A Vida Quotidiana Na Índia Antiga- Jeaninne Auboyer

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    para a lenda. Isto complica imenso a tarefa do historiador moderno, e redu-lo muitas vezes aassentar as hipóteses em deduções (*).. Outro facto estranho, cuja explicação é ainda prematura:enquanto a Índia possuía, muito antes da era cristã, o essencial da sua literatura sagrada sob aforma oral, que o carácter histórico de Buda no século VI a.C. não deixa qualquer dúvida, osprimeiros monumentos arqueológicos datados não são anteriores aos séculos III e II a.C. Operíodo histórico propriamente dito começa pois muito tarde, se bem que se não possa, de modoalgum, qualificar de proto-histórico o período anterior, visto que possui uma escrita que permanece,infelizmente, ainda hoje indecifrável... (*) Podem avaliar-se as dificuldades, lendo, num doscompêndios mais recentes consagrados à Índia a seguinte frase: «Eis a que ficaram reduzidos oshistoriadores da Índia (século IV a.C.): a construir a história sobre exemplos de gramática!» (J.Nadou. Histoire Universelle. Biblioteca da Pleiade. I. pág. 1454).

     A persistência das tradições e a lentidão da sua evolução prolongam, por vezes até à época actual,certas características que eram já as da civilização indiana anterior aos séculos III e lI. Não quenenhuma transformação se não tenha manifestado nos diferentes campos: é certo que asinstituições evoluíram, a própria sociedade não permaneceu no estado estático, e os costumesmodificaram-se pouco a pouco. Contudo, parte destas transformações efectuou-se quaseinsensivelmente, sem saltos bruscos nem revolução violenta; a falta de precisão histórica acentuamais ainda esta impressão, porque não permite definir com exactidão as datas de uma reforma oua aplicação de uma medida nova. Assiste-se, portanto, a uma justaposição de costumes

    pertencendo a estádios diferentes de evolução, perpetuando-se os mais antigos ao lado dos maisrecentes, e sem que reciprocamente se prejudiquem.

    Por todas estas razões, fomos levados a escolher um período excepcionalmente longo, quase ummilénio, como limites extremos do presente estudo. O que, noutro qualquer caso, poderia pareceruma garantia, é aqui uma necessidade: se tivéssemos encurtado estes limites, ou se noshouvéssemos concentrado num reinado só, não teríamos podido obter uma visão completa da vidaquotidiana na Índia antiga. Por extenso que seja este espaço de nove séculos (do século III a.C..ao século VII d. C.), não fica por isso menos compreensível; relaciona-se com o momento em que,no plano histórico, a Índia alcançou por duas vezes a unificação política de uma grande parte doseu território, o que implica uma organização administrativa e uma centralização mais bemdefinidas.No plano religioso, quer o bramanismo quer o budismo estavam ambos florescentes. Nodomínio artístico, é a época mais rica e a mais activa, aquela em que se erguem os mais belos

    santuários e mosteiros, em que se difundem as escolas e os estilos, em que a literatura profanatoma o seu carácter definitivo. Sobre estes dados, mais tarde, se edificará a Índia medieval. Jamaisse apagou das memórias indianas a lembrança desta grande e frutuosa época e são inúmeros ossoberanos que dela fazem seu ideal, a ela se referindo muitas vezes no seu próprio panegírico.

    Para descrever a vida quotidiana nesta época, dispomos de fontes preciosas e variadas: toda umasérie de textos técnicos e descritivos, de monumentos da história, o produto das pesquisasarqueológicas, a numismática, e epigrafia; enfim, os testemunhos estrangeiros contemporâneosdeste período, principalmente gregos, latinos e chineses. Estes variados documentos iluminam-sereciprocamente; e os baixo-relevos e as pinturas murais ilustram à maravilha certos textos que, porsua vez, facilitam uma melhor leitura daqueles. Entre os textos mais úteis, devemos citar osGrihiasutra, de origem védica (entre 400 e 200 a.C.?) que descrevem os rituais domésticos; comose pode facilmente verificar, estes não variaram nada, de ponta a ponta da tradição indiana. Umadas fontes mais divertidas é sem dúvida a recolha dos Jâtaka ou «vidas anteriores» de Buda, cujointeresse para a Índia antiga é análogo ao dos nossos «fabulários» para a Idade Média; a datadeles é imprecisa; é em todo o caso contemporânea dos baixos-relevos que os ilustram desde oséculo II a.C. Para a vida galante, o célebre Kamasutra é fundamental; a data dele oscila dosséculos IV e V ao VII. No que respeita ao rei, governo e administração, a arte militar, etc., podeconsultar-se o Artaçastra, cuja composição remontaria ao século IV a.C., mas que poderá ser umpouco mais tardio; no entanto, após trinta anos de pesquisas, não se sabe ainda se esta obra, decarácter excepcional, tratado para uso de príncipes, se reveste do aspecto ideal de umaconstituição fictícia ou, pelo contrário, descreve fielmente a estrutura de um Estado real.Mencionemos também a literatura profana, cujos fragmentos mais célebres se devem ao poeta e

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    dramaturgo Kalidasa, que se supõe ter vivido nos séculos IV ou V, talvez mesmo no VI século. Masa literatura da Índia é demasiado numerosa, para que se possa alongar aqui esta enumeração;encontrar-se-ão de resto as referências necessárias a seu tempo.

    Contudo, um reparo se impõe: como se depreende desta documentação, o retrato da Índia poderáparecer, a um leitor ocidental, menos realista do que idealizado. Não será, no entanto, de concluirdaí, demasiado apressadamente, que o conteúdo deste livro não passa de um reflexo teórico doque realmente existiu, mas deve ter-se em conta o carácter essencialmente tradicionalista dacivilização indiana. Até por causa desta característica, a divisão entre o real e o convencional épouco destrinçável, para não dizer, subtil. O espírito conformista dos indianos é imenso; elespossuem, sobretudo no tempo antigo, um gosto irresistível pela codificação, a classificação emtodos os campos, e uma verdadeira incapacidade para se afastarem da norma definida pelatradição.

    Por isso não parecia ilógico a um autor descrever uma cidade conhecida, uma personagememinente (e até histórica), determinada situação, um acontecimento notável, os própriossentimentos, não segundo a realidade que tinha nos olhos, mas de acordo com determinado tipo,devidamente aferido pela tradição, e correspondendo a prescrições rituais estabelecidas comcuidado. O que não quer dizer que os autores indianos fossem desprovidos do dom deobservação. Inúmeros poetas, inúmeros dramaturgos provaram que eles sabiam notar os

    pormenores realistas e empregá-los com conhecimento de causa: se, por exemplo, um se comprazem enumerar de maneira totalmente convencional os esplendores de uma capital imperial, indica,às vezes com uma frase, que, nas aldeias adjacentes, as margens das ruas eram lamacentas. Osautores anônimos de trovas, contos e anedotas são naturalmente mais inclinados a ornarem assuas expressões com toda a espécie de notas tomadas do vivo, às quais se vêm juntar asnarrações vividas dos peregrinos chineses, crónicas que se tornam saborosas pela mistura doconcreto e do fabuloso; o seu interesse provém do facto de, muitas vezes, concordarem com asinformações tiradas das fontes indianas.

    Deste modo podemos reconstituir uma Índia antiga não por aí além diferente da que conhecemos,feita simultaneamente de teorias, de princípios e de realidades onde o traço humano se destacaatravés da rede das regras e dos ritos. Se, mais vezes do que o desejaríamos, o dom deobservação dos indianos se deslocou do particular para o geral; se a Índia não produziu cronistas

    no sentido em que os entendemos, pode, contudo, assegurar-se que a Índia que vamos agoratentar apresentar sob o seu aspecto quanto possível quotidiano, está de acordo com a imagem queela própria nos transmitiu: imagem convencional, é certo, mas muito atraente pelas suas múltiplasfacetas, e realçada aqui e ali por pormenores pitorescos acrescentados às imagens tradicionais.

    Laly-Les Tourelles, 1959-1960.

    Capítulo Primeiro

    O Quadro Geográfico e Histórico

     As condições físicas (da Índia) foram com felicidade exploradas pelos homens, visto que, noquadro morfológico e climático oferecido pela Natureza, se originou uma população dequatrocentos e sessenta e cinco milhões de almas, dotadas de determinado número de traços decivilização comuns, que se encontram de ponta a ponta da Índia, em climas tão diferentes como osdo Pandjab e do Travancore. PIERRE GOURU, L'Asie, pág. 374

     A Índia estende-se desde o paralelo 37 (latitude de Sevilha) ao paralelo 8 (latitude da Serra Leoa):o mesmo é dizer que ela é mais um sub continente do que um país propriamente dito. Nesteimenso território, os climas são variados, desde as neves eternas à jângal tórrida; a fauna e a florasão por isso mesmo variadas, as raças e as línguas numerosas, testemunhando um povoamento

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    muitíssimo antigo e invasões ou infiltrações sucessivas.

    Protegida ao norte pelas intransponíveis barreiras do Himalaia e do Karacorum, orIada de costasimensas por vezes inóspitas, a península indiana pareceria predestinada a um lamentávelisolamento, se uma larga brecha a não tivesse aberto a noroeste pelo vale do Indo; além disso,não teria podido conhecer expansão cultural, se a natureza a não tivesse dotado da mais vastaplanície de aluviões modernos do mundo tropical: a planície indo-gangética, alvo da cobiça detodos os invasores, e berço da civilização indiana propriamente dita. Finalmente, ela teria sido umagrande extensão desértica, se não fosse atingida pelo regime das monções, que lhe trazem a vida,favorecendo as culturas. O seu próprio gigantismo se revelou tanto um factor de desmembramentopolítico, quanto uma garantia para a segurança e a originalidade das suas instituições. Mundofechado sem o ser verdadeiramente, a Índia é dotada de uma espécie de «magnetismo» espiritualque indianiza todos quantos vêm de fora e nela se instalam.

     As pesquisas arqueológicas, ainda pouco numerosas, revelaram, em todo o vale do Indo, aexistência de aglomerações urbanas muito desenvolvidas, semelhantes às do Afeganistão e doBaluquistão, e apresentando pontos de contacto com a Mesopotâmia e a Susiana, cerca de 2000a.C. e anteriormente. As relações com a Índia propriamente são ainda bastante hipotéticas. Foipelo fins deste período que devem ter aparecido os Arias (cerca de 1500 a.C.), cuja acção iria terconsequências espantosas para a Índia, visto que lhe trouxeram o sânscrito, a religião védica, e os

    principais elementos da sua cultura hist6rica.

    Há que atravessar bastantes séculos, antes de encontrarmos para além disto factos históricosexactos; de momento, supõe-se o estabelecimento - pela força - de novas tribos no solo da Índia, edepois a sua progressão para oriente e a sua instalação na planície gangética. Ao mesmo tempoelaborou-se enorme quantidade de textos védicos, de onde o pensamento indiano tirará a suaessência até ao nosso século xx: inegavelmente de inspiração iraniana, desta se afastará pouco apouco, desprezando cada vez mais a cosmogonia, para se interessar pelas especulaçõesmetafísicas. Na época chamada védica (1500-55 a.C.?), o Veda, «o saber», de onde o vedismo tirao nome, é um conjunto ponderável de textos, revelados ou não, onde se encontram quatro tiposprincipais de formas literárias: estrofes recitadas durante o sacrifício, fórmulas sacrificiais -comentadas ou não - melodias sagradas, fórmulas mágicas. Atribuídos a sábios lendários,transmitidos oralmente pelos bardos profissionais e pelos sacerdotes ou brâmanes, a forma deles é

    geralmente culta; muitos deles contêm alusões esotéricas. O sacrifício é o seu objecto principal econsiste essencialmente numa libação de soma, licor vegetal cujo nome está muito próximo dohoma iraniano, para que se possa negar certo parentesco de origem. Além disso, o panteão védicocontém ainda nomes muito aproximados dos do Avesta iraniano: Varuna que imita o AhuraMazdât, Mitra/Mithra, Vâyu/Vayu, Vitrahan/Verethragna, etc. Contém, porém, certos cultospopulares, tais como o Rudra-Siva, que depois terão grande difusão. Activos e apaixonados, osdeuses védicos cedem aos homens sob o efeito da palavra ritual (brahman); personificam as forçase os fenómenos da Natureza, e pode dizer-se que, sendo tudo objecto de temor ou de admiração,tudo é divinizado: o fogo, a aurora, os astros e o Sol, as águas, o céu, a terra, o trovão, os ventos,etc. Demónios, ainda englobados sob o nome genérico de asura - cujo nome suscita comparaçãocom os ahura do Irão -, inimigos dos deuses e dos homens, intervêm na vida quotidiana, eprecisam de orações e práticas mágicas; os manes dos antepassados, mal propiciados,transformam-se em fantasmas.

    O Universo, concebido em três zonas (Terra, espaço «intermediário» e céu),é uma noçãoimportante; a sua divisão tripartida conservará o seu valor até tardia época. A génese do mundo é,bastante vaga, se bem que seja geralmente considerada como uma operação mágica à escala docriador, que continua vago (o Purusha, corpo universal, «Eu» superior). O conceito da almaindividual não assume ainda a importância que terá nos comentários do vedismo, que darãoorigem à força nova desta religião, designada sob o nome de bramanismo. Existe um inferno,contrapartida da sobrevivência do defunto nos astros ou nos elementos; quanto à mansão celeste,é o «caminho que leva aos deuses», reservado àqueles que realizaram obras pias (ascese,sacrifício, dádivas, etc). No entanto, pouco se sabe sobre uma retribuição dos actos, um juízo,

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    castigos post mortem.

    Numa época difícil de fixar, o vedismo exigiu comentários por causa do seu crescente hermetismo:brahmana, upanishad, âranyaka vieram a constituir um novo Veda, o Vedânga, cuja exegesepreocupa ainda os filósofos da Índia contemporânea; desde então, o vedismo tornou-se arcaico, edeu origem a uma forma nova: o bramanismo, a religião indiana por excelência. O sacrifício cedeulugar ao ofício religioso, a sorte da alma individual tornou-se uma preocupação dominante. É omomento em que se põe o grande problema da alma individual e da sua identidade com o «Eu»universal, tema que será idéia fixa do indiano de todos os tempos posteriores, e para o qual todasas religiões, para não dizer todas as seitas da Índia, tentarão encontrar uma solução. É também omomento em que se constituem os rituais domésticos, em que a vida individual aparece finalmentecomo uma realidade, em que as regras da vida, a moral ou a ascese são propostas como umremédio contra as consequências do conceito da transmigração das almas ou samsâra comum atodas as crenças da Índia. Se a filosofia indiana começa assim uma carreira que será prodigiosa,não resta dúvida de que as pessoas vulgares vivem a sua existência ao modo calmo da vida rural,que é o da Índia gangética como das outras regiões. O ritual quotidiano, os trabalhos da terra, oscuidados com o gado, as festas e os ritos das estações marcam-Ihes a vida; têm a magia a seuserviço para ajudar a vencer os medos não justificados daqueles que estão submetidos aosfenómenos naturais sem deles conhecerem as causas verdadeiras, e que estão em situação delhes temerem os efeitos; nascem, trabalham e morrem de acordo com a sua humilde condição,

    apenas cuidosos em se preservarem contra a cólera dos deuses, de se premunirem contra amiséria e a doença. Auferem já a própria força na colectividade da família, do clã ou da casta,aguardando que venha juntar-se-Ihes a da corporação.

    Por cerca de 800 a.C. (?), a expansão dos Arias para Oriente da planície gangética desloca ocentro de gravidade das regiões conquistadas, do Pandjab para o Doab, ou seja a regiãocompreendida entre o Ganges e o Jumna, terra rica e chave estratégica, que será uma das regiõesmais disputadas de toda a Índia através dos séculos. Parece poder falar-se de reinos árias que sevão instalando na parte setentrional da Índia, o que suscitará lutas pela hegemonia entre os últimossubmetidos. Um deles, o Magadha (Bihar meridional), tenta consegui-Ia a partir do século VI a.C.

    Menos profundamente arianizado do que os reinos anteriormente conquistados, e até consideradocomo semi-bárbaro pelos Arianos, o Magdha vai ser o berço do primeiro grande império autóctone

    da Índia, o dos Maurias. Parece que pode atribuir-se ao estado de espírito que reinava nestasregiões recentemente conquistadas a eclosão de diversas reformas religiosas e sociais, cujodesenvolvimento é observado a partir do século VI. Com efeito, os Arianos ou árias procuravamprovavelmente impor o Bramanismo por toda a parte onde se tinham instalado. Ora, depois quesurgira, este enquistara-se num formalismo que a intransigência dos brâmanes completamenteanquilosara. Por outro lado, um isolamento cada vez mais severo da sociedade em castasfechava-a num quadro rígido cujos compartimentos permaneciam estanques. Finalmente, aortodoxia estava ameaça da pelo liberalismo dos novos conquistados. Neste meio imperfeitamentearianizado, um vento de revolta começou a soprar, no sentido de trazer um abrandamento àestrutura social e de propor uma moral; era uma reacção humana e cheia de coração que seopunha ao formalismo árido preconizado pelo bramanismo.

    Dois homens se tomaram os campeões deste movimento libertador: Vardhamâna, do clã dosLichvavis (Ganges inferior), que fundou a religião jaina (sob o nome de Mahavira, «Grande Herói»,e de Jina «o Vitorioso»), e Siddhârtha, «Alvo-Atingido», príncipe dos Sakyas (fixados nos confinsdo Nepal e do Magadha), que fundou o budismo com o nome de Sakyamuni, «o monge dosSakya», e que se chama vulgarmente Buda, «O Despertado», «O Iluminado» (pelo conhecimentoespiritual). Se bem que fossem ambos provenientes da casta guerreira, procuravam encontrar umasolução pacífica aos problemas que atingiam então uma fase aguda. A doutrina do Mahavirafundamenta-se no ascetismo, na teoria e na prática do ahimsa, proibição de prejudicar,não-violência bastante semelhante à que Gandi, de origem jaina, pregou com a autoridade que seconhece. Foi a doutrina do Buda a destinada à carreira mais prodigiosa, primeiro na Índia, depoisno resto da Ásia.

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     O ensino deste pregador apoia-se na afirmação de que toda a vida é sofrimento: não se podesuprimir este sofrimento senão pela extinção do desejo, fonte de vida e de dor. Prega a caridadepara com todos os seres e a igualdade dos indivíduos entre si. Condena quer a ascese quer oepicurismo, exageros nefastos, e preconiza a moderação em tudo, o que ele chama o «caminhomédio». Mais moral do que religião, o budismo antigo continua na linha do bramanismo, do qualnão rejeita mais o panteão que as concepções fundamentais da transmigração das almas com assuas diversas consequências. Contenta-se com oferecer ao ser virtuoso uma melhoria decondições nas suas re-nascenças sucessivas, até atingir o estado supremo do nirvana, libertaçãodefinitiva da cadeia dos re-nascimentos. A esperança e o conforto eram assim levados a todosaqueles que, colocados no mais baixo da escala social, eram considerados como inaptos paraconquistar uma melhoria da sorte futura. Tendo desaparecido pela idade dos oitenta anos, o Budalegava à Índia gangética os fundamentos de uma Igreja e de uma comunidade búdicas, animadaspor um espírito universalista, cuja expansão iria ser facilitada por diversos factores políticos ehistóricos, e cujas consequências teriam um efeito considerável.

    Esta revolução espiritual não se realizou contudo em círculo fechado, nos menos arianizadosmeios; é, muito mais, a cristalização de uma grande efervescência geral e no próprio seio dobramanismo se dão reformas, obrigado, para sobreviver, a admitir cultos mais personificados doque os do vedismo, e na maior parte de origem popular e aborígine: Siva, Skanda, Visnu, Krishna,

     Anhi, o herói Râma, e muitos outros, abrem o caminho ao teismo que pouco a pouco se verácrescer nos séculos seguintes.

    Tal parece ser a situação no tempo de Buda (cerca de 558- 478 a.C.?). No plano político, a Índiagangética está ainda dividida em numerosos reinos mais ou menos extensos. O Magadha é umdos mais poderosos, e os seus reis, convertidos ao budismo pelo próprio Buda, não têm ainda aenvergadura necessária para constituir um império. Quanto à Índia do sul, está ainda fora dasfontes históricas. Nesta época, o Noroeste da Índia sofre uma nova invasão estrangeira no seusolo: a força do Irão acménida atingia as portas da Índia, e conquistava a Bactriana, o Gandara e a

     Aracosia, que transformava em satrapias. O imperador Dario I invadiu o vale do Indo e neleinstalou uma destas satrapias (518-515): desde então ficou apto a utilizar o Oceano Indico(517-516); a Índia pagou-lhe um pesado tributo em ouro.

    Enquanto os reinos indianos do Nordeste disputavam entre si a hegemonia, e aí se expandia areforma budista, o Oeste recebia influências persas; se bem que se não possa medir comexactidão a força delas, é inegável que deixaram traços duradouros em diversos campos:administração, sistema métrico, escrita e, principalmente, arquitectura. Durante dois séculos, aspossessões indianas de Dario permaneceram no património imperial do Irão; isto explica porquepassaram motivos típicos da arte acménida para a temática plástica da Índia setentrional e central:haja em vista os capitéis persepolitanos adoptados pelos artistas budistas. A fama de Persépolischegou até à capital do Magadha, Pataliputra, onde o palácio foi inspirado, diz-se, no de Dario I.

    Vencedor de Dario III, em 331 a.C., Alexandre Magno da Macedónia conquistou o antigo impériopersa, província após província. Quando chegou às margens do Indo, dois séculos após Dario I -menos um decénio -, teve de enfrentar o poderoso exército de um soberano indiano Poros (sans.Puro), que reinava provavelmente no Pandjab. Ao mesmo tempo, um jovem general da Índiaoriental ter-se-ia revoltado contra o seu soberano (da dinastia dos Nanda, no Magadha) e, levadopor um ardor ambicioso, teria procurado o apoio do conquistador grego para destronar o rei deMagadha, seu senhor. b pelo menos o que sugere Plutarco (Alex., Lxii). Sejam quais forem asrazões - e são numerosas - que impediram Alexandre de atender este atraente projecto que lheteria dado acesso à Índia gangética, o general magadi teve de passar sem o auxílio dos invasores.Conhecido dos gregos com o nome de Andrakotos, Sandracotos ou Sandrakuptos, iriadesempenhar um importante papel no destino da Índia. Teria sido a recusa de Alexandre que ocolocou na oposição? A verdade é que logo após a morte do grande macedónio, em 323, teriaassumido o papel de «chefe da liberdade». Os prefeitos de Alexandre foram mortos e as suastropas obrigadas a retirarem-se (317-316). Três anos mais tarde, em 313-312, Sandrakoto subia ao

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    trono do Magadha, pondo fim à dinastia dos Nanda, e inaugurando, com o nome sânscrito deChandragupta, a dos Maurias. E quando, pouco antes de 305, Seleuco, fundador do reino e dadinastia selêucida, veio ao Pandjab, seguindo o caminho de Alexandre, Chandragupta possuía umverdadeiro império que se estendia do Indo ao Ganges, dominava o delta destes dois rios, e seapoiava num poderoso exército. A organização administrativa parece ter sido bem empreendida,vigiada por inspectores imperiais, e facilitada pelo bom estado das estradas que o soberano tinhaem grande cuidado. Não se tratava já, para Seleuco, de desprezar a aliança de um monarca tãopoderoso: abandonou-lhe os territórios para lá do Indo, e concedeu-lhe, diz-se, a mão de umaprincesa grega. A partir desse momento, a Índia entrou na órbita dos grandes impérios do tempo; asua capital, situada em Pataliputra ou Magadha, foi durante muitos decénios centro de umaembaixada grega que o embaixador Magasténio ilustrou, e cujas informações são preciosíssimas,embora em segunda mão.

     As conquistas territoriais de Chandragupta parece terem-se aumentado com a Índia central e umagrande parte do Decão no reinado do filho Bindusara, de quem nada de exacto se conhece. Masfoi um filho deste, o célebre Açoka, que levou a dinastia ao seu apogeu; as fontes gregas nadadizem a respeito dele e a tradição búdica conservou dele apenas um retrato insignificante.Felizmente, este imperador teve o cuidado de mandar gravar éditos por todo o lado, nos territóriosque governava, graças aos quais se pode reconstituir a sua personalidade e o modo da suapropaganda imperial.

    Tendo-se apoderado do poder por volta de 264 a.C., teria sido coroado em 260; oito anos maistarde, tendo conquistado de modo particularmente brutal o poderoso reino de Kalinga (que seestendia do delta da Mahanadi ao do Godavari), Açoka manifesta a sua tristeza e arrependimentono XIII édito, que merece ser largamente citado:

    “...Cento e cinquenta mil pessoas foram deportadas; cem mil lá foram mortas; várias vezes estenúmero pereceu...A tristeza assaltou o Amigo dos Deuses (Açoka) depois que ele conquistouKalinga. Com efeito, a conquista de um país independente é o morticínio, a morte ou o cativeiropara as gentes: pensamento que magoa imenso o Amigo dos Deuses, que lhe pesa. E isto pesaainda mais ao Amigo dos Deuses: os habitantes, bramanes, samanes ou de outras comunidades,os cidadãos que praticam obediência aos superiores, ao pai e mãe, aos senhores, a perfeitacortesia em relação aos amigos, familiares, companheiros e parentes, em relação aos escravos e

    criados, e a constância na fé, todos então são vítimas da violência, do morticínio ou da separaçãodaqueles que lhes são queridos. Até os felizes que conservaram os seus afectos, se acontece malaos amigos, familiares, camaradas ou parentes, sofrem com isso um golpe violento. Estaparticipação de todos os homens é um pensamento que pesa ao Amigo dos Deuses... Seja qual foro número dos mortos, dos falecidos e dos cativos na conquista de Kalinga, fosse esse número cemou mil vezes mais pequeno, pesa presentemente no pensamento do Amigo dos Deuses”. (trad.para o francês por Jules Bloch).

    Esta conquista sangrenta provoca em Açoka uma crise moral, e determina a sua conversão aobudismo, facto que iria ter uma incalculável repercussão na Índia. Daí em diante, segundo omesmo edital, Açoka quer que «haja, para todos os seres, segurança, domínio dos sentidos,equanimidade e doçura»; a vitória que ele «considera como primacial é a vitória da Lei». Esta lei étanto a sua como a do budismo e do bramanismo: é o dharma indiano, simultaneamente lei,religião e ordem moral: Finalmente, aconselha aos seus sucessores que não pensem em novasvitórias, mas pelo contrário a elas prefiram «a paciência e a leve aplicação da força».

     Açoka não se contenta com fazer gravar estes conselhos «nas montanhas e em pilares de pedra»:ordena que sejam proclamados ao som de tambor a toda a população. Durante os trinta e seisanos do seu reinado, instituiu pelo império uma organização administrativa muito firme, cujo papelparece ser tanto social quanto religioso; não poupa aos funcionários nem críticas nem pregações,e exerce sobre eles uma vigilância que penetra até no gineceu. Ele próprio não se cansa de fazerperegrinações aos lugares santos do budismo, organizando também excursões regulares depropaganda que servem ao mesmo tempo para inspeccionar o bom andamento das coisas

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    administrativas. O seu zelo para com o budismo não o impede, porém, de aconselhar a tolerânciamútua das seitas, nem que as favoreça quando calha. Enfim, tornou-se célebre pela caridade paracom os animais, renunciando pessoalmente aos prazeres da caça, e ordenando que fossemreduzidos os massacres de animais destinados à cozinha do palácio imperial: em vez de matartodos os dias «centenas de milhares», basta matar três: dois pavões e uma gazela, e ainda assim«nem sempre»; mais tarde, suprime completamente o uso da carne na sua mesa.

    O seu império englobava toda a Índia do Norte e do Noroeste, compreendendo nele uma parte do Afeganistão (uma inscrição dele foi recentemente descoberta em Kandahar), e estendia-se ao Sul,até ao país dos Andra (vales inferiores da Godavari e da Krisna). Mantinha relações diplomáticascom a Síria, a Cirenaica, o Egipto, a Macedónia, o Epiro ou Corinto. A unificação política da qual

     Açoka foi o mais augusto fautor estimulou o desenvolvimento económico de todo o país. Com ele,o budismo tornou-se um poderoso factor civilizador; difundiu-o em Caxemira, nas regiões gregas, eaté no Ceilão, onde enviou o filho (?) em missão. Paralelamente, as artes plásticas tiveram grandesurto, sendo empregadas pela primeira vez, parece, matérias duradouras.

     Após a sua morte, o império foi dividido. O Magadha, o Malva e a região de Ayodia passaram paraas mãos dos Sungas (176-64 a.C.?), depois para as dos Kanvas (64-50): o centro de gravidadedeslocou-se para Ocidente. Isto coincidiu com graves acontecimentos que se produziam aNoroeste, e que iriam ter profunda repercussão na própria Índia. Depois de Alexandre, os reinos

    indo-gregos tinham-se fundido na Bactriana, no Gandara (Pexavar), no Kapixa (Cabul), etc. Emconstantes lutas uns contra os outros, e alvo dos ataques dos Iranianos e dos Partos, um dos reisde Bactriana, Demétrio, empreendeu a conquista da Índia cerca de 189, e avançou até Pataliputra.O seu sucessor, Menandro, manteve-se aí apenas até 168, mas conservou um reino no Pandjab. Apartir desta época, as regiões de Cambaia e de Broach foram incluídas na rota comercial dosgregos. Parece que o primeiro dos Sungas, Puxiamitra (I76-I40?), teria repelido os invasores.Coube ao seu neto repeli-los para o outro lado do Indo.

     A importância dos Sungas e dos Kanvas não pode ser minimizada, embora não tenha podidoconservar o império mauria. A administração foi menos espectacular do que a de Açoka, mas podeafirmar-se que mantiveram uma elevada tradição cultural e artística nas regiões que dominaram; foina época deles que se cavaram as mais belas grutas antigas, e que se erigiram, entre outros, oscélebres monumentos (stupa) de Barhut e de Sanchi, cujos relevos historiados ilustram tão

    perfeitamente as descrições literárias. da vida do tempo.

    Por outro lado, o budismo fazia consideráveis progressos na evangelização: não só se expandia naÍndia, compreendendo nela as regiões do sul (particularmente a do Amaraviti), como atingia osindo-gregos até à Bactriana; o rei Menandro, por exemplo, ficou célebre na tradição búdica pelas«perguntas» que fazia ao sacerdote Nagasena, cujas respostas são um elogio do budismo.[1] Porseu lado, o bramanismo evoluía ao mesmo tempo para um teísmo cada vez mais acentuado, epara uma tradição épica, em perfeito acordo com a estrutura guerreira da Índia desse tempo.Seitas cada vez mais numerosas se fundam nesta época: adoradores de Siva, que o sacerdoteLakuliça em breve organizará; de Visnu que tende a tornar-se o símbolo místico da paz docoração; da sua encarnação, o deus bucólico Krisna, cujos adoradores recebem o nome debagavata; da sua outra encarnação, Rama, herói do grande poema épico, o Ramaiana. Que estaforma afectiva de religião indiana tenha podido agradar aos Ocidentais, temos disso prova concretano pilar, ornamentado com o pássaro mítico de Visnu, Garuda, e consagrado a Vasudeva-Krisna;foi erigido cerca de 100 a. C., não longe de Vidiça, em Besnagar, pelo grego Heliodoro, oriundo deTaxila, e embaixador do rei Antiálquidas junto do rei Sunga.

    Cerca de 80 a.C., o reino grego de Bactriana sossobra ante o avanço crescente de semi-nómadasvindos da Ásia central, estes por sua vez expulsos desta região pelo avanço dos Hunos daMongólia interior. Entre os recém-vindos, tribus cíticas, iranizadas e helenizadas pelos seussuzeranos partos, e conhecidas dos indianos pelo nome de Saka, invadem o Oeste da Índia.Simultaneamente, os Andras, cujo poderio não cessa de crescer no Decão, exercem uma pressãosobre os reis de Sunga. Estes vêem-se obrigados a ceder lugar à nova dinastia dos Canvas. A

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    Índia gangética volta a cair, dentro em pouco, na divisão política de que os Maurias a tinham tirado.Uma nova força, que vai desempenhar papel importante na Índia do Norte, está prestes a surgirnas regiões do Noroeste: a dos nómadas tocarianos vindos de Cotão (Ásia central) e apresentandoafinidades com o Irão oriental. Designados pelo nome de Kuxana, erguem um vasto império que seestende do Oxo à planície do Ganges, reunindo assim sob a sua autoridade as antigas possessõesdos indo-gregos e dos Sungas. O seu terceiro soberano, Kanisca[2] representa o apogeu destadinastia; reina em Matura, no Norte da India, como em Kapixi (no Kabul). Se bem que os Kuxanaestejam, quando da ascensão de Kanisca, instalados no Norte da India há um século, estemonarca fez-se representar vestido com a túnica iraniana, na cabeça um barrete cita, e compesadas botas de cavaleiro nómada. Porém, deu provas de magno ecletismo: tendo-se convertidoao budismo, foi o primeiro a fazer representar nas moedas a efígie de Buda, como também as dasdivindades iranianas; protege igualmente a religião jaina e o bramanismo; toma ao mesmo tempo otítulo imperial indiano de marajá «grande rei», o título parto «(rei dos reis» (rajatirajá) e o títulochinês de «filho do céu» (devaputra). Colocado no cruzamento das rotas comerciais mais activasdo tempo, reunindo sob uma soberania única regiões desenvolvidas havia séculos pelo helenismoe pela influência iraniana ao mesmo tempo que por tradições indianas, reinando sobre uma grandevariedade de populações habituadas ao cosmopolitismo, Kanisca deve ter possuído uma fortepersonalidade cujas tradições indianas, tibetanas, chinesas e mongóis recordam.

    Foi efectivamente uma época inteiramente dominada pelas trocas internacionais, quer de ordem

    comercial, quer intelectual. No domínio comercial, a actividade de Roma é um factorpreponderante, e a da China não o é menos: as estradas da Seda, que atravessam o continenteeuroasiático de lado a lado, atraem o lento caminhar das caravanas, e fazem intensificar-se otráfico dos objectos de luxo e de matérias-primas, nos seus percursos; por outro lado, a navegaçãode longo curso torna-se regular graças à utilização do regime das monções Emporia romanos sãomesmo estabelecidos em diversos pontos das costas indianas, particularmente não longe do actualPondichéri. A Índia beneficia destas várias condições: exporta ou importa, quer por mar quer pelasvias terrestres, e enriquece-se consideravelmente; a tal ponto, que uma lei de Vespasiano (69-79)interdita a exportação do ouro para a Índia, para acabar com o grave prejuízo que isso causava aotesouro do império. Finalmente, a Índia estabeleceu por sua vez feitorias nos países dos mares doSul, para onde estenderá um pouco mais tarde os limites extremos da sua expansão para oSudeste asiático (Bornéu, e as Celebes).

    Nesta atmosfera de opulência e de viagens incessantes, se desenvolveu a evolução religiosa eliterária da Índia. Se a parte setentrional do país beneficia da unificação política que a dinastia dosKuxana nela estabeleceu, o Sul não menos se desenvolveu e vê organizarem-se poderosos reinos,os de Pândia (região de Madura), dos Satacami (na região andra), dos Kerala (no Travancore), dosCola, na costa do Coromandel, com Tanjore por capital e daí em diante a Índia toda que seinscreve nos louros intelectuais desta época brilhante.

    Daqui resulta um desabrochar literário e artístico: o Ramaiana poderia ter sido completado por estaépoca, assim como a compilação do Mabarata; e o Bagava-Gita poderá ter sido redigido namesma altura; além disso, Acvagosha - que a tradição budista pretende ministro de Kanisca -escreve as suas obras dramáticas ou edificantes, das quais se encontraram fragmentos antigosnas areias da Asia central. Enfim, o sânscrito, velha língua dos Vedas, tomou-se uma língua viva, evulgariza-se a ponto de servir para os requisitos oficiais, literários, profanos e científicos, utilizadatanto pelos budistas como pelos adeptos do bramanismo.

    O budismo prossegue na sua transformação, e expande-se cada vez para mais longe; mongesindianos sucedem-se na China e no Turquestão, para realizar a obra empreendida desde o séculoI: a tradução dos cânones e dos textos principais do seu dogma e da exegese dele. A doutrinaevoluíra bastante, e toma uma feição mais mística, oferecendo à adoração dos fiéis entescaridosos, os bodisatva, alguns dos quais têm papel messiânico. Produz-se um cisma entre adoutrina antiga e a nova, provocada, por certo, pelas influências helenísticas, semitas, iranianas, emesmo cristãs, e depois maniqueístas que se desenvolvem no Noroeste.

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     A cisão, inteiramente pacífica, confirma-se no século II: o Teravada fica fiel às primeiras regras, oMaiana ou «Grande Veículo» toma a atitude de um dogmatismo negativista e apoia-se numadialéctica fechada, de que Nagarjuna (cerca de 150-200), oriundo do Decão central, se torna oardente prosélito. Ao mesmo tempo, um sincretismo se desenha entre o budismo e o bramanismo.Nestas duas religiões, as seitas multiplicam-se, e o misticismo aumenta: a teoria bramânica da«adoração confiante» (bacti) toma forma, enquanto - por reacção contra a confusão devida àefervescência filosófica do momento - se criam um a um os «sistemas» (darçana) ortodoxos dobramanismo.

    Finalmente, uma eclosão artística atinge todas as regiões da Índia: no Noroeste, são os estilosgreco-búdico e irano-búdico, herdeiros do helenismo; no Norte, a escola de Matura, algo iranizadapelos Kuxana e totalmente indiana, na linha de Barut e Sanchi; a Sudeste e no Marastra, os estilosandra, refinados e suntuosos. A arte budista está por toda a parte em pleno desenvolvimento,conservando o seu carácter narrativo, tão precioso para o estudo desta época. A arte brâmane, atéentão quase ausente da produção indiana, fez a sua aparição (sobretudo em Matura) assim comoa arte jaina. A arte profana, ainda mal conhecida, faz-se representar pelos admiráveis espécimesde escultura em marfim encontrados no Afeganistão por Joseph e Ria Hackin, em 1937-1940, nolocal da antiga Kapici, capital de Verão dos Kuxana.

     A esta brilhante época segue-se um desmembramento político, e o desenvolvimento intelectual

    parece sofrer um eclipse. Uma nova hegemonia, a dos Guptas, desenha-se cerca de 320 (?): comono tempo dos Maurias, o movimento tem origem em Magada, terra santa do budismo, na velhacapital imperial de Pataliputra. Pouco se sabe do primeiro soberano da nova dinastia,Chandragupta, salvo que ele deve ter estendido bastante as suas conquistas, para tomar o títulode imperador (marajadiraja). Este reinado era o prelúdio de uma linhagem valorosa que iria originaruma autêntica idade de ouro da civilização indiana.

    Filho do precedente, Samudragupta (335-375?) aumenta o seu território e pratica com inteligênciao método indiano e feudal que consiste em ligar a si como vassalos os vencidos,restabelecendo-os nos respectivos tronos. Deste modo anexa trinta e cinco estados, e o seupoderio estende-se na maior parte da Índia do Norte e do Centro, reconstituindo quaseinteiramente o império de Açoka, cuja recordação continua viva; foi com plena consciência que osGuptas se esforçaram por imitá-lo: não é por um acaso, sem dúvida, que o primeiro imperador usa

    o mesmo nome do avô de Açoka, fundador da dinastia dos Maurias. E é com desígnio bem claroque Samudragupta utiliza uma das colunas erigidas por Açoka, perto de Alaabade, para nelamandar gravar o seu próprio panegírico e a enumeração das suas conquistas. De resto, apesardos séculos decorridos, os testemunhos desse «grande século» continuam visíveis, sobretudo opalácio de Açoka, em Pataliputra, que só será destruído em 411. Se é sem dúvida natural paramonarcas ambiciosos o vangloriarem-se deste modo de reinar no reino mais prestigioso da Índia,não menos isto sublinha o desejo de uma continuidade bem estabelecida na linha tradicional dacivilização indiana; e não será sintomático ver, mil e seiscentos anos mais tarde, a moderna UniãoIndiana escolher como armas nacionais o célebre «pilar de Açoka» decorado com leões segurandoa Roda da Lei, e encontrado em Sarnate?

    O império gupta cresceu ainda sob Chandragupta II (cerca de 375-414), chamado «Sol doHeroísmo» (Vicramaditia), para o Oeste (Malva, Gujarate, Katiavar) e o Sul (para lá de Narbuda);teria, além disso, anexado a Bactriana a Noroeste, e Bengala a Leste. O seu reinado marca, semdúvida, a época mais brilhante da literatura sânscrita clássica, representada por Kalidasa, cujoteatro está actualmente traduzido em todo o mundo. A arte plástica atinge então um extremorefinamento e uma notável unidade de estilo; um dos conjuntos mais preciosos desta época éconstituído pelas pinturas murais com que os reis Vakatakas, vassalos de Chandragupta II (eparentes dele pelo casamento) dotaram os mosteiros budistas de Ajanta, no Maraxtra. (séculoV-VI). A tolerância religiosa é levada ao máximo, e permite a floração de todas as seitas. Obudismo está maduro para um desenvolvimento filosófico que os dois mestres Asanga eVasubandu representam (século VI ou V). O comércio atinge o seu máximo de intensidade nosmares do Sul, abrindo caminho a uma expansão ultramarina da cultura indiana, a tal ponto activa,

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    que fará eclodir, nos séculos seguintes, as mais belas civilizações do solo indochinês e javanês.

    No reinado de Kumaragupta I (cerca de 414-455), filho e sucessor de Chandragupta II, a dinastiaatingiu o seu apogeu. Infelizmente, uma nova ameaça surgira nas fronteiras Noroeste do império: ados Hunos. O filho de Kumaragupta, Skandagupta (455- -467?) conseguiu detê-los. Parece que,desde então, certa confusão reinou na família imperial, levando talvez a novo desmembramentoterritorial. Quando as hordas bárbaras, depois de atingirem uma força armada formidável,desembestaram pelo vale do Ganges, mais ou menos em 485, os Guptas não conseguiramsustar-lhes o avanço devastador, apesar dos actos pessoais de corajoso sacrifício.

    Durante cinquenta anos, sucederam-se cenas incríveis; os mosteiros budistas, as universidadesque eram a glória da civilização indiana foram arrasados, os religiosos perseguidos; asdeportações e os morticínios foram aos milhares. O imperador Budagupta (475-494?) foi expulsodo Malva, e os terríveis invasores, primeiramente chefiados por Toramana, depois pelo filho, ocruel Miirakula (cerca de 500-540) chegaram até Magada, acumulando ruínas e destroços na suapassagem. A dinastia dos Guptas contudo sobreviveu, mas tão diminuída que os seus príncipesnão mais passaram de chefes de Estado locais. Enquanto os Guptas sofriam deste modo aperseguição dos bárbaros hunos, os reinos do Decão fortaleciam-se sem detença; especialmenteos Palavas, na região tamul (Kanchipurão) - cujo rei Visnugopa é contemporâneo deSamudragupta -, e os Chaluquias ocidentais (Badami) que perpetuam no Maraxtra o impulso

    cultural e artístico dado pelos Vakatakas, especialmente em Ajanta. O enfraquecimento dos Guptapermitiu por outro lado aos estados do Norte e do centro consolidar o seu próprio poderio: entreoutros, o de Valabi no Oeste (Katiavar, e região de Sura e de Broach) e o de Tanesvar, situado naextremidade ocidental do Dabe, de que Kanauje se tornou a capital, sempre ardentementecobiçada.

    Coube a um príncipe de Tanesvar, Harcha (605-647) reagrupar a Índia do Norte e do centro sobum domínio único, pela última vez, antes da época medieval. A sua personalidade é mais bemconhecida do que a dos outros soberanos indianos, graças às narrativas que o peregrino chinêsHiuan-tsang nos deixou. Está de resto completamente na linha tradicional da Índia: eclético etolerante no plano religioso, protector da cultura espiritual, e possivelmente o autor de várias peçasde teatro e de dois hinos budistas de grande perfeição. Bana, o último, no tempo, dos romancistassâncritos, era poeta da corte dele, seu favorito e seu bardo. No campo administrativo, Harcha

    perpetua a tradição de Açoka, assegurando desse modo a continuidade da civilização indiana seminterrupção, desde os princípios da sua história. Por efémero que tenha sido - uns quarenta anos -este último ressurgimento político e cultural (antes do afundamento que lhe sucederá) não menosgarantiu a sobrevivência da brilhante época dos Guptas, não só através da Índia inteira, comoainda nas regiões ultramarinas, onde o estilo gupta teve prolongadas ressonâncias. Harchamanteve, com sucesso, as relações diplomáticas dos seus predecessores, com a China e a Ásiacentral; monges estrangeiros vieram à Índia visitar os lugares santos do budismo, e instruir-se ouensinar nas universidades reconstruídas após a passagem dos Hunos. O comércio retornou à suaactividade. Em resumo, o engrandecimento da Índia imperial estava restaurado.

    Sê-lo-ia por pouco tempo: logo após a morte de Harcha, o seu império foi desmantelado desta vezpara sempre. Reinou a anarquia. Voltara-se uma página: eis porque o nosso exame da vidaquotidiana da Índia antiga se detém por cerca de 650. Não que a civilização indiana tenha sidointerrompida com o golpe; mas porque a ausência de um poder central não permite já falar de umaúnica Índia: a história passa aos planos locais, e poderá dizer-se daí em diante, «as Índias».

    Todavia, a sociedade conserva o carácter que lhe era peculiar havia mais de um milénio: seexaminarmos documentos respeitantes à época Sunga, à Gupta, ou à Idade Média, encontra-se amesma base feudal, a mesma divisão por castas e por corporações, os mesmos rituaisdomésticos. As diferenças dizem respeito, sobretudo, às modas de vestuário, alguns costumespopulares, e às modalidades religiosas e legislativas. O resto permanecerá na linha tradicional: apessoa do rei, a pompa que o rodeia, os seus deveres ou os seus prazeres, a descrição da capital,seja ela qual for, a mentalidade dos indivíduos, parecem idênticos aos do tempo antigo. E como

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    haveria de ser de outro modo, se as famílias ortodoxas do bramanismo vivem no século XX,apoiadas em princípios que foram os dos antepassados desde tempos imemoriais? Longe dedeverem ser considerados como arcaicos, estes princípios mostraram-se a maior garantia daperenidade da civilização indiana, apesar das vicissitudes a que, em seguida, foi submetida.

    DatasFactos Históricos

     Arte e Literatura

    -3500-3000Civilização do Baluquistão

    -2500-2000Civilização do Vale do Indo

    -1500Invasão dos indo-europeus no PendjabComposição dos Vedas - Rigveda

    -1400

     Atharvaveda

    -1300

    Iajurveda branco

    -1000-800Indo-europeus no DoabBramanismo: Satapata-bramana: os mais antigos Upanichades

    -558Nascimento de BudaO Budismo e a religião jaina.

    -540Nascimento de Jina

    -538Reino de Magada

    -518-515Conquista da Bacia do Indo por Dario I

    -478Morte de Buda

    -468Morte de Jina

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     Séc.IV

    -331 Alexandre Magno, da Macedônia, vencedor de Dario III.Gramático Panini

    -327-325Campanha de Alexandre detém-se no Puru (no Pandjab)

    -323Morte de Alexandre

    -322O Mauria Chandragupta

    -317-316

    Derrota dos Gregos no Noroeste

    -313-312Chandragupta Mauria, rei de MagadaMegasténio na corte de Pataliputra

    -305Seleuco trata com Chandragupta

    -289Chegada ao poder do Maurya Açoka

    -264Chegada ao poder de Açoka

    -260Coroação de Açoka

    -251 Açoka conquista Kalinga

    -250 Açoka converte-se ao budismoColunas comemorativas e éditos imperiais

    -227-226Morte de Açoka

    -189

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      Demétrio invade a Índia

    -176 Advento do Sunga Puxiamitra (até cerca de 140?)

    -168O Rei Menandro retira-se do Magada no Pandjab (até cerca de 145)

    -150

    Os Stupa de bahut e de Sanchi - Filósofo budista Nagasena - o Milina Panha

    -130Invasão dos Iuechi na Bactriana

    -100

    Coluna de Heliodoro em Besnagar

    -90-80Invasão dos Sacas (Indo-citos). Derrocada dos reinos gregos na Bactriana.O gramático e o filósofo Patanjali (autor do Maabashia)

    -70Queda dos Sungas e dos Kanvas. Ascensão dos Andras do Sul.

     A Vedika de Bodgaia. Santuário do convento de Baja

    Era Cristã

    30Começo do poderio dos KuxanasOs Torana de Sanchi

    78Era Saca. Extensão do poder dos Kuxanas da Índia

    100

    Depois do cisma budista, expansão do Maaiana

    125O Satacarni (Andra) Gotamiputra, vencedor dos sábios do MaarastraEscola de Matura e de Amaravati. Acabamento do Ramaiana e da compilação do

    Maabarata.Begram de Kapixi. Redacção do Bagavad-Gita. Dramaturga Acvagosha.

    200

    O filósofo budista Nagarjuna

    300

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      As estações arqueológicas de Nagariunaconda e de Goli

    320 Ascensão do Gupta Chandragupta I

    335-375Samudragupta. No Decão, sruge o Palava Visnugopa“O Carrinho de Terracota” (Mricacatica) 

    375-414Chandragupta II. No Maaratra, os Vatakata, seus vassalos.O “belo estilo” de Ajanta. Os filósofos Asanga e Vasubandu. O poeta e dramaturgo Kalidasa.

    414-455Kumaragupta I

    455-467(?)Scandagupta

    475-494(?)Budagupta

    485Os Hunos devastam o Índia do Norte. O Huno Toramana

    490Início do reino de Valabi

    500-540O huno Miracula no Magada

    605-647Harcha de KanauiO poeta Bana. O peregrino budista Hiuantsang (630-644). A estação de Mavalipurão

    --------------------------------------------------------------------------------

    [1] Milindapanha, ou As Perguntas do Rei Milinda, nome Pali do rei Menandro.

    [2] As Datas são hipotéticas. A última teoria, devida a Roman Ghirshman, dá-lhe como limites asdatas 144-185.

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    Editora Shu apresenta A VIDA QUOTIDIANA NA ÍNDIA ANTIGA 

    Primeira Parte (2) Jeaninne Auboyer Rio de Janeiro, 2002. 

    Capítulo SegundoA Estrutura Social e os seus Princípios Religiosos Aqueles que não realizam os trabalhos próprios das suas castas são chamados os destruidores de obras poraqueles que vivem na lei dos «estádios de vida» (açrama).Vaiupurana, VIIISe a história política da Índia é feita de conquistas territoriais e de alternativas de períodos anárquicos e deunificações imperiais, dela não se pode dissociar a evolução religiosa que teve lugar tão preponderante na suaatitude geral. Em nenhuma outra civilização, talvez, a religião esteve tão intimamente ligada à direcção dosnegócios públicos e ao comportamento humano. É que ela surge, na Índia antiga, como a própria base da

    estrutura social e como sustentáculo da colectividade indiana. Na época de que nos ocupamos, há muito estão terminados os tempos védicos, em que o sacrifício constituía amanifestação primordial da religião, e em que o erro de ritual se apresentava como pecado grave. Haviamuitos séculos já, que a sociedade indiana tinha em comum os grandes princípios do bramanismo, aos quais o

     budismo trouxera a correcção de uma moral à escala humana.Estes princípios repousam na noção do drama no qual a alma individual (atmã) mergulha: se bem que a noçãode alma esteja sujeita a inúmeras variantes segundo as escolas, esta é concebida, desde os Upanichades, comode natureza idêntica ao «Ele» universal. Esta revelação capital movimentou toda a especulação posterior.Esquematizando um pouco, pode dizer-se que esta alma individual é inexoravelmente arrastada num ciclo derenascimentos sucessivos (samsara), que é determinado pelo acto (Karmã). O karmã é concebido como oefeito de actos passados, a condição dos actos futuros; liga-se à alma e nela provoca alegrias e sofrimentos,levando-a à recompensa ou ao castigo. Um acto meritório diminui a soma dos re-nascimentos futuros; umacto mau aumenta-a. Este princípio foi admitido por todos os sistemas filosóficos da Índia, que o glosaram até

    ao infinito. Cada um tentou propor uma solução para esta lei: uma pela aquisição do saber espiritual, pelaascese ou pela mística, os outros pela moral, a maior parte pelo dom da caridade. Por seu turno, o budismomais do que qualquer outra, assenta numa doutrina de salvação e observou uma atitude original que consistiaem negar a realidade do atmã, conservando a noção do Karmã, cujo efeito não se repercute no indivíduosenão em cada re-nascimento de um ser vivo. Daí tira a sua teoria das causalidades, segundo a qual osofrimento não pode ser abolido senão pela supressão do desejo, que é por sua vez a gênese ou a conservaçãodo karmã.As consequências do karmã não são limitadas à ordem moral ou escatológica: aplicam-se à ordem universalinteira, ou darma, e, conseqüentemente, à estrutura social do mundo ário, que o resume e se funda numadivisão de castas. Esta noção não aparece nos textos védicos mais arcaicos, mas não está em dúvida que os

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    Árias a impuseram pouco a pouco, codificando-a cada vez mais, a fim de manter uma distinção racial - paranão dizer racista - entre a sua própria raça reputada pura e a das populações cujos territórios tinham invadido;uma confirmação desta tentativa parece ser dada pelo nome de varna, cor, com que se designam os gruposdeste modo catalogados.

     No tempo do bramanismo «clássico», a sociedade indiana regula-se pelo darma, que é simultâneamente umestatuto, a lei, a ética e a religião, e cuja fonte é o Veda. A divisão da sociedade em castas adquiriu, desdeentão, uma rigidez a que a noção de karmã acrescenta um carácter terrível, senão desesperador; por causa doseu karmã, o indivíduo subordinou-se a uma casta determinada, e, como tal, ficou restringido às funções e àsobrigações inerentes a essa casta. As consequências de tal lei são por vezes graves no plano individual, e é

     precisamente contra as suas repercussões que os aspectos humanitários do budismo se levantaram, opondo aessa classificação de facto o valor individual, a pureza do coração, a nobreza dos sentimentos. Era pregar umaautêntica revolução social cujos resultados só poderiam parecer funestos e odiosos aos olhos dos hindúsortodoxos. Porque a atitude budista não atingia apenas a ordem social, mostrando à evidência a disparidadeentre os privilegiados e os deserdados, mas ainda alterava as noções mais enraizadas da pureza racial, econsequentemente do dogmatismo sacerdotal.Tradicionalmente, as castas são quatro: a dos brâmanes ou sacerdotes, a dos shatrias ou guerreiros e nobres, ados vaicias ou «homens livres», e a dos sudras ou classe servil. As três primeiras têm direito ao Veda, aquarta é dele excluída, pertencendo todavia, como as outras, ao darma. Os brâmanes e as shatrias constituemas duas classes dirigentes, e dividem entre si a soberania espiritual e temporal. Todos aqueles que não

     pertencem a qualquer destas quatro castas estão pois fora do sistema, e não têm, por assim dizer, qualquer

    existência social. Finalmente, são atribuídas a cada casta funções bem definidas: aos brâmanes ensinar o Vedae sacrificar, aos shatrias, proteger o povo e estudar o Veda; aos vaicias, trabalhar; aos sudras, servir. Oscontactos e os casamentos entre pessoas de casta diferente são proibidos. Mas, tal como em outros campos, hádistâncias entre a teoria e a prática, e parece que a Índia brâmane não conseguiu nunca manter estes princípiosrigorosamente, e que teve de, a seu tempo, conformar-se com os factos.

    Os BrâmanesPor definição «possuidor do brâmane», isto é, o poder sagrado graças à fórmula ritual (brâmane), sãosacerdotes que estudaram o Veda, fundamento de todo o conhecimento. Autorizados a sacrificar nos temposvédicos, são ainda designados na época «clássica» para celebrar os ofícios religiosos, por eles e pelos outros.Têm também o poder de combater eficazmente qualquer influência maléfica causada por um erro ritual, aindaque venial. Em vista disso, estão aptos para ensinar o Veda, a conceder dons e a recebê-los (cf.  Manu, I, 88 e

    seg.). Numa palavra, são destinados a levar uma vida religiosa, intelectual e santa, rodeados de respeito,sobre-carregados pela dignidade de uma ascendência pura, e em princípio liberta da preocupação de umganha-pão. O celibato não lhes é imposto, pelo contrário.O carácter sagrado da função deles permite-lhes que beneficiem - até nos territórios de predominância budista- de grande número de prerrogativas e excepções, Têm assim o privilégio de receber, individualmente oucolectivamente, doações ou domínios de importância por vezes considerável. Ora a doação, na Índia antiga, éuma instituição imemorial que designa, em benefício do doador, determinada recompensa nesta vida e nasseguintes; não é apenas considerada como uma obrigação, mas também como a mais elevada maneira desaldar a dívida que todo o ser contrai para com deus pelo simples facto de nascer. Eis porque os brâmanesnunca deixaram de lembrar a virtude da doação. Mas, prudentemente, a legislação não admite em geral que odoador deserde completamente a família em proveito dos brâmanes. Nem por isso deixam estes de recebersubstanciais bens, entre os quais a «dádiva da terra» é considerado como o melhor de todos, porque «livra detodos os pecados». Foi deste modo que os brâmanes entraram na posse de vastos domínios de que recebiam as

    rendas; tinham o direito de os mandar cultivar por escravos ou servos; e recebiam também construções públicas e privadas, como aldeias inteiras. Estavam por outro lado isentados de impostos, porque os pagavam«sob a forma de actos piedosos».Este mesmo aspecto sagrado que lhes é inerente impede que sejam condenados à pena de morte, à tortura ou aqualquer castigo corporal. A maior penalidade que lhes pode ser aplicada é ser-Ihes cortado o rabicho: istonada tem de mero castigo, e é um gesto simbólico de profundo alcance: este rabicho, que eles usam enoveladono cimo ou ao lado da cabeça, é o sinal visível da iniciação brâmane, e conservam-no intacto durante toda avida depois que foram alvo, aos três anos, da ritual tonsura (chuda-karma). A supressão deste rabichoequivale, portanto, a proclamar a sua exclusão da casta brâmane, e esta penalidade arrasta consequênciasmedonhas: esta excomunhão condena aquele que dela foi objecto a ser posto fora da lei; para sempre

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    desenraizado, expulso de todo o lado, repudiado por todas as castas, só tem o recurso de expatriar-se. É umamorte social, tanto quanto moral.[1] Inversamente, um mal causado a um brâmane é certamente castigadocom grande severidade.Muitos dos brâmanes são dignos do respeito de que são rodeados; levam uma existência simples e piedosa,desprezam os bens materiais e cumprem caritativamente os deveres da sua casta. São mestres nas aldeias, ouentão ensinam nas universidades, ou até em qualquer ermitério silvícola; aí, em humildes cabanas de bambu,consagram-se aos seus deveres religiosos, à meditação e ao ensino, usufruindo com toda a simplicidade dosencantos e austeridades de uma vida frugal mas poética, na intimidade dos animais selvagens que o seucarinho domestica. Mas, ao lado destes brâmanes que, obscuramente e sem jactância, cumprem com real

     pureza de coração obrigações da sua casta, as fontes literárias assinalam outro tipo :de brâmanes infinitamentemenos respeitáveis: aproveitando-se da ciência mágica que adquiriram no estudo de certos textos védicos ou

     bramânicos, não hesitam em explorar a credulidade e o espírito supersticioso do povo e ganham a vida lendo asina ou entregues a práticas da feitiçaria. São autênticos charlatães que se encontram principalmente noscampos; se são desprezados mais ou menos abertamente, é de crer que também sejam temidos.Entre estes dois extremos, há uma variedade imensa de brâmanes que exercem ofícios ou profissões semrelação com o seu carácter sacerdotal; actores, mantenedores de casas de jogo, pseudo-médicos, colectores deimpostos, capitães do exército, directores de empresas de transportes[2], espiões, até às vezes trabalhadoresassalariados. Há-os até trabalhadores do campo e carniceiros, se bem que estas duas profissões sejamdesaprovadas pela ortodoxia brâmane, porque dizem respeito à vida dos animais e dos animáculos.[3] É

     possível que esses se entreguem a profissões incompatíveis com a pureza da casta brâmane, porque vivem

    numa sociedade de maioria budista e se vêem obrigados a ganhar a vida sem esperar receber as tradicionaisdoações. A isso são autorizados pela lei que cada casta pode aplicar em caso de «necessidade», e que permiteaos indivíduos exercer profissões normalmente reprovadas. É igualmente possível que as narrativas budistasexagerem as suas críticas, e dêem livre curso às suas prevenções contra uma casta detestada no meio budista.

     No entanto, os piores defeitos deles não são por certo estranhos à opinião desfavorável que se tem dos brâmanes: a sua arrogância, devida ao orgulho da pureza da casta, a hipocrisia e as acções equívocas de que setornam às vezes culpados, a imunidade de que gozam até nos tribunais, tudo isto só gera rivalidade das outrascastas, e aumenta a reprodução dos homens sinceramente virtuosos. A estas críticas devemos algunssaborosos contos[4] que não devem fazer-nos esquecer, em todo o caso, os grandes brâmanes, cujo valorintelectual e a alta moralidade honraram a sociedade indiana, mantendo-a em elevada tradição. Alguns delesdesempenharam importante papel na orientação do reino, ocupando altos cargos na corte e conservando - dereinado para reinado - a função de capelão real (puroíta), até junto de soberanos budistas.

    Os Nobres-guerreirosA segunda casta detém as funções de governo. Constitui uma autêntica aristocracia, feliz ou não, quesubstituiu a antiga nobreza proveniente dos clãs. Talvez de início se reduzisse ao rei e à família, à sua corte eaos vassalos, mas, no tempo que estudamos, a denominação de shatria está largamente difundida, e já não háuma aplicação estritamente reservada àqueles que praticam as armas e desempenham o papel de guerreiros.Este carácter essencialmente militar persiste contudo na educação que lhes é dada, porque, além da ciênciavédica, lhes ensinam o manejo das armas, e desenvolvem neles as aptidões hereditárias para o comando. Istodesigna-os para ocupar postos de governadores, generais, administradores ou de altos funcionários.O rei pertence, na maior parte das vezes, a esta casta. É o  shatria por excelência, aquele que reina e governa,aquele que conquista e que mantém a ordem. Por isso a casta dos shatrias é considerada - sobretudo nosmeios budistas - preeminente; ela é, com efeito, concorrente com a dos brâmanes, mas os seus membrosreconhecem geralmente a superioridade dos brâmanes por causa do seu carácter sacerdotal.

    Se a corte do rei é muito naturalmente recrutada entre os shatrias, se o exército é largamente composto deles,muitos destes nobres não exercem a profissão militar e estão autorizados a ganhar a vida de diversasmaneiras, entregando-se ao comércio ou ao artesanato. Esses conservam, como os outros, os privilégiosinerentes à sua casta, e dos quais os mais típicos são talvez as duas formas de casamento aos quais têmespecial direito: a que consiste em raptar a noiva - longínqua reminiscência dos raptos durante as campanhasmilitares - e aquela em que a união é feita com o vencedor de um concurso, do qual a maior prova é umtorneio de tiro ao arco.

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    Os “Homens Livres” Se bem que os vaicias ou «homens livres» tenham direito, como os brâmanes e os shatrias, ao ensino doVeda, e que sejam, por consequência, integrados no sistema do darma, são considerados abertamente comoinferiores. Primitivamente, constituíam a classe dos cultiva dores e esta humilde qualidade destinava-oscertamente para os trabalhos penosos. Na época clássica, a sua condição foi bastante elevada: de simples

    homens do campo tornaram-se às vezes grandes proprietários com bens de raiz; muitos deles exercem profissões tão lucrativas quanto honrosas, como peritos de jóias, tecidos, metais, especiarias ou perfumes,conhecimento que é altamente apreciado pelos próprios shatrias.A reforma social provocada pelas concepções budistas favoreceu o desenvolvimento dos vaicias, que em

     breve formaram uma espécie de burguesia, porque essas concepções lhes permitiam suplantar o desprezo emque eram tidos pelas duas classes dirigentes; por isso, o budismo recrutou entre eles os mais encarniçados

     partidários. Reuniram grandes fortunas, sobretudo adquiridas no comércio marítimo e de caravanas; eformaram corporações (çreni) poderosas, com as quais o estado e a administração tiveram de contar.Muitos deles ascenderam por vezes a elevados postos, e não foi raro que um rei escolhesse entre eles o seuconselheiro. Ficou, no entanto algo da sua origem: tal como dantes faziam tarefas pesadas, de igual modoestão sujeitos aos mais pesados encargos fiscais de toda a sociedade. Respondem também pela função que eraa sua desde a origem: a de trabalhar e ganhar dinheiro para sustentar a casta sacerdotal, isenta do trabalho daterra (porque esta é impura), e a casta guerreira, ocupada na conquista territorial. Deste modo levados a

    manter uma parte da população além das suas próprias famílias, as suas aptidões desenvolveram-se, efizeram-lhes conquistar fortuna e consideração. E o tesouro do Estado conseguiu, graças a eles, agüentar assangrias que lhe faziam as doações aos brâmanes e as despesas da pompa.

    A Classe Servil Nascidos, ou antes «re-nascidos» para servirem as três outras classes, os sudras sofrem de uma considerávelinferioridade social e religiosa. Esta casta teria integrado, nos tempos védicos, os aborígenes de pele escuravencidos pelos Arias, aos quais se juntaram depois os Arias de condição modesta, e outros decaídos porrazões diversas. São portanto não só desprezados desde a origem, como também reputados impuros. Fazem

     porém parte do darma; mas dele não gozam senão do recurso da justiça, da possibilidade eventual de estudaros textos anexos ao Veda (os Purana e os Tantra) e de assistir aos ritos privados, com exclusão de alguns. Aisto se limitam os direitos deles.

    Os deveres são bastante mais pesados, visto que não podem libertar-se da servidão em que o nascimento oscolocou. É então que a teoria do karmã atinge todo o seu significado: o nascimento nesta ou naquela casta,como fruto de actos realizados nas anteriores existências, implica em si que os sudras têm no seu passivo uma

     pesada soma de actos maus. Como este passivo pesa em toda a vida presente para ser modificado apenas nare-nascença seguinte, não há para eles qualquer esperança de melhorarem a situação no imediato. Só têm ummeio de renascer numa classe superior: o de cumprir com consciência plena os deveres que são então os seus.Esta concepção - que determina um complexo de inferioridade bem compreensível - é cuidadosamentemantida pelas classes dirigentes, e caracteriza o comportamento de cada indivíduo em toda a Índia.Ainda que estejamos mal informados sobre a composição desta casta, parece que ela contém servidores detoda a espécie, assalariados, subordinados, operários, trabalhadores ou subalternos. A ela se juntam pequenosempregados e modestos artesãos , podendo alguns no entanto exercer profissões relativamente lucrativas,como cultivar a terra. No conjunto, têm demasiada consciência da sua desprezível situação para tentar sairdela; não há que julgar porém que levam uma existência insuportável. Muitos deles trabalham por conta dos

    ricos comerciantes e proprietários terratenentes; recebem um salário, são alimentados e alojados - seja nolimite da moral patronal ou fora - e beneficiam de lucros em espécie: os trabalhadores agrícolas, por exemplo,recebiam uma parte em espécie, uma quinta parte, se eram alimentados e alojados, um terço, se o não eram;

     permanecem ligados à mesma família de pais para filhos. A sua indignidade obriga-os a só comer os restos doalimento do patrão, a não usar senão roupas velhas, e a servirem-se apenas de objectos postos de parte. Érecomendado que sejam tratados decentemente, e a lei protege-os relativamente: o empregador deve fazer umcontrato com eles, o qual enumera os - direitos e os deveres das duas partes, e leva em conta as pessoas que osubalterno tem como encargo. Se este é convidado a dar provas de zelo e capacidade profissionais, o patrão é

     par seu lado obrigado a fornecer-lhe os instrumentos necessários ao trabalho e a substituir os que estiveremusados ou estragados. O contrato precisa a duração do trabalho, o salário, os lucros em espécie que, de modo

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    geral, se acrescentam ao salário. Se deixa de lhe pagar ou se rescinde o contrato injustificadamente, oempregador pode ser perseguido pela justiça.Os sudras são passíveis de impostos relativamente leves; em contrapartida, são obrigados, todos os anos, a

     pesadas tarefas para o Estado; têm de dar-lhe mão-de-obra um ou dois dias por mês, sobretudo aqueles quetratam do arroz, da farinha, do azeite, do açúcar, aqueles que trabalham nas oficinas de fiação, de tecelagem,nas fábricas de armas e de material militar. As vezes estas tarefas podem ser substituídas por uma soma emdinheiro.Mas a classe servil não é homogênea: distinguem-se nela os «puros» ou «não-banidos» e os «banidos». Estesem nada se diferenciam dos «sem casta».

    Os “Sem-casta” Pela sua própria indignidade, esta parte da população é mal definida nos textos sacerdotais que chamou aosseus membros os «nascidos no fim», «de baixo nascimento» ou «mantidos no afastamento dos vasos(rituais»>. São aqueles que nós designamos, na época moderna, com o nome de Fúrias ou intocáveis.Conpreendem uma série de sub-castas das quais os chandalas são os mais frequentemente citados. Todos os«sem casta» praticam profissões desprezíveis, ou até reprovadas, seja porque dizem respeito à vida humana ouanimal, seja porque a sua tarefa implica uma impureza ritual. São estes os caçadores, pescadores, carniceiros,curtidores, carrascos, coveiros, gatos-pingados, vendedores de licores, varredores, e, em certas épocas,cesteiros e carreiros.Entre todos eles, a situação do chandala é a mais desfavorável; foram mais tarde chamados «intocáveis», porcausa da sua impureza. Vivem em aldeias afastadas ou em bairros exteriores, e falam uma língua abastardadaque é tomada por dialecto.[5] Usam teoricamente as roupas tiradas dos cadáveres (são muitas vezes carrascose gatos-pingados), comem em pratos quebrados, e, como são destituídos de dignidade, a morte de um delescusta a um brâmane tanto castigo como se tivesse morto um cão.Identificados pela sociedade como sendo o que há de mais vil na espécie humana, têm obrigação de evitarcuidadosamente poluir com o seu contacto os membros das castas e até de se lhes mostrarem. Por causa disso,não circulam fora das suas aldeias e bairros, sem fazerem ressoar matracas para prevenir da aproximação.Quando, por acaso, um homem de casta pousa os olhos em um deles, é obrigado a cumprir rituais

     purificadores; ao perceber que olhou, mesmo inconscientemente para um chandala, o seu primeiro gesto évoltar-se imediatamente; depois, lava os olhos com água perfumada, para conjurar a desgraça; deve, a seguir,abster-se de comida e de bebidas alcoólicas, durante todo o dia. [6] O receio de ser poluído vai tão longe, queteme até ser tocado pelo vento que, anteriormente, possa ter passado pelo corpo de um chandala[7] ou, ainda,

    a sombra de um destes desgraçados se interponha entre ele e o Sol. Por seu lado, o chandala é tido porresponsável de ter provocado essa impureza noutro, mesmo quando involuntariamente; é preferível para ele,de resto, que se esconda o melhor que possa, porque a cólera dos homens de casta cai então sobre ele:torturam-no até que perca os sentidos, e pode daí em diante estar certo de re-nascer no corpo de um animal, oque fará recuar imenso o momento em que poderá libertar-se da transmigração[8], se é que alguma vez oconseguirá. Com maior razão ainda, é impossível repartir com ele a comida, mesmo que seja precisomorrer-se de fome.[9] 

     Na mesma categoria dos sem-casta estão classificados os estrangeiros, mas não sofrem as mesmas afrontas, se bem que sejam «intocáveis», porque não pertencem ao darma nem são iniciados no Veda. Chamam-lhesmlecha termo que designa os «bárbaros», e que se traduz textualmente por «desprezíveis». Muitos deles sãomeros viajantes, negociantes audaciosos, aventureiros em busca de fortuna; estão incluídos neles os delegadosoficiais, assim como os monges sábios e letrados vindos para visitar a Índia, ensinar ou nela se instruírem,sobretudo nas universidades budistass termo mlecha aplica-se mais especialmente aos invasores, e como estes

     penetram normalmente na Índia pelas regiões do Noroeste, é de tradição na iconografia representá-losvestidos com as roupas usadas nas regiões «frias», isto é a dos Partos iranizados ou helenizados; igualmente,são dotados de traços marcados, destinados a demonstrar bem a origem longínqua deles.Se bem que se respeitem como convém os estrangeiros nobres, não se podem infringir por causa deles certasregras essenciais: os rituais da hospitalidade, por exemplo, não poderiam ser completos - quando recebidosnuma família de brâmanes, e nenhum homem de boa casta poderá comer na companhia deles. Masreserva-se-lhes uma festa especial, na qual se reúnem anualmente todos os mlechas, o que leva a supor quemuitos deles eram residentes de longa data. Bastantes vezes, de resto, a indianização dos estrangeiros foirealizada: foram então introduzidos numa casta, as vezes elevada, e assimilados pela sociedade indiana.Finalmente, os ascetas são classificados sem-casta porque o seu completo desligamento da sociedade os faz

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    realizar o sentido do termo «sem-casta». Mas são muito respeitados. Não passam, porém, de excepções. A casta infeliz dos intocáveis é maciçamente composta de pobres diabosque são cobertos de desprezo e que se aproximam dos «mistos».

    Os “Mistos” O estatuto das castas (varnadarma) não foi aplicado de maneira suficientemente estrita para evitar casamentosdesiguais. Bem depressa os legistas tiveram de enfrentar situações de facto que os levaram a conceder maisflexibilidade ao sistema. Se foi mais ou menos admitido que as uniões legítimas entre castas diferentes setenham podido dar, os filhos nascidos destas uniões -legítimas ou não -são considerados «decaídos», porquenão pertencem a nenhuma casta definida. A poligamia por certo que agravou a situação multiplicando estesnascimentos. O opróbio que atinge os «mistos» estende-se a duas gerações. Mas o descrédito lançado sobreeles não os impede de obter lugares dignos nem de exercerem profissões elevadas, tais como bardos, arautos,escudeiros, médicos ou escribas - o que os assimila mais aos suaras «puros» do que aos «excluídos» ou aos«intocáveis».

    Os escravosMegasténio pretendeu que a escravatura era desconhecida na Índia dos Maurias; a verdade, contudo, é que ela

    existia, como nas épocas posteriores; mas não tomava o mesmo aspecto que na Grécia - e eis porque a suaopinião só não é verdadeira em parte.Esta classe abrange indivíduos muito diversos. Nela se distinguem primeiro aqueles que “nascidos na casa”,

    são praticamente da família onde têm o cargo de servidores; comprados ou recebidos por doação,transmitem-se por via de herança tal como os bens móveis. O seu preço de compra é relativamente poucoelevado, o que os põe ao alcance de muita gente. O palácio real, antes de ninguém, adquire jovens destinadosao gineceu; são levadas da Grécia (?) em barcos mercantes, muitas vezes por intermédio dos árabes quecomerciam com a Índia e a África; elas são, diz-se, de nascimento nobre, e são magníficas na arte do canto eda música. Uma milícia feminina, encarregada de guardar o gineceu, é também inteiramente composta deescravas; vêem-se fazer guarda nas muralhas e nas portas dos apartamentos privados, armadas de uma lança ecom capacete na cabeça.[10] A sua origem ocidental não deixa dúvidas visto que se conserva o termo javani«

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    As vezes, são autorizados a ganhar livremente dinheiro nos mo- mentos de ócio, e a conservá-lo na sua posse;acontece também que uma escrava possa ter autorização de casar com um homem livre, fora da casa do amo,na condição de a ela voltar todos os dias como escrava. A lei protege a rapariga grávida: não pode ser vendidanem cedida durante a gravidez; se foi seduzida pelo amo, e dele teve um filho, esse amo tem de dar-lhe umaindenização e de restituí-Ia à liberdade assim como o recém-nascido. As crianças realmente permanecem naescravatura como os respectivos pais. Quanto aos velhos, são conservados até à morte em casa, mesmo se jánão produzem qualquer trabalho; se não deixam descendentes, os funerais são pagos pelo amo que seencarrega também de mandar oficiar rituais comemorativos para o bem-estar das suas almas. Finalmente, osescravos têm o direito de assistir todos os anos a uma festa que é organizada em sua intenção.A condição destes escravos é portanto relativamente suave, sobretudo se se compara em geral à dascivilizações antigas. Não fossem as separações brutais que são impostas quando são vendidos ou cedidos [12] têm às vezes uma existência menos penosa do que a de qualquer trabalhador, sobretudo quando o amo seesforça por ser justo e caridoso. Cita-se até o caso de um escravo que herdou do amo.Os legistas preocuparam-se com dar uma oportunidade de recuperar a liberdade: têm o direito de evadir-se,mas uma única vez; se não forem apanhados, podem reintegrar-se na sua casta (se tiverem alguma), enovamente recuperarem a condição de homem livre. Aqueles que, por seu pessoal trabalho, conseguiram

     juntar uma soma suficiente para comprar-se por um preço justo podem reivindicar a sua liberdade. A sualibertação dá lugar a uma pequena cerimónia, durante a qual é proferida uma fórmula especial; ao mesmotempo, asperge-se o interessado com um jarro que é imediatamente quebrado. Depois lava-se a cara doescravo; deste modo fica autorizado a reintegrar-se na sua casta. Se entra para um convento, pode mudar de

    nome, para que lhe não possam recordar a sua condição servil.Os escravos não são apenas comprados. Muitos indivíduos caem na escravatura por diversas causas: oscondenados de direito comum que têm de cumprir pena sob a forma de trabalhos forçados; os endividados quenão tenham podido pagar ao credor e que entram ao serviço dele, tendo este então a obrigação de velar pelasua manutenção; indivíduos que serviram de caução num contrato ou de penhor num processo ou numaaposta. E também prisioneiros de guerra, ou aqueles que tomaram parte num saque. Para todos esses, alibertação depende da obrigação que assumem: os forçados são libertados quando acaba o tempo, os endividados quando conseguiram amortizar a dívida, os outros quando a caução que garantiam for coberta, ou quandoconseguirem pagar uma multa suficiente. Quanto aos prisioneiros de guerra, são conservados em escravaturaapenas um limitado tempo, em geral um ano.Eis pois as diversas modalidades a que obedece a «lei» (darma) da sociedade indiana. Adivinha-se nela, semcusto, uma grande complexidade: os termos exactos qualificando cada casta encobrem realidades muitomenos diferenciadas, por vezes até hesitantes. Todo o paradoxo habitual da Índia nela se reflecte e transforma

    na seca enumeração de funções, de direitos e de deveres, numa massa humana viva e sofredora. As regrasestabelecidas afrouxam-se ou endurecem-se, conforme as épocas e conforme a influência do bramanismo oudo budismo. Este último traz muito naturalmente um conforto moral àqueles que têm mais a sofrer dos efeitosde um karmã desvantajoso: pregando a abolição das classes sociais e fundamentando a retribuição dos actosna virtude e não no nascimento ou na sorte, promete a salvação do ciclo dos «re-nascimentos», tanto aos«excluídos» como aos outros, na condição de serem puros de coração e de intenções. No entanto, nenhumaregra foi bastante estrita para comprimir esta massa humana em categorias bem definidas, mesmo nos meios

     bramânicos, onde o rigor deveria teoricamente ser maior. As regras foram infringidas em todos os tempos: aexistência dos «mistos», as uniões matrimoniais de uma casta com a outra, as profissões que brâmanes e

     shatrias podiam impunemente exercer, tudo isto prova que os factos eram mais poderosos do que a teoria.As nossas fontes não permitem conhecer de modo algum os sentimentos dos próprios indivíduos, visto que,segundo a tradição indiana, trata-se, antes de mais, de definir tipos e não casos. É no entanto provável que asituação criada pela divisão em castas fosse aceita da por eles mesmos como um facto, sem revolta nemsequer reflexão. Aceitando a teoria do karmã (como os católicos a do pecado original) achavam talvez naturalsofrer-lhe as consequências. O comportamento deles orientava-se em função de regras pré-estabelecidas,transmitidas de pais para filhos, das quais a principal era conformar-se a uma regra de vida que, só ela, podiatrazer o remédio de um re-nascimento mais feliz. Assim, durante milénios, a massa da sociedade indianatentou cumprir o melhor que soube os deveres que a cada um cabiam.Porém, a divisão por castas não é a única estrutura social que a Índia antiga conheceu: a dos clãs, dascorporações e da família têm uma importância pelo menos igual, quer na vida colectiva, quer na vidaindividual. Estas categorias correspondem à mesma necessidade de classificação que experimenta o espíritoindiano: para existir socialmente, o indivíduo tem de estar incluído numa categoria definida. Muitas vezes, aindicação da profissão corporativa sobreleva a integração na casta, sobretudo nos meios budistas, e o grau

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    social é estabelecido menos pela casta do que pela função. Do mesmo modo, pertencer a um clã, a umalinhagem (gotra) é de suma importância. A corporação (çreni) dá aos membros o sustentáculo de umaorganização poderosa, mais assente do que a das castas, apoiada por um tribunal especial e por regras

     próprias. Veremos adiante as modalidades disto, a propósito da vida económica. Mas, antes, é necessárioindicar como a sociedade indiana era normalmente governada e administrada, a que regras colectivas estavasubmetida, e de que modo o código penal podia assegurar-lhe ordem e segurança.

    [1]  Matanga-jataca, n. 497, Cowell, vol. IV, pág. 242.[2]  Padana-j., n.475, ibid., vol. IV, p.130.[3] Era-lhes interdito também vender fruta e ervas medicinais: Cowell, vol. IV, pág. 229, n.I[4] Cf. A. Foucher, As vidas anteriores do Buda.[5] Chita-sambuta-jataka, n.498. Cowell, Vol. IV, pgs. 244-245.[6]  Matanga-jataka, n. 497, ibid. vol. IV, pg. 236; Chita-samguta-jataka., loc. Cit.[7] Setaketu-jataka, n. 377, Cowell, vol. III, pgs. 154.[8] Chita-sambuta-j.., loc. Cit.[9] Satachama-jataka, n. 179. ibid., vol. II, pág. 57. ver também Bada-sala-jataka, n. 465, ibid., vol. IV, pág.92, em que um rei, tendo tida uma filha de uma escrava, usa de subterfúgio para não tomar a refeição com ela.[10] Este trajo prolongou-se até o século xvi. As figurações destas guardiãs amazonas são numerosas em todaa iconografia antiga e mais particularmente na da escola Amaravati (II-III d.C.). No Ramaiana, II, VI, 9 sãochamadas “mulheres de elite e da mais alta distinção” Cf. Foucher,  L’Art gréco-boudhique du Gandhara, T.

    II, pg. 70.[11] D.R. Chana, L’esclavage dans l’Inde ancienne, Pondicheri, 1957. Do mesmo autor: The ideologicalaspect os slavery in Ancient Índia, em Journal of the oriental Institute (Baroda), VIII, 4, junho de 1959. pág.389-398.[12] Podiam igualmente servir de penhor: Renou, La Civilization de l’Inde ancienne, 29, pg 110.

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    Editora Shu apresenta A VIDA QUOTIDIANA NA ÍNDIA ANTIGA Primeira Parte (3) Jeaninne Auboyer 

    Rio de Janeiro, 2002. Capítulo Terceiro 

    Estrutura Política e AdministrativaConsidero que o meu dever é o bem de toda a gente. Açoka, Legenda na rocha VI.A  principal fonte das nossas informações nesta matéria é o Artaçastra ou «Ciência dos Interesses» atribuído aKautilia que passa por ter sido o ministro do fundador da dinastia Mauria, Chandragupta (século IV a. C.).Mas dissemos anteriormente que este texto poderia ser puramente teórico. Está de acordo ou diverge cominformações de origens diversas: as narrativas de Megasténio, embaixador junto deste mesmo imperador, asinscrições de Açoka, certas passagens do Mahabarata e do Ramaiana, assim como vários tratados de política

     provavelmente escritos no reinado dos Guptas (séculos IV-V). É, portanto, um ponto de vista ideal que nosoferece, mais ou menos corrigido por outros, e que não pode abordar-se sem espírito crítico.

    O Estado e o ReiO princípio do Estado assenta na pessoa do rei. Mas, se bem que ele se registe nas épocas em que o poder estáseguramente centralizado, este axioma reveste realidades bastante diversas. Se é inconcebível na Índia antigaque um Estado possa estar desprovido de rei - o que cria infalivelmente a anarquia, situação impossível -, nem

     por isso deixou de haver, até ao século v, espécies de repúblicas em certas tribos ou clãs. A anarquia, quegrassou em diversas ocasiões no milénio de que nos ocupamos, é liricamente descrita, com as suasconsequências, no Ramaiana (