou ao

Pitt se o tinha feito ele. Sabia que a pergunta do Pitt era sincera e que lhe doía fazê —la.

Era a dúvida que se retorcia em seu interior o que o impulsionava a falar —. Está certo de

que o assassinaram?

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—Não é certo. Mas acredito que sim - respondeu Pitt. — Fizeram isso bem, com

muita destreza. É impossível saber se as feridas se infligiram justo antes da morte ou

pouco depois, se foram golpes deliberados ou acidentais que se fez ao cair ou contra

algum navio que passava. Não podemos demonstrar nada.

 A incerteza voltou a aparecer no rosto de Narraway.

—Quem ia querer matá—lo, e por que?

— Alguém que estava à corrente da matança - replicou Pitt—. E que faria algo, até

cometer um assassinato e permitir que enforcassem ao Ryerson por isso, antes que ver

como traziam a luz a verdade, com o que isso conduziria.

Narraway estava sinceramente assombrado.

—Isso é o que acha? -disse com um tom de voz em que dominava a

incredulidade—. Que quero que enforquem ao Ryerson?

—Não, não acredito que você o queira - manifestou Pitt com sinceridade—. Acredito

que lhe horroriza a idéia. Acredito que lhe torturam os remorsos, mas deixará que o

enforquem antes que permitir que saia à luz a matança e perder o Egito.

Narraway não respondeu. O silêncio flutuava no ar como um abismo de escuridão

entre eles.

—Não esbanje os minutos que ficam -disse Pitt, sem mover-se da porta para lhe

impedir o passo.

Não tinha intenção de ameaçá—lo fisicamente, de fato não estava certo sequer de

se poderia. Narraway era mais ligeiro e mais baixo que ele, mas era magro e

possivelmente tinha sido treinado de maneiras que Pitt não tinha imaginado sequer.

Inclusive poderia estar armado.

Mas Pitt não tinha intenção de mover-se até receber uma resposta. O que o movia

era a emoção, não a razão. Não tinha pensado no que faria se Narraway lhe confessava

que tinha matado a O Abd. As nuvens se abriram e por um instante o sol cobriu o chão de sombras salpicadas.

—Não tem nada que ver com o Egito ou com o assassinato do Lovat ou a matança -

respondeu Narraway por fim, em voz baixa e um pouco rouca.

Pitt esperou.

—Maldição, Pitt! Não é assunto seu! —explodiu Narraway—. Ocorreu faz anos. Eu...

eu só... —Voltou a interromper-se.

Pitt não se moveu.

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—Foi há vinte anos - começou Narraway de novo—. Eu trabalhava então no conflito

da Irlanda. Sabia que estava previsto um levantamento, violência, assassinatos...

De repente, Pitt sentiu frio.

—Precisava saber o que estava ocorrendo - disse Narraway sem piscar, mas com

os olhos cheios de ira e sofrimento—  Tive uma aventura com a mulher do Ryerson. -

Tremeu-lhe a voz—. Eu tive a culpa de que disparassem contra ela.

De modo que era por remorsos, não só pelo Lovat ou Ayesha ou algo que estava

ocorrendo no presente.

Sem pensar sequer nisso, Pitt se deu conta de que achava que Narraway lhe estava

contando a verdade.

Narraway esperou, sem deixar de observar o rosto do Pitt. Não ia perguntar.

Muito devagar, Pitt assentiu. Compreendia—o. Mais que isso, deu-se conta

assombrado de algo que provavelmente Narraway nunca confessaria nem aludiria sequer:

a seu superior importava-lhe o que ele pensasse.

—Vamos ao tribunal? -perguntou Narraway.

Tinha visto no rosto do Pitt que acreditava nele e isso lhe bastava. A tensão tinha

desaparecido e quis interromper esse momento. Tinha uma dívida que pagar e morria por

fazê-lo.

—Sim - concordou Pitt, voltando-se de novo para a porta e saindo primeiro sem

virar-se para ver se Narraway o seguia.

 A sala do tribunal do Old Bailey estava menos cheia. Os últimos dias tinham suposto

algo assim como um anticlímax.

Nos jornais tinha aparecido a notícia da morte do Tariq O Abd, mas só como um

estrangeiro desconhecido que aparentemente se havia suicidado. Não o tinham

relacionado com o caso Ryerson, cujo veredicto já se dava por assentado embora não se

esperava até o dia seguinte.O advogado defensor se sentia obrigado a tentar oferecer uma explicação, uma

hipótese, o que fosse para dar a impressão de que tinha feito todo o possível.

Narraway e Pitt entraram na sala justo quando sir Anthony Markham, o advogado

defensor, levantava-se para começar.

O juiz olhou ao Narraway, irritado pela interrupção. Não tinha nem idéia de quem

era, só alguém que era bastante mal educado para chegar tarde e de forma chamativa.

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Pitt hesitou. Era evidente que Markham conhecia o Narraway, mas seu rosto não

mostrou interesse, mas bem ao contrário. Sacudiu muito levemente a cabeça e se voltou

para o juiz.

Narraway se deteve. Sabia Markham sobre Abd ou não? Se não soubesse, estaria

sem dúvida desesperado por conseguir algo ao que agarrar-se para defender a seu cliente.

De repente, Narraway caiu na conta, horrorizado, de que não estava seguro de se O

 Abd tinha sido testemunha da acusação, para fechar o caso com um móvel perfeito, ou

testemunha da defesa, para atenuar de algum modo o crime.

Ou a testemunha surpresa não era O Abd a não ser outra pessoa? Voltou a ir a sua

mente a pergunta que continuava sem resposta: quem era o instigador da morte do Lovat,

o homem que faria cair Suez e a metade oriental do Império? E tinha comprado a um dos

dois advogados?

Quem tinha assassinado a O Abd e por que?

Na sala do tribunal não havia movimento. Pitt olhou ao redor. A galeria dos

espectadores estava três quartas partes cheia.

Viu Vespasia, com a luz que se projetava sobre seu rosto pálido e arrancava brilhos

de seu cabelo prateado. Levava um pequeno e discreto chapéu, certamente em

consideração a aqueles cuja visão podia obstruir.

Na fileira de trás estava Ferdinand Garrick, com o rosto rígido, os olhos muito

abertos cravados em um ponto fixo, como hipnotizado pelo que ia ter lugar na sala debaixo

dele.

Os membros do júri esperavam, tristes e não realmente interessados já. Escutavam

e observavam porque era seu dever.

Narraway seguiu andando para o Markham e se deteve a seu lado. Pitt o fez um

passo atrás.

—O cadáver que pendia da ponte era o do Tariq O Abd - disse Narraway em voz tãobaixa que Pitt mal o ouviu—. Foi ele quem matou ao Lovat. A senhorita Zakhari o admitiu e

encaixa perfeitamente com as provas.

Markham ficou imóvel.

—Que oportuno para a senhorita Zakhari e, é claro, para o senhor Ryerson! -

replicou com um tom de sarcasmo—. Por que matou o criado egípcio o tenente Lovat?

Também sabe?

—Não, não sei e não importa. — A voz do Narraway era fria—. Pode ser que Lovatabusasse de sua filha, ou de sua irmã, ou inclusive de sua mulher, não sei.

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Limite-se a atuar! Chame à brigada fluvial. Depois Pitt identificará o cadáver para

você.

Markham olhou ao Pitt, que assentiu.

Markham tinha uma expressão dura. Desagradava-lhe que lhe dissessem o que

tinha que fazer, fosse quem fosse.

—Tem intenção de continuar, sir Anthony? -perguntou o juiz com um vislumbre de

irritação.

Markham levantou o olhar, como se já tivesse se despedido do Narraway.

—Sim, senhoria. Acabo de ser informado de novos fatos que jogam uma luz

totalmente diferente sobre a morte do tenente Lovat.

Com a vênia da sala, eu gostaria de chamar como testemunha Thomas Pitt.

—Será melhor que seja importante, sir Anthony -disse o juiz cansativamente—. Eu

não gosto que em minha sala se produzam cenas.

— A prova será dramática, senhoria, mas não teatral -replicou Markham com frieza.

—Então, prossiga! -replicou o juiz.

—Chamo o Thomas Pitt! -disse Markham em voz alta.

Narraway olhou muito brevemente ao Pitt, logo virou sobre seus calcanhares e

retrocedeu até a fileira mais próxima onde havia dois assentos livres, deixando que Pitt

cruzasse a sala e subisse ao estrado.

Pitt deu seu nome e seu lugar de residência, e esperou que Markham lhe

perguntasse sobre O Abd. Só estava ligeiramente nervoso. Essa era a primeira vez que

não atestava em qualidade de agente de polícia.

De repente era uma pessoa saída das sombras, sem categoria e nenhuma

ocupação que lhe desse um status.

—Conhecia você ao criado da senhorita Zakhari, Tariq O Abd, senhor Pitt? -

perguntou Markham.—Sim.

—Em qualidade do que?

—Em qualidade de criado do Eden Lodge -replicou Pitt—. Não o conhecia

pessoalmente.

—Mas sim falou com ele bastante extensamente -apressou Markham.

—Sim, aproximadamente uma hora em total.

—Então, reconhecê-lo-ia se voltasse a vê-lo.—Sim.

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—Viu-lhe depois?

Os membros do júri estavam visivelmente inquietos.

O promotor se levantou.

—Senhoria, a definição de drama de meu ilustre colega não coincide com a minha.

Nunca escutei nada mais tedioso! O que tem que ver com o caso que nos ocupa o

fato de que este cavalheiro tenha estado fofocando ou não com o criado da senhorita

Zakhari?

—Queria estabelecer que o senhor Pitt era capaz de identificar ao Tariq O Abd,

senhoria -disse Markham com doída inocência, e sem esperar nenhuma instrução se

voltou para o Pitt—. Onde o viu, senhor Pitt, e quando?

—No necrotério - manifestou Pitt com firmeza—. Ontem.

Um murmúrio de surpresa percorreu a sala.

O juiz se virou para frente, o rosto hermético e furioso.

—Está dizendo que morreu, senhor Pitt?

—Sim, senhoria.

—Qual foi a causa?

O promotor se levantou.

—Senhoria, o senhor Pitt não tem um título em medicina. Não está qualificado para

declarar sobre a causa de uma morte!

 Ao juiz lhe incomodou a objeção, mas não podia lhe contradizer e sabia. Olhou

furioso ao promotor, depois se voltou para Pitt.

—Onde acharam a esse homem?

—Com uma corda ao pescoço pendurado da ponte de Londres. Informou—me disso

a brigada fluvial.

—Suicídio? —bradou o juiz.

—Não estou qualificado para dizê—lo -respondeu ele.Houve um momento de silêncio total, logo uns risinhos percorreram a sala.

O rosto do juiz era como de gelo. Olhou ao Markham.

—Pode prosseguir com sua argumentação, em vista da morte do homem? -disse

com cólera mal dissimulada. Tinha o rosto tinto. Não perdoaria que Pitt fizesse rir à sala a

suas custas.

—Sim, senhoria - disse Markham com vigor —. Não posso demonstrar que a morte

do Tariq O Abd fora um suicídio, mas não me ocorre nenhuma forma concebível para

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explicar que um homem se encontre a si mesmo por acidente com uma corda ao redor do

pescoço sob os arcos da ponte de Londres.

 Acredito que qualquer júri formado por doze homens honrados deve considerar sua

responsabilidade na morte do tenente Edwin Lovat como algo que propõe sérias dúvidas

sobre meu cliente ser culpado ou não.

O Abd tinha acesso à arma que matou à tenente Lovat. Era ele quem se

encarregava de limpá—la! E teve todas as oportunidades para utilizá—la nesse momento e

nesse lugar.

 A justiça, e inclusive a razão, exigem que o declarem culpado! Sua recente morte,

quase seguro que por sua própria mão, torna absurdo que não o seja!

—Não foi Tariq O Abd quem tratava de desfazer-se do cadáver! —O promotor se

pôs em pé e sua voz soou áspera de indignação—. Se Ayesha Zakhari não matou ao

Lovat, por que estava ela fora no jardim com o cadáver em um carrinho de mão? Isso não

é o que faria uma mulher inocente!

—É o que faria uma mulher assustada! -disse Markham imediatamente—. Se se

encontrasse você o cadáver de um homem assassinado com sua pistola ao lado, não é

possível que tratasse de escondê—lo?

—Chamaria à polícia! -replicou o fiscal.

—Em um país estrangeiro? —Markham era quase zombador —. Teria confiado em

sua justiça sendo de diferente raça, diferente idioma e diferente cultura? —Não continuou.

Viu nos rostos dos membros do júri que se explicara à perfeição.

O promotor se voltou para o juiz, com os braços abertos.

—Por que, senhoria? Que motivo podia ter um criado egípcio para assassinar um

diplomata no meio de Londres?

Houve movimento na galeria.

Levantou-se um homem esbelto, elegante, impecavelmente vestido, com seu cabeloabundante e ondulado penteado para trás, deixando espaçoso seu rosto aquilino.

Pitt estava perplexo. Era Trenchard! Devia ter retornado a Inglaterra de licença.

—Senhoria -disse Trenchard com supremo respeito—, meu nome é Alan Trenchard.

Trabalho no consulado britânico da Alexandria. Acredito que posso responder às perguntas

da sala.

Levo mais de vinte e cinco anos vivendo e trabalhando no Egito, e fui capaz de

reunir bastante informação sobre os assuntos que aqui se discutem desde que o senhor

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Pitt partiu de Alexandria e que, portanto não pude lhe comunicar quando ele realizava sua

investigação.

O juiz franziu o sobrecenho.

—Se sir Anthony deseja lhe chamar como testemunha em interesse da justiça,

ouviremos você.

Markham não tinha escolha. Despediu-se do Pitt e, em seguida, Trenchard subiu os

degraus do estrado e se voltou para a sala.

Pitt se sentou junto ao Narraway e sentiu como este ficava rígido quando Markham

voltou a aproximar-se do estrado e Trenchard deu seu nome e seu lugar de residência.

Markham parecia totalmente relaxado. Seus clientes, que no dia anterior pensavam

que seriam condenados, de repente estavam a ponto de ser absolvidos.

Não tinha sido obra sua, tudo se devia circunstâncias que ele não tinha previsto nem

organizado, mas ainda assim seguiria sendo para ele uma vitória assombrosa.

—Senhor Trenchard —começou—, conheceu o tenente Lovat durante o tempo que

ele serviu no exército no Egito?

—Não pessoalmente - replicou Trenchard—. Eu estou no corpo diplomático e ele

estava no exército. É possível que tenhamos nos encontrado, mas não sou consciente

disso.

O juiz franziu o sobrecenho.

Os membros do júri se olharam entre si, com pouco interesse Pitt se surpreendeu

com as mãos juntas, cravando—as unhas nas Palmas.

Markham manteve os olhos cravados deliberadamente no estrado.

—Conhecia você ao homem falecido, Tariq O Abd? — Averigüei muitas coisas sobre

ele -replicou Trenchard.

Estava muito rígido, com as mãos no corrimão, os dedos brancos. Pitt sentiu uma

onda de medo, selvagem e irracional.Voltou-se para olhar o banquinho dos acusados. Ryerson estava concentrado, mas

não havia rastro de emoção nele, ainda não se atrevia a ter esperanças.

Mas Ayesha estava voltada para frente com os olhos muito abertos de assombro

enquanto olhava ao Trenchard, e Pitt se deu conta horrorizado de que sem dúvida

conhecia e não de nome, como havia dito ele, mas pessoalmente.

Por fim os membros do júri estavam pendentes de cada palavra, até de cada

expressão.Na sala fazia calor, mas Pitt sentia em seu interior um profundo e terrível frio.

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Recordou ao Trenchard dizer que tinha amado a uma mulher egípcia que tinha

morrido fazia pouco em um acidente.

De repente, era quase como se estivesse ali sentado em e chão, com os ossos

doloridos e o suave bater do Nilo na escuridão do exterior, e ouvisse o Ishaq falar de seu

pai o Imam, dos pesadelos de matanças e corpos em chamas que tinha padecido antes de

morrer, da filha que o tinha cuidado, que tinha ouvido todas suas palavras, a intensidade

de sua dor e sua culpa, e que tinha morrido pouco depois.

Então foi a sua mente uma terrível possibilidade que fazia que tudo encaixasse à

perfeição.

Essa jovem e a amante do Trenchard eram a mesma mulher! Isso era tudo o que se

necessitava! Trenchard, com seu apaixonado amor pelo Egito, conhecia as lealdades da

 Ayesha, estava informado da matança e tinha deduzido o resto: os quatro soldados

britânicos que Ferdinand Garrick tinha tirado da Alexandria em navio para protegê-los e,

em sua profunda e absoluta devoção a seu país, proteger o Império britânico na África e

Oriente.

Voltou-se para o Narraway.

—Vai falar lhes da matança —sussurrou e percebeu como lhe tremia a voz—.

Talvez quis fazê-lo ele pessoalmente desde o começo para pôr fim ao assunto, sem

ninguém que o contradissesse, ninguém que perdesse a calma e fracassasse! Não é o

móvel da Ayesha o que vai revelar, a não ser o do Abd.

O Abd não mandava em ninguém, foi o perfeito cabeça de turco. Ayesha devia atrair

Ryerson, monopolizando todos os olhares, e O Abd carregaria com toda a culpa.

Narraway ficou pálido.

—Santo céu! —ofegou—. Tem razão.

Markham seguia falando com o Trenchard.

—O que averiguou sobre o Tariq O Abd que guarde relação com a morte do tenenteLovat? -perguntou-o com uma nota de curiosidade, os olhos muito abertos, vendo a vitória

tão perto que já podia saboreá—la.

— Averigüei por que o matou - respondeu Trenchard.

Pitt fez ameaça de levantar-se. Não tinha uma idéia clara do que ia fazer, mas não

podia permitir que ocorresse.

O derramamento de sangue afundaria toda a África e arruinaria a Índia britânica,

Birmania e todos os países da zona.Trenchard o viu e se voltou para ele sorrindo.

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—Tariq O Abd perdeu toda sua família em uma terrível... -começou a dizer.

Houve um forte estalo seguido imediatamente de outro. Trenchard caiu para trás e

desabou no chão do estrado.

Pitt se voltou no preciso momento em que soou o terceiro estalo, e viu como a

cabeça do Ferdinand Garrick parecia voar em pedaços enquanto caía, com a pistola ainda

na mão.

O juiz ficou paralisado.

 Ao Markham falharam as pernas e caiu torpemente ao chão.

Pitt se dirigiu à parte dianteira da sala, seguido de perto pelo Narraway. Aproximou-

se do estrado onde jazia Trenchard. Garrick lhe tinha alcançado na cabeça com os dois

tiros, lhe voando a tampa dos miolos. Por fim tinha fechado o último capítulo da matança.

Egito e Oriente estavam a salvo.

Narraway olhou o corpo sem vida por um instante, logo lhe deu as costas e

escrutinou a galeria, onde toda a gente se afastava do Garrick, esparramado no chão,

salvo Vespasia.

 Alheia ao sangue que lhe tinha salpicado o vestido, ajoelhou-se a seu lado e lhe

 juntou as mãos com delicadeza. Era um gesto totalmente inútil, mas tinha dignidade, um

peculiar respeito, como se de repente tivesse visto nele algo valioso, uma compaixão que

estava acima da opinião das pessoas.

No banquinho dos acusados, Ryerson estendeu uma mão e pegou a de Ayesha, era

tudo o que podia alcançar, mas bastava.

—Encarregar-me-ei de que cuidem bem do Stephen Garrick -disse Narraway em

voz baixa—. Acredito que o devemos a seu pai.

Pitt assentiu, olhando ainda a Vespasia.

— Assim se fará -manifestou com absoluta convicção—. E Martin Garvie velará por

ele.Narraway olhou ao Ryerson, e parte da tensão de seu corpo se evaporou e a carga

em seu foro interno pareceu aliviar-se.

Fim

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