a recepçao do direito romano

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  • Histria: Questes & Debates, Curitiba, n. 41, p. 73-83, 2004. Editora UFPR

    A RECEPO DO DIREITO ROMANO NO OCIDENTEEUROPEU MEDIEVAL: PORTUGAL, UM CASO DE

    AFIRMAO RGIA

    Reception of Roman law in Medieval European West:Portugal, a case of royal assertion

    Ftima Regina Fernandes*

    RESUMO

    O nosso estudo est voltado especificamente para a compreenso dofenmeno de ressurgimento dos estudos de Direito Romano na Europa dosculo XII, as vias de penetrao no reino portugus e a sua utilizao comofonte de afirmao do poder real. Afonso III o monarca que d incio a esseprocesso em Portugal, da centrarmos nossa anlise no seu governo, o qualserve de paradigma de anlise de outros tantos processos similares nas outrasmonarquias europias.

    Palavras-chave: direito romano, centralizao rgia, monarquias medievais.

    ABSTRACT

    Our study aims specifically at understanding the phenomenon of theresurgence of Roman Law studies in 12th-century Europe, its paths ofpenetration in the Portuguese kingdom and its use as a source of assertion ofthe royal power. Being Afonso III the monarch who begins this process inPortugal, our study will focus its analysis on his government, which willserve as a paradigm for analyzing so many similar processes in other Europeanmonarchies.

    Key-words: Roman law, royal centralization, medieval monarchies.

    O nosso estudo est voltado especificamente para a compreenso dofenmeno de ressurgimento dos estudos de Direito Romano na Europa dosculo XII, as vias de penetrao no reino portugus e a sua utilizao comofonte de afirmao do poder real. Afonso III o monarca que d incio a esse

    * Doutora em Histria Medieval pela Universidade do Porto; Professora Adjunto IV de HistriaMedieval da UFPR; Pesquisadora CNPq.

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    processo em Portugal, da centrarmos nossa anlise no seu reinado, o qualserve de paradigma de anlise de outros tantos processos similares em outrasmonarquias europias.

    Mas, para compreendermos esse fenmeno, torna-se necessrio fazeruma contextualizao dele, e para isso teremos de recuar no tempo at o sculoXI. nesse sculo que se d o primeiro grande embate entre os poderes ditosuniversais:1 o Papado e o Sacro Imprio Romano Germnico, de onde sairo osnovos critrios que regero as relaes entre o Monarca e a Igreja.2 O PapaGregrio VII, em 1075, ao emitir os princpios de autonomia da Igreja frente aopoder laico e sua interferncia tutelar sobre o mundo temporal, acaba pordelimitar a esfera de ao desse mesmo poder laico. Nas palavras de JosephStrayer: a concepo gregoriana de Igreja quase reclamava a inveno doconceito de Estado.3 A este, a seus lderes, restavam duas reas de atuaolivres da influncia eclesistica: a justia e as finanas.4 Assim, os reinos ficamsob a tutela da Igreja em vrias reas, menos naquelas relativas sua prpriaestrutura administrativa interna. Aos poucos comeam a enunciar-se limites deatuao entre os poderes espiritual e temporal.5

    Fixam-se, assim, no panorama poltico medieval, trs foras distintas einteratuantes: o Papado (Sacerdotium), o Imprio (Imperium) e os Reinos(Regna).6 A disputa pela hegemonia de poder entre as duas primeiras chegarao sculo seguinte, sculo XII, num plano j no simplesmente poltico mastambm cultural. Observa-se, ento, o fenmeno de renascimento do DireitoRomano, como Direito do Imprio, no Ocidente europeu. Renascimento no nosentido de que anteriormente se tenha perdido o conhecimento do DireitoRomano, mesmo porque fora a prpria Igreja quem at ento o preservara, masno sentido de reencontro do Direito Romano por meio do estudo, independente,dos genunos textos justinianeus.7

    Esse renascimento parte da Escola de Bolonha, defensora do partidodos imperiais, que formar uma pliade de juristas, glosadores e comentadores

    1 MITRE, Emlio. Introduccin a la historia de la Edad Media Europea. 3 ed. Madrid: Istmo,1986. p.183.

    2 COING, Helmut. Las tareas del historiador del derecho: reflexiones metodologicas. Sevilha:Publicaciones de la Universidad de Sevilha, 1977. p. 54.

    3 STRAYER, Joseph. As origens medievais do Estado Moderno. Lisboa: Gradiva, s/d. p. 394 Ibid., p. 53.5 FDOU, Rn. Ltat au Moyen ge. Paris: PUF, 1971. p. 62; ULLMANN, Walter. Historia

    del pensamiento poltico en la Edad Media. Barcelona: Ariel, 1983. p. 134; OAKLEY, Francis. Los siglosdecisivos. La experiencia medieval. Madrid: Alianza, 1980. p. 152.

    6 SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes da. Histria do direito portugus: fontes de direito. Lisboa:Fundao Calouste Gulbenkian, 1985. p. 130.

    7 Ibid., p. 141-142.

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    dos textos justinianeus. Os imperiais armam-se de legistas, capazes no s deler, mas tambm interpretar a essncia de princpios que foram constitudosnuma poca bem distante e para uso de jurisconsultos romanos.8

    Defendendo e recuperando a ordem jurdica do Imprio Romano, osimperiais do sculo XII afirmavam-se frente ao Papado. E por que se afirmavam?Para compreender isso, preciso penetrar no esprito que perpassa a obrajustiniana. As trs grandes compilaes de Justiniano9 (528/534), que daroorigem no incio do sculo XII ao Corpus Iuris Civilis, alm da funo deorganizao jurdico-legislativa que buscaram promover, tiveram o cuidado deabster-se de preservar e aplicar os princpios republicanos, acentuando a figurado governante como Princeps, cuja vontade lei, aquele que tem a PlenitudoPotestatis.10

    A Igreja percebe o peso do trunfo de seus adversrios e, como hbilestrategista, faz a definitiva adoo do Direito Romano Justinianeu ao seuDireito Cannico. O Direito Romano ser seu Direito em matria temporal, corrigee esclarece o Direito Cannico. Aquele deve ser aplicado sempre que nocontrarie este. Juno perfeita para uma instituio que tem, poderamos dizer,um p na Cidade de Deus e outro na Cidade dos Homens. Forma-se, assim, ums Direito, o Direito Comum, o Utrumque Ius,11 composto dessa juno doDireito Romano Justinianeu ao Direito Cannico, ambos aprovados pela Igreja.

    Vemos, assim, que no panorama internacional as duas grandes foraspolticas, Imprio e Papado, travam uma luta no plano jurdico. O Imprio cada vez mais fragmentado internamente e at sua base de justificao desupremacia seu Direito incorporado pelo Papado. Este, j no sculoXIII, parece dominar a situao. natural, portanto, que a terceira grandefora poltica em formao, os Reinos, busque o apoio do Papado, pelomenos no incio, servindo como partidrios deste. Portugal no foge regrae torna-se, desde a sua formao poltica independente, um dos sditosmais fiis dos Papas.12

    8 GIBERT, Rafael. Elementos formativos del derecho en Europa: germanico, romano, canonico.Madrid: Manuel Huerta, 1982, p. 74-75 e 80-9; SILVA, op.cit., p. 143-146; CAETANO, Marcelo. Histria dodireito portugus. Fontes - Direito Pblico (1140-1495). 2 ed. Lisboa: Verbo, 1985. p. 337.

    9 Cdigo : 12 livros (leis ou constituies imperiais); Digesto ou Pandectas: 50 livros(repositrio da doutrina dos jurisconsultos) e Institutas(texto para ensino escolar) (GIBERT, op.cit., p.61-4).

    10 MITRE, op. cit., p. 184.11 SILVA, op. cit., p. 155; CAETANO, op. cit., p. 338.12 HERCULANO, Alexandre. Histria de Portugal desde o comeo da monarquia at ao fim

    do reinado de D. Afonso III, com prefcio e notas crticas de Jos MATTOSO. Lisboa: Bertrand, t. II, 1980-1. p. 455-63; CAETANO, op. cit., p. 203-206; SILVA, op. cit., p. 103-105.

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    Ora, como todo partidrio, o reino portugus s far uso das normas eestruturas jurdicas aprovadas pela Igreja; poder, portanto, no sculo XIII,utilizar-se livremente do Direito Romano na organizao interna do reino. Essautilizao ser bastante proveitosa pois, como vimos anteriormente, em relao Justia e s Finanas, que os monarcas tm autonomia decisria e parapromover a organizao dos seus reinos nesses dois campos, torna-seimprescindvel o conhecimento do corpo jurdico-legislativo do Direito Romano.Alm disso, h outro interesse nessa adoo do Direito Romano no reinoportugus e em seus congneres europeus: o de afirmao poltica dos seusmonarcas. Em Portugal, esse fenmeno tem grande impulso no reinado deAfonso III (1245-1279), na segunda metade do sculo XIII. Ele saber utilizar-sedos princpios centralizadores contidos nessa obra, reforando a figura do rei-legislador, da concepo de que os Reges, no plano jurdico-poltico, dentro doseu reino, so Imperatores.13

    Vemos assim que, alm do indispensvel subsdio para a organizaointerna do reino portugus, o Direito Romano Justinianeu difusor de umaatraente concepo de governante aos monarcas em vias de afirmao, comoAfonso III. um Direito duplamente bem-vindo e este monarca portugussaber utiliz-lo muito proveitosamente.

    Os especialistas em Histria do Direito so unnimes em considerar oreinado de Afonso III como o de incio do perodo de recepo do DireitoComum e, portanto, do Direito Romano Justinianeu em Portugal.14 E isso porque a partir desse monarca que a Justia comea a constituir-se em Portugalcomo instituio, com rgos competentes, com princpios e formas de execuojurdica, iniciando um processo de sistematizao das normas de funcionamentodo aparelho burocrtico-administrativo. As condies que tornam possvel aascenso de Afonso III ao trono portugus contribuem para isso, da o interessede apresentarmos a crise de 1245, gerada pela deposio de Sancho II, rei atento legtimo, pela iniciativa do Papa Inocncio IV durante o Conclio de Lyon,realizado naquele mesmo ano, e sua substituio por seu irmo, Afonso, Condede Bolonha, futuro Afonso III.

    Os anos que antecedem o de 1245 so marcados por uma total ausnciade ao governativa do monarca vigente, Sancho II. Apesar de este ter levadoa fronteira dos territrios portugueses, perante os muulmanos, at quase oAlgarve, sua preocupao administrativa bastante fraca, denunciando uma

    13 MOUSNIER, Roland. La monarquia absoluta en Europa; del siglo V a nuestros dias. Madrid:Taurus, 1986. p.50-51; ULLMANN, op. cit., p. 148.

    14 CAETANO, op. cit., p. 339; SILVA, op. cit., p. 158.

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    prioridade de expanso militar, territorial, em detrimento da centralizaoadministrativa.

    Alm disso, observa-se em Portugal desde o sculo XI, como no restodo Ocidente europeu, um crescimento demogrfico e uma melhoria geral dascondies climticas e das tcnicas de produo agrcola, que vo afetarsobretudo a nobreza. Seus descendentes, cujas propriedades encontram-seconcentradas no norte, comeam a dispor cada vez de menos territrios sobseu domnio direto, pois as famlias crescem demasiadamente e o sistema desucesso cogntica permite a partilha das heranas entre todos os filhos. A fimde alterar essa situao, aos poucos e de uma forma natural, as famlias nobresvo adotando o sistema linhagista, que privilegia o varo mais velho, emdetrimento dos filhos-segundos. Teoricamente, o balano entre o crescimentodemogrfico e os recursos econmicos do reino estavam restabelecidos; noentanto, os secundognitos, que se encontravam numa posio desfavorvel,transformam-se num fator de agitao poltica e social, buscando, na usurpaode bens e direitos, os recursos que lhes so negados na herana.15

    Portanto, gera-se uma crise social, uma desestruturao da nobrezaconcentrada no norte do reino, que contrasta com o centro e o sul, regies deautonomia, de liberdade, de constante perigo e escassa densidade demogrfica.

    A anarquia social gerada pela interao destes dois fatores, odesgoverno e a ciso interna da nobreza, caracteriza-se por lutas dos nobresentre si, lutas entre os nobres e as igrejas e mosteiros, de quem os filhos-segundos usurpam direitos e bens, abusos de poder e violncias dos nobrescontra os vilos em senhorios e tenncias, alm do puro banditismo.

    Enfim, uma situao pintada em cores negras, principalmente na bulapapal Inter alia Desiderabilia emitida pelo Papa Inocncio IV, em maro de1245, exigindo do rei Sancho II uma posio de conteno das agitaes. Afinal,o monarca , teoricamente, o garante da paz e estabilidade do seu reino.16 aque se define o seu carter de Utilitas Publica. Essa bula, , portanto, umaameaa ao rei: se no cessarem as agresses e ameaas aos interesses erepresentantes do Papado, ser retirada do rei a sua legitimao, seus sditosestaro desligados do seu compromisso de fidelidade.

    15 GENICOT, Leopold. Le XIII sicle europen. Paris: PUF, 1968; DUBY, Georges. Hombres yestructuras de la Edad Media. Madrid: Siglo XXI, 1977; MATTOSO, Jos. Estrututras familiares e estratgiasde poder. Histria e Crtica, Lisboa, n. 12, 1985. p. 48-53; _____. Ricos-homens, infanes e cavaleiros.Lisboa: Guimares, 1985; _____. A nobreza medieval portuguesa. Lisboa: Estampa, 1987.

    16 RIBEIRO, ngelo. A revoluo do Bolonhs. In: PERES, Damio (Org.). Histria de Portu-gal. ed., Monumental, Barcelos: Portucalense, 1929. v. 2.; VASCONCELOS, Carolina Michaellis de. Em voltade Sancho II. Lusitnia, Lisboa, n. 2, 1924. p. 7-25.

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    Enquanto as negociaes transcorrem em Roma, uma comitiva de nobrese clrigos portugueses vai procurar Afonso, que vivia em Paris, na Corte de seuprimo Lus IX, a fim de oferecer-lhe a possibilidade de assumir o trono em trocado juramento de fidelidade aos interesses do clero e da nobreza e da manutenode seus privilgios e imunidades. Esse o chamado Juramento de Paris,compromisso aceito pelo prprio Infante Afonso.

    Assim, no Conclio de Lyon, de julho de 1245, Inocncio IV excomungae destitui Sancho II do trono portugus por meio da bula Grandi Non Immerito,sob a acusao de Rex Inutilis, confiando interinamente a administrao doreino ao Infante Afonso, Conde de Bolonha e irmo de Sancho.17

    Aps a deposio de Sancho, quase a totalidade dos grupos privilegiadosdo reino j apiam Afonso. A justificativa de apoio era o desligamento do juramentode fidelidade ao antigo rei, que acarretava a deposio e excomunho papal. Poucoscastelos ainda defendem Sancho II, o qual em 1247 abandona o reino, indo paraToledo, onde um ano mais tarde vir a morrer.

    nesse momento que se d um verdadeiro contragolpe por iniciativado novo monarca, Afonso III, reconhecido como tal em 1248. Ao contrrio doque prometera em Paris, o monarca assume o propsito de afirmar-se perante anobreza tradicional pela montagem de um aparelho burocrtico-administrativoe pela captao do apoio dos elementos desprezados pela estrutura linhagstica.O monarca torna-se, assim, um elemento dinmico da sua realidade agitada poruma crise, que nada mais que uma crise de crescimento, uma crise que gera amudana, apesar de sua motivao inicialmente reacionria.

    Afonso III aproveita-se de um momento de ciso interna e conseqenteenfraquecimento da nobreza e apia-se nos filhos-segundos dessa fidalguia,oferecendo-lhes importantes cargos na Corte, assim como o controle de castelosnas regies do centro e sul do reino, regies despovoadas e carentes deadministrao, territrios no dominados pela nobreza tradicional, ondemultiplicam-se os Concelhos, cujos forais so concedidos pelos monarcas.Assim, Afonso III promove uma ao libertadora das regies de hegemonianobre, no s para os filhos-segundos como para a burguesia e o povo.

    Promove-se, assim, um novo enquadramento das foras sociopolticas,que acompanhado por uma transferncia do centro da base econmico-polticado poder do norte para essas regies perifricas. Estas, em breve, encontrar-se-

    17 SOUSA, Antnio Caetano de. et al. Provas da histria genealgica da Casa Real Portugue-sa. 2 ed. Coimbra: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985. p. 60. 4 A partir de 1248 j se apresenta nosdocumentos usando o ttulo de Rex Portugaliae et Comes Boloniae.

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    o perfeitamente adaptadas ao desenvolvimento de uma economia de produo,senhorial e comercial, bastante rentvel, ao contrrio dos tradicionais eesgotados domnios do norte. dessas regies que logo proviro os principaisingressos fiscais e direitos cobrados pelo monarca. l, ainda, que se fixapreferencialmente sua Corte, em Coimbra.

    A pequena nobreza v-se, assim, atrada pela monarquia, que cada vezmais se assume como o distribuidor de bens e influncias e rbitro das questesinternas do reino.

    Afonso III mais que um hbil estrategista que sabe aproveitar umaconjuntura favorvel para afirmar-se tambm um homem culto. Na trajetriapessoal do rei Afonso III, podemos observar que ele estivera em contato com ogrande centro onde ocorreu o renascimento dos estudos de Direito Romano,na medida em que fora casado com a Condessa de Bolonha.18 Alm disso, foieducado em Paris, na Corte de Lus IX, onde travou contato com os novosconceitos de poder, administrao e poltica.

    Quando assume o poder como Regedor e Defensor, em 1245, depara-secom um reino totalmente desorganizado por causa da m administrao de seuirmo e antecessor, Sancho II. Diante de uma verdadeira anarquia social, naqual foras de turbulncia agitam ainda mais um contexto j marcado pelaprivatizao de prerrogativas originariamente rgias, tornava-se fundamentalrestaurar o equilbrio entre as foras sociopolticas do reino.

    Cabe ao rei distribuir justia e paz entre seus sditos; esta a essnciada Utilitas Publica. Ele representa o primeiro nvel do qual emana a justia; empoucas palavras, ele centraliza o poder. Centralizar, nesse momento, consisteem difundir os princpios do Direito Romano por meio da justia e administraodo reino. Agora, analisaremos de que maneira esses princpios esto presentesna poltica interna de Afonso III.

    Em primeiro lugar, esse um processo que se vai constituindo a partirda formulao de leis e valorao de costumes. Leis que criam solues para opreenchimento de lacunas deixadas pelo Direito consuetudinrio,particularmente as Leis Gerais,19 as quais teoricamente atingiriam a todos os

    18 Em 1227, Afonso III, Infante e filho-segundo, parte para a Corte de seu primo Lus IX de Frana,sendo que nesta altura o reino francs encontrava-se ainda sob a regncia da rainha D. Branca de Castela. Esta,tia de Afonso, arranja-lhe o casamento com a Condessa Matilde de Bolonha. No entanto, depois de assumir otrono portugus, repudia a primeira mulher e consorcia-se com D. Beatriz, filha bastarda de Afonso X deCastela, numa manobra matrimonial diplomtica. Apesar disso, Afonso III jamais abandonar o ttulo deConde de Bolonha. (MATTOSO, J. (Dir.). Histria de Portugal: a monarquia feudal (1096-1480). Lisboa:Estampa, t. II,1993. p.127-133 et passim).

    19 CRUZ, Guilherme Braga da. Histria do direito portugus. p.187 et passim; CAETANO, op.cit., p. 344; SILVA, op. cit., p. 167.

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    sditos, independentemente de sua condio social. Leis que iniciam a promoode uma uniformizao dos direitos, das penas e dos processos. Leis que regulamas variaes do valor da moeda, de fixao de preos de produtos e servios,dentre outros.20 Todo um conjunto de princpios legais que se encontramcoligidos no Livro das leis e posturas,21 compilao que contm as leis deAfonso III e seus sucessores at meados do sculo XIV.

    A emisso de Leis Gerais, num perodo de grande difuso de direitos,privilgios, foros e costumes, marca uma poltica de vanguarda, especialmentese a considerarmos sob o prisma da inteno uniformizadora que lhe estsubjacente. bvio que Afonso III lida ainda com limitaes que perpassam asua obra legislativa. Um dos muitos exemplos dessas limitaes oestabelecimento de penalizaes variveis conforme o estatuto social do ru edo autor nos processos, denunciando a sobrevivncia e validade dos privilgiose imunidades dos grupos privilegiados. No entanto, ele o primeiro monarcaportugus a emitir princpios claros de definio de regras e ordenao daJustia e das formas de relacionamento entre a sociedade e o poder central,medidas claramente influenciadas pelas novas frmulas de inspirao romano-cannica do Direito Comum.22

    Outro elemento da sua poltica de afirmao, a partir dos princpios doDireito Romano, a regulao dos processos de recurso judicial. A Corte apresentada como ltima instncia de recurso.23 Quando o rei coloca-se comoltima instncia de Justia, ele capta para si as expectativas de resoluo dequestes que at ento estavam sob o jugo arbitrrio dos juzes locais,normalmente parciais nos interesses dos senhores locais que os instituam. Orei consegue, assim, aguar a fidelidade dos seus sditos na medida em queentrepe-se entre estes e os estratos privilegiados do reino. Alm disso, quandose faz a regulao jurdica dos recursos, pressupe-se uma prvia hierarquiadas funes na Corte, a organizao de cargos e a definio de funes como

    20 FERNANDES, Ftima Regina. Comentrios legislao medieval portuguesa de Afonso III.Curitiba: Juru, 2000.

    21 Compilao sem data precisa, segundo as referncias dos estudiosos, a qual deve ter sidocoligida no reinado de D. Joo I por causa do tipo de letra do cdice original. A transcendncia desta obra reforada pelo fato de ter servido de pano de fundo para coletneas futuras como as Ordenaes de D. Duartee Afonsinas. Utilizamos em nosso trabalho a seguinte edio: SILVA, Nuno Espinosa Gomes da; RODRIGUES,Maria Thereza Campos. Livro das leis e posturas. Lisboa: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,1971. Vide ainda BENTO, Manuel. Subsdios para a histria do direito portugus. Lisboa: Unio Grfica,1941. p. 66-67; COSTA, Moacyr Lobo da. O agravo no direito lusitano. Rio de Janeiro: Borsoi, 1974. p. 11.

    22 COSTA, op. cit., p. 21; AZEVEDO, Lus Carlos de. Origem e introduo da apelao nodireito lusitano. So Paulo, 1976. Dissertao (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidadede So Paulo, 1976. p. 23 et passim.

    23 CAETANO, op. cit., p. 378 e 401; FERNANDES, op. cit., p.142-187.

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    a dos juzes, entre juzes inferiores e superiores, estes ltimos capazes de reveras sentenas interlocutrias emitidas pelos primeiros. Implica, portanto, emtodo um processo de sistematizao e regularizao das funes jurdicas.24

    O Livro das leis e posturas possui uma espcie de Cdigo Processualque define as formas de efetivao dos recursos judiciais.25 E essa fixaoescrita fundamental, pois um apelo ou queixa ao rei no pode ser consideradorecurso enquanto no for facultado regularmente aos requisitantes segundoum processo com etapas bem definidas.26 Ttulos que tratam do chamamento autoria; sobre prazos concedidos ao autor e ru; critrios de citao Casa delRey; sobre procuradores, advogados e testemunhas; formulrios de cartas desentenas interlocutrias e de agravo, dentre muitos outros. Princpios efrmulas que seguem uma tendncia de sistematizao e unicidade da prticajurdica claramente influenciados pelos princpios do Direito Comum e com talimportncia que, apesar de serem os primeiros do reino portugus,permanecero, com poucas alteraes, nos reinados posteriores.27

    Outro reflexo da centralizao a confirmao de direitos, um conjuntode documentos, emitidos pela Chancelaria rgia, que confirmam a posse e o usode bens concedidos pelos monarcas. Essas medidas promovem o fortalecimentoda Chancelaria rgia, rgo da administrao central responsvel pela emissode diplomas, cartas e todo tipo de pronunciamento oficial do monarca e suaCorte, onde o chanceler-mor guarda o selo rgio, smbolo de poder e autoridadepor excelncia.

    Neste mesmo sentido se aplicam as Inquiries, inquritos feitos nasregies de mais antiga dominao do poder senhorial, a fim de promover uminventrio dos bens e direitos devidos ao rei. Isso porque, em princpio, todaterra , por direito, do monarca, e sua ocupao e explorao implicam numaconcesso explcita dele, como pagamento por um servio prestado, um cargoexercido, pela fidelidade demonstrada, enfim, pelo cumprimento do auxilium etconsilium, que a estrutura feudal cobra do vassalo e de seu senhor.

    Apoiado por um grupo de letrados, na sua maioria filhos da pequenanobreza que, no dispondo de riqueza, conseguem prestgio e poder apoiando

    24 Livro das leis e posturas. p. 400, p. 216, p. 39, p. 95-96, p. 124-126, p. 39-42, p. 46-48, p. 221,p. 144 et passim. TORRES, Ruy d Abreu. Juzes. In: SERRO, Joel. (Dir.). Dicionrio de histria de Portu-gal. Porto: Livraria Figueirinhas, 1990. v. 3, p. 416-417; CAETANO, op. cit., p. 400; FERNANDES, op. cit.,p. 158-162.

    25 Livro das leis e posturas. p. 20-50. Vide nota 22 e vide ainda MERA, Paulo. Lies dehistria do direito portugus. Coimbra: [s.n.], 1933. p. 121.

    26 CAETANO, op. cit., p .400; AZEVEDO, op. cit., p. 108-109.27 CAETANO, op. cit., p. 346-347 e p. 530; SILVA, op. cit., p. 174; COSTA, op. cit., p. 9;

    FERNANDES, op. cit., p. 142-187.

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    o rei e passando a integrar a sociedade poltica com o exerccio de cargospblicos, Afonso III tenta estabelecer um determinado sistema de valores quetem na lei, na escrita e na representao poltica os seus mais fortes apoiosideolgicos. Para tanto, exige a apresentao de documentos escritos quecomprovem a concesso e o usufruto das imunidades e bens dos inquiridos,pondo cobro aos abusos e usurpaes de poder, to constantes at ento,apoiados na consagrada prtica de transferncia oral da tradio. Observa-se,assim, uma ao disciplinadora dos processos, uma crescente importncia dosdocumentos e processos escritos e provas documentais, alm do aumento deimportncia dos tabelies e escrives que do f pblica a essas peasprocessuais.28 Podemos dizer, portanto, que a recepo do Direito Romano emPortugal no sculo XIII utilizada como estratgia de centralizao rgia.

    A organizao das finanas estar em perfeito paralelo com essaevoluo jurdica, na medida em que o aperfeioamento de um alimentar ofortalecimento do outro. Manteremos o foco na anlise da sistematizao judicial,na medida em que est mais diretamente relacionado com o renascimento dosestudos de Direito Romano. Um Direito que permanece desde a AntiguidadeTardia como smbolo de organizao institucional e poltica e que reaproveitadono sculo XIII em favor de uma luta de afirmao entre o Papado e o SacroImprio. Um Direito que fruto de uma criao intelectual e cuja interpretaodos juristas de Bolonha refora sua original tendncia centralizadora.

    O reino portugus, ao abrir suas portas recepo e aplicao doDireito Comum, busca organizar-se internamente, mas Afonso III e seussucessores sabero conduzir essa organizao no sentido da afirmao da suaautoridade. O rei, como fonte da Lei e da Justia, amparado por um quadrolegislativo e jurdico bem organizado, o ideal buscado pelo monarca, e oDireito Romano , sem dvida, o instrumento mais adequado concretizaodeste ideal.

    A monarquia portuguesa acompanha essa evoluo e os reis,especialmente aps Afonso III, afirmam-se cada vez mais por meio da lei,centralizando a administrao; penetrando, com seus representantes, no coraodos centros de poder local e regional, senhorios e cidades; difundindo umapropaganda rgia que se fundamenta na preciso, na lei e na justia. Um modeloideolgico que atraa os membros da pequena nobreza, a burguesia emergentee o povo em geral.

    28 Vide KRUS, Lus. Escrita e poder: as inquiries de Afonso III. In: Estudos Medievais. Por-to: Centro de Estudos Humansticos - Secretaria de Estado da Cultura - Delegao Regional do Norte, 1(1981).p. 59-79.

  • FERNANDES, F. R. A recepo do direito romano no ocidente europeu...

    Histria: Questes & Debates, Curitiba, n. 41, p. 73-83, 2004. Editora UFPR

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    Essas reflexes levam-nos a compreender a verdadeira transformaopromovida pela crise de 1245 que leva ascenso de Afonso III ao trono dePortugal, como ponto de partida de uma reestruturao da sociedade portuguesaque levar ao fortalecimento da monarquia pelo equilbrio de foras sociopolticasem favor da lei, o princpio da modernizao das estruturas polticas quepromover a insero do reino portugus num contexto de construo dosfundamentos de um Estado Moderno.