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    I N T E R C M B I O

    Desapego e entrega: atitudes centrais dameditao zen-budista e suas ressonnciasnos pensamentos de Eckhart e de Heidegger1

    Disaffection and surrender: essential attitudes ofZen-Buddhist meditation and their resonance in thethoughts of Eckhart and Heidegger

    Jos Carlos Michelazzo*

    Resumo:A cincia e os meios de comunicao tm dado recentemente grande espao

    ao lado visvel da meditao, mostrando grandes benefcios fsicos e mentaispara o dia a dia mecanizado de nossa poca. Embora no se possa discordar detais benefcios, a prtica meditativa do Zen-budismo, e de modo especial a deMestre Dgen, tem, na verdade, muito mais a ver com um lado pouco visvel,at mesmo pouco atraente. No lugar dos benefcios rpidos aparecem a dor e aestranheza, mas tambm a lenta transformao, como expresses do exercciocontnuo de duas atitudes bsicas do praticante do Caminho: o desapego dailusria permanncia das coisas e a entrega ao vazio das coisas. Tais atitudes tmsurpreendentes paralelos com a mstica de Mestre Eckhart e com o pensamentode Martin Heidegger que tm estimulado, em seu sentido amplo, o dilogoOcidente-Oriente e, particularmente, tm sido foco de grande interesse dospensadores japoneses da Escola de Kyoto, assim como de uma expressiva literaturasecundria da resultante.

    Palavras-chave: prtica, desapego, entrega, no-dualidade, iluminao.

    Abstract: The science and media had opened great space for meditation, show-ing especially the physical and mental benefits into mechanic daily life of ourage. Although it is not possible to deny these benefits, the meditative practice,especially the Master Dgens Zazen, has indeed much more to do with a littleless visible and attractive side. In the place of quick benefits, there is pain and

    the strangeness, but also the slow transformation as expressions of continuous

    1 Texto apresentado (em parte) no V Colquio sobre o Pensamento Japons realizado em So Paulo no dia27 de novembro de 2010, com o temaA prtica meditativa e o conhecimento desi-mesmo e do mundo em Dogen,na Mesa Redonda II: Variedades de prticas meditativas budistas.* Graduado em Filosofia e Psicologia, Psicoterapeuta. Mestre em Filosofia pela PUC-SP. Doutor em Filosofiapela UNICAMP. Ps-doutorado (2009-2011) no Programa de Ps-Doutorado da PUC-SP, com financia-mento do CNPq.

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    exercise of two basic attitudes of Ways practitioner: the detachment of thingsdelusive stability and the surrender to things emptiness. These attitudes haveamazing parallels with Master Eckharts mystic and with Martin Heideggersthought, which have stimulated, in general sense, the dialogue between West and

    East and, in particular sense, have been the great focus of Japanese thinkers fromKyoto School as well as of an expressive secondary literature from there resultant.

    Key-words: practice, detachment, surrender, nonduality, enlighteness.

    Introduo

    Para iniciar a exposio, apresento algumas falas colhidas aqui e ali naInternet a respeito do significado e importncia da meditao nos dias de hoje.

    Diz-se que a meditao pode trazer benefcios fsicos e mentais a quema prtica com regularidade. Com a prtica, mesmo fora do estado meditativoa capacidade de ateno focada aumenta nitidamente, melhora a capacidadede suprimir pensamentos negativos e emoes associadas e, com isso, o corpoganha mais paz. Para quem anda atribulado e assoberbado, a meditao podeser aquela pausa bem-vinda para zerar o crebro e conseguir, ainda que porinstantes, suprimir os pensamentos angustiantes. O curioso, e ainda melhor, que, com a prtica, o controle e a paz alcanados na meditao transbordampara outros momentos da vida. E ainda tem mais, voc no precisa se tornarum monge tibetano para gozar dos benefcios da meditao. Um estudo

    mostrou que os efeitos sobre o corpo e a mente j so notados com, pasme,cinco dias de prtica!2

    Aps esses comentrios, no h como no fazer uma pergunta que, obriga-toriamente, nos salta na ponta da lngua: caso pudesse ler essas falas, o que queum Buda Shakyamuni ou os grandes Mestres do Zen-budismo, como Dgen, porexemplo, poderiam pensar e dizer sobre isso? Para o nosso desapontamento, elesprovavelmente com grande treino e experincia na compreenso no-dualistada realidade , provavelmente nos diriam: mas isso verdade! A meditao nosdeixa, de fato, menos angustiados e mais atentos, menos tensos e mais em paz.

    Brincadeiras parte, o que provavelmente ns e os Mestres teramos em comum naobservao desses comentrios da mdia talvez fosse o entendimento de que, apesardesses benefcios do corpo e da mente serem, de fato, verdadeiros, nem por isso

    2 S.H. HOUZEL, Blog Internet, Folha de So Paulo de 19/10/2010.

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    falam do essencial da prtica da meditao; eles no so falsos, mas secundrios.Mas, ento, o que essencial na prtica meditativa?

    Para responder a essa questo, talvez seja oportuno fazermos uso, muito bre-

    vemente, de uma linguagem mais filosfica, alinhando, desse modo, a perspectivado Zen-Budismo da mstica de Meister Eckhart e do pensamento de MartinHeidegger. Nessas trs perspectivas, observamos um modo de compreender ascoisas e os acontecimentos do mundo que se realiza pelo vis de uma diferenaou duplicidade instalada no corao do real. Tal diferena faz com que o real seapresente por meio de duas dimenses bsicas: uma tangvel e mais aparente,representada pelo carter substancialista e objetivante das coisas, interpretadacomo derivada, imprpria ou ilusria; e outra no-tangvel, oculta, adormecida ouesquecida, que representa o trao no-substancialista e no-objetivante das coisas,consequentemente interpretada como mais primordial, prpria ou verdadeira.

    Assim, para Eckhart, essa diferena que abre as duas dimenses (tangvel eintangvel) teolgicaquando ele pensa na figura do divino, ou seja, entre o Deusque tem um nome e que pertence histria de um povo (tangvel) e a Deidadeque sem nome, pois puro nada e abismo insondvel (no-tangvel). Para Hei-degger, a diferena ontolgicaentre o ente que se apresenta por meio das coisastomadas em seu carter ntico, substancializado, reificado (tangvel) e o Ser quenunca algo, mas to somente o nada ou pura transcendncia (no-tangvel).No Zen-Budismo tambm identificamos algo semelhante s duas perspectivasanteriores que poderamos chamar de uma diferenasoteriolgicaexistente entre

    a dualidade ilusria, prpria dos homens comuns (tangvel) e a no-dualidadesalvfica, libertadora, prpria apenas daqueles que foram despertos (no-tangvel).Nas trs perspectivas aparece tambm, em cada uma sua maneira, um mo-

    vimento de ultrapassagem da dimenso tangvel para a no-tangvel, para o qualempregam palavras-chave tais como: o desprendimento das criaturas em direoao nada da Deidade (Eckhart), a superao das coisas como mera presentidadeem direo ao nada de seu ser (Heidegger) e o desapego das coisas como simplescoisas isoladas e permanentes, no mbito da dualidade, em direo sua no--dualidade impermanente (Zen-budismo). Respondendo, ento, pergunta, o que essencial na prtica meditativa? tal como interpreta o Zen-budismo, maneira

    de Eckhart e Heidegger , poderamos dizer que o essencial seu empenho emrealizar a ultrapassagem entre um modo secundrio ou ilusrio para um modomais originrio ou verdadeiro de compreender o real.

    No o nosso propsito aqui aprofundar essa convergncia apontada entreessas trs perspectivas; a magnitude dessa tarefa estaria para alm dos limitesdesse texto. Nosso intento muito mais indicar o modo privilegiado em quese encontra a perspectiva do Zen-Budismo, em relao s outras duas, no que

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    tange ao seu mtodo para realizar o movimento de ultrapassagem. Entretanto,vez por outra estaremos colocando em paralelo as trs perspectivas no s como fito de testemunhar convergncias surpreendentes (e tambm divergncias),

    mas, principalmente, com o de estimular o dilogo (nunca uma identificao)entre seus horizontes ontolgicos, de maneira a que possam mostrar elementoscomuns ligados aos aspectos de fundo da condio humana, mas que recebemum tratamento diferenciado no modo de abord-los, advindos de suas diferentestradies. Esse dilogo, na verdade, tem sido o foco central dos trabalhos dospensadores japoneses da Escola de Kyoto desde a sua fundao, nas primeirasdcadas do sculo XX, com Kitar Nishida e demais geraes de seguidores ,e que tm estimulado o aparecimento de uma significativa literatura secundriacomo resposta a problemas originais de extrema relevncia que tais trabalhos tmcolocado para os estudiosos ocidentais, dentre os quais scholarsda Filosofia e dasCincias da Religio.

    evidente que nossa exposio no estaria seno tangenciando esse grandecenrio de dilogo e de debates. Nesse sentido, nossa pretenso no ser outra senoa de dar apenas alguns passos nessa direo que aqui ser realizado por meio dequatro tpicos: Dgen e a noo de prtica contnua (1); Desapego e entrega naprtica meditativa (2); Alquimia do desapego: micro-transformaes sucessivas(3) e; Alquimia da entrega: saltando do topo do mastro de cem ps (4).

    Dogen e a noo de prtica contnua

    Iniciemos expondo a importncia da prtica meditativa como mtodo parao Zen-budismo. De fato, segundo o que contam fontes histricas, ele foi propostopelo prprio Buda Shakyamuni, o Buda histrico fundador do Budismo, que ochamou de Dhyana, traduzido de modo corrente por meditao, e que, posterior-mente, na expanso do Budismo, orientou tradies especficas, tal como foi oChan do Budismo chins e o Zen do japons.

    A ideia aqui, por conseguinte, mostrar o lugar de destaque que a prticameditativa ocupa na Histria do Budismo a ponto de dar nome a Escolas, no

    sentido de se referir a algo essencial e fundamental de sua tradio. Qual seria,ento, o grande horizonte da prtica meditativa mediante a qual o Budismo en-tende como mtodo de ultrapassagem entre a dualidade e a no-dualidade? ParaDgen Mestre Zen japons do sculo XIII e fundador de Escola Soto Zen essemtodo o zazen(meditao sentada) ou ainda, na sua palavra-chave preferida,o Shikantaza(apenas sentar), que para ele remonta ancestral Dhyanado BudaShakyamuni. Para o Mestre japons, o zazen o Caminhopar excellencecapaz

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    de provocar no homem o movimento de ultrapassagem, ao ponto de especialistasem Dgen admitirem que os noventa e cinco captulos do Shbgenz so apenasnotas de rodap do zazen3.

    Podemos ver uma indicao desse movimento de ultrapassagem na conhecidasentena do Mestre Zen, expressa no seu Shbgenz, no captulo do Genjkanmediante o qual ele apresenta as etapas do Caminho.

    Aprender o Caminho do Buda aprender a si mesmo. Aprender oCaminho de si mesmo esquecer-se de si mesmo. Esquecer-se de si mesmo ser confirmado por todos os Dharmas. Ser confirmado por todos os Dharmas realizar o desprendimento do corpo e mente e corpos e mentes de outrostambm. Todos os traos de iluminao [ento] desaparecem e essa iluminaosem vestgios continua indefinidamente.4

    Nessas cinco sentenas de Dgen, a segunda, esquecer-se de si mesmo, aexperincia-limite que possibilita a ultrapassagem da ilusria existncia dualistapara a verdadeira existncia no-dualista. Trata-se do salto mediante o qual oportal para o modo de habitao numinosa, o despertar bdico, aberto. Com odesmantelamento do si mesmo separado do mundo, o tecido interdependente doreal, em sua totalidade, o que passa a sustentar o homem na medida em que confirmado por todos os Dharmas.

    Para esse homem, todo resqucio de dualidade e de autocentralidade deixado para trs porque todos os demais corpos e mentes do mundo se des-

    prenderam de olhar antropocntrico que os via como entidades separadas. Nemmesmo permanece para esse homem algum vestgio de iluminao. Para Dgen,por conseguinte, quem foi transpassado por essa experincia foi emancipado dadualidade e, a partir de ento, capaz de experienciar as polaridades do real emsua completa interpenetrao, transformando-a em uma totalidade no-dualista.Quem alcanou essa etapa do Caminho encontrou sua verdadeira natureza, suaface original: a natureza bdica (Bussh). Para o Mestre Zen, entretanto, essehomem cujo si mesmo individual separado tornou-se umcom a multiplicidadedo mundo s pode se sustentar nessa nova configurao por intermdio daGyji nome este dado, no por acaso, ao maior dos fascculos de seu Shbgenz, queliteralmente significa fazendo a prtica e mantendo-se nela ou, simplesmente,prtica contnua , como o lugar de confluncia da presena de todas as coisasem uma situao ominiabarcante, total.

    3 H-J. KIM, Eihei Dgen: mystical reali st, p. 269.4 E. DGEN, Genjokan. In: Shbgenz, pp.134-35.

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    Passemos agora a discorrer de modo mais estrito questo da meditao,colocando o foco sobre alguns aspectos centrais disso que, anteriormente, nosreferimos por um mtodo concreto, explcito, prtico, para realizar o movimento

    de ultrapassagem entre a diferena soteriolgica existente entre a dualidade ilusria(tangvel) e a no-dualidade salvfica, libertadora (no-tangvel). Comecemos como que Dgen entende por prtica contnua:

    Devido prtica contnua h o sol, a lua e as estrelas, [...assim como]a grande terra e a vastido do espao. [...] Ver uma flor se abrindo ou umafolha caindo no presente momento ver plenamente o que a prtica contnua. No h nenhum polimento de espelho ou quebra de espelho que no sejaprtica contnua. 5

    Essa declarao nos parece muito estranha, ou seja, que a prtica seja fun-damental para qualquer ser seja ele um homem ou um rio, um espelho ou umamontanha, um barco ou uma rvore , e no um acontecimento exclusivo dohomem; que ele no seja o nico dentre todos os entes que tenha a capacidadede praticar. Para ns homens comuns e ocidentais, e mesmo dotados de certotraquejo no pensamento de Heidegger , isso soa quase escandaloso. Tal fato nosacena, porm, que apesar do pensamento de Heidegger no poder ser chamado deantropocntrico, no sentido de auto-referncia subjetiva, dificilmente ele abririamo da prtica como um acontecimento exclusivamente humano. Dgen, po-rm, no tem esse foco exclusivo; para ele, a prtica contnua pertence a todos os

    seres do universo. Tal pormenor significa para pensadores japoneses da Escola deKyoto como um Nishitani ou Masao Abe, um sinal inequvoco de um resquciode antropocentrismo presente no pensamento de Heidegger. Mas como podemoscompreender a prtica como pertencente a todos os seres? O Mestre Zen d apenasuma indicao sobre no que ele se apoia para fazer esse tipo de afirmao:

    Embora isso possa estar oculto para ns [...], a prtica contnua quenos conduziu at a existncia est presente em qualquer pensamento ou coisaindividual, os quais surgem devido s condies de coexistnciae (por isso)ns simplesmente no compreendemos que ns estamos atualmente fazendo

    prtica contnua. 6

    Para Dgen, a prtica contnua brota, por conseguinte, das condies dacoexistncia que, para ele, significa uma teia de interdependncia que faz com que

    5E.DGEN, Gyji. In: Shbgenz, pp.375-76.6Ibidem. p.375 grifo nosso.

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    todas as existncias de todos os seres sejam regidas por uma trama global, total,csmica. Em seu Uji(ser-tempo), o Mestre esclarece o porqu do surgimento dascondies da coexistncia, completando, assim, a sentena de seu Gyji, vista

    acima, dizendo: [...] e isso acontece porque, a partir da perspectiva da originaodependente (prattyasamutpda), h simplesmente prtica contnua. 7

    Esse o motivo, portanto, para Dgen incluir dentro da prtica todos osseres, ou seja, por ele ver uma identidade entre originao dependente e prticacontnua. E outras palavras, a origem de todo e qualquer acontecimento estcondicionada a um exerccio contnuo da teia csmica. Tudo o que , ou seja,tudo o que vem existncia fruto da prtica da coexistncia, enquanto tramade acontecimentos csmicos interdependentes. E, para continuar sendo o que se seja um homem ou uma montanha, seja um peixe ou um barco , precisoque haja uma entrega a essa trama, da qual cada um dos seres se originou e para

    o qual preciso praticar para manter-se assim, na condio de ser tal como se a sua taleidade (suchness/Soheit).

    Para ilustrar essa trama, Dgen d o seguinte exemplo: o peixe nada nagua; a gua para o peixe vida. [...por isso] se um peixe deixa a gua ele, ime-diatamente, perece8. Por essas palavras podemos constatar que a plenitude davida do peixe possibilitada por sua completa interpenetrao com a gua. Noh caminhos objetivamente pr-estabelecidos na gua para o peixe nadar porqueele no os estudaantecipadamente. Os caminhos surgem para o peixe ao praticaro nado; peixe e gua formam uma unidade no-dualstica que costuradapela

    prtica da natao. E quando essa unidade quebrada, a essncia do peixe, suapiscidade, desaparece. evidente que no sabemos como o peixe se exercita nessa teia csmica,

    nunca saberemos qual apostura corretaadotada pelo peixe para a sua prticacontnua. Mas h nessa constatao paradoxal um aceno da condio humanaque pode ser apreendida, talvez, pelas seguintes questes: ser que a exclusividadedo homem no estaria, ento, relacionada ao exerccio de uma prtica especifica-mente humana, pelo fato dele ser, dentre todos os seres, o nico que se esqueceuda teia csmica, que perdeu a memria de sua originao dependente, de suano-dualidade? E por esse esquecimento e perda lhe exigido um esforo difcil e

    contnuo para se entregar ao que originariamente ele e, assim, fazer o caminhode volta sua prpria casa? Se assim for, talvez possamos compreender um poucomais do porqu da insistncia de Dogen em relao prtica contnua, como senos quisesse dar a entender que a humanidade dualstica do homem fica muito

    7Ibidem.8E.DGEN. Genjokan. In: Shbgenz, p.138.

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    aqum de sua verdadeira realidade. Um homem assim um (quase) nada das reaispossibilidades de vida e liberdade humanas, um (quase)peixe mortoporque viveapartado da trama csmica primordial, distante e esquecido de sua fundamental

    unidade no-dualstica com o Todo.Qual seria, por conseguinte, a prtica contnua do homem, exclusivamentehumana, diferente da do peixe, como Caminho que disponibiliza metodicamenteo seu retorno a essa unidade no-dualstica? do que trataremos a seguir.

    Desapego e entrega na prtica meditativa

    Para o Zen-budismo, esse retorno do homem realizado mediante duasatitudes fundamentais que atuam conjuntamente formando um binmio:desapego-entrega. Tais atitudes so promotoras do movimento dakenosis, isto ,

    do esvaziamento de carter subjetivo e antropocntrico da existncia humana ou,na linguagem de Dgen, da perda do si mesmo, tal como mostrou a sua segundasentena vista anteriormente. Aqui tambm, para falar desse binmio atravs deuma linguagem mais filosfica, nos parece oportuno valer da ajuda das perspectivasde Eckhart e de Heidegger.

    Como sabemos, no interior da mstica eckhartiana, a Deidade o Uno, aMente ou a Corrente divina interpretada como pura simplicidade, fundo abism-tico, oculto e misterioso ou, ainda, como terra desrtica que transcende todos osnomes brota no fundo da alma (Grund der Seele). A Mente divina teria, entre-tanto, dois movimentos. O primeiro, o centrfugo, aquele que parte da unidade

    para a multiplicidade, seguindo a corrente de efluxo, de emanao e diferenciao,tanto para as pessoas da Trindade, quanto para as coisas criadas que, alm daquelaspresentes na natureza, englobariam tambm os sinais, as imagens, os smbolos,presentes de maneira singular para cada intelecto humano. Mas h tambm umsegundo movimento da Mente divina, o centrpeto, no qual a corrente segue osentido do influxo e isso significa que as criaturas e a alma do homem tm umaparticipao nesse processo de singularizao, sendo co-autoras e co-atualizadorasde um tornar-se cada vez mais o que se .

    Mas, para que se d tal acontecimento, h a necessidade de uma disposio

    do homem, denominada por Eckhart Gelassenheit, o deixar-ser, a serenidade que,por sua vez, se traduz em duas atitudes bsicas. A primeira negativa, que exigedo homem o esvaziamento de si mesmo o desprendimento (Abgeschiedenheit)da alma em relao a todas as criaturas, ou seja, deixar os entes irem, partirem(lassen-gehen). A segunda positiva, pois solicita do homem se soltar, abandonar-se a entrega (Hingabe) da alma Corrente divina, ou seja, deixar, permitir, deixarvir (lassen-kommen). O homem, por conseguinte, s poderia ser si mesmo, em seu

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    mais alto grau, livrando-se do apego das coisas como condio para se entregar Mente divina que o impeliria ao seu ser mais singular (hecceitas). Desapego eentrega seriam, desse modo, as duas atitudes centrais de mstica de Eckhart para

    realizar akenosisantropocntrica como condio sine qua nonpara o nascimentodo filho no fundo da alma, tal como mostra a conhecida sentena do mstico:estar vazio de toda a criatura estar cheio de Deus e estar cheio de toda criatura estar vazio de Deus9.

    No pensamento de Heidegger vemos tambm a presena desses dois mo-vimentos eckhartianos. Tomemos por exemplo, o carter essencial do homemtomado pelo filsofo como Dasein, isto , o homem no um ente encerradoem si mesmo, mas uma relao de co-pertena com o ser ou, mais propriamente,uma abertura ou uma clareira (Da), por meio da qual o ser (Sein) dos entes semanifesta, ganha presena. Ser homem , por conseguinte, ser abertura para os

    dois movimentos do ser: tanto acolher o movimento centrfugo do efluxo doser que se d na medida em que ele se desapegada aderncia dos entes enquantosimples presentidade; como tambm acolher movimento centrpeto do influxodo ser, que acontece na medida em que se entregaa convocao do ser para ser oque ele . Todavia, esses dois movimentos, centrfugo e centrpeto, so fruto docarter temporal que promove a abertura do Dasein, dotando o homem de umaexistncia eksttica expressa em sua raiz latinaex-sistere, cuja essncia a de serum ente que se sustenta (sistere) na condio de estar constantemente desalojadopara fora (ex) de si mesmo, nesta relao bitransitiva com o ser.

    evidente que o pensamento de D

    gen no tem essa estrutura especulativa,tpica do pensamento teolgico e filosfico ocidental, mas como em toda prticakentica, ocidental ou oriental, o desapego e a entrega tambm esto presentesna prtica contnua em Dgen. Elas constituiriam, por conseguinte, o Caminhoda prtica ao se articularem num continuumcujas extremidades, em ltima ins-tncia, representariam: de um lado, o desapego da dualidade que, medida quese aprofunda se desloca paulatinamente para o outro lado, para a entrega no--dualidade, ao vazio. A seguir, estaremos apresentando o deslocamento no interiordesse continuumentre desapego e entrega, com o intuito de deixar mais explcito oque dissemos anteriormente, qual seja, de que a prtica do Zen-Budismo se serve

    de um mtodo concreto para realizar o movimento de ultrapassagem.A etapa inicial da prtica meditativa fortemente marcada pela primeira

    extremidade do binmio, o desapego. Este ir exigir do praticante sua disposiopara um esforo sem esforo, um empenho para aderir proposta de abrir mo

    9 Mestre ECKHART, O livro da divina consolao e outros textos seletos, p.152.

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    de suas conexes cotidianas que colocam sua mente em perene estado de agita-o. Esse um dos aspectos iniciais da meditao que trata da postura correta docorpo, tais como o uso da almofada, o posicionamento das pernas, a coluna ereta,

    manter-se imvel, etc. , assim como manter a mente sem nenhum foco especfico,no a vinculando a nenhum pensamento em particular. O Zen-budismo entendeque realizar isso exige um esforo sem esforo, isto , no se trata de um esforopositivo, ativo, nem mesmo ativo-passivo, no sentido comum da palavra. Esseesforo da prtica diz que ela deve ser dotada de vigor, diligncia, persistncia,tenacidade e nunca algo que feito impondo a si mesmo [...] ou a outrem; [... ouseja,] a prtica nunca deve ser tentada por imposio10. Se ela for uma intervenovoluntariosa ou mesmo uma coero metdica, produzir no praticante um efeitocontrrio ao da concentrao, uma vez que

    Ficamos assim muito meticulosos e crticos porque as nossas ideias sobrea concentrao intensificam as nossas faculdades crticas. Mas essa faculdadediscriminativa aquilo que separa. Ela conduz segregao. A segregao porsua vez conduz inquietao e revolta. O que quer que tenha sido expulsoe rejeitado comea a dar o troco. Assim, uma experincia cujo objetivo resultar em clareza faz com que todos os obstculos sejam estimulados. 11

    Esses aspectos iniciais da prtica se propem, portanto, a criar condies parapoder aparecer no praticante um crescente estado de quietude que chamaremosde abertura para um terceiro estado de conscincia, desconhecido por ns, que

    fica entre ou alm de outros dois, os estados de viglia e de sono, conhecidos portodos ns.

    De um modo geral, a mente oscila entre dois estados bastante conhecidos: ode viglia e o de sono. Como todos sabem, o estado de viglia caracteriza-se por umaconstante inquietude, instabilidade e inconstncia dos pensamentos e sentimentos,uma vez que a mente est permanentemente sendo disputada por expectativas dofuturo ou por lembranas do passado. Ou seja, ou a mente est a todo o momentoantecipando situaes, acontecimentos, afligindo-se ou felicitando-se por elas; ou,ento, recordando eventos ou episdios do passado, culpando-se ou alegrando-sepor eles. Esse ininterrupto vai-e-vem de antecipaes ou recordaes isola a menteinteiramente dos acontecimentos do presente. Da uma brutal ausncia da menteno aqui-e-agora, naquilo que est ocorrendo neste determinado momento, fazendo

    10E. DGEN, Gyji. In: ShbJenz, p.374.11 A. SUCITTO, Samdhi puro deleite, p.1.

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    com que ela se desligue de nossos comportamentos e gestos atuais que se realizam,via de regra, de modo automtico e alienando-nos deles.

    Quando essa agitao do estado de viglia, porm, chega ao seu final de

    expediente que pode coincidir com o final do dia de trabalho, ou mesmo duranteo dia, quando estamos cansados ou esgotados, o passo seguinte comearmosnos dar conta de que os pensamentos tornam-se mais lentos, nossa capacidade deprestar ateno diminui. Em seguida comeamos a bocejar e a cochilar, a sentirnossas plpebras e nossa cabea pesarem, o que logo nos permite pensar que o sono

    j est a caminho. Nesse momento, se no me preparo oficialmente para dormir,corro o risco de minha cabea, sem controle, pender para o lado, recostando-a noespaldar do sof ou mesmo na parede e, ali mesmo, adormecer.

    O Zen-budismo entende que esses dois estados so os que acompanham atodos ns: crianas, adultos, idosos, independente de idade, raa ou credo. Em

    outras palavras, trata-se de algo profundamente enraizado em nosso modo deviver, isto , a mente ou est agitada e distrada do presente ou est amortecidapelo sono. Para o homem comum, por conseguinte, no existiria outro estadoalm desses dois, viglia e sono. Para o Zen, porm, existe um terceiro que podeser chamado de meditativo, e ele no nos dado naturalmente. Todavia, isso noquer dizer nunca possamos ter experimentado algo prximo do estado meditati-vo. Sem dvida, h momentos em nossa vida em que podemos gozar de grandecalma e que tudo nossa volta parece estar em seu devido lugar, fazendo com queem ns, por um lado, desaparea qualquer tipo de necessidade ou carncia e, por

    outro, brote um sentimento de profundo e relaxante bem estar. Mas para o Zeno estado meditativo mais do que isso e que para faz-lo acontecer necessrioum constante exerccio denominado por seus adeptos de Zazen. Este um aspectofundamental do Caminho, cujo propsito recuperar a mente de seu presentealienado ou sonolento, reconectando-nos com nossos comportamentos e gestosatuais, nos devolvendo, desse modo, para a intimidade dos acontecimentos domomento presente.

    Para tanto, o exerccio ao qual o praticante se submete deve criar paulatina-mente este terceiro estado da mente, o meditativo, como um novo espao abertosituado entre a viglia e o sono. Exerccio bastante difcil que todos os principiantes

    de meditao testemunham porque a mente, quando colocada na postura de me-ditao, procura reproduzir o seu tpico padro binrio de viglia-sono, isto , ouela quer continuar em sua agitao ou, caso contrrio, tragada pelo irresistvelsono. Como fazer com que a mente rompa com esses dois estados polares e inicieum terceiro, o meditativo?

    Para o Zen-budismo, o caminho para o estado meditativo da mente remontaaos tempos do Buda Shakyamuni que, tal como conta a histria, aps seis dias

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    ininterruptos sentado em meditao sob arvore Bodhi, alcanou a iluminao.Esse acontecimento exemplar est presente no Budismo em todas as suas tradiesposteriores tanto a antiga (Hinayana) quanta a posterior (Mahayana), presentes

    na ndia, Birmnia, China, Tibete, Coreia, Japo, etc. , que adotaram variaese procedimentos particulares em relao ao modo de realizar a meditao, masnenhuma delas abriu mo desse instrumento como mtodo para alcanar o ter-ceiro estado da mente. Mas como propriamente fazer acontecer isso por meio dameditao?

    O Zen sabe que no podemos simplesmente pedir mente para se aquietar.A estratgia para isso realizada por intermdio do corpo. Desse modo, as conhe-cidas instrues para a realizao da meditao no tocante ao estabelecimento dapostura correta do corpo tais como: o modo de sentar, o posicionamento daspernas, a coluna ereta, etc., o uso de acessrios como tapete, almofadas, etc., e

    ainda as condies favorveis do local de meditao como ventilao, iluminaoe, principalmente, silncio no so apenas normas dogmticas de uma doutrinaantiga, mas nascem de um profundo entendimento da importncia da posturado corpo para aquietar a mente. Mas como isso acontece?

    A estratgia entender que, se no posso aquietar diretamente a mente,posso, contudo, criar condies para aquietar e imobilizar o corpo. Para usaruma imagem, podemos dizer que o nico modo de aquietar a mente colocar ocorpo em uma espcie de casulo. Este, como sabemos, representa o estgio inter-medirio do processo da metamorfose, a crislida, entre os estgios de lagarta e

    de borboleta e que, aqui, serve de metfora para nosso entendimento da prticameditativa. O casulo seria, ento, uma imagem apropriada para a postura dameditao, no interior do qual o corpo seria colocado numa disposio em queso combinadas duas condies: imobilidade e relaxamento. Esse , de fato, umdos grandes segredos da meditao em que algo aparentemente difcil de manter,como a imobilidade o manter o corpo em uma postura ereta, pernas cruzadassobre uma almofada, etc., que com o passar do tempo, normalmente, gera dores econtraturas pode, ao mesmo tempo, combinar-se com relaxamento, desde que,evidentemente, o meditador esteja disposto a esse empenho. Ou seja,

    quando concordo conscientemente com a minha contratura, o que sepassa em mim assemelha-se a um fenmeno jamais presenciado na fisiologia:um msculo que relaxaria sem se alongar, que se descontrairia sem recuperarseu cumprimento anterior, que estaria, por conseguinte, ao mesmo tempo,encurtado e flexvel. 12

    12H.BENOIT,A doutrina suprema: segundo o pensamento Zen, p.160.

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    Essa estratgia cria condies para a mente se aquietar. Todavia enganosopensar que a mente que ganhou certa quietude representaria j,per se, o seu estadomeditativo. Muito ao contrrio, tal como vimos, da quietude ela salta para o sono,

    uma vez que ela interpreta que hora de dormir. a que entra o segundo empenho,alm do anterior, relativo imobilidade e ao relaxamento do corpo. Agora que ocorpo encontra-se encasulado, a mente parece querer seguir o exemplo do corpo.O empenho agora diz respeito a manter a mente com foco sem foco, isto , semum foco especfico, no a vinculando a nenhum pensamento em especial. Isso nosignifica que ela esteja proibida de pensar, ou seja, de se ligar a qualquer coisaou acontecimento. Ela no est proibida de nada, apenas lhe exigido o exercciode em nada focalizar, o que no incio, pelo menos, bastante difcil. A atitudesempre recomendada no brigar com a mente, mas apenas acompanh-la nassuas vinculaes provisrias com coisas e acontecimentos.

    No difcil imaginarmos o que seja a questo do foco, pois ele est presenteem vrios exemplos do cotidiano. Vemos o foco em toda atividade ou trabalhoque exija de seu executor a concentrao, palavra esta que os budistas denominamde samdhi. Assim o que observamos no comportamento do marceneiro quebate atentamente o prego em uma tbua, no atleta que se prepara para o salto devara ou ainda na ateno com que o concertista executa uma pea de Beethovenao piano. Concentrao, aqui, tem a ver com uma espcie de fuso entre o gestoe o instrumento que opera, tal como mostram as mos dos executores em seusrespectivos instrumentos nos exemplos acima: as mos que seguram o martelo, as

    mos que empunham a vara, as mos que tocam as teclas do piano. Os budistasdiriam que, sem dvida, essa uma forma de concentrao, de samdhi. Mas osamdhipropriamente dito ao qual se referem eles de uma outra espcie, poisno tem objeto, no tem instrumento ou coisa sobre o qual a ateno deve focar.Isso torna a prtica meditativa algo [...] muito mais difcil. Temos que prestarateno a este momento presente, totalidade do que est acontecendo exatamenteagora13 mas, ao mesmo tempo, nossa ateno plena, total, nada focaliza emparticular, nenhum acontecimento ou pensamento; o samdhiagora , propria-mente e em ltima instncia, concentrao em nada, no vazio ou, como dizemos hindus, no snyat14.

    13 C.J BECK, Sempre Zen: como introduzir a prtica do Zen em seu dia a dia, p. 25.14 Este termo-guia snscrito traduzido normalmente por vazio, vacuidade, nada ou nadidade absoluta. Emtorno dessa noo enigmtica que, no pensamento ocidental, possui certa proximidade com a noo plurvocade ser, mas inteiramente distante da noo simi lar do nada, interpretado como ausncia de ser ou como meronegativismo se estabeleceram e se solidificaram as experincias e escritos do Budismo no s indiano, mastambm o chins e o japons a partir, respectivamente, dos sculos V e XIII de nossa era. Alguns comentadores

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    Ao final de um perodo de tempo que, para os principiantes, pode noacontecer por meses, e para os mais experientes, aps alguns minutos , quandoo corpo se encontra relaxado e a respirao abdominal lenta e profunda, a mente,

    ento, se abre para o seu terceiro estado, o meditativo, cujo aspecto central ode estar imbuda de uma ateno plena, onde no mais est presente o esforopara aquiet-la, nem o desejo por pensar em algo. A partir desse momento, se ameditao for bem sucedida, d-se incio intensificao desse estado que comeaquando, finalmente, amente consente em entrar tambm no casulo e fazer com-panhia para o corpo15.

    E a, ento, algo extraordinrio acontece: a mente fica simplesmente assim,parada, sem nenhum tipo determinado de humor, nem alegre nem triste, masenvolta numa sensao de calma e quietude e, ao mesmo tempo, alerta e atenta,ampla e dilatada. Um acontecimento digno de nota a descoberta da dimenso

    absolutamente contingente dos fenmenos que brotam nesse estado meditativo.Isso se d quando tais fenmenos pensamentos, acontecimentos, necessidades,lembranas, antecipaes; alegres ou tristes, tranquilos ou aflitivos nos apresentama origem fortuita de onde brotam, o trao gratuito com que mostram sua exignciaou, ainda, a ausncia de consistncia ou substncia com que, inesperadamente,desaparecem. Esse momento do terceiro estado da mente representa um bom

    admitem ainda que o termo s

    nyat

    seja derivado de outro termo que significa di latar, sugerindo que aquiloque vazio e oco pode ser interpretado como desprendido, amplo, expandido, livre, dilatado.15 Vez por outra iremos fazer referncias pontuais sobre pesquisas neurolgicas sobre o crebro relativas prtica meditativa com o intuito de mostrar um modo de dizer, o da cincia, que pode esclarecer os aconte-cimentos presenciados pelos praticantes de meditao; nunca, porm, com o propsito de dar a palavra finalsobre eles, no sentido de que a cincia comprovou tais acontecimentos e que, a partir dessa chancela cientf ica,podem ser considerados verdicos. Os mestres da tradio indiana e budista sabem de ta is acontecimentos hsculos, para no dizer h milnios, e nunca precisaram de tais comprovaes para se sentir certificados emsuas prprias experincias e descobertas. Aps essa breve recomendao, falemos, ento, do discurso para leloda neurologia a respeito das correspondncias entre o estado meditativo da mente e estudos recentes sobreo crebro. Trata-se de que a constante repetio do ritual da meditao postura do corpo, cuidados com olocal da realizao, cuidados com a respirao, gestos de reverncia, empenho em se desligar dos estmulos doambiente, assim como dos pensamentos, etc. sobrecarrega o sistema lmbico do crebro que responsvel

    por gerenciar e armazenar informaes relativas ao intercmbio entre uma instncia interna (eu, si mesmo) eoutra externa (coisas, pessoas, situaes do entorno ou mundo). Tal sobrecarga dos r ituais de repetio acabapor inibir esse intercmbio entre essas duas instncias, provocando, desse modo, um relaxamento dessa reaassociativa, reduzindo as atividades desse contnuo comrcio ao qual o eu f ica inteiramente preso no esquemaestmulo-resposta. Libertar o eu desse e squema no interior do qual ele instigado permanentemente aresponder e a agir frente aos constantes estmulos do mundo que chegam at ele o liberta do sistema derecompensas do tipo desejo-averso. Da a importncia, por exemplo, de no reagir aos est mulos sensoriaisque surgem durante a meditao, na tentativa de intensifica r a inibio e o relaxamento da rea associativa (cf. D.QUINTERO, O ritual no Zen e o crebro, pp.1-3).

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    avano no deslocamento da etapa inicial da prtica meditativa, o desapego, queagora precisa intensificar.

    Tal intensificao acontece procurando sustentar essa ateno plena da cons-

    cincia, como acontece no caso do Zen, ou, ento, por aplicar a ateno plena nomomento presente em apenas uma coisa, a respirao, por exemplo, como prefereo Budismo Theravada. No segundo caso, no significa voltar a adotar novamenteum foco sobre um objeto. Trata-se, apenas, de acolher um foco provisrio queauxilie o aprofundamento da concentrao e que ir desaparecer no seu devidomomento. Esta estratgia de fixar a ateno em apenas algo especfico um cuidadopara se concentrar na unidade e no se perder na multiplicidade representada pelosinmeros apelos e estmulos diante dos quais a mente continuamente se submete.

    Assim, o praticante descobre que

    a diversidade da conscincia tal como ter seis telefones sobre a mesatocando ao mesmo tempo um fardo enorme [para a vida] e ao abrir modessa diversidade, permitindo um telefone s, uma linha privativa somentesobre a mesa, um alvio tamanho que gera prazer. O entendimento de quea diversidade um fardo crucial para capacitar uma pessoa para estabilizara ateno na respirao. 16

    Uma dificuldade bastante comum do praticante com pouca experincia querer controlar a respirao. Isso no s no ajuda como atrapalha por ser umaatitude voluntria, tornando a respirao artificial. O corpo no precisa de controles

    externos. Essa instncia interna, o si mesmo controlador tem que, aos poucos, irdesaparecendo, ficando em seu lugar apenas um gesto passivo de observao ao queacontece na ateno plena. Em outras palavras, preciso que tal instncia interna seenfraquea para descobrir que no mais um si mesmo que respira, mas a prpriarespirao que respira17. Quando essa ateno plena na respirao em seus doismovimentos de inspirao e de expirao entrar em concentrao profunda, opraticante poder ser capaz de manter-se atento a cada respirao, qualidade de

    16 A.BRAHMAVAMSO, O mtodo bsico de meditao, p.6.17 Vemos aqui uma surpreendente semelhana com o pensamento de Heidegger que afirma que no somosns que pensamos ou falamos, mas, ao contrrio, somos pensados e falados, pois so ambos, o pensamentoe a linguagem, que nos possui. Essa afirmao do filsofo s pode ser compreendida, porm, no horizontede seu importante tema de desconstruo do pensamento metafsico que tambm engloba a essncia dohomem moderno. Trata-se, portanto, da desconstruo da essncia do homem como subjectum, uma figuraautorreferente, autossuficiente e que se julga na posse de sua existncia, e a reconstruo de sua essncia comoDasein, uma f igura que sustentada por uma relao de copertena com o ser, suspenso sobre o nada de seufundamento, o que lhe impede de apoderar-se de sua existncia.

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    cada inspirao e expirao ao longo de duzentas ou trezentas respiraes seguidas,sem perder uma sequer e com facilidade.

    Nesse nvel de plena ateno ao momento presente, o foco na respirao

    desaparecer no porque o praticante assim o deseja, mas quando ele alcanaro samdhiprofundo. E, quando isso acontecer, o que resta apenas uma menteinteiramente entregue e abandonada a um estado de grande paz e quietude. nesseponto que o si mesmo controlador comea a desaparecer. E, como consequncia, ashabituais interpretaes de nossa mente dualista eu/no-eu, eu/mundo, dentro/fora, etc. no so mais perceptveis18.

    Alquimia do desapego: micro-transformaes sucessivas

    evidente que esse samdhiprofundo no alcanado por um meditadorprincipiante. A exposio das duas atitudes bsicas da meditao, desapego eentrega, que aqui desenvolvida em poucos pargrafos, corresponde, na verdade,em nvel de vivncia real, a meses ou anos de prtica. Todavia, as experinciasvividas pelo praticante durante esse tempo de exerccio no devem ficar simples-mente adstritas ao zend (sala de meditao), mas que elas possam acompanharo praticante em seu cotidiano e sua vida.

    Da, o Zen-budismo de Dgen falar em seu Gyji, tal como vimos ante-riormente, da atitude de realizar a prtica e ao mesmo tempo manter-se nela, detal forma que a prtica acontea de uma maneira cclica, sem interrupo19.

    O cclico, aqui, diz respeito ao fato de que a meditao deve ser uma atitudedo praticante que acontece tanto dentro do zend (horrios, postura, tempo daprtica), quanto fora dele, procurando manter-se no mesmo grau de desapego ede entrega alcanado no seu interior, sustentando-se, desse modo, ao longo dasatividades do dia; por outro lado, o movimento inverso tambm deve acontecer,isto , do cotidiano para a sala de meditao. Esse carter cclico da meditaodividido entre zend e cotidiano, realizado de modo ininterrupto, o que, porconseguinte, Dgen entende por prtica contnua.

    18 Aqui tambm as pesquisas neurolgicas vm ilustrar essa experincia do enfraquecimento do eu controlador.Como vimos em nota anterior, o ritual de repetio sobrecarrega o sistema lmbico do crebro, inibindo ointercmbio entre as instncias interna (eu, si mesmo) e externa (coisas, pessoas, mundo), provocando, dessemodo, um relaxamento dessa rea associativa. Quando, porm, a concentrao alcanada na meditao chegaa nveis bastante profundos d-se uma espcie de neutralizao da rea associativa, o que significa, em nveisexperienciais, a desconstruo da ideia de indivduo ou de um eu como elemento isolado ou separado de umtodo. Por isso, os mestres budistas se referem experincia do samdhicomo ruptura da mente discrimina-tria, dualista.19 E.DGEN, Gyji. In: Shbgenz, p.374.

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    Manter-se no mesmo grau de desapego e entrega dentro e fora do zendno almejar outra coisa, na meditao, seno manter-se em ateno plena e issosignifica esquecer o menos possvel de que todo o nosso esforo sem esforo nela

    empregada deve estar na busca de posturas bsicas de natureza kentica ou apof-tica, tais como:[...] abrir mo das coisas, ateno sem objeto, foco no vazio/nada,nada impor ao nosso corpo20. Tais atitudes podem ser consideradas como gestosde descontrao que provocam micro desmantelamentos do si mesmo separadoe controlador que promovem o esquecer-se de si mesmo da segunda sentenade Dgen, vista anteriormente preparando, assim, o seu grande e derradeirodesmantelamento que coincide com o despertar, o satori.

    medida que a prtica vai ganhando aprofundamento nessa perspectiva dodesapego do eu em relao s coisas que, em ltima instncia, significa o abrir mode si mesmo, ocorre um esvaziamento das imagens consoladoras que sempre foram

    nutridas como forma de manuteno e consolidao de uma identidade comocentro, separada do mundo: imagem de pai, de me, de amigo, de filho, de profis-sional, etc. Todas essas imagens, que podem ser consideradas como papis sociais,comportamentos carregados de expectativas de pessoas ou grupos de referncia(pais, colegas, escola, igreja, etc.) so, geralmente, tomadas em sua perspectivaidealizante e acabada, propiciando ao eu se sentir aceito, valorizado e confirmadopor esse mundo exterior, enquanto algum capaz, competente, encerrado em simesmo, distinto de tudo e de todos. O esvaziamento de tais imagens no significaque, doravante, desaparecero tais papis sociais, mas a relativizao de seu valor

    e sua importncia e, medida que se aprofunda na prtica, tais imagens perdemseu poder de consolar e consolidar um eu, enfraquecendo, dessa maneira, suaautointerpretao como uma entidade separada do mundo.

    No preciso estar desperto ou iluminado para que o meditador percebapequenas mudanas aqui e ali no seu modo de ser. Elas vo desde se sentir me-nos ansioso ou mais tolerante diante de situaes que geram desconforto; menosreativo ou mais compreensivo em face de acontecimentos inesperados ou, ainda,menos triste ou mais humilde diante de fracassos. A essas pequenas mudanaspoder-se-ia acrescentar ainda outras, como o aparecimento de uma modstia nolugar do amor prprio, uma despreocupao com as opinies alheias no lugar da

    antiga e constante necessidade de autoafirmao. Como compreender essas mu-danas? Qual a ligao entre essas mudanas e o aprofundamento da concentraoalcanada na meditao?

    20 H.BENOIT,A doutrina suprema: segundo o pensamento Zen, pp.224-25.

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    Sob a tica do discurso neurolgico, trata-se do enfraquecimento do inter-cmbio entre as supostas instncias interna (eu, si mesmo) e externa (coisas, pes-soas, situaes do entorno ou mundo), tal como vimos em nota anterior. No nvel

    existencial, dito de uma maneira mais filosfica ou ontolgica ou seja, no nvel denossa vivncia, tal como podemos depreender da essncia de nosso modo de ser ,essas mudanas se do pela reduo de uma constante tenso que trazemos em nsmesmos como expresso do perene conflito entre a nossa contnua necessidade dedar consistncia e permanncia s coisas e nossa prpria existncia, por um lado,e o se dar conta do inexorvel horizonte de impermanncia do tempo, no interiordo qual as coisas e nossa existncia acham-se indelevelmente subjugados, por outro.

    Reduzir o conflito o mesmo que reduzir a recusa de nossa condio on-tolgica, qual seja, a de sermos criaturas temporais. Dito em outras palavras, spodemos abrir mo de querer dar consistncia s coisas, ao mundo e a ns mesmos

    ou seja, de atribuir menos densidade aos acontecimentos, libertando-nos, assim,gradativamente, de seu ilusrio carter objetivo, substancial e reificante porintermdio de uma modificao na vivncia do tempo, isto , pela aceitao desua dimenso mais originria e impermanente.

    Ora, a reduo do conflito entre substnciaversusno-substncia ou entrepermanncia versus impermanncia produz uma correspondente reduo coma experincia na angstia. Trata-se da descoberta de que a angstia tem umaconexo direta com a vivncia do tempo; melhor, diz respeito a uma relao malcompreendida, receosa, da vivncia do tempo. Trata-se, em ltima instncia, de

    um conflito ilusrio que s se mantm como conflito por se querer manter as coi-sas e o si mesmo dentro de um tempo ilusrio que constantemente desmentidopela realidade. Entretanto, a reduo da angstia no o nico acontecimento queaparece com uma compreenso mais originria da questo do tempo, mas a prpriaexperincia do tempo parece modificar.

    De fato, inmeros so os relatos na tradio do Zen de que o praticante,ao alcanar um profundo estado de desapego, relaxa e reduz ao extremo o mo-vimento serial e contnuo do tempo, ficando, no seu lugar, a experincia de umtempo presente dilatado, pleno, abarcador, ao qual o Zen denomina de presenteabsoluto, no interior do qual so tambm includos os modos temporais do passado

    e do futuro. A experincia apreendida pelo meditador a de que o tempo para,ficando apenas um presente em que a presso do futuro bastante reduzida; dao aparecimento da ateno plena, total, presena dos acontecimentos presentes.

    Presente aqui, evidentemente, nada mais conserva, porm, do presente es-ttico separado do passado e do futuro, mas a apreenso de uma presena em quereal se mostra em um movimento totalizante que inclui o prprio meditador e, nointerior do qual, evidentemente, no so desconsideradas as mudanas particulares

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    do tempo, presente nas coisas e nos eventos uma vez que nascem, crescem emorrem dentro de um tempo contnuo. Todavia, a despeito de que essas mudanasparticulares possam ser regidas pelo tempo serial, o que fica de mais significativo

    na experincia do meditador que elas so primordialmente abarcadas por umpresente absoluto, uma vez que todo o universo encontra-se imbricado em umarelao total de no-dualidade e de impermanncia, fazendo com que desapareatodo e qualquer movimento relativo ou parcial, desligado do todo, tal como habitualmente interpretado por uma mente dualista.

    Permitam-me, aqui, fazer uma pequena digresso procurando fazer algumasconexes desses temas com o pensamento de Heidegger. de se supor, evidente-mente, que nem o filsofo nem os heideggerianos teriam dificuldade alguma eminterpretar como metafsica a maneira com que esto fortemente imbricadas asquestes do desapego profundo, o alvio da angstia e a modificao da experincia

    do tempo, tal como entende o Zen-budismo. O motivo para isso reside no fato deque o pensamento de Heidegger rompe com o princpio de realidade, sobre o qualest alicerado todo o pensamento metafsico, para colocar a sua analtica sobre oprincpio de possibilidade. De fato, j na introduo de Sein und Zeit, Heideggerindica que ter de colocar toda a sua analtica sob um princpio mais originrio queo da metafsica, ao afirmar que mais elevada do que a realidade (Wirklichkeit) esta possibilidade (Mglichkeit)21, por querer fundament-la a partir de uma inter-pretao originria do tempo como horizonte de manifestao e de retrao doser contra a fixidez do princpio de realidade da metafsica, tomado no horizonte

    de um tempo objetivado, apreendido como mera presentidade (Vorhandenheit).Ser homem, em sua essncia (Dasein), portanto, para alm de qualquersubstrato, ser uma relao temporal ex-ttica de abertura ao ser, por meio daqual o ser tambm se revela ao Dasein, uma vez que a existncia do homem nopode ser interpretada maneira da existncia de outros entes, tomada comosimples presena real. De fato, essa nossa aproximao nos diz que o fenmenoda existncia um contnuo superar de seu estado atual (presente) para os seusoutros horizontes temporais seu advir (futuro) e o seu ter sido (passado) quese mostram, ao mesmo tempo, tanto na forma de uma ausncia como na de umapresena possvel. O possvel, por conseguinte, seria precisamente esse horizonte

    de dupla transcendncia, no interior do qual a existncia torna-se histrica, isto, na medida em que acolhe o que nasce e se manifesta desse fundo sem-fundotemporalizante de seu poder-ser (futuro), recuperando o seu ter sido (passado).

    21 M.HEIDEGGER, Sein und Zeit, pp.51-52; trad. bras., parte I, p.69.

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    Ora, esse privilgio assumido por Heidegger do possvel sobre o real umadas mais notveis contribuies de Ser e Tempo, uma vez que provoca um deslo-camento no horizonte de interpretao do tempo, com profundas consequncias

    para uma nova compreenso da existncia humana, na medida em que ela passaagora a ser sustentada por um tempo provisrio, finito, contingente. A importnciadesse deslocamento do possvel sobre o real, segundo nosso entendimento e,supomos, com razovel consentimento dos pensadores japoneses da Escola deKyoto e de estudiosos do Zen-Budismo e de Heidegger , alcanaria at mesmoZen-budismo, na medida em que este poderia se beneficiar das noes e catego-rias heideggerianas para repensar os fundamentos ontolgicos o seu primordialproblema do tempo como impermanncia. Alm disso, podemos tambm afir-mar que, com tais noes e categorias, o Zen pode ser mais instrumentado parapoder trazer discursividade grande parte de suas experincias relativas ao vazio,

    capacitando-o com uma linguagem mais rica e penetrante, contribuindo, dessemodo, para o alargamento da compreenso de tais experincias.

    Todavia, as convergncias entre o Zen e Heidegger parecem parar por aqui.E essa ruptura brusca acontece porque a pedra angular do deslocamento do prin-cpio de realidade para o princpio de possibilidade em Heidegger est localizadano carter futural da existncia do homem, no seu ser-para-a-morte tomadono seu quntuplo aspecto finito do morrer humano, ou seja, a morte a possi-bilidade mais prpria, irreferente, certa e, como tal, indeterminada e insuperveldo Dasein22. Com isso, toda a existncia humana acha-se continuamente tensa,

    lanada e projetada por esse carter futural do Dasein, o seu ser-para-a-morte,transformando-a sempre em uma possibilidade que vir, prometida a um depois,disposta na forma de um projeto (Entwurf), de um poder-ser (Seinknnen) ouainda de um ter que ser (zuseinhaben).

    Nesse horizonte, extremamente polarizado por um tempo futural, tanto parao filsofo quanto para os heideggerianos, estaria bloqueado qualquer caminhopara incluir um possvel presente pleno, absoluto, tal como afirma o Zen-budismo.Na verdade, a noo de um tal presente seria por eles interpretada, tout court,como uma quimera, como um sonho metafsico. Essa uma divergncia de pesoentre Heidegger e o Zen-budismo, e os pensadores japoneses da Escola de Kyoto

    identificam o motivo de tal divergncia na maneira de Heidegger interpretarduas noes fundamentais ligadas ao problema do tempo: a questo do nada e aquesto da morte.

    22Ibid. p.343; trad. bras., parte II, p. 41.

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    Para Nishitani, Heidegger ainda conserva traos de subjetividade em suanoo de nada. Obviamente, ele reconhece que Heidegger d um passo alm deNietzsche e de Sartre ao falar do carter infundado (Grundlosigkeit) da existncia

    ou do abismo da nadidade ou, ainda, quando fala que a existncia humana estsuspensa sobre o nada tudo isso j nos fala muito e nos mostra que h algomais que existncia ou distinto dela23. Todavia, mesmo com esse passo alm, ofilsofo japons v que, em Heidegger, traos da representao do nada comoalguma coisa que [...] ainda permanecem24.

    Masao Abe vem reforar essa posio de Nishitani ao dizer que Heidegger seaproxima muito do Budismo ao tratar do problema da morte e por ser o primeiropensador na tradio ocidental a pensar a morte como morte, os mortais comocapazes da morte e, ainda, a morte como santurio do nada25. Mas, apesar dessefeito indito de introduzir a questo do nada por meio de sua interpretao da

    morte como morte, Abe diz que esse nada algo que fica atrs de uma paredechamada morte, de forma que a morte entendida como estando do lado de l,no aqui e agora, imediatamente26. Nesse sentido, no entender de Abe, na medidaem que a interpretao heideggeriana do problema da morte est sob o horizontetranscendental kantiano ou seja, interpretada enquanto trao antecipador doconhecimento , restaria ainda em Heidegger, na medida em que entre ns e amorte permeia um certo c e um l, um dado teor de objetificao e representaona sua interpretao de ambos os problemas: o da morte e o do nada.

    Para ambos os pensadores japoneses, esse entendimento de Heidegger do

    problema do nada como alguma coisa que e o da morte como estando do ladode l e no aqui e agora , o locusde onde se depreende que o trao apoftico,nadificador, do pensamento do filsofo se movimenta no interior de um horizontede carter relativo, o que impediria de ele ter acesso ao nada ou o vazio ( sunyata)e morte real do si mesmo (Grande Morte), ambos situados em um horizontede carter absoluto, tal como so compreendidos pelo Zen-budismo. Isso nosaponta, por conseguinte, para o fato de que mesmo que ambas as interpretaesdo problema originrio do tempo finitude em Heidegger e impermanncia no

    23 K.NISHITANI, Religion and Nothingness, p.96.24Ibidem grifo nosso. Essa uma questo que os leitores de Heidegger acham controversa. Eles acreditamque Nishitani possa ter alguma razo em se tratando do primeiro Heidegger, mas acham difcil de aceitar quea partir da conferncia de 1929, O que metafsica? na qual j trabalha a questo da angstia e do nada emum registro bem diferente do de um Ser e tempo(1927) e, especialmente nas obras tardias de sua segunda fa sede pensamento, que Heidegger mantenha ainda traos de representao da subjetividade. Cf. F.DALLMAYR,Nothingness and snyat: a comparison of Heidegger and Nishitani. In: Philosophy East and West, pp.37-48.25 M.ABE,A study of Dgen, p.110.26Ibid., p.119.

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    Zen-budismo estejam sob uma compreenso no discursiva ou no terica, masviva ou existencial do tempo, elas, todavia, guardam entre si uma sutil distncia.Essa distncia poderia expressa ao se tomar o tempo impermanente no Zen como

    uma espcie de radicalizao do tempo finito em Heidegger.Entretanto, por essa diferena sutil na interpretao do tempo originrioque aparecem dois aspectos limitantes no pensamento de Heidegger em relao aoZen-budismo. O primeiro faz com que Heidegger seja impedido deter acesso aomodo como o Zen experimenta o tempo como presente absoluto e a morte comoGrande Morte. O segundo limite, segundo nosso entendimento, diz respeito aofato de apenas ao Zen estar reservado o acesso ao mbito da experincia numinosaao qual se referem os msticos das diferentes tradies; acesso esse bloqueado,porm, ao pensamento heideggeriano que, mesmo com a ajuda do pensamentodo sagrado em Hlderlin, pode chegar apenas nas circunvizinhanas do portal

    do numinoso sem, contudo, penetr-lo.E para esse portal do numinoso que voltamos agora nossa ateno, reto-

    mando, assim, o eixo de nossa exposio, apresentando o entendimento da GrandeMorte, segundo o Zen-budismo, por meio da qual dar-se-ia a ultrapassagem dadualidade para a no-dualidade, acontecimento este em que a atitude do desapegocederia, agora, lugar para a da entrega. Esta exigir do praticante a continuidadede sua disposio para o esforo sem esforo, no mais, porm, relativo ao seuempenho em abrir mo de sua aderncia s coisas de seu entorno cotidiano, mas nasua entrega a isso que aparece agora em sua mente alerta e dilatada: o nada, o vazio.

    Alquimia da entrega: saltando do topo do mastro de cem ps

    As etapas avanadas do samdhiprofundo so aquelas em que a segundaatitude bsica da meditao, a entrega, aos poucos substitui ou radicaliza a primeiraatitude, o desapego. O que a resta no seno uma mente inteiramente entregue eabandonada a um estado de grande paz e quietude. A essa etapa correspondem asexperincias das quais nos ocupamos anteriormente, como a reduo do sentimentoda angstia, uma presso menor do futuro, um presente mais dilatado, etc. Issopermite ao meditador sentir que a ateno e a concentrao tornam-se to fortesque o corao e a mente ficam extraordinariamente claros e luminosos. Todos ospoderes e fatores de iluminao brotam de modo espontneo: xtase, energia, clarainvestigao, calma, concentrao, introviso, equanimidade27. No raro essasexperincias fazerem o meditador se sentir como um sbio distrado, um feliz semmotivo; mas, por vezes, elas tambm provocam um sentimento ambguo, uma vez

    27 J.KORNFIELD, Um caminho com o corao, p.142.

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    que d a ele a impresso de estar vivendo num palcio de cristal, transparente,vivificante, enaltecedor e rgio e, ao mesmo tempo, [...fazem-no sentir] como queum idiota, um imbecil28.

    comum os praticantes nesse estgio acreditarem que alcanaram a ilumi-nao. No nada de errado em estar extasiado por essas descobertas e experinciasincomuns. O problema acreditar que elas significam o final do Caminho, poisa correm um srio risco de ficar imobilizados e seduzidos por elas e, com esseapego, acabar fortalecendo ainda mais a identidade de um si mesmo que despertoe livre, diferente dos outros. Por isso os Mestres denominam esse estado de pro-funda paz, clareza e alegria de pseudonirvana. E eles so decisivos em aconselharos praticantes a deixarem essas bem-aventuranas; no por serem falsas, mas porno significarem a ultrapassagem para a no-dualidade.

    H outra experincia, talvez a mais importante do Caminho, que precisa ser

    enfrentada. Trata-se do si mesmo controlador, que comea a desmantelar e queprecisa desaparecer a Grande Morte. Esse um momento de grande paradoxoporque o praticante vive picos altos e baixos que podem ser tomados como verda-deiros obstculos ao passo final. Esses dois obstculos podem ser entendidos como

    exultao e temor. A exultao ficar excitado. Essa reao tem que sersubjugada dando lugar absoluta passividade. O obstculo mais provvel,no entanto, o temor. O medo surge com o reconhecimento de que algoter que ser deixado para trs Voc! O fazedor. A volio est congelada eisso parecer assustador para o iniciante. Nunca antes, em toda a sua vida,

    voc teve a experincia de estar to desprovido de controle e ainda assimcom to plena conscincia. O temor provm do medo de renunciar a algoto fundamentalmente pessoal como a volio29.

    Na verdade, esse temor diz respeito aproximao da realizao da segundasentena de Dgen, vista anteriormente, aprender o Caminho de si mesmo esquecer-se de si mesmo. Isso o assustador, renunciar a algo to conhecido e toconstitutivo de uma identidade que trazemos desde o nascimento. E o assombrosodessa experincia ter que dar de frente com algo do qual sempre suspeitamos,mas, ao mesmo tempo, sempre fugimos em face da angstia despertada em ns.

    Dessa vez no haver sada; no cederemos a nenhuma rota de fuga. H, ento,porque ter vertigem.

    28H.BENOIT,A doutrina suprema: segundo o pensamento Zen, p.248.29A.BRAHMAVAMSO, O mtodo bsico de meditao, p.11.

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    Na verdade, a Grande Morte tem incio no mais ntimo de ns mesmos,que nasce da dvida em relao ao nosso prprio ser que, em ltima instncia, a responsvel por nossa contnua inquietao e angstia. Trata-se do enigma

    que somos para ns mesmos, uma vez que no somos constitudos de naturezasubstancial e compacta, como sempre assim desejamos, mas, ao contrrio, esta-mos constantemente declinando de nosso prprio ser na medida em que estamosdeslizando permanentemente no tempo impermanente. Sempre eu soube disso;sempre tive algum nvel de conscincia dessa dvida ontolgica, ou seja,

    embora eu no o perceba frequentemente a pergunta ser que eu sou? (ela) est por trs de todas as minhas tentativas; eu busco uma confirmaodefinitiva do meu ser em tudo que procuro. Enquanto essa questo metafsicaestiver em mim identificada com o problema do meu sucesso temporal, [...] a

    angstia estar presente em mim devido a minha limitao temporal; pois apergunta assim proposta est sempre sujeita a receber uma resposta negativa30.

    preciso, por conseguinte, abandonar tudo, at mesmo os frutos alcanadosem anos de prtica, e nos abrirmos para o inapreensvel, para aquilo que est almde toda substncia e permanncia, alm de toda identidade e dualidade. Essaabertura indicaria os passos que conduzem ao ltimo ato da atitude bsica doCaminho a entrega suprema a isso, s coisas como so; assim mesmo, tal comoso: sua taleidade (suchness/Soheit).

    Nessa entrega suprema deve o meditador fazer a experincia da dissoluo

    e morte de seu prprio si mesmo. Para Nishitani, essa experincia [...] representano s o pice da dvida do eu, mas tambm o ponto de sua extino em que o eudeixa de ser31. Para tanto, porm, ele precisa fazer a travessia da Noite Escura,expresso do domnio da mstica cunhada por So Joo da Cruz. Trata-se de umperodo de sua vida em que dever penetrar, sem subterfgios, em um mbito daexistncia em que coloca em questo, perigo, risco e morte, tudo o que sabemosa respeito de nossa identidade e de nossa vida.

    A vida comea a parecer-se com a areia movedia. Tudo o que olhamosou sentimos est se dissolvendo. Nesse estgio, nada nossa volta parece

    slido ou confivel. Em todos os nveis, nossa conscincia entra em sintoniacom concluses e morte. Percebemos o final das conversas, da msica, dos

    30 H.BENOIT,A doutrina suprema: segundo o pensamento Zen, p.247.31 K.NISHITANI, Religion and Nothingness, p.21.

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    encontros, dos dias, das sensaes do corpo, num nvel celular impressionante.Sentimos, momento a momento, a dissoluo da vida32.

    Nesse perodo o meditador nunca esteve to prximo daquilo que semprecontornou e evitou. Desse mbito carregado de assombro, ele testemunha osofrimento que constitutivo da vida: nossas perdas e enganos, os esforos paradisfarar nossas tristezas ou ainda a conscincia brutal de nossa impotncia emgarantir a continuidade s coisas que amamos. Tudo o que conhecemos ou desco-nhecemos as coisas vivas e no vivas, a nossa existncia, o universo pertence aogrande movimento da impermanncia, a essa grande roda de nascimento e morte.Nesse perodo, a manuteno da prtica pelo meditador um trabalho rduo que,em muitos casos, s consegue ter prosseguimento na presena de um Mestre. este que infundir no discpulo a necessria fora e confiana para ir em frente,

    relaxado e com ateno plena. O que, na verdade, o Mestre pede ao discpulo que ele, em uma ltima e derradeira entrega, salte, dando um passo alm dotopo do mastro de cem ps33 penetrando, desse modo, no domnio da morte,para de l ressurgir desperto.

    Dgen apresenta uma sentena em que ele apresenta motivos encorajadorespara o discpulo dar esse salto: Voc aprenderia [] o passo relutante que voltainteriormente sua luz para iluminar seu si mesmo. Corpo e mente se afastam gra-dualmente e sua face original ser manifestada34. Shizuteru Ueda, ao comentar apassagem do stimo para o oitavo quadro da conhecida histria Zen denominadaO boi e seu pastor ilustrando o momento em que ambos, o boi e o pastor,desaparecem no vazio absoluto (nyat) , diz:

    Para penetrar no verdadeiro si mesmo que corresponde perdaincondicional de si mesmo , o homem deve deixar completamente todasas experincias e conhecimentos religiosos adquiridos, tornar seu si mesmo,como tambm o do Buda (interior), inteiramente livres e, de uma vez portodas, saltar no nada puro, ou seja, no Grande Morrer, como se diz no Zen--budismo. 35

    32J.KORNFIELD, Um caminho com o corao, p.144.33 M.ABE,A study of Dgen, p.143.34E.DGEN, Fukanzazengi and Shbgenz zazengi. In:Shbgenz, p. 122.35 S.UEDA, Das absolute Nichts im Zen, bei Eckhart und bei Nietzsche. In: Rysuke Ohashi (Hrsg.), DiePhilosophie der Kyto-Schule, p. 473. Diferentemente do morrer do Daseinheideggeriano tomado em seucarter futura l de ser-para-a-morte, transformando-o sempre em uma possibilidade certa que vir, mas apenasenquanto o acontecimento derradeiroda vida , o Grande Morrer , de fato, um morrer atual do si-mesmodualstico, separado da trama do Todo, um morrer antes da morte, tal como entende o Zen-Budismo.

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    Sobre essa perda incondicional de si mesmo representada por meio dametfora do salto do mastro de cem metros que exige do meditador a perseveranaem sua prtica e a confiana em seu Mestre , existe tambm outra metfora do

    Zen, que diz que sentar-se diante da parede em Zazen o mesmo que limpar,limpar, limpar, a parede por muito tempo. Os primeiros lampejos da iluminaoaparecem um dia em que a parede se torna um vidro e pela transparncia se vcoisas que esto do lado de fora do zend. preciso continuar a limpar, pois, casocontrrio, o vidro volta a se tornar parede. Caso o praticante continue a limpar,um dia o vidro, de repente, se estilhaa e, a, ele envolvido imediata e direta-mente com as coisas e os mbitos de dentro e de fora do zenddesaparecem: ailuminao. O momento inesperado em que se dar o estilhaamento do vidro algo envolto em mistrio, que sempre se mostra de forma fortuita ou contingentenas narrativas Zen, sempre muito singulares para cada despertar: o toque de um

    sino ou a batida de uma porta, a repreenso enrgica do Mestre ou o barulho deuma tigela se partindo no cho, etc.

    Tais eventos, que sempre tem algo de natureza tangvel, concreta e at mesmobanal, parecem desempenhar um papel semelhante ao de um gatilho ou de umacentelha, ou seja, tm a funo de disparar um acontecimento cujas condiespara o seu aparecimento estariam perfeitamente entrelaadas, espera somente deapenas mais uma nica condio. Da seu carter abrupto, repentino. No mbitoda meditao, essas perfeitas condies de entrelaamento so fornecidas no estadode samdhi, isto , quando o meditador alcanou um nvel bastante profundo de

    concentrao, de desprendimento e de entrega ao nada absoluto (

    nyat

    ). Noparece fazer sentido dizer que a centelha disparadora algo exterior ao meditador,uma vez que, nesse estado, as noes categoriais dualistas do tipo interior e exterior

    j ficaram para trs e em seu lugar se encontram Si-mesmo/No-si-mesmo ou Eu/No-eu conectados em completa interpenetrao no-dualista, de tal forma quepor trs do objeto disparador

    existe uma nica percepo que os liga. No Universo, tudo energiavibratria. A percepo do objeto produzida por uma combinao unitivadas vibraes do objeto e de minhas prprias vibraes. 36

    Mesmo que no caiba mais aqui fazer qualquer meno discursiva, filosficaou especulativa, difcil no se lembrar do encontro intencional entre conscinciae objeto, presente no conceito de intencionalidade em Husserl e radicalizado, pos-teriormente, no de ser-no-mundo em Heidegger. De fato, falar em combinao

    36 H.BENOIT,A doutrina suprema: segundo o pensamento Zen, p.249.

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    unitiva de vibraes para dizer que o acontecimento que dispara no est nem nomeditador nem no Universo, mas em ambos, parece ser uma expresso feliz paraapreender aquilo que esses pensadores queriam dizer por meio de suas noes de

    vida antipredicativa (Husserl) ou existncia pr-ontolgica (Heidegger). Todavia,o que se daria entre o meditador e o Universo, por meio do objeto disparador,parece levar esse encontro intencional a um supremo vrtice que possibilitaria aomeditador no apenas confirmar discursivamente o que tais noes fenomenol-gicas afirmam, mas tambm v-las, viv-las, a um ponto tal que se tornariampalpveis, vibrteis ou em carne e osso expresso que Husserl gostava de em-pregar para se referir ao carter apodtico da experincia.

    Todavia, poder dizer que o meditador pode viver imediata e diretamente oque os pensadores disseram indiretamente por meio de noes fenomenolgicas, evidentemente, apenas uma forma de trazer discursividade um pouco daquilo

    que ele experimenta do inefvel. Inefvel este que surge aps a Grande Morte dosi-mesmo separado e que , paradoxalmente, tanto um acontecimento assombrosoquanto a transmutao em seu oposto, a Grande Vida, uma vez que o si-mesmo/Universo engendram uma dana que no mais conhece a dualidade. Esse si-mesmo,agora transformado, pode finalmente estar junto, pertencer, no-dualidade, taleidade das coisas, ou seja, ao jeito como elas so, assim mesmo, tal como soem sua totalidade, no interior da qual se acham includas todas as oposies:luz/sombra, alegria/horror, tudo/nada. Essa experincia da ultrapassagem paraa no-dualidade de que fala o Zen-budismo est presente, tambm, em outras

    correntes budistas como a Theravada e a Tibetana, bem como em outras tradiesespirituais como no hindusmo Advaita e na mstica crist. De fato, todas elas sereferem com nomes distintos a essa conscincia que

    se assemelha ao olho de Deus que v a criao e destruio do mundo,a luz e a sombra com um corao que tudo engloba, [. . . porque ele] tudo.Dentro dessa perspectiva, vemos que nada somos e que somos tudo. A partirdesse ponto de equilbrio, discernimos o que significa estar no mundo, masno nos prendemos a nada no que nele existe. 37

    Todavia, preciso retornar. O despertar no um estado permanente. Comoqualquer escalada em uma grande montanha, aps todos os acontecimentos es-tonteantes e incomuns pertinentes ao sucesso da experincia, preciso descer. Nocaso do meditador desperto, imprescindvel voltar ao cotidiano, ao mundo dadualidade, mas a experincia da no-dualidade deixar nele uma marca indelvel

    37J.KORNFIELD, Um caminho com o corao, p.146.

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    que, doravante, o afetar por toda a sua existncia na forma de um dj vuquenunca mais poder afast-lo da experincia de se ter percebido em um todo no--dual com o Universo. Essa marca o colocar em um estado de constante ateno

    em suas atividades simples e rotineiras do dia a dia, protegendo-o de seus antigosapegos, colocando-o em um estado de constante desprendimento de categorias,eventos e coisas dualsticas que nossas percepes e intelecto criam38. Para tanto,a prtica da meditao deve continuar, pois ser ela que propiciar ao meditadordesperto a plena ateno e a proteo contra as aderncias sedutoras do mundodualstico que a estavam e ainda assim permanecem.

    O mundo dualstico permanece real, no dissolvido. Portanto, aunidade em questo (entre prtica e iluminao) no substitui as dualidades,antes, no obstruda por elas; ela (a unidade) ps-crtica e no pr-crtica.

    [...pois] est sempre vigilante, desconceptualizando [...] as circunstncias(dualsticas) para manter-se no estado de liberdade e pureza espiritual39

    &RQVLGHUDo}HVQDLV

    O que acabamos de apresentar a respeito do Zen-Budismo e, em especial, asduas atitudes centrais de sua prtica meditativa: o desapego e a entrega tem umquidque o torna muito prximo das duas perspectivas paralelas que vez por outra,ao longo de nossa exposio, fizemos meno. A primeira, a mstica eckhartiana,com seu tema do desprendimento (Abgeschiedenheit), por intermdio do qual ohomem poder ser verdadeiramente pobre, vazio, a ponto fundir-se com o serde Deus, a Deidade. A segunda, a perspectiva de Heidegger, com o seu tema dedesconstruo da metafsica que conduzir o homem pobreza do pensamentoque medita e agradece o sentido e a verdade do ser, abrindo-lhe, desse modo, apossibilidade de um outro incio para o pensamento ocidental.

    As trs perspectivas que apontam o caminho de ultrapassagem do realtangvel e explcito para o real no-tangvel e oculto estariam, portanto, orien-tadas para o retorno do homem sua terra natal, ou seja, a uma unidade maisfundamental de sua verdadeira humanidade: seja a do nascimento do filho no

    homem (em Eckhart), seja a da copertinncia de homem e ser (em Heidegger), sejaainda a da pertena trama da no-dualidade de onde brotam todos os Dharmas(no Zen-Budismo). A nfase aqui dada a este ltimo teve por intuito dar um des-taque todo especial ao seu mtodo concreto, prtico, explcito, tornando-o livre

    38 H-J. KIM, Eihei Dgen: myst ical reali st, p.6439Ibidem.

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    da obrigatoriedade de criar descries especulativas ou dogmas complexos parase sentir fundamentado e justificado como condio para realizar o Caminho deretorno ptria originria de nossa humanidade.

    Esse caminho de retorno, tal como j nos referimos anteriormente, passapelakenosis, pelo esvaziamento daquilo que o homem supe ser sua natureza.Aqui, talvez, o Zen-budismo parece estar mais prximo do esvaziamento no m-bito da mstica eckhartiana do que do esvaziamento no mbito do pensamentoheideggeriano. E isso tem relao, como vimos, com o problema do tempo e damorte. As duas primeiras perspectivas parecem tomar a provisoriedade do tempoe a iminncia da morte de um modo mais radical e absoluto porque entendem queelas devem ser compreendidas como experincias reais, diferentemente do ltimoque, apesar de tom-las como noes fticas, so, todavia, interpretadas dentro dohorizonte alongado do possvel.

    Podemos dizer, por conseguinte, que para aquele que deseja realizar a expe-rincia dakenosis, presente no Zen e na mstica, lhe ser exigido que se exercite(askesis) em um caminho mais ngreme e que esteja disposto a um desapego ea uma entrega mais severos. E essa radicalidade s ser possvel quando ele seexpuser fora monstruosa que a realidade nos impe e que pode ser educativaenquanto meio de destruir a prepotncia e arrogncia de nossas falsas percepesna v esperana de querer dominar o real. Desse modo, o desapego e a entregado praticante so, na verdade, instrumentos que provocam o estilhaamento desua pretenso onipotncia, ao apoi-lo na sua insistncia em ficar a, humilde

    como um canio ao vento, imvel como a crislida, sem ceder tentao de fugirdiante da realidade poderosa e transformadora. Insistir em ficar a estar dispostoa suportar as experincias da Noite Escura como expresses do choque dolorosoentre a iluso do meu tudo e a verdade do meu nada; em troca de tal fardo corajosoe perigoso lhe aberto o acesso habitao numinosa do humano experinciado despertar.

    Para quem passou por essa experincia de radical converso, at mesmo ocarter religioso da diferena soteriolgica do Zen tal como vimos anteriormente,entre a dualidade ilusria, prpria dos homens comuns e a no-dualidade salvfica,libertadora, prpria apenas daqueles que foram despertos parece no ter mais

    importncia, uma vez que no h ser vivo algum que ns temos que salvar ouque j tenhamos salvado, como tambm no h salvao alguma. Ou: que pena!

    At agora eu queria salvar o mundo todo. Que surpresa! No h mundo algummais a ser salvo40

    40 S.UEDA, Das absolute Nichts im Zen, bei Eckhart und bei Nietzsche. In: Rysuke Ohashi (Hrsg. ), DiePhilosophie der Kyto-Schule, p.477.

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    Essa retrao do trao religioso do homem desperto, entendida como umaescada que foi abandonada uma vez terminada a sua tarefa, tem um parentescosutil com a ltima sentena de Dgen da qual nos ocupamos anteriormente e

    que nos assevera que todos os traos de iluminao [ento] desaparecem e essailuminao, sem vestgios, continua indefinidamente. Retrao religiosa aqui,por conseguinte, nada mais conserva de descuido ou negligncia por parte dodesperto, mas, o contrrio, a suposio de que tudo que pode se fixar numaimagem, num credo, num dogma, no mais vivo e, como tal, deve desaparecersem deixar vestgios.

    Para ilustrar essa experincia, o Zen-budismo apresenta o dcimo e ltimoquadro da histria-Zen O boi e seu pastor. O que a aparece um ancio poucodado religio e a especulaes filosficas. Na verdade, ele mais afeito a frequentarbares e quiosques de peixe do mercado. Para se referir ao ancio em seu estado de

    plena sabedoria e plena simplicidade, Ueda comenta:

    O ancio no prega, no ensina; ele, tanto no encontro quanto no estarjuntos, faz perguntas simples: de onde voc vem?;qual o seu nome?;comovoc vai?;voc j comeu?;voc v essas flores?41

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    41Ibidem.

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    Recebido: 26/06/2011Aprovado: 31/07/2011