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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE DIREITO DE RIBEIRÃO PRETO PAULO PEREIRA DE MIRANDA HERSCHANDER A SOBERANIA DOS VEREDICTOS DO TRIBUNAL DO JÚRI RIBEIRÃO PRETO 2014

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE DIREITO DE RIBEIRÃO PRETO

PAULO PEREIRA DE MIRANDA HERSCHANDER

A SOBERANIA DOS VEREDICTOS DO TRIBUNAL DO JÚRI

RIBEIRÃO PRETO

2014

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PAULO PEREIRA DE MIRANDA HERSCHANDER

A SOBERANIA DOS VEREDICTOS DO TRIBUNAL DO JÚRI

Trabalho de conclusão de curso apresentado à

Faculdade de Direito de Ribeirão Preto – USP, como

requisito parcial para obtenção de grau de bacharel

em Direito, sob orientação do Prof. Dr. Cláudio do

Prado Amaral.

RIBEIRÃO PRETO

2014

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Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Herschander, Paulo Pereira de Miranda A Soberania dos Veredictos do Tribunal do Júri. Ribeirão Preto, 2014.

83 p. ; 30 cm Trabalho de Conclusão de Curso, apresentada à Faculdade de Direito de Ribeirão Preto/USP.

Orientador: Amaral, Cláudio do Prado.

1. Soberania dos Veredictos. 2. Impossibilidade de Substituição das Decisões do Júri. 3. Estado Democrático de Direito. 4. Limites

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Nome: HERSCHANDER, Paulo Pereira de Miranda.

Título: A Soberania dos Veredictos do Tribunal do Júri. Trabalho de Conclusão de Curso

apresentado à Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo para

obtenção do título de Bacharel em Direito.

Aprovado em:

Banca Examinadora

Prof. Dr. _______________________Instituição: ______________________

Julgamento:_____________________Assinatura:______________________

Prof. Dr. _______________________Instituição: ______________________

Julgamento:_____________________Assinatura:______________________

Prof. Dr. _______________________Instituição: ______________________

Julgamento:_____________________Assinatura:______________________

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A Deus, primeiramente. Aos meus pais, que são tudo para mim, à minha grande

família, que é a base da minha vida e aos meus amigos pelos momentos inesquecíveis que

juntos vivemos durante a graduação.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente, à minha mãe e ao meu pai pelo incondicional apoio

desde sempre e, em especial, por ocasião da minha aprovação na Faculdade de Direito de

Ribeirão Preto. Não fosse o encorajamento por eles me dado, provavelmente não teria

vivenciado essa experiência única e de inestimável valor, que foi a graduação longe de casa.

Agradeço especialmente aos grandes amigos que fiz no transcorrer desses cinco

anos, dos quais faço questão de citar os nomes: Raphael Silva, Fernando Oliveira, Isabela

Sauer, Eduardo Prigenzi, Henrique Chamas, Igor Fabiani, Bruno Dario, Júlio Cesar Azevedo

e Jamil Júnior Gonçalves do Nascimento. Agradeço pelos momentos inesquecíveis que juntos

passamos, pela força nos momentos difíceis e pelas lembranças e amizade, que serão para

sempre. Agradeço de forma ainda mais especial aos que comigo dividiram moradia.

Agradeço, também, àqueles – não foram poucos - que tanto me ajudaram durante

esse período. Desde aqueles que, no início, me auxiliaram na adaptação à cidade, até aqueles

que, quando precisei, me proporcionaram oportunidade de estágio, com os quais, aliás, eu

muito aprendi. Enfim, agradeço a todos que, de uma maneira ou de outra, comigo

colaboraram nesse tempo de faculdade.

Faço um especial agradecimento a todos os professores e funcionários da

Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, os quais serão aqui representados na pessoa do

Professor Doutor Cláudio do Prado Amaral. Agradeço a ele individualmente pela orientação

do meu trabalho e pelas ótimas aulas, que muito me influenciaram no gosto pelo Processo

Penal.

Por fim, mais uma vez agradeço ao meu pai, agora não como pai, mas como

profissional que é. Agradeço pela inspiração que representa para mim e pela influência que,

sem querer, tem exercido nesse meu início profissional. Espero que, se Deus quiser e assim

permitir, possa eu também um dia alcançar o êxito profissional que ele alcançou.

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"LUTA. Teu dever é lutar pelo Direito. Mas no dia em que encontrares o Direito em conflito

com a Justiça, luta pela Justiça".

(Eduardo Couture)

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RESUMO

A Constituição Federal traz em seu artigo 5º, no rol dos direitos e garantias fundamentais, a

garantia da Soberania dos Veredictos prolatados pelo Tribunal do Júri. Tal garantia, em breve

análise, impõe que as decisões proferidas pelo tribunal popular jamais poderão ser

substituídas por outra decisão exarada por diferente órgão jurisdicional. Em verdade, a

Soberania dos Veredictos constitui verdadeiro sustentáculo da instituição do Júri, uma vez

que, como as decisões do conselho de sentença não se apoiam em fundamentos jurídicos, caso

não gozassem de tal prerrogativa, frequentemente seriam objeto de reforma por parte dos

tribunais togados. Temos, pois, que a recorribilidade mitigada das decisões do Júri tem sua

razão de ser. A instituição do Júri tem como escopo o julgamento livre das amarras do direito

e, nesse compasso, a Soberania dos Veredictos surge como instrumento garantidor desse

objetivo. Entretanto, é preciso notar que, no âmbito do Estado democrático de direito,

convivem uma série de princípios norteadores, os quais deverão se manter sempre em

harmonia, ora privilegiando-se um, ora privilegiando-se outro, mas sempre se mantendo um

equilíbrio entre eles. Nesse ínterim, conceber-se que a Soberania dos Veredictos fosse um

princípio absoluto, sem restrições, indubitavelmente feriria a harmonia ora referida. Não há

como se imaginar, por exemplo, a total impossibilidade de revisão decisória em um sistema

que prevê o princípio do duplo grau de jurisdição. Desse modo, cumpre-nos estabelecer que a

garantia da Soberania deve ser relativa. Ademais, desde a Revolução Francesa não se fala

mais em direitos absolutos. E, como se sabe, é frequente que princípios estejam em conflito,

situação que se resolve através da sobre posição de um em relação ao outro no caso concreto.

O objetivo do trabalho se faz, então, na análise dos limites impostos à garantia da Soberania

dos Veredictos pela própria legislação processual penal, bem como na proposição de outros

mecanismos com potencialidade de tornar mais harmoniosa a convivência entre os princípios

constantes da Constituição Federal, notadamente o do duplo grau de jurisdição e o da

Soberania dos Veredictos.

Palavras-chave: Soberania dos Veredictos. Impossibilidade de Substituição das Decisões do

Júri. Estado Democrático de Direito. Limites.

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ABSTRACT

The Federal Constitution provides in its article 5, on the list of fundamental rights and

guarantees, the sovereignty of the Jury’s. Such guarantee, in brief analysis, implies that

decisions made by the people's Court can never be replaced by another decision issued by any

different court. In fact, the sovereignty of verdicts is the main idea behind the Jury, since, as

its decisions do not rely on legal norms, if it wasn’t for such prerogative, often it would be

object of reform by magisterial courts. We have, therefore, that the mitigated appealability of

the Jury's decisions has its reason to be. The institution of the Jury has its scope in a trial free

from the restraints of law and, therefore, the sovereignty of verdicts emerges as means for that

goal. However, it should be pointed out that, in the context of the democratic State of law,

there are a handful of guiding principles, which should always remain harmonically, in a way

of keeping balance between all of them. In the meantime, conceived that the sovereignty of

the verdicts were an absolute principle, without restrictions, that fact would undoubtedly hurt

the aforementioned harmony. There is no way to imagine, for instance, the total impossibility

of decision-making review in a system that guarantees a double degree of jurisdiction.

Thereby, we must establish that the guarantee of sovereignty should be relative. Moreover,

since the French Revolution is not spoken in absolute rights. And as we know, it is normal

that principles are in conflict, a situation that is resolved through about overlap to one another

in concrete case. The objective of this work is, therefore, to analyze the limits imposed by the

criminal procedural legislation to the sovereignty of the verdicts, as well as to propose other

mechanisms which can potentially make it more harmonic for the principles laid down in the

Federal Constitution to coexist, specially the double degree of jurisdiction and the sovereignty

of the verdicts.

Keywords: Sovereignty of the Verdicts. Irreplaceability of the Jury's decisions. Democratic

State of law. Limits.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 19

1. A INSTITUIÇÃO DO JÚRI ............................................................................................. 21

1.1 A Instituição do Júri no Sistema de Justiça ................................................................. 21

1.2 O Contexto Atual da Instituição do Júri ......................................................................... 22

2. A HISTÓRIA DO JÚRI ....................................................................................................... 24

2.1 A Origem do Júri no Direito Estrangeiro ........................................................................ 24

2.2. O Júri no Brasil .............................................................................................................. 27

3. O JÚRI COMO GARANTIA FUNDAMENTAL ............................................................... 31

3.1. A Inserção do Júri no Rol das Garantias Fundamentais ................................................ 31

3.2. As Subgarantias do Tribunal do Júri .............................................................................. 33

3.2.1. Plenitude de Defesa ................................................................................................. 34

3.2.2 Sigilos das Votações................................................................................................. 36

3.2.3. Competência para o Julgamento dos Crimes Dolosos contra a Vida ...................... 37

3.2.4 Soberania dos Veredictos ......................................................................................... 38

4. OS JURADOS ...................................................................................................................... 40

4.1. Os Requisitos para que um indivíduo possa ser alistado como Jurado ......................... 40

5. CASUÍSTICA ....................................................................................................................... 45

5.1. Apelação Nº 1.0216.10.008633-1/002 – TJMG ............................................................ 46

6. SOBERANIA DOS VEREDICTOS .................................................................................... 49

6.1 O Conceito de Soberania ................................................................................................ 49

6.2 Delimitação do Princípio ................................................................................................ 50

6.3 Histórico da Soberania dos Veredictos ........................................................................... 52

6.4 Limites ao Princípio da Soberania dos Veredictos ......................................................... 53

6.5 Mecanismos de Limitação à Soberania dos Veredictos .................................................. 55

6.5.1 Apelação ................................................................................................................... 55

6.5.2 Revisão Criminal ...................................................................................................... 65

6.5.3 Dos Mecanismos hábeis a conferir maior Justiça à Instituição do Júri .................... 76

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 80

BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................................... 82

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INTRODUÇÃO

É certo que a Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso XXXVIII, alínea “c”,

expressamente estabelece a soberania dos veredictos prolatados pelo Tribunal do Júri.

Contudo, insta que se estabeleçam os limites a que se sujeita referida soberania, visto que, se

admitida sem qualquer restrição, consubstanciar-se-ia em prerrogativa absolutamente

contrária aos preceitos do Estado Democrático de Direito.

Temos, pois, que, principalmente em decorrência do cenário controvertido no qual

se encontra a instituição do Júri nos dias atuais, tal problemática adquire extremada

importância.

Nesse sentido, o que se busca é delimitar as possibilidades de interpretação, bem

como a aplicação prática do referido preceito constitucional. Para tanto, questão de maior

relevância, e que será tomada como ponto de partida, consiste na busca da “mens legis” da

norma em questão, atendo-se, principalmente, ao conceito do termo “soberania” empregado

no referido dispositivo legal. Identificar-se-á, conseguintemente, o posicionamento

majoritário da jurisprudência e da doutrina brasileira quanto aos limites balizadores dessa

prerrogativa e, após, serão propostas sugestões para uma melhor adequação da instituição do

Tribunal do Júri aos ditames do Estado Democrático de Direito, bem como aos princípios e

valores que permeiam nosso ordenamento jurídico pátrio.

O trabalho terá seu desenvolvimento primeiramente pautado pela pontuação das

bases fundamentais do Júri, pelo seu enquadramento no ordenamento jurídico e

estabelecimento de sua posição constitucional e pela sua contextualização nos dias atuais,

período bastante conturbado para a instituição, que é constante alvo de críticas por parte da

doutrina e da sociedade em geral.

Após, dedicar-se-á à história do Tribunal do Júri, partindo de seu surgimento no

direito estrangeiro e chegando ao nascimento da instituição no Brasil, atendo-se a sua

consolidação no transcorrer da vigência de cada Constituição; sempre se estabelecendo os

pontos de influência do direito estrangeiro para o direito nacional.

Conseguintemente, será realizada a análise da instituição como garantia

fundamental, momento em que se aterá à perquirição do motivo pelo qual o Júri reveste-se de

tal qualificação, bem como as razões para que essa qualificação perdure até os dias de hoje,

seguindo-se o estudo das subgarantias conferidas ao Tribunal do Júri pela Constituição

Federal.

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Por fim, serão analisados os critérios estabelecidos pelo Código de Processo Penal

para que um indivíduo possa ser alistado como jurado, questionando-se a conveniência desses

parâmetros, principalmente à luz da responsabilidade que recai sobre a figura dos jurados por

força da soberania dos veredictos. Outrossim, serão estudados os mecanismos de limitação ao

princípio previstos em lei, bem como serão propostas sugestões no intuito de tornar a

instituição do Júri mais justa e equilibrada.

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1. A INSTITUIÇÃO DO JÚRI

1.1 A Instituição do Júri no Sistema de Justiça

A instituição do Júri, mesmo que sob a vestimenta de distintos modelos, está

presente em grande parte dos sistemas jurídicos modernos. Tal fato se justifica,

principalmente, na medida em que, através dela e em decorrência de sua elementar

participação popular, obtém-se uma verdadeira legitimação do sistema jurídico, de modo a

serem introduzidos no sistema processual valores de cunho fortemente democrático.1

A ideia de legitimação do sistema refere-se ao fato de que, ao se afastar a

competência para julgar da égide de um juiz togado e transferi-la para cidadãos comuns, o que

se procura é a obtenção de uma “aceitação popular” daquilo que diz respeito ao resultado

obtido no processo. O verdadeiro fim a ser alcançado, ou seja, a justiça a que se visa chegar

ao final de um julgamento no plenário do Júri, é o “justo” aos olhos da sociedade. Desse

modo, a busca pela aceitação da sociedade perante as decisões de julgamentos de crimes

dolosos contra a vida – crimes que atentam contra valores sociais fundamentais – constitui o

principal enfoque da instituição do Júri.

Não se pode olvidar, ainda, que o ideal de legitimação possui relação direta com

valores de caráter amplamente democrático. Ora, a preocupação com a aceitação da sociedade

diante de atos do poder público – tais quais os relacionados ao jus puniendi – somente faz

sentido em um sistema democrático. Não há, pois, como se conceber um modelo de Júri sem

que haja em seu entorno um sistema verdadeiramente democrático. O Estado Democrático de

Direito funda-se na soberania popular, no princípio democrático da participação do povo nas

atividades estatais como meio legitimador do poder e assim o temos no Júri, como expressão

máxima dessa premissa.2 A instituição do Júri e o sistema democrático de direito se

entrelaçam de tal forma a não haver a possibilidade da existência do primeiro sem a vigência

do segundo.3 Dessa forma, o Tribunal do Júri apresenta-se como verdadeiro mecanismo

democrático de controle do poder estatal.4

1 BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 451. 2 ZAPPALA, Amália Gomes. Estudos de Processo Penal. São Paulo: Scortecci, 2011, p. 235 3 AZEVEDO, André Mauro Lacerda. Tribunal do Júri: Aspectos Constitucionais e Procedimentais. São Paulo: Verbatim, 2011, p. 13. 4 Ibid., p. 14.

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Nesse compasso, a partir da ótica da instituição do Júri como um mecanismo de

controle do poder estatal e do viés democrático de que se reveste, o julgamento pelo plenário

do Júri apresenta-se como verdadeiro direito do cidadão. Denota-se, pois, que a instituição

não se configura como fruto de mera discricionariedade do Estado que, para os crimes dolosos

contra a vida, estabelece que sejam julgados pelo Tribunal do Júri, mas, sim, como verdadeiro

direito dos cidadãos de que nesses casos sejam julgados por seus pares.

Nesse ínterim, a fim de garantir referido direito a todos os cidadãos, a

Constituição Federal de 1.988 conferiu à instituição do Júri o status de garantia fundamental.

Desse modo, o Tribunal do Júri caracteriza-se como mais do que simples órgão do poder

Judiciário, correspondendo, também, a uma garantia e a um direito fundamental de cada

indivíduo.5 Sendo assim, a previsão da instituição do Júri vem expressa no capítulo da

Constituição Federal destinado aos direitos e garantias fundamentais, precisamente no artigo

5º, XXXVIII, como evidente demonstração de que, pela posição topográfica que ocupa,

constitui verdadeira garantia fundamental.6

1.2 O Contexto Atual da Instituição do Júri

É importante pontuar que, principalmente nos dias atuais, a instituição do Júri

vive um contexto bastante controvertido. Muitas críticas são no sentido da carência de técnica

empregada nos julgamentos pelo plenário e da enorme influência exercida por fatores

externos, capazes de, muitas vezes, direcionarem o resultado obtido ao fim do processo.

Vive-se hoje uma época de grande e incontestável influência midiática. Muito em

decorrência do estrondoso desenvolvimento dos mecanismos de telecomunicação, a mídia

passou a exercer um poder nunca antes visto. Devido à facilidade e à rapidez de propagação

das informações hoje existentes, um fato de âmbito regional, em um curto intervalo de tempo,

torna-se um evento nacional ou até mesmo mundial. A instantaneidade com que se propagam

informações, bem como o enorme espectro de indivíduos que atingem, tornou a mídia, nos

dias atuais, um instrumento de força incalculável na formação da opinião pública. Essa

influência dos mecanismos midiáticos, como não poderia deixar de ser, afeta sobremaneira o

5 BONFIM, 2006, op. cit., p. 452. 6 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 33. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. v. 4, p.143.

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resultado obtido findo o procedimento do Júri e, por esse motivo, representa fator de ensejo a

muitas críticas à instituição do Júri.

Existem, pois, certos delitos que, pela repercussão midiática que causam, tornam-

se objeto de discussão da sociedade como um todo. Através dos mecanismos de

telecomunicação, muitas especulações se criam ao redor do crime, de modo que, muitas das

vezes, acaba-se por criar, ou melhor, recriar fatos ou elementos delitivos que não ocorreram

efetivamente, ou de forma muito diversa da que ocorreram. A mídia, na feroz disputa pelo

público, por diversas vezes veicula a notícia de forma precipitada e fragmentada, utilizando

uma linguagem destinada a envolver os receptores, despertando emoções, provocando reações

e, principalmente, criando e alimentando um clima de comoção social.7

Os instrumentos midiáticos, por forçoso sensacionalismo, frequentemente

acrescentam aos fatos narrados circunstâncias de violência não reais, criando, assim, um

cenário fictício do crime praticado. A violência midiática, não corresponde à violência

efetivamente empregada no cometimento do delito. Desse modo, não há como passar

despercebida a crítica de que os jurados, em certos casos, têm em mente uma cena delitiva

totalmente diversa da real.

Apesar, então, de haver perdurado desde há muito tempo e estar, ainda hoje,

presente em grande parte dos sistemas jurídicos modernos, nota-se que a instituição do Júri

não é imune a críticas, muitas delas, diga-se já, com fundamentos extremamente relevantes.

7 ZAPPALA, op. cit., p. 247.

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2. A HISTÓRIA DO JÚRI

2.1 A Origem do Júri no Direito Estrangeiro

A origem do Júri é tema bastante polêmico e controverso na doutrina. Não há,

pois, entre os historiadores, consenso acerca do efetivo surgimento da instituição. Apesar de

muitos se deterem no estudo do assunto, tudo o que se tem são, na verdade, verdadeiras

especulações. Nota-se que desde há muito se encontram experiências rudimentares de

julgamentos populares com características muito semelhantes às que temos hoje no Tribunal

do Júri; entretanto, a instituição, assim como a concebemos atualmente, não se sabe ao certo

quando surgiu.

Nesse âmbito, embora alguns doutrinadores remetam a origem da instituição à

época das ordálias inglesas, é inconteste que já há muitos séculos havia vestígios do que hoje

conhecemos como Tribunal do Júri.8

Há, por esse motivo, aqueles que atribuem os primeiros indícios do Júri a épocas

bastante remotas, com os judices jurati, dos romanos, os diskastas gregos e os centeni

comites, dos germanos.9

Outros, no entanto, estabelecem as questiones perpetuae, vigorantes no ano de

149 a.C. em Roma, como marco inicial da instituição do Júri. As questiones perpertuae,

como pontuam Nádia de Araújo e Ricardo R. Almeida, eram um tribunal absolutamente

aristocrático, no qual somente os senadores compunham a lista de jurados, configurando,

assim, uma justiça elitista e antipopular, e nisso se distanciando do Tribunal do Júri

contemporâneo.10 Não são poucos, também, os que remetem o Júri à Grécia antiga que, com a

Heliléia, deu os primeiros passos à concretização de uma estrutura de tribunal popular, em sua

essência bastante semelhante ao que hoje temos por Júri.

A Heliléia, surgida através da inspiração dos ideais republicanos e democráticos

em voga àquela época, constituiu o primeiro tribunal popular grego, perdurando desde o ano

2501 até o ano 201 a.C., servindo, inclusive, de forte inspiração ao Júri inglês, que, após

8 AZEVEDO, op. cit., p. 17. 9 TOURINHO FILHO, op. cit., p. 137. 10 ARAÚJO, Nádia de. ALMEIDA, Ricardo R. apud AZEVEDO, op. cit., p. 17.

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quase um milênio da extinção do tribunal grego, concretizou-se como tribunal popular na

Grã-Bretanha.

Apesar de sua estrutura não condizer exatamente com a que concebemos hoje no

Tribunal do Júri, a Heliléia possuía certas características ainda hoje elementares à instituição

moderna do Júri. Tem-se, por exemplo, como traços marcantes do tribunal grego, a primazia

pela oralidade e a ampla participação democrática. Outro elemento marcante e já presente

àquela época é a Soberania dos Veredictos, que, pela sua elevada importância até os dias de

hoje, constitui o objeto do nosso trabalho.

Da Grécia, e em decorrência de sua influência, o Júri seguiu trajeto rumo à

Inglaterra, onde teve concretizada sua introdução no sistema de justiça no ano de 1066.11

A partir do surgimento do Júri inglês, passa a existir certo consenso na doutrina

acerca das origens do Júri, uma vez que aqueles que não atribuem os primórdios do tribunal à

Antiguidade afirmam, quase todos, seu surgimento na experiência inglesa.

Apesar de introduzido no sistema inglês no ano de 1066, somente com o IV

Concílio de Latrão, em 1215, é que a instituição do Júri adquiriu o modelo sob o qual vigora

nos dias de hoje. Por ocasião do referido Concílio, o Papa Inocêncio III proibiu o julgamento

pelas Ordálias, substituindo-o por um novo modelo de Justiça, em muito semelhante à atual

concepção de Júri, no qual o número de jurados era doze, em alusão aos doze apóstolos.12

As Ordálias eram um tribunal no qual o julgamento era afeto à Divindade. No

transcurso do processo os acusados eram submetidos aos Juízos de Deus, ou ordálios, que

através de duras provas, notadamente a do ferro em brasa e a da água fria, indicavam para o

verdadeiro culpado.13

Nos dizeres de Fredrick G. Kempis Jr, as Ordálias caracterizavam-se pela

submissão do réu a provas físicas; situações essas, nas quais se acreditava que a intervenção

divina imprimiria no corpo do verdadeiro criminoso a sua culpa.14

O novo modelo criado em substituição às Ordálias foi o sistema do Jury. Nesse

modelo de tribunal, os homens bons da comunidade se reuniam para, sob juramento, julgar o

11 AZEVEDO, op. cit., p. 18. 12 BONFIM, 2006, op. cit., p. 452. 13 TOURINHO FILHO, op. cit., p. 138. 14 KEMPIS JR, Fredrick G. apud AZEVEDO, op. cit., p. 18.

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cidadão acusado de cometer algum delito. O sistema era constituído de dois Tribunais do Júri:

o grande e o pequeno (Grand Jury e Petty Jury), cada qual com competência para julgamento

em fases distintas do procedimento. A competência do primeiro restringia-se à análise da

adequação ou não da ida do acusado ao tribunal popular; tratava-se, pois, de um juízo de

admissibilidade, no qual vinte e quatro cidadãos, através do voto, determinavam se era cabível

ou não o julgamento pelo Tribunal. Em caso de resposta afirmativa, então, o réu era remetido

ao Petty Jury, formado, este sim, por doze jurados (termo esse utilizado em decorrência de os

julgadores desempenharem sua função sob julgamento), momento no qual se analisava

propriamente o mérito da questão.15

É na Inglaterra, então, que primeiramente o Júri encontra o seu apogeu e,

posteriormente, nos Estados Unidos, onde o Júri foi utilizado para os mais diversos tipos de

julgamentos, tanto criminais como cíveis. Apesar de poderem ser considerados, ambos os

países, como os nascedouros da instituição do Júri, o tribunal seguiu caminhos distintos no

sistema inglês e no sistema americano. Atualmente, o Júri, na Inglaterra, não conta mais com

o poder e com o prestígio de outras épocas, como se constata do indicador de que, hoje em

dia, menos de cinco por cento dos julgamentos são realizados pelo tribunal popular. Em outra

direção, nos Estados Unidos o Júri tem grande importância até os dias de hoje, competindo-

lhe decidir sobre a maioria dos casos em matéria criminal. O Júri, inclusive, assim como

ocorre no Brasil, é garantia fundamental do cidadão americano, com previsão expressa na

Constituição no artigo 3º, seção II, item 3 e na 6ª e 7ª emendas constitucionais.16

Após a adoção da instituição do Júri pela Inglaterra, depois da Revolução

Francesa, de 1789, tendo por finalidade o combate às ideias e métodos esposados pelos

magistrados do regime monárquico, estabeleceu-se o Júri na França e de lá se espalhou para

os demais países da Europa como ideal de liberdade e democracia.17

A criação do Tribunal do Júri francês se deu através do Decreto de 30 de abril de

1790, sendo posteriormente consolidado na própria Constituição Francesa de 1791,

constituindo fonte de grande influência ao Júri brasileiro, quando da entrada dos ideais

políticos-burgueses do século XVIII no território nacional. 18

15 TOURINHO FILHO, op. cit., p. 138. 16 AZEVEDO, op. cit., p. 18. 17 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 2. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2006, p. 687. 18 AZEVEDO, op. cit., p. 20.

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2.2. O Júri no Brasil

A partir da adoção da instituição pelos países da Europa, é de se questionar o que

teria feito o Júri haver chegado ao Brasil. Santi Romano, no intuito de explicar esse fenômeno

de transmigração do direito - que, do seu país de origem acaba por se difundir por outros -,

credita tal fato principalmente à colonização, que, de uma forma ou de outra, impõe ao

colonizado ideias e leis. Ele também o atribui à característica natural de “contagiosidade do

direito”, nas palavras de Emerico Amari.19

Entretanto, o motivo “colonização”, no que diz respeito ao Tribunal do Júri, não

parece encontrar substrato na história brasileira. Isso porque a instituição foi incorporada ao

ordenamento brasileiro antes mesmo que constasse do sistema de justiça português. Tal fato

pode ser explicado a partir do contexto histórico vivido entre Brasil e Portugal no momento

dessa incorporação.

No período anterior à sua independência, o Brasil passou a editar leis contrárias

aos interesses da Coroa ou, se não contrárias, pelo menos dissonantes do ordenamento

jurídico português, como forma de, desde já, “preparar terreno” para a futura e iminente

independência.20

Foi nesse contexto, então, que a instituição do Júri foi incorporada ao

ordenamento jurídico brasileiro. Assim, em 18 de junho de 1822, por decreto do Príncipe

Regente, criou-se o Tribunal do Júri no Brasil, seguindo-se a tendência difundida pela

Inglaterra e espalhada por toda a Europa e, principalmente, guiando-se pelos ares vividos no

contexto pós-revolução francesa, período no qual os ideais de liberdade e democracia haviam

sido amplamente difundidos pelo mundo, fazendo com que surgisse a ideia de que, se o Júri

“era bom para a França o era também para o resto do mundo”.21

Em um primeiro momento, o Júri foi criado com competência exclusiva para

julgar os crimes de imprensa, notadamente os crimes de abuso de liberdade de imprensa.

Somente com o advento da Constituição de 1824 a competência do Tribunal do Júri foi

estendida também às causas cíveis e criminais.

19 ROMANO, Santi apud NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do Júri. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2008, p. 42. 20 NUCCI, 2008, op. cit., p. 43. 21 Ibid., p. 43.

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A Constituição Imperial inseriu a instituição no capítulo pertinente ao Poder

Judiciário, atribuindo-lhe, pois, competência para julgar fatos, nos moldes da lei

infraconstitucional. Entretanto, ao tratar das garantias dos direitos civis e políticos dos

cidadãos, a carta constitucional não fez menção ao tribunal popular, do que se depreende que,

à época do Império, o Júri não figurou no Brasil como garantia constitucional, mas apenas

como órgão do Poder Judiciário.22

Com o advento da proclamação da República, a instituição do Júri manteve-se no

ordenamento jurídico brasileiro. Ademais, criou-se, ainda, através do Decreto 848, de 1890, o

Júri Federal. A Constituição Republicana representou um grande passo à solidificação do Júri

no sistema brasileiro, pois foi com ela, e em decorrência de forte influência da Constituição

Americana, que a instituição do Júri foi elevada ao patamar de garantia constitucional,

passando a constar, então, do rol das garantias e direitos fundamentais da Constituição

Republicana de 1891.23

Entretanto, com a promulgação da Constituição de 1934, parece ter havido um

retrocesso no que diz respeito à consagração do Júri como garantia constitucional. Isso porque

a nova Constituição, assim como estabelecia a Carta de 1824, voltou a inserir a instituição no

Capítulo destinado ao trato do Poder Judiciário. Apesar disso, ao se estabelecer sobre a

composição do Judiciário, não foi inserida a instituição popular como um de seus órgãos

componentes, de maneira a não se poder afirmar que o legislador a vislumbrou como órgão do

Poder Judiciário. Entretanto, também não é menos certo que o texto constitucional, ao inseri-

lo no capítulo “Do Poder Judiciário”, conferiu ao Júri uma nítida feição judiciária.24

O que se denota desse dispositivo é uma clara incerteza por parte do legislador em

estabelecer, de forma definitiva, qual a posição constitucional ocupada pela instituição do

Júri. Percebe-se, pois, que paira uma dúvida acerca da caracterização do Júri; se como uma

instituição do Judiciário ou como um órgão autônomo, vinculado apenas à sociedade, a qual

representa, aproximando-se do Judiciário apenas para se revestir da imprescindível roupagem

jurisdicional.25

Por sua vez, a Constituição do Estado Novo, de 1937, não estabelece disposição

alguma sobre a instituição do Júri. Quer seja como elemento do Poder Judiciário, quer seja

22 AZEVEDO, op. cit., p. 32. 23 NUCCI, 2008, op. cit., p. 43. 24 AZEVEDO, op. cit., p. 36. 25 Ibid., p. 37.

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como garantia fundamental, a Carta Constitucional em nenhum dispositivo previu o Tribunal

do Júri, demonstrando, desse modo, sua nítida feição autoritária. Conforme já pontuado no

presente trabalho, não há como conceber a instituição do Júri no seu estado mais puro sem

que haja em seu entorno um sistema democrático, e isso é o que, de maneira ilustrativa,

notamos do texto da Constituição Federal do Estado Novo. No ano de 1938, através do

Decreto nº 167, o Júri foi regulamentado. Contudo, em uma clara limitação da instituição,

estabeleceu-se que seus decretos não eram revestidos da soberania dos veredictos.

Após o término do Estado Novo, no contexto de redemocratização do país, a

Constituição de 1946 ressuscitou o Tribunal do Júri, voltando a inserir a instituição no

capítulo dos direitos e garantias fundamentais. Nesse quadro, tornou-se clara a intenção do

legislador de fazer do Júri um verdadeiro estandarte na luta contra o autoritarismo vigorante

no regime anterior.26

Importantes foram, também, as inovações trazidas pela Carta Constitucional em

relação ao tribunal popular. Com a Constituição de 1946 foram assegurados e consagrados os

princípios fundamentais informadores do Júri no sistema constitucional nacional, ainda em

voga no texto constitucional atual. A Carta previu o sigilo das votações, a plenitude de defesa

do réu, a soberania dos veredictos, bem como a competência mínima para o julgamento dos

crimes dolosos contra a vida. Temos, pois, como uma das principais novidades, o

estabelecimento da competência do Júri para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida,

não antes previstas pelas outras Constituições.27

Já no período da ditadura militar, a nova ordem constitucional, que emerge em

1967, praticamente em nada altera a estrutura e as garantias da instituição do Júri. Não

obstante, se comparada às Cartas constitucionais anteriores, nota-se no novo texto uma

evidente redução do alcance da instituição popular. Isso porque, apesar de haver defendido a

manutenção da instituição do Júri, garantindo-lhe a soberania de seus veredictos, bem como

haver estabelecido sua competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, a

nova Constituição claramente suprimiu os princípios informadores do sigilo das votações e da

plenitude de defesa.28

26 NUCCI, 2008, op. cit., p. 43. 27 AZEVEDO, op. cit., p. 41. 28 Ibid., p. 44.

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Em que pese a Constituição de 1967 pouco haver alterado na estrutura da

instituição do Júri, esse cenário perdurou por pouco tempo, já que, através da Emenda de

1969, em um contexto de profundas transformações políticas no Estado Brasileiro, novamente

o Júri deixou de constar do texto reformado. Instaurou-se, a partir de então, um regime de

traços fortemente autoritários e limitadores dos direitos e garantias individuais, influenciando,

também e sobremaneira, a instituição popular, que, com a grave crise de eficácia sofrida pela

soberania dos veredictos, viu-se praticamente morta. Com isso, até a década de 80, a

instituição do Júri teve sua relevância muito diminuída na sociedade brasileira.29

Entretanto, no ano de 1988, na consolidação do dito “Estado Democrático de

Direito”, surge a chamada “Constituição Cidadã”. Em busca da redemocratização do Estado

Brasileiro, a ideia do legislador constituinte foi retomar o status quo anterior à ditadura

militar. Desse modo, o que fez a nova Carta constitucional foi, basicamente, reviver os

princípios e ditames constitucionais que vigoravam em 1946, de modo que, no que diz

respeito à instituição, a estrutura prevista pelo antigo texto foi renascida, trazendo com ela os

princípios da soberania dos veredictos, do sigilo das votações, da plenitude de defesa, bem

como a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Destaca-se, também,

o fato de o Júri novamente haver sido inserido no capítulo “Dos direitos e garantias

fundamentais”.30

É de se concluir que a instituição do Júri no Brasil foi marcada por uma intensa

oscilação entre períodos de crise e momentos áureos, conforme se vê desde sua consolidação

até os dias atuais. Em verdade, no mundo todo o Júri sempre teve essa feição; ora respeitado e

imponente, ora desacreditado e decadente. No Brasil, isso não foi diferente, já que, como se

percebe, a cada Constituição a instituição teve seu tratamento bastante diverso, tendo sua

importância restringida, ou então gozando de extrema relevância.31

29 AZEVEDO, op. cit., p. 45. 30 NUCCI, 2008, op. cit., p. 44. 31 AZEVEDO, op. cit., p. 20.

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3. O JÚRI COMO GARANTIA FUNDAMENTAL

3.1. A Inserção do Júri no Rol das Garantias Fundamentais

Conforme já anteriormente destacado, a instituição do Júri vem prevista em nossa

Constituição no capítulo “Dos direitos e garantias fundamentais”. O artigo 5º, XXXVIII,

expressamente prevê: “é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei,

assegurados: a) a plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos;

d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida”.

Situado, então, no contexto dos direitos e garantias fundamentais, convém

explicitar qual seria realmente a posição constitucional do Tribunal Popular; se um direito

individual ou uma garantia individual. Considerando-se direito individual aquele que declara

situação inerente à personalidade humana (como por exemplo: vida, liberdade, integridade

física, etc.) e garantia individual aquela cuja finalidade é assegurar que o direito seja, com

eficácia, efetivamente fruído, adotamos a posição doutrinária majoritária de que a instituição

corresponde a uma garantia individual.32

Temos, pois, que a instituição do Júri tem como finalidade precípua assegurar a

efetivação de um direito, tem por fim a garantia da perfeita fruição de um direito. Ora, que

direito é esse? Certo é que o Júri constitui uma garantia individual, mas garantia relacionada a

quê?

Muitos são os doutrinadores que entendem que o direito assegurado pela

instituição do Júri é o direito à liberdade. Fernando da Costa Tourinho Filho, por exemplo,

expressamente estabelece:

Quando se diz que o seu traço fundamental consiste em ser uma garantia de tutela maior ao direito de liberdade, o que se quer dizer, a nosso juízo, é que, ficando o julgamento nas mãos da sociedade, representada por 7 de seus membros, longe das peias da lei, de precedentes, sumulas e doutrina, haverá mais garantia para o direito de liberdade.33

A nosso ver, entretanto, tal posição apresenta grande equívoco. Compartilhamos a

opinião de Guilherme de Souza Nucci, segundo a qual, uma vez considerado o Júri como 32 NUCCI, 2006, op. cit., p. 689. 33 TOURINHO FILHO, op. cit., p. 143.

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garantia de uma tutela maior ao direito à liberdade, forçosamente teremos que admitir ser o

júri um escudo protetor do criminoso que atenta contra a vida humana; essa, aliás, igualmente

protegida pela Constituição Federal, de forma que o Júri jamais poderia proteger um em

detrimento do outro.34 Se assim não fosse, por que os delitos dolosos contra a vida

mereceriam um tribunal especial, com maior grau de proteção à liberdade? Um simples autor

de furto, por exemplo, dada a menor relevância de seu ato, não mereceria maior proteção a

seu direito de liberdade do que um autor de crime doloso contra a vida?35

Entendemos, pois, tratar-se a instituição do Júri de uma garantia ao devido

processo legal, este sim, uma garantia ao direito de liberdade. Não se trata, por conseguinte,

da garantia direta à liberdade do acusado, mas sim do devido processo legal. Logo,

independentemente de o réu haver sido condenado ou absolvido pelo plenário do Júri, a

garantia terá cumprido sua função de assegurar o devido processo legal. Sob essa visão, temos

como claro que o Júri não constitui um escudo protetor dos criminosos, já que sua função é

meramente garantir que o processo siga os ditames estabelecidos pela lei, independentemente

se for para concessão ou restrição da liberdade do acusado.36

É preciso que se tenha em mente, e assim afirma a doutrina majoritária, que a

instituição do Júri constitui apenas uma garantia fundamental formal, de modo que, de

maneira alguma, se poderá considerá-la uma garantia fundamental essencial. Note-se, pois,

que nos países em que o Júri não é previsto em seus ordenamentos – e não são poucos –

também é perfeitamente cabível a subsistência de um Estado democrático de direito. Fosse o

Tribunal Popular essencial ao pleno exercício da democracia, deveria também ele ser

empregado no julgamento de todos os delitos tipificados e não apenas os dolosos contra a

vida.37

O Júri tornou-se uma garantia fundamental em nosso sistema de justiça por mera

influência do constitucionalismo americano, o qual era muito apreciado pelos nossos

legisladores. A Constituição americana previa a instituição como garantia indispensável ao

cidadão e, tomando-a como base, assim também dispuseram nossos legisladores constituintes.

Acontece que a previsão da instituição como garantia essencial tem razão de ser

no sistema jurídico americano, onde o Júri realmente figura como uma garantia fundamental

34 NUCCI, 2006, op. cit., p. 689. 35 NUCCI, 2008, op. cit., p. 40. 36 Ibid., p. 689. 37 Ibid., p. 39.

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material. A razão se dá pelo fato de que lá, muitos dos magistrados são eleitos pelo povo, de

modo que se cria grande obstáculo à efetiva imparcialidade dos juízes. Ora, como poderá ser

efetivamente imparcial um juiz cuja posse no cargo de magistrado resultou de uma campanha

eleitoral? Como poderia julgar com imparcialidade o magistrado que soubesse, por exemplo,

que aquele réu o apoiara em sua campanha?

No Brasil, por outro lado, a maioria dos julgamentos é realizada por juízes

togados e concursados, sem que haja qualquer influência política sobre seus cargos.

Excepcionalmente, os magistrados das cortes superiores e aqueles advindos do chamado

“quinto constitucional” são nomeados pelo Poder Executivo, não obstante, após tomarem

posse no cargo, passam a gozar das mesmas garantias estendidas a todos os magistrados, tal

qual a vitaliciedade. Esta e as demais garantias que envolvem o cargo de magistrado

contribuem sobremaneira para a desvinculação política dos juízes. Não existe, pois, renovação

de mandato, campanha eleitoral, nem qualquer tipo de demagogia populista, de forma que é

plenamente plausível um julgamento absolutamente imparcial realizado por um juiz togado.38

Desse modo, temos como certo que, no Brasil, o estabelecimento do Júri como

garantia fundamental não encontra razão segura de ser, restando para justificá-la, apenas a

influência do constitucionalismo norte-americano. A instituição como garantia individual,

então, foi incorporada ao sistema em decorrência única de um ato meramente político,

enquanto que sua manutenção como tal até os dias de hoje é fruto de um exacerbado

tradicionalismo. É de se notar a influência que tal tradição exerce sobre nosso ordenamento,

tendo em vista que a garantia da instituição do Júri, em decorrência da magnitude que

alcançou, restou consagrada como cláusula pétrea em nossa constituição, de forma que nem

mesmo uma emenda constitucional será capaz de suprimi-la do sistema.

3.2. As Garantias Decorrentes do Tribunal do Júri

Certo é que a Constituição Federal, em seu artigo 5º, além de prever a instituição

do Júri, estabeleceu em seu favor garantias que são verdadeiros princípios constitucionais.

Estes devem reger o procedimento do Júri de modo a garantirem sua efetividade – daí serem

ditas garantias decorrentes, pois garantem a efetividade do Júri enquanto garantia

38 NUCCI, 2008, op. cit., p. 40.

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constitucional. São elas: Plenitude de Defesa, Sigilo das Votações, Competência para o

Julgamento dos Crimes Dolosos contra a Vida e Soberania dos Veredictos.

3.2.1. Plenitude de Defesa

Um dos princípios mais importantes do processo penal é o da ampla defesa. Todo

procedimento penal, de uma maneira geral, deverá ser regido pelo referido princípio, de sorte

que jamais se conceberá qualquer acusação sem que haja correspondente direito de defesa.

No cenário do Tribunal do Júri, tal princípio adquire forma peculiar. Trata-se o

Júri de um procedimento penal e, por conseguinte, deverá ser regido pelo princípio da ampla

defesa. Entretanto, o legislador constituinte, ao tratar das subgarantias da instituição,

estabeleceu que, mais do que ampla, no Júri a defesa deverá ser plena.

Muitos são os que afirmam não haver distinção substancial entre “ampla defesa” e

“plenitude de defesa” e que creditam o termo “plenitude”, empregado pelo constituinte, ao

simples fato de que a atual Carta, no que diz respeito ao Júri, incorporou o texto da

Constituição de 1946, a qual também utilizava o referido termo.

Entretanto, não nos parece correta essa visão. Mesmo que não tenha sido

incorporado ao texto de maneira proposital pelo legislador, não se pode negar que a inserção

do termo “plenitude de defesa” no texto constitucional foi bastante providencial, tendo em

vista que seu significado vai muito além do termo “ampla defesa”. Nas palavras de Guilherme

de Souza Nucci, “amplo é algo vasto, largo, copioso, enquanto que pleno equivale a completo,

perfeito, absoluto”39. Desse modo, enquanto nos procedimentos penais gerais se busca a mais

aberta possibilidade de defesa pelo acusado, possibilitando-o, para tal, de se utilizar de todos

os recursos previstos em lei, no procedimento do Júri, a defesa deve ser perfeita. Dentro das

limitações humanas, todos os meios com potencial para absolver o acusado deverão ser

empregados, ou seja, a defesa deve ser verdadeiramente completa.

Nesse compasso, no processo-crime comum, nem sempre que houver falhas na

defesa técnica realizada pelo advogado, precisará o juiz declarar o réu indefeso e nomear

outro defensor, já que, muitas das vezes, o próprio juiz poderá sanar o erro de ofício. No

39 NUCCI, 2008, op. cit., p. 25.

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procedimento do Júri, entretanto, percebendo o juiz qualquer defeito ou ausência de algum

meio de prova útil ao acusado, deverá declarar o acusado indefeso.

A explicação para tal reside no fato de que, como no Júri os jurados são juízes

leigos, nada conhecendo sobre teses e argumentos jurídicos, não poderiam de forma alguma

suprir qualquer deficiência da defesa. Por isso, então, no plenário do Júri a defesa deve se dar

de forma perfeita, completa, sendo que uma defesa apenas regular terá grandes chances de

colocar em risco a liberdade do acusado.40

Outros, no entanto, defendem a tese de que jamais poderá dizer-se irrestrita a

defesa, nem mesmo no âmbito do Júri. Caso assim o fosse, o princípio da plenitude de defesa

restaria em absoluta contradição às normas que, por exemplo, estabelecessem prazos para a

defesa, limites de testemunhas ou quaisquer outras limitações ao direito de defesa do acusado.

Desse modo, segundo essa corrente, o termo “plenitude de defesa” refere-se ao fato de que, no

Júri, goza-se da possibilidade de utilização, perante os jurados, de argumentos extrajurídicos,

tais como religiosos, filosóficos, morais, emocionais, etc. Na Tribuna do Júri, qualquer

argumentação é válida no exercício da defesa do acusado, seja essa argumentação jurídica ou

extrajurídica.

É nesse sentido, por exemplo, que se posiciona Elaine Borges Ribeiro dos Santos:

A Constituição anterior falava em ampla defesa. A atual também trata do assunto, mas atribui, de forma extraordinária, exclusivamente para o Júri, a figura da “plenitude de defesa” (art. 5.º, XXXVIII, “a”), e este é o ponto nodal a frisar neste artigo: há uma diferença enorme entre “ampla defesa” e “plenitude de defesa”, sendo a última muito mais ampla e complexa. (...) É por causa disso que existe, só no Júri, plenitude de defesa, pois o defensor poderá usar de todos os argumentos lícitos para convencer os jurados. No Tribunal do Povo, todas as ponderações, indagações e atitudes do advogado estão ligadas umbilicalmente à plenitude defensória exercida no Júri.41

A nosso ver, entretanto, tais correntes devem complementares, e não excludentes.

Ao dizer irrestrito o direito de defesa do acusado, quer-se traduzir a ideia de que, dentro dos

ditames previstos pela lei, é claro, e das limitações humanas, deverão ser utilizados todos os

meios possíveis para a absolvição do réu.

40 NUCCI, 2008, op. cit., p. 26. 41 SANTOS, Elaine Borges Ribeiro dos. A plenitude defensória perante o tribunal do Povo. 2005. Disponível em: <http://www.amprs.org.br/arquivos/comunicao_noticia/elaineb2.pdf>. Acesso em: 31 mar. 14. p. 1.

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3.2.2 Sigilos das Votações

A garantia do Sigilo das Votações estabelece que a votação pelos jurados deverá

se realizar em local reservado, de preferência na chamada “sala especial”, distante da vista do

público. Note-se que o texto refere-se ao “sigilo das votações” e não ao “sigilo do voto”, de

forma que o que se visa garantir pelo referido princípio é o ato de votar e não o voto

propriamente dito. Isso quer dizer que o que se busca resguardar por essa garantia em

específico, não é a cédula individual colocada pelo jurado, contendo “sim” ou “não”, mas o

momento do jurado apor o voto na urna.42 Entretanto, cumpre notar que, a nosso ver,

atualmente o “sigilo” estende-se tanto à votação quanto ao voto propriamente dito. Assim o é,

pois, no momento da apuração, uma vez constatado pelo juiz o sentido majoritário dos votos,

deverá ele encerrar a apuração sem que sejam apurados os votos restantes. Assim, por

exemplo, se os quatro primeiros votos apurados apontarem no mesmo sentido, deverá o juiz

pôr fim à apuração, já que os três votos faltantes não alterarão o resultado obtido.

Dessa forma, temos como evidente o objetivo de resguardar o sigilo dos votos

apostos pelos jurados. Uma vez não apurados todos os votos, torna-se impossível conhecer o

voto individual de cada jurado, o que não aconteceria caso todos os votos fossem apurados e

apontassem para uma unanimidade, por exemplo. Portanto, a nosso ver, o princípio do “sigilo

das votações” abarca tanto o momento da votação quanto o conteúdo das cédulas apostas na

urna pelos jurados.

A finalidade de tal preceito é clara no sentido de eliminar qualquer tipo de

influência ou pressão exercida sobre os jurados. Se os jurados proferissem seus votos na

frente do público assistente, facilmente seriam tomados pela pressão exercida pelos presentes

– que, aliás, comumente se manifestam durante a sessão do Júri – e teriam seus votos

maculados pela influência externa.

Apesar de já superada, houve discussão acerca da constitucionalidade de tal

preceito, já que, segundo muitos afirmavam, o sigilo das votações afrontava claramente o

princípio da publicidade. Entretanto, insta que se note que o próprio texto constitucional prevê

a possibilidade de se limitar a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade

ou o interesse social ou público assim o exigirem. Na questão em comento, tem-se como

evidente o interesse social envolvido no fato de que os jurados devam estar plenamente livres

42 NUCCI, 2008, op. cit., p. 31.

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e isentos no momento da prolação de seus votos, de maneira que não mais se justifica essa

discussão.43 Note-se que o sigilo das votações implica apenas e tão somente na restrição da

publicidade do ato, como expressamente autoriza a Constituição nos casos de interesse

público; não há que se dizer secreta a votação, tendo em vista que é realizada na presença do

juiz, do promotor e do advogado do acusado.

3.2.3. Competência para o Julgamento dos Crimes Dolosos contra a Vida

O artigo 5º, XXXVIII, d, da Constituição Federal expressamente estabelece a

competência do Tribunal do Júri para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Muito se

discutiu na doutrina – hoje em dia o tema é praticamente pacífico - acerca da extensão da

competência conferida ao Júri. Muitos afirmavam que se tratava de uma competência fixa, de

forma que não caberia ao Júri o julgamento de nenhum delito que não os dolosos contra a

vida. Entretanto, a doutrina majoritária, quase totalitária na atualidade e à qual nos filiamos,

acredita que o texto constitucional impõe apenas uma competência mínima à instituição do

Júri. Assim, todos os crimes dolosos cujo objeto jurídico é a vida – salvo os casos de foro

privilegiado – deverão ser julgados pelo Tribunal do Júri; isso não impede, todavia, que

outros delitos por ele também sejam julgados.

Essa nos parece, sem dúvidas, a melhor posição. A Carta constitucional assegura

o julgamento dos crimes dolosos contra a vida pelo Tribunal do Júri, não obstante, não

estabelece que somente a eles será destinado o Tribunal Popular. Bem por isso, a lei ordinária

pode atribuir ao Júri a competência para julgar crimes conexos aos dolosos contra a vida.

Tendo em vista a frequente conexão entre os crimes dolosos contra a vida e outros

delitos, não há como se conceber outra interpretação senão essa por nós adotada. Na conexão

entre um crime de estupro e um de homicídio, por exemplo, muito frequente no cotidiano de

nosso país, haveria necessidade de que cada um dos delitos fosse julgado em apartado, por

juízos distintos, em muito comprometendo a celeridade processual. Temos, pois, que a

competência do Tribunal do Júri não se limita apenas aos crimes dolosos contra a vida, mas se

estende também aos a eles conexos.

43 Ibid., p. 30.

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Outra questão de relevante importância diz respeito à opção pelos crimes dolosos

contra a vida no contexto do Tribunal do Júri. Guilherme de Souza Nucci, por exemplo,

afirma tratar-se exclusivamente de uma questão de política legislativa. Para garantir que a

instituição do Júri figurasse em nosso ordenamento, era preciso que um grupo qualquer de

crimes fosse o eleito; desse modo, com respaldo na Constituição de 1946, sem maiores

motivos, optou-se pelos crimes dolosos contra a vida.44

Conforme já pontuado no início do trabalho, entretanto, não nos parece tratar-se

de uma questão meramente política. A opção pelos crimes dolosos contra a vida, a nosso ver,

deve-se ao fato de essa categoria delitiva possuir estreita relação com valores

fundamentalmente sociais. O bem “vida” é, sem dúvida, o mais expressivo e relevante dos

bens, e o direito à vida é, inquestionavelmente, o primordial dentre aqueles previstos pela

nossa Constituição, de modo que se torna perfeitamente compreensível a opção pela

intervenção da sociedade no julgamento dessas condutas.45

É preciso que se consigne, todavia, a exceção quanto à competência para o

julgamento do crime de latrocínio. Muito embora figure como delito da maior gravidade e

atente também contra o bem “vida”, trata-se de crime complexo, de forma que atinge tanto o

bem “vida” quanto o “patrimônio”. Dessa sorte, a competência para o julgamento do crime de

latrocínio será da justiça comum e não do Júri.

3.2.4 Soberania dos Veredictos

A garantia da Soberania dos Veredictos, como objeto principal do presente

trabalho, terá seu momento oportuno para uma análise mais detida, de maneira que possamos

privilegiar suas peculiaridades e atermo-nos às relevantes questões que a circunscrevem. Por

ora, cumpre-nos estabelecer que a referida garantia deve ser entendida como a

impossibilidade de a decisão prolatada pelos jurados ser substituída por outra, de outro órgão

judiciário.46

Contudo, cumpre notar que a abrangência dessa garantia limita-se ao mérito da

causa. Isso quer dizer que jamais outro órgão judiciário poderá proferir outra decisão de

44 NUCCI, 2008, op. cit., p. 35. 45 Ibid., p. 36. 46 BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 467.

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mérito, substituindo aquela proferida pelos jurados. Entretanto, não caracterizará afronta à

Soberania dos Veredictos a decisão de formação de novo conselho de sentença para reanálise

da questão, dentro das hipóteses previstas em lei. Para tanto, a legislação ordinária

expressamente prevê as hipóteses – bastante limitadas, é verdade - de cabimento de Apelação

e Revisão Criminal, que em adequado momento serão analisadas. Não obstante, não é inútil

pontuar que a jurisprudência, com grande frequência, acaba por ignorar a previsão legal e, de

maneira contundente, interferir no mérito da decisão dos jurados.

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4. OS JURADOS

Antes de nos determos à análise da Soberania dos Veredictos, faz-se necessário

que foquemos a pessoa do jurado, que é quem prolata a decisão soberana. Nesse intuito,

questão de suma importância é a perquirição dos requisitos, previstos pelo Código de

Processo Penal, para que um indivíduo figure como jurado em uma sessão do Júri, e a

indagação acerca da conveniência desses parâmetros, tendo em vista as circunstâncias que

rodeiam um julgamento pelo Júri e, principalmente, o poder outorgado à decisão dos jurados

pela garantia da Soberania dos Veredictos. Dados, pois, a importância e o poder conferido às

decisões do Júri pela garantia da Soberania dos Veredictos, extremada é a responsabilidade

que recai sobre a pessoa dos jurados, de forma que muito cautelosa deverá ser a seleção do

corpo julgador, sendo, portanto, imprescindível que se questionem os requisitos de

recrutamento dos jurados.

4.1. Os Requisitos para que um indivíduo possa ser alistado como Jurado

O Código de Processo Penal é bastante sucinto no estabelecimento dos requisitos

para que um indivíduo possa ser jurado. O texto, cujo vigor teve início em 1941, outorgou o

direito-dever de ser jurado aos cidadãos maiores de 21 anos, isentos os maiores de 60 anos,

escolhidos dentre aqueles de notória idoneidade. Contudo, a Lei 11.689/08, dando nova

redação ao artigo 436 do CPP, modificou a idade mínima para 18 anos e elevou para 70 anos

o limite para a concessão da isenção, mantendo, todavia, o requisito da notória idoneidade.

Desde já atendo-nos à conveniência dos parâmetros previstos pelo texto legal, não

nos soa razoável a citada redução da idade mínima para se ser jurado. Primeiramente, tendo

em vista o requisito da notória idoneidade, ainda em vigor, independentemente do conceito

tomado, se relacionado à capacidade ou às condutas dos indivíduos, mostra-se bastante

dissonante a idade mínima de 18 anos prevista pela Lei de 2008. Ora, como pode alguém com

apenas 18 anos já possuir notória idoneidade? Nas palavras de Edilson Mougenot Bonfim,

não há que se duvidar que alguém nessa idade possa gozar de idoneidade, não obstante, não

há como se conceber que, nessa idade, um indivíduo possua notória idoneidade. O grau de

idoneidade está diretamente relacionado à experiência de vida do indivíduo, às ações por ele

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praticadas no decorrer de sua vida, de forma que não há como se constatar “notoriedade” nos

atos de um indivíduo que acaba de iniciar sua vida adulta.47

Outrossim, embora o indivíduo já possa ser considerado civil e penalmente capaz

para diversos atos aos 18 anos, parece-nos clara a inadequação do estabelecimento da referida

idade como limite para se ser jurado. Como já mencionado anteriormente, o cenário do Júri é

envolvido por um grande espectro de fatores de influência que, se não filtrados, podem guinar

o veredicto final no plenário do Júri. Nesse compasso, inevitavelmente os jurados serão

expostos ao “bombardeio” de informações veiculadas pela mídia, carregadas, na maioria das

vezes, de uma violência sem tamanho e sem fundo verídico. Desse modo, é corriqueiro que se

crie nos jurados uma percepção disforme em torno do delito. Igualmente poderosa é a pressão

sob a qual atuam os jurados; a sociedade, representada por aqueles que os circundam, cobra-

lhes a tomada de posição que lhes parece correta. Cabe, pois, ao jurado, filtrar os fatores de

influência – na medida do possível, é claro - para que possa prolatar seu veredicto baseado

exclusivamente em sua íntima convicção. É nesse ponto, então, que, a nosso ver, esbarra a

adoção da idade mínima de 18 anos, já que nos parece evidente a incompatibilidade entre a

percepção necessária de que ora tratamos e a imaturidade de um indivíduo de 18 anos.

Vale lembrar que, após a Emenda Constitucional 45/2004, passou-se a demandar

dos candidatos à carreira da magistratura o mínimo de três anos de atividade jurídica, após o

bacharelado em direito, de forma que, para que esteja capacitado para exercer a tarefa

judicante, o candidato deverá ter por volta de 25 anos. O intuito da mudança foi claro no

sentido de atribuir ao julgador um maior grau de maturidade, em vista da enorme

responsabilidade exigida por sua função. Ora, no contexto do Tribunal Popular não é

diferente, pois a responsabilidade é exatamente a mesma. Embora leigos, os jurados, mesmo

que não baseados em regras de direito, deverão valer-se de enorme ponderação, necessitando,

portanto, de alto grau de maturidade. Ora, por que, então, exige-se um período de experiência

aos juízes togados e, quanto aos jurados, permite-se que já aos 18 anos possam encarregar-se

da tarefa de julgar? Definitivamente, não há explicação plausível para tal.48

Outro tanto se diga acerca da majoração da idade limite permissiva de isenção.

Conforme dispõe a Lei 10.741/03, considera-se idoso aquele que possui idade igual ou

superior a 60 anos, de sorte que o antigo texto coadunava-se ao conceito estipulado pela

47 BONFIM, Edilson Mougenot. Júri: do Inquérito ao Plenário. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 187. 48 NUCCI, 2008, op. cit., p. 122.

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referida Lei. Ora, por qual motivo foi alterado esse parâmetro? Vale lembrar que a idade a que

nos referimos diz respeito ao limite para que se possa requerer a isenção do serviço do Júri;

não se está a impedir que um cidadão de 71 anos, por exemplo, caso queira, esteja

possibilitado de servir ao Júri. Com a já citada alteração legal, passou-se a impor que todos os

cidadãos com idade até 69 anos estejam obrigados à atividade jurisdicional, caso alistados

como jurados. Mais uma vez atendo-se à “enxurrada” de circunstâncias que tocam a

instituição do Júri, parece-nos imprudente a imposição do serviço jurisdicional a todos com

idade inferior a 70 anos. Há, é verdade, inúmeras pessoas que, aos 70 anos, possuem perfeito

poder de raciocínio e irretocável estabilidade emocional, entretanto, também não é menos

certo que não são poucos aqueles que chegam a essa idade com o mecanismo mental bastante

comprometido. Por essa razão, parece-nos ilógica a imposição do dever da atividade do Júri a

todos aqueles que não alcançaram a idade de 70 anos, sendo que, após essa idade, caso

queiram, poderão prosseguir no exercício jurisdicional.49

Quanto ao requisito da notória idoneidade, a doutrina, a exemplo de Guilherme de

Souza Nucci, tem entendido que tal termo refere-se à aptidão manifesta ou à competência

publicamente reconhecida de um cidadão.50

Outros, no entanto, dentre os quais se destaca Julio Fabrini Mirabete, posicionam-

se no sentido de que o termo “idoneidade” está relacionado à “conduta socialmente

escorreita” por parte do indivíduo, de forma que o quesito não se completaria através da

análise da aptidão do jurado, mas sim na perquirição do proceder social durante o transcorrer

da vida de cada cidadão.51 A notória idoneidade, então, consistiria no reconhecimento pela

sociedade da civilidade do indivíduo candidato a jurado.

Entretanto, a prática tem demonstrado que tal requisito não passa de verdadeira

utopia. Em uma pequena comarca, onde os indivíduos se conhecem uns aos outros, até seria

factível a análise acerca da idoneidade de alguém, não obstante, nos grandes centros, onde as

comarcas abrangem milhares ou até milhões de pessoas, torna-se absolutamente impraticável

o rigor desse parâmetro. Dessa sorte, o que se tem feito é, a bem da verdade, ignorar tal

requisito. No cotidiano forense, o alistamento é feito basicamente com base nos dados dos

49 NUCCI, 2008, op. cit., p. 123. 50 Ibid., p. 124. 51 MIRABETE, Julio Fabrini apud ANSANELLI JÚNIOR, Angelo. O Tribunal do Júri e a Soberania dos Veredictos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 77.

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cartórios eleitorais e em listas absolutamente aleatórias, de maneira que o se leva realmente

em conta é o quesito idade.52

Além desses requisitos, exige-se, também, assim como ocorre para os cargos de

magistrado, que o indivíduo seja cidadão brasileiro e que esteja no pleno gozo de seus direitos

políticos. É bastante razoável, aliás, tal imposição, já que os jurados, no exercício de sua

função, são verdadeiros juízes de fato, tendo em vista que a justiça que se busca no Júri não

difere daquela visada pela magistratura organizada em carreira.53

Existem, ainda, outros requisitos que, mesmo não previstos em lei, têm sido

exigidos para que uma pessoa possa ser jurado. Nesse compasso, questão de extremada

importância é a exigência da alfabetização para os jurados. Não obstante o Código de

Processo Penal estabelecer que não serão excluídos os cidadãos em razão do grau de

instrução, temos que, no caso dos analfabetos, estes não possuem grau de instrução algum.

Devido à exigência da incomunicabilidade dos jurados, faz-se absolutamente necessário que

eles sejam alfabetizados, caso contrário, como poderiam entender os quesitos que lhe são

ofertados para que prolatem seus votos?54

São levados em consideração, também, os problemas de ordem física e mental.

Não será, por exemplo, concebível que um surdo-mudo figure como jurado em uma sessão do

Júri, apesar de não consistir qualquer problema o fato de um indivíduo a que falte uma perna

possa participar do Tribunal Popular. Temos, pois, que, com o máximo de razoabilidade, cada

caso deva ser analisado individualmente, assim como ocorre nos casos de deficiência mental,

em que o cidadão somente será impedido de ser jurado se constatado que o problema poderá

comprometer sua perfeita percepção do caso.

Nesse sentido, muito se tem discutido acerca da exigência de um nível cultural

mínimo aos jurados. Enquanto alguns afirmam que tal requisito feriria frontalmente o caráter

democrático do Júri, outros o entendem perfeitamente aceitável. A nosso ver, deve-se exigir

que o jurado tenha, no mínimo, capacidade para compreender o caso e as teses que lhe são

apresentadas, para que assim possa verdadeiramente julgar o acusado. Entretanto, ressalte-se

que análise do cumprimento desse quesito deve, mais uma vez, ser realizada com o máximo

possível de razoabilidade.

52 NUCCI, 2008, op. cit., p. 124. 53 BONFIM, 2012, op. cit., p. 190. 54 NUCCI, 2008, op. cit., p. 124.

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Acerca da conveniência dos parâmetros estabelecidos, concluímos, portanto, não

serem de todo adequados. Mostram-se, ainda, fruto de escassa reflexão do legislador sobre o

tema, que, por sua importância, exigiria um maior cuidado legislativo. Outrossim, entendemos

que outros que não os expressamente previstos pela legislação deverão ser também utilizados,

no intuito de minimizarmos os riscos de comprometimento do resultado dos julgamentos pelo

Júri.

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5. CASUÍSTICA

A questão da soberania dos veredictos, objeto primordial do presente trabalho, é

tema de numerosos contornos. Vasta é a problemática que se cria a partir da contextualização

do princípio na atuação prática do Tribunal do Júri e, nesse cenário, é muito importante o

estabelecimento dos limites balizadores do referido preceito.

A inquirição acerca da limitação da soberania dos veredictos se impõe

principalmente em decorrência do confronto que existe entre a formação leiga dos jurados e o

direito propriamente dito, tendo em vista que o julgamento por eles realizado perfaz-se de

maneira absolutamente desvinculada de quaisquer ditames jurídicos. É especialmente em

função dessa dicotomia que, em determinadas hipóteses, se torna necessária a mitigação do

princípio em comento, já que, muitas das vezes, a decisão tomada pelo juiz leigo acaba se

chocando frontalmente com o ordenamento jurídico vigente, de modo a ignorar o complexo

de princípios e valores previstos pela Constituição Federal, com os quais, sem exceção, todas

as decisões judiciárias deveriam harmonizar-se.

Nesse cenário, perquire-se, ainda, se o Júri, enquanto tribunal popular, soberano e

livre de amarras jurídicas, não teria justamente como escopo a possibilidade de proferir

veredictos em sentidos contrários àqueles indicados pelo ordenamento jurídico, já que se vale

de elementos de convicção totalmente díspares dos utilizados pelos tribunais togados, tal

como a comoção social, por exemplo.

Nesses casos, então, configura-se de grande relevância o estudo da Soberania dos

Veredictos, para que, através da imposição dos limites ao princípio, possa-se estabelecer se o

confronto criado entre a decisão prolatada pelos jurados e o direito está ou não abarcado pelo

preceito da Soberania dos Veredictos.

A título de ilustração dessa situação, expõe-se um caso em que a decisão dos

jurados foi manifestamente contrária à prova dos autos, sendo, portanto, contrária também ao

direito propriamente dito.

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5.1. Apelação Nº 1.0216.10.008633-1/002 – TJMG

No caso em questão, insurgiu-se o Ministério Público contra sentença prolatada na

comarca de Diamantina, que absolveu o acusado da imputação do delito do art. 121, § 2º,

inciso IV, c/c art. 14, inciso II, ambos do CP, nos termos do artigo 386, VI, do CPP.

Em breve síntese, pugna o Ministério Público pela cassação da decisão ora

referida, fundamentando o recurso apelatório ao argumento de que o Conselho de Sentença se

distanciou da prova dos autos ao absolver o acusado. Desse modo, o órgão acusatório sustenta

que a decisão dos jurados se deu de maneira manifestamente contrária à prova dos autos,

sendo passível, portanto, de anulação via o recurso de apelação.

Segundo a denúncia, no dia 08 de novembro de 2010, por volta das 19:00 horas,

no município de Diamantina/MG, o então denunciado, consciente e voluntariamente, com

animus necandi, impelido por motivo fútil e de maneira a dificultar a defesa, tentou ceifar a

vida de sua esposa, desferindo-lhe vários golpes de marreta na cabeça, causando-lhe sérias

lesões corporais, não a levando a óbito por razões alheias à vontade do agente.

Consta dos autos que, na data supracitada, a vítima estava em sua residência

tomando banho, quando foi surpreendida pelo acusado, o qual, armado com uma marreta,

desferiu cerca de cinco golpes contra sua cabeça, com o claro objetivo de matá-la, só não

atingindo seu intento por razões alheias à sua vontade, em virtude de a vítima haver

conseguido fugir e receber pronto atendimento médico.

Ao ser interrogado em juízo, o réu prontamente afirmou que: "os fatos narrados na

denúncia são verdadeiros; que o depoente perdeu a cabeça; que o acusado pegou um

martelinho e bateu na cabeça da vítima; que a vítima estava tomando banho; que o depoente

fez isso por tentação da vítima; que o depoente viu a vítima no carro com outro homem (...)".

Em seus depoimentos, tanto a vítima como todas as testemunhas ouvidas foram

uníssonas no sentido de que não fora a primeira vez que o acusado a agredira por razões de

ciúmes. Afirmaram ainda que o réu frequentemente bebia e que todos já imaginavam que o

episódio iria acontecer uma hora ou outra, tendo em vista o ciúme descontrolado do acusado.

Pois bem, conforme narrado, temos que o réu expressamente confessou a autoria

do crime, apenas justificando sua atitude em razão do suposto adultério por parte da vítima.

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Tem-se como certo, então, que o conjunto probatório indica de maneira absolutamente

harmônica para a condenação do acusado.

Entretanto, esse não foi o entendimento adotado pelo Conselho de Sentença no

julgamento do caso. Os jurados, após responderem afirmativamente aos 1º, 2º e 3º quesitos,

que indagavam a respeito da materialidade e da autoria do crime, quanto ao 4º quesito, que

inquiria se absolviam o acusado, por maioria de votos, entenderam positivamente. Ora,

infere-se, pois, que os jurados acolheram a tese da legítima defesa da honra sustentada pelo

apelado. Após confessar a autoria delitiva, a única ressalva feita pelo apelado e pela tese

defensiva, é a de que agira no sentido de defender a sua honra, já que havia suspeitas de que a

esposa o traía, de modo que esse foi o único fundamento que sustentou a decisão dos jurados.

Portanto, é evidente e manifesta a contrariedade existente entre a decisão dos

jurados e as provas dos autos, de modo que não foi outro o entendimento do Tribunal de

Justiça de Minas Gerais, que, em excelente acórdão, determinou a realização de novo

julgamento.55

Cumpre frisar que a legítima defesa da honra, na qual se apoiaram os jurados no

intuito de inocentar o réu, não foi recepcionada pelo Código de Processo Penal, de forma que,

além de haverem julgado o caso em contrariedade com as provas colhidas, o julgaram,

também, em contrariedade com o direito vigente.

Nesse compasso, mostram-se absolutamente claras as implicações da formação

leiga dos jurados, que julgam totalmente desprendidos de quaisquer ditames jurídicos,

levando em conta em seus fundamentos decisórios, muitas das vezes, elementos

absolutamente ignorados pelo direito positivado, tal qual a honra ferida do marido, como no

caso em questão, ou, às vezes, sentimentos de vingança, ou tantos outros.

55 APELAÇÃO CRIMINAL - JÚRI - TENTATIVA DE HOMICÍDIO QUALIFICADO - LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA - EXCLUDENTE DE ILICITUDE QUE PRESSUPÕE A COEXISTÊNCIA DOS REQUISITOS ALINHADOS NO ART. 25 DO CÓDIGO PENAL - NÃO OCORRÊNCIA - DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA A PROVA DOS AUTOS - CASSAÇÃO DO VEREDICTO POPULAR - SUBMISSÃO DO RÉU A NOVO JULGAMENTO - RECURSO MINISTERIAL PROVIDO. I- E manifestamente contrária à prova dos autos a decisão do Conselho de Jurados que absolve o acusado do delito de tentativa de homicídio, ante o acolhimento da tese de legítima defesa, haja vista que restou provado a ausência dos requisitos necessários para se reconhecer referida excludente. II- A possibilidade do adultério não coloca o marido em estado de legítima defesa. (TJ-MG, Relator: Eduardo Machado, Data de Julgamento: 17/09/2013, Câmaras Criminais / 5ª CÂMARA CRIMINAL).

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A questão que se impõe, então, é se essa “liberdade decisória” corresponderia

justamente ao escopo previsto para instituição do Júri, ou seja, se essas decisões motivadas

por fatores não jurídicos estariam cumprindo o papel do júri ou se elas representariam um

desvio do sistema. Ainda nesse cenário, é de se indagar quais são os limites dessa

desvinculação das decisões do júri, bem como até que ponto vigora a soberania de suas

decisões. Estabelecemos desde já como certo que tal prerrogativa não pode se dar de maneira

absoluta, residindo nesse ponto o foco primordial do presente trabalho.

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6. SOBERANIA DOS VEREDICTOS

6.1 O Conceito de Soberania

O termo “soberania” não é de simples conceituação. Segundo definição de

Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, o significado do vocábulo relaciona-se ao poder ou

autoridade suprema, ou ainda, à propriedade que tem um Estado de ser uma ordem suprema

que não deve sua validade a nenhuma outra ordem superior.56 São muitos, entretanto, os

vieses através dos quais se pode definir o termo. Em uma conceituação política, por exemplo,

Norberto Bobbio, Nicola Mateucci e Gianfranco Pasquino afirmam que: “em sentido lato, o

conceito político de soberania indica o poder de mando de última instância, numa sociedade

política e, consequentemente, a diferença entre esta e as demais associações humanas em cuja

organização não se encontra esse poder supremo”.57

No âmbito da Teoria Geral do Estado, tem-se entendido que, em que pese à

complexidade do termo e à amplitude com que oscila durante o transcorrer do tempo, o

conceito de “soberania” perfaz-se em um poder que não conhece outro a ele superior.58

Das definições expostas, apesar de versarem cada qual sob um enfoque diverso,

denota-se que não há como se desvincular o conceito de soberania à ideia de um poder

supremo, à imagem de uma autoridade superior, a nenhuma outra vinculada. É com base

nesse fundamento, por exemplo, que se diz soberano o Estado, já que as decisões por ele

emanadas não podem ser alteradas por quem quer que seja; sua autoridade, enquanto ente

político, não esbarra na autoridade de qualquer outro ente.

Em relação à instituição do Júri, o conceito de soberania expresso no princípio da

“Soberania dos Veredictos”, não obstante estar revestido do mesmo ideal de “poder superior”,

não apresenta a mesma amplitude abarcada pelo conceito de “soberania estatal”. Conforme

estabelece Guilherme de Souza Nucci, “não se quer construir, para o Tribunal Popular, o

mesmo significado que soberania possui para um Estado diante de outros na comunidade

56 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda apud ANSANELLI JÚNIOR, op. cit., p. 72. 57 BOBBIO, Norberto et al. apud ANSANELLI JÚNIOR, op. cit., p. 72. 58 ANSANELLI JÚNIOR, op. cit., p. 73.

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internacional”. Desse modo, quer-nos parecer que, embora não se possa dissociar a Soberania

dos Veredictos do caráter de poder supremo e definitivo, tal caráter circunscreve-se de limites

e restrições impostos pelo sistema processual penal, de forma que a pretensão de um suposto

poder supremo restaria limitada à impossibilidade de que algum órgão jurisdicional possa

sobrepor-se às decisões do Júri para exercer, simultaneamente, o judicium rescidens e o

judicium rescisssorium, conforme pontua Fernando da Costa Toruinho Filho.59

A título de conclusão, então, estabelecemos que o termo “Soberania”, muito

embora venha revestido de um significado e de um caráter bastante forte no âmbito da Teoria

Geral do Estado, no que se refere à soberania dos Estados Nacionais, no tocante à instituição

do Júri, nota-se que a ideia de poder supremo, acima de qualquer autoridade, resta bastante

relativizada, principalmente em decorrência dos limites e princípios impostos pelo sistema

processual penal. Dessa sorte, o conceito de soberania, conteúdo do princípio da Soberania

dos Veredictos, restringe-se à impossibilidade de que a decisão dos jurados seja substituída

pela decisão de um tribunal togado.

6.2 Delimitação do Princípio

Conforme já estabelecido, a Soberania dos Veredictos figura dentre uma das

garantias decorrentes do Tribunal de Júri. Como garantia, então, tem por finalidade precípua

assegurar que um direito, a ela correspondente, seja efetivamente fruído. Conforme já

pontuado, temos que a instituição do Júri, como garantia fundamental, dedica-se à proteção do

efetivo cumprimento do devido processo legal. A Soberania dos Veredictos, por sua vez,

enquanto subgarantia do Tribunal do Júri, assegura o direito de que o veredicto final seja

efetivamente prolatado pelos jurados.

Isso quer dizer que, figurando como um dos sustentáculos da instituição do Júri, o

referido princípio representa a impossibilidade de reforma das decisões do tribunal popular

diretamente pela magistratura togada, no pressuposto de que juízes togados não podem

substituir os jurados nas causas de competência originária do Júri.60

59 Ibid., p. 73. 60 MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. Campinas: Bookseller, 1997, p. 456.

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Em verdade, temos que a garantia da Soberania dos Veredictos corresponde à base

sustentadora da instituição do Júri, pois, sem ela, jamais haveria como se conceber o tribunal

popular, assim como o temos hoje. Não há, pois, como se imaginar que, havendo um tribunal

popular, pudessem ser suas decisões a qualquer hora reformadas pelo tribunal ad quem.

Principalmente em decorrência do fato de as decisões do Júri não serem motivadas, somado

ao fato de os veredictos perfazerem-se absolutamente desvinculados de qualquer ditame

jurídico, bastante improvável seria o veredicto prolatado pelos jurados que não fosse alterado

pelo tribunal através da via recursal, não fosse a garantia da Soberania dos Veredictos.

Nesse sentido, André Mauro Lacerda Azevedo precisamente pontua: “A soberania

é imprescindível à própria existência do tribunal popular, já que os jurados não estão adstritos

ao direito, mas sim à análise racional dos fatos e provas, sempre orientada por sua íntima

convicção”.61

A nosso ver, pois, o princípio da Soberania dos Veredictos, como garantia

constitucional que é, destina-se a garantir não somente que a decisão final seja aquela

prolatada pelos jurados, mas, também, de maneira mais remota, garantir a própria existência

da instituição do Júri. Nesse contexto, então, o que se percebe é que a Soberania dos

Veredictos assume a nítida função de garantir a efetividade de outra garantia constitucional,

qual seja, a do Tribunal do Júri. Constitui, portanto, verdadeira garantia à garantia do Tribunal

do Júri, já que, se não estivesse assegurado que a decisão dos jurados não pudesse ser

reformada pela magistratura togada, comprometida estaria a existência da instituição do Júri.

Conforme já estabelecido, é importante frisar que a impossibilidade de reforma

pelo tribunal ad quem diz respeito apenas ao mérito da causa decidida, de modo que um

tribunal togado jamais poderá alterar o veredicto prolatado pelos jurados, não estando,

entretanto, impedido de remeter o caso a outro julgamento pelo Tribunal do Júri. O que se

veda através do princípio em comento, portanto, é apenas e tão somente a substituição da

decisão proferida pelo Tribunal do Júri por outra de outro órgão judiciário.

Questão de maior relevância, entretanto, e objeto primordial do presente trabalho,

é a limitação da garantia da Soberania dos Veredictos. Certo é que a restrição ao poder de

revisão das decisões prolatadas pelo tribunal popular não é absoluta, de sorte que existem

alguns mecanismos que relativizam a vedação imposta pelo preceito em comento, dentre os

61 AZEVEDO, op. cit., p. 52.

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quais se cita como exemplo a revisão criminal e a apelação, os quais, no momento adequado,

serão devidamente analisados.

6.3 Histórico da Soberania dos Veredictos

A ideia de Soberania dos Veredictos, elementar à instituição do Júri, tem suas

origens ainda na Grécia Antiga, antes mesmo do surgimento do Tribunal do Júri,

propriamente dito, período no qual vigorava o Tribunal dos Heliastas. As decisões proferidas

por esse Tribunal, por conta da embrionária ideia de soberania, eram absolutamente

definitivas, de modo que contra elas não cabia qualquer sorte de recursos. Luiz Carlos de

Azevedo, acerca dos primórdios da garantia da Soberania dos Veredictos afirma: “as decisões

emanadas deste órgão, justamente por constituírem expressão da vontade e soberania popular,

eram definitivas, não admitiam recurso algum; sua jurisdição e competência estendiam-se

tanto às causas públicas como às privadas”.62

Constata-se, pois, que já àquela época, a imutabilidade das decisões estava

relacionada ao fato daquelas decisões expressarem exclusivamente a vontade da população.

Ora, se o tribunal é regido pela voz popular, ou seja, se as decisões tomadas são mera

expressão daquilo que os indivíduos têm por vontade, não há razões para que haja meios de

recurso. Se o que é levado em conta é apenas e tão somente a vontade do povo, em que

medida essa decisão pode ser falha e, portanto, passível de recurso? No funcionar de um

tribunal popular, não há parâmetros pelos quais devem guiar-se as decisões; aquilo que é

escolhido pela população é que constitui o direito. Dessa sorte, uma vez prolato o veredicto

por voz popular, não há que se falar em decisão acertada ou falha e, portanto, não há que se

falar em recorribilidade.

É nesse contexto, então, que se enquadrava a imutabilidade das decisões do

Tribunal dos Heliastas e que se enquadra, hoje, a garantia da Soberania dos Veredictos. Desse

modo, é perfeitamente cabível que se trace uma linha evolutiva partindo do Tribunal dos

Heliastas, chegando à configuração atual com que conhecemos o princípio da Soberania dos

Veredictos.

Outros, porém, defendem o surgimento do princípio apenas com a Magna Carta,

em 1215, concomitantemente ao surgimento da instituição do Júri. Os que assim pensam 62 AZEVEDO, Luiz Carlos apud AZEVEDO, op. cit., p. 53.

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chegam a essa conclusão baseados no fato de que a Magna Carta não fez alusão ao princípio

do duplo grau de jurisdição, omitindo-se, portanto, sobre as vias recursais, do que se deduz,

segundo eles, a irrecorribilidade das decisões. A inexistência de previsão de recursos pela

Magna Carta, então, seria o germe do que hoje concebemos como Soberania dos Veredictos.63

Apesar de haver certa discussão acerca do efetivo surgimento do princípio, é

ponto incontroverso na doutrina o fato de a garantia haver adquirido extremada relevância à

época da Revolução Francesa. Segundo o ideal revolucionário, a soberania das decisões do

Júri estava intimamente ligada à ideia de soberania popular; esta, fortemente difundida pela

revolução no combate ao regime absolutista. A ideia de que as decisões emanadas do povo

eram irrecorríveis era adjacente ao ideal de que o povo era detentor também do poder político,

de modo que a garantia da Soberania dos Veredictos se enquadrava em um contexto muito

mais amplo, qual seja, o de Soberania Popular.64

Conclui-se, portanto, que, apesar de pairarem dúvidas acerca do período em que

surgiu o princípio da Soberania dos Veredictos, é unânime o fato de que seu desenvolvimento

e sua consolidação como princípio norteador do Tribunal do Júri deu-se à época da Revolução

Francesa, com a valorização da soberania popular em detrimento do poder absolutista.

Muito influenciada pelos ideais burgueses, então, a Soberania dos Veredictos

passou a constituir requisito elementar à instituição do Júri, correspondendo, até os dias de

hoje, condição sine qua non para seu efetivo funcionamento como órgão jurisdicional.

6.4 Limites ao Princípio da Soberania dos Veredictos

Apesar de constituir o princípio da Soberania dos Veredictos um dos

sustentáculos basilares da instituição do Júri, não obstante sua expressiva representatividade

no cenário constitucional nacional, a garantia da soberania da decisão dos jurados sofre

algumas limitações. Entretanto, cumpre firmar desde já que a existência de limites processuais

ao princípio não implica em um enfraquecimento da instituição do Júri, nem mesmo em um

declínio do Tribunal Popular. Aliás, muito pelo contrário, a imposição de limites e restrições à

imutabilidade das decisões dos jurados apenas reafirma seu caráter amplamente democrático e

63 AZEVEDO, op. cit., p. 53. 64 Ibid., p. 53.

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garantista, já que a relativização da soberania impede, ou ao menos dificulta, que o Júri seja

utilizado como instrumento de perpetuação do arbítrio e da injustiça.65

Conforme já pontuado na parte introdutória do presente trabalho, o Júri

caracteriza-se por ser um tribunal essencialmente democrático, no qual os juízes leigos

afastam-se das amarras do direito positivado e apegam-se ao senso geral de justiça, de

equidade, de moral, enfim, apoiam-se em um amplo complexo de valores vigorantes na

sociedade. Entretanto, essa suposta liberdade e desvinculação com que julgam os jurados no

Tribunal Popular jamais, em hipótese alguma, poderão ser empregadas no intuito de sustentar

decisões em desconformidade com os elementos de convicção colhidos durante a fase

instrutória do processo.66 Bem por isso é que se faz necessária a imposição de limites à

soberania das sentenças prolatadas pelos jurados, pois, caso contrário fosse, abrir-se-ia a

possibilidade de que decisões manifestamente ilegais, já que contrárias às provas dos autos,

fossem acobertadas pela garantia da Soberania dos Veredictos.

É nesse sentido que se autoriza, em hipóteses específicas, é verdade, a superação

do princípio da Soberania dos Veredictos. Fugindo, pois, à regra da inalterabilidade das

decisões do Júri, estabelece-se, para esses casos determinados, a possibilidade de controle das

decisões por juízes togados, de modo a reforçar a ideia de que a garantia da soberania não

implica em um arbítrio e, muito menos, em um poder absoluto da justiça popular na decisão

das causas, significando apenas e tão somente a impossibilidade de a justiça togada substituir

os jurados na prolação dos veredictos.67

Aliás, nem mesmo esse corolário é absoluto, uma vez que se tem admitido o

cabimento de Revisão Criminal contra as decisões prolatadas pelo Tribunal Popular, de forma

a se substituírem as sentenças do Júri, após o seu trânsito em julgado. Acerca dessa

possibilidade, Romualdo Sanches Calvo Filho, precisamente estabelece:

O art. 5º, XXXVIII, “c”, da CF põe em relevo a soberania dos veredictos emanados dos senhores jurados, não tendo a soberania aí o mesmo alcance e significado que era de se esperar daquele encontrado no Direito Constitucional, ou seja, a soberania do Júri não é fonte única e incontrastável de poder, mas limitada á impossibilidade de outro órgão jurisdicional reformar a decisão oriunda dos jurados para absolver o réu condenado ou condenar o réu absolvido, com seus efeitos restritos ao processo enquanto relação jurídico-processual não decidida, isto é, não transitada em julgado, visto que a decisão de mérito proveniente dos jurados, após isso, não fica

65 AZEVEDO, op. cit., p. 54. 66 Ibid., p. 54. 67 AZEVEDO, op. cit., p. 55.

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indene a revisão criminal, a qual poderá até absolver o réu condenado pelo Júri (...).68

Nota-se, portanto, que a impossibilidade de substituição da decisão dos jurados

restringe-se ao transcurso do processo, de forma que, após o trânsito em julgado, o veredicto

dos jurados não mais se diferencia de qualquer outra sentença prolatada por um tribunal

togado, não havendo, pois, empecilhos para que, nas hipóteses de cabimento de revisão

criminal, ele seja substituído por decisão do tribunal ad quem.

Temos, então, que a garantia da Soberania dos Veredictos não é absoluta, já que

limitada por mecanismos que atenuam seu caráter de poder absoluto e definitivo. No intuito

de analisar a limitação do princípio, portanto, é preciso que se procure estudar os mecanismos

previstos pela lei processual penal, notadamente a apelação e a revisão criminal, bem como

sugerir outros instrumentos processuais, que não os previstos, com potencialidade a tornar os

julgamentos pelo tribunal popular mais razoáveis e justos.

6.5 Mecanismos de Limitação à Soberania dos Veredictos

6.5.1 Apelação

A apelação é o mecanismo que de maneira mais incisiva limita o princípio da

Soberania dos Veredictos. Bem por isso, é também o instrumento que oferece maior risco à

garantia, sendo, por esse motivo, causa de grandes questionamentos doutrinários, no que se

refere principalmente a sua constitucionalidade.

A apelação contra as decisões do Júri foi inserida no ordenamento jurídico

brasileiro em 1832, ainda no período imperial, vindo expressa no artigo 301 do Código de

Processo Criminal do Império, com cabimento previsto para os casos em que os juízes

togados não se conformassem com a decisão proferida pelos jurados. Nesse ínterim, em 3 de

dezembro de 1841 foi editada a Lei nº 261, que em seu artigo 79 previa a possibilidade de

68 CALVO FILHO, Romualdo Sanches. Manual Prático do Júri. São Paulo: Livraria e Editora Universitária de Direito, 2009, p. 45.

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apelação ex-officio sempre que o juiz verificasse que a decisão dos jurados contrariava as

provas e as evidências contidas no processo.69

Durante a República, entretanto, vigorava a multiplicidade de legislações, de

forma que cada Estado possuía seu Código Processual. Nesse período, quase a totalidade dos

Estados – à exceção do Rio Grande do Sul e do Ceará – não admitiam que os tribunais

togados viessem a reformar as decisões prolatadas pelo Tribunal do Júri. Com o advento do

Decreto-Lei nº 167 de 1938, entretanto, passou-se a admitir que os Tribunais de Apelação

reformassem as decisões do Júri, sendo que, em razão dessa disposição, foi inserido o artigo

606 no Código de Processo Penal de 1941, expressamente prevendo essa possibilidade.70

A partir da edição da Lei nº 261, foram diversas as normas que disciplinaram o

recurso de apelação no Tribunal do Júri, ora se conferindo um maior poder recursal aos juízes

togados, ora se restringindo a recorribilidade das decisões prolatadas pelo tribunal popular.71

Conforme já pontuado anteriormente, com o advento da Constituição Federal de 1946,

a Soberania dos Veredictos passou a gozar de status constitucional, de modo que as disposições

constantes do Decreto nº 167/38, que expressamente autorizavam a reforma das decisões do Júri

pelos tribunais togados, passaram a ter sua constitucionalidade questionada. Nesse ínterim, com a

consagração do princípio pelo texto constitucional, o artigo 593, inciso III, do Código de Processo

Penal foi alterado, passando a constar, até os dias de hoje, a seguinte redação:72

Art. 593. Caberá apelação, no prazo de cinco dias:

III – das decisões do Tribunal do Júri, quando: a) ocorrer nulidade posterior à pronúncia; b) for a sentença do Juiz-Presidente contrária à lei expressa ou à decisão dos jurados; c) houver erro ou injustiça no tocante à aplicação da pena ou da medida de segurança; d) for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos.

§3º Se a apelação se fundar no inciso III, letra d, deste artigo, e o Tribunal ad quem se convencer de que a decisão dos jurados é manifestamente contrária à prova dos autos, dar-lhe-á provimento para sujeitar o réu a novo julgamento; não se admite, porém, pelo mesmo motivo, segunda apelação.

Atendo-nos às hipóteses de cabimento de apelação previstas pelo artigo, notamos,

de pronto, o caráter peculiar com que se reveste o recurso na instituição do Júri, em razão da

69 AZEVEDO, op. cit., p. 56. 70 ANSANELLI JÚNIOR, op. cit., p. 94. 71 AZEVEDO, op. cit., p. 57. 72 ANSANELLI JÚNIOR, op. cit., p. 94.

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aplicação do princípio da Soberania dos Veredictos. Isso se dá, pois, notadamente nas

hipóteses previstas pelas alíneas “a” e “d”, a apelação adquire uma forma absolutamente sui

generis. Nesses casos, configuradas as hipóteses de incidência, o tribunal togado realizará

apenas e tão somente o juízo rescindente, cassando a decisão prolatada e determinando seja o

réu submetido a novo julgamento, não havendo, portanto, substituição da sentença

anteriormente proferida. Conforme já estabelecido, a garantia constitucional da soberania das

decisões do júri tem como escopo a impossibilidade de substituição dos jurados na prolação

das sentenças no Júri. Dessa sorte, é inegável que a adequação do recurso à instituição do Júri

se perfaz no claro sentido de harmonizar os princípios do duplo grau de jurisdição e da

Soberania dos Veredictos.

Nas hipóteses contidas nas alíneas “b” e “c”, contudo, essa peculiaridade não se

configura, uma vez que a decisão a ser reformada é prolatada por magistrados togados, não

havendo, portanto, óbices para que seja substituída por outra decisão, sem que haja qualquer

ofensa a garantia da Soberania dos Veredictos. Nessas situações, se preenchidas as hipóteses

de cabimento, o tribunal ad quem realizará tanto o juízo rescindente como o juízo rescisório,

reformando e efetivamente substituindo a decisão anteriormente proferida.

No que se refere à Soberania dos Veredictos, então, de extremada importância

será, principalmente, a análise das alíneas “a” e “d” do inciso III do artigo 593 do Código de

Processo Penal.

6.5.1.1 Das Hipóteses de Cabimento

A alínea “a” estabelece que caberá apelação nos casos em que ocorrer nulidade

posterior à pronúncia. Nesse tocante, questão bastante discutida na doutrina é se o provimento

à apelação com base em tal fundamento não violaria a garantia da Soberania dos Veredictos,

já que, segundo muitos defendem, o fim precípuo do tribunal do Júri seria justamente o de

estabelecer um julgamento livre das amarras do direito, um julgamento descompromissado

com prescrições legislativas, de modo a não se poder conceber o cabimento de apelação com

fundamento em nulidades.

Entendemos, todavia, não haver qualquer afronta ao princípio, já que, segundo

afirma a doutrina dominante e conforme já pontuado no presente trabalho, a Soberania dos

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Veredictos restringe-se ao mérito das decisões prolatadas pelos jurados, de forma que

questões relativas às suas formalidades não estariam abarcadas pela impossibilidade de

revisão pelo tribunal togado. Nesse sentido, então, na hipótese de cabimento da alínea “a”, o

tribunal ad quem apenas avalia a irregularidade formal do julgamento e, havendo error in

procedendo, - note-se, o cabimento restringe-se aos casos de error in procedendo, não se

cogitando a reforma de decisões eivadas de error in judicando – declara a anulação do

processo, determinando novo julgamento pelo tribunal do Júri. Frise-se, contudo, que as

nulidades capazes de ensejar o provimento de apelação referem-se exclusivamente às

nulidades absolutas, pois, no caso das relativas, se não causarem prejuízo e se não forem

alegadas no momento oportuno, estarão automaticamente sanadas.73

Questionamento de grande pertinência diz respeito à amplitude da soberania no

segundo julgamento. Ora, após determinado novo julgamento pelo tribunal ad quem, estaria

também ele totalmente abarcado pela garantia da Soberania dos Veredictos? Poderia ele, por

exemplo, julgar de maneira mais prejudicial ao réu do que fora no primeiro, em total

detrimento à vedação expressa da reformatio in pejus, prevista pelo artigo 617 do CPP?

Ora, cumpre notar que, a princípio, o artigo 617 estabelece vedação apenas à

reformatio in pejus direta, ou seja, prescreve a impossibilidade de reforma para pior, apenas

nos casos em que o recurso for exclusivamente do acusado. Entretanto, com base nesse

dispositivo, a doutrina e a jurisprudência começaram a consagrar o entendimento – hoje

pacífico – de que a vedação à reformatio in pejus indireta também estaria abrangida pelo

referido artigo, de modo que, no caso de novo julgamento, seria vedada a aplicação de pena

mais grave do que a fixada no primeiro.74

No que tange aos julgamentos pelo Tribunal do Júri, houve, por diversas vezes,

manifestações do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de

que, sendo o Júri soberano na prolação de suas decisões, não haveria cabimento em se proibir

a reformatio in pejus indireta no segundo julgamento, já que o artigo 617 do CPP, que a veda,

configura-se como uma lei ordinária, ao passo que o princípio da Soberania dos Veredictos

figura dentre uma das garantias constitucionais, prevalecendo, pois, sobre o dispositivo

ordinário.75

73 ANSANELLI JÚNIOR, op. cit., p. 95. 74 ANSANELLI JÚNIOR, op. cit., p. 96. 75 Ibid., p. 96.

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Entretanto, mais recentemente, tem nascido o entendimento de que o princípio da

Soberania dos Veredictos deve ser interpretado conjuntamente e em harmonia com os demais

princípios de status constitucional, notadamente com o do devido processo legal, de modo a

não se permitir que, em novo julgamento pelo tribunal popular, venha a ser imposta ao réu

pena superior a que lhe foi aplicada em ocasião do primeiro julgamento.

O princípio do devido processo legal, conforme amplamente assentado pela

doutrina, engloba diversos outros princípios, tais como o da ampla defesa e o do duplo grau

de jurisdição. Desse modo, ao se permitir a reformatio in pejus indireta, inevitavelmente

estar-se-ia desencorajando o réu de exercitar um direito a ele garantido – o de recorrer – e, por

conseguinte, claramente estar-se-ia violando os princípios da ampla defesa e do duplo grau de

jurisdição. Mostra-se, pois, totalmente contrário ao escopo do princípio do devido processo

legal a aplicação de uma sanção, qual seja, a majoração da pena, em razão do exercício de

direitos constitucionalmente consagrados.76

Outrossim, não nos resta dúvida de que a possibilidade de que a pena do réu seja

agravada em razão da interposição de recurso está inserida, bem como afronta o princípio do

devido processo legal, uma vez que não nos soa razoável que alguém, ao utilizar-se de meios

para combater supostos erros judiciários, tenha, em razão disso, sua situação agravada. Ora, se

assim aceito, implicitamente estar-se-ia admitindo a possibilidade de atuação ilimitada do

Estado, através do Poder Judiciário, já que o controle pelas vias recursais estaria

indubitavelmente coagido.77

Dessa forma, o entendimento vigorante hoje em dia é no sentido de que, havendo

novo julgamento em razão de anulação do primeiro em sede de recurso de apelação, a

Soberania dos Veredictos estará limitada pela pena imposta na sentença anterior, em atenção

ao disposto pelo artigo 617 do Código de Processo Penal, o qual possui fulcro constitucional.

Quanto à hipótese de cabimento prevista pela alínea “b”, ou seja, nos casos em

que a apelação é interposta com fundamento em decisão do Juiz-Presidente contrária à lei

expressa ou à decisão dos jurados, não há, conforme já pontuado, considerações a serem feitas

em relação à garantia da Soberania dos Veredictos. Nessa hipótese, a decisão a ser combatida

não foi prolatada pelo conselho de sentença, mas sim pelo Juiz-Presidente, tratando-se, pois,

de uma sentença proferida por um magistrado togado, não havendo, portanto, empecilhos para

76 Ibid., p. 97. 77 ANSANELLI JÚNIOR, op. cit., p. 96.

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que seja reformada pelo tribunal ad quem. Note-se, pois, que nos casos previstos por essa

alínea, o recurso de apelação não assume a particularidade de se limitar apenas ao juízo

rescindente, incorporando, também, o juízo rescisório, já que nenhuma alteração deve ser feita

no sentido de se harmonizar com a garantia da Soberania dos Veredictos.

No que tange à alínea “c”, isto é, nos casos em que a fundamentação se basear em

erro ou injustiça no tocante à aplicação da pena ou da medida de segurança, há discussão na

doutrina se o dispositivo implicaria ou não em uma limitação à Soberania dos Veredictos.

De um lado, alguns defendem que, por se tratar de questão relativa somente à

pena, o tribunal ad quem poderia livremente, em sede de apelação, reformar a decisão

prolatada pelo Tribunal do Júri, sem que isso em algo afetasse a Soberania dos Veredictos,

uma vez que a fixação da pena está a cargo da magistratura togada.

Outros, no entanto, a exemplo de Guilherme de Souza Nucci, esposam o

entendimento de que a fixação da pena não se dá por decisão exclusiva dos juízes togados, já

que, quanto ao reconhecimento da existência de agravantes e atenuantes, os jurados

efetivamente têm voz ativa. Desse modo, se o Júri se pronunciar no sentido de acolher ou

rechaçar atenuantes ou agravantes, essa decisão seria vinculante e, em decorrência do

princípio da soberania das decisões, somente poderia ser alterada pelo colegiado popular.78

A nosso ver, entretanto, não nos parece que, mesmo em se tratando de atenuantes

ou agravantes, estaria o tribunal impossibilitado de corrigir a distorção e fixar adequadamente

a pena. Ora, mais uma vez destacamos que a Soberania dos Veredictos estende-se apenas e

tão somente sobre o mérito da decisão dos jurados. Nesse compasso, nas palavras de Aníbal

Bruno, entendemos que as atenuantes e as agravantes não se caracterizam como elementos

constitutivos do crime, dizendo respeito apenas aos critérios de fixação de pena:

(...) as agravantes e atenuantes não contribuem para existência ou não-existência do crime, nem fazem mudar sua designação típica. São condições acessórias, que acompanham o fato punível, mas não penetram sua estrutura conceitual e, assim, não se confundem com seus elementos constitutivos.79

Desse modo, posicionamo-nos no sentido de que as atenuantes e agravantes

referem-se à questão apenas da fixação da pena, não constituindo elemento constitutivo do

78 NUCCI, Guilherme de Souza apud ANSANELLI JÚNIOR, op. cit., p. 98. 79 BRUNO, Aníbal apud ANSANELLI JÚNIOR, op. cit., p. 98.

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crime. Desse modo, parece-nos totalmente cabível a retificação da dosimetria da pena em sede

de recurso de apelação.

Outro se diga, entretanto, das qualificadoras. Têm se tornado frequente os

posicionamentos admitindo que o tribunal, em face do recurso de apelação com base no

dispositivo mencionado, venha substituir a decisão dos jurados no que tange às qualificadoras,

sob a mesma justificativa de que se estaria apenas retificando a dosimetria da pena. Porém,

cumpre aqui notar que, ao contrário das atenuantes e agravantes, as qualificadoras não se

referem à questão das penas, e sim à própria elementar do delito. Nesse sentido, André Mauro

Lacerda Azevedo, em precisas palavras, pontua:

Problema ainda maior é aquele relacionado às circunstâncias qualificadoras, quando o tribunal ad quem reforma a decisão da instância inferior por entender que não se verificou em concreto uma qualificadora reconhecida pelos jurados. Tal decisão não apenas implica em redução de pena. Mais do que isso, tal decisium atinge o próprio mérito da causa, já que a qualificadora é uma derivação do tipo fundamental, traduzindo-se numa reforma do veredicto dos jurados, já que o réu será condenado por um delito com características e elementares distintas daquele reconhecido pelo Júri.80

Desse mesmo modo, posicionamo-nos no sentido de que a questão das

qualificadoras não diz respeito apenas à pena propriamente dita, mas sim à tipicidade da

própria conduta, de forma que, em obediência ao princípio constitucional da Soberania dos

Veredictos, seria vedado ao tribunal que, em sede de recurso de apelação, modifique o

entendimento prolatado pelos jurados no tocante às qualificadoras.81

Caso entenda o tribunal ad quem que as qualificadoras reconhecidas pelos jurados

encontram-se em manifesta contradição à prova dos autos, deverá, nos termos da alínea “d” do

inciso III do artigo 593, seja o réu submetido a novo julgamento perante o Tribunal do Júri, mas,

em hipótese alguma, procederá à desclassificação do tipo qualificado para o tipo simples.82

Por fim, a última hipótese de cabimento, prevista pela alínea “d”, é, sem dúvida, a

que causa mais questionamentos na doutrina. O dispositivo, a contrario sensu da máxima da

intangibilidade da decisão dos jurados, autoriza o provimento de apelação nos casos em que a

decisão dos jurados for manifestamente contrária à prova dos autos. A discussão centra-se no

fato de que, nessa hipótese, o recurso não teria como escopo apenas a correção de error in 80 AZEVEDO, op. cit., p. 64. 81 ANSANELLI JÚNIOR, op. cit., p. 100. 82 Ibid.

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procedendo, mas também, de error in judicando por parte do corpo de jurados. Ou seja, aqui

a análise da possibilidade de provimento apelatório não se faz apenas com base em elementos

processuais, mas, e principalmente, com base no próprio mérito da questão decidida pelo

plenário, de forma que a constitucionalidade dessa alínea por muitos é questionada, tendo em

vista a suposta afronta ao princípio da soberania dos veredictos.

6.5.1.2 Da Constitucionalidade da alínea “d” do art. 593, III

Pelo lado dos que sustentam a inconstitucionalidade do dispositivo, muitos são os

argumentos utilizados na defesa da tese; todos eles, porém, direcionando-se no sentido de que,

pelo princípio da soberania dos veredictos, restaria absolutamente vedado que, em grau recursal,

adentrasse-se ao mérito da decisão dos jurados. James Tubenchlak, por exemplo, afirma que o réu

somente vai a plenário, isto é, o acusado somente é pronunciado, quando existem indícios

suficientes de autoria e prova de materialidade. Desse modo, entende ele que, uma vez

pronunciado o réu, jamais poderá ser contrária à prova dos autos uma decisão condenatória que

por ventura venha a ser prolatada pelos jurados, porque, segundo afirma, o júri nada mais faz do

que aceitar e referendar a vertente probatória já aceita pela decisão de pronúncia.83

Por outro lado, entretanto, amplamente majoritária é a doutrina e a jurisprudência

no sentido da constitucionalidade da alínea em comento. Desse lado, o principal argumento de

que se valem refere-se ao fato de que, no caso previsto pelo dispositivo, o tribunal ad quem

não substitui a decisão dos jurados, limitando-se, apenas, a remeter o réu a novo julgamento

perante o Tribunal do Júri.

Nesse sentido, valendo-se de extremada cautela, Afrânio Silva Jardim afirma:

Se dermos ao dispositivo legal interpretação restritiva, vedando que o Tribunal venha a optar por uma das versões probatórias constantes dos autos para prover o recurso, e se levarmos em linha de conta que o mesmo tribunal não poderá reformar a decisão dos jurados, mas tão somente provocar outra decisão do Tribunal Popular, descabendo nova apelação pela mesma hipótese de cabimento, verificamos inexistir violação à soberania do júri, mas apenas um mecanismo de provocar um julgamento por este mesmo Tribunal do Júri, em busca de maior segurança em face de crimes e penas tão graves.84

83 TUBENCHLAK, James apud ANSANELLI JÚNIOR, op. cit., p. 100. 84 JARDIM, Afrânio Silva apud ANSANELLI JÚNIOR, op. cit., p. 102.

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Desse modo, o que se depreende é que, se aplicado corretamente o dispositivo, não há

que se questionar sua constitucionalidade, já que não há a previsão de uma reapreciação da matéria

por parte do tribunal togado. Outrossim, o mecanismo consiste em verdadeiro instrumento de

salvaguarda de outro princípio constitucional, qual seja, o do duplo grau de jurisdição.

Se por um lado a soberania dos veredictos afigura-se como verdadeiro princípio

constitucional, a possibilidade recursal encontra também substrato em princípio de status

constitucional. Desse modo, surge, em verdade, um conflito entre os princípios ora

mencionados, sendo que a soberania dos veredictos, no caso concreto, é mitigada a fim de que

seja resguardado o princípio do duplo grau de jurisdição, que, por sua vez, completando a

harmonia, sofre também diminuição no seu alcance. Dessa sorte, permite-se o recurso de

apelação, mas, por outro lado, veda-se a reforma da decisão dos jurados.85

Quanto ao argumento contrário, de que não há como haver decisões contrárias às

provas dos autos, tendo em vista que a decisão de pronúncia fundamenta-se em um conjunto

probatório já suficientemente adequado para condenar o réu, parece-nos de todo equivocado.

Dizer que o Júri apenas referenda as provas que serviram de base para a decisão de pronúncia

seria o mesmo que transformar o Conselho de Sentença em mero chancelador da decisão que

determinou o pronunciamento do acusado, o que representaria verdadeiro absurdo. Ora, para

que haveria então a formação do plenário? Seria apenas um mero teatro? Evidentemente que

não.86 Dessa sorte, firmamos o entendimento de que, se aplicado corretamente pelos tribunais,

o cabimento de apelação nos casos de decisões manifestamente contrárias às provas dos autos

não configura nenhuma afronta ao texto constitucional.

6.5.1.3 As Decisões Manifestamente Contrárias às Provas dos Autos

Após pontuada a discussão acerca da constitucionalidade da alínea que prevê o

cabimento de apelação nos casos de decisão manifestamente contrária à prova dos autos,

cumpre-nos agora estabelecer o que configuraria uma decisão em manifesta contradição à

prova dos autos.

Quanto à interpretação do termo “manifestamente”, aqui, mais uma vez, diversas

interpretações surgem. Ary Azevedo Franco, por exemplo, citando Cândido Figueiredo, 85 ANSANELLI JÚNIOR, op. cit., p. 102. 86 ANSANELLI JÚNIOR, op. cit., p. 103

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afirma que manifesto é sinônimo de patente, evidente, público. Desse modo, o termo referir-

se-ia àquilo que se impõe à percepção de todos, que todos necessariamente veem, e que não

admite a possibilidade de entendimentos em sentido contrário.87

José Frederico Marques estabelece importantíssima observação no sentido de que,

para que se configure a hipótese de cabimento em comento, não basta que a decisão dos

jurados, apesar de fundada nas provas colhidas, não se mostre a mais adequada perante os

olhos da sociedade, é preciso, pois, que inexista qualquer relação lógica entre os elementos

probatórios colhidos e a decisão prolatada.

Em claras palavras afirma:

Não é qualquer dissonância entre o veredicto e os elementos de convicção colhidos na prova que autoriza a cassação do veredicto: unicamente a decisão dos jurados que nenhum arrimo encontre na prova dos autos é que pode ser invalidada. Desde que uma interpretação razoável dos dados instrutórios justifique o veredicto, deve este ser mantido, pois, nesse caso, a decisão deixa de ser ‘manifestamente contrária à prova dos autos’.88

Dessa forma, mesmo que a versão adotada pelos jurados não seja a mais plausível

frente às provas produzidas, se ela encontrar um mínimo amparo nos elementos colhidos e

trazidos aos autos, não há que se cogitar o cabimento de apelação por decisão manifestamente

contrária à prova dos autos. Nesse sentido, a jurisprudência é pacífica na direção de que, uma

vez adotada pelos jurados uma das versões constantes dos autos, não se pode falar que tenham

decidido contra a evidência dos autos.

Julio Fabrini Mirabete, no mesmo sentido, pontua que “(...) é lícito ao júri optar

por uma das versões verossímeis dos autos, numa interpretação razoável dos dados

instrutórios, devendo ser mantida a decisão quando isso ocorrer”.89 Assim, temos que, se o

Conselho de Sentença optar por uma dentre as versões trazidas aos autos, em hipótese alguma

se poderá dizer manifestamente contrária à prova dos autos a decisão dos jurados. A hipótese

somente restaria configurada se a sentença prolatada não encontrasse respaldo algum nos

elementos de prova, ou seja, nos casos em que a decisão afaste-se por inteiro do contexto

probatório constante dos autos.

87 FRANCO, Ary Azevedo apud ANSANELLI JÚNIOR, op. cit., p. 103. 88 MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual. Campinas: Bookseller, 1998. v. 4, p. 233. 89 MIRABETE, Julio Fabrini. Processo Penal. São Paulo: Atlas, 1995, p. 632.

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Além disso, é preciso estabelecer que, embora a expressão “manifestamente

contrária à prova dos autos” seja bastante vaga, não se deve a ela incluir, por mero pretexto,

outras situações que não aquelas em que a sentença proferida pelo tribunal popular não

encontra respaldo probatório. É o caso, por exemplo, das decisões do júri que não se

direcionam no sentido majoritário da jurisprudência, ou então, que contrariem entendimento

já consolidado pelo tribunal ad quem. Nesses casos, absolutamente não se configura a

hipótese prevista pela alínea em comento e, portanto, não há que se cogitar a anulação da

decisão e a determinação de novo julgamento. Esse entendimento já foi exarado pelo

Supremo Tribunal Federal, em excelente acórdão de relatoria do Ministro Marco Aurélio de

Mello:

(...) O Tribunal não pode anular decisão do Júri mandando o caso a novo julgamento somente porque o veredicto popular contrariou orientação anteriormente adotada (...). É ofensa à soberania.90

Nesse compasso, então, o posicionamento majoritário é no sentido de que a

interpretação do dispositivo deve se dar de maneira restritiva, admitindo o cabimento recursal

estritamente nos casos em que a decisão tomada for de encontro à prova coligida.

Frise-se, por fim, que, conforme estabelece o § 3º do artigo 593, nos casos em que

a apelação for interposta com fulcro na alínea “d” do inciso III do mesmo artigo, não se

admitirá recurso pelo mesmo motivo. Muito se discutiu na doutrina acerca do significado do

termo “motivo”, porém, hoje é pacífico em sede doutrinária e jurisprudencial que o termo é

utilizado como sinônimo da expressão “mesmo fundamento”. Ou seja, nos casos da hipótese

de que ora tratamos, com base no mesmo fundamento, apenas poderá ser interposto o recurso

apelatório uma única vez. Desse modo, se o réu é condenado no primeiro julgamento e, em

face de recurso com base no artigo 593, III, “d”, é submetido a novo julgamento e absolvido,

não será mais cabível apelação com fulcro no mesmo dispositivo.

6.5.2 Revisão Criminal

Além do recurso de apelação, a revisão criminal representa também importante

mecanismo de limitação ao princípio da soberania dos veredictos. Consiste o mecanismo em

90 RT 727/415.

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um instrumento processual com poder de revisão de sentenças condenatórias já transitadas em

julgado. Trata-se, pois, de via de impugnação e correção de decisões condenatórias errôneas,

acobertadas por erro judiciário. Nas palavras de Fernando da Costa Tourinho, a revisão

criminal “é o remédio jurídico-processual que permite reabrir-se o processo, em que se

cometeu a injustiça, rasgando-lhe o selo da intangibilidade”.91

O fundamento da revisão criminal reside na possibilidade de que o erro de

julgamento somente venha a ser verificado após o trânsito em julgado da decisão, ou, até

mesmo, de que novos fatos ou provas surjam após o encerramento da ação penal. Nesse

cenário, faz-se mister outro instrumento, que não a apelação, capaz de invalidar decisões

judiciais equivocadas já transitadas em julgado.92

Apesar das controvérsias existentes acerca da natureza jurídica da revisão

criminal, se de recurso ou de ação autônoma, assim como a doutrina e a jurisprudência

majoritária, filiamo-nos à corrente de que ela se trata de uma ação autônoma. Ora, é preciso

que se frise que a proposição de revisão criminal somente tem cabimento após o trânsito em

julgado da decisão condenatória, de modo que a ação penal na qual supostamente ocorreu o

erro judicial está absolutamente finda, não havendo mais que se falar em vias recursais. É

nesse sentido a lição de Ada Pellegrini Grinover, Antônio Magalhães Gomes Filho e Antônio

Scarance Fernandes, para os quais a revisão criminal “é induvidosamente ação autônoma

impugnativa de sentença passada em julgado, de competência originária dos tribunais (...)

uma vez que a relação processual atinente à ação condenatória já se encerrou e pela via da

revisão instaura-se nova relação processual, visando a desconstituir a sentença e substituí-la

por outra.”93 Desse modo, entendemos como certa a natureza de ação autônoma de

impugnação da revisão criminal.

Não há dúvidas de que a previsão da revisão criminal estabelece um jogo entre os

princípios do duplo grau de jurisdição e da segurança jurídica, notadamente pelo fato de que

as decisões impugnadas via revisão criminal já se encontram acobertadas pela coisa julgada.

Consiste, pois, a nosso ver, em perigoso mecanismo processual, já que, se não corretamente

aplicado, facilmente acarretará serias agressões ao sistema principiológico constitucional.

Bem por isso, a fim de mitigar esse risco, o artigo 621 estabelece hipóteses de cabimento

bastante restritas, prevendo, ainda, que somente terá cabimento revisão criminal se em favor

91 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa apud ANSANELLI JÚNIOR, op. cit., p. 109. 92 AZEVEDO, op. cit., p. 65. 93 GRINOVER, Ada Pelegrini et al. apud ANSANELLI JÚNIOR, op. cit., p. 118.

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do réu. Ou seja, jamais será cabível revisão criminal contra uma decisão absolutória, já que,

nessa hipótese, se daria em desfavor do réu.94

Desse modo, temos como pressupostos da revisão criminal, primeiramente, a

existência de sentença condenatória transitada em julgado e, em segundo lugar, que haja se

formado a coisa julgada. Conforme já pontuado, somente a sentença condenatória admite

revisão criminal em nosso ordenamento pátrio, uma vez que somente poderá ser utilizada no

intuito de favorecer o réu. Quanto à necessidade da formação da coisa julgada, isto é, quanto à

exigência de que os efeitos da sentença estejam acobertados pela imutabilidade, tal

pressuposto faz-se bastante claro, já que, se ainda não findo o processo, perfeitamente cabível

seria o recurso de apelação.

6.5.2.1 A Revisão Criminal na Instituição do Júri

No âmbito da instituição do júri, a revisão criminal foi pela primeira vez prevista

através da Lei nº 261 de 3 de dezembro de 1841, que reformou o Código de Processo

Criminal do Império de 1832, deixando expresso, na alínea “b” do seu artigo 89, que a revisão

criminal, então chamada de recurso de revista, seria cabível: “(...) contra as decisões

proferidas pelo júri, quando não fossem guardadas as fórmulas substanciais do processo ou

quando o juiz de direito não se conformasse com as decisões dos juízes de fato, ou não

impusesse a pena declarada na lei”.95

Com a queda do Império e a instauração da República, entrou em vigor a

Constituição de 1891, que, em seu artigo 81, previu a revisão criminal, estabelecendo que “os

processos findos em matéria de crime poderão ser revistos a qualquer tempo, em benefício

dos condenados, pelo Supremo Tribunal Federal, para reformar ou confirmar a sentença”.

Em 1894, por sua vez, a Lei nº 221, que reorganizou a Justiça Federal, elencou em

seu artigo 74 as hipóteses de cabimento de revisão criminal, dentre as quais se destacava a

hipótese em que a sentença condenatória tivesse sido proferida na suposição de homicídio,

94 AZEVEDO, op. cit., p. 65. 95 ANSANELLI JÚNIOR, op. cit., p. 112.

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que posteriormente se verificou não ser real, por estar viva a pessoa que supostamente havia

sido assassinada.96

É importante destacar novamente que, nessa época, vigorava a multiplicidade de

legislações entre os Estados, de forma que cabia a cada Estado a elaboração de seus próprios

Códigos Processuais. Nesse cenário, conforme já pontuado, todos os Estados, à exceção do

Rio Grande do Sul e do Ceará, previam a soberania dos veredictos em suas legislações, de

modo que não se admitia que a magistratura togada viesse a reformar as decisões do Conselho

de Sentença via recurso de apelação, admitindo-se, apenas e tão somente, que o réu fosse

remetido a novo julgamento pelo tribunal do júri.

Ainda nesse cenário de multiplicidade de legislações, como naquela época o

julgamento de revisão criminal era de competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal,

os Códigos estaduais, de uma maneira geral, limitavam-se a indicar a existência do

instrumento revisional, consignando que seu julgamento era de competência do STF.

Entretanto, a Constituição de 1937 retirou do Supremo Tribunal Federal a

competência exclusiva para o julgamento das revisões criminais, momento esse a partir do

qual, frente à omissão da Carta Magna, foi estipulada pela legislação ordinária a competência

dos Tribunais Estaduais, salvo em relação às decisões proferidas pelo próprio Supremo, que

continuaram sob sua competência exclusiva.97

A Constituição de 1946, por sua vez, imbuída de fortes anseios democráticos,

novamente voltou a dispor sobre a revisão criminal. Vale lembrar que, conforme já

estabelecido, foi a referida Constituição que inseriu o princípio da soberania dos veredictos no

âmbito constitucional, criando, à época, grandes controvérsias. Muita discussão foi criada em

torno da possibilidade de se rescindirem as decisões do Tribunal do Júri mediante revisão

criminal, uma vez que a sentença prolatada pelo Conselho de Sentença era acobertada pela

garantia da Soberania dos Veredictos.

Apesar, então, de ter havido diversas decisões em sentido contrário, consolidou-se

o entendimento de que, mesmo com a garantia da soberania dos veredictos, continuava

havendo a possibilidade de revisão criminal contra as decisões do júri. Os principais

fundamentos utilizados foram no sentido de que, embora a Constituição Federal passasse a

96 Ibid., p. 113. 97 ANSANELLI JÚNIOR, op. cit., p. 115.

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prever o princípio da Soberania dos Veredictos, outros importantes princípios eram também

por ela previstos, tais como a ampla defesa, o contraditório e a igualdade, de forma que tais

princípios deveriam prevalecer sobre a soberania das decisões do júri.98

A Constituição de 1937 manteve, no tocante à disciplina da revisão criminal, a

mesma disposição constante da Carta de 1946, mantendo-se, também, o entendimento acerca

da possibilidade de revisão criminal contra as decisões do tribunal do júri.

No que diz respeito à atual Constituição, sobre a qual nos deteremos com maior

afinco, também persistiu o cabimento de revisão criminal contra as decisões proferidas pelo

Conselho de Sentença.

6.5.2.2 Das Hipóteses de Cabimento

As hipóteses de cabimento de revisão criminal são previstas pelo artigo 621 do

Código de Processo Penal, que assim estabelece:

Art. 621. A revisão dos processos findos será admitida:

I - quando a sentença condenatória for contrária ao texto expresso da lei penal ou à evidência dos autos;

II - quando a sentença condenatória se fundar em depoimentos, exames ou documentos comprovadamente falsos;

III - quando, após a sentença, se descobrirem novas provas de inocência do condenado ou de circunstância que determine ou autorize diminuição especial da pena.

Desse modo, a primeira hipótese diz respeito aos casos em que a sentença

condenatória for contrária ao texto expresso da lei. Quanto a essa hipótese, a primeira

observação feita pela doutrina é no sentido de que, para configurá-la, não basta que tenha sido

aplicada uma má interpretação do dispositivo legal; é preciso que haja uma clara

contrariedade, uma verdadeira afronta ao texto da lei. Assim, afasta-se a possibilidade de

revisão criminal quando, por exemplo, houver divergência jurisprudencial e o juiz tiver

optado por determinada posição, mesmo que não seja a posição dominante.

98 Ibid., p. 116.

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A hipótese configura-se, então, apenas e tão somente nos casos em que a decisão

se mostra em clara oposição, em manifesto antagonismo ao texto expresso da lei. Cita-se

como exemplo da configuração da hipótese a situação em que determinada pessoa é

condenada pelo crime de furto por haver subtraído coisa própria, sendo que a lei

expressamente estabelece que o tipo configura-se com a subtração de coisa alheia.99

Note-se que essa hipótese é bastante rara no âmbito do Tribunal do Júri, já que o

Conselho de Sentença responsabiliza-se precipuamente às matérias de fato, enquanto que o

juiz de direito fica encarregado pelas questões de direito, de modo que a aplicação do

dispositivo, no cenário do júri, restringir-se-ia apenas às decisões dos juízes togados.

Entretanto, antes da reforma operada pela Lei 11.689/08, tínhamos situações

claras em que as decisões dos jurados poderiam demonstrar-se contrárias ao texto expresso da

lei. Seria a hipótese, por exemplo, em que o Conselho de Sentença equivocadamente deixasse

de acolher atenuantes ou aplicar agravantes, ou ainda, acatasse a reincidência quando esta

fosse inexistente, contrariando, assim, texto expresso da lei.100

Nesses casos, admitia-se que o próprio Tribunal, em sede de revisão criminal,

reformasse a decisão, adequando o caso concreto à lei violada, seja aplicando atenuantes

negadas pelo Conselho, seja excluindo a incidência de agravantes indevidamente consideradas

pelos jurados. O fundamento de tal possibilidade residia na constatação de que seria

extremamente dispendioso pra o Estado remeter o acusado a novo julgamento apenas em

consequência de erros relativos à fixação da pena, de forma a se autorizar que, nesses casos,

poderia o próprio Tribunal corrigir os equívocos a fim de adequar a sanção imposta aos

ditames legais.

Todavia, com a entrada em vigor da Lei 11.689/08, as atenuantes e agravantes

deixaram de serem propostas aos jurados na forma de quesitos, de modo que a hipótese

descrita não mais se configura no âmbito do Júri. Dessa sorte, a situação somente restaria

caracterizada nos casos de decisão do juiz togado contrárias ao texto expresso da lei.

A segunda hipótese de cabimento refere-se às decisões manifestamente contrárias

às provas dos autos. Aqui, a delimitação do termo “manifestamente contrária à prova dos

autos” perfaz-se do mesmo significado da idêntica expressão empregada pelo legislador na

99 ANSANELLI JÚNIOR, op. cit., p. 131. 100 ANSANELLI JÚNIOR, op. cit., p. 131.

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previsão das hipóteses permissivas do recurso de apelação. Sendo assim, conforme já

estabelecido, para que se preencha a condição é preciso que a decisão dos jurados não

encontre absolutamente nenhum respaldo no conjunto probatório colhido, não bastando que

tenha se direcionado em sentido não convencional do indicado pelas provas.

Outros, no entanto, entendem que no caso da revisão criminal, como se destina

apenas ao benefício do réu, a condição permissiva seria mais branda. Assim, como o único

escopo da revisão se perfaz no restabelecimento da liberdade injustamente tolhida, bastaria

para a procedência da ação, que a decisão prolatada não encontrasse amparo suficiente no

conjunto de provas colhidas; isso em prol de uma maior proteção ao direito de liberdade.

Contudo, quanto ao Júri, entendemos que tal entendimento deve ser enxergado

com reservas, em face da existência do princípio da soberania dos veredictos, que reveste as

decisões prolatadas pelo tribunal popular.

Essa hipótese, aliás, tem gerado diversas controvérsias na doutrina e na

jurisprudência, já que, nesse caso, o juiz togado reaprecia as provas já analisadas e valoradas

pelos jurados, realizando um controle sobre a consciência dos jurados, adentrando

verdadeiramente no mérito da decisão proferida e, supostamente, violando o princípio da

soberania dos veredictos.101

Conforme já pontuado, em que pese a plena vigência do princípio da soberania

dos veredictos, a ampla maioria da doutrina e da jurisprudência admite a revisão criminal,

nesta hipótese, no âmbito do tribunal do júri, apoiando-se, para tanto, nos mais diversos

argumentos.

Entretanto, nota-se que os elementos centrais dos argumentos aduzidos coincidem

todos na proteção ao direito de liberdade. Em suma, os defensores de tal posição afirmam que

o direito de liberdade, expressamente protegido pela Constituição Federal, consiste em um

dos mais valiosos direitos a serem garantidos pelo Estado, de forma que, para resguardá-lo,

mesmo que com isso se criem conflitos com outras garantias constitucionais, deverá sempre

prevalecer a proteção ao direito de liberdade.

É nesse sentido, por exemplo, que estabelece Fernando da Costa Tourinho Filho:

(...) Não é menos certo que a Lei Maior tutela e ampara, de maneira toda especial, o direito de liberdade, tanto que lhe dedica todo um capítulo.

101 ANSANELLI JÚNIOR, op. cit., p. 134.

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Assim, entre manter a soberania dos veredictos intangível e procurar corrigir um erro em benefício da liberdade, obviamente o direito de liberdade se sobrepõe a todo e qualquer outro (...).102

Assim, para essa posição doutrinária, a soberania dos veredictos deve ceder ante à

violação do direito de liberdade, impondo, assim, verdadeiro limite à garantia. Consubstancia-

se, assim, um claro jogo de valores e princípios; jogo esse que deverá ser sempre vencido pelo

direito de liberdade.

Julio Fabrini Mirabete lembra, ainda, que “a soberania dos veredictos é instituída

como uma das garantias individuais, em benefício do réu, não podendo ser atingida enquanto

preceito para garantir sua liberdade. Não pode, pois, ser invocada contra ele”.103

É importante novamente frisar que a revisão criminal somente será provida em

benefício do réu, ou seja, em favor do direito de liberdade. Realmente, se assim considerado,

não há sentido em se vetar que seja concedido um benefício ao réu, visando resguardar uma

prerrogativa também a ele concedida. Sendo assim, entendemos como certa, nesses casos, a

prevalência da defesa do direito de liberdade.

Entendemos, portanto, que a controvérsia se resolve através do conflito entre os

princípios constitucionais. De um lado, a soberania dos veredictos, indissociável do devido

processo legal, no sentido de que o autor de crime doloso contra a vida tem o direito de ser

julgado pelo tribunal do Júri e, de outro lado, a revisão criminal, fundamentada em diversos

princípios constitucionais, notadamente o da dignidade da pessoa humana, à medida que

busca impedir que um indivíduo venha a ter sua liberdade tolhida sem que existam provas

suficientes para tanto.104 Desse conflito, indubitavelmente entendemos que se deverá, sempre,

privilegiar o direito de liberdade.

Dessa forma, sustentamos a possibilidade da revisão criminal das decisões do Júri,

desde que, no caso em questão, inexistam quaisquer provas que sustentem a condenação

imposta ao réu. Entendemos, portanto, que a revisão criminal deverá corresponder a

verdadeiro limite ao princípio da soberania dos veredictos.

Outra hipótese de cabimento diz respeito aos casos em que a sentença

condenatória se funda em depoimentos, exames ou documentos comprovadamente falsos. 102 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa apud ANSANELLI JÚNIOR, op. cit., p. 135. 103 MIRABETE, op. cit., p. 665. 104 ANSANELLI JÚNIOR, op. cit., p. 138.

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Quanto a essa hipótese, a doutrina estabelece a observação de que, para configurá-la, é preciso

que a condenação se funde exclusivamente na prova falsa, é preciso, pois, que ela tenha sido a

razão de decidir, já que, mesmo que comprovada a falsidade de determinadas provas, se

outras provas autorizarem a condenação, não há que se sustentar o cabimento da revisão sob

esse fundamento.105

A última hipótese de cabimento, por sua vez, prevê a possibilidade de revisão

criminal quando do surgimento de novas provas em favor do sentenciado ou de circunstância

que determine ou autorize diminuição especial da pena.

Quanto a esse dispositivo, muita discussão se criava em torno do que se deveria

entender por “novas provas”. O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, não considerava

como nova a prova que deixou de ser apresentada oportunamente se já existente à época do

processo que originou a condenação. Outros, no entanto, a exemplo de Helio Tornaghi,

defendiam uma acepção mais ampla do vocábulo, de modo a entender que, “conquanto a lei

se refira ao descobrimento de novas provas, a interpretação deve ser extensiva aos casos de

produção nova de provas já descobertas, mas não apresentadas antes”.106

Contudo, prevalece hoje o entendimento segundo o qual, para que se configure a

hipótese, não é preciso o surgimento efetivo de provas novas, bastando que a novidade se

refira à produção e valoração da prova. Desse modo, quanto à produção, seria nova aquela

prova que, mesmo preexistindo ao processo, não foi produzida, por qualquer motivo e, quanto

à valoração, aquela prova que foi produzida, mas não foi valorada de nenhuma forma.107

Ainda no tocante a essa hipótese, interessante questão diz respeito à descoberta de

nova prova apenas referente às qualificadoras. É o caso, por exemplo, do réu que foi

condenado como incurso no delito de homicídio qualificado e, após o trânsito em julgado de

sua sentença condenatória, descobre-se prova que refute a qualificadora. Temos, pois, que no

caso das qualificadoras, conforme já estabelecido, toca-se o mérito da questão a ser decidida,

não se referindo apenas à fixação da pena. Desse modo, entendemos que o surgimento de

nova prova, apenas quanto à qualificadora, autoriza que o Tribunal remeta o réu a novo

julgamento perante o Júri.

105 Ibid., p. 142. 106 TORNAGHI, Helio apud ANSANELLI JÚNIOR, op. cit., p. 143. 107 ANSANELLI JÚNIOR, op. cit., p. 143.

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6.5.2.3 A Revisão Criminal e os Juízos Rescindente e Rescisório

A jurisprudência e a doutrina dominante têm se posicionado no sentido de que o

Tribunal ad quem detém competência para realizar tanto o juízo rescindente quanto o

rescisório, em todas as hipóteses previstas pelo artigo 621. Entretanto, não são poucas as

críticas que se direcionam contrariamente a esse posicionamento, já que, segundo muitos

defendem, consistiria grave afronta à garantia da soberania dos veredictos permitir-se que a

decisão dos jurados fosse substituída por outra decisão do tribunal togado. De acordo com tal

corrente, em sede revisional, deveria o Tribunal, ao reconhecer o efetivo erro judiciário,

remeter o réu a novo julgamento perante o Júri, tal qual ocorre em sede de recurso de

apelação.

Pelo lado dos que sustentam a possibilidade de efetuação de ambos os juízos pelo

Tribunal, não são poucos os argumentos utilizados. Sérgio de Oliveira Médici, por exemplo,

afirma que a revisão criminal, tal como disposta em nosso ordenamento jurídico, não

comporta a separação dos juízos rescindente e rescisório. Prossegue, ainda, o autor:

Se o erro judiciário é reconhecido pelo tribunal superior, deve ser por ele corrigido. Caso contrário, estaríamos diante de uma situação esdrúxula, pois o júri deveria, obrigatoriamente, modificar o julgamento anterior, ou manter o erro já reconhecido em segunda instância, propiciando decisões conflitantes. Vamos imaginar que, após o trânsito em julgado da condenação, fique comprovado, em sede revisional, que a suposta vítima esteja viva. Qual o sentido de renovar-se o júri? (..)108

A nosso ver, entretanto, é preciso que se estabeleça uma distinção entre as

hipóteses previstas pelo artigo 621. Nos casos previstos pelo inciso I, ou seja, quando a

decisão for contrária ao texto expresso da lei ou à evidência dos autos, é bem verdade que a

revisão criminal equipara-se a verdadeiro recurso, já que, nessas hipóteses, não há

apresentação de novas provas, mas apenas e tão somente novas alegações fundadas no mesmo

conjunto probatório que fundamentou a condenação.

Na hipótese prevista pela primeira parte do inciso I, ou seja, nos casos em que a

decisão for contrária ao texto da lei, temos que se trata de situação de errônea aplicação do

direito, cabendo, pois, ao Tribunal adequar a decisão à lei violada, como no caso do

108 MÉDICI, Sérgio de Oliveira apud ANSANELLI JÚNIOR, op. cit., p. 147.

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acolhimento ou afastamento de agravantes ou atenuantes, por exemplo, nos quais não há

necessidade que o réu seja remetido a novo julgamento.109

Na hipótese de decisão contrária à prova dos autos, entendemos que a situação é

mais complexa, já que a magistratura togada exerce controle sobre o próprio mérito da

decisão dos jurados, tendo em vista que reapreciará as provas por eles analisadas, tocando,

assim, diretamente o princípio da soberania dos veredictos. Note-se, pois, que, conforme já

dito, os jurados não levam em consideração apenas as provas coligidas aos autos na hora de

formarem sua convicção, considerando, também, elementos estranhos aos autos processuais,

como por exemplo, os antecedentes do acusado, sua afamada periculosidade, etc.

Desse modo, caso o réu fosse simplesmente remetido a novo Júri, seria grande a

possibilidade de que os jurados, apoiando-se em elementos externos aos autos, ratificassem o

erro judiciário cometido por ocasião do primeiro Júri e proferissem sentença no mesmo

sentido. Sendo assim, entendemos que, também nessa hipótese, cabe ao Tribunal o exercício

dos dois juízos, de modo a verdadeiramente reformar a decisão dos jurados. Lembre-se,

todavia, que, em decorrência da soberania dos veredictos, entendemos que a análise do

preenchimento dessa hipótese deva se dar de maneira bastante criteriosa, somente admitindo-

se a revisão, quando não há nos autos nenhum elemento de prova que sustente a condenação.

Por fim, nas hipóteses previstas pelos incisos II (decisão baseada em provas

falsas) e III (surgimento de novas provas), a análise deve se dar de maneira distinta. Nesses

casos, serão discutidos novos elementos de prova; aqui, a revisão criminal não adquire a

característica meramente recursal. O erro combatido não se dá por parte do julgador, mas por

inexatidão ou falsidade do suporte fático que sustentou a sentença condenatória. Sendo assim,

como o tribunal do Júri não teve oportunidade de avaliar esses elementos de prova, será ele

competente para agora realizar a valoração das provas, de modo que o réu deverá ser remetido

a novo Júri. Entendemos, então, que nesses casos, cabe ao Tribunal apenas o exercício do

juízo rescindente, mas não do rescisório, em que pese a orientação jurisprudencial majoritária

de que, em todas as hipóteses do artigo 621, seria cabível o exercício de ambos os juízos pelo

Tribunal ad quem.110

109 ANSANELLI JÚNIOR, op. cit., p. 149. 110 ANSANELLI JÚNIOR, op. cit., p. 151.

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6.5.3 Dos Mecanismos hábeis a conferir maior Justiça à Instituição do Júri

Como se viu, a lei processual penal prevê a apelação e a revisão criminal como os

principais mecanismos de limitação à soberania dos veredictos, muito embora estabeleça,

também, outros meios secundários de combate às decisões de júri, tal como a possibilidade de

impetração de habeas corpus. Temos, pois, que esses instrumentos processuais situam-se no

ordenamento jurídico com o escopo de equilibrar o princípio da soberania dos vereditos aos

demais princípios vigentes no sistema, no sentido de que, apesar da Constituição conferir ao

Júri a soberania de suas decisões, é preciso que se relativize tal preceito a fim de adequá-lo ao

complexo principiológico vigente no sistema de justiça. Caso assim não fosse, a previsão de

um Tribunal absolutamente soberano, livre de quaisquer limites, atentaria contra toda e

qualquer concepção de justiça. Não há, pois, como se dizer justo um órgão de julgamento que

não preveja as falhas humanas e não conte com meios para corrigi-las.

Temos, então, que a apelação e a revisão criminal são importantes mecanismos de

limitação à soberania dos veredictos do Júri. Entretanto, a prática demonstra que tais

instrumentos não são suficientes para prevenir que, muitas vezes, escancaradas injustiças

acabem sendo acobertadas por esse excepcional poder conferido às decisões do Júri. Mesmo

com a previsão desses mecanismos pela lei processual, não há como negar que a instituição

do Júri goza ainda de extrema força, de sorte que, se o procedimento de julgamento não for

aplicado com a maior retidão possível, facilmente perpetuar-se-ão clamorosas injustiças.

Nesse sentido, para que se evitem tais injustiças, acreditamos que algumas

medidas poderiam ser bastante úteis à instituição do Júri, enquanto órgão jurisdicional. A

nosso ver, pois, no intuito de buscar decisões mais justas, deveríamos partir de medidas

focadas na pessoa dos jurados. Percebe-se que a maioria dos casos de evidentes injustiças

produzidas pelo Júri dá-se por despreparo dos jurados, que não são aptos para função de

tamanha responsabilidade, que é julgar. Sendo assim, medida de extrema relevância seria a

reformulação do procedimento de arregimentação dos jurados, bem como a instituição de

meios de preparo, a fim de que eles sejam melhor escolhidos e estejam aptos à tarefa

jurisdicional.

Conforme vimos anteriormente, os critérios adotados pela legislação processual

penal para a seleção dos jurados são extremamente subjetivos, prevendo, por exemplo, a

idoneidade como elemento essencial para que um indivíduo possa figurar como jurado.

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Vimos, também, a dificuldade que existe na aplicação prática desses critérios e o impacto

negativo da má aplicação no julgamento pelo Júri. Em verdade, o que ocorre na prática é que

não há aplicação alguma dos parâmetros previstos pela lei, já que, muitas das vezes, os

jurados são selecionados pelos próprios funcionários do fórum, restando ao juiz a tarefa de

simplesmente chancelar a escolha feita.

A nosso ver, essa má arregimentação dos jurados tem impactos profundos no

julgamento ao final realizado. É bem verdade que o Tribunal do Júri é, em sua concepção, um

órgão de julgamento democrático, no qual a escolha dos jurados deveria abranger a maior

gama possível de cidadãos, entretanto, não é menos verdade que se exigem condições

mínimas a esses jurados. Não vemos qualquer afronta ao princípio democrático do Júri ao

impor-se uma seleção mais criteriosa dos jurados; a escolha deve ser democrática dentre

aqueles indivíduos aptos a serem jurados e não dentre todos e quaisquer cidadãos. Ressalte-se,

pois, que juiz leigo não significa juiz despreparado, pois, mesmo que o Júri não se balize por

ditames jurídicos, a função jurisdicional adquire a mesma importância e responsabilidade de

qualquer outro órgão jurisdicional, carecendo, portanto, de julgadores absolutamente

preparados. A única implicação de o Júri ser um Tribunal leigo é o fato de que suas decisões

não são guiadas pelo direito, em nada havendo relação com a possibilidade de juízes

despreparados.

Sendo assim, defendemos a ideia de que deveria o Juiz-Presidente entrevistar

pessoalmente cada indivíduo que possa a vir integrar a lista anual de jurados, a fim de que

possa avaliar sua isenção, serenidade, imparcialidade, idoneidade, equilíbrio emocional,

dentre outras tantas qualidades exigíveis a um julgador. Desse modo, através de uma

avaliação mais próxima e pessoal entre o Juiz-Presidente e os candidatos a jurado, com

certeza propiciar-se-ia um julgamento mais adequado e justo. Note-se que, como os critérios

de seleção são bastante subjetivos, é imperioso que o juiz tenha conhecimento de cada

indivíduo em particular, avaliando individualmente suas condições de realizar a função

jurisdicional.

Outrossim, enxergamos com bons olhos a ideia de que os jurados participassem

de um curso de capacitação, a ser ministrado pelos próprios membros da magistratura togada,

no qual aprenderiam noções de direito penal, direito processual penal, direito constitucional,

enfim, um curso que lhes desse noção, mesmo que geral, das disciplinas envolvidas na

instituição do Júri. Frise-se, todavia, que o escopo do curso não seria de caráter conteúdistico,

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isto é, para suprir conhecimentos jurídicos, para dar conteúdo jurídico, mas apenas e tão

somente para que eles conhecessem ideias básicas de procedimento e ética para julgar.

Muitos alegariam, é verdade, que tal medida afrontaria o princípio de que o Júri

deve ser concebido como um tribunal leigo. Nós, entretanto, não enxergamos assim. Ora,

conforme já visto, a legislação processual prevê remédios para corrigir decisões do Júri em

contrariedade com o texto expresso da lei, ou então, em manifesta contrariedade à prova dos

autos. Nota-se, pois, que o Conselho de Sentença não está absolutamente desvinculado de

todos e quaisquer parâmetros jurídicos, já que, caso assim não fosse, não haveria razão para a

legislação prever a possibilidade recursal nessas hipóteses. Temos, então, que, por mínima

que seja, a decisão dos jurados sofre influência de ditames jurídicos, ou ao menos, dos

princípios que regem o ordenamento jurídico. Sendo assim, acreditamos bastante útil um

curso de preparação aos jurados, a fim de que eles possam compreender a base principiológica

envolvida em um procedimento do Júri, entender as razões de ser da instituição, enfim, para

que eles possam ser informados das bases fundamentais que regem nosso sistema de justiça.

Não vislumbramos que, após tal curso, deixem os jurados de serem leigos. A ideia

da preparação dos jurados centra-se apenas e tão somente no proceder deles enquanto juízes,

dando-lhes, pois, noções de regras de procedimento e em nada tocando, portanto, o mérito de

suas decisões, que continuarão a representar a visão leiga da sociedade acerca do caso em

questão.

Ainda quanto aos jurados, conforme já também pontuado, fator de extrema

relevância é a influência da mídia e da opinião pública por eles sofrida. Principalmente em

comarcas menores, em que as notícias se difundem rapidamente e as pessoas se conhecem

umas às outras, a influência desses fatores é incalculável. Muitas das vezes, o julgamento tem

seu início já com o veredicto formado, configurando, assim, clamorosa injustiça. É verdade

que a lei prevê a possibilidade de desaforamento, entretanto, na prática, ele raramente

acontece e, mesmo quando acontece, muitas vezes não se evita o problema, já que o

deslocamento normalmente se dá para cidades próximas, também influenciadas pelos mesmos

fatores.

Sendo assim, para evitar a influência desses fatores de influência externa,

defendemos a ideia da regionalização da instituição do Júri. Ou seja, acreditamos que se a

instituição do Júri não tivesse sua atuação adstrita a comarcas, mas sim a regiões, evitaríamos

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ou, pelo menos, amenizaríamos o problema da influência dos meios de comunicação e da

opinião pública.

Conclui-se, pois, que os limites à soberania dos veredictos impostos pela lei não

são suficientes para evitar que muitas vezes se produzam grandes injustiças pelo Tribunal do

Júri. Sendo assim, dado o extremo poder de que são munidas as decisões do Júri, é imperioso

que sejam dadas da mais criteriosa e cuidadosa forma possível. É nesse sentido, então, que

buscamos possíveis melhoras ao Tribunal Popular, já que a injustiça produzida no Júri tem

também caráter soberano, muitas vezes se perpetuando, sem que haja remédios para curá-la.

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7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A título de conclusão e como forma de resposta aos questionamentos propostos no

trabalho, entendemos que a instituição do Júri possui sim como escopo o julgamento

desvinculado de amarras jurídicas. Não restam dúvidas de que o Tribunal Popular, assim

como previsto em nossa legislação, sustenta-se pela possibilidade de os jurados

fundamentarem suas convicções em parâmetros outros que não os previstos pelo direito

positivado.

Defendemos, ainda, a imprescindibilidade da Soberania dos Veredictos enquanto

sustentáculo do Júri. Conforme estabelecido no trabalho, caso as decisões dos jurados não

gozassem de tal prerrogativa, seriam frequentemente cassadas e substituídas por sentenças da

magistratura togada, tendo em vista que, não raras vezes, mostram-se em sentido

absolutamente contrário ao entendido pelos tribunais. Desse modo, é a soberania das decisões

que sustenta a instituição do Júri enquanto Tribunal Popular.

Entretanto, em que pese sustentarmos o escopo de desvinculação de ditames

jurídicos, bem como a imprescindibilidade da Soberania dos Veredictos, temos como certa a

necessidade de imposição de limites a essas garantias. Conforme exposto, a concepção de um

órgão jurisdicional absolutamente soberano e desvinculado de quaisquer preceitos normativos

atentaria contra todo e qualquer ideal de justiça. Outro, aliás, não foi o entendimento do

legislador brasileiro, que, bem por isso, previu mecanismos de limitação à soberania das

decisões, bem como da desvinculação dos ditames jurídicos. É com esse intuito, por exemplo,

que se insere a previsão da apelação e da revisão criminal no âmbito do Júri.

A nosso ver, a garantia da Soberania dos Veredictos deve ser interpretada em

conjunto e em harmonia com os demais princípios constitucionais; consistindo, esses,

justamente a baliza que deverá limitar a extensão da garantia. Sendo assim, defendemos a

ideia de que a aplicação do princípio da soberania das decisões deverá se dar através do

conflito dos princípios vigentes em nosso ordenamento jurídico. Assim, por exemplo,

entendemos que deverá ser relativizada a Soberania dos Veredictos quando claramente

comprovado que a liberdade do réu foi injustamente tolhida, como ocorre, por exemplo, nos

casos de surgimento de provas novas, por nós estudados. Note-se, pois, que são muitos os

princípios que serão confrontados à garantia da soberania e que, portanto, balizarão sua

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aplicação, a exemplo dos princípios do duplo grau de jurisdição, do devido processo legal, da

ampla defesa, dentre outros. A interpretação principiológica, então, deverá se dar de forma

que a aplicação de um princípio não atente contra a aplicação dos demais, sendo imperioso,

pois, que, nesses casos, haja a relativização dos princípios conflitantes. É nesse sentido, então,

que entendemos a limitação à garantia da Soberania dos Veredictos.

Por fim, constamos que, em que pese a previsão de mecanismos de limitação pela

lei processual penal, a garantia da Soberania dos Veredictos goza ainda de extremada força,

de modo que, frequentemente se perpetuam injustiças produzidas pelo Júri por força da

soberania de suas decisões. Sendo assim, entendemos como imperiosa a necessidade de

melhorias à instituição no sentido de se buscarem decisões mais justas, lembrando-se que,

aqui, decisões ‘mais justas’ em nada estão relacionadas a decisões mais próximas às decididas

pelos tribunais togados. Decisões mais justas são aquelas que melhor se harmonizam no

complexo de princípios e valores vigorantes em nosso sistema constitucional penal.

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