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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ LÍVIA FERNANDA MORALES O BANQUETE AMERICANO: A EXPRESSÃO AMERICANA NO POEMA PENSAMIENTOS EN LA HABANA DE JOSÉ LEZAMA LIMA CURITIBA 2007

a Expressão Americana no Poema

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

LÍVIA FERNANDA MORALES

O BANQUETE AMERICANO: A EXPRESSÃO AMERICANA NO POEMA PENSAMIENTOS EN LA HABANA DE JOSÉ LEZAMA LIMA

CURITIBA 2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

LÍVIA FERNANDA MORALES

O BANQUETE AMERICANO: A EXPRESSÃO AMERICANA NO POEMA PENSAMIENTOS EN LA HABANA DE JOSÉ LEZAMA LIMA

Monografia apresentada à disciplina Orientação Monográfica II como requisito parcial à conclusão do Curso de Letras Português-Espanhol, Bacharelado em Estudos Literários, Setor Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Vasconcelos Machado

CURITIBA 2007

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EPÍGRAFE

Quando se pensa duas coisas inefáveis desta matéria, convém pensar também as palavras que narram minha incapacidade. Digo, portanto, que minha incapacidade procede de maneira dupla, como duplamente transcende a superioridade dela, pelo modo como é exposto, porquanto convém para mim deixar por insuficiência de intelecto muito daquilo que é verdade nela e que quase resplende em minha mente, a qual como corpo diáfano recebe aquilo que é nela verdade, mas não completamente. Isto afirma naquela parte seguinte: Certo é que me convém abandonar. Depois, quando digo E daquilo que entende, afirmo aquilo que entendo de modo suficiente, mas que minha língua é incapaz de traduzir aquilo que em meu pensamento é concebido, porque deve-se constatar que, a respeito da verdade, aquilo que disser será pouco.

Dante

Alighieri, Banquete

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RESUMO

Nosso objetivo nesse estudo é estabelecer uma leitura para o poema Pensamientos en La Habana do livro La Fijeza de 1949 do poeta-crítico José Lezama Lima a partir da perspectiva da Expressão Americana do mesmo autor. Essa questão, e como ela se articula poeticamente sobre a forma de um “Banquete Americano” de formas Neobarrocas, através do conceito de Transculturação (Ortiz, 2002) é nosso eixo principal. Para desenvolvê-lo se faz necessário pensar no sistema filosófico/poético elaborado pelo autor em contraposição à noção de História e historicismo hegeliano. Assim como também um breve olhar sobre o histórico do caminho do discurso americano e como nele se contextualiza o autor. Tudo isto tendo em consideração o conceito de poeta-crítico de Leyla Perrone-Moisés (1998) como aquele sujeito que elabora o trabalho poético e crítico em mão dupla e que tem autonomia intelectual para construir um sistema de escolhas que garantem articulação dos elementos de maneira coerente, e o panorama da literatura Neobarroca de Severo Sarduy. Palavras-chave: José Lezama Lima; Banquete Americano; Neobarroco; Expressão Americana; Transculturação; Poesia-Crítica

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RESUMEN

Nuestro objetivo es establecer uma lectura para el poema Pensamientos en

La Habana del libro La Fijeza de 1949 del poeta-crítico José Lezama Lima desde la perspectiva de la Expressão Americana del mismo autor. Esta problemática, y como Ella se articula poéticamente bajo la forma de un “Banquete Americano” de formas Neobarrocas, a través del concepto de Transculturación (Ortiz, 2002) es guía. Para desenvolverlo se hace necesario pensar en el sistema filosófico/poético elaborado por el autor en contraposición a la idea de Historia e historicismo hegeliano. De esta forma, como también una breve mirada al histórico del camino del discurso americano e como en el se contextualiza al autor. Teniendo en consideración el concepto de poeta-crítico de Leyla Perrone-Moisés (1998) como aquel sujeto que elabora el trabajo poético y crítico duplamente y que tiene autonomía intelectual para construir un sistema de elecciones que garante la articulación de los elementos de manera coherente, y finalmente el panorama de la literatura Neobarroca de Severo Sarduy.

Palabras-clave: José Lezama Lima; Banquete Americano; Neobarroco; Expresión Americana; Transculturación; Poesía- Crítica.

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SUMÁRIO

1. .......................................................................................................................... I

NTRODUÇÃO ......................................................................................... 8

1.1 José Lezama Lima: uma breve biografia ............................................... 10

2. .......................................................................................................................... A TRANSCULTURAÇÃO E UM BREVE PANORAMA DO DISCURSOAMERICANO...................................................................... 12

2.1 A transculturação e o caso americano ................................................... 12

2.2 Um recorte do discurso americano ........................................................ 16

2.2.1 O discurso americano no período entre guerras........................... 18 2.3 América de Afonso Reyes ...................................................................... 19

2.4 A consciência como maturidade estética. ............................................ .21

3. O SISTEMA FILOSÓFICO LEZAMIANO E A EXPRESSÃO AMERICANA........................................................... 24

3.1 O Banquete Neobarroco de América .................................................... 30

3.2 O sistema filosófico/poético lezamiano .................................................. 37

4. PENSAMIENTOS EN LA HABANA...................................................... 43

5. CONCLUSÃO ....................................................................................... 50

6. Referencias Bibliográficas ................................................................. 53

ANEXO ........................................................................................................... 56

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1. INTRODUÇÃO

O objetivo deste estudo é analisar o poema Pensamientos en La Habana

(Muerte de Narciso, Antología Poética. Madrid: Ediciones Era, 1988.) do livro

La Fijeza de 1949 do poeta-crítico1José Lezama Lima a partir da perspectiva

do conceito teórico de Expressão Americana do autor. Interessa-nos como

esse conceito se articula poeticamente sobre a forma de um “Banquete

Americano” Neobarroco com o conceito de Transculturação.

O alvo principal é estabelecer uma leitura para esse poema a partir do

complexo teórico do poeta, por isso deixamos a análise para o final, sem com

isso correr o risco que a teoria se imponha ao objeto poético. Assim, como

objetivo secundário, mas que não deixa de ser importante por isso mesmo, se

propôs a revisão dos conceitos do sistema poético lezamiano.

Nossa proposta de análise se enquadraria dentro dos chamados

Estudos Culturais, mas não da perspectiva pós-colonialista, pois usá-la

significaria forçar o objeto de análise. Consideramos que esta teoria não se

enquadra nesta pesquisa justamente porque a proposta do sistema teórico, a

poesia de Lezama Lima e nosso conceito operatório (a transculturação) vêm

desde outro lugar enunciativo.

Lezama Lima tem uma concepção descentrada da História na sua visão

tradicional que permite deduzir um itinerário de uma visão histórica cíclica, já

que, no seu complexo teórico cada cultura criar sua própria imagem. Ao

incorporar elementos europeus a cultura americana os adota, transforma e

assimila, dando origem a uma nova realidade. Mendía (1997, p. 545) ao pensar

na imagem histórica no romance Paradiso:

Búsqueda de las esencias y las formas propias de expresión: es en este sentido donde hay que indagar la historicidad de la imagen en Lezama. Significa la fragua - con la violencia y el desaliño que suele a veces caracterizar las obras de fundación – de una literatura propia, y eso es, a mi juicio, profundamente histórico.

1 O conceito de poeta-crítico de Leyla Perrone-Moisés (1998), como aquele sujeito que elabora o trabalho poético e critico em mão dupla e que tem autonomia intelectual para construir um sistema de escolhas que garantem articulação dos elementos de maneira coerente.

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A História será uns dos eixos centrais para pensar o sistema filosófico do

autor, especialmente no que diz respeito ao núcleo do conceito de dialética.

Compararemos sua visão da Filosofia da História com a visão de Hegel,

filosofo alemão do século XVIII que pensa sobre os mecanismos da Filosofia

da Historia Universal.

Faremos, nesse sentido, um panorama das diferentes teorias sobre a

cultura que constituem um esforço intelectual de escapar do discurso do

colonizador e é inserido nesse fenômeno discursivo que se encontra A

Expressão Americana. Para exemplificar discutiremos o texto Notas sobre la

inteligência americana (2005) de Alfonso Reyes.

O conceito de “modernidade” que usaremos é o que Gonzalo NAVAJAS

desenvolve no texto La modernidad como crisis (1998), no qual, aponta que o

que marca a Modernidade é a dissolução das herarquias e cânones

tradicionais e principalmente a estabilidade do lugar do conhecimento. Isso leva

na Literatura e na Cultura uma redefinição e à “potencialización Intelectual”

(1998, p. 10), pois já não é possível pensar em unilateralidade. Com isto se

deixa de lado também a possibilidade de uma verdade cientifica.

Na Modernidade, a conexão do fato literário e as outras manifestações

culturais e outras linguagens (música, cinema, pintura, fotografia, etc), revela o

entendimento de como os textos possuem sentidos historicamente

significativos, levando a repensar a taxonomia da própria literatura e da crítica.

A relativização do eurocentrismo deu lugar à valorização de outras

culturas. O autor desenvolve um olhar que entende a consciência do pós-

vanguardismo com a substituição das utopias da revolução da primeira metade

do século, especialmente do das primeiras décadas que tinham confiança na

tecnologia como forma de avanço e progresso.

A vanguarda européia contribuiu para esta situação, mas não teve um

final satisfatório porque colocou a pratica antes da consciência. Neste

momento de questionamento, o que acontece na Cultura Americana é o

contrario (1998, p 19). O universalismo cultural – depois chamado de

globalização – que pressupõe que a cultura tem uma unidade, uma identidade

e que no limite significa que existe uma “influência” ou dialogo entre as

diferentes manifestações se depara com a fragmentação.

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O autor também chama a atenção para a necessidade de se

recolocamos a estética clássica na linguagem contemporânea (1998, p 13),

poderemos conectar o predomínio da imagem como principal articulador deste

repensar a literatura e sua definição tradicional. Este predomínio diz respeito à

definição de imagem em si e como ela obriga a colocar a questão da

compreensão do mundo. 1.1 José Lezama Lima: uma breve biografia

José Lezama Lima escritor e crítico cubano nascido em Havana no

acampamento militar de Columbia em 19 de dezembro 1910. Ingressa aos

dezenove anos ao curso de direito da universidade da Havana e nesses anos

começa a publicar nas revistas de literatura locais mais importantes de sua

geração como Verbum, Espuela de plata e Nadie parecia. Depois virá a mais

importante delas, Orígenes idealizada e mantida de 1944 e 1954 por ele e

vários outros escritores.

Este foi o lugar no qual toda uma geração cubana de pintores e

escritores, como por exemplo, Cintio Vitier e Eliseo Diego, entre outros, tiveram

um espaço privilegiado de expressão. Lezama Lima quase não exerce o direito,

e em seu lugar é um boêmio de vida cultural ativíssima. O endereço de

Trocadero, 162 no bairro La Habana Vieja se torna mitológico para a nova

literatura cubana da época. (HUERTA, 1998, 12)

A história de Cuba está marcada pela instabilidade política. E no começo

do século a ditadura de Geraldo Machado seguida pela de Fugencio Batista

(1901-1973) e destituída pela revolução cubana trouxeram instabilidade ao

país. Derrotada a ditadura em 1959 o novo regime é a esperança de liberdade,

mas não deixa de causar divergências e sobressaltos.

A revolução foi um impulso para os artistas da época, pois permitiu uma

difusão e projeção da arte num grau que antes não acontecera. A

institucionalização da literatura teve participação de Lezama Lima, que

diferente de outros membros do grupo Orígenes, colaborou brevemente nas

novas publicações e assumiu cargos importantes no Conselho Nacional de

Cultura e na União de Escritores. Mas, sua participação no governo

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revolucionário não esteve livre de problemas. Por seu olhar crítico, seus textos

nem sempre foram bem vistos, e apesar de não haver existido um “caso

Lezama”, houve sim um “caso Padilha”, que sem dúvidas resultou no seu

ostracismo nos últimos cinco anos de existência do autor.

Especialmente seus textos críticos foram alvo de censura, sendo

publicados muitos deles somente no exterior. A relação da arte e as questões

sociais não está fora da sua poesia, ainda que para o autor exista entre as

instâncias da literatura e da sociedade o véu da imaginação simbólica. O fator

que guia sua análise sempre é colocado nos termos de um conhecimento

poético, capaz de reconhecer a presença da sociedade na literatura pelos três

tipos de prática imaginaria: evaporação ou imagem, saturação ou metamorfose,

e redução ou metáfora, como assinala Enrico Mario Santi no seu texto La

invensión de José Lezama Lima (1985, p. 47).

Para ele não há a possibilidade de qualquer relação mecânica entre

poesia e sociedade em troca de uma defesa da significação poética e

imaginária da revolução. Sua atuação política esteve fundada numa poética.

Por essa influência, Lezama Lima é um autor de grande importância nas letras

hispano-americanas Adoece no começo de agosto de 1976 e nesse mesmo

ano morre.

A obra de Lezama Lima é ampla e conformada por ensaios, poesia e

prosa alguns deles são: Muerte de Narciso (1937), Enemigo rumor (1941),

Aventuras sigilosas (1945), La fijeza (1949), Analecta del reloj (1953), La

expresión Americana (1957), Tratados de la Habana (1958), Dador (1960),

Paradiso (1996), La cantidad hechizada (1970), Oppiano Licario (1977),

póstumamente se publicou a Poesía completa em 1978.

Para Lezama Lima não há a possibilidade de qualquer relação

mecânica entre poesia e sociedade em troca de uma defesa da significação

poética e imaginária da revolução. Sua atuação política esteve fundada numa

poética. Por essa influência, Lezama Lima é um autor de grande importância

nas letras hispano-americanas Adoece no começo de agosto de 1976 e nesse

mesmo ano morre.

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2. A TRANSCULTURAÇÃO E UM BREVE PANORAMA DO DISCURSO AMERICANO

Pretendemos neste capítulo primeiro estabelecer nosso conceito teórico

de base: a Transculturação. Ele nos servirá de amarra entre a idéia de

Banquete e a expressão poética da cultura americana de Lezama Lima. Este

conceito resulta produtivo porque além de provir do lugar enunciativo que é

nosso recorte, nos mostra como se articulam as instâncias para a leitura

possível do poema. Depois pensaremos o discurso americano e alguns

direcionamentos que ele aponta, através de exemplos que nos permitirão situar

Lezama Lima nele.

2.1 A transculturação e o caso americano

O conceito da Transculturação, foi proposto pelo antropólogo cubano

Fernando Ortiz no livro Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar (...) (1940).

O conceito é considerado um divisor de águas dentro do que seriam os estudos

culturais e a antropologia do século XX, pois parte de uma nova perspectiva

que questiona conceitos unilaterais como “aculturação” e noções como

“etnicidade”. A dinâmica da formação social é pensada a partir do ponto de

vista cubano, e em analogia latino-americano, sua principal contribuição é a

construção dos conceitos que lançam nova luz à questão da cultura da ex-

colônia.

Ortiz propõe este termo pressupondo a estruturação de uma nova

consciência que se abre para considerar a cultura local como própria e original

e não mera cópia e apropriação de outras. Esta consciência se configura como

um segundo momento no século XX, posterior à experimentação das

vanguardas, descrito como a “tradição da ruptura” pelo poeta crítico Octavio

Paz (Los Hijos del Limo, 1990, pp 9-18).

A teoria crítica de Ortiz aparece num momento de busca do sentido e

transparência do que é cubano, focado nas “perdas” que a cultura sofreu no

processo de colonização. O autor une por meio disto a representação

integradora do passado com a intuição do nascimento de um sentido de futuro.

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Partindo do ideal de José Martí de integração americana2, Ortiz pretende um

entendimento da ciência antropológica positiva na assimilação das

mestiçagens culturais e a superação dos degraus étnicos. Transcendendo o

ideal “positivista” e “naturalista”, resgata a unidade antropológica e originária da

cultura, que vai além da linearidade, pois Ortiz consegue conexão, integridade

e novas dimensões de sentidos na construção poética dos fatos. Ao resgatar

as origens, também reflete em si mesma um olhar crítico, sendo capaz de

construir uma meta-história3.

Este resgate se faz por imagens que contextualizam espaço-

temporalmente os fenômenos culturais na busca do que é universal. Por isso,

se parte da aspiração de unidade original na mestiçagem, mas em um

entendimento da etnologia que não mais diz respeito à raça, mas à cultura.

Ortiz trabalha com o ideal do autoconhecimento, fundamento ético que em

todas as outras instâncias rechaça o positivismo que sustenta a essência

filosófica desta idéia, lembremos que esse era o principio de filósofos como

Emmanuel Kant e Friedich Hegel, os principais pensadores da Filosofia da

História do século XVIII.

Desta forma, a contextualização do caso cubano, estendido à América

Latina, implica em admitir que o que existe de comum com as outras culturas é

a importante parcela de contribuição da cultura européia e africana. A

transculturação de Ortiz pretende mais que nada uma compreensão da História

da Cultura como um trânsito das culturas.

Uma das contribuições mais importantes da teoria de Ortiz é que a

transculturação se constituiu como um veículo de renovação dos antigos

centros de cultura européia, já que as “perdas” sucessivas se transformam em

participantes dos processos de “neoculturação” interna, pela constituição de

novos centros múltiplos. O fator humano para Ortiz tem a potencialidade do

2 O libertador José Martí propõe em seu texto Nuestra América de 1889 e em todo seu trabalho intelectual um projeto para a integração da America Latina que partisse do principio de liberdade e autonomia política e cultural dos povos, sendo o primeiro passo para a realização deste projeta a independência política da metrópole espanhola e o imperialismo Norte-americano. 3 As ligações entre fatos do passado e o futuro se realizam no sentido inverso da tradição positivista, pois os fatos humanos constituem a substância antropológica da História, princípio pelo qual consegue sua consciência e possíveis significações que têm relevância espaço-temporais.

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que é ao mesmo tempo original e imprevisível em suas possibilidades de inter-

relações e modificações culturais.

O termo transculturação também é outro viés do anglo-americano

“aculturação” (acculturation). O primeiro é mais amplo e engloba o segundo,

não o rechaça, pois além de significar que a perda sofrida por uma cultura é

parcial e sempre vai unida a outro movimento anterior de assimilação de

elementos de outras culturas, que unidas de forma orgânica, ainda que não

necessariamente sem violência, constroem o que ele chama de

“neoculturação”.

Desta forma, a transculturação tem uma significação de fundação e de

resgate de origem, pois ela é capaz de, como sistema, gerar novas estruturas e

relações sociais. Seu conceito aborda todas as possíveis descrições empíricas,

porque mais que um sistema teórico, é um projeto, uma possibilidade de uma

nova configuração social. A imagem como signo deste movimento, e não só a

proposição de uma condução lógica e linear da História, e a possibilidade de

abstração ao inesperado:

Entendemos que el vocábulo transculturación expresa mejor

las diferentes fases del proceso transitivo de una cultura a otra porque éste no consiste solamente en adquirir una distinta cultura, que es lo que en rigor indica la voz angloamericana acculturation, sino que el proceso implica también la pérdida o desarraigo de una cultura precedente, lo que pudiera decirse una parcial desculturación y, además, significa la consiguiente creación de los nuevos fenómenos culturales que pudiera denominarse neoculturación. (…) en todo abrazo de culturas sucede lo que en la cópula genética de los individuos: la criatura siempre tiene algo de ambos progenitores, pero también siempre es distinta de cada uno de los dos. En conjunto, el proceso es una transculturación, y este vocábulo comprende todas las fases de su parábola. (ORTIZ, Fernando, 2002, p. 260)

É a síntese de conteúdos científicos, filosóficos e literários, que

demonstra que a cultura americana tende à universalidade, e se constitui como

esquema na forma de uma metáfora e uma imagem que se expressam em

etapas de modificações graduais dos fatores já existentes na cultura interna

que teriam como resultado um outro universo cultural. Assim, a transculturação

como confluência e participação de universos culturais diferentes, funda um

espaço-tempo americanos nos fatos culturais de origem pré-colombina ou que

possuam procedimentos similares ampliando a outras culturas que podem

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gerar conhecimentos diversos entre si em condições históricas diferentes

também da origem.

Há uma dimensão cronotópica4 e não linear da História que permite a

possibilidade de relatar histórias cruzadas, tendo a narração como a forma

literária na que se mostra a “verdade” por resgate de uma dimensão mitológica

que guarda a qualidade de captar intuitivamente a dimensão cronotópica da

história. As redes de estruturas e a imagem literária que são atemporais por

terem um lugar eleito no imaginário coletivo.

O conceito e o sistema proposto por Ortiz tiveram diversas reações pela

sua redação de tom literário e considerada pouco “acadêmica”. O conceito de

Trnasculturação foi aprofundado e focado aos estudos literários pelos críticos

Ángel Rama (Los procesos de transculturación en la narrativa latinoamericana

de 1971); pelo brasileiro Antonio Candido (Literatura e subdesenvolviemento de

1972); por Antonio Cornejo Polar (Mestizaje, transculturación, heterogeneidad

de 1994). Nesse processo os conceitos foram reelaborados e adaptados,

sendo importantes para a compreensão da sua abrangência. Dessa forma,

cabe a este estudo entender como se articula a transculturação e os outros

conceitos que giram em torno deste na proposta filosófica/poética de Lezama

Lima da Expressão Americana.

Como foi colocado acima, a recepção do conceito foi complicada: os

Estudos Culturais e a Teoria da Literatura foram as áreas nas quais ele teve

maior impacto. Na Antropologia e nas Ciências Sociais não teve muito eco, não

somente pelo estabelecido que estava o termo “aculturação”, mas também

pelas disputas teóricas entres as escolas britânicas e norte-americanas (Santí,

Mario Eurico. Fernando Ortiz: Contrapunteo y Transculturación, 2002, p 71).

A obra de Ángel Rama é uma das atualizações mais efetivas do

conceito. Ele o desdobra em etapas (Pacial desculturação, incorporações

procedentes da cultura externa e recomposição de elementos procedentes da

4 Bahktin diz a esse respeito: “En el cronotopo artístico tiene lugar la unión de los elementos espaciales y temporales en un todo inteligible y concreto. El tiempo se condensa aqui, se comprime, se convierte en visible desde el punto de vista artístico; y el espacio, a su vez, se intensifica, penetra en el movimiento del tiempo, del argumento, de la historia. Los elementos del tiempo se revelan en ele espacio, y el espacio es entendido y medido a través del tiempo. La intersección de las series y uniones de estos elementos constituye la característica del cronotopo artistico” (BAHKTIN, Mijail. Las formas de tiempo y del cronotopo en la novela, ensayos de poética histórica. p 2 In: Teoría y estética de la novela. Madrid: Taurus, 1989)

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cultura originária e dos externos), nessa reelaboração de Rama especialmente

do conceito de Transculturação5 o viés é mais ideológico que antropológico e é

posto em termos de Transculturação Narrativa. REIS (2005) aponta a

relevância do conceito nos anos 60 e 70 e localiza a contribuição de Rama da

seguinte maneira:

O conceito [Tranculturação], mesmo que sujeito a críticas quanto à sua natureza pouco precisa, foi rapidamente incorporado pelo discurso nacionalista/crioulista latino-americano e, muitas vezes, utilizado como sinônimo de mestiçagem cultural. No entanto, sua pertinência permanece, e o conceito de transculturação continua na base de inúmeras reflexões acerca da questão identitária, não apenas em Cuba, mas em toda a América Latina. (REIS, Lívia de Freitas. Transculturação e Transculturação Narrativa, 2005, p 469)

Dessa forma para FREITAS (2005, p 470) Rama utiliza o termo para

discutir e descrever o conflito entre as novas formas literárias do vanguardismo

na segunda metade dos anos 30 e o regionalismo, que segundo o autor, foi

anulado pelo primeiro. O impacto e a pressão da modernização de inspiração

estrangeira produziu uma resposta da literatura regionalista em níveis

diferentes: se aceitou absolutamente as novas formas estéticas ou se optou por

uma rigidez cultural que rejeita toda novidade estética.Assim a transculturação

é um conceito que está intrinsecamente ligado à questão da identidade

americana, pois a proposta de Ortiz é uma forma diferente de tratar a cultura.

2.2 Um recorte do discurso americano

O Discurso Americano nasceu com a América, mas se consolidou como

tal – como uma consciência – somente com o processo das independências

nacionais no século XIX. Esse era o momento de pensar América como um 5 Como nota Sartí (2002 p. 95) o conceito de “Contrapunteo” é esquecido por quase todos os estudiosos do assunto. O “Contrapunteo”, cubanismo para a voz espanhola “Contrapunto” que na musica implica em uma textura harmônica de duas ou mais vozes; e na tradição da musica cubana é uma “disputa” musica/verbal entre duas pessoas. Benitez Rojo (In: Contrapunteo cubano del tabaco y el azucar, 2002, p 96) coloca a questão nas seguintes palabras: “[…]Ortiz muestra asimismo que lo cubano o caribeño no es una esencia sino un dialogo o contrapunteo que rebasa la dialéctica hegeliana” o que para Benitez lembra exemplarmente a música Barroca, mais específicamente a Fuga, continua “[...]ese género musical barroco por exelencia[...]. Neste sentido, o “contrapunteo” ilustraria um procedimento pelo qual “[...] las voces no solo se enfrentan la uma a la otra, sino que también se superponen uan sobre la outra y a la vez se despliegan una tras la otra, paralelamente interactuando entre sí en una fuga perpetua.”.

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espaço de características, identidade e discurso próprios ao mesmo tempo em

que buscava sua liberdade política.

Ainda não é demais lembrar que os autores dos diferentes discursos

sobre a América partem da premissa que somos fruto da colonização ibérica. O

processo de formação da cultura e como ela se expressa, somente se deu no

momento em que os colonizadores se impuseram jurídica e economicamente e

dominaram os povos que a habitavam.

Porém, antes do século XIX ainda não existia uma consciência

sistemática estabelecida, existe somente tentativas dela que buscam o que

verdadeiramente éramos. Esta consolidação veio somente quando precisamos

formar nossas nações. Segundo ANDERSON (1991, p 23), a idéia de nação

vem da identificação de indivíduos num grupo que ocupa um espaço

geográfico. Esse processo se inicia na América somente no século XIX,

quando nos depararmos com a necessidade de encontrar uma guia para

configurar uma organização política, mas que culturalmente ainda não estava

bem resolvida enquanto definição de uma identidade.

Interessam-nos os desdobramentos deste processo no século XX e são

basicamente dois momentos os que nos preocupam: o período entre-guerras

com um grupo de pensadores que se depara com uma nova realidade global

do mundo, aguçada pelo avanço tecnológico e a interdependência entre os

países, que continua ou piora os rasgos do neo-colonialismo e o imperialismo

estadunidense, terminando por alterar de maneira drástica a vida cotidiana. O

segundo momento seria o cubano José Lezama Lima, objeto desta pesquisa e

do qual nos propomos a tarefa de entender sua posição filosófica e seu

tratamento com o objeto poético dentro deste discurso que fala sobre a

América.

Escolhemos a Afonso Reyes como exemplo entre muitos no seu

discurso do que é o americano do primeiro momento. Notas sobre la

inteligencia americana, 1936 é uma amostragem entre as diferentes correntes

de intelectuais latino-americanos que produziram discursos questionadores do

continente e sua história, e que buscam pelo viés da cultura uma possível

solução para os problemas sociais e econômicos que os inquietavam como

sujeitos atuantes e críticos da sociedade. Esse percurso pode encaminhar-nos

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ao momento de Lezama Lima e ajudar-nos a delinear o estatuto do seu

discurso sobre América.

2.2.1 O discurso americano no período entre guerras

A primeira Guerra Mundial foi o momento culminante da transformação

política e econômica que começou no último terço do novecentos. Ela obrigou

a outra posição do sujeito americano que estabeleceu uma situação dialógica

diferente com os centros imperiais, já que o “outro” não era mais o mesmo.

Começou a questionar-se as noções de positivistas da História e da ciência, ao

mesmo tempo que tentava lidar com uma modernidade tecnológica

desconcertante.

América Latina por seu lado, antes das Guerras Mundiais, além de sofrer

mais que nunca com as crises do império, passou pelas últimas guerras de

Independência (Cuba, República Dominicana e Nicarágua). Depois, suportou

os constantes ataques do imperialismo estadunidense; se viu diante quebra da

bolsa de Nova York de 1929; da Guerra do Chaco (1932-1935); e de uma

Reforma Universitária que começou um movimento continental nos anos 20,

para citar alguns fatos.

Segundo ACHUGAR (1994, p 639) isso proliferou os discursos sobre a

América pelo recebimento de diferentes doutrinas internacionais que tiveram

como resultado a fundação dos partidos socialistas e comunistas e o

aparecimento dos nacionalistas. A afirmação da situação neo-colonial implica

também numa tensão interna entre as camadas econômicas médias e as

oligarquias que ainda se aproveitavam dos velhos métodos6.

Situação é muito diferente da do século anterior, a participação na vida

política de novos setores e ampliação da democracia civil em conseqüência do

crescimento da indústria e o nascimento da classe proletária massiva. Isto teve

como resultado a modernização nas artes que ao mesmo tempo em que

recebiam de Europa tendências modernas, também se preocupavam com as

conseqüências sociais que esta teria. Diego Rivera, Nicolas Guillén, Heitor Villa

6 Em As Veias Abertas da America Latina (1976) Eduardo Galeano desenvolve a história sócio-econômica do continente descrevendo e sistematizando a atuação decisiva das classes oligárquicas na Política Econômica sempre à serviço do capitalismo.

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Lobos e Jorge Luis Borges são exemplos desta produção artística que

provocou uma onda anti-positivista começando a perceber que a relação do

que é regional e o que é universal, ainda que um não impeça o outro, é tensa.

América Latina dividiu-se em duas visões: uma olhando os povos como

num estado atrasado e outra os considerando superiores histórica e

utopicamente, donos de uma legitimidade agora reconhecida. No período de

1918 e 1940 a inserção do continente dentro de um mundo de novos impérios

rechaçando a homologação do(s) centro(s).

2.3 América de Afonso Reyes

(…) Hace tiempo entre nosotros y España existe un sentimiento de nivelación e igualdad. Y ahora yo digo ante el tribunal de pensadores internacionales que me escucha: reconocemos el derecho a la ciudadanía universal que ya hemos conquistado. Hemos alcanzado la mayoría de edad. Muy pronto os habituareis a contar con nosotros. (Alfonso Reyes, Notas sobre la inteligencia americana, 1936, p 123-124)

O pensamento de Alfonso Reyes se baseia numa necessidade surgida

no século XX de definição de identidade. Notas sobre la inteligencia Americana

(1936), texto breve, iniciador das discussões de identidade latino-americanas

do grupo mexicano Ateneo de la Juventud também composto por importantes

pensadores como Pedro Henriquez Ureña e Francisco Romero.

O grupo tem um fundo ideológico utópico num viés que coincide com a

florescente corrente do comunismo socialista e sua leitura e aplicação

americanas. Reyes pensa somente América Latina, descarta, curiosamente,

pensar a cultura norte-americana porque seria “pensar solamente en una rama

del árbol de Europa transplantada al suelo americano” (REYES, 2005, p. 111),

isto pode significar que na visão de Reyes América não o é.

A inteligência americana é uma visão de vida e ação intrínsecos que

podem revelar nuances importantes para sua identidade em relação à Europa e

mais especificamente à Espanha. Assim, conformada, primeiro, por um cenário

definido por um tempo e um ritmo próprios, sua intensa necessidade de

Page 19: a Expressão Americana no Poema

20

alcançar em passos agigantados o ritmo europeu no “banquete da civilização”,

e que através da improvisação tentará descobrir se é possível um ritmo seu.

Depois, por um coro que terá como seus componentes as etnias

conformadoras de mestiçagens e choques problemáticos e violentos,

conformando uma existência de um “espírito americano”. Populações

indígenas, conquistadores ibéricos, missionários, colonos e europeus em geral,

além do elemento africano ao qual, pela brevidade desse texto não aprofunda,

são os elementos que juntos formam um outro, o americano.

Por último, a personagem, o liame da manifestação dos dois anteriores,

a inteligência americana. Cinqüenta anos depois da conquista espanhola, já se

manifestando num novo ambiente e economia, o elemento indígena revelará,

no meio da opressão da colônia, uma sensibilidade que interveio no velho

mundo de forma leve, mas sólida. Já na independência americanos e

hispanistas se enfrentam no choque da eminência de uma nova realidade

republicana e uma antiga tradição monopólica. José Faustino Sarmiento (1811-

1888) e o venezuelano Andrés Bello (1781-1865), respectivamente, são, na

análise do autor, os expoentes de um choque de ideologias para a América,

que apesar de ser interna – os dois são americanos – não descartam e se

apóiam nas teorias políticas e filosóficas da Europa.

A influência de Europa e dos Estados Unidos sobre América, segundo

Reyes, se configura de um lado pelo federalismo norte-americano e por outro

pelas utopias constitucionais especialmente a filosofia política da França. A

inteligência americana na sua analise é menos especializada que a da Europa,

mais natural e mantém um contato mais estreito com a realidade social, pois os

pensadores e escritores não estão necessariamente à margem, e sim

integrados à sociedade. Destaca que a forma desta relação permite que os

latino-americanos conheçamos melhor a Europa do que eles nos conhecem.

Absorvemos de diferentes maneiras as teorias vindas de lá, o que configura a

tendência à universalidade do lado latino do continente.

Ainda, sofremos de um anacronismo que tenta ser humanos e

modernos. A relação especifica com a Espanha foi marcada no final do XIX por

um não-diálogo provocado em grande medida por um fechamento em si que

esse país viveu a partir do último decênio do novecentos. Para Reyes, existe

Page 20: a Expressão Americana no Poema

21

nesse momento uma nivelação, de igualdade entre a Espanha católica e a

América Latina rebelde, como exemplificamos na epigrafe inicial.

2.4 A consciência como maturidade estética

A consciência nacional ou continental vai aliada à consciência estética.

Desde o Romantismo e o Modernismo (hispano-americano e brasileiro) que

problematizaram a consciência e o lugar social do artista, assim como a

formação de repúblicas liberais, o capitalismo moderno, e a nova ordem que o

surgimento e fortalecimento da burguesia, segundo GIRARDOT (1997),

permitiram atingir uma maturidade na vontade de forma ou expressão.

O cosmopolitanismo como suscitações de outras literaturas assimiladas

criticamente e direcionadas às especificidades americanas pela permanente

regeneração criadora (GIRARDOT,1997, p.292), questionara a cultura e a

herança espanholas para adotar novos valores racionalistas de forma dialética.

Primeiro num processo de edificação moral e depois na formação da

intelectualidade americana que tem a racionalidade como tipo social.

A América proposta como identidade cultural, com desejo de integração

e com um destino próprio é o que ressalta ACHUGAR (1994, p 635) como

busca no nível simbólico do fator de identificação da “comunidade imaginária”

(ANDERSON, 1991, p 31) chamada América. Essa busca se dá pela

consideração dos antecedentes históricos-culturais, em finais do século XVII,

quando ainda éramos colônia, e políticos no inicio do XIX quando

começávamos a ser um continente livre.

O fator de identificação desses sujeitos nos níveis real e do imaginário

social é de cunho ideológico, mas se percebe na produção intelectual em que

todas as manifestações e formas de expressão passam por uma formulação

lingüística que diz respeito a um americanismo, ou seja, a um sentido preciso

da cultura (ACHUGAR, 1994, p 638). Esse americanismo é um processo social

que tem sua história e remete-se aos tempos coloniais porque o sujeito da

enunciação desse discurso americano o construirá a partir desse momento.

O sujeito colonial que tem em seu “outro” o sujeito central da metrópole

cultural européia e econômica norte-americana, realiza um movimento duplo de

Page 21: a Expressão Americana no Poema

22

diferenciação e identificação em relação a ele na busca por emancipação

política. A busca produz uma história dinâmica marcada pela ideologia na

construção de uma tradição capaz de afirmar sua voz. Quando o sujeito

colonial se transforma em pós-colonial, mantém seu estado de “subalterno”

diante das culturas dominadoras como Espanha, Inglaterra e Estados Unidos, e

tem sua voz anulada ou que existe na medida em que o “outro” a deixa ser.

Esse embate concebe o americanismo como arma emancipadora.

Os séculos XIX e XX parecem os momentos em que se estabiliza a

necessidade desse auto-conhecimento. Leopoldo Zea no texto Entorno a una

filosofía americana de 1942 chama a atenção para a necessidade de uma

filosofia americana, mas que implica para isto, encontrar sua problemática na

cultura própria. Isso o leva a questionar a possibilidade ou impossibilidade de

uma cultura que é filha e herdeira de outra: a Européia, e que está por isso

inegavelmente ligada a ela. Segundo o autor a resposta está em partir do fato

que somos americanos e devemos preocupar-nos com nossa realidade,

admitindo nossa origem mestiça e do fato de que somos diferentes da Europa.

Assim, ACHUGAR (1994, p 640) como TAMOYO VARGAS (1979, p

458) coincidem em considerar que há duas visões sobre o discurso americano:

um que pondera que a identidade continental, atemporal e a-histórica, ao

basear-se em uma quase metafísica do Espírito americano e que, portanto,

deve negar o passado europeu e encontrar um novo. A outra, leva em

consideração esse passado e encara a mestiçagem procurando, muitas vezes,

uma integração à cultura universal ou ocidental. Com esses conceitos ambos

embasam sua argumentação para chegar à conclusão que o caráter da

América tem sua consistência no contraste, no fato de não ser homogêneo

nem homológico em relação aos outros e a si.

Essa tensão de discursos tenta se resolver num diálogo orgânico de

duas culturas que tem a violência como signo e como ordenamento lógico. Ela

tem como conclusão a perseguição de um ente ausente: América, como uma

procura. Desde a conquista a imagem do continente foi tensa. As crônicas

dessa época já estão marcadas pela tentativa de deparar-se com uma

realidade desconhecida (TAMOYO VARGAS, 1979, p. 456) assim como o

Page 22: a Expressão Americana no Poema

23

choque de uma visão comunitária do mundo e outra individualista trazida pelos

europeus conquistadores.

Isto nos leva a outra questão levantada por TAMOYO e que terá

importância quando pensemos a forma de expressão poética e ensaística de

Lezama Lima: a linguagem. A violência de uma forma de expressão que

nasceu em tensão tem como resultado um Barroco, muitas vezes considerado

como um barroquismo, no qual as duas visões históricas – a forjada na

mestiçagem, na conquista e outra não formada, mas iminente, prevista e

extraída da negação – se sobrepõem na linguagem dos escritos.

Em cada um desses momentos há uma direção própria. Se Sarmiento

acredita que o inicio da nação em formação deve espelhar-se na Europa, já

que parece ser o único modelo para ser seguido, para José Martí esse modelo

não tem mais validade, como cita Rodríguez (2006, p 37) “Para problemas

próprios, soluções próprias” e busca na própria condição local as respostas

necessárias para os dilemas latino-americanos.

Page 23: a Expressão Americana no Poema

24

3. O SISTEMA FILOSÓFICO LEZAMIANO E A EXPRESSÃO AMERICANA

Segundo Irlemar Chiampi, tradutora do ensaio A Expressão Americana

de José Lezama Lima (Editora Brasiliense, 1988) e autora do texto introdutório,

o autor cubano tem como característica principal e guiadora do seu sistema

poético/filosófico a "vontade totalizadora" da América como um ente cultural,

incluindo-se nele, diferente da tradição do discurso americanista, a parte anglo-

americana do continente.

Isto difere em essência de um discurso sobre o quê é América e o

estatuto da Expressão Americana que se vinha fazendo nos séculos anteriores,

no qual ideologias, crises e uma visão linear da história marcaram leituras

sobre a identidade cultural da condição americana que assume a própria

heterogeneidade e universalidade da formação racial. Traduzindo-se na

compressão de uma diferença de complexidade de formação da América

Latina, da homogeneidade dos Estados Unidos e das particularidades da

Europa.

O conjunto de ensaios que formam A Expressão Americana ao

estabelecer esse diferencial, usa os mesmos elementos que o discurso

americanista tradicional: contém a "América mestiça" e a "universalidade",

resgata as idéias do fundador José Martí e parte de uma base filosófica única e

inovadora que lhe permite ter a Natureza7, anterior à história, como "unidade

espiritual" americana.

O sistema filosófico de Lezama Lima parte da apropriação e posterior

negação do sistema histórico hegeliano no sentido em que para o filósofo

alemão a História é o lugar no qual o Espírito alcança através do uso cada vez

mais aprimorado da Razão sua verdadeira expressão, que passa por uma

auto-compressão do Ser cada vez mais aprimorada8.

7 A Natureza para Lezama Lima é um conceito equivalente a “paisagem”, ou seja, a configuração inicial e fundadora da cultura. Para ele a Natureza está necessariamente ligada ao conceito filosofico de Espiritu ou, em outras palavras, a essência do sujeito metafórico que forma a cultura. 8 Para Hegel o Espírito é a natureza abstrata do homem que se caracteriza por ser não-racional. A História é o lugar onde o Espírito se concretiza, e por meio da Razão atua na busca do auto-conhecimento e ao mesmo tempo revela a liberdade intrínseca a ele. A auto-conciência em Hegel é a junção de duas instancias de conhecimento: o fato de saber e o fato de ter consciência disso. No poeta cubano o cerne da Historia é o conhecimento poético, logos poético, e é o que guiará o sistema filosófico do autor.

Page 24: a Expressão Americana no Poema

25

Partindo da afirmação para a qual Chiampi chama a atenção: "somente

o difícil é estimulante", Lezama Lima quer abordar a "dificuldade americana"

para descobrir as possibilidades do que se irá a tornar (seu devir), pela

observação de uma paisagem (Cultura ou Espírito revelador da Natureza)

chegando à compreensão do possível sentido pela "visão histórica" do sujeito,

reconstrutor de uma totalidade histórica que se configura como uma força

ordenadora.

Faz-se necessário abrir um parêntese e pensar em linhas gerais o

conceito de história hegeliano, pois é referência de contraponto que Lezama

Lima usa para delinear seu conceito de História e nos ajudará a compreender

as idéia de Historia do poeta. A dificuldade de conseguir uma "visão histórica"

dessa transformação permanente no complexo teórico lezamiano, passa

necessariamente pela tentativa de conseguir compreender a História de uma

cultura pela imagem que ela gera de si mesma, e ela está na literatura e na

arte.

O conceito de "visão histórica" originário de Hegel pressupõe uma

passagem pela causalidade do historicismo o que implica a visão de um

processo histórico lógico permitindo, ao conhecer sua origem, conhecer para

onde se dirige, a Lezama Lima a origem não interessa, mas sim a forma em

devir.

Hegel aproveita do pensamento kantiano o pensar a História de forma

universal e com uma finalidade, dotada de Telos, mas diferentemente do seu

antecessor, tem fim. Esse fim quer dizer que nada novo na História pode nos

surpreender. Ela é movimento e contradição, mas não tem nada de novo,

assim, olha para seu tempo como o acabamento de um longo período histórico

que começou com os gregos, diferente de Lezama Lima para quem a

capacidade criativa e dionisíaca do homem é o eixo central da atuação

histórica. A etapa Iluminista - a de Hegel – chegou para ele ao ápice de

desenvolvimento no livre uso da razão, pois ela dá as bases, dentro do sistema

hegeliano, ao alargamento futuro da liberdade e do espírito.

A História Universal tem várias etapas orgânicas: nasce, se desenvolve

e atinge a maturidade; e cada uma dessas etapas é a manifestação da

conquista do alargamento da liberdade do homem. O fim como acabamento,

Page 25: a Expressão Americana no Poema

26

como o cumprimento de uma finalidade, do máximo progresso de um povo pelo

uso pleno e consciente da razão. Dotada de um sentido, é pensada como

progressiva e um a linha contínua onde a finalidade não é mais uma conjectura

como em Kant, é algo passível de conhecimento.

A História da Filosofia é igual à Filosofia da História, pois para Hegel a

História é um campo lógico. Ao pensar que nos pré-socráticos se deu a

germinação da raça humana, nos gregos sua adolescência e na Europa sua

maturidade; Hegel liga essa continuidade da história e a filosofia em etapas

que sempre alargam a liberdade. Assim, os fatos da história não são um

conjunto de acontecimentos casuais, estão sujeitos à necessidade do

alargamento. Hegel avança o sentido kantiano da relação da filosofia e da

história, pois, para ele a história é o desenvolvimento necessário e racional,

dando assim um sentido próprio à dialética. Os avanços do pensamento se

manifestam na história como fatos, não abstrações, assim diz:

Esta questão dos meios pelos quais a liberdade se produz no mundo nos conduz à manifestação da própria história, se a liberdade como tal é, inicialmente, o conceito anterior, os meios são ao contrário, algo exterior, o fenômeno surge aos olhos, apresentando-se imediatamente na história. (HEGEL,1995, p 26)

O Espírito, como para Lezama Lima, é o macro-sujeito da história, ele

alinhava as ações humanas que são elas próprias confusas e contraditórias,

mas o que interessa é ver como as “paixões”, determinações particulares, se

mostram subordinadas às necessidades do Espírito. Ainda que atuem contra a

liberdade individualmente, o que move a História é a busca da ampliação da

liberdade.

A História Universal é um progressivo torna-se consciente de si, por isso

é preciso entender a razão dos acontecimentos históricos que interessam,

entender sua lógica. Só se compreende a razão nos acontecimentos. A idéia é

ela própria inerente à História é não somente uma especulação. Todos os

filósofos pós-século XIX foram anti-hegelianos como abdicação do acabamento

do discurso histórico que Hegel propôs em seu sistema filosófico.

Em Kant a história interroga o presente, vê a diferença com o passado e

projeta ao futuro. Para Hegel a História Universal é considerada como um todo,

por isso é imperativo olhar pra trás, ganhando um balizamento, sua moralidade

Page 26: a Expressão Americana no Poema

27

não é a do “dever ser” como em Kant, é a do “ser” refletida na história que é

manifestação autoconsciente da realidade. Para Kant já é natural ao homem

criticar (para fazê-lo de fato é necessário que se abra esse espaço na história),

pois é isso que o separa dos animais, aí sua principal divergência, pois não é

em Hegel uma questão pré-determinada. Criticar — ou usar a razão — e a

História são uma sucessão orgânica de fatos que chegou ao seu

desenvolvimento máximo no seu tempo (o iluminismo como o momento em que

se ousa saber), e que dá as bases para a construção do pensamento.

Saber-se livre é, se o Espírito é em princípio livre, estar consciente

disso, ainda não quer dizer que não possa abrir mão do saber-se livre. A

consciência dessa liberdade é determinante, por isso a história é um processo

lento do progresso da consciência. Na história estão as manifestações desse

processo que começa em Sócrates.

Para Hegel, há uma fusão do que querem os indivíduos (no querer e no

pensamento) com o que é o Estado (objetivo) e por isso existe a modernidade9.

Essa lógica fecha do pensamento hegeliano como um sistema: a Filosofia do

Direito é a tentativa de pensar a unidade desses conceitos que estiveram

separados. Para ele a razão rege o mundo, a liberdade não é considerada

como só mais um dado da natureza humana, há homens, porém que não se

sabem livres. A essência livre do homem precisa ser conquistada. Há uma

conciliação da liberdade e da necessidade, ao contrário de Kant. A liberdade só

faz sentido pela existência de instituições, não é abstrata e desenraizada da

história, a coação é necessária. Assim, o Estado moderno está fundado na

auto-determinação da liberdade: A liberdade apresenta dois aspectos: um diz respeito ao seu

conteúdo e propósito, a objetividade, a coisa em si; o outro é a forma

9 Para Hegel a Modernidade está diretamente atrelada à questão do Iluminismo e o uso da razão, e,

portanto, uma leitura historicista, contraria a de Lezama Lima. Assim, Octavio Paz mostra no capítulo introdutório do livro Los Hijos del Limo como o Moderno pode tomar diferentes configurações, mas conserva em si a qualidade de ser um impulso que acaba com o que está estabelecido e por isso rompe a noção de tempo. Quando a ruptura se transforma em tradição, ou seja, num valor do moderno, atualizar o presente pela heterogeneidade e a pluralidade. Uma vez que se estabelece esse impulso vanguardista, o novo se transforma em tradição e deve ser “superado”. O entendimento que essa necessidade de transformação é o que é efetivamente moderno, já que se constitui na relativização de valores. A constante repetição de imagens e a velocidade que é imposta esta repetição, ocasionada pelos avanços tecnológicos, pede una no va forma de tratamento: a horizontalização de valores estéticos, a “paixão crítica”, a contradiçaõ de imagens e como isso altera o tempo histórico, são os elementos apontados por Paz como índices dessa nova consciência Moderna.

Page 27: a Expressão Americana no Poema

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da liberdade, o sujeito saber-se atuante, pois a liberdade pressupõe que o sujeito se saiba dentro dela e que faça sua parte, porque é de seu interesse que ela se concretize. (HEGEL, 1999, p 366)

Desta forma, Lezama Lima compartilha com Hegel o conceito primário

de História como sendo a exposição do Espírito no processo do

autoconhecimento. Mas em vez de partir da razão e da essência que a priori a

natureza obriga a realização de um dever ser, parte do Logos poético captável

pelo contraponto de imagens e que no plano da realidade histórica se

configuram como um poder ser Imago10, reconhecendo a multiformidade do

real. A "visão histórica" da forma em devir como cultura surge, numa inversão

que vai em sentido contrário ao reducionismo hegeliano, quando o Espírito é

revelado pela Natureza.

O objetivo de Lezama Lima é construir uma visão histórica pelo filtro da

imagem, a compressão que essa Natureza se traduz num espaço americano

que permite uma cultura de novidade resultante de uma transculturação.

Contrário às idéias de progresso e evolução do historicismo hegeliano, parte do

idealismo de um sujeito metafórico que possua um conhecimento poético

(logos poético) que é absoluto e proporcionado pela natureza sendo este capaz

de produzir uma nova visão histórica pelo mecanismo da metamorfose ou

constante mudança.

Assim, o mundo material, dos fatos é uma condenação inanimada só

animável pelo conhecimento poético contraposto ao conhecimento racional

pelo qual o autor sente profunda desconfiança. Como Imagem e História são

conceitos que nesta lógica terminam sendo interdependentes, Lezama Lima

deve admitir a ficção do sujeito e a impossibilidade da exposição objetiva do

fato histórico, caráter talvez que nem seja procurado, pois inicia seu sistema

admitindo a subjetividade desse sujeito, que por ser metafórico é capaz de

produzir somente simulacros. Mas, a imagem é verídica, apesar de provir da

Logos poética, na medida em que se baseia na linguagem e em sua

incapacidade de reconstrução da verdade dos fatos.

10 Imago para Lezama Lima engloba a Imagem e a Imaginação. O que demonstra que para o autor a Historia é o mito do auto-conhecimento através da capacidade criadora do homem pelas Imagens subjetivas em um espaço de contraponto. Ao mesmo tempo o sujeito atua como o fator temporal de metamorfose que revelam a visão histórica da Cultura (Mito e Cansaço Clássico. In: A Expressão Americana. 1998, p 53.)

Page 28: a Expressão Americana no Poema

29

Partindo da linguagem, isenta de historicismo, se chega à liberdade de

leitura do sujeito metafórico para criar a "rede de imagens que forma a

Imagem" (LIMA, 1998, p. 25) produzindo analogias que pressupõe

atemporalidade e indefinição de espaço, capazes de revelar o devir. Assim,

Lezama pensa uma "Fábula Intertextual" que compara imagens metafóricas de

diferentes culturas compondo um todo desde fragmentos no qual uma "supra-

história" conhece o devir que está na mutação. Essa composição se faz através

de traços marginais nos textos em analogias poéticas originadas de

associações subjetivas desde a imaginação ou a memória11 desse sujeito.

Essas analogias não são funcionais nem pretendem ser evolutivas porque se

baseiam na novidade americana sem ser repetição de outras culturas. Essa

analogia parte da impossibilidade dos dois estilos comparados.

Dessa forma, a analogia poética acaba com a idéia de progresso e

identidade das formas porque esta transformação analisada numa "dialética"

que para Lezama "é o exercício do sujeito metafórico que mostra a vida das

formas acima e apesar do Espírito da história" (LIMA,1998, p. 27). Assim,

desenvolve o conceito de "Era Imaginária" que pode coincidir com uma cultura,

mas não o faz necessariamente, pois constitui um "campo intelegível". Detectar

os tipos de imaginação é identificar a potencialidade para criar imagens. A

história da poesia seria um campo que estuda a expressão das eras, que

implica o modo de vivência tendo relação direta com o tipo de imaginação.

Para o autor, no caso americano o estatuto imaginário se desprende de

outro maior, que é o ocidental. As Eras Imaginarias são então

"transgeográficas, tranculturais e transhistóricas" (LIMA, 1998, p 32) e não

desaparecem. Isso possibilita que a Era cultural americana seja a reinvenção e

a soma dos outros Imaginários anteriores, como em um sistema dialético de

sínteses.

11 Para o Jaques Le Goff (2004) a Memória é a capacidade primeiramente individual de conservar certas informações graças à qual o homem pode atualizar informações passadas ou que ele representa como passadas. A Memória coletiva o de uma cultura se baseia no jogo de poder de indivíduos sobre os outros como dominação de classes, essa memória social tem como fundo principal, no conceito de Le Goff, a questão da imagem que como valor da própria memória é “o elemento essencial do que se acostuma a chamar de identidade” p. 469, isso torna a História o eixo principal. A memória mítica do coletivo é marcada pela relação nunca acabada entre passado e presente, dessa forma a leitura histórica moderna se baseia na dependência da memória como fator construtor do passado pelo presente.

Page 29: a Expressão Americana no Poema

30

A fábula intertextual paradigmaticamente compara semelhanças e

diferenças na construção desse devir. Sintagmaticamente, é uma série de

contrapontos que dialogam entre si dentro da cultura e constituem o estético na

própria cultura. Assim, na cultura americana Lezama marca o inicio da era

imaginária no Barroco. Como o contraponto textual do novo mundo que se

projeta ao contemporâneo, é o momento de transculturação no qual a sínteses

do hispano-americano se acopla aos elementos indígenas e africanos. Com

isso, parte de um ponto diferenciado dos autores da tradição americanista, que

em sua maioria pensavam na independência como ponto de partida para a

construção da identidade americana.

Por isso, a história como ficção está direcionada por um conhecimento

poético, sendo assim um contraponto anti-historicista que considera a Era

Imaginária como vivência metafórica e a natureza como uma espaço gnóstico.

O autor é, sobretudo, anti-hegeliano, porque pensa a modernidade americana

como a possibilidade de uma modernidade pela composição de fragmentos de

uma determinada tradição da cultura européia, entre outras, que para ele não

há status diferenciados, elas se igualam na medida em que o conhecimento

poético as usa. Ao incluir os Estados Unidos na unidade americana, resgata

como núcleo a cultura greco-latina e pagã originária no sentido histórico e que

tem influência como Era Imaginária nesse conhecimento poético. Anglo-

americanos e Latino-americanos unidos por um passado europeu de um deus

infinito e diferente do dever ser hegeliano, contra a causalidade mecânica da

história que valoriza o ocidente primogênio e do barroco como o ponto de

partida da modernidade.

Dessa forma, poderíamos pensar o discurso da Expressão Americana

lezamiano como um preceito que substitui como sistema filosófico o discurso

do que é América, marcado por noções mais ideológicas como o de Nação e

Estado, e coloca na problemática teórica para a crítica literária o lugar do

discurso poético na questão da Identidade e da História.

3.1 O Banquete Neobarroco de América

De plata los delgados cuchillos, los finos tenedores; de plata los platos donde un árbol de plata labrada en la

Page 30: a Expressão Americana no Poema

31

concavidad de sus platas recogía el jugo de los asados; de plata los platos fruteros. Tres bandejas redondas, coronadas por una granada de plata; de plata los jarros de vino amartillados por los trabajadores de la plata; de plata los platos pescaderos con su pargo de plata hinchado sobre un entrelazamiento de algas; de plata los saleros, de plata los cascanueces, de plata los cubiletes, de plata las cucharillas con adornos iniciales…[…] CAPENTIER, Alejo. Concierto Barroco. México: Seix Barral, pp 9- 10 1998 (1974)

Assim dispõe a mesa do Banquete Americano o cubano Alejo Carpentier

em Concierto Barroco de 1974, um dos precursores do Neobarroco no

continente americano. No seu concerto os instrumentos eruditos da Europa, os

indígenas e os africanos entram em harmonia para criar uma forma única de

arte: a arte americana que coloca todos os elementos do cânone da cultura

ocidental na mesa, ao mesmo nível, e dele faz uma combinação à sua própria

maneira, relendo a tradição.

O século XX, cercado de incertezas e fragmentação, depois das duas

guerras mundiais perde seus ide ias positivos sobre o progresso e configura

outra modernidade, uma que diferente daquela nascida no século XVIII, não

positivista, fundada na ruptura e no foco no sujeito, cria a poesia, a crítica e a

arte moderna. As primeiras vanguardas do século XX se propunham a começar

tudo do zero. Muito longe já do Absolutismo dos românticos, transitou para uma

época marcada pela tecnologia e a dinâmica econômica da difusão global de

informação.

Era necessário repensar o cânone das artes e isto em América Latina

significa também um processo marcado pela questão de identidade: de onde

sai nossa arte e quando ela realmente é nossa, são as perguntas de fundo dos

intelectuais que desde a colônia, problematizando nossa herança e nossa

identidade.

Partindo da retomada alegórica do texto clássico da filosofia grega O

Banquete de Platão, em que todos os convidados se sentam e, como iguais,

discorrem sobre o amor, iniciamos o estudo do conceito do Banquete

Americano de José Lezama Lima e seu entendimento filosófico e, sobretudo

poético da “expressão americana“.

Page 31: a Expressão Americana no Poema

32

Usando o banquete como alegoria, ou em outras palavras como “o

método privilegiado de exercício de imaginação”, sugerido por Maria Zenilda

Grawunder12, um exercício de abstração onde os convivas colocam à mesa

suas percepções e elaborações para que na sua combinação dialética se

tornem um conjunto único. José Lezama Lima faz dessa alegoria ocidental o

cimento para a explicação do processo da expressão da cultura americana.

Nele estão colocados todos os subsídios para a construção de um sistema

filosófico que produzirá uma poesia moderna e de procedimento Neobarroco.

No capítulo Nascimento da expressão crioula (1998, pp 135-159),

Lezama Lima elabora a seguinte metáfora: No banquete literário, o americano vem cumprir a função daquele que realiza a prova maior. Depois das bandejas que trazem assados, as frutas sorridentes e o costelame auroral do crustáceo, vem a perinha postreira, como podia ter sido o confeito ou o creme para repassar com o azeite ou o bolinho, que serve de intermediário entre o fogo e o estufado. O ocidental, treinado na gota de alambique, acrescenta a moagem do café, trazido pela magia das culturas orientais, que oferece o deleite de algumas overturas à turca realizadas por Mozart, ou ‘a referência que já fizemos a algumas cantatas alegres em que se entretinha o majestoso divertimento bachiano. Essa era a essência, uma espécie de ponto a mais na doçura do creme, um luxo ocidental que ampliava com essa gota oriental as variantes metafísicas do gosto. Ma a essa perfeição do banquete que leva a assimilação à cultura, corresponderia ao americano o primor inapelável, o rotundo ponto final da folha de tabaco. O americano trazia a esse refinamento do banquete ocidental o outro refinamento da natureza. Um terminar com um sabor de natureza, que recordava a primeira etapa anterior às transmutações do fogo. Com a natureza, que brinda um fumo, que traz o louvor e a oferenda essencial da evaporação13. (LIMA, 1998, p 139)

O fogo é o renascer, a reelaborarão e a adesão do elemento diferencial

ao Banquete ocidental. Se a palavra cumpre em O Banquete de Platão a

função fundamental da expressão de verdade e da sabedoria, em O Banquete

Americano de Lezama Lima que se desenha como um processo de edificação

da forma de expressão de um cenário definido – o continente americano e não

interessa o resultado imediato, mas sim o processo e seu possível futuro. Lauro

Belchior Mendes estabelece essa nuance afirmando que o banquete

lezamieano não possui uma finalidade em que possamos nos afirmar “é

12 A palavra Mascarada (1996, p 40) 13 Lembremos que no sistema filosófico de Lezama Lima a evaporação corresponde a Imagem, como foi colocado na introdução (p.6)

Page 32: a Expressão Americana no Poema

33

inquietante a interpretação do curso da história da humanidade pela imagem do

trem sem condutor” (1996, p 12).

E assim é esse processo para Lezama Lima. Uma história sem o “fio

condutor” que propõe Hegel, sem uma lógica racional, anti-historicista, mas

direcionado pelas características que fazem do povo americano único e que

permitem que os elementos retirados dialeticamente do banquete ocidental

para servir o americano sejam uma afirmação de um autoconhecimento e um

auto-entendimento e ele o desenvolve.

Essa ação está marcada pelo signo da violência. A colonização européia

não só interveio de forma brutal na configuração que antes existia, também

trouxe a forma da primeira expressão dos dominados: o Barroco. A conquista e

o estabelecimento da colônia significou um choque entre duas concepções de

mundo que produziu uma outra – uma transculturação, nas palavras de Ortiz –

com uma prática diferenciada de interpretação e representação cultural

elaborada através da subjetividade coletiva que vai se definindo.

A conquista do Novo Mundo se apóia na colonização ideológica e

imposição cultural produzindo na imaginação e especificidades americanas um

outro lugar para um saber independente. Está no entre-lugar conceituado por

Silviano Santiago (1978)14, a cultura originária da América transculturada que

tem como primeiro resultado o Barroco colonial, é muito mais que um modelo

que se reproduz além-mar, em versões subalternas, ou o princípio de ordem e

os mecanismos de hegemonia do poder imperial.

Mabel Moraña propõe em seu ensaio Viaje al silencio: exploraciones del

discurso barroco de 1998, que o Barroco das colônias deve ser visto como um

paradigma dinâmico, permeando não só influxos da materialidade americana,

senão também vulnerável às praticas de apropriação e produção cultural dos

“criollos” (os nascidos em América) redefinindo o alcance e a funcionalidade

14 A proposta de SANTIAGO do “entre-lugar” do discurso americano se elabora no sentido de compreender a contradição e o paradoxo desse discurso cultural. Não coloca a questão como sendo uma problemática binária, mas coloca a idéia de “personagem dobradiça” que corresponde a uma máscara na qual se apóia o discurso americano e que propõe o reconhecimento da própria alteridade. SOUZA (1993, p 13) que essa alteridade é necessária para o discurso da identidade especialmente no que diz relação às relações razão-instinto; nação - individuo; universal-particular. Como foi colocado por NAVAJAS (op. Cit. p 8) a não-hierarquização dos discursos produz que não exista um sentido pleno nem totalidade. As brechas ou fendas do discurso colocam o Sujeito como possuidor do poder de sentido (e não uma leitura hermenêutica que coloque o sentido nos objetos) permitindo que ele se manifeste como diferença numa linguagem de múltipla significação e se manifeste na diferença.

Page 33: a Expressão Americana no Poema

34

dos modelos recebidos segundo suas próprias urgências e conflitos (MORAÑA,

1998, p. 3).

A união de culturas que tem como resultado a cultura americana é um

postulado da mestiçagem que desemboca numa história política, econômica e

cultural marcada pela desordem e a impossibilidade de reproduzir cabalmente

os moldes europeus. Ainda isto tem como resultado a formação de uma

consciência nacional ambígua, por vezes muito valorizada e por outras,

desprezada pelo excesso (BONIFAZ NUNES, 1990, p 29).

A identidade se descobre pela alteridade, num jogo ideológico sempre

problemático de celebrações e rechaços com o que se inaugura o Banquete

Americano. A retomada no século XX do Barroco e a procura nele de índices

de modernidade na forma do Neobarroco, se configura como uma questão de

alteridade, que segundo Eneida Maria de Souza (1993, p 13), significa o exame

do problema da identidade em concordância com as transformações sócio-

políticas e as manifestações artísticas entendidas como parte integrante de um

acontecimento (SOUZA, 1993, p 14), que sempre se apresentam em posição

crítica.

Assim, o historiador Mariano PICÓN SALAS no seu estudo De la

conquista a la independência (1944), desenvolve a idéia de um “Barroco de

Índias”, já utilizando a conceito de transculturação de Fernando Ortiz, índice de

como se começa a pensar desde a perspectiva americana a questão da

identidade. O historiador desenha um quadro de tensão social nas cidades

coloniais que se coloca culturalmente como a tentativa dos “criollos” de imitar e

transplantar a alta cultura européia, mas que é problemática, pois destoa da

realidade local. O Barroco espanhol corresponde ao período mais intenso,

chamado também “Século de Ouro” no que se retomam formas clássicas

greco-latinas e na que se vislumbra a forte consciência cristã do mundo.

Segundo HATZFELD (1998, p. 114) o Barroco literário, que nasce na

Itália e se desenvolve na Espanha, tem como principal característica ser guiado

por um humanismo cristão que com a Contra-reforma pretende achar a

unidade em deus. A atitude estóica que se lhe soma à ética jesuíta e ao

Concílio de Trento, contrapõe a paixão e a razão em uma articulação interna

dramática, colocando a certeza do presente em dúvida e na que não há tensão

Page 34: a Expressão Americana no Poema

35

dos contrastes, mas somente os contrastes em si. Um exemplo clássico é o

poeta do século de Ouro Espanhol Francisco de Quevedo, diz:

Esta vida! Oh! Ninguém a mim responde? Aqui os montes de anos já vividos! Pela Fortuna o tempo meu mordido; minha loucura, às Horas, as esconde. Que, sem poder saber como e aonde, saúde e idade haviam já fugido! Falta-me a vida, assiste ao já vivido, E desgraça não há que não me ronde. Ontem fio-se. O amanhã, não anunciado; Hoje sem demorar se vai no berço, Sou um Foi, e um Será e um É cansado. Ao ontem, ao amanhã, ao hoje acresço as fraldas e mortalha. Atualizado suceder de defuntos permaneço. (SCLIAR-CABRAL, 1998, p 59)

Além dos lugares-comuns de escola com os que se caracteriza o

Barroco, este poema nos mostra como Quevedo, o pai do culteranismo, coloca

questões existencialistas do seu humano de forma da linguagem com

consciência de ser suporte, e a palavra cuidadosamente organizada e

elaborada dentro do contorno especifico do soneto.

Pensado como uma forma evoluída do Renascimento, o Barroco

europeu e especialmente na península ibérica (HATZFELD, 1998, p.50) é uma

ética e uma forma de olhar que no momento do descobrimento coloca nas

novas terras a ilusão utópica. O individualismo, que vemos no poema de

Quevedo está envolto numa complexidade hermética mais profunda que as

simples definições tradicionais do que é Barroco. Para sua compreensão

HATZELD como MORAÑA concordam que é necessário pensá-lo como um

estilo muito ligado ao Renascimento, e que em suas diferentes etapas

(Maneirismo, Barroco Clássico, Barroquismo e Rococó, HATZELD, 1998, pp

55-59) exagerará as linhas da renascença e em cada lugar terá uma forma de

expressão própria.

O Barroco lúdico e sensual de Nápoles é muito diferente ao da Europa

central muito mais nobre e cortesão. Assim na Espanha a influência da Igreja

contra-reformista e por conseqüência anti-renascentista na sua forma italiana e

Page 35: a Expressão Americana no Poema

36

anti-Européia na medida em que Espanha nega ou coloca de outra maneira os

valores da consciência moderna.

Na América Latina o Barroco encontra uma nova conjuntura: o do

choque de culturas e a ação violenta do transplante, tem as cidades os índices

desta tensão. A cidade barroca dos séculos XVI e XVII é colocada por Angel

Rama (1984, p 25) como o momento crucial da cultura americana em que as

palavras se separam das coisas, retomando Foulcalt, o signo deixa de ser uma

figura do mundo e começa a dirigir-se a um ideário do Novo Mundo que

encontra seu significado no interior do conhecimento. Perceber o objeto como

signo e não apostar na perenidade separada dos signos e das coisas, nos diz

Rama: [...] em vez de representar a coisa já existente mediante signos, estes se encarregam de representar o sonho da coisa, tão ardentemente desejada nessa época de utopias, abrindo o caminho a essa futuridade que governaria os tempos modernos e alcançaria uma apoteose quase delirante nos tempos contemporâneos. (RAMA, 1984, pp 31-32)

Pensar para logo existir e concretizar, essa é a chance que Rama

vislumbra na edificação das cidades americanas. Mote que oferece a

possibilidade de rearticular uma nova ordem, não sem tensão, pois no projeto

da conquista era necessário manter a hegemonia do Império, importante para o

desenvolvimento de Europa. Encontrou na novidade da América o campo no

qual desenvolver a primeira aplicação sistemática do Barroco impondo seus

princípios racionais no segmento do continente que somente no século XIX

será chamado de Latino. (RAMA, 1984, p.34)

Assim, a idéia de transculturação de Fernando Ortiz não tenta amenizar

ou radicalizar o olhar do imperialista que configurará no século XX como

estudos culturais pós-colonialistas e terá como conceito operatório o da

aculturação. A transculturação expressa as diferentes fases do percurso de

uma cultura a outra. Não se trata simplesmente de adquirir uma cultura, que é

o que a rigor indica o vocábulo “aculturation”, mas implica também a necessária

perda o desligamento de uma cultura precedente, como também implica na

criação de novos fenômenos culturais.

Segundo Rama no texto Os processos de transculturação na narrativa

latino-americana (2001), este é o segundo momento, no qual se analisa o que

Page 36: a Expressão Americana no Poema

37

na primeira metade do século XX se transpôs como experimentação

estética.Este processo resulta da união entre os elementos de identidade e

diferença somados que implicam em destruições, reafirmações e absorções e

uma alta capacidade seletiva. Lingüisticamente isto acarreta a ampliação

significativa do campo semântico e a da ordem sintática. Línguas indígenas e

dialetos e uma linguagem estritamente literária que sincronicamente permite à

cultura transculturada possuir um conjunto de valores idiossincráticos visíveis

em sua História. A capacidade de transformação dos elementos internos

confrontados aos elementos externos com tensão no processo.

A libertação da imagem americana no espaço gnóstico mostra desde os

cronistas uma imagem nutrida de analogias que entra em choque com um

espaço em princípio desconhecido produzindo a criação de novos espaços de

discurso, novos mitos e fábulas e a busca do originário ou novo centro pela

linguagem.

O olhar ao início barroco da cultura americana nos ajuda a pensar como

é formalizada a expressão americana no século XX, pois não é sem propósito

que a retomada moderna do Barroco se configura como uma tendência

explícita nos anos 60, mas que já se entrevê na poesia e na prosa dos autores

latino-americanos desde os anos 40.

A linguagem em uma forma potencializada de artificialização e

virtuosismo caracterizam as obras do denominado Neobarroco. O trabalho na

linguagem se dá pelo método do contraponto, isento de historicismo e que

permite a liberdade de leitura. A expressão americana então será a leitura que

os sujeitos produtores e receptores do discurso façam dos elementos da

tradição, mas como esse processo acontece e qual é sua forma de operação é

nosso escopo.

3.2 O sistema filosófico/poético lezamiano

Ainda que pareça abstrato, o núcleo conceitual da Expressão Americana

permitirá que Lezama Lima explique e constitua um sistema filosófico e poético

únicos para a expressão do continente americano. Sua visão é, sobretudo, não

historicista, a causalidade do sentido se constrói na própria história, e não ao

Page 37: a Expressão Americana no Poema

38

contrário já que se fundamenta uma dialética na forma de “contraponto de

imagens”. Segundo nota da tradutora do texto, Irlemar Chiampi (1998, p. 50.), o

contraponto é uma técnica musical eclesiástica do renascimento “no qual várias

vozes de uma composição pré-existente são criativamente reelaboradas para

formar a chamada ‘missa paródia’”.

O contraponto seria então como as culturas colocam a imagem, e ao

entender essa forma, estabelecendo relações entre entidades naturais do

mundo e sua passagem para entidades culturais imaginárias por um sujeito

metafórico que modifica as influências para achar uma nova visão, uma visão

própria.

A cultura americana é segundo Lezama Lima uma cultura de

contraponto que se articula duplamente: por fatos homólogos (equivalências de

morfologia cultural) e fatos análogos ou equivalências funcionais. O sujeito

numa cultura de contraponto é capaz de usar as equivalências funcionais para

modificar os fatos homólogos através da imagem.

A expressão do sujeito é eficaz quando tem importância no “espaço

animado pelo trânsito de diversas entidades” ou, se assim quisermos, na

cultura universal. O meio pelo qual o sujeito expressa as imagens é a

linguagem, paradoxalmente carregada historicamente, exatamente por isso que

pede a substituição da própria História pela técnica da ficção.

As eras imaginárias estão constituídas por uma essência ficcional e

mítica e em seu conjunto formam a imagem característica da civilização que

não é necessariamente factual: Carlo Magno, Ulisses, Os Lusíadas, O Cid e D.

Sebastião são exemplos da potencialidade das civilizações de criar imagens

que de forma sincrônica podem fazer perdurar no tempo, através de

associações criativas, a memória dessa civilização.

Ainda que a impossibilidade de estilos e conceitos semelhantes ou a não

identidade de duas formas aparentemente concludentes existam, ela permite

criar uma nova visão do histórico que se dirige ao contemporâneo e que resulta

pessimista quando fragmentado, mas que para Lezama é unificador.

Em relação a essa questão podemos ainda retomar Jorge Luís Borges

no texto Kafka y sus precursores de 1952:

Page 38: a Expressão Americana no Poema

39

[...] Si no equivoco, las heterogéneas piezas que he enumerado se parecen a Kafka; si no me equivoco, no todas se parecen entre sí. Este último hecho es el más significativo. En cada uno de esos textos está la idiosincrasia de Kafka, en grado mayor o menos, pero si Kafka no hubiera escrito, no la perceberíamos ; vale decir no existiría (…) el hecho es que cada escritor crea a sus precursores. Su labor modifica nuestra concepción del pasado, como ha de modificar el futuro. (BORGES, Obras completas, pp. 711-712)

Esse último ponto de Borges é essencial para ajudar a compreender a

dinâmica da expressão que Lezama traça: ao recriar ou reler o passado

necessariamente se dá uma forma inesperadamente nova ao futuro. No

prólogo à primeira edição de Historia Universal de la infamia (1935) diz:

Yo diría que el barroco es aquel estilo que deliberadamente agota (o quiere agotar) sus posibilidades y que lida con su propia caricatura (…) Barroco (Baroco) es el nombre de uno de los modos del silogismo: si el siglo XVIII lo aplicó a determinados abusos (…) yo diría que es barroca la etapa final de todo arte, cuando éste exhibe y dilapida sus medios. (BORGES, idem, p. 293)

O Barroco e sua retomada no século XX faz parte do processo de

vencer o que Lezama chama de “complexo americano”: uma expressão que

não se acredita como uma forma alcançada, mas como coisa a resolver (1988,

p.62). Se para Lezama o Barroco europeu usa da acumulação sem tensão e

uma assimetria que não reconstrói, pois não esquece o gótico; no ensaio A

curiosidade Barroca (1998) deixa claro que, pelo contrário, no Barroco

Americano há tensão, plutonismo (fogo originário que rompe fragmentos e os

unifica) e é plenário, pois usa uma linguagem que é incorporada e não artificial.

A organicidade da tensão, que usa múltiplos artifícios de linguagem é

facilmente notada no seguinte fragmento poema Pensamientos en La Habana.

A falta de referencialização direta, que causa a dificuldade da não denotação

dos signos, é uma tendência na poesia do autor. A simplicidade dos dois

primeiros versos da estrofe se desenvolve como artificialização da linguagem,

mas não causa a perda ou esvaziamento do discurso do eu lírico:

El caballo no relincha de noche; los cristales que exhala por su nariz, una escarcha tibia, de papel; la digestión de las espuelas

Page 39: a Expressão Americana no Poema

40

después de recorrer sus músculos encristalizados por un sudor de sartén.

O Barroco americano principalmente é a arte da contra-conquista,

enquanto na Espanha é a arte da Contra-reforma (LIMA, 1998, p.80). Essa

caracterização do barroco na America é muito mais que uma questão de

estética, ela inclui o ético, o religioso o sociológico e a política. Para Lezama

Lima nosso barroco está caracterizado na figura do “senhor barroco”, um

intelectual que começa a tecer sua entonação, sua gravidade e seu destino (p

80)e que no seu afã por conhecimento está muito próximo ao Iluminismo. Os

ecos desse barroco serão sentidos especialmente na questão da linguagem

séculos depois, até a independência no século XIX.

Lezama Lima reinventa a questão americana, encontra no processo de

criação latino-americana um constante procedimento dialético de

autoconhecimento e identificação imaginária. No matiz criativo do americano de

releitura e reconstrução do passado a ficção da história é o guia que iguala a

palavra histórica e a palavra imaginária. A expressão americana se configura

como uma metodologia que transforma a história em alegoria do destino

americano que se funda na dialética, não na causalidade do historicismo.

No discurso americano de Lezama Lima guarda o índice de

modernidade descrito por Perone-Moisés em Altas Literaturas (1998) no seu

conceito de poeta-crítico num percurso que reclamou para América-Latina

através da autonomia romântica, o positivismo, comparação com Europa e

Norte-america, reivindicando sua latinidade e autonomia indígena. Quando nos

anos 40 Fernando Ortiz propõe o conceito de transculturação, encontra o

sistema teórico de Lezama Lima e permite definir nossa América como um fato

cultural.

Em A Expressão americana não quer estabelecer uma possibilidade

ontológica que se fundamenta numa “essência” nacional ou continental, mas

sim a uma tentativa de estabelecer uma “imaginação americana” e sua forma

de expressão que não quer achar uma fórmula de identidade, mas desenhar

uma trajetória da sua morfologia cultural.

A dificuldade americana que lembrávamos no começo não está em

estabelecer o “ser” no sentido metafísico, ou estabelecer sua origem, mas

Page 40: a Expressão Americana no Poema

41

traçar o processo do seu imaginário. A visão histórica como a reconstrução do

sentido da tradição tenta reconstruir a tradição pela imagem e ser um ponto de

referência para a identidade coletiva, não estabelecê-la.

Haroldo de Campos em O seqüestro do Barroco na formação da cultura

brasileira (1989) defende o barroco americano desde uma perspectiva de “uma

historiografia não-linear, não-conclusa, relevante para o presente da criação,

que tenha em conta os “câmbios de horizonte”, de recepção e a maquinação

“plagiotrópica” dos percursos oblíquos e das derivações descontínuas” (1989,

pp. 65-66), Devemos agregar a isto pensar o resgate moderno do Barroco

como uma busca da origem da questão do americano.

Na verdade, quando Campos não atrela a história fática à historia

literária e propõe que a existência do poeta Gregório de Mattos como mito,

quebra o historicismo e cria um novo cânone e um “paradigma aberto” (1989, p

72) para responder à pergunta da origem. Essa operação é análoga a Oswald

de Andrade no conceito de “Antropofagia”, à biografia intelectual de Sor Juana

Inês de La Cruz de Octavio Paz e a proposta do Barroco de fundação que

Lezama Lima desenvolve em A Expressão Americana.

Todos esses autores vão muito além da questão nacional como conceito

de identidade. Se para Lezama Lima não é mais necessário achar uma data

para a fundação do americano, é sim necessário pensar o momento em que a

expressão própria do que é América Latina começou a engendrar-se como

uma forma de procedimento. E tanto ele como Campos coincidem em ser o

Barroco colonial o momento em que isto começa a ser um índice. Não mais a

nação equivalente a idéia de país e necessariamente conectada à

independência cultural, mas sim partindo da consideração da idéia de um

espaço americano no qual se desenvolve a cultura.

Quando Severo Sarduy (1979) analisa os procedimentos do Neobarroco

americano em contraponto com o Barroco europeu reconhecendo a conexão

com o Concílio de Trento opondo-se aos argumentos reformistas dos jesuítas

que esteticamente trabalham com uma iconografia pedagógica direta (p. 161-

162), desenvolve dois modos de elaboração barrocos: o Artifício e a Paródia.

Dessa forma o erotismo como perda parcial do objeto pela abundância,

o desajuste da realidade e o suplemento de um objeto não representável que

Page 41: a Expressão Americana no Poema

42

sempre está fadada ao fracasso faz necessária a repetição múltipla, na qual o

erotismo é uma atividade lúdica sem objetivo. O espelho de uma estrutura que

se repete e só representa a si mesma se realiza no Neobrarroco como uma

desarmonia sem fundo que busca um fim inalcançável.

Como índice de modernidade do Barroco, sua leitura no século XX

permite a perda da concordância, falsas citações, recusa a toda instauração

que metaforiza a ordem discursiva, Ao se pensar na condição americana e na

questão da identidade cultural, ou seja, o que é América, qual é sua história e

qual é seu destino, os pensadores do século XX, a parte de Fernando Ortiz,

assumem a heterogeneidade da transformação cultural e somam

explicitamente o universalismo da cultura. Esse movimento supõe uma

diferença da complexidade de formação com a homogeneidade atribuída aos

Estados Unidos e às particularidades de Europa.

Page 42: a Expressão Americana no Poema

43

4. PENSAMIENTOS EN LA HABANA.

A análise não pretende ser exaustiva em todos os detalhes que o poema

oferece, mas pretende ressaltar os traços gerais que permitam uma leitura

desde o sistema filosófico lezamiano, conformando a forma de articulação do

Banquete Americano. O poema está composto por 219 versos livres com rimas

internas, que colocam ênfase nas rimas e assonâncias vocálica. Os versos são

de dicção prosaica, com um tom retórico que marca do desenvolvimento

temático.

Nosso apoio para a análise deste poema, além de sistema filosófico e

poético de José Lezama Lima é o texto O Barroco e o Neobarroco de Severo

Sarduy (1979). Para ele a ambigüidade e a difusão semântica são as duas

características principais que fazem do diálogo do Barroco e o Neobarroco uma

expressão moderna. O objeto como perda ou desajuste entre a realidade e sua

imagem, que poderíamos chamar de saturada, preside o espaço barroco: O espaço barroco é a superabundância e o desperdício. Ao contrário da linguagem comunicativa, econômica, austera, reduzida à sua funcionalidade – servir de veículo a uma informação –, a linguagem barroca compraz-se no suplemento, na demasia e na perda parcial do seu objeto. Ou melhor: Na busca por definição frustrada do objeto parcial. (SARDUY, 1979, p 176)

Este poema é proposto como uma reflexão do choque da cultura

americana com a cultura do centro seja ela norte-americana, ou européia, mas

não é simplesmente isso. Trata da relação cheia de tensões que o universo

latino-americano mantém com sua herança cultural. Que não poderia ser vista

de outra forma que de uma maneira crítica. O titulo já coloca a questão da

reflexão, se delimita um espaço e um tempo.

Os primeiros versos colocam um eu lírico consciente do seu estar-no-

mundo: Porque habito un susurro como un velamen,/ una tierra donde el hielo

es una reminiscencia,(...) A idéia de vaguedade, de um entre-lugar (Silviano

Santiago, 1978), é o que dá a tônica do poema, que circula nestes versos e se

desenvolve na primeira estrofe. O susurro que é o que impulsa (velamen é

uma conjunto de velas de um barco) ainda é algo quase não se sente,

continua: 3. el fuego no puede izar un pájaro

Page 43: a Expressão Americana no Poema

44

4. y quemarlo en una conversación de estilo calmo. 5. Aunque ese estilo no me dicte un sollozo 6. y un brinco tenue me deje vivir malhumorado, 7. no he de reconocer la inútil marcha 8. de una máscara flotando donde yo no pueda, 9. donde yo no pueda transportar el picapedrero o el picaporte

10. a los museos donde se empapelan los asesinatos 11. mientras los visitadores señalan la ardilla

12. que con el rabo se ajusta las medias. 13. Si un estilo anterior sacude el árbol, 14. Decide el sollozo de dos caballos y exclama: 15. my soul is not an ashtray

O “fogo plutônico” original da cultura americana configura como a

renovação e ao mesmo tempo como uma impossibilidade frente ao estilo, ou

forma, da cultura estrangeira. A problematização do estético como maneira de

expressão que não pode ser reconhecida ou aceita facilmente. O último verso é

a voz do “outro” colocada em original e que marca sua presença discursiva.

No segmento donde yo no pueda transportar el picapedrero o el

picaporte no verso 9, podemos observar o cromatismo lingüístico e um

pequeno exemplo de uma aliteração que “ostenta os traços de um trabalho

fonético, mas cujo resultado não é mais do que mostrar o próprio trabalho”

segundo comenta Sauduy (1979, p 173).

Sarduy observa a distância entre os termos do signo lingüístico e que

compõe tanto no Barroco como no Neobarroco, não só a oposição à arte

clássica, como também a potencialização da metáfora, uma dos elementos do

Banquete Americano:

16. Cualquier recuerdo que sea transportado, 17. recibido como una galantina de los obesos embajadores de antaño, 18. no nos hará vivir como la silla rota 19. de la existencia solitaria que anota la marea 20. y estornuda en otoño.

A qualidade metafórica dos versos acima e o contraponto das imagens

do “nós” e a negação de ser “como la silla rota”. Assim, a reafirmação dos

valores de identidade ligada a posição que o outro lhe coloca. Mas, questão da

memória como identidade atravessa o poema e é posta como uma

reivindicação própria: 26. Si alguien nos recuerda que nuestros estilos 27. están ya recordados;

Page 44: a Expressão Americana no Poema

45

28. que por nuestras narices no escogita un aire sutil 29. sino que el Eolo de las fuentes elaboradas 30. por los que decidieron que el ser 31. habitase en el hombre, 32. sin que ninguno de nosotros 33. dejase caer la saliva de una decisión bailable, 34. aunque presumimos como los demás hombres 35. que nuestras narices lanzan un aire sutil. 36. Como sueñan humillarnos, 37. repitiendo día y noche con el ritmo de la tortuga 38. que oculta el tiempo en su espaldar: 39. ustedes no decidieron que el ser habitase en el hombre; 40. vuestro Dios es la luna 41. contemplando como una balaustrada 42. al ser entrando en el hombre. 43. Como quieren humillarnos les decimos 44. The chief of the tribe descended the staircase.

Cada unidade significativa parece possuir um universo significativo

autônomo que se superpõem. No fragmento anterior, o elemento embajadores

de antaño (no verso 17) marca a presença imperialista, e sua resposta

americana logo depois – versos 18 e 19.

Mas, o verso 26, passa a outro núcleo conceitual conectado ao primeiro

pelas respostas da cultura americana que são claras: se no primeiro momento

os norte-americanos e os sul-americanos tiveram a mesma origem, a relação

entre eles agora é de tensão. As lembranças são transportadas e isso implica

na inutilidade da cultura local. A questão filosófica colocada nesse fragmento é

fundamental como postura: quem decide que o homem seja homem foi a

cultura central: e o latino-americano o é somente na medida que o outro o

deixaria ser. Mas isso é contra-restando pelo próprio poema como declaração

meta-literária, as duas vozes estão no poema, e a cultura americana tem uma

resposta na língua imperialista.

A referência ao “Eolo”, ou deus dos ventos, funciona internamente como

simbologia para a respiração e a respiração significa vida. Este mote é continuo

durante todo o poema, é o movimento vital que tenta ser negado pelo “outro”,

apesar de sua inegável existência. A verdade da identidade, da lembrança está

colocada pelo conquistador, por isso é necessário questionar aqueles que

questionam a verdade local. Trata-se de discutir a questão na estrutura

lingüística do poema que representa uma imagem de um universo móvel e

descentrado, a linguagem simula uma desarmonia sem fundo e uma busca de

Page 45: a Expressão Americana no Poema

46

um fim inalcançável. Essa é a discussão que é proposta por Lezama Lima: a

perda de concordância que recusa toda instauração metaforiza a ordem social

discutida: 45. Ellos tienen unas vitrinas y usan unos zapatos. 46. En esas vitrinas alternan el maniquí con el quebrantahuesos 47. disecado, 48. y todo lo que ha pasado por la frente del hastío 49. del búfalo solitario. 50. Si no miramos la vitrina, charlan 51. de nuestra insuficiente desnudez que no vale una estatuilla de Nápoles. […] 60. y que aunque mastiquemos su estilo, 61. we don’t choose our shoes in a show-window. 62. El caballo relincha cuando hay un bulto 63. que se interpone como buey de peluche, 64. que impide que el río le pegue en el costado 65. y se bese con las espuelas regaladas 66. por una sonrosada adúltera neoyorquina. 67. El caballo no relincha de noche; 68. los cristales que exhala por su nariz, 69. una escarcha tibia, de papel; 70. la digestión de las espuelas 71. después de recorrer sus músculos encristalizados 72. por un sudor de sartén.

Seu estilo é absorvido, mas não simplesmente aceito. “Ellos” se impõem

em uma tentativa de manter sua hegemonia mitológica (quebrantahuesos é um

pássaro legendário da Europa, em quanto o búfalo faz parte da imaginação

nativa norte-americana). Nesse processo de negação à aceitação fácil, o

sujeito dotado da palavra poética é capaz de ter um olhar crítico que vislumbra

uma poesia com uma dicção intrínseca. A violência do signo que representa a

cultura quebra a ordem natural da cultura: esse buey impede que o rio continue

seu curso em outras palavras impede que a natureza siga seu curso.

Lembremos que a natureza é sinônimo de cultura no sistema filosófico da

cultura de Lezama Lima.

Assim, a intervenção obriga a subverter a ordem originária da cultura:

aqui está o processo de reformulação interna por transculturação orticiano. A

cultura transculturada tem uma resposta para tudo que é posto: 99. Pero mientras afilan un suspiro de telaraña 100. dentro de una jarra de mano en mano, 101. el rasguño en la tiorba no descifra.

Page 46: a Expressão Americana no Poema

47

Essa resposta é a Expressão e a reformulação dois conceitos culturais é

tom do Banquete crítico de América. Os últimos seis versos desta estrofe

explicitam as reformulações que o abalo da cultura como processo e não como

não pontual provocam. Mas é uma reformulação crítica ao “outro” e a si

mesmo.

Na simbologia construída internamente no poema, na qual falta de

referencialidade que Lezama Lima construída pode-se notar um alto índice de

modernidade na operação critica sobre a linguagem. O Neobarroco usando do

mecanismo da dissociação do signo lingüístico é uma operação que

poderíamos considerar violenta, mas que por si só já é uma postura do que o

autor pretende da Expressão Americana. Ao mesmo tempo em que questiona a

carga histórica da palavra, a subverte e tira do seu papel unicamente

comunicador, para coloca-a num papel meta-literário e meta-lingüístico, como

nos apontava Sarduy na última citação.

Nas duas estrofes seguintes temos a metáfora da máscara: 120. ¿Una puerta se derrumba porque el ebrio 121. sin las botas puestas le abandona su sueño? 122. Un sudor fangoso caía de los fustes 123. Y las columna se deshacían en un suspiro 124. Que rodaba sus piedras hasta el arroyo. 125. Las azoteas y las barcazas 126. resguardan el líquido calmo y aire escogido; 127. las azoteas amigas de los trompos 128. y las barcazas que anclan en un monte truncado, 129. ruedan confundidas por una galantería disecada que sorprende 130. a la hilandería y reverso del ojo enmascarado tiritando juntos.

Colocada pela repetição do léxico em diferentes contextos, multiplica

sua significação e a ficção do próprio ser em outro. Neste trecho tudo se desfaz

e assim como no desenvolvimento do poema que segue uma lógica orgânica e

subjetiva, tudo é passível de fragmentação e desintegração.

Na seguinte estrofe temos a retomada da questão da identidade pela

imagem das lembranças, e o ultimo verso traz a problemática do originário da

arte humana: 135. porque nuestros recuerdos están ya recordados 136. y rumiamos con una dignidad muy atolondrada 137. unas molduras salidas de la siesta picoteada del cazador.

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138. Para saber si la canción es nuestras o de la noche, 139. quieren darnos un hacha elaborada en las fuentes de Eolo. 140. Quieren que saltemos de esa urna 142. y quieren también vernos desnudos.

O conhecimento poético desse sujeito hispano-americano se dá pela

técnica do contraponto entre o que “Ellos” querem e aceitação disso. A morte e

o nascimento entram num jogo de diálogo que permitirá a reelaboração dos

dois termos. Talvez é a isso que o eu lírico se refere com os versos y que

nuestro oscuro tejer y deshacerse/esté recordado por el hilo de la pretendida.

A resposta deste verso se dá no seguinte: 148. Nos recorremos 149. y ya detenidos señalamos la urna y a las palomas 150. grabadas en el aire escogido. 151. Nos recorremos 152. y la nueva sorpresa nos da los amigos 156. y el nacimiento de una dialéctica: 157. mientras los diedros giran mordisqueándose, 160. el agua paseando por los canales de los huesos 170. lleva nuestro cuerpo hacia el flujo calmoso 171. de la tierra que no está navegada,

E a única possibilidade é a dialética, mas uma dialética nova. É uma

proposição de uma solução para o dizer americano. Nesse momento o eu lírico

se coloca explicitamente como uma voz subjetiva. A questão do corpo ligada à

idéia de banquete de um modo analógico como acontece no Banquete de

Platão.

A repetição do último verso, agora em espanhol (“The chief of the tribe

descended the staircase.” – verso 41;“el jefe de la tribu descendió la escalinata”

– verso 171) como acontece até o final do poema mostra uma quebra no

desenvolvimento. É o resultado da nova dialética, uma elaboração própria que

se vislumbra no fragmento seguintes e no qual a importância da imagem toma

um novo patamar:

172. Los abalorios que nos han regalados 173. han fortalecido nuestra propia miseria, 174. pero como nos sabemos desnudos 175. el ser se posará en nuestros pasos cruzados. […] 215. Nuestra madera es un buey de peluche; 214. el estado ciudad es hoy el estado y un bosque pequeño. 216. El huésped sopla el caballo y las lluvias también.

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217. El caballo pasa su belfo y su cola por la serafina del bosque; 218. el hombre desnudo entona su propia miseria, 219. el pájaro mosca lo mancha y traspasa. 220. Mi alma no está en un cenicero.

A estrutura geral circular do poema se fecha nesta última parte. Os

referenciais proliferados e a complicação sintática demonstram uma clara

tensão dos dizeres enunciativos. O poema não se resolve externamente, mas

em si mesmo como forma que volta repensada, mas que no final afirma sua

posição.

Page 49: a Expressão Americana no Poema

50

5. CONCLUSÃO

A visão poética de Lezama Lima diz respeito também a uma visão

histórica bem definida. A forma em devir quer transmitir a dificuldade das

comunidades humanas em assumir seu destino, ainda sua visão não é

historificada, ou o é depois de ser filtrada pelo sistema poético, eixo principal de

sua produção intelectual. Seu sistema poético funciona como uma super-

estética, delineando novos horizontes para a possibilidades poéticas.

As formas Barrocas servem como meio que alcança um novo

desdobramento da língua espanhola na retórica e no estilo que transformou as

estratégias de leitura contribuindo ao feito por Borges, Astúrias, Cortázar e

Carpentier, para citar apenas alguns. Sua escritura crítica está marcada pela

proliferação de citações e referências organizadas todas pela lógica do

conhecimento poético.

Sobre a da História no sistema lezamiano, Mendía (1997) ao pensar na

imagem histórica no romance Paradiso afirma:

Búsqueda de las esencias y las formas propias de expresión: es en este sentido donde hay que indagar la historicidad de la imagen en Lezama. Significa la fragua - con la violencia y el desaliño que suele a veces caracterizar las obras de fundación – de una literatura propia, y eso es, a mi juicio, profundamente histórico. MENDÍA (1997, P 545)

Para Ortiz existem dois movimentos no processo de transformação de

uma cultura: primeiro o que parte da metrópole e se consolida na cultura latino-

americana, um movimento externo. O segundo, o interno, no que se pondera e

contrapõe os elementos já existentes, ou originários da cultura. No caso

cubano, o primeiro movimento estaria configurado pela recepção de elementos

europeus ou norte-americanos, e o segundo, uma vez que a cultura já

transculturalizada na sua formação seleciona de forma crítica os elementos que

são anulados ou resgatados das culturas originárias. Podemos afirmar, logo da

análise do poema, que nele estam posto os dois movimentos e um olhar crítico

sobre eles.

Esses movimentos implicam uma “parcial desarticulação” dos

funcionamentos anteriores. A isto se soma ao processo análogo de

Page 50: a Expressão Americana no Poema

51

“reculturação” que diz respeito a articulações internas. Resulta então numa

união dialética entre as vozes de identidade e da diferença somados em seus

elementos de interesse, o que tem como síntese a modernização dos

processos internos e conseqüente absorção de elementos externos.

Nesse processo são contrastados os elementos de identidade e

diferença num sistema que por um lado é determinista, por outro exalta a

liberdade da capacidade seletiva da cultura. As etapas pelas quais as culturas,

segundo esta lógica, passam são as de destruição, ou negação dos valores

que se identificam como vindos da metrópole; reafirmação de certos valores

selecionados.

O lugar enunciativo de José Lezama Lima é América, por isso nosso

objetivo foi o de uma análise que tentou desenhar a proposta do autor e como

isto se configura na sua poesia. A expressão poética lezamiana se mostra

neste poema como um devir descolonizador, tanto na forma como no conteúdo

que realiza sua dimensão hibrida multidimensional a partir da discussão do

impacto do colonizador e sua cultura na cultura local.

Os versos em francês e inglês do poema são incorporados como vozes

dentro de um diálogo que pensa o que é local: a vontade de dominação do

Outro. Sem o entendimento poético do sistema lezamiano, o poema permite

uma leitura que rejeita a cultura imperialista, isto não é necessariamente

impossível, mas com o sustento da teoria poética do autor o poema toma

dimensões muito mais complexas e talvez herméticas. Não resulta tão simples

aceitar que essa cultura questionada não faz parte da que questiona, ao final,

ela permite que os enunciadores da cultura “subalterna” o autoconhecimento.

Nós temos a vantagem de conhecer a outra cultura e através de esses dois

conhecimentos, a cultura americana tem o poder da reformulação e da

resposta.

O sistema de Lezama Lima se expressa como um Banquete de

identificação imaginária da História cultural de América proposto na base de um

matiz criativo de uma releitura e reconstrução, não só do passado como do

presente da escrita. O elemento ficcional nessa operação tem o papel

essencial de palavra histórica, e é aí onde causa os efeitos sobre o imaginário

coletivo que procura o autor.

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52

O Banquete se configura assim em uma forma dialética: o diálogo dos

dominados e dos dominadores é posto na poesia produzida pelos americanos

como um colóquio em que os elementos são colocados no mesmo nível e

reelaborados. A poesia do banquete lezamiano aporta ao banquete americano

e ao universal essa possibilidade crítica sendo a linguagem e seus tropos o

material em que esse diálogo se coloca poeticamente.

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53

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ACHUGAR, Hugo. La hora americana o el discurso americanista de entreguerras. pp. 635-662. In: PIZARRO, Ana (org). América Latina Palavra, Literatura e Cultura. Vol 2. São Paulo: Memorial; Campinas: UNICAMP, 1994. AGUIAR, Flávio e GUARDINI T. VASCONCELOS, Sandra (orgs.). Os Processos de Transculturação na Narrativa Latino-Americana. In Ángel Rama, Literatura e cultura na América Latina. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001. ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas, reflexiones sobre el origen y la difusión del nacionalismo. México: Fondo de Cultura económica, 1991. BAHKTIN, M. Las formas de tiempo y del cronotopo en la novela, ensayos de poética histórica. p 2 In: Teoría y estética de la novela. Madrid: Taurus, 1989 BELCHIOR, Lauro Mendes. A expressão Brasileira: Narrações exemplares, Cadernos de pesquisa. NAPq/FALE/UFMG: Belo Horizonte, N 34, Novembro, 1996. BONNIER, Thomas. Teoria e crítica pós-colonialista. pp 204-220 In: Teoria literária, abordagens históricas e tendências contemporâneas. BONNICI, Thomas, ZOLIN, Lúcia Osana (org). Maringá: Eduem, 2003 BORGES, Jorge Luis. Kafka y sus precursores. pp. 710-712 In: Obras completas 19232 – 1972. : Buenos Aires: Emece, 1974. CAMPOS, Haroldo de. O seqüestro do barroco na formação da literatura brasileira: o caso de Gregório de Mattos. Salvador: Fundação Cultural Jorge Amado, 1989. GALEANO, Eduardo. As Veias Abertas da America Latina. São Paulo: Editora Paz e Terra, 46ª edição, 2007 (1ª edição 1976) GIRARDOT GUTIÉRREZ, Rafael. Literatura e política na America Espanhola. In: Revista Humboldt, Alemanha ano 33/1992, Número 64, pp. 5 – 12. trad. Maria José de Alemeida Müller. GRAWUNDER, Maria Zenilda. A palavra inqueta, sobre a alegoria. Santa Maria: Editora da UFSM, 1996. HATZFELD, Helmut. Estudos sobre o Barroco. São Paulo: Editora da USP, 1998. HEGEL, G.W.F. Filosofia da História. Tradução Maria Rodrigues e Hans Harden. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999.

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ANEXO

Pensamientos en la Habana (La fijeza, 1949)

1. Porque habito un susurro como un velamen, 2. una tierra donde el hielo es una reminiscencia, 3. el fuego no puede izar un pájaro 4. y quemarlo en una conversación de estilo calmo. 5. Aunque ese estilo no me dicte un sollozo 6. y un brinco tenue me deje vivir malhumorado, 7. no he de reconocer la inútil marcha 8. de una máscara flotando donde yo no pueda, 9. donde yo no pueda transportar el picapedrero o el picaporte 10. a los museos donde se empapelan los asesinatos 11. mientras los visitadores señalan la ardilla 12. que con el rabo se ajusta las medias. 13. Si un estilo anterior sacude el árbol, 14. Decide el sollozo de dos caballos y exclama: 15. my soul is not an ashtray

16. Cualquier recuerdo que sea transportado, 17. recibido como una galantina de los obesos embajadores de

antaño, 18. no nos hará vivir como la silla rota 19. de la existencia solitaria que anota la marea 20. y estornuda en otoño. 21. Y el tamaño de una carcajada, 22. rota por decir que sus recuerdos ya están recordados, 23. y sus estilos los fragmentos de una serpiente 24. que queremos soldar 25. sin preocuparnos de la intensidad de sus ojos. 26. Si alguien nos recuerda que nuestros estilos 27. están ya recordados; 28. que por nuestras narices no escogita un aire sutil 29. sino que el Eolo de las fuentes elaboradas 30. por los que decidieron que el ser 31. habitase en el hombre, 32. sin que ninguno de nosotros 33. dejase caer la saliva de una decisión bailable, 34. aunque presumimos como los demás hombres 35. que nuestras narices lanzan un aire sutil. 36. Como sueñan humillarnos, 37. repitiendo día y noche con el ritmo de la tortuga 38. que oculta el tiempo en su espaldar: 39. ustedes no decidieron que el ser habitase en el hombre; 40. vuestro Dios es la luna 41. contemplando como una balaustrada 42. al ser entrando en el hombre. 43. Como quieren humillarnos les decimos 44. The chief of the tribe descended the staircase.

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45. Ellos tienen unas vitrinas y usan unos zapatos. 46. En esas vitrinas alternan el maniquí con el quebrantahuesos

disecado, 47. y todo lo que ha pasado por la frente del hastío 48. del búfalo solitario. 49. Si no miramos la vitrina, charlan 50. de nuestra insuficiente desnudez que no vale una estatuilla de

Nápoles. 51. Si la atravesamos y no rompemos los cristales, 52. no subrayan con gracia que nuestro hastío puede quebrar el

fuego 53. y nos hablan del modelo viviente y de la parábola del

quebrantahuesos. 54. Ellos que cargan con sus maniquíes a todos los puertos 55. y que hunden en sus baúles un chirriar 56. de vultúridos disecadas. 57. Ellos no quieren saber que trepamos por las raíces húmedas del

helecho, 58. —donde hay dos hombres frente a una mesa; ala derecha, la

jarra 59. Y el pan acariciado—, 60. y que aunque mastiquemos su estilo, 61. we don’t choose our shoes in a show-window.

62. El caballo relincha cuando hay un bulto 63. que se interpone como buey de peluche, 64. que impide que el río le pegue en el costado 65. y se bese con las espuelas regaladas 66. por una sonrosada adúltera neoyorquina. 67. El caballo no relincha de noche; 68. los cristales que exhala por su nariz, 69. una escarcha tibia, de papel; 70. la digestión de las espuelas 71. después de recorrer sus músculos encristalizados 72. por un sudor de sartén. 73. El buey de peluche y el caballo 74. oyen el violín, pero el fruto no cae 75. reventado en su lomo frotado 76. con un almíbar que no es nunca de alquitrán. 77. El caballo resbala por el musgo 78. donde hay una mesa que exhibe las espuelas, 79. pero la oreja erizada de la bestia no descifra.

80. La calma con música traspiés 81. y ebrios caballos de circo enrevesados, 82. donde la aguja muerde porque no hay un leopardo 83. y la crecida del acordeón, 84. elabora una malla de tafetán gastado. 85. Aunque el hombre no salte, suenan

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86. bultos divididos en cada estación indivisible, 87. porque el violín salta como un ojo. 88. Las inmóviles jarras remueven un eco cartilaginoso: 89. el vientre azul del pastor 90. se muestran en una bandeja de ostiones. 91. En ese eco del hueso de la carne, brotan unos bufidos 92. cubiertos por un disfraz de telaraña, 93. para el deleite al que se le abre una boca, 94. como flauta de bambú elaborada 95. por los garzones pedigüeños. 96. Piden una cóncava oscuridad 97. donde dormir, rajando insensibles 98. el estilo del vientre de su madre. 99. Pero mientras afilan un suspiro de telaraña 100. dentro de una jarra de mano en mano, 101. el rasguño en la tiorba no descifra.

102. Indicaba unas molduras 103. que mi carne prefiere a las almendras. 104. unas molduras ricas y agujereadas 105. Por la mano que las envuelve 106. y le riega los insectos que le han de acompañar. 107. Y esa espera, esperada en la madera 108. por su absorción que no detiene al jinete, 109. mientras una máscaras, los hachazos 110. que no llegan a las molduras, 111. que no esperan como un hacha o una máscara, 112. sino como el hombre que espera en una casa de hojas. 113. Pero al trazar las grietas de la moldura 114. Y al perejil y al canario haciendo gloria, 115. l’étranger nous demande le garçon maudit.

116. El mismo almizclero conocía la entrada, 117. El hilo de tres secretos 118. Se continuaba hasta llegar a la terraza 119. Sin ver el incendio del palacio grotesco. 120. ¿Una puerta se derrumba porque el ebrio 121. sin las botas puestas le abandona su sueño? 122. Un sudor fangoso caía de los fustes 123. Y las columna se deshacían en una suspiro 124. Que rodaba sus piedras hasta el arroyo. 125. Las azoteas y las barcazas 126. resguardan el líquido calmo y aire escogido; 127. las azoteas amigas de los trompos 128. y las barcazas que anclan en un monte truncado, 129. ruedan confundidas por una galantería disecada que sorprende 130. a la hilandería y reverso del ojo enmascarado tiritando juntos.

131. Pensar que unos ballesteros 132. disparan a una urna cineraria

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133. y que de la urna saltan 134. unos pálidos cantando, 135. porque nuestros recuerdos están ya recordados 136. y rumiamos con una dignidad muy atolondrada 137. unas molduras salidas de la siesta picoteada del cazador. 138. Para saber si la canción es nuestras o de la noche, 139. quieren darnos una hacha elaborada en las fuentes de Eolo. 140. Quieren que saltemos de esa urna 141. y quieren también vernos desnudos. 142. Quieren que esa muerte que nos han regalado 143. sea la fuente de nuestro nacimiento, 144. y que nuestro oscuro tejer y deshacerse 145. esté recordado por el hilo de la pretendida. 146. Sabemos que el canario y el perejil hacen gloria 147. y que la primera flauta se hizo de una rama robada.

148. Nos recorremos 149. y ya detenidos señalamos la urna y a las palomas 150. grabadas en el aire escogido. 151. Nos recorremos 152. y la nueva sorpresa nos da los amigos 153. y el nacimiento de una dialéctica: 154. mientras los diedros giran mordisqueándose, 155. el agua paseando por los canales de los huesos 156. lleva nuestro cuerpo hacia el flujo calmoso 157. de la tierra que no está navegada, 158. donde un alga despierta digiere incansablemente a un pájaro

dormido. 159. Nos da los amigos que una luz redescubre 160. y la plaza donde conversan sin ser despertados. 161. De aquella urna maliciosamente donada, 162. saltaban parejas, contrastes y la fiebre 163. injertada en los cuerpos de imán 164. del paje loco sutilizando el suplicio lamido. 165. Mi vergüenza, los cuerpos de imán untados de lunas frías, 166. pero el desprecio paría una cifra 167. y ya sin conciencia columpiaba una rama. 168. Pero después de ofrecer sus respectos, 169. cuando bicéfalos, mañosos correctos 170. golpean con martillos algosos el androide tenorino, 171. el jefe de la tribu descendió la escalinata.

172. Los abalorios que nos han regalados 173. han fortalecido nuestra propia miseria, 174. pero como nos sabemos desnudos 175. el ser se posará en nuestros pasos cruzados. 176. Y mientras nos pintarrajeaban 177. para que como siempre el viento rizaba las aguas 178. y unos pasos seguían con fruición nuestra propia miseria. 179. Los pasos huían con las primeras preguntas del sueño.

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180. Pero el perro mordido por luz y por sombra, 181. por rabo y cabeza; 182. de luz tenebrosa que no logra grabarlo 183. y de sombra apestosa; la luz no lo afina 184. ni lo nutre la sombra; así muerde 185. la luz y el fruto, la madera y la sombra, 186. la mansión y el hijo, rompiendo el zumbido 187. cuando los pasos se alejan y él toca en el pórtico. 188. Pobre río bobo que no encuentra salida, 189. ni las puertas y las hojas hinchando su música. 190. Escogió, doble contra sencillos, los terrones malditos, 191. pero yo no cojo mis zapatos en una vitrina.

192. Al perderse el contorno en la hoja 193. el gusano revisaba oliscón su vieja morada; 194. al morder las aguas llegadas al río definido, 195. el colibrí tocaba las viejas molduras. 196. El violín de hielo destrenza una música y ata una música. 197. Nuestros bosques no obligan al hombre a perderse, 198. el bosque es para nosotros una serafina en la reminiscencia. 199. Cada hombre desnudo que viene por el río, 200. En la corriente o el huevo hialino, 201. nada en el aire si suspende el aliento 202. y extiende indefinidamente las piernas. 203. La boca de la carne de nuestras maderas, 204. y el colibrí las traspasa.

205. Mi espalda se irrita surcada por las orugas 206. que mastican un mimbre trocado en pez centurión, 207. pero yo continuo trabajando la madera, 208. como una uña despierta, 209. como una serafina que ata y destrenza en la reminiscencia. 210. El bosque soplado 211. desprende el colibrí del instante 212. y las viejas molduras. 213. Nuestra madera es un buey de peluche; 214. el estado ciudad es hoy el estado y un bosque pequeño. 215. El huésped sopla el caballo y las lluvias también. 216. El caballo pasa su belfo y su cola por la serafina del bosque; 217. el hombre desnudo entona su propia miseria, 218. el pájaro mosca lo mancha y traspasa. 219. Mi alma no está en un cenicero.