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PHRONESIS E VIRTUDE DO CARÁTER EM ARISTÓTELES: COMENTÁRIOS A ÉTICA A NICÔMACO VI 1 Lucas Angioni Universidade Estadual de Campinas/CNPq ABSTRACT: I examine step by step Aristotle’s argument in Nicomachean Ethics VI with the aim of understanding how phronesis and its correct reason determine the intermediacies so that a virtuous person is able to effectively perform his actions according to his purposes. In order to determine the intermediacies, phronesis involves a good use of deliberative reasoning but also a quasi-perceptual evaluation of singular factors on which every action depends. I claim that this second task attributed to phronesis allows us a better understanding of its definition as “praktike” as well as of its interdependency with moral virtue. KEYWORDS: moral virtue, prudence, practical wisdom, reason, intermediacy, prohairesis. RESUMO: Procuro examinar passo a passo a argumentação desenvolvida por Aristóteles no livro VI da Ética a Nicômaco, buscando compreender de que modo a razão correta da phronesis delimita as mediedades e garante a efetiva realização das ações conforme aos propósitos da virtude do caráter. Essa delimitação das mediedades parece envolver duas camadas: o uso do raciocínio deliberativo para a determinação de propósitos (prohaireseis), e a avaliação dos fatores singulares envolvidos nas circunstâncias de cada ação. À luz disso, compreendemos melhor a definição da phronesis como “realizadora de ação” (praktike), bem como sua interdependência em relação à virtude do caráter. PALAVRAS-CHAVE: virtude moral, prudência, sensatez, razão, mediedade, prohairesis. 1 Versão preliminar destes comentários foi discutida em Agosto de 2011 em seminários realizados na UFRGS. Agradeço a Raphael Zillig, Inara Zanuzzi e Priscilla Spinelli por terem me dado essa oportunidade de discussão. Suas inúmeras críticas, sugestões e objeções muito contribuíram para aprimorar a versão final. Agradeço também aos alunos Fernando Martins Mendonça, Marcos Peraçoli e Breno Zupollini por diversas observações sobre a tradução e os comentários. © Dissertatio [34] 303 – 345 verão de 2011

ANGIONI, L. Phronesis e Virtude de Caráter Em Aristóteles. Comentários a Ética a Nicômaco VI

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ANGIONI, L. Phronesis e Virtude de Caráter Em Aristóteles. Comentários a Ética a Nicômaco VI.

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  • PHRONESIS E VIRTUDE DO CARTER EM ARISTTELES: COMENTRIOS A TICA A NICMACO VI1

    Lucas Angioni Universidade Estadual de Campinas/CNPq

    ABSTRACT: I examine step by step Aristotles argument in Nicomachean Ethics VI with the aim of understanding how phronesis and its correct reason determine the intermediacies so that a virtuous person is able to effectively perform his actions according to his purposes. In order to determine the intermediacies, phronesis involves a good use of deliberative reasoning but also a quasi-perceptual evaluation of singular factors on which every action depends. I claim that this second task attributed to phronesis allows us a better understanding of its definition as praktike as well as of its interdependency with moral virtue. KEYWORDS: moral virtue, prudence, practical wisdom, reason, intermediacy, prohairesis. RESUMO: Procuro examinar passo a passo a argumentao desenvolvida por Aristteles no livro VI da tica a Nicmaco, buscando compreender de que modo a razo correta da phronesis delimita as mediedades e garante a efetiva realizao das aes conforme aos propsitos da virtude do carter. Essa delimitao das mediedades parece envolver duas camadas: o uso do raciocnio deliberativo para a determinao de propsitos (prohaireseis), e a avaliao dos fatores singulares envolvidos nas circunstncias de cada ao. luz disso, compreendemos melhor a definio da phronesis como realizadora de ao (praktike), bem como sua interdependncia em relao virtude do carter. PALAVRAS-CHAVE: virtude moral, prudncia, sensatez, razo, mediedade, prohairesis.

    1 Verso preliminar destes comentrios foi discutida em Agosto de 2011 em seminrios realizados na UFRGS. Agradeo a Raphael Zillig, Inara Zanuzzi e Priscilla Spinelli por terem me dado essa oportunidade de discusso. Suas inmeras crticas, sugestes e objees muito contriburam para aprimorar a verso final. Agradeo tambm aos alunos Fernando Martins Mendona, Marcos Peraoli e Breno Zupollini por diversas observaes sobre a traduo e os comentrios.

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    INTRODUO

    O livro VI da tica a Nicmaco pode ser entendido como um tratado sobre a phronesis (prudncia, sabedoria prtica ou, como preferi traduzir, sensatez). Muito se discute a origem desse livro: pertenceria ele Ethica Nicomachea ou Ethica Eudemia? Essa questo depende de como avaliamos a discusso sobre a virtude moral nos livros precedentes quer na Ethica Nicomachea ou na Ethica Eudemia , e como compreendemos as discrepncias entre essas duas obras. Os comentrios que aqui oferecemos no examinam essas questes, nem pressupem respostas determinadas para as mesmas. Estaramos mais inclinados a tomar o tratado sobre a phronesis como pertencente Ethica Eudemia, pois algumas similaridades na formulao das questes e no uso do jargo so bem evidentes. O primeiro captulo do tratado sobre a phronesis, por exemplo, parece ser anunciado em EE 1222b7-8: devemos investigar mais tarde o que a razo correta, bem como qual a delimitao [horos] que se deve observar para estabelecer a mediedade. O uso do jargo horos (no sentido de delimitao ou limite das mediedades) ocorre em diversas outras passagens: 1222a17, 1249a21-23 (cf. EN 1138b22-25), 1149b23. O uso do jargo skopos (alvo) em conexo com as mediedades e com a razo correta tambm aparece vrias vezes (1226b30, 1227b20-24, 1249b24), contra apenas uma ocorrncia relevante na EN (1106b32). A discusso das virtudes naturais anunciada em EE 1234a27-30. Alm do mais, a similaridade entre EN VI 1 e o trecho EE 1149a21-b6 to grande que d a este ltimo a aparncia de pastiche do primeiro, com a repetio literal, em 1249a6, do mesmo lema isto verdadeiro, mas no claro, que ocorre em 1138b25-26.

    No obstante, no faltam argumentos para defender que o tratado da phronesis pertence Ethica Nicomachea. Estudo mais meticuloso da razo correta tambm anunciado e prometido em EN 1103b32-34. Alm disso, a definio de virtude do carter dada em EN 1106b36-1107a2 muito mais apropriada s discusses empreendidas no tratado da phronesis do que a definio dada em EE 1227b8-10, pois nesta ltima no se faz nenhuma referncia razo correta, nem ao phronimos. De modo similar, a discusso sobre as dificuldades em se estabelecer a mediedade correta muito mais detalhada em EN II (1106b8-35; 1109a24 ss.; 1109b14-23 = EN IV, 1126a34 ss.) do que em EE II, de modo que seria mais verossmil julgar que a primeira, no a segunda, exige e justifica a discusso mais pormenorizada sobre a razo correta do phronimos.

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    Devemos notar, porm, que a questo da origem de EN VI pode no ser to relevante, pois no vemos nenhuma distncia intransponvel entre as duas obras no que concerne aos assuntos que focalizamos nos comentrios. Alguns dizem que o tratamento da prohairesis bem distinto em cada uma das obras, mas considero tal juzo fruto de incompreenses sobre os argumentos de ambas: a prohairesis descrita do mesmo modo em EE 1226b17 e EN 1113a10-11, e a concordncia da letra, neste caso, acompanhada pela concordncia da teoria. Outras discrepncias entre as duas obras, como as diferentes definies de virtude do carter, podem ser muito bem compreendidas e justificadas pelas diferenas de interesse em cada contexto argumentativo.

    Em nosso juzo, o livro VI da Ethica Nicomachea um texto razoavelmente coeso, no qual um projeto argumentativo anunciado explicitamente e, apesar de percalos e lacunas, cumprido em suas linhas gerais. Esse projeto consiste em examinar a noo de phronesis e dizer como ela se relaciona com a virtude do carter e com a promoo da eudaimonia. Mas tal descrio do projeto ainda vaga. bem verdade que Aristteles pretende elucidar de que modo a phronesis colabora com a virtude do carter na promoo da eudaimonia (cf. 1144a6-9). Mas o que Aristteles pretende fazer , mais precisamente, elucidar de que modo as mediedades as quais eram um dos fatores proeminentes na definio de virtude do carter (cf. EN 1106b36-1107a2, EE 1227b8-10) so delimitadas pela razo correta que caracteriza a phronesis (cf. 1138b25-26, 34). De certo modo, Aristteles tambm est a retomar o estudo das virtudes que compem a virtude do ser humano em seu todo (cf. 1144a5) e, dado que finalizou o estudo das virtudes do carter, passa ao estudo das virtudes intelectuais (1139a1-2). Por isso, o livro VI inclui captulos cujos assuntos so apenas extrinsecamente conectados com a relao entre phronesis e virtude do carter. O foco principal, no entanto, consiste em discutir o que o orthos logos pelo qual a phronesis delimita as mediedades e garante a realizao de aes virtuosas propriamente ditas.

    Em vista desse interesse, Aristteles retoma a diviso das partes da alma e divide a parte racional em duas, para caracterizar a phronesis como uma virtude da parte calculativa (1139a14-17, 1140b26). A segunda etapa consiste em caracterizar como a phronesis realizadora de aes (praktike, 1140b5, 1141b16, 21). Se a delimitao da mediedade feita pela phronesis o que garante a efetiva realizao da ao, cumpre determinar qual a relao

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    da phronesis com a prohairesis, pois esta ltima o princpio motivador que leva a agir (1139a31 ss.). A prohairesis envolve desejo e pensamento desejo por um fim concebido como um bem, pensamento sobre as condies apropriadas para a realizao desse fim (1139a23-26). Ao ressaltar o papel da prohairesis como fator de motivao que leva ao, Aristteles quer abrir o caminho para elucidar de que modo a phronesis, uma virtude intelectual, praktike: a phronesis uma virtude intelectual que, acolhendo o fim correto adotado pela virtude do carter, determina as condies efetivamente apropriadas para a realizao desse fim (cf. 1144a28-31), para alm do propsito ou da inteno de agir bem (1144a20-22). A caracterizao da phronesis como virtude intelectual auxiliada por estudo bem esquemtico das demais capacidades pelas quais a alma acerta a verdade: cincia, tcnica, sabedoria e inteligncia. O objetivo preponderante de Aristteles parece ser caracterizar a phronesis como uma virtude intelectual cujo trao mais relevante mas no exclusivo seria a avaliao correta das circunstncias singulares das quais depende a efetiva realizao de cada ao virtuosa (cf. 1142a23-30; 1143a32-33).

    O carter efetivo e eficaz da phronesis, no entanto, no pode ser separado da compreenso dos fins moralmente bons. A phronesis envolve o fim correto adotado pelo carter virtuoso e, portanto, no pode ocorrer separadamente da virtude do carter (1144a29-b1, b31-32). Por outro lado, sua tarefa propriamente intelectual determinar a mediedade em ateno aos fatores singulares relevantes em cada ao parece envolver duas camadas: a boa deliberao (1140a25-28, 1143a31-32), pela qual se formulam propsitos ainda gerais, e a percepo dos extremos (1142a26-30, 1143b5), dos quais depende imediatamente a realizao da ao moral. No entanto, embora seja uma virtude intelectual, a phronesis orientada consecuo das aes conforme ao propsito (1144a20-22; 29-b1): o pensamento pelo qual ela se constitui um pensamento cujo princpio o desejo envolvido em um bom propsito (1144a20-22, 1145a4-6) e cuja funo garantir a realizao efetiva desse propsito (1144a20-22).

    Muito do que Aristteles diz no livro VI da Ethica Nicomachea sucinto, de difcil compreenso e sujeito s mais variadas controvrsias. O desenvolvimento argumentativo do texto no to contnuo, nem to transparente, como acima o descrevemos. Julgamos, no entanto, que a argumentao emprendida por Aristteles se torna bem mais inteligvel se lhe atribumos esses interesses e fios condutores.

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    Comentrios a EN VI

    1138b21: habilitao traduz hexis. As outras opes disponveis seriam disposio e condio. No uso tcnico que Aristteles faz desse termo no terreno de sua teoria moral, dois fatores so proeminentes: (I) hexis remete s disposies internas do agente o modo pelo qual o agente lida com os desejos, as emoes, os prazeres e as dores, ao efetuar uma ao ou passar por uma dada situao; (II) hexis remete a uma capacidade de agir sedimentada no agente pela prtica habitual das mesmas aes que caem sob o domnio dessa capacidade. Esses dois fatores se ligam a dois usos do verbo echo: o uso de expresses como ps echein (cf. 1105a31; 1144a18); o uso do verbo echo como auxiliar, complementado por infinitivo, no sentido de ter o poder de, ser apto/ habilitado a. Condio um termo muito fraco para captar qualquer um desses dois fatores e, alm do mais, sugere algo meramente transitrio ou momentneo, ao passo que a hexis algo constante. Disposio um termo mais apropriado ao primeiro fator, ao passo que habilitao mais apropriado ao segundo. Escolhemos habilitao por julgar que, nos contextos mais importantes do livro VI, o fator (II) mais importante que o fator (I), mas reconhecemos que disposio seria traduo mais acertada para alguns contextos (p. ex. 1120b9, 1127b2, 15).

    1138b22: alvo: o termo grego skopos. Para muitos comentadores

    e tradutores, esta ocorrncia do termo skopos remete a sua ocorrncia em EN I, 1094a24, na qual ele designa o alvo de um arqueiro e, por analogia, introduz o sumo bem, que logo mais ser identificado eudaimonia. Mas essa associao entre as duas ocorrncias no parece acertada e, alm do mais, introduz srias conseqncias na compreenso do que vem a ser a phronesis e seu papel fundamental na determinao das aes virtuosas e na realizao da eudaimonia. Por tal associao entre essas duas ocorrncias de skopos, pode-se sugerir que a phronesis, responsvel pela delimitao mais precisa desse alvo, seja capaz de produzir conhecimento mais determinado sobre a eudaimonia no sentido de ser capaz de justificar melhor a ao virtuosa. No entanto, h outra ocorrncia de skopos que muito mais til para compreender os propsitos de Aristteles no livro VI a respeito das tarefas apropriadas phronesis. Em 1106b32, skopos remete mediedade, que o alvo (e fim) a ser atingido em cada ao virtuosa. Aristteles afirma insistentemente que difcil acertar esse alvo, porque sua determinao

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    depende da considerao judiciosa de uma srie de fatores singulares, que no podem ser controlados de modo decisivo por nenhum clculo racional prvio. Justamente nesse contexto, Aristteles insiste que a determinao da mediedade cai sob a alada do phronimos (1107a1-2). Ora, exatamente esse problema que o livro VI assume como assunto, em 1138b18-20. Alm do mais, relacionar as ocorrncias de skopos em 1138b22 e 1106b32 tambm permite compreender de modo consistente e razovel a ocorrncia do mesmo termo no trecho 1144a6-9. (O uso de skopos em EE II 11 tambm favorece nossa interpretao).

    1138b25: razo correta traduz orthos logos, expresso que objeto

    de controvrsia. Alguns julgam que se trata de uma regra ou mxima de ao que se impe (ou se aplica) em uma dada circunstncia singular. Muitas ocorrncias da expresso parecem favorecer essa leitura (cf. 1119a20; 1138a10; 1147b3, 1151a11, 21, 22). No entanto, muito mais justo compreender orthos logos como um procedimento pois no se trata nem de uma regra j pronta, nem de um padro fixo. Trata-se do procedimento pelo qual a parte calculativa da alma, da qual a phronesis a virtude, submete um alvo (suposto como fim) a uma delimitao ulterior, que o especifica de modo mais claro e adequado aos casos particulares. Esse procedimento de delimitao e especificao parece envolver duas camadas: primeiro, a delimitao, por clculo deliberativo, dos modos aptos a realizar o fim; segundo, a avaliao dos fatores relevantes envolvidos nas circunstncias singulares de cada ao. Outra questo qual a expresso em portugus que melhor captaria essa noo. Talvez cmputo correto, clculo correto ou avaliao correta sejam boas opes de traduo. Mas o que mais importante que a expresso deve ser compreendida do modo acima sugerido: como um procedimento racional, quer pelo raciocnio propriamente dito, quer pela inteligncia ou percepo dos extremos. Outro ponto relevante que a expresso muda de sentido conforme a argumentao progride. Em contextos preliminares da EN, como 1103b32-33, orthos logos parece ser uma expresso de uso comum, mas cujo sentido preciso ainda cabe delimitar. Em 1144b29-30, Aristteles parece propor uma mudana tambm no sentido do termo logos: para Scrates, se tratava de um acervo de proposies verdadeiras, ou algo assim; j para Aristteles, se trata do uso apropriado da parte calculativa da alma.

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    1138b23, 34: delimitao: as duas ocorrncias de horos no precisam ter o mesmo significado pois comum, no texto de Aristteles, um mesmo termo variar de sentido no contexto de uma mesma argumentao. No obstante, neste caso, tomo as duas ocorrncias de horos no mesmo sentido, que o de delimitao ulterior e mais precisa. Em 1138b22-23, skopos introduz o propsito mais geral que motiva a ao, ao passo que horos introduz uma delimitao mais precisa desse propsito pela avaliao correta (orthos logos) dos fatores relevantes envolvidos na circunstncia singular da ao. J em 1139a34, horos se contri com o genitivo toutou, que remete a orthos logos. Interpreto o genitivo como subjetivo (possessivo), no como objetivo: Aristteles prope, como meta do livro VI, determinar melhor em que consiste essa delimitao mais precisa que a phronesis, pelo orthos logos (avaliao correta dos fatores sigulares etc.), impe ao alvo genrico adotado pela virtude do carter. Rejeito, assim, a intepretao de horos em 1138b34 no sentido tcnico de definio, como se Aristteles estivesse anunciando o propsito de definir a phronesis.

    Cumpre esclarecer, ainda, que a expresso fatores singulares, ou equivalentes, ser usada nestes comentrios para designar os fatores circunstanciais dos quais depende a realizao de cada ao, os quais Aristteles identifica apenas de modo bem esquemtico, seja ao explicar em que consiste a mediedade (cf. 1106b21-22, 1109a28, b 15-16, 1120b20-21, 1125b31-32), seja ao examinar a noo de voluntrio (cf. 1111a3-6): quando se deve agir; em quais situaes; envolvendo quais indivduos; com que fim; como; por quanto tempo etc.

    1138b32-34: no contexto, o que Aristteles est a propor claro.

    Assim como, para um mdico encarregado de decidir qual medida deve tomar para recuperar a sade deste paciente singular, inadmissvel fiar-se apenas na prescrio genrica e dizer devo ministrar a este doente as coisas que produzem sade e as que a medicina lhe prescreveria, do mesmo modo, para um agente encarregado de decidir o que deve fazer para realizar uma ao virtuosa, inadmissvel fiar-se apenas no preceito genrico e dizer devo fazer as coisas que realizam o bem e as que o phronimos faria. Isso no quer dizer que a prescrio e o preceito genricos so falsos. Isso apenas quer dizer que a prescrio e o preceito genricos so inadequadamente vagos e ineficazes para determinar a ao. Por isso, em ambos os casos, deve-se acrescentar uma delimitao ulterior e mais precisa do alvo, pela

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    considerao correta dos fatores relevantes num caso, deve-se determinar mais precisamente em que consiste recobrar a sade, em tais e tais circunstncias; noutro, deve-se determinar mais precisamente em que consistem o bem e a mediedade, em tal e tal circunstncia singular. Em suma: no basta que o preceito genrico seja verdadeiro, mas preciso delimit-lo mais precisamente. Essa a tarefa que Aristteles assume no livro VI: explicar em que consiste a especificao ulterior do alvo, que efetuada pela avaliao correta dos fatores singulares.

    Do ponto de vista filolgico, preciso esclarecer que entendo tout eiremenon (esse tipo de enunciado) como algo que se refere aos enunciados que, em minha traduo, ficaram entre aspas, ou seja, os enunciados verdadeiros, porm vagos e insuficientes do ponto de vista prtico, como: no se deve trabalhar em maior ou menor quantidade, mas sim em quantidade mdia e tal como a razo correta diz; deve-se administrar aquelas coisas que a medicina ordena e tal como o ordena quem conhece a medicina todos eles anlogos ao enunciado que o motivo inicial de EN VI: preciso escolher a mediedade, no o excesso, nem a falta, e a mediedade como a razo correta diz (1138b18-20).

    1139a18: inteligncia traduz nous, mas, nesta passagem,

    Aristteles emprega esse termo de modo mais vago, como equivalente a dianoia (pensamento) como mostra a continuao do argumento, em 1139a21, em que temos dianoia, no nous. Esse uso mais amplo de nous freqente em Aristteles: ver 1139a33, 1139b4 e 1139b12 (para o adjetivo noetikon).

    1139a23: propsito: cabe explicar por que traduzi prohairesis como

    propsito, em detrimento de opes mais aceitas, como deciso, escolha ou escolha deliberada. O primeiro ponto relevante consiste em notar que prohairesis, no mais das vezes, no designa um processo ou episdio mental, mas o resultado de um processo. Aristteles usa duas palavras distintas, prohairesis e prohaireton (1113a4), e talvez se pudesse dizer que a primeira designa um processo e a segunda, o resultado ou objeto desse processo. No entanto, as coisas no se passam assim. Tal como protasis designa a proposio como pretenso de verdade, e no o processo pelo qual algum prope algo para discusso, de modo similar, prohairesis designa, preferencialmente, um desejo resultante de uma deliberao que

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    considerou certas condies para a realizao de seu objeto em vez de designar o procedimento mediante o qual se obtm esse desejo.

    Como fica claro neste captulo, a prohairesis consiste em algo complexo, que envolve desejo e pensamento. De um lado, a prohairesis envolve desejo por um fim, assumido como bem realizvel pelo agente; de outro, ela envolve um raciocnio deliberativo que, assumindo como ponto de partida o fim eleito pelo desejo, calcula o modo pelo qual tal fim poderia vir a ser realizado. Obviamente, esse modo de realizao do fim tambm se torna objeto do desejo (em vista de outra coisa, do fim), e esse desejo mais determinado motivo que leva ao. No entanto, a prohairesis, embora seja causa eficiente da ao (1139a31), no ainda o item ltimo na determinao da ao e este parece-me ser o ponto de Aristteles neste captulo. Pelo lado do pensamento, a prohairesis envolve apenas uma determinao genrica sobre o que fazer em geral, a qual, para a realizao de cada ao, ser completada ou preenchida pelo cmputo correto dos fatores singulares envolvidos nas circunstncias da ao cmputo correto que da alada da phronesis. De fato, no instante em que se executa a ao, o desejo contido na prohairesis que move o agente, mas isso no implica que o resultado da deliberao prvia no seja ulteriormente determinado pela considerao mais apurada de fatores circunstanciais. Ou seja, a prohairesis ainda insuficiente por si mesma para levar ao: ela deixa em aberto a considerao dos fatores singulares dos quais depende a realizao de cada ao. Se isso est correto, a prohairesis no pode designar uma deciso pontual que se faz no instante em que se executa a ao deciso pontual que d preferncia a tais e tais fatores singulares, em detrimento de outros. Antes, a prohairesis designa uma opo ainda genrica, na qual se elegeu um fim e na qual j foram considerados e determinados (por deliberao) alguns modos para a realizao desse fim, mas sem ateno s circunstncias singulares de cada ao. A prohairesis, assim, abre o terreno para a phronesis, que responsvel por avaliar esses fatores singulares. Por isso, a prohairesis ocupa uma posio intermediria: assumindo um fim acolhido pelo desejo, ela passa a desejar os modos que a deliberao julgou apropriados para realizar esse fim. No entanto, esses modos de realizao do fim funcionam, no contexto de cada ao, como alvo a ser ulteriormente determinado pela avaliao dos fatores singulares. No despropositada, portanto, a associao entre prohairesis e o alvo ou fim da ao (cf. EN 1144a7-8, 20; EE 1227b12-13 ss.), e isso em nada contradiz a tese de que a prohairesis tem por

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    objeto as coisas que realizam os fins. Se tomei a resoluo de diminuir meu consumo de cerveja no prximo vero, claro que esse propsito pode ser considerado (I) ou como meio para realizar o fim de preservar minha sade e meu bom condicionamento fsico, (II) ou como alvo (e fim) que deverei almejar em cada deciso singular a ser tomada no prximo vero.

    Por envolver um desejo constante por um fim, a prohairesis determina tambm a qualidade moral da ao: ela carrega consigo um alvo (skopos) j dotado de significado moral, e que deve ser determinado de modo mais preciso pela avaliao acertada (orthos logos) dos fatores singulares relevantes. A prohairesis algo persistente (e no um processo eventual), no sentido de que ela define uma linha constante de ao, a ser adotada em vrios casos, ao passo que, em cada circunstncia singular, mudam as apreciaes mais precisas que a phronesis faz no intento de levar ao por exemplo, hoje a phronesis me levou a beber duas taas de vinho, ontem, a phronesis me levou a beber nenhuma, mas foi o mesmo propsito que me levou a beber duas ontem e nenhuma hoje, o propsito de ser temperante, ou melhor, o de beber a quantia acertada para preservar a mediedade nos prazeres. Qual , porm, a quantia acertada em cada caso, algo que fica ainda em aberto na formulao do propsito.

    A prohairesis, assim, envolve as seguintes caractersticas: (I) no designa um processo psicolgico, mas uma resoluo cujo prospecto uma linha de ao constante; (II) o mais importante para determinar a qualidade moral da ao; (III) no um evento pontual a ocorrer no momento da ao; (IV) ocupa uma posio intermediria, que j envolve determinao preliminar sobre meios, mas que funciona como alvo (fim) a ser especificado pela considerao sensata dos fatores singulares relevantes em cada ao. O conjunto de todas essas caractersticas parece ser mais bem captado por propsito, pois (III) e (IV) so bem desfavorveis s opes deciso e escolha. Opo melhor seria inteno, que ao menos captaria bem os pontos (II) e (IV).

    Essa interpretao da prohairesis, alm do mais, permite entender perfeitamente as ocorrncias no-tcnicas do termo (por exemplo, 1102a13) e mostra que o jargo aristotlico, como em vrios outros casos, est bem enraizado no uso comum.

    1139a27: realizador(a) de ao traduz praktike. No conveniente traduzir por prtico(a), pois esta expresso vaga e abstrata, ao passo que o valor do adjetivo em grego muito claro e preciso: se diz de algum fulano

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    que ele praktikos quando ele empreendedor, imerso no mundo da ao (1095b22) e, mais precisamente, quando ele tem sucesso constante na consecuo das aes que se prope a fazer (1101b32, 1134a2, 1152a9). O sentido central de praktikos, portanto, o de realizador eficaz (cf. 1124b25, 1129a8). A virtude do carter praktike no sentido de que realizadora das melhores coisas relativas a prazeres e dores (1104b27-28). Do mesmo modo, o sensato (phronimos) praktikos porque usualmente eficaz na consecuo de suas aes e propsitos, ao contrrio do acrtico (cf. 1146a7-9; 1152a8-9). A verdade prtica (ver nota seguinte) acordo tal entre desejo e pensamento que eficaz na consecuo do que se almejou. Outras opes de traduo, supostamente mais prximas da etimologia, como atuante, so claramente inviveis, e fazedor soa muito informal. A opo produtor de ao deve ser evitada neste contexto para evitar confuso com produtiva (poietike) em 1139a28 e b1.

    1139a26-27: verdade realizadora de ao [praktike] o acordo entre

    desejo e pensamento: se desejo fazer A, o pensamento deve determinar em que consiste, em tais e tais circunstncias, realizar A. Como funo do pensamento terico, a verdade se perfaz quando o pensamento atinge adequadamente o objeto a que se dirige. Mas, no plano do pensamento que se soma ao desejo e almeja produzir ao, a funo s se efetiva quando se alcana o objetivo almejado, que efetuar uma ao que realiza o objeto do desejo. A verdade, nesse caso no pode ser concebida como mera correo moral dos enunciados prticos (seja das mximas gerais, seja dos preceitos singulares), mas deve ser entendida como plena e efetiva realizao da ao desejada conforme a eficcia do pensamento na determinao do modo pelo qual se pde alcanar o objeto do desejo. Se o sensato (phronimos) alcana a verdade prtica, porque sua correta avaliao dos fatores relevantes em cada circunstncia singular o levaram a realizar, em ltima instncia, exatamente aquilo que era desejado no propsito. Ver nota a 1140b4-6.

    1139a31-32: como aquilo de onde procede o movimento, no como

    em vista de que: Aristteles apenas assinala que, no contexto deste argumento, a prohairesis considerada como causa eficiente, no como causa final da ao. Disso no se segue que a prohairesis no possa ser jamais descrita pelo vocabulrio da causalidade final e, portanto, disso no se segue nenhum argumento contra a traduo de prohairesis por propsito.

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    Comparao entre passagens como 1144a6-9, 1144a20-22 e EE 1227b36ss., mostram que o propsito pode ser descrito como alvo a ser ulteriormente determinado pela avaliao dos fatores singulares. Alm do mais, bvio que o propsito causa eficiente apenas porque envolve a causa final, ou seja, porque envolve o desejo por um fim. Aristteles aqui ressalta que o propsito causa eficiente (sem ressaltar que causa final) porque seu objetivo consiste em elucidar de que modo a phronesis realizadora de aes. Sua inteno ltima consiste em mostrar que a eficcia na realizao de aes vai alm do propsito e exige o cmputo correto dos fatores singulares envolvidos na circunstncia de cada ao.

    1139b4-5: um pensamento que deseja, ou um desejo com

    pensamento: as duas descries no so excludentes: Aristteles parece prop-las como descries igualmente satisfatrias da prohairesis. Traduzi nous como pensamento por julgar que, neste caso (bem como em 1139a18), Aristteles emprega o termo no no sentido mais estrito especificado em 1141a5, 7, mas em sentido mais amplo, que equivale noo mais geral e vaga de pensamento (dianoia). Cf. EE 1227a4-5, onde Aristteles descreve a prohairesis em termos de opinio (doxa) e desejo (orexis).

    1139b15-17: este passo do argumento parece ser objeto da aluso que

    encontramos em Segundos Analticos 89b7-9. 1139b18-24: a descrio da cincia aqui oferecida bem esquemtica e,

    se no diverge do painel fornecido nos Segundos Analticos, tambm no o resume de maneira precisa. Nos Analticos, a definio de cincia se perfaz por duas noes bsicas, a de causa e a de necessidade (71b9-12); j na tica, em vez de introduzir a noo de causa, Aristteles se concentra na noo de necessidade e parece conceb-la no como atributo das relaes causais, mas como atributo de um reino de coisas que por familiaridade se tornaria conhecido alma (cf. 1139a10-11). Alm do mais, nos Analticos, Aristteles introduz seis requisitos para as premissas de uma demonstrao cientfica (71b20-33), dos quais apenas um (serem mais conhecidas que a concluso) retomado na tica. Finalmente, Aristteles introduz em EN VI um aspecto que estava completamente ausente dos Analticos, que a caracterizao da cincia como habilitao para demonstrar.

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    No entanto, apesar dessas divergncias, no h nenhuma evidncia para tratar as duas caracterizaes da cincia como incompatveis ou radicalmente discrepantes. Aristteles explicitamente se refere aos Analticos (1139a27) e retoma, ainda que de modo esquemtico, observaes l feitas e jargo l contido. A diferena de perspectiva entre as duas obras explica e justifica perfeitamente as divergncias: podemos dizer que, (I) na tica, Aristteles no precisa fornecer um cmputo detalhado da noo de cincia, pois lhe basta uma caracterizao em traos gerais; (II) como ele est a falar das habilitaes e virtudes das partes da alma e tem por interesse principal caracterizar a phronesis como uma habilitao racional para agir etc., natural que ele fale tambm da cincia como uma habilitao (o que, afinal, est longe de ser incompatvel com os Analticos texto que bem neutro no que diz respeito ao estatuto psicolgico a ser atribudo ao conhecimento cientfico); (III) dado que ele est interessado em introduzir a phronesis como virtude da parte calculativa da alma, e como uma virtude que no produz (nem poderia produzir) nenhum acervo de preceitos gerais, mas apenas avalia corretamente os fatores contingentes envolvidos em cada ao singular, razovel que Aristteles d mais ateno polaridade entre aquilo que necessrio (e pode ser captado por enunciados universais) e aquilo que pode ser de outro modo (cf. 1140a3-b3). Por outro lado, o silncio de Aristteles sobre a noo de causa pode, talvez, ser significativo: se ele estivesse interessado em realar que a phronesis uma virtude capaz de justificar a ao virtuosa por uma compreenso adequada dos fins etc., no seria de se esperar que ele destacasse, em seu breve resumo da noo de cincia, a noo de causa? Parece que a noo de causa teria, como anlogo no domnio tico, a noo de fim como motivo ltimo da ao: assim como a causa o que explica porque a proposio p verdadeira, de modo similar o fim o que explica porque a ao a desejvel e moralmente boa.

    1139b26-27: como dizemos nos Analticos: cf. 71a1-11. 1139b32-33: todas as outras coisas que acrescentamos nos Analticos:

    difcil dizer a que Aristteles se refere precisamente, pois muitos pontos relevantes foram deixados de lado em sua breve caracterizao da cincia na tica. Nada se falou, por exemplo, sobre a noo de causa (71b9-12, 22, 30; 75a35; 78a25 ss.; 85b23-27 ss.; 90a6-7; 93a4ss.; 98a35.ss), nem sobre os seis requisitos das premissas (71b19-72a7), nem sobre a noo de princpios

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    adequados (71b22-23; 72a5-6; 74b25-26; 75b37 ss.); nem sobre as predicaes per se (73a34-b26); nem sobre o requisito da coextensividade entre atributo-explanans e atributo-explanandum (73b26-74b4; 78b16-21; 98a35-36 ss.); nem sobre a exigncia de homogeneidade entre os trs termos da demonstrao (75a38ss.; 76a8-9; 29-30); etc. O fato de Aristteles se referir existncia de outros requisitos usados nos Analticos para definir a cincia mostra que, na tica, ele pretende apenas introduzir um resumo muito esquemtico, apropriado aos seus interesses argumentativos no contexto.

    1139b35: ter cincia apenas por algum concomitante: cf. o uso de

    expresso semelhante em Segundos Analticos 71b10 e 76a2, 4. 1140a1-6: Aristteles introduz uma distino entre ao aquilo que

    ns fazemos racionalmente (sem envolver necessariamente o engendramento de um produto distinto da ao) e produo um conjunto de operaes racionais que conduzimos para engendrar um produto distinto da ao. Essa distino deve ser avaliada com ponderao. Apesar do que Aristteles diz em 1140a5-6, no se trata de uma diviso extensional entre dois reinos de coisas incompatveis, entre os quais no pudesse haver nenhuma sobreposio. Ackrill [1978] explorou o problema de forma clssica: uma produo qualquer, como consertar a cerca de sua casa, pode ser considerada como uma ao, suscetvel de avaliao moral. Ou seja, um mesmo evento pode ser tomado ou como produo ou como ao, dependendo da perspectiva em que considerado. Por outro lado, apesar de introduzir essa distino entre poiesis e praxis, Aristteles no a segue de modo sistemtico no uso que de fato faz desses termos, bem como dos verbos correlatos poiein e prattein; antes, ele segue a praxe comum no grego ordinrio: aes so descritas por ambos os verbos ou expresses cognatas (cf. 1137a19, 22-23; 1107a17; 1123a16-17; 1135b27; 1136b31; 1137a22-23; 1143b26; 1147a28; 1152a16; EE 1227a29); operaes certamente no-racionais, como o funcionamento de rgos animais, so denominadas praxeis (cf. Partes dos Animais 645b21, 28 ss.) etc.

    1140a10: habilitao para produzir com raciocnio verdadeiro: em

    outras palavras, uma capacidade de produzir algo por meio de procedimentos que seguem descries verdadeiras dos objetos (tanto do objeto a ser

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    produzido, como tambm dos materiais a serem utilizados) e prescries acertadas para modificar esses materiais em vista do que se quer produzir.

    1140a10-11: toda tcnica diz respeito ao vir a ser: cf. Segundos

    Analticos 100a9. 1140a15-16: estas tm em si mesmas o princpio: cf. Fsica 192b13-

    14. 1140a17-20: a tcnica ama o acaso, e o acaso, a tcnica etc.: o sabor

    original da sentena fia-se na consonncia entre techne e tuche, o qual talvez pudesse ter sido mais bem captado se tivssemos usado os termos arte e sorte. O verso de Agato lembra o dito de Polo em Grgias 448c, citado em Metafsica 981a3-4.

    1140a21-22: a incompetncia tcnica o contrrio, uma habilitao

    para produzir com raciocnio falso: talvez seja correto descrever a incompetncia tcnica como uma falha terica: o incompetente usa alguma descrio falsa dos objetos relevantes (produtos ou materiais), ou se fia em uma regra que descreve erroneamente o processo requisitado para modificar os materiais do modo relevante para a obteno do produto. No entanto, tambm possvel compreender a incompetncia tcnica como uma falha na aplicao do conhecimento universal. Um incompetente pode ter conhecimento de todas as descries verdadeiras de objetos e de todas as prescries acertadas para a produo, mas pode falhar ou bem na subsuno de objetos singulares a essas descries, ou bem na aplicao dos procedimentos, ou em ambas as coisas. Considerar essa alternativa pode ser til, se julgamos que Aristteles confia em comparaes entre produo tcnica e ao moral para melhor descrever o que a phronesis e como o phronimos age. Do mesmo modo, considerar essa alternativa pode ser til para melhor compreender o que raciocino falso pode significar nesse contexto.

    1140a24: sensatez traduz phronesis. As trs opes tradicionais

    prudncia, sabedoria e sabedoria prtica tm inconvenientes bem maiores. Sabedoria corre o risco de gerar, para o leitor, um colapso entre phronesis e sophia, bem como tornar ininteligveis os trechos que se fundam

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    no contraste entre sophos e phronimos (1141a24-25). Por outro lado, prudncia tem srios inconvenientes: o termo evoca um padro de comportamento predominantemente restritivo e refreativo e, alm do mais, sem nenhuma conexo direta com a noo de virtude intelectual capaz de avaliar a relevncia moral de fatores singulares. Prudente o fulano que, na dvida, no ultrapassa, ao passo que o termo grego evoca, antes, o fulano capaz de resolver a dvida pela avaliao judiciosa dos itens extremos. Em algumas aplicaes, prudncia e prudente soariam bem inadequados. Dificilmente diramos que foi prudente o fulano que demonstrou a raiva devida quando foi injustamente ultrajado (1125b31-33). Tampouco nos parece natural descrever como prudente um soldado que, avaliando corretamente o momento de atacar, se arroja sobre inimigos mais numerosos e os vence; ou o fulano que, ao julgar que certa circunstncia excepcional de comemorao com os amigos exige uma quebra em sua dieta, se regala de carnes e vinhos em uma festa. Sensatez e sensato tm seus inconvenientes tambm algum poderia dizer que a sensatez no envolve nenhuma opo por fins moralmente corretos , mas esses termos nos parecem muito mais adequados, pois sempre se relacionam ao uso judicioso da razo em circunstncias extremas que no foram previstas nas leis, nos manuais, nos preceitos gerais etc.

    1140a25-28: parece que compete ao sensato ser capaz de deliberar

    acertadamente etc.: claro que h associao estrita entre bem deliberar e ser phronimos (cf. 1141b9-1;1142b31-32), mas preciso ter cautela nesse passo do argumento. Aristteles no pretende que a capacidade de bem deliberar seja o mais importante para definir o que a phronesis (o uso do genitivo de atribuio de competncia, tou phronimou, no prova nada a esse respeito, pois pode ser usado tambm para identificar propriedades importantes, mas no definitrias, de um dado objeto; cf. 1123b20). Aristteles apenas se fiou em um consenso a respeito da extenso do termo phronimos a opinio comum parece aplicar tal termo aos agentes que demonstram capacidade de bem deliberar e especificou a capacidade de bem deliberar como um trao distintivo pelo qual podemos estabelecer a extenso do termo phronesis. Se atentarmos teoria aristotlica da definio apresentada em Segundos Analticos II, na qual o enunciado definiens mais completo aquele que apresenta uma estrutura explanatria de trs termos, na qual o termo B explica por que o termo A se atribui ao termo C (ou ocorre conjuntamente

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    com o termo C), podemos dizer que a capacidade de bem deliberar representaria o termo A (que fixa a identidade do explanandum), no o termo B (explanans que fundamenta as propriedades relevantes para a fixao da identidade do explanandum). Ver o comentrio a 1140b4-6. O uso de dokei parece dar respaldo a essa interpretao. Aristteles se fia na opinio comum, no para descart-la como errnea ou para retific-la, mas para se certificar de que o uso ordinrio do termo sensato pressupe uma propriedade relevante para atinar com a definio de phronesis.

    1140a33-b3: sobre a cincia, ver o comentrio a 1139b18-24. 1140b4-6: habilitao verdadeira realizadora de aes, pela razo, a

    respeito daquilo que um bem ou um mal para o homem: trata-se de uma tentativa de definir a noo de phronesis, mas nada indica que se trata da definio ltima do termo. Nossa escolha de traduo se pauta pelas razes seguintes. (I) O adjetivo praktike no introduz nenhuma noo vaga ou abstrata de prtica, mas se aplica a itens que so eficazes na consecuo de aes. (II) Por isso, dado que hexis introduz uma capacidade que se sedimenta pela prtica repetida e controlada das mesmas aes que capaz de executar, a expresso hexis praktike designa uma habilitao para realizar aes ou, mais precisamente, uma habilitao realizadora de aes. (III) A expresso pela razo resgata as aluses capacidade de bem deliberar, que pertence aos homens sensatos: a razo em questo parece incluir o uso do raciocnio deliberativo na determinao do que fazer. (IV) Se o adjetivo verdadeira estivesse ligado a razo, introduziria apenas o requisito de que os raciocnios deliberativos do homem sensato devem ser constitudos de proposies verdadeiras (isto , moralmente corretas). No entanto, se consideramos o que Aristteles falou em 1139a22-31 sobre a verdade prtica acordo entre o desejo correto e o raciocnio que afirma exatamente o que o desejo props , podemos sugerir que a habilitao verdadeira se (a) toma como ponto de partida um desejo correto (o que concorda com o que se diz em 1144a26-b1), (b) se o raciocnio deliberativo delimita algo exeqvel que coincide com o que o desejo props (1139a25-26) e (c) se essa exeqibilidade comprovada pela efetiva realizao da ao que se desejou.

    conveniente julgar esse enunciado definitrio de acordo com a teoria da definio exposta nos Segundos Analticos. Leitura superficial do

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    texto nos poderia levar a dizer que essa definio parece ser como a concluso do silogismo do o que (Segundos Analticos 94a7-9, De Anima 413a13-20), na qual falta a causa. No entanto, parece-nos que o adjetivo praktike (juntamente com a expresso a respeito daquilo que um bem ou um mal para o homem) introduz exatamente o termo B, isto , apresenta a causa que no apenas faz o definiendum ser o que , mas tambm explica por que o definiendum tem como propriedades bsicas as caractersticas captadas pelos demais termos do enunciado definiens. precisamente por ser realizadora de aes boas para o ser humano que a sensatez verdadeira, no sentido acima indicado, o qual envolve como elemento constituinte a verdade terica na determinao dos modos de realizar aes: a expresso pela razo faz as vezes do termo A. Aristteles, no entanto, bem vago ao dizer que a sensatez realizadora de aes pela razo: razo sugere antes a noo de raciocnio deliberativo, e no capta o que h de mais especfico na phronesis, que a avaliao quase perceptual dos fatores singulares dos quais depende a ao. No seria exagero, assim, sugerir que a definio de sensatez oferecida por Aristteles consiste em um enunciado no qual, embora a causa esteja presente, como termo B, falta identificar de modo apropriado a diferena mais especfica do definiendum, o termo A. A razo pela qual insisito nesse ponto que os itens (I) e (IV) acima explorados dependem fortemente da associao entre phronesis e percepo, ou em outros termos, da associao entre phronesis e avaliao correta dos fatores singulares ltimos, que no esto considerados no resultado da deliberao (cf. 1141b14-16). O prprio Aristteles parece dar-se conta dessa dificuldade em 1140b28, ao admitir que a phronesis no apenas uma habilitao (para agir etc.) pela razo. A phronesis deve incluir ainda, como fator relevante, a correta avaliao dos itens singulares. Um ponto importante que o termo logos poderia ser entendido ou no sentido de raciocnio que efetua a deliberao, ou no sentido de cmputo adequado dos fatores singulares ltimos. Mas nada na presente definio sugere que logos deva ser entendido com nfase maior neste segundo sentido, o qual, no entanto, seria o mais relevante para uma definio completa da phronesis. Por isso, razovel tratar este enunciado como uma definio no completa.

    Finalmente, convm comparar esta definio de sensatez com a definio de virtude do carter dada em 1106b36-1107a2: ambas so habilitaes para agir, mas, na definio da virtude do carter, a eficcia prtica est j pressuposta na noo de habilitao e o acento proeminente

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    recai sobre a prohairesis, ao passo que, na definio de sensatez, Aristteles enfatiza a eficcia na execuo da ao (com o adjetivo praktike) porque aes dependem, em ltima instncia, dos fatores singulares, sobre os quais a sensatez que tem o controle. Essa diferena de nfase concorda com o que se diz em 1144a7-9 e 1144a20-22.

    1140b9: a traduo de theorein por arregimentar pode parecer

    abusiva, mas theorein pode ser usado no sentido mais preciso de inspecionar uma grande extenso de territrio (ou paisagem), bem como no sentido mais especfico de inspecionar uma tropa ou regimento. Neste contexto da EN, theorein no tem o mero sentido de perceber ou ver, mas o sentido mais forte de manter sob considerao um extenso territrio de fatores relevantes e convoc-los para as decises no momento adequado. Arregimentar se presta a esse uso.

    1140b11-13: chamamos a temperana [sophrosune] por esse nome

    etc.: no h muita evidncia para a etimologia que Aristteles aqui prope, mas seu ponto claro: a temperana contribui para preservar a sensatez, por preservar o juzo sobre o que prazeroso ou doloroso.

    1140b18: no se evidencia traduz ou phainetai, expresso que

    pode facilmente levar a confuso. Em contextos como este (bem como em 1113a30-31, 1114b14, 17), phainetai no tem o mero sentido cognitivo de ser manifesto, claro etc., mas o sentido mais forte de ser evidente do modo relevante para se impor ao assentimento moral. Ao dizer que os princpios no se evidenciam aos intemperantes ou aos viciosos em geral, Aristteles no quer dizer que eles no tm notcia dos princpios, nem que tm alguma falha cognitiva que os levasse a no compreender os preceitos morais como se agissem por certa ignorncia (que o que prope o intelectualismo socrtico). Aristteles quer dizer que os viciosos no do seu assentimento moral aos princpios.

    1140b28-30: mas ela tempouco apenas uma habilitao pela razo

    etc.: Aristteles nota de modo claro a insuficincia da definio proposta em 1140b4-6 (repetida em 1140b20-21). Por ser virtude da parte opinativa ou calculativa, a sensatez tem por objeto as coisas que podem ser de outro modo. Por isso, a sensatez deve incluir, alm da razo deliberativa, uma

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    capacidade de perceber de modo imediato os fatores singulares relevantes dos quais depende a ao (cf. 1141b15; 1142a23-30; 1143a28 ss.). A razo pela qual no pode haver esquecimento da sensatez que sua capacidade de perceber fatores singulares relevantes no pode ser consubstanciada em um acervo de proposies, suscetvel ao esquecimento.

    1141a7-8: cf. Segundos Analticos 100b12 ss., 72b18-25. Aristteles

    bem vago e no h como saber se ele se refere aos princpios prprios de cada cincia demonstrativa, ou aos axiomas comuns. Ver comentrio a 1141a18-20.

    1141a10-11: Fdias descrito como lithourgos (literalmente, que

    trabalha pedras), ao passo que Policleto descrito como andriantopoios, produtor-de-esttuas. claro que o adjetivo sbio no recobre em portugus todos os usos de sophos no grego. Talvez fosse mais correto traduzir sophos, neste caso, por exmio ou sofisticado, mas com isso perderamos o fio do argumento, pelo qual Aristteles infere, no passo seguinte, que a sabedoria envolve mais apuro que a cincia.

    1141a18-20: a sabedoria inteligncia com cincia: nos Segundos

    Analticos, Aristteles s vezes usa o termo cincia de modo restrito, que parece excluir a inteligncia dos princpios (cf. 100b5-17). No entanto, a definio de conhecimento cientfico (epistasthai) dada em 71b9-12 e desenvolvida nos captulos subseqentes autoriza o uso do termo cincia para designar o conhecimento demonstrativo que envolve no apenas o conhecimento da concluso pelos princpios, mas tambm o conhecimento dos prprios princpios, que so enunciados nas premissas (cf. 72a25-b4, 76b4). Ainda que os princpios, em ltima instncia, no possam ser explicados por princpios que lhes fossem anteriores, o conhecimento demonstrativo das concluses envolve (e no poderia no envolver) o conhecimento de que os princpios so o caso. Em vista disso, o que seriam os itens mais valiosos a que Aristteles se refere na tica a Nicmaco? Eles no podem designar as definies, os termos que captam as causas primeiras etc., pois, neste caso, a sabedoria se tornaria idntica quilo que os Analticos (71b20, 73a22, 74b5) reconhecem sob o ttulo de cincia demonstrativa e o termo cincia na tica a Nicmaco se restringiria apenas ao conhecimento no-explanatrio de que as concluses so o caso. Ao que parece, os itens mais valiosos na tica a Nicmaco designam ou bem os axiomas comuns,

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    ou bem os princpios mais altos, considerados pela teologia. No primeiro caso, a sabedoria seria um conhecimento cientfico sistemtico e coroado pela compreenso (filosfica) dos axiomas; no segundo caso, ela seria um conhecimento cientfico enciclopdico e coroado pela teologia (em favor dessa sugesto, cf. 1141a34-b3).

    1141a34-b2: h outras coisas muito mais divinas em natureza que o

    homem etc.: trechos como este (cf. 1141a21-22, Partes dos animais 644b24-645a4) mostram que no to simples atribuir a Aristteles uma ingnua teleologia antropocntrica. Por outro lado, a sentena como evidentssimo pelas coisas de que o mundo se constitui pode ser entendida de modo diverso. Se kosmos for entendido como cu, no como mundo (diferentemente de 1141a22), a sintaxe da sentena pode ser tomada de outro modo: phanerotata seria um nominativo respondendo diretamente a alla ... theiotera, de modo que a traduo seria: por exemplo, as coisas mais evidentes [sc. os corpos celestes], das quais o cu se constitui. Trechos como Metafsica 1026a18 e Fsica 196a33 podem dar algum paralelo para esse uso de phanerotata para designar os corpos celestes.

    1141b9-10: dizemos que a funo que mais compete ao sensato esta,

    bem deliberar: essa sentena parece contrariar o que dissemos nos comentrios a 1140a25-28 e 1140b4-6. No entanto, perfeitamente plausvel entender que Aristteles, longe de introduzir uma premissa forte de sua teoria, est apenas a relatar a opinio comum ou o que se diz comumemente sobre a sensatez. Aristteles parte dessa opinio comum, que contm um ncleo verdadeiro pois, sem dvida, compete ao homem sensato bem deliberar , mas logo mais (em 1141b14-16) observa que preciso acrescentar ao phronimos a funo de considerar os fatores singulares envolvidos na ao.

    1141b13: aquele que acerta, pelo raciocnio, o que o melhor: seria

    um erro, neste caso, traduzir o adjetivo stochastikos como aquele que mira, almeja etc.. O sentido desse adjetivo na tica de Aristteles envolve a noo de ter boa pontaria, ser apto a acertar o alvo (able to hit, Liddell & Scott).

  • Lucas Angioni

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    1141b14-16: a sensatez no tem por objeto apenas os universais etc.: se poderia presumir que Aristteles tem em vista a premissa universal e a premissa particular de um silogismo prtico, de acordo com o exemplo que se segue logo mais (em 1141b18-20): Todas as carnes leves so saudveis; todas as carnes de aves so leves; logo, todas as carnes de aves so saudveis. s vezes o jargo kath hekaston se aplica a algo ainda universal, porm mais especfico em contraste com algo mais genrico como as carnes de aves, em contraste com carnes leves. No entanto, isso no parece ser o caso na presente passagem: ta kath hekasta em 1141b16 designa os fatores singulares envolvidos na ao. Os particulares que a sensatez deve conhecer, para ser efetiva na execuo da ao (praktike), so fatores estritamente singulares (cf. 1141b21-22).

    1141b16-18: alguns que no tm conhecimento so mais eficazes na

    ao etc.: cf. Metafsica 981a12-24. 1141b20: quem soubesse que as carnes de aves so [leves e]

    saudveis: alguns editores e tradutores seguem Trendelenburg e condenam como esprias as palavras koupha kai (leves e). Suprimidas tais palavras, o contraste se daria entre o conhecimento de uma premissa maior (todas as carnes leves so de fcil digesto e saudveis) e o conhecimento de uma possvel concluso (as carnes de aves so saudveis), ao passo que, com tais palavras preservadas no texto, o contraste se daria entre o conhecimento de uma premissa maior (todas as carnes leves so de fcil digesto e saudveis) e o conhecimento combinado da premissa menor e da concluso (as carnes de aves so leves, as carnes de aves so saudveis). No vejo muita relevncia na diferena entre os dois casos e, por isso, no vejo razo em concordar com a exciso. O ponto mais relevante do argumento que, em um dos plos do contraste, h algum que conhece apenas a premissa maior, mas no reconhece as instncias particulares que se subsumem nos termos dessa premissa.

    1141b21-22: a sensatez realizadora de ao etc.: como j disse (ver

    comentrios a 1139a27), o adjetivo praktike quer dizer realizadora ou produtora de ao ou eficaz na realizao da ao. Do ponto de vista sinttico, a referncia do pronome tauten bem obscura, mas a nica

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    opo consistente com o contexto report-lo ao conhecimento dos particulares ou singulares.

    1142a2: intrometidos traduz polupragmones, adjetivo que pode,

    eventualmente, ter acepo positiva (que faz/empreende muitas coisas), mas usualmente tem valor pejorativo e indica aquele que se mete onde no foi chamado e faz pelos outros mais do que lhes seria conveniente.

    1142a12-13: muitos jovens so gemetras etc.: traduzir o verbo

    gignesthai nestas linhas por vir a ser seria errneo, pois daria a entender que Aristteles nega a possibilidade de um jovem vir a se tornar sensato (quando atingir a idade madura). O verbo gignesthai usado neste contexto (como uso comum no grego) como verbo copulativo entre termos cuja ligao no imediata.

    1142a20: o erro no deliberar etc.: Aristteles descreve, nestas linhas,

    duas formas de erro terico na deliberao assentimento a proposies falsas, sejam elas universais ou particulares. Pode-se falar, ainda, de erro moral na deliberao, quando se toma como ponto de partida algo que no um bem (cf. 1142b20 ss.).

    1142a25-26: a inteligncia tem por objeto as definies das quais no

    h explicao: cf. Segundos Analticos 72b18-25, 100b5-17. No muito claro, em contextos como este (cf. 72b24, 76b35), se o grego horos se refere a termos ou a definies. Com a primeira opo, uma alternativa de traduo seria: os termos dos quais no h definio. Muitas passagens (cf. De Anima 430a26-28; Metafsica 1051b17 ss.) dariam respaldo a esta segunda alternativa, mas ela incompatvel com a teoria da cincia dos Segundos Analticos, segundo a qual os princpios da demonstrao so definies dos objetos primeiros de um dado domnio (72a21-23; 75b30-32; 76b39).

    1142a27-30: no a percepo dos perceptveis prprios etc.:

    Aristteles pouco claro a respeito desse outro tipo de percepo pelo qual percebemos, numa construo matemtica, que o termo em questo um tringulo (no claro se a referncia seria a Segundos Analticos 71a20-21 ss.), menos claro ainda a respeito dessa outra forma de percepo que se atribui sensatez na apreenso dos fatores singulares envolvidos na ao.

  • Lucas Angioni

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    1142a32: boa deliberao traduz euboulia. Seria abusar da boa vontade do leitor propor algo como boa deliberana. Devemos notar, porm, que euboulia se refere a uma capacidade de bem conduzir atos de deliberao, no a episdios de deliberao ou a um ato especfico de deliberar.

    1142a33: argcia traduz eustochia. Alternativa razovel seria boa

    pontaria, pois o termo grego designa a qualidade de mirar bem e acertar o alvo de modo rpido.

    1142b2-5: se pode deliberar por muito tempo etc.: Aristteles rejeita

    a identificao entre boa deliberao e argcia. No entanto, seu argumento no afirma que a boa deliberao (euboulia) prescinde da rapidez na deliberao (de outro modo, isso contradiria o que ele afirma em 1142b27); ele apenas se fia na premissa de que possvel deliberar durante longo tempo, bem como na opinio comum de que preciso deliberar lentamente.

    1142b10: no h correo da cincia: Aristteles emprega o termo

    cincia (que pode ser bem traduzido por conhecimento em vrios contextos) para designar o conhecimento de que algo verdadeiro, de tal modo que seria auto-contraditria uma expresso como cincia falsa. Pela mesma razo, no se pode falar em correo (isto , um procedimento corretivo, que levasse do falso ao verdadeiro) da cincia, pois no h cincia falsa. O nico problema que, no contexto do argumento que se estende de 1142b8 a 1142b26, orthotes (correo) varia de sentido: designa s vezes um procedimento corretivo, s vezes a qualidade intrnseca daquilo que correto.

    1142b17-20: a correo se d de mais de um modo etc.: no apenas

    o acrtico como tambm o vicioso apresentam certa correo na deliberao: ambos alcanam aquilo que se propuseram a alcanar pelo raciocnio deliberativo, a saber, uma delimitao dos meios exeqveis para os fins propostos. Por um lado, o acrtico reconhece o fim moralmente correto, e sua deliberao, consistente com esse fim, chega a formular um propsito moralmente correto; no entanto, o acrtico falha em executar a ao de acordo com esse propsito. Por outro lado, o vicioso (phaulos) no reconhece o fim moralmente correto, mas acolhe um mal como se fosse um

  • Dissertatio, UFPel [34, 2011] 303 - 345

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    bem; no obstante, ele delibera corretamente em vista daquilo que estipulou como fim. A correo moral que Aristteles exige da boa deliberao descarta ambos esses casos. Ver comentrio seguinte.

    Na linha 1142b19, h uma corrupo no texto, mas julgo que o trecho ho protithetai idein ek tou logismou teuxetai faz pleno sentido no contexto, pois basta tomar ek tou logismou com ho protithetai idein (aquilo que se prope a saber pelo raciocnio), ou ento, no caso de se optar pela exciso de idein, basta compreender que protithetai inclui implicitamente o infinitivo do verbo da orao principal (ho protithetai ek tou logismou [tunchanein] teuxetai).

    1142b21-22: a boa deliberao certo tipo de correo da

    deliberao, a saber, a que alcana o bem: a correo moral que Aristteles exige da boa deliberao exclui tanto o acrtico como o vicioso, pois nenhum deles alcana a realizao de um bem. Por um lado, o vicioso implementa sua ao de acordo com seu propsito, mas, dado que ele falha em reconhecer o fim moralmente bom, o que ele realiza vem a ser um mal. Por outro lado, o acrtico reconhece o fim moralmente bom e sua deliberao formula um propsito moralmente bom, mas ele falha em executar a ao que realizaria seu propsito e, portanto, colhe um mal em sua ao. Note-se que, se agathou teuktike em 1142b22 for tomado no sentido mais restrito de alcanar um bom propsito (o que pressupe reconhecer um fim bom como princpio da deliberao), no no sentido de alcanar a realizao de um bem, Aristteles no poderia excluir o caso do acrtico.

    1142b22-26: mas possvel alcan-lo por um silogismo falso etc.:

    este trecho bem complexo e exige muito cuidado exegtico. Aristteles parece falar em alcanar um bem pelo silogismo, o que sugere que a expresso alcanar um bem no teria outro sentido seno o de atingir um bom propsito como concluso final do raciocnio deliberativo. No entanto, ainda que a expresso alcanar um bem tenha esse sentido neste trecho (o que j discutvel), isso nada prova quanto ao trecho anterior, no qual a expresso equivalente deve ser entendida no sentido de realizar um bem caso contrrio, Aristteles no poderia deixar de atribuir boa deliberao (euboulia) ao acrtico.

    Aristteles agora parece concentrar-se nos meandros do prprio raciocnio deliberativo. H duas opes de intepretao mais proeminentes.

  • Lucas Angioni

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    Por um lado, aquilo que se deve fazer poderia ser entendido como se remetesse ao a ser implementada, descrita como bem a ser realizado, ao passo que aquilo atravs de que [di hou] se deve fazer remeteria aos meios ou mtodos atravs dos quais a ao poderia ser implementada. Nesta opo, Aristteles teria em vista o caso em que a deliberao envolve o propsito de fazer um bem, mas por meios moralmente reprovveis (por exemplo, no caso em que se formula o propsito de dar suporte financeiro a um amigo falido, mas por meio de dinheiro roubado). Por outro lado, aquilo que se deve fazer poderia ser entendido como se remetesse ao a ser implementada, descrita na suposta concluso do raciocnio deliberativo, ao passo que aquilo por que [di hou] se deve fazer remeteria ao fim que justificaria a realizao dessa ao, descrito como termo mediador do silogismo deliberativo. Assim, Aristteles teria em vista o caso em que a deliberao chega, na concluso, a determinar a ao correta a ser feita, mas falha na justificao da ao, por no ter partido do fim moralmente correto que inspira tal ao, (em favor dessa interpretao, ver EE 1226b22-30).

    A linguagem da silogstica no ajuda muito neste caso. No h em Aristteles uma noo consistente e consolidada de silogismo prtico, ao contrrio do que muitos supem. Aristteles emprega o termo silogismo, de fato, bem como, em poucos casos, expresso equivalente a prtico (cf. 1144a31-32). No entanto, Aristteles est longe de ter esclarecido as regras para a formulao correta desses silogismos est longe de ter formulado regras para a exposio dos termos (no sentido em que essa expresso entendida em Primeiros Analticos I 34-40) ou para a quantificao das proposies. Aristteles concebeu o silogismo como um tipo de argumento vlido, isto , um tipo de argumento no qual, em virtude de sua mera forma lgica, a concluso no pode ser falsa se as premissas so conjuntamente verdadeiras. Se Aristteles no puder mostrar como a forma lgica de um silogismo prtico garante sua validade (todos os silogismos apresentados em Motu Animalium 7, por exemplo, so argumentos invlidos), a noo de silogismo prtico torna-se mera metfora. bem provvel que Aristteles tivesse em vista, to somente, uma vaga analogia com a noo de silogismo. No livro II dos Segundos Analticos, o vocabulrio silogstico aparece para introduzir a estrutura tridica da causalidade. Aristteles poderia ter em vista, no caso da teoria moral, to somente essa estrutura tridica: como anlogo do termo menor, teramos uma ao qualquer; como anlogo do termo maior, teramos um predicado moral, ou um adjetivo verbal que atribusse

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    ao um valor moral (por exemplo, prakteon = deve ser feita); como anlogo do termo mediador, teramos o fim (a causa final) que justificaria o valor moral de uma ao. Ou, alternativamente, o anlogo do termo menor seria o agente, o anlogo do termo maior seria uma ao particular capaz de realizar certo fim, e o anlogo do termo mediador seria o fim que o agente deseja e que requer meios apropriados para sua realizao. Outra opo, ainda, seria aquela que representasse a causa eficiente da ao: o termo maior representaria a ao a ser feita, e o termo mediador introduziria uma causa eficiente (um meio) capaz de realizar tal ao. Aristteles, no entanto, bem vago a esse respeito.

    Quanto ao passo em questo, difcil decidir se Aristteles tem em vista casos em que o agente se prope a fazer a ao correta, mas falha na justificao das razes que levaram sua deciso, ou casos em que o agente se prope a fazer um bem, mas por meios moralmente reprovveis.

    1142b31-33: se compete aos sensatos deliberar bem, a boa deliberao

    a correo relativa ao que conveniente para o fim do qual a sensatez uma concepo verdadeira: este um dos trechos mais controversos do livro VI, ou talvez da tica a Nicmaco em seu todo. Do ponto de vista exegtico, a controvrsia se concentra no problema de saber qual seria o referente exato do pronome relativo hou (do qual) em 1142b33, e se presume que as trs opes engendrariam resultados filosficos bem distintos. (I) Se o pronome hou (do qual) retoma sumpheron (conveniente), Aristteles estaria a dizer que a phronesis uma compreenso correta daquilo que conveniente, ou seja, daquilo que se apresenta como modo ou meio apropriado para executar um dado propsito. (II) Se o pronome hou (do qual) retoma telos (fim), Aristteles estaria a dizer que a phronesis uma compreenso verdadeira do fim, ou seja, daquilo que pressuposto como princpio no processo deliberativo. (III) Se o pronome hou (do qual) retoma sumpheron pros to telos, Aristteles estaria a dizer que a compreenso verdadeira da phronesis envolve no apenas a correo instrumental que determina o que conveniente para realizar um dado fim, mas tambm a correo moral do fim.

    O debate nesses termos, no entanto, no muito feliz. A relao que se pressupe entre cada intepretao da sintaxe e os resultados filosficos distintos que se lhes atribuem artificiosamente mecnica e inconvincente. Alguns chegam mesmo a dizer que a leitura (I) tornaria o argumento incapaz

  • Lucas Angioni

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    de distinguir entre phronesis e destreza (deinotes), assim como assumem que a leitura sinttica (II) automaticamente transformaria a sensatez em uma capacidade de justificar os fins da ao moralmente correta. preciso cuidado, no entanto, para compreender o que o argumento de Aristteles, em seu contexto, pretende determinar.

    O contexto do argumento dominado pelo contraste entre (a) deliberar bem em relao ao fim sem mais e (b) deliberar bem em relao a um dado fim. Alguns julgam que a expresso sem mais (haplos) funciona como uma medalha de promoo, que ala o fim em questo autoridade mxima de fim ltimo, o sumo bem, que guia todas as aes de um dado indivduo. Mas a expresso sem mais no funciona assim neste contexto. Sem mais pode ser oposto a de modo preciso e exato (cf. EE 1221b7). Neste contexto (bem como em vrios outros), sem mais quer dizer sem nenhuma especificao ulterior, de modo que a expresso fim sem mais se refere a um fim qualquer, sem incluir (mas sem tampouco excluir) nenhuma referncia a um fim especfico sem incluir nenhuma referncia nem mesmo ao fim ltimo, que um fim especfico, embora de natureza distinta dos demais. Ora, neste contexto, a opo (a) caracteriza apenas a destreza (cf. 1144a24-26), isto , a habilidade de deliberar bem em vista de fins quaisquer. Aristteles quer evitar essa opo, obviamente, e a sentena em pauta marca sua opo por (b), mais particularmente, por um tipo especfico de fim: a boa deliberao (como parte constituinte da sensatez) a correo relativa ao que conveniente para um dado fim especfico, a saber, aquele fim do qual a sensatez tem um entendimento verdadeiro. No precisamos discutir as idiossincrasias lingsticas que levam editores do texto grego a pr uma vrgula entre telos e o pronome relativo hou, mas o fato que hou introduz uma orao relativa adjetiva, jamais uma orao relativa apositiva. O objetivo de Aristteles caracterizar a boa deliberao como uma correo que tambm envolve o fim moralmente correto compreendido pela sensatez. Da, no entanto, no se segue que a sentena em pauta afirme que o entendimento verdadeiro do fim seja competncia exclusiva da phronesis. Se Aristteles estivesse a dizer que apenas a sensatez capaz de entender os fins, ou seja, se ele estivesse a afirmar que sensatez e concepo verdadeira do fim so expresses coextensivas, a sintaxe da sentena seria totalmente diversa: a assero de identidade extensional entre sujeito e predicado sempre exige o artigo no predicado. Alm do mais, o acrtico no phronimos (cf. 1146a5-7, 1152a6-9), mas tem um entendimento verdadeiro do fim bom e

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    atinge um propsito especfico em acordo com esse fim. A phronesis certamente envolve o entendimento verdadeiro dos fins moralmente corretos, mas sua tarefa essencial no justificar esses fins, mas sim delimit-los pela avaliao correta dos fatores singulares.

    1142b34: entendimento traduz sunesis, bom-entendimento

    traduz eusunesia. Procuramos preservar a ligao etimolgica imediata entre os dois termos gregos. Uma boa razo para essas opes que bom entendedor traduz muito bem o adjetivo eusunetos, do qual deriva o termo eusunesia.

    1143a8-10: a sensatez prescritiva etc.: conforme j foi dito em sua

    definio preliminar, a sensatez uma habilitao para agir, de acordo com a razo. Segue-se, portanto, que a sensatez tem por tarefa ordenar o agente ao. O entendimento, em contrapartida, apenas judicativo: consiste em discernir o que correto nas mesmas matrias sobre as quais o homem sensato emite ordens (cf. 1143a14-15).

    1143a8-9: sua consumao o que preciso fazer ou no fazer: se

    insistssemos em tomar telos no sentido unilateral e restrito de escopo, meta, objetivo etc., esta sentena poderia ser entendida de outro modo: o fim ou a meta da sensatez emitir o preceito, deve-se fazer isto etc.. Entendo, porm, que telos tem sentido bem mais preciso no somente no jargo aristotlico, mas tambm nos usos ordinrios que servem de base reflexo aristotlica e, precisamente neste contexto, designa o acabamento ou a consumao de algo de acordo com sua funo prpria. Conseqentemente, a expresso ti dei prattein e me no remete formulao lingstica da questo cuja resposta o preceito emitido pela sensatez (o que preciso fazer? preciso fazer tal e tal coisa etc.), mas remete objetivamente ao que se deve fazer ou no fazer. Assim, a consumao da sensatez reside na realizao do ato que se deve fazer o que est de acordo com a definio da sensatez como uma habilitao para agir.

    1143a12-13: assim como aprender pode ser designado entender,

    quando algum aciona seu conhecimento: Aristteles recorre distino entre dois usos de manthano (aprender) que no encontram paralelo perfeito em portugus. Por um lado, manthano quer dizer aprender em

  • Lucas Angioni

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    sentido estrito, ou seja, adquirir um conhecimento que no se tinha antes, receber uma instruo sobre algo que antes se ignorava etc. Por outro lado, manthano pode ser usado em contextos em que algum que j aprendeu ou seja, j adquiriu antes um dado conhecimento, j recebeu a instruo etc. faz uso do conhecimento antes adquirido, ou seja, resgata tal conhecimento do estado inativo em que ele se encontrava e torna-o ativo ou imediatamente presente sua conscincia. Por isso, traduzi chretai tei epistemei por aciona seu conhecimento. Nesse segundo uso, manthano corresponde a certos usos de suniemi (que o verbo correspondente sunesis). Cf. Segundos Analticos 71a12-13; 71b32; 76b37. Esse uso de manthano e suniemi corresponde a certos usos informais de compreendo, entendo, ou, em Portugal, percebo (em ingls, to get the point).

    1143a 15: quando outro as diz: o entendimento difere da sensatez

    no apenas por ser judicativo, em vez de produtor de ao, mas tambm por no dizer respeito s aes do prprio agente.

    1143a16-17: o uso do termo entendimento segundo o qual

    denominamos os bons entendedores: bons entendedores traduz eusunetoi, adjetivo que no original grego tem conexo etimolgica imediata com o termo sunesis (entendimento). Cumpre notar que tounoma, neste contexto, no se refere ao termo abstratamente concebido como sinal lingstico, mas se refere claramente ao uso especfico do termo sunesis que est pressuposto quando chamamos os eusunetoi de eusunetoi: so eusunetoi (bons entendedores) aqueles que aprendem e entendem rapidamente e com facilidade. Ressalto que o emprego de onoma para se referir ao uso de um termo (e no ao sinal lingstico abstratamente tomado) comum em Aristteles: ver Metafsica 1006a 29-30; 1052b13-14.

    1143a19-20: compreenso traduz gnome pois se trata de uma

    opinio ou considerao que compreende e perdoa um erro moral de outrem; compreensivos traduz sungnomonas termo que designa as pessoas que compreendem as dificuldades de uma situao moral complexa e, por isso, perdoam uma eventual falha moral de outrem; equnime traduz epieikes termo que designa aquilo que justo, mas que no foi previsto em nenhuma lei ou cdigo moral universal, ou seja, algo cuja justia ou pertinncia moral emerge exatamente em uma situao complexa repleta de

  • Dissertatio, UFPel [34, 2011] 303 - 345

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    fatores singulares cuja avaliao no estava prevista na lei universal (cf. 1137a33 ss.).

    1143a23: perdo traduz sungnome, termo que tem conexo

    etimolgica imediata com gnome (traduzido por compreenso). No conseguimos encontrar em portugus um grupo de termos que preservasse as conexes imediatas em grego.

    1143a33-34: preciso que o sensato os conhea: preciso que o

    homem sensato conhea os itens singulares e ltimos, pois toda ao se conta entre os itens singulares e ltimos e o sensato voltado execuo de aes. A insistncia de Aristteles nesse ponto no pode ser menosprezada. Como dissemos, a capacidade de bem deliberar em si mesma insuficiente para definir a sensatez. Para determinar a ao, que sua consumao e objetivo ltimo, a sensatez requer a avaliao ou o discernimento quase-perceptual (cf. 1142a27-30, 1143b5) dos fatores singulares envolvidos nas circunstncias da ao.

    1143a36-b1: h inteligncia (mas no raciocnio) das primeiras

    definies e dos itens ltimos: cf. 1141a7-8, 1142a25-26, Segundos Analticos 100b12 ss., 72b18-25.

    1143b2: definies imutveis: o termo imutvel (akineton)

    utilizado tambm em tica a Nicmaco 1134b25 para descrever as propriedades essenciais do fogo, em oposio variabilidade e mutabilidade das leis humanas. Cf. Ethica Eudemia 1222b23-25: imutvel descreve aquilo cujo valor de verdade no pode mudar, ao passo que [princpio] mudado (kinoumene) descreve aquilo cujo valor de verdade foi alterado.

    1143b2-3: no domnio da ao, a inteligncia compete ao item

    ltimo, ao possvel e outra premissa: alguns se fiam nesta passagem como suposta evidncia de que Aristteles teria concebido uma noo consistente de silogismo prtico: a outra premissa seria a premissa menor em oposio a uma regra moral exposta na premissa maior , a qual teria por objeto o possvel ou contingente, no sentido de que aquilo que se pode ou deve subsumir sob a regra moral sujeito mudana. A evidncia, no entanto, muito escassa (Motu Animalium 701a8ss., especialmente 23-25), e

  • Lucas Angioni

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    muito provavelmente a noo de silogismo prtico no passa de uma metfora mal desenvolvida na teoria de Aristteles (ver comentrios a 1142b22-26 e 1144a31-33).

    1143b9-11: a inteligncia princpio e fim etc.: editores propem a

    exciso dessa passagem, a qual, de fato, alm de obscura em si mesma (pois difcil imaginar a que o pronome touton se refere), no parece ter nenhuma conexo com o contexto.

    1143b11-13: preciso ater-se s afirmaes e opinies

    indemonstrveis dos [...] sensatos: Aristteles aconselha ater-se s opinies dos homens sensatos, mas isso no implica que ele tenha reconhecido a possibilidade de consubstanciar o conhecimento produzido pelos homens sensatos em um acervo sistemtico de opinies universalizantes.

    1143b21: em vista de que precisaramos dela etc.: as questes que

    Aristteles formula neste captulo podem ser resumidas do seguinte modo: (I) qual a utilidade da sabedoria, que no investiga nada que nos pudesse levar realizao completa? (1143b18-20). (II) Qual a utilidade da sensatez, que, apesar de investigar coisas relativas nossa realizao completa, no parece ser nem condio suficiente nem condio necessria mesma? (II.a) A sensatez no condio suficiente para a realizao completa porque, em matria de ao virtuosa, bem como em matria de sade e bom condicionamento fsico, resultados no se geram pelo mero conhecimento do assunto: podemos conhecer quais so as coisas capazes de gerar eudaimonia e mesmo assim falhar em engendr-las pela nossa ao (1143b21-28). (II.b) A sensatez no seria condio necessria para a realizao completa porque, tal como no caso da medicina e da sade, seria possvel realizar-se (ser eudaimon) seguindo externamente os conselhos de outrem (1143b30-33). (III) A sensatez, sendo pior do que a sabedoria, daria ordens a ela? (1143b33-35).

    1143b22: lemos o texto sem o artigo he, omitido em Lb. 1144a1-3: elas so, em si mesmas, dignas de escolha etc.: Aristteles

    responde a primeira questo formulada no captulo: a sabedoria e a sensatez so dignas de escolha em si mesmas, por serem virtudes. Dado que virtude aquilo que deixa a coisa da qual ela virtude em um bom estado e a faz

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    desenvolver bem sua funo (1106a15-17), e todo bem em si mesmo digno de escolha, segue-se que a sabedoria e a sensatez so dignas de escolha em si mesmas (e no por serem teis em vista de outra coisa).

    1144a4-5: como a sade produz completa realizao etc.: do ponto

    de vista sinttico, a expresso como a sade pressupe o complemento produz realizao completa ([poiei] eudaimonian) o objeto direto eudaimonian se explicita no segundo membro da comparao, e o verbo poiein j foi assumido desde a sentena que inicia o trecho. No h por que exagerar o sentido de produzir neste contexto, como se Aristteles estivesse a dizer que a sade , por si s, causa suficiente para engendrar a eudaimonia. O verbo produzir (poiein), neste contexto, pode ser entendido no sentido de contribuir para a existncia.

    1144a5: a virtude em seu todo: a expresso grega hole arete, mas,

    diferentemente do que ocorre em 1130a9, b18 ss. (cf. 1129b26, 30-31, teleia arete; 1124a7-8, 28-29, arete pantele), Aristteles no se refere soma de todas as virtudes do carter. Creio que, neste contexto, essa expresso resgata a virtude do ser humano mencionada em EN II, 1106a22-24: a virtude do ser humano a habilitao pela qual o ser humano se torna bom e pela qual ele desempenha bem sua funo prpria funo cujo exerccio excelente (de acordo com 1098a7-18) se identifica eudaimonia. O exerccio excelente (isto , virtuoso) dessa funo (que a atividade racional) se d em vrias partes, e cada uma dessas partes uma virtude de uma parte racional da alma: a sabedoria habilita ao exerccio virtuoso (ou excelente) da razo cientfica; a sensatez, ao exerccio virtuoso da razo calculativa voltada ao; a virtude do carter, ao exerccio virtuoso da parte irracional na tarefa de prestar ouvidos razo.

    1144a6-7: a funo se perfaz pela sensatez e pela virtude do carter: o termo ergon, que traduzi por funo, poderia ser interpretado de dois modos. (I) O termo poderia ser uma referncia direta ao argumento da funo humana em EN I 7, 1097b24-1098a18, de modo que Aristteles estaria a dizer que a completa realizao do ser humano (sua eudaimonia) se desenvolve pela sensatez e pela virtude do carter. (II) O termo poderia ser tomado no sentido de ao virtuosa (cf. EE 1228a13), de modo que Aristteles estaria a defender a tese mais simples de que cada ao virtuosa s pode vir a ser uma ao virtuosa no sentido pleno do termo se a sensatez e a

  • Lucas Angioni

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    virtude do carter a produzirem do modo apropriado. Ambas as intepretaes so consistentes com a teoria proposta na EN, sendo a interpretao (I) de alcance mais ambicioso. Prefiro a interpretao (I), pois a referncia eudaimonia j estava presente na formulao do problema central que domina o captulo (cf. 1143b19), bem como nas linhas imediatamente anteriores (1144a3-6). A novidade do presente trecho consiste em explicar melhor como a sensatez contribui para produzir eudaimonia.

    1144a7-9: a virtude faz o alvo ser correto, ao passo que a sensatez faz

    ser correto aquilo que leva ao alvo: o alvo em questo precisamente o mesmo que foi mencionado em 1138b22, no incio do livro VI: trata-se de um propsito (cf. 1144a20) ainda geral, que precisa ser mais especificado pela avaliao correta dos fatores singulares em cada circunstncia. O propsito em si mesmo, conforme Aristteles diz em 1139a23 e 1139b 4-5, envolve uma composio entre o desejo por um dado fim e a delimitao racional de modos (ou meios) para a consecuo desse fim. Dado que o agente s pode ser virtuoso se efetivamente realizar aes conforme seu propsito, fica claro que a virtude do carter depende da sensatez, porque a sensatez que se responsabiliza por delimitar os modos eficazes e apropriados para a realizao de aes conforme ao propsito. O trabalho da sensatez duplo: em um primeiro plano, a sensatez conduz o raciocnio deliberativo e especifica o desejo em um propsito factvel; em um segundo plano, a sensatez avalia os fatores singulares envolvidos nas circunstncias de cada ao. Por outro lado, a sensatez tambm depende da virtude do carter: sem a correo do fim, garantida pela virtude do carter, a mera habilidade em especificar modos apropriados de realizar fins seria apenas destreza (cf. 1144a23-29).

    1144a13-20: alguns que praticam as coisas justas ainda no so justos

    etc.: esta passagem deve ser comparada com EN II, 1105a28-33ss. Neste ltimo trecho, Aristteles estabelece uma srie de requisitos para discernir se uma dada ao realmente uma ao virtuosa: no basta que a ao apresente as caractersticas (por assim dizer) externas pelas quais ela poderia ser descrita pela lei ou por um cdigo moral, pois lhe preciso satisfazer uma srie de exigncias igualmente importantes: (I) ser executada de modo consciente (no involuntrio), com conhecimento do que se faz, (II) ter sido escolhida pelo seu valor moral intrnseco, (III) ser executada de modo firme e sem conflito

  • Dissertatio, UFPel [34, 2011] 303 - 345

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    interno. J na passagem que comentamos, Aristteles retoma apenas a exigncia (II), pois isso lhe basta no contexto (ver comentrio seguinte).

    1144a19-20: por um propsito e em vista das prprias aes:

    Aristteles quer ressaltar o papel imprescindvel que o propsito desempenha na determinao do valor moral da ao. A ao que a lei descreve (de um ponto de vista externo) como justa ser uma ao virtuosa apenas se for executada de acordo com o propsito que reconhece a justia como um bem em si mesmo isto , o propsito que deseja a justia como um bem e almeja realiz-la no devido a quaisquer vantagens ulteriores, mas devido ao valor moral instrnseco das aes justas em si mesmas.

    1144a20-22: a virtude que faz o propsito ser bom, mas tudo aquilo

    que compete fazer em vista dele no compete virtude, mas a outra capacidade: virtude, neste contexto, se refere virtude do carter (cf. 1144a7-8, 1106b36-1107a2): de fato, a virtude do carter que, sendo uma habilitao relativa ao propsito, faz o propsito ser moralmente bom (cf. EE 1227b12-15, 1228a1-2). Algum poderia objetar que esse ponto parece contradizer o que Aristteles afirma em 1145a4-5, a saber, que a correo do propsito depende da sensatez. Esta ltima afirmao, alm do mais, parece coadunar-se com a anlise das noes de propsito e deliberao feita em EN III: se o propsito o ponto de chegada de um processo de deliberao, e se a deliberao de competncia da sensatez, seria de se esperar que Aristteles dissesse que a sensatez que responsvel pela correo do propsito. No entanto, no h nenhuma inconsistncia entre essas afirmaes. Por um lado, claro que a sensatez responsvel pela parte notica envolvida no propsito: a sensatez deve delimitar, pelo raciocnio correto, os meios apropriados para a execuo do fim envolvido no propsito (cf. EE 1227b39-1228a1). Por outro lado, a virtude do carter que garante a correo do desejo envolvido no propsito: a virtude do carter faz o desejo acolher como fim aquilo que moralmente correto (cf. EE 1228a1-2).

    1144a23-29: uma capacidade que chamam destreza etc.: a destreza

    (deinotes) definida por Aristteles como uma habilidade em providenciar modos ou meios para realizar um dado fim. Em si mesma, a destreza no envolve nenhuma considerao moral: ela mera habilidade instrumental, que no leva em conta a qualidade moral dos fins e, portanto, no nem boa

  • Lucas Angioni

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    nem m, do ponto de vista moral a destreza em si mesma no envolve uma proharesis boa ou uma m (cf. 1152a11-14). Os fins que a destreza se prope a realizar podem ser ruins a destreza torna-se, assim, esperteza ou velhacaria ou podem ser bons, de modo que a destreza se torna, nesse caso, sensatez.

    1144a29-30: essa habilitao desse olho da alma: essa expresso se

    refere sensatez. Descrever sua sede como um olho da alma sugere que ela como que capaz de ver ou perceber imediatamente os fatores singulares relevantes para a realizao da ao virtuosa.

    1144a31-33: os silogismos a respeito das aes etc.: Aristteles

    emprega o termo silogismo, mas no tem nenhuma teoria coerente e sistemtica sobre sua aplicao s aes. No fica claro se o silogismo seria a ferramenta pela qual a deliberao progride (dos fins para os meios, das regras universais para as regras especficas ou para os preceitos singulares etc.), ou apenas um instrumento para esquematizar, no plano da teoria moral, a justificao da ao que um agente adotaria. Aristteles no descreve, nesta passagem, nenhuma propriedade formal do silogismo prtico, tampouco tenta formular um silogismo desse tipo. Antes, ele est interessado nos princpios que tais silogismos assumem. a forma geral desses princpios que ele tenta formular: dado que o fim e o que melhor tal e tal coisa .... Mas essa proposio ainda vaga demais para representar a forma geral da premissa maior dos silogismos prticos. Ora, tais silogismos deveriam ter como concluso preceitos exeqveis, e, para tanto, no basta que a premissa maior identifique o fim a tal e tal coisa ou defina o fim em tais e tais termos; preciso que ela introduza uma relao entre o fim (termo mediador) e certa exigncia para sua realizao, a qual resulte na especificao de um modo apropriado de realiz-lo e esse modo seria o termo maior. Mas Aristteles no claro, nesta passagem, quanto ao sentido que se deve atribuir a toionde. Por outro lado, muitos presumem que a concluso do silogismo prtico seria uma ao, no uma proposio. Ainda que essa tese fosse acertada (pois lhe falta evidncia textual mesmo em Motu Animalium 701a12-13), ela transformaria a noo de silogismo prtico em algo que no seria nem sequer anlogo ao silogismo: o uso da expresso silogismo prtico teria passado dos limites da licena metafrica.

  • Dissertatio, UFPel [34, 2011] 303 - 345

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    1144a34: esse fim no se evidencia seno ao homem bom: ver os comentrios a 1140b18. O verbo phainetai no designa aqui mero fenmeno cognitivo (tornar-se evidente ao entendimento etc.), mas a imposio de algo ao assentimento moral do agente. Cf. 1113a30-31, 1114b14-15, 17.

    1144b1: devemos examinar de novo tambm a virtude: por que

    Aristteles julga necessrio investigar de novo sobre a virtude? Em EN II, a relao entre virtude do carter e sensatez ficou inscrita na prpria definio da virtude (1107a1-2), mas pouco se especificaram seus termos precisos. No incio de EN VI, Aristteles anuncia a necessidade de explicar melhor como a razo correta que expresso da sensatez obtm determinaes mais especficas da mediedade. Desde ento, Aristteles buscou caracterizar a sensatez. natural que, no desfecho da discusso, ele retome o assunto do ponto de vista da virtude do carter. Haveria alguma relao mais intrnseca entre a delimitao mais especfica das mediedades (cujo tratamento prvio exigia complementao) e a distino entre virtude natural e virtude propriamente dita (que a novidade introduzida neste captulo)? Sugiro uma resposta afirmativa: a virtude natural pode ser prejudicial e no uma virtude propriamente dita porque lhe falta a contraparte intelectual que requisitada para a delimitao correta das mediedades.

    1144b3: a virtude natural etc.: o assunto controverso, mas no a

    virtude natural no , a rigor, uma virtude: ela no se encaixa na definio geral de virtude oferecida em 1106a15-21, ou seja, ela no deixa seu possuidor necessariamente em bom estado (ao contrrio, s vezes ela prejudicial, cf. 1144b9) e ela no o habilita a desempenhar bem sua funo prpria. A virtude natural apenas uma aptido ou, talvez, uma propenso natural a fazer o bem (cf. Irwin, 1999, p. 254), mas sem inteligncia e sem sensatez, de modo que ela pode levar a um estatelamento moral proporcional sua fora: o agente no atina com a ao correta e no realiza o bem. Pode uma tal propenso ser chamada de virtude no sentido estrito do termo? Claro que no: a distino que Aristteles aqui prope exatamente entre virtude no sentido estrito do termo e algo que tem alguma semelhana exterior com a virtude. Aristteles no o diz, mas no seria exagero sugerir que a virtude natural chamada de virtude apenas por homonmia. A virtude natural

  • Lucas Angioni

    340

    no satisfaz nem a definio de virtude do carter (1106b37-1107a2) nem a definio geral de virtude (1106a15-21).

    1144b3: no a mesma relao, mas uma relao semelhante:

    importante notar que os predicados na sentena ou tauto men, homoion de no se referem a nenhum dos quatro itens relacionados, mas s relaes entre eles. Aristteles no est a dizer que a virtude natural semelhante destreza, ou semelhante virtude propriamente dita etc. Ele est a dizer que a relao entre virtude natural e virtude propriamente dita semelhante relao entre destreza e sensatez. Alm do mais, ao ressaltar que se trata de semelhana e no de identidade entre as duas relaes, Aristteles deixa claro