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Anarquismo e a política do ressentimento De Protopia Saul Newman «Antes direi no ouvido dos psicólogos, supondo que desejem algum dia estudar de perto o ressentimento: hoje essa planta floresce de modo mais esplêndido entre os anarquistas... [1] » De todos os movimentos políticos do século dezenove que Nietzsche despreza, do socialismo ao liberalismo, ele reserva as palavras mais virulentas para os anarquistas. Ele os denomina “cães anarquistas” que perambulam pelas ruas da cultura européia, epítome da “moral dos animais de rebanho” que caracteriza a moderna política democrática. [2] Nietzsche vê o anarquismo como algo envenenado na raiz pela praga pestilenta do ressentimento — a rancorosa política dos fracos e patéticos, a moralidade dos escravos. Nietzsche está aqui apenas expressando sua ira conservadora contra os princípios políticos radicais, ou está diagnosticando uma real enfermidade que tem infectado nosso imaginário político radical? A despeito do óbvio preconceitode Nietzsche em relação à política radical, este estudo se propõe a considerar seriamente sua acusação ao anarquismo. Investiga a lógica perspicaz do ressentimento em relação à política radical, particularmente o anarquismo; busca desmascarar as pressões ocultas do ressentimento no pensamento político maniqueísta dos anarquistas clássicos como Bakunin, Kropotkin e Proudhon. Isso não é feito com a intenção de eliminar o anarquismo enquanto teoria política. Ao contrário, argumento que o anarquismo pode se tornar muito mais relevante para as lutas políticas contemporâneas na medida em que dê conta da lógica do ressentimento em seu próprio discurso, especialmente nas estruturas e identidades essencialistas que o habitam. Moral de escravos e ressentimento O ressentimento é diagnosticado por Nietzsche como nossa condição moderna. No entanto, para se compreender o ressentimento é necessário compreender o relacionamento entre a moral dos senhores e a moral dos escravos no qual o ressentimento é gerado. Genealogia da moral é um estudo das origens da moral. Para Nietzsche, o modo pelo qual interpretamos e impomos valores ao mundo tem uma história — suas origens são freqüentemente brutais e distante dos valores que produzem. O valor de “bom”, por exemplo, foi inventado pelos nobres e superiores para ser aplicado a eles mesmos, em contraste com a plebe, os comuns e inferiores. [3] Era o valor do senhor — o “bom” — enquanto oposto ao do escravo — o “mau”. Assim, de acordo com Nietzsche, foi nesse pathos de distância, entre os bem-nascidos e os inferiores, neste senso absoluto de superioridade, que os valores foram criados. [4] Todavia, esta equação de bom e aristocrático começou a ser minada por uma revolta de escravos em relação aos valores. Esta revolta de escravos, de acordo com Nietzsche, começou com os judeus que instigaram uma reavaliação dos valores. “Foram os judeus que, com apavorante coerência, ousaram inverter a equação de valores aristocrática (bom = nobre = poderoso = belo = feliz = caro aos deuses), e com unhas e dentes (os dentes do ódio mais fundo, o ódio impotente) se apegaram a esta inversão, a saber, os miseráveis somente são os bons, apenas os pobres, os impotentes, baixos são bons, os sofredores, necessitados, feios, doentes são os únicos beatos, os únicos abençoados, unicamente para eles há bemaventurança — mas vocês, nobres e poderosos, vocês serão por toda a eternidade os maus, os lascivos, os insaciáveis, os ímpios, serão também eternamente os desventurados, malditos e danados!” [5] Anarquismo e a política do ressentimento - Protopia http://pt.protopia.at/wiki/Anarquismo_e_a_política_do_ressentimento 1 de 15 25/06/2015 20:08

Anarquismo e a Política Do Ressentimento - Paul Newman

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Anarquismo e a Política Do Ressentimento - Paul Newman

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  • Anarquismo e a poltica do ressentimento

    De Protopia

    Saul Newman

    Antes direi no ouvido dos psiclogos, supondo que desejem algum dia estudar de perto oressentimento: hoje essa planta floresce de modo mais esplndido entre os anarquistas...[1]

    De todos os movimentos polticos do sculo dezenove que Nietzsche despreza, do socialismo ao liberalismo,ele reserva as palavras mais virulentas para os anarquistas. Ele os denomina ces anarquistas queperambulam pelas ruas da cultura europia, eptome da moral dos animais de rebanho que caracteriza amoderna poltica democrtica.[2] Nietzsche v o anarquismo como algo envenenado na raiz pela pragapestilenta do ressentimento a rancorosa poltica dos fracos e patticos, a moralidade dos escravos.Nietzsche est aqui apenas expressando sua ira conservadora contra os princpios polticos radicais, ou estdiagnosticando uma real enfermidade que tem infectado nosso imaginrio poltico radical? A despeito dobvio preconceitode Nietzsche em relao poltica radical, este estudo se prope a considerar seriamentesua acusao ao anarquismo. Investiga a lgica perspicaz do ressentimento em relao poltica radical,particularmente o anarquismo; busca desmascarar as presses ocultas do ressentimento no pensamentopoltico maniquesta dos anarquistas clssicos como Bakunin, Kropotkin e Proudhon. Isso no feito com ainteno de eliminar o anarquismo enquanto teoria poltica. Ao contrrio, argumento que o anarquismo podese tornar muito mais relevante para as lutas polticas contemporneas na medida em que d conta da lgicado ressentimento em seu prprio discurso, especialmente nas estruturas e identidades essencialistas que ohabitam.

    Moral de escravos e ressentimento

    O ressentimento diagnosticado por Nietzsche como nossa condio moderna. No entanto, para secompreender o ressentimento necessrio compreender o relacionamento entre a moral dos senhores e amoral dos escravos no qual o ressentimento gerado. Genealogia da moral um estudo das origens damoral. Para Nietzsche, o modo pelo qual interpretamos e impomos valores ao mundo tem uma histria suas origens so freqentemente brutais e distante dos valores que produzem. O valor de bom, porexemplo, foi inventado pelos nobres e superiores para ser aplicado a eles mesmos, em contraste com a plebe,os comuns e inferiores.[3] Era o valor do senhor o bom enquanto oposto ao do escravo o mau.Assim, de acordo com Nietzsche, foi nesse pathos de distncia, entre os bem-nascidos e os inferiores, nestesenso absoluto de superioridade, que os valores foram criados.[4]

    Todavia, esta equao de bom e aristocrtico comeou a ser minada por uma revolta de escravos em relaoaos valores. Esta revolta de escravos, de acordo com Nietzsche, comeou com os judeus que instigaram umareavaliao dos valores.

    Foram os judeus que, com apavorante coerncia, ousaram inverter a equao de valores aristocrtica (bom= nobre = poderoso = belo = feliz = caro aos deuses), e com unhas e dentes (os dentes do dio mais fundo, odio impotente) se apegaram a esta inverso, a saber, os miserveis somente so os bons, apenas os pobres,os impotentes, baixos so bons, os sofredores, necessitados, feios, doentes so os nicos beatos, os nicosabenoados, unicamente para eles h bemaventurana mas vocs, nobres e poderosos, vocs sero portoda a eternidade os maus, os lascivos, os insaciveis, os mpios, sero tambm eternamente osdesventurados, malditos e danados![5]

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  • Desse modo, a revolta dos escravos na moral inverteu o nobre sistema de valores e comeou a nivelar bomcom o inferior, o impotente o escravo. Esta inverso introduziu o pernicioso esprito de vingana e diona criao dos valores. Ento a moral como a entendemos tem suas razes nesta vontade vingativa de poderdos impotentes sobre os fortes a revolta do escravo contra o senhor. Foi desse dio imperceptvel,subterrneo que cresceram os valores subseqentes associados com o bom a piedade, o altrusmo, adocilidade, etc.

    Valores polticos tambm cresceram dessa raiz envenenada. Para Nietzsche, os valores de igualdade edemocracia, que formam a pedra fundamental da teoria poltica radical, emergiram da revolta do escravo namoralidade. So gerados pelo mesmo esprito de vingana e dio em relao aos poderosos. Em tal situaoNietzsche condena movimentos polticos como a democracia liberal, o socialismo e, obviamente, oanarquismo. Ele v o movimento democrtico como uma expresso da moral do rebanho derivada dareavaliao judaico-crist dos valores.[6] O anarquismo para Nietzsche o mais extremado herdeiro dosvalores democrticos a expresso mais violenta do respectivoinstinto de manada. Busca equalizar asdiferenas entre indivduos, abolir as distines de classe, nivelar completamente as hierarquias pela alturado cho e igualar o potente com o impotente, o rico com o pobre, o senhor com o escravo. Para Nietzscheisso rebaixa tudo ao nvel do mais baixo denominador comum a supresso do pathos de distncia entresenhor e escravo, o senso de diferena e superioridade pelo qual grandes valores so criados. Nietzscheconsidera isso como o pior excesso do niilismo europeu a morte dos valores e da criatividade.

    A moral do escravo caracterizada pela atitude do ressentimento o ressentimento e dio dos impotentescontra os fortes. Nietzsche v o ressentimento como um sentimento totalmente negativo a atitude denegar o que afirmao da vida, dizendo no ao que diferente, ao que estranho ou outro. Oressentimento se caracteriza por uma orientao para o externo, diferindo do foco da nobre moralidade queest em si prprio.[7] Enquanto o senhor diz Eu sou bom e adiciona como idia posterior. Ento, ele mau; j o escravo diz o oposto: Ele (o senhor) mau, logo eu sou bom. Assim a inveno dos valoresdecorre de uma comparao ou oposio ao que de fora, ao outro, ao diferente. Nietzsche diz: a moralescrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, necessita, falando psicologicamente, deum estmulo externo para agir sua ao no fundo uma reao.[8] Esta instncia reativa, essainabilidade para definir qualquer coisa exceto em oposio a alguma outra, a atitude do ressentimento. ainstncia reativa dos fracos que se define em oposio ao forte. O fraco precisa da existncia desse inimigoexterno para se identifi car como bom. Desse modo o escravo consegue uma vingana imaginria emrelao ao senhor, pois no pode agir sem a existncia oposta deste. O homem do ressentimento odeia onobre com um intenso desprezo, com arraigados e fervilhantes dio e inveja. esse ressentimento, deacordo com Nietzsche, que envenena a conscincia modernae encontra sua expresso nas idias deigualdade e democracia e nas filosofias polticas radicais, como o anarquismo, que advogam isso.

    o anarquismo uma expresso poltica do ressentimento? Est envenenado por um dio profundo aospoderosos? Enquanto o ataque de Nietzsche ao anarquismo injustifi cado, excessivamente maldoso emmuitos aspectos, e mostra pouca compreenso acerca das complexidades da teoria anarquista, por outro ladoreitero que Nietzsche de fato revela uma certa lgica do ressentimento no pensamento maniquesta eantagnico do anarquismo. necessrio explorar esta lgica que habita o anarquismo ver aonde isso levae at que ponto impe limites conceituais na poltica radical.

    Anarquismo

    O anarquismo como uma filosofia poltica revolucionria tem muitas vozes, origens e interpretaesdiferentes. Desde o anarquismo individualista de Stirner, at o anarquismo comunal e coletivista de Bakunine Kropotkin, o anarquismo consiste em diversas sries de filosofias e estratgias polticas. Estas seencontram unidas, porm, por uma crtica e rejeio fundamentais da autoridade poltica em todas suasformas. A crtica da autoridade poltica, a convico que o poder explorador, opressivo e desumanizador,pode ser considerada como o ponto de vista tico-poltico crucial do anarquismo. Para os anarquistasclssicos o Estado a personifi cao de todas as formas de explorao, opresso, escravizao e

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  • rebaixamento do homem. Nas palavras de Bakunin, o Estado como um enorme matadouro e um vastocemitrio, onde sob a sombra e o pretexto desta abstrao (o bem comum) todas as melhores aspiraes,todas as foras vivas de um pas so hipocritamente imoladas e sepultadas.[9] O Estado o principal alvoda crtica anarquista da autoridade. para os anarquistas a opresso fundamental na sociedade e deve serabolido como o primeiro ato revolucionrio.

    Este ltimo ponto acarretou ao anarquismo do sculo XIX um agudo confl ito com o marxismo. Marxacreditava que ao mesmo tempo em que o Estado era de fato opressivo e explorador, ele era um refl exo daexplorao econmica e um instrumento do poder de classe. Assim o poder poltico estava reduzido aopoder econmico. Para Marx a economia, mais do que o Estado, era o lugar principal da opresso. O Estadoraramente manteve existncia independente alm dos interesses econmicos e de classe. Devido a isso, oEstado poderia ser usado como uma ferramenta da revoluo, se estivesse nas mos da classe certa oproletariado.[10] Em outras palavras, o Estado era dominador apenas porque na ocasio, ele estava nas mosda burguesia. Uma vez que as distines de classe desapaream, o Estado perder seu carter poltico.[11]

    Anarquistas como Bakunin e Kropotkin discordaram de Marx precisamente nesse ponto. Para os anarquistaso Estado muito mais do que uma expresso de classe e poder econmico. Ao invs disso, o Estado tem suaprpria lgica de dominao e auto-perpetuao e autnomo em relao aos interesses de classe. Aocontrrio de uma ao que vai da sociedade ao Estado como Marx fez, e de ver o Estado como derivativodas relaes econmicas do capitalismo e da ascenso da burguesia, os anarquistas trabalham do Estado paraa sociedade. O Estado constitui a opresso fundamental na sociedade e a explorao econmica deriva daopresso poltica. Em outras palavras, a opresso poltica que possibilita opresso econmica.[12] Almdisso, para os anarquistas, as relaes burguesas so efetivamente um reflexo do Estado, contrariando aconcepo do Estado ser refl exo das relaes burguesas. A classe dominante, argumenta Bakunin, oefetivo representante material do Estado. Nos bastidores de cada classe dominante em cada poca,entrelaa-se o Estado. Por causa deste ter sua prpria lgica autnoma, nunca poder ser um confivelinstrumento de revoluo. Fazer isso do Estado implica ignorar sua lgica de dominao. Se o Estado no fordestrudo imediatamente, se for usado como ferramenta revolucionria como os marxistas sugerem, entoseu poder ser perpetuado em modos infinitamente mais tirnicos. Funcionaria, como aponta Bakunin, pormeio de uma nova classe dominante uma classe burocrtica que oprimir e explorar os trabalhadores domesmo modo que a classe burguesa os oprimiu e explorou.[13] Desse modo, para os anarquistas, o Estado uma opresso a priori, no importa a forma que possa tomar. De fato Bakunin afi rma que o marxismodedica muita ateno s formas do poder do Estado, ao mesmo tempo em que no considera suficientementeo modo pelo qual o poder do Estado opera: Eles (os marxistas) no sabem que o despotismo reside noapenas na forma do Estado, mas no prprio princpio do Estado e do poder poltico.[14] Opresso edespotismo existem na prpria estrutura e simbolismo do Estado no mera derivao do poder declasse. O Estado tem sua prpria lgica impessoal, seu prprio momentum, suas prioridades especficas:estes esto sempre alm do controle da classe dominante e de modo nenhum refletem necessariamente asrelaes econmicas. Assim o anarquismo situa a opresso fundamental e o poder sobre a sociedade naestrutura e operaes especficas do Estado. Enquanto uma mquina abstrata de dominao, este provocadiversas atualizaes de classe no apenas o Estado burgus, mas tambm o Estado proletrio. Por meiodo seu reducionismo econmico, o marxismo negligenciou a autonomia e pr-existncia do Estado umerro que levaria sua reafirmao em uma revoluo socialista.

    Desse modo, a crtica anarquista desmascara as formas ocultas da dominao associadas com o poderpoltico, e expe a inadequao terica do marxismo em lidar com este problema.

    Ironicamente, essa concepo do Estado encontra uma inesperada nota familiar de Nietzsche. Nietzsche,como os anarquistas, v o homem moderno como domesticado, acorrentado e tornado impotente peloEstado.[15] Ele tambm considera o Estado uma mquina abstrata de dominao, que precede o capitalismoe paira acima dos interesses econmicos e de classe. O Estado um modo de dominao que impe umainteriorizao regulada sobre o populacho. De acordo com Nietzsche, o Estado emerge como uma terrveltirania, como uma maquinaria esmagadora e implacvel, que subjuga, torna complacente e molda a

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  • populao.[16] Alm do mais, as origens do Estado so violentas. Foi imposto fora do exterior e nodevido a alguma relao com contratos.[17] Nietzsche demole a fantasia do contrato social a teoriade que o Estado fora formado pelas pessoas que teriam abdicado voluntariamente de seu poder em troca desegurana e proteo a serem providas pelo Estado. Esta idia do contrato social tem sido central polticaliberal e conservadora, de Hobbes a Locke. Os anarquistas tambm rejeitam essa teoria contratualista. Elestambm dizem que as origens do Estado so violentas, e que absurdo afirmar que as pessoasvoluntariamente desistiram de seu poder. Isso um mito perigoso que legitima e perpetua a dominaoestatal.

    O contrato social

    O anarquismo est baseado em uma concepo essencialmente otimista da natureza humana: se osindivduos tm uma tendncia natural a viverem bem juntos, ento no h necessidade da presena doEstado a servir de rbitro entre eles. Ao contrrio, o Estado produz de fato um efeito pernicioso nessasrelaes sociais naturais. Portanto, os anarquistas rejeitam as teorias polticas baseadas na idia do contratosocial. A teoria do contrato social repousa numa imagem singularmente negativa da natureza humana.Segundo Hobbes, os indivduos so naturalmente egostas, interesseiros, agressivamente competitivos, e noestado de natureza esto engajados numa guerra de todos contra todos, na qual seus impulsos naturaislevam ao confl ito uns com os outros.[18] Ento, segundo essa teoria, a sociedade em estado de natureza caracterizada por uma desarticulao radical: no h vnculo comum entre os indivduos, e sim um constanteestado de guerra permanente, uma luta constante pelos recursos.[19] Para pr um fim a este estado de guerrapermanente, os indivduos se agrupam para estabelecer um contrato social sobre o qual algum tipo deautoridade pode ser estabelecida. Eles concordam em sacrificar parte de sua liberdade em troca de algumtipo de ordem, desse modo podem buscar seus prprios fins individuais de modo mais proveitoso e pacfico.Concordam na criao de um Estado com um mandato sobre a sociedade, que deve arbitrar vontadesconflitantes e impor a lei e a ordem.

    O alcance da autoridade do Estado pode variar do Estado liberal, cujo poder supostamente moderado peloestatuto da lei, ao poder do Estado absoluto o Leviat , imaginado por Hobbes. Embora tais modelospossam variar, os anarquistas afi rmam que o resultado dessa teoria do contrato social o mesmo: ajustificao da dominao do Estado, seja atravs do estatuto da lei, seja pela imposio arbitrria da fora.Para os anarquistas qualquer forma de poder de Estado uma imposio da fora. A teoria do contratosocial uma prestidigitao que legitima a dominao poltica Bakunin o denomina embustedesonroso.[20] Ele demonstra o paradoxo central na teoria do contrato social desse modo: se, no estado denatureza, os indivduos subsistem em um estado de selvageria primitiva, ento, como que de repente, elespodem ter a perspiccia de se reunirem e criarem um contrato social?[21] Se no h nenhum lao em comumna sociedade, nenhuma essncia dentro dos seres humanos que os coloquem juntos, ento, escorado em qualfundamento, pode um contrato social ser formado? Como Nietzsche, os anarquistas afirmam tambm queno h tal concordncia para que o Estado seja imposto, nem de cima nem de baixo. O contrato social tentamistifi car as origens brutais do Estado: guerra, conquista e escravizao voluntria, ao contrrio de umacordo racional. Para Kropotkin o Estado uma violenta ruptura e uma imposio sobre uma sociedadeorgnica funcionando harmoniosamente.[22] A sociedade no precisa de um contrato social. Ela tem seuprprio contrato com a natureza, governado por leis naturais.[23]

    O anarquismo pode ser entendido como uma luta entre autoridade natural e autoridade artifi cial. Osanarquistas no rejeitam todas as formas de autoridade como o velho clich costuma dizer. Ao contrrio,declaram sua absoluta obedincia autoridade aterializada pelo que Bakunin denomina leis naturais. Deacordo com Bakunin, as leis naturais so necessrias existncia da humanidade; elas nos envolvem, nosmoldam e determinam o mundo fsico no qual vivemos.[24] No entanto, esta no uma forma de escravidoporque tais leis no so externas ao homem: essas leis (naturais) no so extrnsecas em relao a ns, so

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  • inerentes a ns, constituem nossa natureza, todo nosso ser fsico, intelectual e moral.[25] Elas consistem noque constitui o homem so sua essncia. O homem parte inextricvel de uma sociedade naturalorgnica, segundo Kropotkin.[26] Portanto o anarquismo est baseado em uma noo especfi ca de essnciahumana. A moral tem sua base na natureza humana e no em alguma fonte externa: a idia de justia ebem, como todas outras coisas humanas, deve ter sua raiz na prpria animalidade do homem.[27]

    A autoridade natural implacavelmente oposta autoridade artificial. Por autoridade artificial Bakuninquer dizer poder: o poder poltico conservado em instituies como o Estado e nas leis feitas pelohomem.[28] Este poder exterior natureza humana e uma imposio sobre ela. Ele anula odesenvolvimento das caractersticas morais e das capacidades intelectuais inatas da humanidade. So estascapacidades, afi rmam os anarquistas, que liberaro o homem da escravido e da ignorncia. Para Bakunin,ento, as instituies polticas so hostis e fatais liberdade das massas, pois elas impem sobre as ltimasum sistema de leis externas e por conseguinte despticas.[29]

    Nessa crtica da autoridade poltica, o poder (autoridade artificial) externo ao sujeito humano. Este seencontra oprimido por tal poder, mas permanece sem ser contaminado por ele porque a subjetividadehumana uma criao de um sistema natural oposto ao sistema poltico. Desse modo o anarquismo estbaseado em uma clara diviso maniquesta entre autoridade natural e autoridade artifi cial, entre poder esubjetividade, entre Estado e Sociedade. Alm do mais a autoridade poltica fundamentalmente repressivae destrutiva do potencial dos homens. Os anarquistas afirmam que a sociedade humana no pode sedesenvolver at que as instituies e as leis que a mantm na ignorncia e servido, at que os grilhes que aamarram sejam desfeitos. Por conseguinte, o anarquismo deve ser um lugar de resistncia: um lugar racionale moral, um lugar sem ser contaminado pelo poder que oprime, e de onde surgir a rebelio contra o poder.Encontra-se isso em uma subjetividade humana essencial. A essncia humana, com suas caractersticasmorais e racionais uma totalidade esquecida que repousa dormente no homem e apenas ser realizadaquando o poder poltico que a nega for derrotado. A moralidade e racionalidade humanas neutralizaro opoder poltico que encarado como inerentemente irracional e imoral. De acordo com a teoria anarquista, alei natural substituir autoridade poltica; homem e sociedade substituiro ao Estado. Para Kropotkin oanarquismo pode pensar alm da categoria do Estado, alm da categoria do poder poltico absoluto, pois hum lugar, um solo para fazer isso.

    O poder poltico tem um lado de fora a partir do qual pode ser criticado e uma alternativa com a qual podeser substitudo. Assim Kropotkin capaz de conceber uma sociedade na qual o Estado no mais existe ou necessrio, uma sociedade regulada, no pelo poder poltico e autoridade, mas pela concordncia mtua ecooperao.[30]

    Tal sociedade possvel, de acordo com os anarquistas devido natureza essencialmente cooperativa dohomem.[31] Ao contrrio da abordagem darwinista que insiste em uma inata competio entre os animais a sobrevivncia dos mais adaptados Kropotkin encontrou uma cooperao e sociabilidade instintiva nosanimais, particularmente nos humanos. Este instinto, Kropotkin denominou ajuda mtua e afirmou: A ajudamtua o fato predominante da natureza.[32] Kropotkin aplica essas descobertas na sociedade humana.Afirma que o princpio natural e essencial da natureza humana a ajuda mtua e que o homem naturalmente cooperativo, socivel e altrusta, em vez de competitivo e egosta. Este o princpio orgnicoque governa a sociedade, a partir disso que as noes de moralidade, justia e tica prosperam. SegundoKropotkin, a moral expande-se a partir da necessidade instintiva de se reunir em tribos, grupos e de umainstintiva tendncia cooperao e assistncia mtua.[33] Essas sociabilidade e capacidade naturais paraajuda mtua o princpio que une a sociedade, provendo uma base comum sobre a qual a vida cotidianapode se conduzir. Assim a sociedade no tem necessidade do Estado: ela tem seus prprios mecanismos deregulao, suas prprias leis naturais. A dominao do Estado apenas envenena a sociedade e destri seusmecanismos naturais. o princpio da ajuda mtua que vai naturalmente substituir o princpio da autoridadepoltica. Um estado de anarquia, uma guerra de todos contra todos no seguir ao momento em que opoder de Estado for abolido. Para os anarquistas, um estado de anarquia j existe agora: o poder poltico

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  • cria deslocamento social, no o evita. O que obstrudo pelo Estado o funcionamento natural eharmonioso da sociedade.]

    Para Hobbes, a soberania do Estado um mal necessrio. No h nenhuma tentativa de transformar oEstado em um fetiche: ele no descende dos cus, predeterminado pela vontade divina. pura soberania,puro poder, e est construdo a partir do vazio da sociedade, precisamente no sentido de evitar o estado deguerra imanente ao estado de natureza. O contedo poltico do Estado no importante, contanto quesubjugue a inquietao na sociedade. Se houver democracia, assemblia soberana, ou monarquia, noimporta: o poder em todas as formas, se for suficientemente perfeito para proteg-los, d no mesmo.[34]

    Tal como os anarquistas, Hobbes acredita que a aparncia tomada pelo poder irrelevante. Por trs de cadamscara deve haver um poder puro e absoluto. O pensamento poltico de Hobbes est concentrado em tornode um desejo de ordem, puramente enquanto um antdoto contra a desordem e a extenso do sofrimento dosindivduos sob essa ordem no se compara ao sofrimento causado pela guerra.[35] Para os anarquistas, poroutro lado, pelo fato das sociedades se regularem de acordo com leis naturais e por haver uma tica naturalde cooperao entre os homens, o Estado um mal desnecessrio. Ao invs de evitar o estado de guerraperptua entre os homens, o Estado a engendra: o Estado est baseado na guerra e na conquista ao invs depersonificar sua soluo. O anarquismo pode observar alm do Estado pois discute da perspectiva de umponto de partida essencial a sociabilidade humana natural. Assim, pode conceber uma alternativa aoEstado. Por sua vez, Hobbes no tem esse ponto de partida: no h nenhum ponto de apoio que pode atuarcomo alternativa ao Estado. A sociedade, como vimos com Hobbes, est caracterizada por fi ssuras eantagonismo. De fato, no h nenhuma sociedade essencial a ser mencionada um lugar vazio. Asociedade deve portanto ser construda artificialmente no molde do Estado absoluto. Enquanto o anarquismopode contar com o estado natural, Hobbes apenas pode confiar na lei do Estado. No cerne do paradigmaanarquista h uma plenitude essencial da sociedade, enquanto que no corao do paradigma hobbesiano noh nada, apenas vazio e desarticulao.

    Maniquesmo

    Todavia, pode-se argumentar que o anarquismo uma imagem espelhada do hobbesianismo no sentido deque ambos colocam atributos comuns os quais derivam de sua dvida com o Iluminismo. Ambos enfatizam anecessidade de uma repleo ou coletividade, algum ponto legtimo em torno do qual a sociedade pode serorganizada. Os anarquistas consideram essa lei natural o ponto de partida que informa a sociedade e asubjetividade humana, e que obstruda pelo Estado. Por outro lado, Hobbes v este ponto de partida comouma ausncia, um lugar vazio que precisa ser preenchido pelo Estado. O pensamento de Hobbes compreendido dentro do paradigma do Estado; este o limite conceitual absoluto, fora do qual esto osperigos do estado de natureza. Teorias polticas como esta, baseadas no contrato social, esto atravessadaspela ameaa de que ao se eliminar o Estado, se regredir ao estado de natureza. O anarquismo, por derivarde uma concepo de sociedade e de natureza humana radicalmente diferente, reivindica ser possveltranscender este dilema. No entanto, consegue?

    O anarquismo opera dentro de uma lgica poltica maniquesta: cria uma oposio moral essencial entre asociedade e o Estado, entre humanidade e poder. A lei natural esquematicamente oposta ao poderartificial; a moral e a racionalidade imanentes subjetividade humana entram em conflito com airracionalidade e imoralidade do Estado. H uma anttese essencial entre o incontaminado ponto de partida,constitudo pela subjetividade humana essencial, e o poder de Estado. Esta lgica que estabelece umaoposio absoluta entre dois termos bom e mau, branco e preto, humanidade e o Estado o traocentral do pensamento maniquesta. Jacques Donzelot mostra que essa lgica de oposio absoluta endmica teoria poltica radical.

    A cultura poltica tambm a busca sistemtica de um antagonismo entre duas essncias, o desenhode uma linha de demarcao entre dois princpios, dois nveis de realidade que so facilmentecolocados em oposio. No existe poltica cultural que no seja maniquesta.[36]

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  • Alm disso, ao subscrever essa lgica e fazer do poder o foco de sua anlise ao invs da economia, como fazo marxismo, o anarquismo talvez tenha cado na mesma armadilha reducionista. No teria, meramente,substitudo a economia pelo Estado enquanto o mal essencial da sociedade, do qual derivariam outrosmalefcios? Assim afirma Donzelot: To logo foi decidido, para o bem ou para o mal no importa queo capitalismo no o nico ou mesmo o princpio fundamental do mal na terra, apressou-se em substituir aoposio entre capital e trabalho pela oposio entre Estado e sociedade civil. O capital, enquanto frustraoe bode expiatrio, substitudo pelo Estado, este frio monstro cujo crescimento ilimitado pauperiza a vidasocial; e o proletariado abre caminho para a sociedade civil, ou seja para tudo que seja capaz de resistir racionalidade cega do Estado, tudo que lhe oponha no plano dos costumes, hbitos, uma sociabilidade viva,buscada nas margens residuais da sociedade e promovidas ao status de motor da histria.[37]

    Opor a sociabilidade vivente ao Estado, do mesmo modo que o marxismo opunha o proletariado aocapitalismo, sugere que o anarquismo foi incapaz de transcender as categorias polticas tradicionais queacompanham o marxismo. Como aponta Donzelot, o maniquesmo a lgica que escora todas essas teorias: a propenso oculta que as circunscreve e percorre.

    No importa se o alvo for o Estado, o Capital, ou qualquer outra coisa; contanto que haja um inimigo adestruir e um sujeito que ir destru-lo, contanto que haja a promessa da batalha final e da vitria final. Algica maniquesta ento a lgica do lugar: h um lugar essencial de poder e um lugar essencial de revolta.Esta a lgica binria, dialtica que atravessa o anarquismo: o lugar do poder o Estado deve serderrubado pelo sujeito humano essencial, o puro sujeito da resistncia. O anarquismo essencializa oprprio poder ao qual se ope.

    A lgica maniquesta envolve assim uma operao de inverso especular: o lugar da resistncia um reflexo,ao contrrio, do lugar do poder. No caso do anarquismo, a subjetividade humana essencialmente moral eracional, enquanto o Estado essencialmente imoral e irracional.[38] O Estado essencial existncia dosujeito revolucionrio, assim como o sujeito revolucionrio essencial existncia do Estado. Um se defineem oposio ao outro. A pureza da identidade revolucionria unicamente definida em contraste com aimpureza do poder poltico. A revolta contra o Estado sempre motivada pelo Estado. Como Bakuninargumenta: h algo na natureza do Estado que provoca rebelio.[39] Na medida em que o relacionamentoentre o Estado e o sujeito revolucionrio uma oposio claramente definida, os dois antagonistas nopodem existir fora dessa relao. Em outras palavras, um no pode existir sem o outro.

    Poderia este relacionamento paradoxal entre reflexo e oposio ser encarado como uma forma deressentimento no sentido nietzschiano? Eu afirmaria aqui que, apesar das diferenas existentes, orelacionamento maniquesta da oposio entre sujeito humano e poder poltico encontrado no anarquismoobedece lgica geral do ressentimento descrito acima. Isso devido a duas razes. Em primeiro lugar, comovimos, o ressentimento baseia-se no preconceito moral do impotente contra o forte a revolta do escravocontra o senhor. Podemos ver com clareza essa oposio moral potncia no discurso anarquista, o qualsitua o sujeito humano essencialmente moral e racional em contraposio qualidade essencialmenteirracional e imoral do poder poltico. Isso evidente na oposio da autoridade natural autoridadeartificial, que central ao anarquismo. Em segundo lugar, o ressentimento caracterizado pela necessidadefundamental de se identificar pela ateno ao que est fora e pela oposio a um inimigo externo. Aqui, noentanto, a comparao ao anarquismo no to ntida. Por exemplo, pode-se afirmar de modo concebvelque a tica a noo de ajuda e assistncia mtua e a subjetividade anarquistas so algo que sedesenvolvem independentemente do poder poltico e que, portanto, no necessita de uma relao deoposio ao Estado para se definir. Contudo, eu posso sugerir que embora a subjetividade anarquista de fatose desenvolva em um sistema natural, radicalmente exterior ao sistema artificial do poder poltico, precisamente por meio desta assero de exterioridade radical que o ressentimento emerge. O anarquismoconcorda com uma lgica dialtica pela qual as espcies humanas emergem de um estado quase-animal ecomea a desenvolver uma moral inata e faculdades racionais em um sistema natural.[40] Entretanto, osujeito encontra esse desenvolvimento obstaculizado pelo poder imoral e irracional do Estado.

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  • Conseqentemente, o sujeito no pode alcanar a sua plena identidade humana enquanto permaneceroprimido pelo Estado. Para Bakunin, isso ocorre porque: O Estado a mais flagrante negao dahumanidade.[41] A realizao do sujeito sempre embrutecida, procrastinada, adiada pelo Estado. Essadialtica do Homem e Estado sugere que a identidade do sujeito caracterizada como essencialmenteracional e moral apenas na medida em que o desdobramento dessas qualidades e faculdades inatas obstrudo pelo Estado. Paradoxalmente, o Estado, que considerado pelos anarquistas um obstculo plenaidentidade do homem, ao mesmo tempo, essencial formao desta identidade incompleta. Sem essaestpida opresso, o sujeito anarquista seria incapaz de se ver como moral e racional. Essa identidade assim completa em sua incompletude. A existncia do poder poltico , portanto, um meio de construir essaplenitude ausente. Afirmo ento que o anarquismo s pode colocar um sujeito como moral e racionalem oposio imoralidade e irracionalidade do poder poltico. Do mesmo modo que a identidade doescravo se consolida como boa pela sua oposio identidade do senhor que m. Nietzscheconsideraria isso uma atitude do ressentimento por excelncia.

    Desta forma, o maniquesmo que habita o discurso anarquista uma lgica do ressentimento, o que paraNietzsche uma perspectiva inconfundivelmente doentia, emanando de uma posio de fraqueza e doena.A identidade revolucionria da filosofia anarquista est constituda por sua essencial oposio ao poder. Talcomo o homem reativo de Nietzsche, a identidade revolucionria se pretende passar imaculvel pelo poder:a essncia humana vista como moral onde o poder imoral; natural onde o poder artificial; puro onde opoder impuro. Pelo fato dessa subjetividade ser constituda dentro de um sistema de lei natural enquanto oposta lei artificial este um ponto que, enquanto oprimido pelo poder, permanece fora dopoder e sem ser poludo por ele. Mas isso mesmo?

    O prprio Bakunin lana algumas dvidas acerca disso quando discorre sobre o princpio de poder. Este acobia natural pelo poder, que ele acredita ser inata em cada indivduo: Cada homem carrega dentro de sios germes da cobia pelo poder, e cada germe, como sabemos, devido lei bsica da vida, necessariamentedeve desenvolver e crescer.[42] O princpio de poder significa que o homem no pode ser confiado aopoder, pois sempre haver esse desejo de poder no corao da subjetividade humana. Embora Bakuninbuscasse alertar os outros sobre o perigo corruptivo inerente do poder, ele talvez tenha expostoinconscientemente a contradio oculta que repousa no corao do discurso anarquista: a saber, enquanto oanarquismo estiver baseado em uma noo de subjetividade humana essencial incontaminada pelo poder,essa subjetividade impossvel. A identidade revolucionria pura rasgada, subvertida por um desejonatural de poder, a falta no corao de cada indivduo. Bakunin sugere que este desejo de poder umaparte essencial da subjetividade humana. Talvez a implicao do princpio de poder de Bakunin que osujeito sempre ter um desejo de poder e que o sujeito ser incompleto at que alcance o poder. Kropotkinfala tambm sobre o desejo de poder e autoridade. Afirma que o surgimento do Estado moderno pode seratribudo em parte ao fato que os homens se tornaram enamorados da autoridade.[43] Ele conclui ento,que o Estado no totalmente uma imposio de cima. Ele fala sobre auto-escravizao lei e autoridade:o homem deixou-se escravizar muito mais por seu desejo de punir conforme a lei do que pela conquistamilitar direta.[44] O desejo de punir conforme a lei cresce diretamente do senso natural de moralidade dahumanidade? Nesse caso, pode a essncia humana ainda ser considerada como imaculvel pelo poder?Embora a noo anarquista de subjetividade no esteja totalmente corroda por essa contradio, est pormdesestabilizada por ela: faz-se ambgua e incompleta. Fora a questionar a noo anarquista de umarevoluo da humanidade contra o poder: se os seres humanos tm um desejo essencial de poder, entocomo pode algum se certificar que uma revoluo direcionada a destruir o poder no se transformar emuma revoluo direcionada em capturar o poder?

    Vontade de poder

    Enquanto teoria poltica e social, o anarquismo tem sido invalidado devido s contradies de sua concepoda subjetividade humana? No concordo. Procuro mostrar um trao oculto do ressentimento nas categoriasessencialistas e nas estruturas em oposio que habitam o discurso anarquista em noes de umasociedade harmnica governada pela lei natural e do comunalismo humano essencial, e sua oposio lei

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  • artificial do Estado. No entanto, defendo que, se conseguir se livrar dessas categorias essencialistas emaniquestas, o anarquismo, pode ultrapassar o ressentimento que o envenena e o limita. O anarquismoclssico uma poltica do ressentimento pois busca vender o poder. Considera o poder como malfico,destrutivo, algo que degrada a plena realizao individual. A essncia humana o ponto de partidaincontaminado pelo poder e do qual se resiste ao poder. Como assinalei, h uma estrita diviso e oposiomaniquesta entre o sujeito e o poder. Contudo, mostrei que esta separao entre indivduo e poder em siinstvel e ameaada por um desejo natural de poder o princpio de poder. Nietzsche argumenta que estedesejo de poder vontade de poder realmente natural, e a prpria supresso desse desejo que temtal efeito debilitante no homem, fazendo-o se voltar contra si mesmo e produzindo uma atitude deressentimento.

    Talvez se possa deduzir que esse desejo de poder no homem seja produzido precisamente por meio detentativas em negar ou extinguir relaes de poder na ordem natural. Talvez o poder possa ser visto nostermos do Real lacaniano como uma falta irreprimvel que no pode ser simbolizada e a qual retorna paraassombrar a ordem simblica, rompendo qualquer tentativa do sujeito em formar uma identidade completa.Para Jacques Lacan: (...) o real o que sempre retorna ao mesmo lugar, ao lugar onde o sujeito, na medidaem que pensa, no o encontra.[45] O anarquismo tenta completar a identidade do sujeito separando-o, emum sentido absolutamente maniquesta, do mundo do poder. O sujeito anarquista, como j apontado,encontra-se constitudo em um sistema natural que dialeticamente oposto ao mundo artificial do poder.Alm disso pelo fato do sujeito ser constitudo em um sistema natural, governado pelas leis ticas decooperao mtua, os anarquistas esto aptos a colocar uma sociedade livre das relaes de poder, quesubstituiria o Estado quando esse fosse derrubado. Entretanto, como j vimos, este mundo livre do poder colocado em risco pelo desejo de poder latente em cada indivduo. Quanto mais o anarquismo tenta libertar asociedade das relaes de poder, mais permanece paradoxalmente enredado em poder. O poder aqui retornacomo o real que habita todas as tentativas de libertar o mundo do poder. Quanto mais se tenta reprimir opoder, mais obstinadamente este levanta sua cabea. Isso ocorre pois as prprias tentativas de negar o poder,por meio de conceitos essencialistas de leis naturais e moralidade natural, constituem poder, ou ao menosso condicionadas por relaes de poder. Essas identidades e categorias essencialistas no podem serimpostas sem a excluso radical de outras identidades. Esta excluso um ato de poder. Se algum seesforar para excluir radicalmente o poder, como os anarquistas fizeram, o poder retorna, precisamente nasprprias estruturas de excluso.

    Nietzsche acredita que esta tentativa de excluir e negar poder uma forma de ressentimento. Ento como oanarquismo ultrapassa este ressentimento que tem mostrado ser to autodestrutivo e negador da vida? Aoafirmar positivamente o poder, em vez de neg-lo dizer sim ao poder, como Nietzsche colocaria. apenas pela afirmao de poder, pelo reconhecimento de que ns viemos do mesmo mundo do poder, e node um mundo natural apartado dele, e de que ns nunca poderemos estar inteiramente livres de relaesde poder, que se pode se empenhar em estratgias politicamente relevantes de resistncia contra o poder.Isso no significa, obviamente, que o anarquismo deva baixar as armas e abraar o Estado e a autoridadepoltica. Pelo contrrio, o anarquismo pode mais efetivamente se contrapor dominao poltica ao seengajar com o poder, em vez de neg-lo.

    Talvez seja necessrio aqui distinguir entre relaes de poder e relaes de dominao. Para usar a definiode Michel Foucault, poder um modo de ao sobre a ao de outros.[46] Poder meramente o efeito daao de algum sobre as aes de outro. Nietzsche tambm considera o poder em termos de um efeito semum sujeito: (...) no existe ser por trs do fazer, do atuar, do devir; o agente uma fico acrescentada ao a ao tudo.[47] Poder no uma mercadoria que pode ser possuda, nem pode ser localizada nocentro nem de uma instituio, nem de um sujeito. meramente uma relao de foras, foras que fluementre diferentes atores e atravs de nossas aes cotidianas. O poder est em todo lugar, de acordo comFoucault.[48] O poder no emana de instituies como o Estado, pelo contrrio, imanente a toda redesocial, atravs de vrios discursos e saberes. Por exemplo, discursos morais e racionais, os quais osanarquistas consideram inocentes em relao ao poder e at como armas na luta contra o poder, so elesmesmos constitudos de relaes de poder e enredados em prticas de poder: poder e saber se implicam

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  • diretamente um ao outro.[49] Poder nesse sentido produtivo ao invs de repressivo. portanto semsentido e realmente impossvel tentar construir, como os anarquistas fazem, um mundo fora do poder. Nuncaestaremos inteiramente livres das relaes de poder. De acordo com Foucault: parece-me que... nunca seest fora do poder, que no h nenhuma margem para saltar para aqueles que rompem com o sistema.[50]

    Contudo, o fato de no se poder nunca se livrar do poder no significa que nunca se possa se libertar dadominao. A dominao deve ser distinguida do poder no seguinte sentido. Para Foucault, as relaes depoder se tornam relaes de dominao quando o livre e instvel fluxo de relaes de poder se tornabloqueado e congelado quando forma hierarquias desiguais e no mais permite relaes dereciprocidade.[51] Estas relaes de dominao formam a base das instituies tais como o Estado. Deacordo com Foucault, o Estado apenas uma reunio de relaes de poder diferentes que desse modo setornaram congelados. Esta uma maneira radicalmente diferente de olhar para as instituies como oEstado. Enquanto os anarquistas vm o poder como emanando do Estado, Foucault v o Estado comoemanando do poder. Em outras palavras, o Estado meramente um efeito das relaes de poder que secristalizaram em relaes de dominao.

    Qual o ponto desta distino entre poder e dominao? Isso no traz de volta posio original anarquistaque a sociedade e nossas aes do dia a dia, embora oprimidas pelo poder, so ontologicamente apartadasuma da outra? Em outras palavras, por que no apenas chamar a dominao de poder uma vez mais, eretroceder de volta original distino maniquesta entre vida social e poder? Contudo, o ponto dessadistino mostrar que essa separao agora impossvel. Dominao as opressivas instituies polticascomo o Estado agora advm do mesmo mundo do poder. Em outras palavras, rompe-se a estrita distinomaniquesta entre sociedade e poder. O anarquismo e, naturalmente, a poltica radical em geral no podempermanecer em sua confortvel iluso que ns, enquanto sujeitos polticos, no somos de algum modocmplices com o prprio regime que nos oprime. De acordo com a definio foucaultiana de poder aquiutilizada, ns somos potencialmente cmplices, atravs de nossas aes dirias, nas relaes de dominao.Nossas aes cotidianas, as quais inevitavelmente envolvem poder, so instveis e podem facilmente setransformar em relaes que nos dominem. Enquanto sujeitos polticos, no podemos nunca descansar eesconder identidades essencialistas e estruturas maniquestas atrs de uma estrita separaodo mundo dopoder. Ao contrrio, precisamos estar sempre em guarda contra as possibilidades da dominao. Foucaultdiz: Meu ponto que nada mau, mas tudo perigoso... Se algo perigoso, ento ns temos sempre algo afazer. Ento minha posio no leva apatia, mas a um hiper e pessimista ativismo.[52] Para resistir dominao devemos estar cientes de seus riscos, da possibilidade que nossas prprias aes, mesmo as aespolticas ostensivas contra a dominao, podem facilmente ocasionar uma dominao posterior. H sempre apossibilidade, ento, de se contestar a dominao e de minimizar suas possibilidades e efeitos. De acordocom Foucault, a dominao em si instvel e pode ocasionar inverses e resistncia. Construes como oEstado so baseadas em relaes de poder instveis aos quais podem facilmente se voltar contra a instituioda qual elas formam a base. Assim h sempre a possibilidade de resistncia contra a dominao. Entretanto,a resistncia nunca pode assumir a forma de revoluo essa grande e dialtica superao do poder, comoos anarquistas advogavam. Abolir instituies centrais como o Estado com um nico golpe, pode implicarnegligenciar as relaes multiformes e difusas do poder em que elas se baseiam, permitindo assim osurgimento de novas relaes e instituies. Seria cair na mesma armadilha reducionista do marxismo ecortejar a dominao. Ao contrrio, a resistncia deve tomar a forma do que Foucault denomina agonismo, uma progressiva e estratgica contestao junto com o poder baseada em incitamento e provocaomtuos, sem nenhuma esperana final de se livrar disso.[53] Como j assinalei, no se pode nunca ter aesperana de superar completamente o poder, pois toda superao por si s a imposio de um outroregime de poder. O melhor que se pode esperar uma reorganizao das relaes de poder, atravs de luta eresistncia, em modos menos opressivos e dominadores. A dominao pode portanto ser minimizada pelaconstatao de nosso necessrio envolvimento com o poder e no pela tentativa impossvel de nos colocarfora do mundo do poder. A clssica idia de revoluo como uma superao dialtica do poder a imagemque tem freqentado o imaginrio poltico radical deve ser abandonada. Precisamos reconhecer o fato deque o poder nunca poder ser superado inteiramente, e precisamos afirmar isso, trabalhando dentro dessemundo, renegociando nossa posio de modo a intensificar nossas possibilidades de liberdade.

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  • Esta definio do poder aqui construda, enquanto uma relao instvel e de livre fluxo dispersa pela redesocial pode ser considerada como uma noo noressentida de poder. Isso mina a poltica oposicionista emaniquesta do ressentimento, pois o poder no pode ser exteriorizado na forma do Estado ou de umainstituio poltica. No precisa existir nenhum inimigo externo para ns que nos defi na enquanto umaoposio e canalize nosso dio. Isso rompe a distino apolnea entre o sujeito e o poder central doanarquismo clssico e da filosofia poltica radical maniquesta. O homem apolneo, o sujeito humanoessencial, sempre habitado pelo poder dionisaco. Apolo o deus da luz, mas tambm o deus da iluso:ele confere descanso aos seres individuais... desenhando limites ao seu redor. Dionsio, por outro lado, afora que ocasionalmente destri esses pequenos crculos, rompendo a tendncia apolnea a congelar aforma em uma rigidez e frieza egpcias.[54] Atrs da iluso apolnea de uma vida e um mundo sem poder,est a realidade dionisaca do poder que rasga o vu de maya.[55]

    Ao invs de ter um inimigo externo, como o Estado, em oposio ao qual se forma a identidade poltica,devemos trabalhar em ns mesmos. Enquanto sujeitos polticos, devemos superar o ressentimento pelatransformao de nossa relao com o poder. De acordo com Nietzsche, isso s pode ser feito atravs doeterno retorno. Afirmar o eterno retorno reconhecer e com certeza afirmar positivamente o contnuoretorno da mesma vida com suas rudes realidades. Como isso a vontade ativa do niilismo, ao mesmotempo, a transcendncia do niilismo. Talvez do mesmo modo, o eterno retorno se refere ao poder. Devemosnos dar conta e afirmar o retorno do poder, o fato de que este sempre estar conosco. Para superar oressentimento precisamos, em outras palavras, querer o poder. Precisamos afirmar uma vontade de poder, naforma de valores criativos e afirmativos da vida, de acordo com Nietzsche.[56] Isso consiste em aceitar anoo de auto-superao.[57] Superar-se nesse sentido significaria uma superao das identidades ecategorias essencialistas que nos limitam. Como Foucault nos mostrou, somos construdos como sujeitospolticos essenciais de modos que nos dominam isso o que ele denomina subjetivao.[58] Nosescondemos atrs de identidades essencialistas que negam o poder e produzimos atravs dessa negao umapoltica maniquesta de absoluta oposio que apenas reflete e reafirma a genuna dominao a que talpoltica alega se opor. Isso ns observamos no caso do anarquismo. Para evitar essa lgica maniquesta, oanarquismo no deve mais contar com identidades e conceitos essencialistas, e em vez disso, afirmarpositivamente o eterno retorno do poder. Isso no uma realizao inflexvel, mas sim um positivismofeliz. caracterizado por estratgias polticas voltadas a minimizar as possibilidades de dominao eaumentar as possibilidades de liberdade.

    Se identidades essencialistas so rejeitadas, fica-se com o qu ento? Pode-se ter uma noo da polticaradical e da resistncia sem um sujeito essencial? Seria possvel, porm, perguntar a questo oposta: comopoderia a poltica radical continuar sem superar as identidades essencialistas; nos termos de Nietzsche, semsuperar o homem? Nietzsche diz: O mais cauteloso dos homens pede nos dias de hoje: Como o homemainda pode ser preservado? Zaratustra, porm, pergunta como o nico e primeiro a faz-lo: Como o homemdeve ser superado?[59] Eu defenderia que o anarquismo cresceria muito enquanto uma filosofia tica epoltica se evitasse as categorias essencialistas, abrindo-se para diferentes e contingentes identidades umps-anarquismo. Afirmar a diferena e a contingncia seria se tornar uma filosofia do forte, em vez do fraco.Nietzsche nos exorta a viver perigosamente, a abolir as certezas, a romper com as essncias e estruturas ea adotar o incerto. Construa suas cidades ao p do Vesvio! Mande seus navios para mares nuncamapeados![60] A poltica de resistncia contra a dominao deve ter lugar em um mundo sem garantias.Permanecer aberto diferena e contingncia, afirmar o eterno retorno do poder, seria tornar-se o queNietzsche chama o super-homem ou alm do homem. O alm do homem o homem superado asuperao do humano: Deus morreu: agora ns queremos que o Super homem viva.[61] Para Nietzsche osuper-homem substitui Deus e o Homem veio redimir uma humanidade mutilada pelo niilismo, afirmandojovialmente o poder e o eterno retorno. No entanto gostaria de propor aqui uma verso um pouco maisgentil, mais irnica do super homem para a poltica radical. Ernesto Laclau fala de um heri de um novotipo que ainda no foi criado por nossa cultura, mas cuja criao absolutamente necessria se nosso tempoest prestes a viver altura de suas mais radicais e alegres possibilidades.[62]

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  • Talvez o anarquismo possa se tornar uma nova filosofia herica, que no mais reativa, mas ao invsdisso, criadora de valores. Por exemplo, a tica do cuidado e a assistncia mtua propostas por Kropotkinpossam talvez serem utilizadas na construo de novas formas de ao e de identidades coletivas. Kropotkinprestava ateno no desenvolvimento de grupos coletivos baseados na cooperao sindicatos,associaes de todo tipo, sociedades de amigos e clubes, etc.[63] Como j assinalado, ele acreditava que issoera desdobramento de um princpio natural essencial. Todavia, talvez se possa desenvolver esse impulsocoletivista sem circunscrev-lo a idias essencialistas sobre a natureza humana. A ao coletiva nonecessita de um princpio de essncia humana para justific-la. Ao contrrio, a contingncia da identidade sua abertura diferena, singularidade, individualidade e coletividade que tica em si mesma.Assim, a tica anarquista de ajuda mtua pode ser tirada de seus fundamentos essencialistas e aplicadas auma idia aberta e no essencialista de uma identidade poltica coletiva.

    Uma concepo alternativa de ao coletiva pode ser desenvolvida a partir de uma rearticulao dorelacionamento entre igualdade e liberdade. Para grande mrito do anarquismo, isso rejeita a convicoliberal que igualdade e liberdade agem enquanto limites um para o outro e so conceitos basicamenteirreconciliveis. Para os anarquistas, igualdade e liberdade so impulsos ligados inextricavelmente, e no sepode conceber um sem o outro. Para Bakunin: S sou verdadeiramente livre quando todos os sereshumanos que me cercam, homens e mulheres, so igualmente livres. A liberdade dos outros, longe de limitarou negar minha liberdade, ao contrrio a sua condio necessria e sua confirmao. Eu me torno livre noverdadeiro sentido apenas em virtude da liberdade dos outros, de modo que quanto maior o nmero depessoas livres ao meu redor, quanto mais profunda, enorme e mais extensa for sua liberdade, mais profundae mais abundante torna-se minha liberdade.[64]

    A imbricao de igualdade e liberdade permite formar a base de um novo ethos coletivo, que recusa a ver aliberdade individual enquanto limite ao outro, que recusa a sacrificar a diferena em nome da universalidade,e a universalidade em nome da diferena. A tica anti-estratgica de Foucault pode ser vista como umexemplo dessa idia. Na sua defesa dos movimentos coletivos como a revoluo iraniana, Foucault disse quea tica anti-estratgica que ele adota consiste em respeitar quando algo singular aparece, e em serintransigente quando o poder ofende o universal.[65] Essa abordagem anti-estratgica condena ouniversalismo quando este desdenha o particular, e condena o particularismo quando este se realiza s custasdo universal. Desse modo, uma nova tica da ao coletiva poderia condenar a coletividade quando esta serealiza s expensas da diferena e singularidade, e condenar a diferena quando esta sucede s expensas dacoletividade. Esta uma abordagem que permite que se combinem a diferena individual e a igualdadecoletiva de um modo no dialtico, mas que retm entre eles um certeiro antagonismo positivo e afirmadorda vida. Implica uma noo de respeito diferena, sem invadir a liberdade de outros serem diferentes uma igualdade de liberdade de diferena. Em outras palavras, a ao coletiva psanarquista estaria baseadaem um compromisso em respeitar e reconhecer autonomia, diferena e abertura dentro da coletividade.

    Alm disso, talvez se possa conjeturar uma forma de comunidade poltica ou uma identidade coletiva queno restrinja a diferena. A questo da comunidade central para a poltica radical, incluindo o anarquismo.No se pode falar sobre ao coletiva sem ao menos colocar a questo da comunidade. Para Nietzsche, asmais modernas aspiraes radicais comunidade seriam uma manifestao da mentalidade do rebanho.Contudo possvel construir uma noo de comunidade livre de ressentimento a partir do prprio conceitode poder de Nietzsche. Para Nietzsche, o poder ativo a liberao instintiva individual de suas foras ecapacidades que nele produzem uma intensa sensao de poder, enquanto que o poder reativo, como japontado, necessita de um objeto externo para agir e para se definir como uma oposio a este.[66] Talvez sepossa imaginar uma forma de comunidade baseada no poder ativo. Para Nietzsche esse intenso sentimentode poder pode ser derivado do auxlio e benevolncia em relao aos outros, da intensifi cao dosentimento de poder de outros.[67] Assim como a tica da ajuda mtua, uma comunidade baseada navontade de poder pode ser composta de uma srie de relaes inter-subjetivas que envolvem ajuda e cuidadopelas pessoas sem dominlas e sem negar as diferenas. Esta abertura diferena e transformao de si e atica do cuidado poderiam ser as caractersticas especficas da comunidade democrtica do ps-anarquismo.Esta seria uma comunidade do poder ativo uma comunidade de senhores ao invs de escravos.[68]

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  • Seria uma comunidade que buscasse se superar transformando-se continuamente e deliciando-se com oconhecimento do seu poder para fazer isso.

    O ps-anarquismo pode ento ser considerado como uma srie de estratgias tico-polticas contra adominao, sem garantias essencialistas e estruturas maniquestas que condicionam e restringem oanarquismo clssico. Afirma a contingncia dos valores e identidades, includo a sua prpria, e afirma, emvez de negar, a vontade de poder. Em outras palavras seria um anarquismo sem ressentimento.

    Referncias

    Friedrich Nietzsche. On the Genealogy of Morality and others writings. Keith Ansell-Pearson (org.),Traduo de Carol Diether. Cambridge, Cambridge University Press, 1994, p. 52 O trecho aquiutilizado procede da verso em portugus: Friedrich Nietzsche. Genealogia da moral: uma polmica.Traduo de Paulo Cezar de Souza. So Paulo, Companhia das Letras, 1998. p. 62. (N.T.)

    1.

    Idem, p. 161.2. Ibidem, p. 12.3. Ibidem.4. Ibidem, p. 19. Trecho aqui utilizado procede da verso em portugus: Friedrich Nietzsche, 1998, op.cit., p.26. (N.T.).

    5.

    Ibidem, p 161.6. Ibidem, p. 21.7. Ibidem, pp. 21-22.8. Mikhail Bakunin. Political Philosophy: scientifi c anarchism. G.P Maximoff (org.). London, FreePress of Glencoe, 1984, p. 207.

    9.

    Karl Marx. Critique of the Gotha Program in The Marx-Engels Reader 2nd. Ed. Robert C. Tucker(org.). New York, W.W Norton & Co. 1978, p. 538.

    10.

    Karl Marx, After the Revolution: Marx debates Bakunin, 1978, op. cit., p. 545.11. Mikhail Bakunin. Marxism, Freedom and the State. Translation of K.J Kenafi ck. London, FreedomPress, 1950, p. 49.

    12.

    Mikhail Bakunin, 1984, op.cit., p. 228.13. Ibidem, p. 221.14. Nietzsche, 1994, op. cit., p. 61.15. Idem, pp. 62-63.16. Ibidem, p. 63.17. Thomas Hobbes. Leviathan. Oxford, Basil Blackwell, 1947, p. 83. Em portugus. Thomas Hobbes.Leviat. (Os Pensadores). Traduo de Joo Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. SoPaulo, Editora Abril, 1973. (N.T.).

    18.

    Idem, p. 82.19. Bakunin, 1984, op. cit., p. 165.20. Idem.21. Piotr Kropotkin. The State: Its Historic Role. London, Freedom Press, 1946, p.22. Bakunin, 1984, op. cit., p. 166.23. Idem, p. 239.24. Ibidem.25. Kropotkin, 1946, op. cit., p. 12.26. Bakunin, 1984, op. cit., p. 121.27. Idem, p. 212.28. Ibidem, p. 240.29. Ibidem, p. 157.30.

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  • Bakunin, 1984, op. cit., p. 156.31. Piotr Kropotkin. Ethics: Origin & Development. Translation of L. S Friedland, New York, Tudor,1947, p. 14.

    32.

    Idem, p. 45.33. Hobbes, 1947, op. cit., p. 120.34. Idem, p. 120.35. Jacques Donzelot. The Poverty of Political Culture. In Ideology & Consciousness, 5, 1979, 73-86,p. 74.

    36.

    Idem.37. Bakunin, 1984, op. cit., p. 224.38. Idem, p. 145.39. Ibidem, p. 172.40. Ibidem, p. 138.41. Ibidem, p. 248.42. Kropotkin, 1946, op. cit., p. 28.43. Idem, p. 17.44. O autor no apontou a obra especfica da citao da noo de real apresentada. (N. T.)45. Michel Foucault. The Subject and Power. In Hubert L. Dreyfus and Paul Rabinow, MichelFoucault: Beyond Structuralism and Hermeneutics. Brighton, Harvester Press, 1982, p.

    46.

    Nietzsche, 1994, op. cit., p. 28. Trecho aqui utilizado procede da verso em portugus: Nietzsche,1998, op. cit., p. 36. (N.T.).

    47.

    Michel Foucault. The History of Sexuality. Vol.I: Introduction. Translation of R. Hunter. New York,Vintage Books, 1978, p. 93. Em portugus: M. Foucault. Histria da sexualidade. Traduo de MariaThereza da Costa Albuquerque. Reviso tcnica de Jos Augusto Guilhon Albuquerque. Rio deJaneiro, Graal. Vol. 1, 1977; vol. II, 1984; vol.III, 1985. (N.T.).

    48.

    Michel Foucault. Discipline and Punish: the Birth of the Prison. Translation of Alan Sheridan.London, Penguin Books, 1991, p. 27. Em portugus: Michel Foucault. Vigiar e Punir: Histria daViolncia nas Prises. Traduo de Lgia M. Ponde Vassalo. So Paulo, Vozes, 1977. (N.T.).

    49.

    Michel Foucault. Power and Strategies. In Power/Knowledge: selected interviews and otherwritings 1972-77, Colin Gordon (org.), New York, Harvester Press, 1980, p. 141. Em portugus:Michel Foucault. Poderes e estratgias in Estratgia, podersaber (Ditos e escritos vol. IV). Org.Manuel Barros da Motta e traduo de Vera L. Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro, Forense Universitria,2003, pp. 241-252. (N.T.).

    50.

    Michel Foucault. The Ethic of Care for the Self as a Practice of Freedom. The Final Foucault, ed.,J. Bernauer and D. Rasmussen, MIT Press: Cambridge, Mass, 1988, p. 3. Em portugus: A tica docuidado de si como prtica da liberdade in tica, sexualidade, poltica (Ditos e Escritos Vol. V).Traduo de Elisa Monteiro e Ins Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro, Forense, 2004 (N.T.).

    51.

    Michel Foucault. On the Genealogy of Ethics. The Foucault Reader. Paul Rabinow (org), NewYork, Pantheon Books, 1984, p. 343. Em portugus: Sobre a genealogia da tica: uma reviso dotrabalho in Hubert Dreyfus e Paul Rabinow. Michel Foucault, uma trajetria fi losfi ca. Para almdo estruturalismo e da hermenutica. Traduo de Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro, ForenseUniversitria, 1995, pp. 253-278. (N.T.).

    52.

    Foucault. History of Sexuality. op. cit., p. 9653. Friedrich Nietzsche. Birth of Tragedy, in Basic Writings. Translation of Walter Kaufmann, NewYork, Modern Library, 1968, p. 72. Em portugus: F. Nietzsche. O nascimento da Tragdia. Traduode Jacob Guinsburg. So Paulo, Companhia das Letras, 1998. (N.T.).

    54.

    Cf. Allan Megill. Prophets of Extremity: Nietzsche, Heidegger, Foucault, Derrida. Berkeley,University of California Press, 1985, p. 39.

    55.

    Nietzsche, 1994, op. cit., pp. 55-56.56. Cf. Friedrich Nietzsche. Thus Spoke Zarathustra. Translation of R.J Hollingdale, London, Penguin,1969, pp. 28-29. Em portugus: F. Nietzsche. Assim falou Zaratustra. Traduo de Mrio da Silva. Rio

    57.

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  • de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1998.(N.T.). Foucault, 1982, op. cit., p. 212.58. Nietzsche, 1969, op. cit., p. 297.59. Friedrich Nietzsche. The Gay Science. Translation of., Walter Kaufmann, New York, Vintage, p.228. Em portugus: F. Nietzsche. A gaia cincia. Traduo de Paulo Csar de Souza. So Paulo,Companhia das Letras, 2001. (N.T.).

    60.

    Nietzsche.1969, op. cit., p. 297.61. Ernesto Laclau. Community and Its Paradoxes: Richard Rortys Liberal Utopia. In ErnestoLaclau (org.) Emancipations, London, Verso, 1996, 105-123, p. 123.

    62.

    Piotr Kroptokin. Mutual Aid: A Factor of Evolution. London, Penguin Books Ltd., 1939, p. 210.63. Bakunin, 1984, op. cit., p. 267.64. Michel Foucault. Is It Useless To Revolt?. In Philosophy and Social Criticism 8 (1) (1981), pp.1-9, p. 9. Em portugus: Michel Foucault. inutil revoltar-se? in Michel Foucault, 2004, op. cit.

    65.

    Cf. Paul Patton. Power in Hobbes and Nietzsche. In Paul Patton (org.) Nietzsche, Feminism &Political Theory. Australia, Allen & Unwin, 1993, p. 152.

    66.

    Idem, p. 156.67. Ibidem, p. 15468.

    Originalmente publicado em Ingls em 2005 com o ttulo original Anarchism and the Politics ofRessentiment no livro I Am Not A Man, I Am Dynamite: Nietzsche and Anarchism, organizado porJohn Moore pela Editora Autonomedia.Traduo do ingls por Beatriz Scigliano Carneiro.Publicado em portugus na Revista Verve n.14 em 2008.

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