66
5 Modos de apagamento do discurso De maneira que não posso ser o que devo ser até que seja de novo aí onde fui, neste ponto onde me encontrava, antes que saísse dele, tão nua como é aquele que é, tão nua como eu era quando era aquela que não era. Eis o que me é necessário obter se quero recuperar a posse do que é meu, sem o que não terei absolutamente nada 1 . Marguerite Porete, mística béguin do séc. XIII. 5.1 O discurso negativo e o não-saber O presente capítulo tem por objetivo explorar as potencialidades do discurso apofático enquanto tentativa de construção de inteligibilidade e ethos a partir de trechos dos místicos MeisterEckhart, AngelusSilesius e San Juan de la Cruz. O convite que faço é para pensar a teologia negativa como um ‘método’ que, por meio de rigorosa ascese da linguagem prepositiva e da razão discursiva, rejeita não apenas o sensível, mas também o inteligível, e propõe uma terceira via de acesso ao núcleo duro do real – que podemos também chamar de Deus – através da superação daquilo que Luiz Felipe Ponde chamou de angústia da referência semântica ou pragmática. Defende-se que o discurso da mística não se encontra no âmbito do non-sense, antes, que o mesmo se constitui como uma tentativa de elaboração de um pensar que, nos instigantes versos de Fernando Pessoa, “exige um estudo profundo/uma aprendizagem do desaprender” 2 do que milhares de anos de cultura e filosofia nos ensinaram. A negatividade intrínseca a esse pensamento aproxima-o da chamada Teologia Negativa, ou Apofática. Grosso modo, poderia se definir a apofática como um método de kathársis (purificação) do discurso e da inteligência com fins de se alcançar aquilo que Pseudo-Dionísio 3 chamou de Causa universal, ou treva superluminosa: 1 PORETE, Marguerite. O espelho das Almas simples e aniquiladas e que permanecem somente na vontade e no desejo do Amor. 2 PESSOA, Fernando. Poesia completa de Alberto Caieiro., Poema XXIV, p. 49. 3 Chamado assim porque, para emprestar maior autoridade a esses escritos surgidos no século V a.c, atribuiu-se a autoria àquele Dionísio que o apóstolo Paulo converteu com seu discurso no Areópago. Dionísio legou-nos um corpus de escritos que abrangem a Hierarquia celeste, Hierarquia eclesiástica, Nomes divinos, Teologia mística e Epístolas. A partir das formulações de Proclo, Pseudo-Dionísio relê o platonismo a partir de óculos cristãos e propõe uma experiência de Deus por via extática que se relaciona com um “modo de conhecer” que é simultaneamente supra- intelectivo e supra-sensível. Sua obra influenciou grandemente toda a tradição da apofática cristã, e apenas como exemplo tomemos Dante e a estrutura hierárquica do Paraíso. SAMYN, Henrique

5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

  • Upload
    hathien

  • View
    212

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

5 Modos de apagamento do discurso

De maneira que não posso ser o que devo ser até que seja de novo aí onde fui, neste ponto onde me

encontrava, antes que saísse dele, tão nua como é aquele que é, tão nua como eu era quando era aquela que não era. Eis o que me é necessário obter se quero recuperar a posse do que é meu, sem

o que não terei absolutamente nada1. Marguerite Porete, mística béguin do séc. XIII.

5.1 O discurso negativo e o não-saber

O presente capítulo tem por objetivo explorar as potencialidades do discurso

apofático enquanto tentativa de construção de inteligibilidade e ethos a partir de

trechos dos místicos MeisterEckhart, AngelusSilesius e San Juan de la Cruz. O

convite que faço é para pensar a teologia negativa como um ‘método’ que, por

meio de rigorosa ascese da linguagem prepositiva e da razão discursiva, rejeita

não apenas o sensível, mas também o inteligível, e propõe uma terceira via de

acesso ao núcleo duro do real – que podemos também chamar de Deus – através

da superação daquilo que Luiz Felipe Ponde chamou de angústia da referência

semântica ou pragmática. Defende-se que o discurso da mística não se encontra no

âmbito do non-sense, antes, que o mesmo se constitui como uma tentativa de

elaboração de um pensar que, nos instigantes versos de Fernando Pessoa, “exige

um estudo profundo/uma aprendizagem do desaprender”2 do que milhares de anos

de cultura e filosofia nos ensinaram.

A negatividade intrínseca a esse pensamento aproxima-o da chamada

Teologia Negativa, ou Apofática. Grosso modo, poderia se definir a apofática

como um método de kathársis (purificação) do discurso e da inteligência com fins

de se alcançar aquilo que Pseudo-Dionísio3 chamou de Causa universal, ou treva

superluminosa:

1PORETE, Marguerite. O espelho das Almas simples e aniquiladas e que permanecem somente na vontade e no desejo do Amor. 2 PESSOA, Fernando. Poesia completa de Alberto Caieiro., Poema XXIV, p. 49. 3 Chamado assim porque, para emprestar maior autoridade a esses escritos surgidos no século V a.c, atribuiu-se a autoria àquele Dionísio que o apóstolo Paulo converteu com seu discurso no Areópago. Dionísio legou-nos um corpus de escritos que abrangem a Hierarquia celeste,

Hierarquia eclesiástica, Nomes divinos, Teologia mística e Epístolas. A partir das formulações de Proclo, Pseudo-Dionísio relê o platonismo a partir de óculos cristãos e propõe uma experiência de Deus por via extática que se relaciona com um “modo de conhecer” que é simultaneamente supra-intelectivo e supra-sensível. Sua obra influenciou grandemente toda a tradição da apofática cristã, e apenas como exemplo tomemos Dante e a estrutura hierárquica do Paraíso. SAMYN, Henrique

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 2: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

116

Como devemo-nos unir à Causa universal e transcendente, e como devemos louvá-

la.

Rezemos para encontrarmos-nos também nessa treva superluminosa, para ver através da cegueira e da ignorância, e para conhecer o princípio superior à visão e ao conhecimento. Louvaremos o principio superexistente de maneira supernatural, removendo todas as coisas: do mesmo modo pelo qual aqueles que modelam uma bela estátua aplainam-lhe os impedimentos que poderiam obnubilar a pura visão de sua arcana beleza, sendo capazes de mostrá-la plenamente, mediante a remoção. A meu juízo, as negações e as afirmações devem ser louvadas com procedimentos contrários: com efeito, afirmamos, quando partimos dos princípios mais originários e descemos também dos membros intermédios às ultimas coisas; no caso das negações, todavia, removemos tudo, quando subimos das ultimas coisas às mais originárias, para conhecer a ignorância escondida em todos os seres por todas as coisas cognoscíveis, e para ver a treva supernatural escondida por todas as luzes presentes nos seres4.

Esse trecho é significativo para compreender vários aspectos do discurso

apofático: a afirmação de uma realidade/principio que transcende nossas

possibilidades cognitivas de apreensão e, ao mesmo tempo, o postulado de que

seja possível um modo de cognição/experiência desse princípio via união de

substâncias humana e trans-humana. E ainda, a menção da metáfora do escultor

que “retira” da matéria a escultura desejada removendo os “excessos” que nos

impedem de vê-la. Desta forma, o caminho que aqui se propõe para a união

mística incluiria a remoção de predicados que impedem a plena visão da deidade

em toda sua beleza e incognoscibilidade, caminho que configura propriamente o

método da teologia negativa. Note-se que para Pseudo-Dionísio as teologias

afirmativa e negativa não competem entre si ou se excluem, antes, são

complementares e correlativas5: a primeira é de ordem descendente – na tentativa

de nomear Deus vai-se dos nomes mais altos e nobres até o mais inferior,

nomeando-lhe como o Bem, o Ser, a Vida, a Beleza, o Saber, etc -; a segunda

teologia é de ordem ascendente – vai-se da negação (remoção) dos Nomes mais

nobres até um além categorial, no Inefável onde brilham as trevas divinas. Se a

teologia catafática afirma de Deus que Ele é o Bem, o Ser, a Beleza, a Verdade, o

Saber... a teologia negativa irá negar cada um desses atributos, dizendo que Ele

não é o Bem, o Ser, a Beleza, a Verdade, o Saber.... Não se trata de uma

contradição, alerta Santos, mas sim de um método de superação e superafirmação:

Marques. O símbolo contra o texto: Pseudo-Dionísio Aeropagita e a irrepresentabilidade divina. p.29-38. 4 PSEUDO-DIONÍSIO AREOPAGITA. Teologia Mística., p. 21-22, grifo nosso. 5 Ver: SANTOS, Bento Silva. Introdução. PSEUDO-DIONÍSIO AEREOPAGITA. Dos nomes divinos., p. 36.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 3: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

117

“uma afirmação trans-humana, pois seu objeto escapa a todas as categorias, a

todas as nossas afirmações e a todas as nossas negações. A afirmação só valerá na

medida em que for penetrada pela preferível negação, que orienta diretamente

para o Inefável”6. Aí, nesse “lugar” inabitado, “A inteligência arrebatada

constituirá o estado teopático em que o místico experimenta a Deus, produzindo

assim uma simpatia com a realidade conhecida, obtendo de Deus, por

conseguinte, não somente um saber, mas uma experiência vivida”7. Pelo método

apofático o que se conhece é “a ignorância escondida em todos os seres”, e o Deus

que se experimenta é “treva supernatural escondida por todas as luzes presentes

nos seres”.

A teologia apofática, essa ficção iconoclasta considerada por Derrida como a

“experiência mais pensante, a mais exigente, a mais intratável da ‘essência’ da

linguagem”8, testemunha de um núcleo irredutível e silencioso, um excesso, ou,

em termos bataillianos, uma parte maldita, que retorna ad infinitu, falando

silenciosamente sem comunicar “produtivamente”. Discurso que se erige sobre a

sua própria ruína, a teologia apofática é coextensiva à teologia catafática

(afirmativa), de tal forma que a negação não é privativa, e sim uma

superafirmação de excelência: na via-crúcis para purificação dos conceitos

humanos o método apofático faz um movimento ascendente de negação dos

predicados, dos mais simples aos mais nobres, orientando-se diretamente para o

Inefável, mas negando qualquer possibilidade de aproximação conceitual de

Deus9. Nenhum nome é adequado à divindade superessencial, não obstante, é

preciso atender a Seu chamado, e é irrecusável chamá-Lo, encontrar um Nome

silencioso com o qual possamos adorá-lo pois, como bem notou Derrida, é a dupla

via da oração e da adoração que marca a linha divisória, talvez opaca mas com

certeza precisa, entre a teologia negativa e o niilismo. Há a promessa de uma

presença que permeia a teologia negativa, uma Referência absoluta que não

apenas legitima essa fala como também a torna possível, e é a essa presença que o

místico dirige sua oração, celebração ou louvor, sendo essa experiência singular

de oração/louvor que guia seu discurso para longe de toda negação vazia e

6 SANTOS, Bento Silva., op. Cit, p. 36-37. 7 SANTOS, Bento Silva., op. Cit., p. 40-41. 8 DERRIDA, Jaques. Salvo o nome. 9 SANTOS, Bento Silva., op. Cit.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 4: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

118

puramente mecânica10. Oração que não é um preâmbulo ou um modo acessório de

acesso, mas um chamamento a esse completamente outro que convida ao deserto,

como veremos na citação de Derrida:

Uma experiência deve guiar a apofática até a excelência, não deixar que diga qualquer coisa, evitar que manipule suas negações como discursos vazios e puramente mecânicos. Esta experiência é a oração. A oração não é aqui um preâmbulo, um modo acessório de acesso. Aquela constitui um momento especial, ajusta a ascese discursiva, a passagem pelo deserto do discurso, a aparente vacuidade referencial que não evitará o mal delírio e a tagarelice a não ser começando por dirigir-se ao outro, a ti. Porém a ti como “Trindade Superessencial e mais que divina”11.

Assim, na leitura de Derrida, a negação e recusa do nome, é ao contrário do que

parece, salvar o nome e “constatar a transcendência referencial da linguagem”:

(...) responder ao verdadeiro nome de Deus, ao nome ao qual Deus responde e corresponde além do nome sob o qual nós lhe conhecemos ou lhe ouvimos. É com esse fim que o procedimento negativo recusa, nega, rejeita todas as atribuições inadequadas. Ela o faz em nome de uma via de verdade e para ouvir o nome de uma voz justa12.

A reflexão derridiana sobre “necessária” transcendência referencial da linguagem

(assumida pelo discurso da teologia negativa) faz convergir esse discurso sobre

Deus e algumas questões sobre linguagem, realidade e conhecimento que viemos

esboçando até o momento. Para Derrida a teologia negativa, esse ‘projeto’ de

falência da linguagem - essa parece ser a melhor definição de teologia negativa -

seria uma espécie de estratégia cognitiva para se “salvar o Nome” de quaisquer

ameaças especulativas e/ou céticas. Derrida parece minimizar o caráter

10Aqui está nos parece o principal argumento de Derrida àqueles que o “acusam” ou o “parabenizam” por estar recuperando o método da teologia negativa com a sua desconstrução, sobre o assunto ele afirma: “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer lugar en la medida en que ésta pertenece al espacio predicativo o judiciativo del discurso, a su forma estrictamente preposicional, y privilegia no solo a unidad indestructible de la palabra sino también la autoridad del nombre, axiomas todos ellos que una “desconstrución” debe empezar por reconsiderar (cosa que he intentado hacer desde la primera parte de De la gramatología). Después, en la medida en que aquella parece reservar, más allá de toda predicación positiva, más allá de toda negación más allá incluso del ser, alguna especie de superesencialidad, un ser más allá del ser. Como no hablar: denegaciones. In: Cómo no hablar y otros textos., p. 03. 11 Una experiencia debe guiar todavía la apófasis hacia la excelencia, no dejarle que diga cualquier cosa, evitar que manipule sus negaciones como discursos vacíos y puramente mecánicos. Esta experiencia es la de la oración. La oración no es aquí un preámbulo, un modo accesorio del acceso. Aquella constituye un momento especial, ajusta la ascesis discursiva, el paso por el desierto del discurso, la aparente vacuidad referencial que no evitará el mal delirio y la palabrería a no ser comenzando por dirigirse al otro, a ti. Pero a ti como “TrindadSuperesencial y más que divina”. DERRIDA, Jaques., op. cit., p. 17. 12 DERRIDA, Jaques, op. cit., p. 55.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 5: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

119

iconoclasta da teologia apofática, ao contrário de scholars como Paulo Borges,

para quem a via apofática, na medida em que busca uma experiência trans-

conceitual da realidade última, não é ortodoxa ou conservadora e sim um

exercício de pensamento extremamente radical em sua proposta de emancipar o

humano de todas as balizas conceituais e representações que dão sentido e

estabilidade cognitiva a seu mundo. A citação abaixo, apesar de longa, sintetiza

esse posicionamento de Borges:

Poder-se-ia dizer que a verdade última da religião, desvelada pela mística, é a morte de Deus, vivida não só como a extinção de todos os conceitos e representações religiosos e teológicos, mas também como a ausência, a abs-entia, a não entidade, a vacuidade, da suposta Presença absoluta (a qual, noutro sentido, pode também ser vista como a ressurreição de Deus da morte infligida à sua Vida pelos mesmos conceitos e representações religiosos e teológicos. Assim sendo, e para dialogar apenas com uma das emergências do tema da “morte de Deus” no pensamento ocidental, cremos ser esta principal morte de Deus, inerente à experiência última do que se designa como Deus, que permite compreender o efeito da morte de Deus proclamada pelo “louco” nietzcheano: “Para onde vamos nós próprios? [ ...] Não estaremos incessantemente a cair? Para diante, para trás, para o lado, para todos os lados? Haverá ainda um acima, um abaixo? Não estaremos errando através de um vazio infinito? Não sentiremos na face o sopro do vazio?”. Não será afinal, essa experiência de vazio, ausência de fundo e referencias – conseqüências da humana abdicação da idéia de um absoluto principio ordenador do mundo e da vida – a própria experiência desse abismo, fundo sem fundo, deserto e morada onde ninguém mora que a tradição mística vive como a experiência última de transcender a Deus?”13

Em consonância com essa compreensão da apofática como um discurso que

visa à própria transcendência14 desenvolvo a hipótese de que a negatividade dessa

fala se orienta para a “denúncia” de um vazio intrínseco à linguagem

(representativa) e ao mundo que dela se origina15.

Uma teoria apofática é uma teoria que se constitui contra a cognição em representação ou contra a ingenuidade semântica. A consciência apofática caracteriza-se por um modo de contemplar o nome (a “alteridade” de Deus) que

13 BORGES, Paulo. Transcender Deus: de Eckhart a Silesius, p. 11-12. 14 Amador Vega é outro autor que defende a originalidade da mística especulativa para a “destrucción de aquella concepción Del Dios Cristiano, procedente de la tradición neoplatónica y del dualismo subyacente en ella”. Para Vega, é no movimento de mística feminina beguina, iniciado em fins do século XII e depois com MeisterEckhart que tem inicio uma reflexão com preocupações antimetafísica, e não com Nietzche e a filosofia moderna. VEGA, Amador. Estética apofática y hermenéutica del misterio: elementos para una critica de la visibilidad., p. 06. 15 Essa mesma hipótese é discutida por Luiz Felipe Pondé em Elementos para uma teoria da consciência apofática, op. Cit.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 6: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

120

altera o fazer ontológico (e com esse todas as formas desdobradas de conhecimento)16.

Analisando a mística eckhartiana, Pondé defende que a experiência mística

apresenta-se como um ultrapassamento da nossa condição ontológica criada a

partir de um processo de empobrecimento radical – o nada querer, nada saber,

nada ter de que nos fala o Meister – que não se refere apenas ao âmbito exterior,

mas sim a uma nudez tão profunda que significa a dissolução de quaisquer bordas

ou limites entre criador e criatura, de tal modo que o “fundo de Deus e o fundo da

alma sejam um só”17. Um abismo chama outro abismo, abismo divino e o abismo

humano se tocam em um processo de desprendimento que culmina não apenas na

perda das referências externas como também das determinações ontológicas que

configuram místico e essência divina, de forma que não haja nem mesmo um

“lugar” onde Deus possa agir que não seja o próprio Deus agindo em Si mesmo.

È preciso, afirmaPondé, uma cultura epistemológica poderosa para dialogar

com esses textos místicos, pois os mesmos assumem pressupostos

epistemológicos e antropológicos que discordam desse nosso discurso naturalista

sobre o “animal humano”:

O primeiro e necessário rompimento – e mal-estar noético decorrente – para adentrarmos o diálogo com a mística e com o texto eckhartiano, do meu ponto de vista, é a assunção de que aí se dá um discurso acerca do ser humano para o qual esse “animal” é na realidade “um animal da transcendência”, portanto tão objeto das ciências humanas, biológicas e físicas quanto seria o próprio Deus18.

A assunção eckhartiana da sobrenaturalidade intrínseca ao humano lança o

homem no mesmo abismo insondável da divindade: ali onde a linguagem positiva

se esfacela e as teias discursivas possíveis são aquelas marcadas pela

negatividade. Luis Pondé relaciona a teologia apofática, que surge como resposta

a esse embate da linguagem humana com aquilo que excede a representação, com

o método socrático – a maiêutica -, no sentido em que “a consciência apofática,

afogada na “cultura” dos vultos e das sombras, produz um vocabulário

experimental religioso cujo eixo eidético é o movimento entre a caverna e o

16PONDÉ, Luis Felipe. PONDE, Luiz Felipe. Elementos para uma teoria da consciência apofática., p. 89. 17 Sermão “Homo quidamnobilisabijt in regionemlonginquamaccipereregnum et reuertiluc.”. in: ECKHART, MAESTRO. Tratados y sermones. 18 PONDÉ, Luis Filipe. Nomen innominabile: a mística de MeisterEckhart. In: TEIXEIRA, Faustino. No limiar do mistério. Mística e religião., p. 139.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 7: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

121

incondicionado”19. Na leitura de Pondé a mística apofática cristã se constituiria

numa maiêutica e em uma cognição negativa no qual a saída da caverna,

retomando a metáfora platônica, produz uma consciência negativa – apenas posso

saber daquilo que ignoro -, e aqui a metáfora da luz comparece em semelhança a

vários textos místicos: a luz que é treva conduz ao verdadeiro saber sobre a

realidade.

Tal comportamento cognitivo implica um tipo de consciência que, esvaziando-se das possibilidades positivas (testadas ou superadas), atinge uma percepção (não em sentido metafórico do termo) daquilo que apesar de estar para além da trama de palavras articuladas (fora da representação), permanece em estado de realização cognitiva. Trata-se da idéia clássica da ignorância que conhece. A chegada a esse estágio negativo, segundo o comportamento maiêutico, se dá via a chegada a fronteira da capacidade de representação racional positiva possível, aquilo que eu chamaria de superação maiêutica da catafática. Em outras palavras, atravessa-se a razão catafática pelo uso exaustivo dela mesma20.

A menção à caverna platônica traz à memória outra caverna bastante

significativa para a tradição apofática cristã: é a bíblica caverna onde Elias, após

ter fugido da rainha Jezabel porque essa ameaçara matá-lo, atravessa um deserto e

sobe ao Monte Horebe, onde tem simultaneamente três hierofanias: Iahweh se

manifesta a ele como furacão, terremoto e fogo antes que sua voz divina se faça

Presença no suave murmúrio de uma brisa. O local onde tal experiência se dá é o

mesmo onde Iahweh antes havia se manifestado a Moisés no episódio da sarça

ardente e também no importante episódio, do ponto de vista da mística cristã, da

visão que Moisés tem da “glória de Deus” escondido pela mão divina atrás de

uma rocha e apenas vendo a Deus pelas costas, pois “um homem não pode ver o

rosto de Deus e sobreviver” (Ex. 33.20)21. Outrossim, é Moisés o paradigma do

itinerário místico, desde o momento em que tira as sandálias diante da sarça que

queima sem se extinguir até quando ‘vê’ a glória de Deus no mesmo monte

Horebe. Luz e trevas, presença e ausência, palavras e silêncio, a dicotomia entre

um e outro pólo apenas reafirma a complementaridade entre ambos: essa é uma

luz tão absolutamente oposta ao ordinário cotidiano que nos deixa cegos para ele,

mas as trevas que essa cegueira conduz nos fazem enxergar algo que está

19PONDÉ, Luis Felipe.Elementos para uma teoria da consciência apofática., p. 92. 20 PONDÉ, Luis Felipe., op. Cit., p. 82-83. 21 A narrativa do encontro de Elias com Deus no Monte Horebe está em I Reis 19, já os episódios de Moisés citados estão respectivamente em Êxodo 3 e Êxodo 33: 18-23. A BIBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Edições Paulinas, 1985.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 8: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

122

absolutamente fora da nossa capacidade de cognição e representação. A saída da

caverna é esse momento de passagem da aparente luz para a revelação de que nos

encontramos em trevas profundas, é a tomada de consciência de que possuímos

uma cegueira epistêmica e, no caso da mística, a assunção radical do vazio da

linguagem como possibilidade de cognição: saber da própria impotência e

confessar-se mudo, silenciar-se e, por fim, experimentar uma alteridade absoluta e

inefável. O conceito de experiência aqui é problemático: quais são os parâmetros

para se viver (e dizer) uma experiência quando todo o nosso acervo cognitivo foi

esvaziado, tanto no que se refere aos conteúdos sensíveis quanto aos inteligíveis?

Aqui parecemos retornar à polêmica entre perenealistas e contextualistas no que

se refere a essa experiência narrada pelo místico: enquanto os primeiros advogam

para as místicas das mais diversas tradições e tempos um “conteúdo de verdade”

comum (e perene, daí o nome), os segundos afirmam a necessária

contextualização dos discursos místicos, na medida em que são produzidos dentro

de um enquadramento conceitual (histórico, sócio-cultural e epistêmico) e não em

um espaço-tempo isento de agentes constrangedores. Para os perenealistas

subsiste na diversidade das experiências místicas uma presença comum, que se

faz constatar na semelhança de místicas tão diversas quanto a budista e a cristã; já

os contextualistas enfatizam a grande diversidade dos discursos místicos,

diversidade que se explica pelo fato de serem produções discursivas pertencentes

a geografias, tempos e tradições culturais distintas, logo, para os

contextualistasnão há como identificar uma presença comum na diversidade das

místicas. Para os primeiros é o pressuposto da presença que unifica tais

experiências, de modo que as proximidades encontradas nos relatos místicos

seriam uma “prova” àposteriori do que já se sabia; os segundos prescindem do

pressuposto da presença e afirmam que a grande pluralidade de contextos nos

quais as experiências se dão impedem ou pelo menos dificultam a identificação de

“conteúdos de verdade” isentos de determinantes culturais, além disso, denunciam

que a busca pela unidade das experiências nos impede de compreender a

originalidade intrínseca a cada relato. Prudência parece-nos a palavra-chave: a

busca pelo rigor na investigação do fenômeno não nos autoriza a desconsiderar o

marco hermenêutico dos vivenciadores da experiência, para quem os

acontecimentos narrados são da ordem do extraordinário e do inefável. Há que se

resguardar no discurso da mística as especificidades desse jogo de linguagem no

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 9: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

123

qual o esvaziamento da consciência e a inefabilidade da experiência são

pressupostos assumidos pela comunidade lingüística em questão. Por outro lado,

tal jogo de linguagem, que joga negativamente, pode oferecer ao estudioso das

religiões (ou da linguagem, como é nosso caso) “a consciência epistêmica de que

na atitude negativa existe uma gnose com relação a realidade da linguagem

referencial: sua vacuidade estrutural evidente”22.

O discurso paradoxal da mística será o resultado de uma “transformação do

uso da linguagem que inviabilize o processo de formação da representação

semântica ou do ato pragmático”23, em uma poderosa ascese que parece ter como

objetivo principal deixar a linguagem a nu, em um deserto onde as imagens foram

todas banidas e a idolatria é severamente punida, sendo o místico essa voz que

clama no deserto24 preparando os caminhos para que “Aquele que é”25 se

manifeste. Mas, se conhecer é construir sistemas de condicionamentos, reduzindo

complexidades a partir de enquadramentos conceituais, como conhecer o

incondicionado? Ou como conhecer algo ou alguém que apenas possui identidade

negativa? A resposta quanto a esse “como” parece estar em um processo no qual o

sujeito do conhecimento, o místico, se identifica com seu objeto, Deus, de tal

modo que a “alma conhece Deus em se deixando ser aquilo que ele é”26. Há que

se ressaltar que um tal conhecimento apenas subsiste fora da experiência como

negatividade. Trata-se aqui da possibilidade de um pensar que ultrapasse as

dicotomias nas quais o pensamento ocidental ultimamente se vê preso: sujeito-

objeto, interior-exterior, superfície-profundidade, essência-existência, etc...27 Um

modo de construção de inteligibilidade e ethos experiencial que não traz

apaziguamentos ou estabilidades cognitivas, daí a produtividade da metáfora

deserto para caracterizar esse lugar ao qual o místico se dirige e de onde profere

seu discurso.

Se plantea aquí una cuestión. Precisamente el místico considera más que nadie a Dios como incomprensible, el no posible, el que no puede reducirse a una definición. ¿Ha de ser elevado al infinito eso que soy yo, sí soy un “yo”, una

22 PONDÉ, Luis Felipe.Elementos para uma teoria da consciência apofática, p. 87. 23 PONDÉ, Luis Felipe., op. Cit., p. 85. 24 Referência ao discurso de João Batista, que em sua pregação nos desertos da Galiléia cita o profeta Isaías 40:3-5. 25 Menção ao modo autodesignativo de Deus quando do encontro com Moisés no episodio da sarça ardente em Êxodo 3. Bíblia Sagrada, op. Cit. 26 DE LIBERA, Alain. Penser ao moyen age. Apud: PONDÉ, Luis Felipe, op. Cit., p. 84. 27 Sobre esse ponto importantíssimo voltaremos no momento em que estivermos analisando a mística de AngelusSilesius.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 10: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

124

libertad? Pero, entonces, ahí me pierdo; ya no puedo concebir a Dios, definirlo, ni hacer de él un objeto de pensamiento: es el no descriptivo, el imprevisible: Aquel que se puede dar o se puede rehusar. Es decir, se el sujeto de sí mismo y no el objeto de mis deseos y de mis conceptos. Es el infinito y sin límites. Pero, ¿qué significa esto? No puedo hacerme de ello una idea adecuada. Yo lo presiento, lo espero: no puedo probarlo; no es un teorema, no puedo demostrar su existencia. No puedo adquirirlo: no es un bien. Está por encima de toda búsqueda28.

***

Uma das características mais marcantes do tempo contemporâneo é a

declarada tríplice morte do Sujeito, da Linguagem e de Deus29. Nessas

circunstancias, o discurso apofático tem se tornado praticamente uma koiné nas

ciências humanas, uma língua comum para os discursos, mais ou menos

catastróficos, sobre a circularidade da linguagem e a contingência do

conhecimento e demais construtos humanos. Essa é a opinião de William

Franke30 em sua coletânea e análise de discursos apofáticos desde os clássicos até

os tempos contemporâneos. Para ele a apofática se caracteriza principalmente por

ser uma experiência de resistência da linguagem que nasce em momentos culturais

nos quais há um colapso dos discursos de autoridade. A contemporaneidade seria,

devido à absoluta crise de confiança no logos, uma época particularmente propícia

ao surgimento desses discursos, que se caracterizariam por serem ataques à

pretensão representativa da linguagem e tentativas de desestabilização das

expectativas da linguagem como fundo literal/superfície figurativa. Para Frank o

indizível se mostra nos textos contemporâneos como os limites de uma opacidade

intrínseca a todo discurso, uma inevitável não inteligibilidade no dizível, desta

forma, “a experiência da apofática, como uma experiência daquilo que não pode

28 VILANOVA, Evangelista. Lógica y experiencia en San Juan de la Cruz., pp.92-93. 29 Em sua tese de doutorado, Erick Felinto (1998) analisa a permanência de símbolos e imagens teológicas na literatura contemporânea, marcada pela vivência dessas três mortes fundamentais: as mortes de Deus, do homem e de seu verbo. A partir da reflexão sobre a recorrência do mito de Babel na literatura ele constata que a mesma tematiza essas três mortes essencias em uma recorrência de símbolos e valores que simultaneamente negam e afirmam o teológico, muitas vezes convertendo os problemas metafísicos em problemas estéticos. Tais elementos permaneceriam quer seja sob a perspectiva de uma saudade, de um desejo de presença ou, pelo menos, da constatação de uma ausência incômoda: “A literatura moderna trabalhou no interior dessa crise, mostrando todas as tensões que caracterizam a convivência paradoxal entre as esferas do sagrado e do profano. Daí sua riqueza e poder de significação. Nossa civilização parece nunca ter conseguido lidar pacificamente com dualidades como espírito e matéria ou razão e imaginação. Na literatura dos modernos, o conflito entre tais polaridades se manifesta com nitidez, engendrando textos que continuam a nos colocar problemas não resolvidos e questões sem respostas. OLIVEIRA, Erick Felinto. Silêncio de Deus, silêncio dos homens: resistências teológicas, míticas e gnósticas na literatura moderna., p. 181. 30 FRANKE, William. Edited with theoretical on critical essays. On what cannot be said. Vol. I. Formulation’s classics.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 11: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

125

ser dito, é essencialmente lingüística: a experiência ela mesma é intrinsecamente

uma experiência de fracasso da linguagem”31.

Resta saber se essa confissão de fracasso não se constituiria antes uma

estratégia para se pensar o impensável, uma forma de escapar da dicotomia

mythos versus logos, e assim desestabilizar a tirania do sentido e da referência,

“liberando” o pensamento das armadilhas do antropocentrismo que parece

inerente a nossa cultura epistêmica. A relação entre mística e desconstrução de

nossas representações conceituais foi explorada no capítulo anterior,

principalmente na referência ao conceito de esvaziamento da consciência para a

percepção da vacuidade como própria ao mundo conceitual. Nesse capítulo

refletimos, a partir de diversos pontos de vista, a perspectiva da mística enquanto

evento limite que nos possibilita experimentar os limites de nossas experiências,

de nosso conhecimento e, até mesmo, de nossa subjetividade32. Prosseguindo por

essa via investigativa, nos deteremos agora em textos da tradição apofática para

neles detectar as estratégias estético-filosóficas em ação para a apresentação de

uma experiência – dita indizível – da ‘realidade última’, ou, em termos

eckhartianos, do Abgrúnd, esse abismo onde o fundo da alma se encontra com a

deidade nua.

Em não sendo especialista nos místicos analisados nosso olhar será seletivo

e intencional, porém descuidado, flaneur, passeando pelos textos selecionados

sem intenção de compor um todo orgânico de obra e conceitos dos autores em

questão. Nossa leitura é a de um especialista em literatura que se detém sobre

esses textos tomando-os enquanto produção discursiva pertencente ao que

denominamos gênero da mística-especulativa ou apofática. Queremos perceber,

tanto em Eckhart quanto em San Juan de la Cruz e AngelusSilesius, que

estratégias estético-filosóficas estão aqui em ação, que efeitos de verdade esses

discursos tencionam criar e quais são os recursos por eles utilizados para

apresentar esse fundamento último da realidade que aqui chamamos de “noite,

abismo e deserto”, metáforas potentes para caracterizar esse “espaço” ao qual o

31 “The experience of apophasis, as an experience that of not being able to say is quintessentially linguistic: the experience itself is intrinsically an experience of the failure of language”. FRANKE, William, Edited with theoretical on critical essays. On what cannot be said. Vol. I. Formulation’sclassics.,p. 03. 32 Ver cap. 3, p. 60-64.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 12: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

126

místico é convocado para uma experiência de esvaziamento que abrange a cultura,

a linguagem e a própria racionalidade.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 13: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

127

5.2

Ir além de Deus: o imperativo eckhartiano 5.2.1 Heranças beguinas em MeisterEckhart

Johann Eckhart, Meister de fato e de direito, nasceu na Turíngia, região da

atual Alemanha, em 1260. Ainda muito jovem entrou para a ordem dominicana,

de modo que em 1277, com apenas 17 anos, é mandado à Paris para estudar artes,

o que na época incluía lógica, música, gramática, astrologia, geometria e

aritmética. Posteriormente voltará à Paris para lecionar por duas vezes, e é dessa

experiência que ele conquista o título de Meister. Condenado pela Inquisição por

“querer saber mais do que era necessário”33, durante séculos sua obra não obteve

o reconhecimento merecido, ainda que seja Eckhart um dos mais influentes

articuladores da chamada mística renana34, sendo que marcas de se seu

pensamento se fazem presentes entre pensadores e místicos do porte de um

Nicolau de Cusa, San Juan de la Cruz, AngelusSilesius, Hegel, Jung, Heidegger,

Bataille, entre outros.35 Com uma obra que se encontra na encruzilhada entre

filosofia, teologia e mística, não é surpresa que haja uma certa dificuldade por

parte dos historiadores em enquadrar teoricamente o pensamento de Eckhart:

Alguns vêem nele, antes de mais nada, uma mística, outros uma dialética platônica e plotiniana – e, provavelmente, todos têm razão. Mística e dialética estão longe de se excluírem. Talvez não se estivesse muito distante da verdade representando Eckhart como uma alma devorada pelo amor a Deus, favorecida talvez por um sentimento intenso da presença divina e pedindo à dialética todas as justificações que ela era capaz de lhe dar. É notável, em todo caso, que seus sucessores o tenham compreendido assim. Porque Eckhart deixou discípulos e, sem dúvida, não é por acaso que esses discípulos se encontram ao mesmo tempo entre os mestres da espiritualidade cristã. Se esta não tivesse sido o solo nutriz da especulação eckhartiana, as condenações doutrinais de que foi objeto teriam posto um fim à sua história36.

33 Trecho da condenação proclamada em 27 de março de 1329 pelo Papa João XXII, na qual 28 das 120 proposições de Eckhart, retiradas do Livro das Divinas Consolações, foram declaradas heréticas ou suspeitas de heresia. O Meister morre um ano antes de saber que seria considerado culpado pela Inquisição e excomungado. 34 Mística alemã dos séculos XII e XIV e que se desenvolve ao longo do rio Reno. 35JARCZYK, Gwendoline; LABARRIÈRE, Pierre-Jean. Introdução. In: MESTRE ECKHART. Sobre o desprendimento e outros textos/ Mestre Eckhart., p. 07. 36 GILSON, E. A Filosofia na Idade Média. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martin Fontes, 1998, p. 870-871, Apud: RASCHIETTI,Matteo. QuaestionesEckhartianae: Uno e o Ser, a Alma, o Agora Eterno, o nascimento do Logos., p. 16-17.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 14: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

128

Uma primeira, mas não única, coisa surpreendente em Eckhart é que ele

emprega o vernáculo do médio alto-alemão em boa parte de seus escritos,

adaptando conceitos e abstrações do latim para a língua vulgar da época. Note-se

que estamos entre os séculos XIII e XIV e nos domínios de um homem da Igreja

onde o latim era a ‘língua divina’. Tal fato leva a alguns traçarem um paralelo

entre Eckhart e Dante no que se refere a importância que ele teria na construção

da língua e da cultura alemã37. Na interpretação do historiador Alain de Libera o

fato do Meister escrever em vulgar teria sido um dos motivos de sua posterior

condenação pela Inquisição, sendo a pregação em língua vulgar

(...) vigorosamente combatida tanto por sua própria hierarquia (Capítulo Geral de Veneza, 1325), como pelos ‘espirituais’ (Miguel de Cesena) e pelos teólogos de profissão (Guilherme de Ockham): ele pregou sobre matérias filosófico-teológicas em língua vulgar. Essa predicação alemã, que aparenta o seu projeto ao de Dante (os dois homens, aliás, têm em comum o ideal de uma ‘nova nobreza’), teve menos por objeto o povo (como lhe reprovavam seus acusadores, que deploravam que ele expusesse ‘sutilidades às pessoas simples’) do que os grupos de mulheres (beguinas, religiosas dominicanas) que, nos anos 1300, ganharam uma importância determinante na Renânia, tanto no plano cultural como no religioso38.

Não nos deteremos em questões biográficas da vida de Eckhart, mas um fato

é preciso mencionar, dada sua importância para o desenvolvimento de sua obra:

em 1313, após ter ficado dois anos lecionando em Paris e diretamente envolvido

nas polêmicas entre franciscanos e dominicanos que ali se travavam, ele é

chamado a assumir o cargo de Vigário Geral da Ordem Dominicana, o que

implicava a direção espiritual de uma grande população feminina de religiosas

dominicanas, de membros das ordens terceiras e de beguinas39. Segundo De

Libera o vale do Reno formava naquele momento um verdadeiro laboratório da

vida religiosa no qual se amalgamam diferentes movimentos religiosos, dentre os

quais as beguinas era o que mais espantava e inquietava - principalmente à Igreja-,

pelas seguintes razões:

37 FRANKE, William. MeisterEckhart. In: On what cannot be Said., p. 285. 38 DE LIBERA, Alain. A Filosofia Medieval. São Paulo, Loyola, 1998, p. 425. Apud: RASCHIETTI, Matteo. Quaestioneseckhartianae: o Uno e o Ser, a Alma, o Agora Eterno, o Nascimento do Logos., 142-143. 39 O movimento conhecido como beguino é o equivalente feminino aos begardos, que nasceu em torno de 1210 nos arredores de Liége, e rapidamente chegou à Colônia, identificando-se com a Alemanha. Apesar das relações estreitas com os franciscanos as beguinas não eram reconhecidas por eles na Ordem, na verdade o movimento continua autônomo, sem se ligar a nenhum movimento masculino. Entre suas principais características estão a devoção, o celibato e as boas obras. DE LIBERA, Alain. Pensar a Idade Média., p. 293.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 15: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

129

Ele não tinha nenhum santo fundador; não buscava nenhuma autorização da Santa Sé; não tinha nem organização nem constituição; não prometia nenhum benefício e não buscava patronos; seus votos eram uma declaração de intenção, e não um comprometimento irreversível a uma disciplina imposta pela autoridade; e seus membros poderiam continuar suas atividades normais no mundo40.

As relações entre as beguinas e a Igreja sempre foi tensa, na medida em que

o movimento acabava servindo de opção para aquelas mulheres, jovens solteiras

ou viúvas, que queriam ‘escapar’ dos laços matrimoniais, ao mesmo tempo em

que ‘retirava’ essas mulheres das ordens de seus pais e padres. Como diretor

espiritual dessas inúmeras comunidades femininas Eckhart assumiu a tarefa de

orientá-las e protegê-las das influências da seita do livre-espírito41, tarefa para a

qual ele investe toda seu saber e cultura de Meister parisiense. Na leitura de De

Libera a chamada mística renana nasceu desse encontro entre o teólogo - que

precisa abdicar de sua linguagem filosófica e teológica para tornar-se inteligível –

e dessas mulheres tentadas pelo pathos divino. Assim surgem esses filosofemas

que serão essenciais ao pensamento de Eckhart: pobreza e nobreza de espírito,

desprendimento (abegescheidenheit), abandono-serenidade (Gelasenheit)... Para

De Libera o Meister fracassa nesse empreitada de “controlar” esses movimentos

femininos:

Longe de acalmar a situação, o Lesemeister põe seu saber a serviço das pacientes, deixa-se levar, enganar, para não dizer seduzir: ele extrapola – literalmente, joga fora seu latim: ei-lo a pregar em alemão o que devia censurar. O censor está apaixonado. A sanção intervém, ele será condenado42.

A intercessão do pensamento do Meister com a mística beguina é certa,

principalmente a influência de Margaret Porete, atestada por Bernard McGinn,

que lembra o fato de Eckhart ter residido, apenas um ano após a morte de Porete,

no mesmo convento dominicano do inquisidor Guilherme de Paris, aquele que

havia conduzido o processo da beguina condenada e queimada viva em junho de

40 DE LIBERA, Alain. Pensar a Idade Média., p. 293. 41 Ou Irmãos do Livre Espírito, movimento leigo cristão que floresceu no norte da Europa nos séculos 13 e 14, sobretudo na Alemanha, Bélgica e Holanda. Tinha como principal característica o culto à liberdade individual, considerada um meio indispensável para atingir a revelação. Alguns defendem que sua gnose era uma espécie de anarquismo místico na medida em que negava qualquer constrangimento exterior ao defenderem a comunidade de bens materiais e sexuais. 42 De LIBERA, Alain. Pensar a Idade Média., p. 291.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 16: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

130

131043.O pensamento de Eckhart, que para De Libera teria sido muito mais um

exercício filosófico do que místico, se gesta a partir desse flertar com os leigos, de

uma linguagem que é impura, plebéia e do fascínio pelo não-saber dessas

mulheres consideradas “acometidas por uma espécie de loucura”, “mulheres que

não prestam obediência a ninguém”44.

Se parece ser fato que a mística eckhartiana surge em resposta ao pathos

dessa mística feminina que floresce no Reno, nem por isso seria correto afirmar

que essa é “uma pura mística do indizível, que investiria mais nos sentimentos,

nos afetos e na vontade do que na mente humana”, de acordo com posição de João

Maria André45, que assim afirma, especificamente sobre Nicolau de Cusa mas

generalizando para uma mística que se desenvolve na Europa na transição da

Idade Média para a Idade Moderna. Ainda continuando com André, esse mística

que tem em Eckhart um dos nomes mais significativos, “em muitos aspectos,

prenuncia traços constitutivos da Modernidade, em muitos outros ultrapassa a

racionalidade determinista que esvaziou, ao longo desta época histórica, a

natureza e a realidade do seu encanto e da sua complexidade”46. Posição próxima

é a de Paulo Borges, citada no capítulo terceiro, que entenderá que a mística de

um Eckhart, na medida em que se alicerça sobre a necessidade de um

desprendimento e abandono - do mundo e suas representações, do sujeito e sua

vontade, e, finalmente, do próprio Deus enquanto instância determinada –

prefigura um estado epistemológico que na pós-modernidade será definitivamente

instaurado, qual seja: a desconfiança nos metadiscursos dada a assunção da

ficcionalidade de toda representação:

Do mesmo modo que o apego a Deus e a si são solidários, provenientes da mesma insegurança de se não dançar no abismo (cf. Nietzche) sem procurar inexistentes pontos de apoio, também o desprendimento de si e de Deus são, cumprindo a aventura mística nessa dupla abolição que implica a de todo referente possível ou, melhor, o reconhecimento de que, desde sempre, a sua suposição é mera

representação fictícia47.

43McGINN, Bernard. Love, knowledge, and UnioMystica in the Western Christian Tradition. Apud: BORGES, Paulo. Do bem de nada ser. Supra-existência, aniquilamento e deificação em Margarida Porete., nota 08. 44 “Os oito erros dos begardos e das beguinas acerca do estado de perfeição”. Concílio de Viena de 1311-1312, in: De LIBERA, Alain. Pensar a Idade Média., p. 294. 45 ANDRÉ, João Maria. Da Mística Renascentista à Racionalidade Científica Pós-Moderna., p. 71. 46 ANDRÉ, João Maria., op. cit., p. 71. 47 BORGES, Paulo. Transcender a Deus: de Eckhart a Silesius, p. 11, grifo nosso.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 17: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

131

A complexidade desse pensamento místico-filosófico exige de nós, tendo em vista

os objetivos da tese, escolhas difíceis, porém necessárias. Apesar de não ser nosso

objetivo uma precisa análise da obra e dos principais conceitos de Eckhart alguma

mínima consideração sobre o tema precisará ser feita, de modo a contextualizar os

textos analisados dentro do âmbito maior de sua obra. Não obstante, confessamos

desde já nossa impotência ante um autor tão rico e complexo. O que tencionamos

fazer, portanto, é oferecer um pequeno esboço de alguns conceitos que são

essenciais para nossa abordagem, mas sinalizamos a dificuldade dessa empreitada

na medida em que nossa aproximação é a de um estudioso da literatura que se

arrisca nos campos da filosofia e teologia. Uma outra dificuldade é que, como é

comum a um pensamento filosófico, em Eckhart um conceito se relaciona

diretamente com outro, formando um sistema altamente complexo que não seria

possível dar conta, exceto em uma outra tese exclusiva sobre o tema48. Feitas tais

considerações, passemos a discutir alguns desses filosofemas essenciais à obra

eckhartiana.

48A mesma observação poderia também ser feita em relação a San Juan, entretanto, o místico-poeta espanhol ‘facilita’ nossa leitura na medida em que cinde sua obra em prosa e poesia, centralizando na primeira a sistematização teológico-filosófica; a operação, por muito artificial que seja, tem o mérito didático de “delegar” para a prosa sanjuanina a teologia, simplificando a análise estética da poesia.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 18: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

132

5.2.2 Indeterminação divina e supra-existência

Um dos postulados mais instigantes de Eckhart é a simplicidade e unicidade

de Deus. Se cada criatura nega a outra para se afirmar em sua individualidade,

Deus nega a própria negação, pois na medida em que é a causa de todos as coisas

Ele “é Um e nega todo outro, pois nada está fora de Deus”49. Todo criado é

percebido por Eckhart como em permanente dependência ontológica na medida

em que não possui ser, exceto dessa maneira relacional em que uma coisa é aquilo

que nega ao outro ser: entretanto, mesmo esse ser é-lhe “emprestado” de forma

transitória, no devir próprio de todas as coisas marcadas pela temporalidade50.

Nesse sentido Deus é um negar do negar, Unidade indistinta e indiferenciada

que desafia intelecto e linguagem, pois se esse Uno nega toda negação, e é na

negação do outro que reside a possibilidade de predicação – isso é algo que não é

aquilo – não há nome possível capaz de nomeá-lo, como o Meister lembra em

outro sermão: “Ele, que carece de nome, que é uma negação de todos os nomes, e

que nunca obteve nome algum. E por isso disse o profeta: ‘Em verdade, tu és o

Deus que se esconde’”51.

Conforme Raschietti analisa, todo o pensamento místico-filosófico de

Eckhart será permeado pela exigência dessa unidade divina. Tentando

compreender a Unidade dentro do dogma cristão da trindade o Meister propõe

uma distinção entre Divinitas(Gottheit) e Deus (Gott), sendo Gottheit o fundo

(Grund) onde não há distinção,alteridade, operação, relação ou nome. E

Gott(Deus) seria essentia cum relatione, principium, atividade que se exterioriza

na Trindade e na criação de todas as coisas visíveis e invisíveis. Em se tratando da

deidade (Gottheit) não há nome possível, pois não há determinação/divisão, de

49 Sermão 21 Deus é Um, Ele é um negar do negar. In: BOFF, Leonardo. Mestre Eckhardt: a mística de Ser e de não ter., p. 166. 50 “A criatura, pelo limite e finitude que a constituem, é um ser de relação. Em se afirmando ela (a criatura) simultaneamente nega o outro: isto que não é ela mesma. Essa rede, onde cada criatura se encontra relacionada à outra, cada qual corresponde a um nó, revela uma dependência recíproca, de modo que em um só subsiste em implicância a outro nó e ao todo da rede. Um sentido (= nó) sozinho não tece uma manhã (rede): ele precisará sempre de outros sentidos. Relação, referência são palavras que trazem no seu bojo a sina própria da condição humana de ser sempre um ser do limite”. SOUZA, Adriana Andrade de. Sobre o não-saber ou a experiência da liberdade em Mestre Eckhart., p. 14-15. 51 No original: “El, que carece de nombre, que es una negación de todos los nombres, y que nunca obtuvo nombre alguno. Y por ello dijo el profeta: “En verdad, tu eres el Dios escondido (Isaías 45, 15)”Sermão 15 Homo quidannobilis.... ECKHART, MAESTRO. Tratados y sermones.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 19: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

133

modo que “(...) não apenas a essência é indizível, mas também sua indeterminação

absoluta não poderia ser oposta a qualquer realidade, inclusive ao não-ser.”52

Entretanto, a possibilidade de ser de cada criatura é salvaguardada pela sua

preexistência como imagem originária em Deus, antes da sua própria criação,

momento de uma diferenciação primeira e nascimento do Filho e de todas as

criaturas, geradas como imagens em Deus. Em seu devir permanente a criatura

recebe ser de Deus, na medida em que participa de sua natureza por meio daquilo

que Eckhart vai chamar ora de centelha ou faísca (vünkelinvünke, em latim

scintilla), castelo da alma (bürgelin der sele) ou fundo da alma (grunt der sele)53,

Conforme interpreta Souza, podemos falar em dois momentos da criação: a) a

criação do Filho, sinalizando o surgimento das idéias, ou imagens exemplares que

são anteriores à existência das criaturas; b) a criação de todas as coisas no nada,

marcando o início da diferenciação e da multiplicidade que rompe a Unidade

primordial em um único instante em que Deus gera seu Filho, o mundo e também

todas as criaturas como filhos juntamente como o Filho54.

O Filho é o Verbo, Palavra pronunciada pelo Pai a partir da qual todas as

coisas são geradas como imagens preexistentes à diferenciação Pai-Filho, de tal

modo que todas as coisas são um “falar de Deus”55, e pelo nascimento prévio no

Filho os homens dotados de intelecto são criados à imagem de Deus. Desta forma,

existe uma identificação originária entre as criaturas – enquanto imagens (idéias)

projetadas na mente de Deus – e a Deidade. Tal identidade está além de toda

relação, mesmo aquela que condiz às pessoas da Trindade. Assim, todo ser dotado

de intelecto é convocado a retornar à igualdade com o Filho, a recuperar sua

imagem e semelhança com o Filho, que por sua vez é imagem perfeita do Pai.

Mas para que isso aconteça, para que a alma possa retornar e novamente nascer

em Deus faz-se necessário um processo de aniquilação, “de modo a não haver

mais esta ou aquela imagem, mas uma única imagem – a imagem perfeita além de

todas as imagens”56. Conforme salienta Souza, se em uma primeira fase de seu

pensamento Eckhart identifica essa centelha divina, esse “alguma coisa” comum

52RASCHIETTI,Matteo. Quaestiones Eckhartianae., 27-28. 53FERRATER-MORA, José. Dicionário de filosofia., Verbete Eckhart, p. 789. 54 SOUZA, Adriana Andrade de. Sobre o não-saber ou a experiência da liberdade em Mestre Eckhart, p. 21 55 “O Pai enuncia o Filho com todo seu poder e, nele, todas as coisas. Todas as criaturas são um falar de Deus.” Sermão 53, apud SOUZA, Adriana Andrade de, op. Cit, p. 20. 56 SOUZA, Adriana Andrade de., op. cit., p. 22.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 20: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

134

entre o fundo da alma e o abismo divino, com o intelecto, em uma fase posterior

de seu pensamento a centelha será tomada como um fundo inexprimível da alma,

um alguma coisaque está além de toda possibilidade de intelecção, tão

desconhecida e inominável como a própria Deidade57.

No sermão Sobre o templo de Deus o Meister procede por negativas até

chegar a mais absoluta pobreza da deidade, que está além da existência, do Ser, da

Bondade e de todo nome. Se determinar é um modo de limitar e circunscrever, e

sendo Deus um negar desse negar, o discurso que a ele convém torna-se um

exercício (im) possível de liberação do nome e do nomear, o que implica uma

liberação da própria linguagem em função representativa. Deus está acima do ser,

e “não habita em nenhum lugar plenamente senão em seu templo, a Razão”, e é a

mesma razão que “retira de Deus a envoltura da bondade e o mostra em sua

nudez, despojado da Bondade, do Ser, e de todo nome”58. É preciso esclarecer que

embora o intelecto – a Razão – apareça em alguns sermões como a parte mais

elevada da alma, em outros sermões Eckhart fala de um ultrapassamento do

intelecto através da noção de Deidade59, ou seja, esse é um abismo tão profundo

que não admite nem intelecto, nem vontade, nem qualquer outra relação

sujeito/objeto pressuposta pelo saber contemplativo. È a Deidade nua que aparece

como algo que necessariamente precisa estar além de todo esforço do intelecto,

como não-saber que redimensiona todas nossas construções de saber. Em palavras

de Souza

O não-saber guarda e resguarda a força do não, que negando toda espécie de saber exterior se constitui como o mais radical apelo à liberdade – a pura nascividade constitutiva de todo saber. Esse não-saber traduz a estranheza frente ao fato de que no próprio habita o outro: o estranho no qual já sempre somos quando começamos a ser. O não-saber emerge como um exercício de desconstrução, do desprendimento de todas as imagens, de todas as formas, trata-se propriamente de um elevar-se sobre as formas, lá onde se empenha o ritmo de toda formação. (....) A abertura do não-saber não é algo que se aprende, como que se fosse um processo que pudesse ser orientado passo a passo, mas é antes fruto de uma concentração, um atentar-se

para aquilo que já sempre somos. É na verdade descobrir o que já é, tomar parte daquilo que já se possui.60

57 SOUZA, Adriana Andrade de. Sobre o não-saber ou a experiência da liberdade em Mestre Eckhart., p. 28-29. 58Sermão 10 “Quasi stella matutina...” in: RASCHIETTI,Matteo. QuaestionesEckhartianae, anexos. 59Para a compreensão do intelecto nas diversas fases do pensamento de Eckhart ver a dissertação de SOUZA, Adriana Andrade de., op. cit. 60 SOUZA, Adriana Andrade de. Sobre o não-saber ou a experiência da liberdade em Mestre Eckhart, op. Cit., p. 34, grifo nosso.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 21: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

135

No sermão Bem aventurados os pobres de espírito a distinção entre Deus e

Deidade fica mais clara e o Meister retoma a distinção entre Gott e Gottheit: o

Deus percebido pela criatura é Gott, enquanto que o Deus em si mesmo, incriado

e supra-existente, é Gottheit. Se o segundo é o que é, o primeiro é Deus para suas

criaturas, Deus percebido, representado e entificado: (...) porque antes de

existirem as criaturas Deus não era “Deus”: ele era o que era. Mas quando

surgiram as criaturas recebendo seu ser criado Deus já não era “Deus” em si

mesmo, e sim “Deus” nas criaturas61. O escândalo dessa proposição é óbvio: a

criatura em seu estado incriado e supra-existente torna-se causa da criação de si

mesma, de Deus (Gott) e de todas as coisas. Nesse tempo sem tempo antes da

entificação dos seres – criador, criatura e mundo – o “homem ainda estava no ser

eterno de Deus, não vivia nele alguma outra coisa – o que vivia era ele próprio”62.

O Meister continua destemidamente até um ponto limite onde reconhece o

desconforto que esse discurso possa estar causando em seus ouvintes:

Com o meu nascimento nasceram todas as coisas e eu era a causa de mim mesmo e de todas as coisas; e, se eu quisesse, não seria nem eu nem seriam todas as coisas; e, se eu não fosse, tampouco seria “Deus”. Eu sou uma causa de Deus ser “Deus”; porque, se eu não fosse Deus não seria “Deus”. Saber isso não é necessário

63.

Da unidade divina deriva sua pobreza, da pobreza divina a exigência de

desprendimento e aniquilação da alma mística, de onde a assertiva de que o

homem místico deve buscar estar “desligado de seu próprio conhecimento como

estava quando ainda não era”64, não apenas desligado do desejo e de todo saber e

conhecer, como também “desligado de Deus e de todas as suas obras”65, de tal

modo que se por acaso Deus procurar nele um lugar para agir não encontrará, o

que forçará Deus a ser o próprio lugar onde irá agir na alma humana66. Assim, ser

pobre (ou nobre) de espírito é “regressar a antes de tudo, a antes de haver homem,

Deus e mundo, ao incriado, onde não há qualquer cisão entre querer e ser e

nenhuma limitação ou exílio tem lugar. Ser “pobre em espírito” é não haver mais

61 Sermão Bem aventurados os pobres de espírito. In: ECKHART, Mestre. Sobre o desprendimento e outros textos/ Mestre Eckhart.., p. 35. 62 Ibid., p. 37. 63 Ibid., p. 42, grifo nosso. 64 Ibid., p. 37. 65 Ibid., p. 40. 66 Ibid., p. 40.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 22: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

136

que a infinita riqueza da plenitude primordial”67. É interessante notar que esse

movimento de desnudamento e empobrecimento não cabe apenas à alma mística,

mas também a Deus, que precisa ir de Gotta Gottheit, do deus percebido para a

Deidade indiferenciada, resistente a todo nome, como bem esclarece Pondé:

Neste grau, “ter nada” significa a dissolução de qualquer noção de limite, de borda, de espaço, de identidade ou ousia, o ser humano, em pobreza neste lugar, “sofre o afeto de Deus” em Deus”. Toda ginástica é para poder dizer que, quando se chega a este grau, sou mînwesenlichwesen, e este “meu ser essencial” é na realidade a simplicidade de Deus, que também passa por esse processo de empobrecimento ontológico, que o leva de Got a Gotheit, como dizia68.

A pobreza/nobreza de espírito é um dos temas centrais de Eckhart, mas não é

exatamente um tema novo, pelo contrário, essa é uma questão que interessa a

filósofos e teólogos naquele momento dos anos 1300, sendo, assim pensa De

Libera, as considerações eckhartianas sobre a pobreza de espírito a base das

acusações que levaram a Inquisição a condená-lo. Á semelhança de Dante na

Itália, o Meister tomou como encargo para si inventar uma forma de humildade

interior que pudesse ser chamada de nobreza, dando tratamento filosófico a esse

tema teológico. E a maior inovação de Eckhart é não dissociar a pobreza da

humildade ou da nobreza, sendo o homem pobre também nobre e humilde, aquele

que cultiva em si a virtude que reúne todas essas outras: o desprendimento, como

veremos a seguir.

Apenas a alguns anos antes de sua condenação, em 1322, os Franciscanos

proclamam a pobreza de Cristo e dos apóstolos como verdadeira doutrina católica,

tese que em 12 de novembro de 1323 o papa João XXII declara herética. O tema

é objeto de discussões acirradas entre duas facções opostas: de um lado os

filósofos aristotélicos, defensores de uma doutrina da felicidade intelectual através

da “contemplação filosófica” ou “sabedoria teorética”; do outro lado os teólogos

conservadores e mendicantes da Faculdade de teologia da Universidade de Paris,

que defendem uma beatitude celeste e rechaçam o humanismo filosófico dos

homens das artes69. Para forjar uma compreensão de uma pobreza que também

67 BORGES, Paulo. Ser ateu graças a Deus ou como ser pobre é não haver menos que o infinito. A-teismo, a-teologia e an-arquia mística no sermão “Beati pauperisspiritu....” de Mestre Eckarth, p. 10. 68PONDÉ, Luis Filipe. Nomen innominabile: a mística de MeisterEckhart. In: TEIXEIRA, Faustino, No limiar do mistério. Mística e religião., p. 161. 69 MOURÃO, José Augusto. Da metafísica do fluxoà treva luminosa:Eckhart e a tirania da imagem.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 23: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

137

fosse nobreza de espírito, Eckhart se apóia na teoria metafísica do fluxo e da

“influência” de Avicena, ou melhor, na interpretação de Alberto Magno dessa

teoria. No Liber de causise na Metafísica de Avicena se encontra uma teoria

cosmológica baseada na influência dos astros sobre a Terra, que, grosso modo,

postulava o fluxo do superior para o inferior: “O superior flui, derrama-se e emana

no inferior devido à sua própria natureza, ele não pode fazer outra coisa nem de

outro modo”70. Estando no centro do mundo, de acordo com a cosmologia da

época, a Terra é o que há de mais baixo, que recebe em si o influxo das nobres

estrelas, analogamente à Terra (húmus) o homem (homo) humilde (humilis)

“força” a Deus vir a seu encontro, pela simples razão de que todas as coisas

gostam de estar no seu lugar natural, e o “lugar natural de Deus é a unidade e a

pureza”, virtudes que decorrem do desprendimento71.

A pobreza/nobreza de espírito se articula intrinsecamente ao tema do

desprendimento, que será tratado pelo Meisterem vários de seus sermões e

também, mais especificamente, no tratado Sobre o desprendimento.

Abgeschiedenheit, em francês détachement, em inglês detachmentou desisterest.

Em português desprendimento, englobando os significados de disponibilidade

plena e liberdade pura. A palavra possui estrutura negativa, e é composta pela

partícula ab que marca distanciamento e o verbo shein = “partir”, “deixar”,

“separar-se”. Não obstante, como lembram Jarczyk e Labarrière, o uso que o

Meister faz dessa palavra dá-lhe um peso essencialmente positivo, e os autores

citados fazem referência ao Dicionário de Conceitos Filosóficos de Hoffmeister,

que assim traduz o termo: “Abgeschiedenheit, do alemão médio-alto

Abegescheidenheit, termo forjado por Mestre Eckhart para o perfeito repousar-

em-si, o ser-uno-consigo-mesmo da alma, retirado em relação ao homem e ao

mundo72”. O homem desprendido é aquele que não “quer ser isto ou aquilo porque

quem quer ser isto ou aquilo quer ser algo; ele, porém, não quer ser nada. Por isso

dispensa todas as coisas”73. Para Raschietti não é possível separar os significados

de técnica mística, de indicação prático-operativa para a perfeição da vida

espiritual e de exercício filosófico nessa noção eckhartiana de desprendimento,

70 DE LIBERA, Alain. Pensar a Idade Média., p. 307. 71 ‘Sobre o desprendimento’, In: ECKHART, Mestre. Sobre o desprendimento e outros textos/ Mestre Eckhart, p. 03 72 JARCZYK, Gwendoline; LABARRIÈRE, Pierre-Jean, in: ECKHART, Mestre., op. Cit., p. 13. 73 “Sobre o desprendimento”, In: ECKHART, Mestre, op. Cit., p. 07.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 24: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

138

sendo “o desprendimento (...) a atividade racional do pensamento na sua

finalidade principal de conduzir à união com Deus, através de um modo diferente

de se relacionar com as coisas do mundo74. Nesse novo modo de se relacionar

com o mundo não há separação entre ser e agir, no sentido em que se possa

entender uma desvalorização da existência em relação à essência e a conseqüente

“fuga do mundo”: fala-se aqui de um desprendimento tão radical que nega todo e

qualquer evento que retire o homem desse ser-em-si ou repousar-em-si que é

próprio do desprendimento. Inclusive a distinção entre intelecto e existência, pois

isso já seria um sair da simplicidade e unidade homem-deidade. Desse modo, as

potenciais semelhanças do desprendimento com a ataraxia grega são

desarticuladas na medida que não há indiferença, apatia ou insensibilidade no ser

desprendido, e os exemplos que o Meister nos dá auxilia nessa compreensão. Ele

nos fala da paixão de Cristo e do sofrimento de Nossa Senhora por ver seu filho

sendo escarnecido e humilhado; segundo o Meister, apesar do sofrimento exterior

de ambos, em seu íntimo, no homem interior que habita cada um de nós, eles “não

saíram de si mesmos”, permanecendo inabaláveis em seu desprendimento, o que

se comprova pelo fato de Cristo, ainda que podendo romper com a trama das

ações que levaram às funestas conseqüências da crucificação, não o faz,

escolhendo livre e docemente cumprir seu destino.

(...) com o desprendimento, um fundo mais essencial é atingido, um lugar habitado de que não é mais necessário se “afastar” para viver isto ou aquilo – pois que isto e

aquilo estão implicados neste lugar mesmo. Não se trata, portanto, de uma extinção das coisas, mas do seu recentramento. Em suma, o ser desprendido exerce de maneira eminente, numa espécie de conaturalidade que abarca tudo, o amor, a humildade e a misericórdia; ele os alcança efetivamente/eficazmente em seu fundo, no que faz a densidade deles: desprendido, ele é capaz de amor, é humildade e miseriordioso, na medida em que o desprendimento implica essas próprias virtudes como sua matriz e unidade75.

Logo, o homem pobre/nobre é um homem intransitivo. Liberto de todo

interesse, desejo ou saber ele reside na insciência primordial onde “A luz que é

Deus brilha na escuridão”76. Ao despir a Deidade de todo predicado e de toda

possibilidade de nomeação e cognição, a alma experimenta um nível de

desprendimento tal que “o seu conhecimento torna-se desconhecimento e o seu 74RASCHIETTI,Matteo. Quaestiones Eckhartianae., p. 57. 75JARCZYK, Gwendoline; LABARRIÈRE, Pierre-Jean, ECKHART. Mestre. Sobre o desprendimento e outros textos/ Mestre Eckhart, p. XXIV. 76 Sermão 71 “Saulo ergueu-se do chão....” In: ECKHART, Mestre, op. Cit., p. 55.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 25: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

139

amor torna-se desamor e a luz se torna escura77”, ou seja, frente ao

supraconhecimento, que é um não-saber, toda pretensão de cognição humana

torna-se ilusório, pelo fato de ser conhecimento de sombras, imagens e

representações. Mas, ao esvaziar-se de todo criado e de toda representação, o

místico ultrapassa a sua condição ontológica de criatura e experimenta a plenitude

divina: o fundo de sua alma toca o fundo do abismo divino, possibilidade que

pressupõe um fundo ontológico comum entre criador e criatura. Renega-se assim,

como observou Pondé, já citado anteriormente sobre o tema, a ‘naturalização’ do

humano e sua redução ao bio-psíquico-social na medida em que a misteriosa

sobrenaturalidade humana lança o homem no mesmo abismo incognoscível que a

Deidade: abismos que se tocam e se amalgamam. É a deificação humana, expressa

por Eckhart no mesmo sermão (52) quando fala sobre o fim do processo de

empobrecimento:

Nesse impulso recebo tanta riqueza que Deus, com tudo o que ele é como “Deus” e com todas as obras divinas, já não pode ser suficiente para mim, pois nessa irrupção me é dado que eu e Deus somos um. Daí sou o que o que eu era e não aumento nem diminuo, pois sou uma causa imóvel que move todas as coisas. Então Deus não encontra lugar no ser humano, uma vez que, com essa pobreza, o homem alcança aquilo que ele era eternamente e sempre continuara sendo. Nesse momento Deus é um com o espírito, e essa é a pobreza extrema que se pode encontrar78.

Como se vê nesses trechos citados, o Meister entende que a pobreza e

simplicidade do homem não é algo extrínseco a ele ou a sua natureza, algo que se

possa alcançar mediante um esforço externo de despojamento dos bens materiais

e/ou sensuais. Antes pelo contrário, há que se buscar a unidade divina dentro de

si, e não fora, em manifestações de piedade ou de sabedoria. Há no fundo da alma

humana uma centelha, uma chispa, um fio de racionalidade (Logos) que é preciso

des-cobrir para que a identidade primordial, supraexistente, entre homem e

Deidade possa aparecer e ele se re-encontrar na unidade essencial. Nesse sentido,

está-se falando aqui de um retorno, um regresso a esse fundo abismal comum que

une criador e criatura antes de toda distinção, tal qual aparece no tratado O homem

nobre:

77 “Sobre o desprendimento”, In: ECKHART, Mestre. Sobre o desprendimento e outros textos/ Mestre Eckhart., p. 22. 78 Sermão 52 “Bem-aventurados os pobres..., In: ECKHART, Mestre, op. Cit., p.43.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 26: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

140

Por isso disse Nosso Senhor com muito acerto que “um homem nobre partiu para uma terra distante a fim de tomar posse de um reino e regressar.”Pois o homem deve ser um em si mesmo e deve procurá-lo (isto é, o ser-um) em si e no Uno e

recebê-lo no Uno, isto é: somente contemplar a Deus; e “regressar”, isto é: saber e conhecer que conhece e sabe a Deus79.

A unidade com a deidade é a meta a ser alcançada pelo empobrecimento, pois há

que se regressar para o que se é, voltar a ser o que sempre se foi, antes da

diferenciação via criação.

(....) a criatura, sendo finita, e por isso, um puro nada em si mesma, participa do ser infinito de Deus à medida que seu próprio ser (criatural) é perdido; essa harmonia é ela mesma salvaguardada pela perspectiva de elevação da natureza humana como filhos de Deus no Filho – imagem perfeita do Pai. Pela Filiação – aquela pela qual todas as criaturas são geradas – antes mesmo de sua emergência no nada – toda criatura resguarda o poder de retornar sempre de novo a essa sua natureza primeira. O que significa que essa metafísica da imagem não se separa, para Eckhart, do fato da criação das criaturas no nada. Essa criação é interpretada como uma distância necessária que introduz, ao resguardar a proximidade originária da filiação, a possibilidade do retorno80.

Esse retorno implicará um processo de desapropriação (empobrecimento,

aniquilamento), transcendência de imagens, conhecimento e representações e, por

fim, deificação, como se verá no próximo tópico.

79 Sermão “O homem nobre”, In: BOFF, Leonardo. Leonardo. Mestre Eckhart., p. 98. 80 SOUZA, Adriana Andrade de. Sobre o não-saber ou a experiência da liberdade em Mestre Eckhart, p. 12-13.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 27: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

141

5.2.3 Desapropriação apropriante, transcendência e deificação

Ao inóspito deserto. Nos abismos eternos do ser divino [den ewigen

Abgrund göttlichen Seins]81. Na noite escura do não-saber. Metáforas que

comparecem em inúmeros discursos místicos, principalmente quando se fala em

mística apofática, simbólicas de um abandono e um desenraizamento que aparece

como pressuposto para uma relação entre o eu humano e um Tu divino onde o

imperativo é esvaziar-se (da posse, do desejo, do saber) como possibilidade de um

encontro entre o fundo da alma e o fundo de Deus:

Digo por la verdad buena y eterna y perpetua que esa misma luz no se contenta con la esencia divina simple [e] inmóvil, que ni da ni recibe, más aún: ella quiere saber de dónde proviene esa esencia; quiere [penetrar] en el fondo simple, en el desierto silencioso adonde nunca echó mirada alguna la diferencia, ni [el] Padre ni [el] Hijo ni [el] Espíritu; en lo más íntimo que no es hogar para nadie82.

Para Paulo Borges toda a obra de Eckhart se move a partir de um desejo de

“reassumir esse incondicionado fundo primordial de toda a experiência” a partir

de um processo de transcendência não apenas da constituição do sujeito e do

mundo, mas também do próprio Deus enquanto determinado pela razão e

representação humana83. Para Borges, a metáfora do fundo se articula a outras

como “deserto”, “mar” e “abismo” (abgrúnd) “enquanto imagens de espaços de

vastidão, indistinção e desobstrução, livres de limites e entidades”84, remetendo a

um elemento incondicionado e incriado que habita e constitui conjuntamente

humano e divino. Tais metáforas são sintetizadas naquilo que Bernard McGinn

chama de “mística do fundo”, que seria característica dessa mística iniciada por

Eckhart e continuada por seus seguidores, que postula um fundo comum entre a

alma humana e o logos divino. A palavra Grund, do alemão medieval, tem um

campo semântico que abrange os termos “solo físico”, “terra”, fundo de “um

corpo, superfície ou estrutura”, “origem”, “causa”, “início”, “razão […] ou prova

[…] de algo”; “o mais íntimo” e “oculto” de um ser, ou seja, “a sua essência” 85.

81 Sermão 52 “Bem-aventurados os pobres...” In: ECKHART, Mestre. Sobre o desprendimento e outros textos/ Mestre Eckhart.. 82Sermão 48 “Todas las cosas iguales…” ECKHART, MAESTRO. Tratados y sermones. 83 BORGES, Paulo. Transcender Deus. De Eckhart a Silesius., p. 86. 84 BORGES, Paulo., 85. 85 MC GINN, Bernard. The harvest of mysticism in Medieval Germany (1300-1500). The presence of God: A history of Western Christian Mysticism, p. 87. In: BORGES, Paulo., op. Cit., p. 87.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 28: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

142

Em cada uma das variações semânticas é possível notar a permanência da

conotação de fundamento a priori que rejeita toda delimitação/conceituação, na

medida em que aquilo que fundamenta o limite e o conceito não possa ser

determinado ou conceituado. Analisando a obra eckhartianaRaschietti encontra as

seguintes acepções da palavra Grund:

Grundé o espaço interior onde é gerado o Filho, sendo portanto signo da deidade: “Assim como o Pai, em sua natureza simples, gera seu Filho naturalmente, da mesma forma gera-O na parte mais íntima do espírito, e este é o mundo interior. Aqui o fundo de Deus é o meu fundo e meu fundo é o fundo de Deus”. É o silencioso deserto onde não há diferença entre as três pessoas divinas: “[Esta centelha] quer (penetrar) no fundo simples, no deserto silencioso, onde nenhuma diversidade nunca se escondeu, nem o Pai nem o Filho nem o Espírito Santo”. É mais íntimo do que a si mesmo: “Na interioridade mais profunda, onde ninguém habita, lá (somente) esta luz o satisfaz (= o fundo), e por isso ele é mais íntimo do que a si mesmo”. É puro silencio, sem movimento: “Pois esse fundo é um simples silêncio, que em si mesmo é imóvel”. Na alma, Grundé ausência de conhecimento: “O que a alma é em seu fundo, disso ninguém sabe nada”. É ausência de nomes apropriado a Deus: “Deus, que é sem nomes – ele não tem nenhum nome -, é inexprimível, e a alma é no seu fundo inexprimível tanto quanto ele”. É ausência de qualquer tipo de contato: “Nenhum espírito e nenhum anjo toca o fundo da alma, nem mesmo a natureza da alma”. É ausência de ponto final: “No fundo da alma nada pode chegar a não ser a mais pura divindade”86.

A partir dessas acepções espalhadas nos diversos sermões e tratados do

Meisterqueremos propor que grund seja entendida como uma metáfora que

desliza por todos esses campos semânticos, sendo um abismo supraexistente

anterior à diferenciação entre criador e criatura, um fundo simples e um deserto

silencioso onde nenhuma determinação (divina ou humana) pode habitar. Mas,

para se alcançar esse deserto e esse abismo é preciso um processo de apropriação

desapropriante, expressão encontrada em De Libera para caracterizar essa ascese

radical a que a alma mística precisa se submeter, desapropriando-se de toda

imagem, conceito, inteligibilidade e dogma para então se apropriar da própria

Deidade, não como um ser ou um objeto exterior, experienciável, mas como um

retorno a si mesmo, em uma identificação e confusão de substâncias divina e 86 Respectivamente trechos de: Prédica 6, prédica 33, idem, idem, prédica 8, prédica 17, prédica 33, prédica 22. In: RASCHIETTI,Matteo. Quaestiones Eckhartianae., p. 89-90.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 29: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

143

humana. Também Deus precisa ser desapropriado de todas as qualidades que

n’Ele projetamos para nascer na alma humana, engendrando-se em si mesmo,

como fica claro no Sermão 14, um daqueles pertencentes à Segunda lista de

acusação da Colônia contra o Meister:

(...) Davi disse: Hoje eu te engendrei [Sl 2,7]. O que significa hoje? A eternidade. Eu me engendrei eternamente enquanto tu, e tu enquanto eu. Mas não basta o homem nobre e humilde ser o Filho único eternamente engendrado pelo Pai. Também ele quer ser pai. Quer entrar na mesma semelhança com a Paternidade eterna. Quer engendrar aquele de quem sou eternamente engendrado. Foi o que eu disse em Meregarden. Deus vem para seu bem próprio [JO 1, 11]. Sê o bem próprio de Deus. Deus será teu bem próprio assim como ele é seu bem próprio87.

Na íntegra, esse sermão trata dos dois tipos de “rebaixamento” de Deus em

relação ao homem pobre/nobre: o primeiro rebaixamento se refere à encarnação,

que seria o primeiro sinal da humilhação divina, quando o Verbo se faz carne e

habita em nosso meio (Conf. Jo, 1, 14). A segunda humilhação ou rebaixamento

se dá por meio da inabitação do Verbo divino no coração humano, pela qual o

cristão torna-se filho de Deus. De Libera enfatiza que essa doutrina do

rebaixamento de Deus pela graça da encarnação e da inabitação é uma doutrina

teológica pacífica, que em si mesma não tem nada de inquietante para a Igreja.

Entretanto, o escândalo desse texto, que como dissemos acima foi usado como

material de acusação para o Meister, é que a desapropriação apropriante se

estende também a Deus, que após ter se despojado de si mesmo apropria-se de si

mesmo no coração humano. Ou seja, uni-se o rebaixamento interior divino com a

deificação humana. Deus deixa de ser o inteiramente outro para se tornar o não-

outro, pois se não há simetria possível entre deidade e humano ainda assim não é

“fora” de seu coração que o homem místico deve buscar a Deus, e sim em sua

própria interioridade, como fica claro no Sermão 6: “Eu disse um dia aqui mesmo

e é verdade: se o homem se apropria de ou toma algo exterior a si, isto não é um

bem. Não devemos entender nem considerar Deus como fora de nós, mas como

nosso próprio bem e como o que está dentro de nós”88.

Nesse momento tentaremos compreender esse processo de transcendência

divino-humana a partir de um poema do Meister, o Granumsinapsis. Nosso

87Apud DE LIBERA, Alain. Pensar a Idade Mèdia., p. 309-310. 88Apud DE LIBERA, Alain., op. Cit., p. 312.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 30: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

144

principal objetivo é perceber nesse texto poético a configuração dos filosofemas

discutidos como próprios à mística do Meister. Nos parece prudente manter sob o

horizonte do leitor o fato de que essa é a análise de um especialista em literatura, e

não em teologia, de modo que o leitor avisado não busque aqui encontrar aquilo

que não foi nossa pretensão abordar.

Granumsinapsis

1 No princípio acima de todo conceito é sempre a palavra. Ó rico tesouro, onde sempre o princípio gera o princípio! Ó seio paterno do qual com alegria sempre fluiu a palavra! Todavia o seio conservou a, isso é verdade. 2 Dos dois um jorro, a brasa do amor, elo dos dois, conhecido aos dois, flui o dulcíssimo espírito totalmente idêntico indivisível. Os três são uno. Conheces a essência dele? Não. Ele compreende si mesmo melhor do que tudo. 3 O elo dos três suscita profundo espanto, este círculo o intelecto nunca o compreendeu: aqui há um abismo sem fundo. Xeque-mate ao tempo, às formas, ao lugar! O círculo maravilhoso é origem, totalmente imóvel está seu ponto. 4 A montanha do ponto escalas sem obra, razão! O caminho te leva a um deserto maravilhoso, que amplo e espaçoso

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 31: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

145

estende-se sem limite. O deserto [não] tem nem tempo nem lugar, seu modo é original. 5 O deserto Bem [que] nunca pisou pé, intelecto criado nunca alcançou: ele é, e ninguém sabe o que é. Está aqui, está lá está longe, está perto, é profundo, é alto, é tal que [todavia] não é nem isto nem aquilo. 6 É luminoso, é claro, é totalmente obscuro, é sem nome, é desconhecido, livre do princípio e do fim, permanece na paz, nu, sem roupa. Quem conhece sua moradia? Venha lá fora e nos diga qual é a sua forma. 7 Torna-te como uma criança, torna-te surdo e cego! Teu ser pessoal deve tornar-se um nada, todo algo e todo nada mandas embora! Deixa lugar e tempo, fuja também a imagem! Vai sem caminho pela vereda estreita assim encontrarás o rastro do deserto. 8 Ó minh’alma saia, Deus entre! Todo meu inteiro “algo” seja no nada divino, mergulhe no jorro sem fundo! Fugindo de ti, [assim] tu vens a mim. Se eu perder a mim mesmo,

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 32: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

146

eu encontro a ti, ó bem supra-essencial

O título Granumsinapsisnão é original, mas remonta ao comentário em latim

do poema, de título granumsinapsis de divinitatepulcherrima in vulgari(grão de

mostarda da divindade belíssima, em alemão), que é parvum in substantia,

magnum in virtute(pequeno quanto à substância, grande quanto o valor). O título

original, mais pertinente ao conteúdo do texto, deveria ser “O cântico da

Trindade” (Dreifaltigkeitslied)89

.Conforme Raschietti a estrutura do poema,

dividido em 8 estrofes, é a seguinte:

1ª estrofe: procissão inseparável do único engendrado a partir do engendrado; 2ª estrofe: emanação do amor divino e união dos Três; 3ª estrofe: superação dos sentidos e da inteligência por esta união, comparada com uma esfera cujo centro é imóvel; 4ª estrofe: modo de conhecimento desse centro, cuja conseqüência é uma admirável solidão; 5ª estrofe: caracterização dessa solidão (que não é compreensível e não é nada do que é); 6ª estrofe: solidão luminosa e tenebrosa, imóvel e sem relação com nada; 7ª estrofe: ordem de deixar o conhecimento sensível e intelectivo; 8ª estrofe: exortação para que a alma abandone si mesma a fim de proceder em Deus.

O poema se estrutura em torno da caracterização de um abismo sem fundo e

de um deserto sem modo e sem tempo no qual do ser criatural se funde ao nada

divino, em um processo radical de transcender não apenas das representações de

Deus (sua essência e seus nomes) como também todas determinações sócio-

culturais e biológicas inerentes à criatura humana, operando assim uma espécie de

passagem da criatura para o incriado, do tempo para a eternidade, desse Deus

relativo (Gott) para a trans-divina divindade abissal (Gottheit).

O processo pelo qual a alma transcende a si mesma e a esse Deus criado e

determinado é descrito por MeisterEckhart em diversos textos, alguns dos quais

mencionados no tópico anterior. Em artigo em que trata o tema do abandono

divino nos místicos Eckhart e AngelusSilesius, Paulo Borges entende que ambos

irão postular um imperativo – que é o de todo místico – de transcendência radical

que inclui o transcender a Deus enquanto Deus nomeado pelo nosso desejo. Para o

autor português o sentido de transcender Deus se encontra na necessidade de

89Conf. RASCHIETTI,Matteo. QuaestionesEckhartianae., p. 22.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 33: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

147

(...) desprendimento e desconstrução radical de todos os correlatos e derivas da autoprodução do sujeito, surgindo apenas como incompreensível impiedade para uma religião e ontoteologia que, sem o corretivo apofático e místico da experiência do fundo sem fundo de tudo, faça do “Deus” humanamente pensado como ente supremo a realidade última e absoluta90.

O deserto será a metáfora desse “Deus abandonado”91, dessa suprema

deidade que é expressa negativamente, dadas as impossibilidades de condicionar

em palavras o Incondicionado: sem limites ou formas, sem tempo e sem lugar (3ª

estrofe), ela é obscuridade e desconhecimento - “quem conhece a sua casa?”

pergunta-se na 6ª estrofe -, e para alcançar essa nudez absoluta a alma deve

também despir-se de sua pretensa sabedoria e voz, tornar-se infans, sem

linguagem, e ir por um caminho que pé algum trilhou ou construiu veredas. Ao

perder-se enquanto sujeito de razão e discurso, ao despir-se das determinações

sociais e culturais que fazem do místico um indivíduo inscrito em seu tempo e seu

espaço é que o ele pode pisar nesse deserto, habitando o inabitável. Assim, o

deserto será uma imagem poderosa para compreender não apenas esse processo de

desprendimento e empobrecimento - humano e divino - como também de uma

experiência inquietante, onde não há produção de estabilidades cognitivas ou

marcos teóricos, apenas um contínuo devir.

As três primeiras estrofes do poema se referem ao mistério insondável da

Trindade, que como vimos anteriormente é compreendida por Eckhart como Gott,

ou seja, como esse Deus que se diferencia em três pessoas – Pai criador, Filho

encarnado e Espírito consolador – e que estabelece uma relação com o humano

através da revelação. Mas já aí há a menção a um principio que gera o princípio,

fundamento que estaria acima (e fora) de todo conceito (intelecto nunca o

compreendeu) e de toda categoria de pensamento temporal ou espacial (xeque-

mate ao tempo, às formas e ao lugar). O elo das três pessoas da trindade é

comparado a um círculo maravilhoso que faz referência ao motor imóvel e à

Causa eficiente de Aristóteles. Ponto de intercessão e união que “apaga” as

90 BORGES, Paulo. Transcender Deus. 91 “A palavra deserto é uma metáfora central nas obras de Eckhart e, a todos os efeitos, é um verdadeiro nome próprio que designa metaforicamente o ser de Deus, a “essência divina” enquanto idêntica ao nada. Essa é a sugestão que provém do comentário anônimo traduzido e publicado em apêndice ao Poema. O “rastro do deserto” é, portanto, a marca da deidade, aquele fundo sem fundo para onde conduz a “vereda estreita” que o homem percorre quando chega a superar “todo ser e todo nada” (7ª estrofe)”. RASCHIETTI,Matteo. QuaestionesEckhartianae., p. 23.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 34: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

148

marcas da diferenciação de Gott, para que possa aparecer e surgir Gottheit, a

deidade nua de predicados e resistente à nomeação.

As outras cinco estrofes tratam do percurso até a unyomystica, processo que

se inicia pelo reconhecimento de que a montanha do ponto deve ser escalada de

modo improdutivo pela razão, ou seja, deve-se abandonar toda pretensão de

cognição e linguagem, pois é em um deserto que culminará o percurso místico,

um deserto cujo modo é original. Original, do latim originālis, “origem, fonte,

nascimento”, vocábulo que no poema nos remete a um fundo abissal que

fundamenta todo conhecimento, linguagem e pensamento, mas que em si não

pode ser conhecido, falado ou pensado, daí a reiterada afirmação de que nesse

deserto nenhum pé pisou, nem intelecto criado teve acesso. A incognoscibilidade

desse “lugar” se deixa mostrar por sua caracterização por meio de pares de

adjetivos que se anulam, rompendo com toda e qualquer possibilidade de

afirmação positiva: esse deserto está juntamente aqui e lá, longe e perto, profundo

e alto, não sendo nem isto nem aquilo, é claro/luminoso e obscuro, livre de

principio e de fim.... Ainda que duplamente despido de qualidades (nu e sem

roupa) há paz nesse lugar de impermanência, cuja localização e forma ninguém

pode dizer, exceto aqueles que também se despiram das estabilidades cognitivas

proporcionadas pelos órgãos sensíveis, tornando-se infans (sem linguagem), surdo

e cego; abdicando dos a prioris kantianos (espaço e tempo); fugindo das imagens

(conceitos) divinas; nadificando-se (deves tornar-se um nada) enquanto sujeito de

desejo e verdade. É preciso realizar um movimento de dentro para fora (sair de si

mesmo) para que Deus entre, o que em muito lembra a metáfora de San Juan da

Alma em busca do Amado pela noite escura, comprovando a influência do

Meister no místico espanhol. Por outro lado, a aniquilação do sujeito (Todo meu

inteiro “algo” seja no nada divino), que mergulha inteiro no nada divino, é um

tema bastante caro à mística beguina, que muitos reconhecerão ter influenciado o

Meister. Veja-se, por exemplo, um trecho de Margareth Porete, cujos escritos

condenados pela Inquisição, conforme dito anteriormente, é bastante provável que

o Meister tivesse conhecido:

Como essa Alma não se preocupa consigo mesma, nem com seu próximo, nem com

Deus mesmo

(Amor): Agora essa Alma, diz Amor, tem seu nome correto a partir do nada no qual permanece. E já que ela é nada, nada lhe preocupa, nem sobre si mesma, nem sobre seus próximos e nem sobre Deus mesmo. Pois ela é tão pequena que não se pode

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 35: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

149

encontrá-la. Todas as coisas criadas estão tão distantes dela que ela não pode senti-las. E Deus é tão grande que ela não compreende nada. Por conta de tal nada, ela caiu na certeza de nada saber e na certeza de nada querer. E esse nada do qual falamos, diz Amor, lhe dá tudo, e ninguém poderia ter isso de outra maneira. Essa Alma, diz Amor, está aprisionada e detida no país da paz total; está sempre em plena satisfação, na qual submerge, ondula e flutua e se rodeia da paz divina, sem movimentos em seu interior e sem obras externas de sua arte. Essas duas coisas lhe tirariam essa paz, se pudessem penetrá-la, mas não podem, pois ela está no estado supremo onde elas não podem aborrecê-la ou perturbá-la com nada. Se ela faz alguma coisa externa, é sempre sem ela. Se Deus realiza sua obra nela, é por

intermédio dele nela, sem ela, por ela. Tal Alma não está mais aprisionada por isso do que seu Anjo por guardá-la. O Anjo não está aprisionado por nos guardar, não mais do que se ele nunca tivesse nos guardado. Da mesma forma. Tal Alma não está aprisionada pelo que faz sem ela, não mais do que estaria se nunca tivesse feito nada. Pois ela mesma não tem nada. Ela deu tudo livremente sem nenhum porquê, pois ela é a dama do esposo de sua juventude. (....) 92

À moda da mística feminina das beguinas, o Meister relaciona intimamente a

‘busca’ de Deus com sua inacessibilidade, de modo que é ao ‘fugir’ de Deus

(Gott) e ao ‘perdê-lo’ que a alma mística poderá encontrá-lo, mas não como algo

que se esteja aqui ou acolá, algo que se possa dizer ‘é isso’ ou ‘é aquilo’, mas sim

como um ‘alguma coisa’ (Gottheit) que rejeita toda palavra por inadequada, e toda

cognição por imprópria. È portanto um deus-abismo, noite e deserto que

comparece nos escritos do Meister, deidade sem nome, simples em sua unidade e

nua de atributos, duplamente aquém e além dos limites humanos.

****

Passaremos agora aos demais poetas-místicos, fortemente influenciados

pelo inconfundível estilo do Meister, mas articulando com dicção e acento próprio

os temas explorados por ele.

92PORETE, Marguerite. O espelho das Almas simples e aniquiladas e que permanecem somente na vontade e no desejo do Amor., p. 142-143, grifos nossos que sinalizam topos coincidentes com a mística eckhartiana.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 36: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

150

5.3 Opathos amoroso no itinerario espiritual de San Juan de La Cruz

Juan de La Cruz nasceu Juan de Yepes Alvarez em 1542, Fontiveros,

Espanha. Oriundo de uma família de aristocratas empobrecidos ingressa na

Ordem Carmelita aos 21 anos, certamente impulsionado pelos ideais de solidão e

contemplação absoluta dos primeiros eremitas fundadores da ordem. Logo San

Juan se desilude com o relaxamento da vida monástica em que viviam os

Conventos Carmelitas, onde os ideais contemplativos que tanto o haviam atraído

se haviam se convertido em dócil sociabilidade que não satisfaziam sua vocação

de místico. Em 1567 conhece Teresa d’Ávila, que chega a Medina para fundar um

monastério de carmelitas descalças, San Juan então decide aliar-se a ela para

iniciar a Reforma do Carmelo, resgatando o fervor místico e contemplativo

original dessa ordem.

Em 1577 San Juan é seqüestrado por estranhos e mantido encarcerado

durante nove meses em uma pequena cela escura e sem quaisquer confortos. O

motivo da prisão é o descontentamento com a reforma da ordem carmelita que

San Juan e Teresa D’Avilla estão empreendendo. Na absoluta solidão de sua

pequena e escura cela ele permanece por nove meses, pobremente alimentado,

sendo flagelado e injuriado constantemente, em um buraco de seis pés de largura e

dez de comprimento, sentindo no corpo o terrível inverno de Toledo. Ali, com a

alma mergulhada na noite escura da desesperança, San Juan inicia sua produção

místico-poética com o parco papel e tinta que um carcereiro mais misericordioso

lhe dá. Assim, ao fugir da prisão, em lances dramáticos que incluem uma corda

feita com cobertores e a descida pelo alto muro da prisão, ele tem na memória os

versos do Cântico espiritual, de modo que, ao encontrar refúgio entre os

carmelitas descalços, não é sobre a prisão e fuga que lhes noticia, antes lhes recita

os versos ainda inacabados do Cântico.93

Mais do que mera curiosidade biográfica, o episódio da prisão em Toledo

interessa pela influência decisiva que terá na simbologia danocheoscura, central

na poética e na mística de San Juan. Em clara contraposição à metáfora da luz,

93 Nem todos os comentadores de San Juan concordam com a escrita do poema na prisão, ainda que possam concordar com a inspiração do tema e a feitura de alguns versos ali. Entretanto, assim narra a lenda sobre o santo-místico, sendo essa narrativa comum em diversas notas biográficas sobre sua vida. Nossa simpatia fica com a lenda, pois a mesma, como é próprio aos mitos, congrega vários elementos que ajudam a tornar inteligíveis aspectos importantes da obra sanjuanina.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 37: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

151

tantas vezes relacionada ao insight cognitivo que “emancipa” o humano das trevas

da ignorância, a imagem da noite escura fala da negação das possibilidades de

conhecimento que é assumida, na apofática, como método para uma experiência

que não é nem sensível nem inteligível, não sendo catalogável pelo nosso sistema

de cognição.

Dentro dos interesses de nosso estudo estaremos analisando dois poemas de

San Juan: NocheOscura (o poema e alguns trechos dos comentários a ele relativo

intitulados Subida ao Monte Carmelo e NocheOscura) e o Cântico espiritual.

Ambos poemas tratam de uma busca repleta de perigos, aventuras e depathos

amoroso, onde a distância ontológica entre os amantes é abissal, mas não

obstáculo ao encontro dos mesmos.

Ainda que no poema Cântico Espiritual a metáfora da noite escura não

compareça de forma explícita, permanece-lhe subjacente na medida em que o

diálogo com o texto bíblico (Cântico dos Cânticos ou Cantares de Salomão) se

estabelece de forma imperativa e, nesse último, a Amada se levanta de sua cama,

alta noite, a buscar pelo Amado pelas ruas e praças da cidade. Ao contrário do

poema NocheOscura, no Cântico a noite é serena quando chega, e encontra os

amantes em idílio amoroso, gozando das delicias amorosas. Mas, até ali chegar,

que longo caminho não foi percorrido pela Alma buscando seu Amado através de

montes e fronteiras, sem temer feras ou fortes (3ª estrofe Cântico Espiritual ).

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 38: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

152

5.3.1 Cântico espiritual94

Nesse poema chama a atenção, logo de início, uma certa retórica feminina

muito próxima àquela adotada pelos poetas-trovadores medievais, que

protagonizaram uma das maiores “invenções” da cultura ocidental: o amor

delicado95. O simples fato de encontrarmos a recorrência de um artifício literário,

ou seja, a assunção de um lirismo feminino, ou o falar “como se” fora uma mulher

— isso em um religioso austero como o carmelita San Juan de la Cruz — já seria

o suficiente para chamar nossa atenção a essa lírica. No entanto, há ainda mais

beleza, inquietação, rigor estético e especulação intelectiva nesse espanhol

quinhentista que se serviu de gêneros tradicionais da literatura (romances e

cantares medievais, metros e formas renascentistas) para cunhar uma vigorosa

poesia espiritual que dialoga ainda com um dos livros mais belos (e eróticos) da

literatura mundial: o Cântico dos Cânticos, um dos livros canônicos da tradição

cristã.

San Juan de la Cruz é, ao lado de Tereza d’Ávila, de quem foi amigo e

confessor, a maior expressão da mística católica hispânica, uma mística que se

encontra, como afirma Bingemer, “na esfera da passividade”, característica

culturalmente associada ao feminino que é própria da mística cristã. Com efeito,

em outras tradições místicas não se encontra essa ênfase ao caráter passivo da

experiência, e o êxtase — momento culminante da mística — pode ser estimulado

ou provocado, quer seja por meio de substâncias e/ou rituais alucinógenos (como

por exemplo no candomblé e na seita do Santo Daime), quer seja por meio de

técnicas de controle e meditação (como nas “religiões” orientais):

Na tradição cristã o percurso é o inverso, pois principia do alto para baixo. O místico é acometido por um agente, Deus ou o Demônio. Daí esse conceito básico: a experiência mística é uma experiência de posse96.

94 O poema é bastante longo, portanto não o transcrevemos no corpo do trabalho, mas o mesmo consta nos anexos da tese, mais propriamente no Anexo I. 95 Pode-se entender por amor delicado, ou amor cortês, o extrato da lírica provençal que surge ao sul da França (Provença) ainda no século XI, e está na base daquilo que hoje denominamos “amor romântico”. Segundo afirma o historiador Jacques Le Goff, “a descoberta do amor humano (....) é um dos grandes acontecimentos do século XII”. GOFF, Jacques Le. O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval., p. 56. 96 BINGEMER, Maria Clara. A mística cristã em reciprocidade e diálogo: a mística católica e o desafio inter-religioso.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 39: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

153

Passivo diz-se do feminino, com todas conotações associadas: patológico,

patético, paciência, paixão. Em contraponto ao masculino, ação, verbo, a mulher

gesta em silêncio as teias e véus com os quais receberá, sempre Penélope, seu

Ulisses aventureiro. O feminino sofre a espera, a ausência, o esquecimento do

Amado, mas também urde nessa espera canções de amor e esperança que

alimentam os seus e os nossos sonhos97.

A poesia mística de San Juan de la Cruz será tributária dessa tradição que vê

no feminino o receptor de uma ação externa alheia a seu domínio e controle.

Porém, é importante notar um pequeno desvio de rota desse lugar comum na

medida em que será um homem, exercendo suas prerrogativas de sacerdote e líder

espiritual em um tempo em que o poder eclesiástico rivalizava-se com o poder dos

reis, que adotará essa retórica feminina, a daquela que ama no gerúndio, a

Amante. Apesar de mais facilmente aplicável ao poema Cântico, esse mesmo

princípio poderia ser estendido a toda a obra de San Juan de la Cruz, e até mesmo,

como atentou Bingemer em citação anterior, a toda mística cristã hispânica. Há

que se lembrar, também, que no próprio poema Cântico espiritual, a ser analisado

a seguir, a ação de busca do Amado é feminina.

Passemos então a análise do poema, que tem como subtítulo “Canções

entre a alma e o esposo”, desde já anunciando a metáfora estruturante do poema: a

Esposa é a Alma, a que ama (Amante), e o Esposo (o Amado) é o próprio Deus,

Aquele a quem se deve amar sobre todas as coisas, com nosso coração, alma,

força e entendimento98.

97Há inúmeros exemplos, dentro e fora da cultura literária, para apoiar essa constatação, e daremos apenas um, que aparece na novela de cavalaria Amadis de Gaula, do mesmo século de San Juan de la Cruz: Amadis e Oriana são os protagonistas dessa ficção, ainda medieval, que narra suas aventuras e desventuras amorosas. No evento que queremos chamar atenção o casal, que simboliza o perfeito encontro amoroso entre o Feminino e o Masculino deve passar por uma prova na qual apenas venceria aqueles que fossem “perfeitos amadores”. A parte que cabe a Amadis é retirar uma espada incrustada em uma rocha, uma clara referência à lenda do Rei Artur, já a contraparte de Oriana é receber em sua cabeça uma guirlanda cuja metade é de maravilhosas flores imperecíveis, e a outra parte flores murchas e ressequidas que floresceriam novamente ao tocar a cabeça daquela em quem o Amor fosse perfeito. Vê-se por esse exemplo que a ação é entendida como inerente ao masculino — Amadis saca da espada — e a passividade — Orianarecebe a coroa de flores — atribuída ao feminino. Mas passividade não significa apatia ou inércia, e a ação de Penélope, nosso símbolo do feminino, bem comprova isso, pois ao tecer seu véu tece também o tempo que tornará possível o retorno de Ulisses e a retomada de tudo que lhe era de direito. Antes, passividade deve ser entendida positivamente, como disponibilidade generosa para acolher o outro e para sofrer o pathos amoroso sem pejo, daí a constatação que não se trata aqui de sexo, e sim de gênero, e um exemplo eloqüente é o compositor Chico Buarque, que freqüentemente escolhe a voz feminina para expressar o pathos amoroso. VIEIRA, Afonso Lopes. Amadis de Gaulla. 98cf. Marcos 12:30, A Bíblia de Jerusalém, op. cit.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 40: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

154

O poema, desde o título, já se propõe a um diálogo intertextual com outro

poema místico, o Cântico dos Cânticos, atribuído ao bíblico rei Salomão. Veja-se

por exemplo a comparação entre alguns versos dos dois cânticos:

Cântico dos cânticos Cântico espiritual, San Juan de la Cruz Em meu leito, pela noite, Onde é que te escondeste, Procurei o amado da minha alma. Amado, e me deixaste com gemido? Procurei-o e não encontrei! Havendo-me ferido; Vou levantar-me, Ai, por ti clamando, e eras já ido. Vou rondar pela cidade, Pastores que subirdes Pelas ruas, pelas praças, Além, pelas malhadas, ao Outeiro, Procurando o amado da minha alma Se, porventura, virdes Procurei-o e não encontrei!... Aquele a quem mais quero Dizei-lhe que adoeço, peno e morro99. Encontraram-me os guardas Que rondavam a cidade. Buscando meus amores, “Vistes o amado da minha alma?”. Irei por estes montes e ribeiras; Não colherei as flores, (....) nem temerei as feras Filhas de Jerusalém, e passarei os fortes e fronteiras. Eu vos conjuro: Se encontrardes o meu amado, Que lhe direis? ... Dizei-lhe Que estou doente de amor!100

Não apenas o simbolismo usado por San Juan em seu poema amoroso é de

inspiração do cântico dos cânticos, mas podemos mesmo dizer que

freqüentemente alguma estrofe é paráfrase ou mesmo interpretação livre de um

versículo bíblico101. San Juan, como estava em voga até então, interpreta

alegoricamente o livro bíblico como o encontro amoroso do povo israelita e seu

Deus, ou como as núpcias do Cristo com sua Igreja102 e, apoiado nessa

interpretação, joga com o simbolismo bíblico, em especial com o símbolo nupcial,

como um recurso místico para a expressão do inefável103. Outrossim, o

99 SÃO JOÃO DA CRUZ . Obras Completas. 100 Cântico dos cânticos, cap. 3: 1-3 e cap. 5: 8. BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulinas, 1985. 101 Sobre as semelhanças entre o Cântico bíblico e o sanjuanino ver: ALONSO, Dámaso. La poesía de San Juan de la Cruz (Desde esta ladera). 102 Apesar da interpretação alegórica do livro do pseudo-Salomão ser a mais popular, e bastante antiga, atualmente muitos exegetas bíblicos julgam que essa perspectiva seja artificial e forçada, optando pela interpretação literal, qual seja, a celebração do amor e do erotismo legítimo entre um homem e uma mulher. A esse respeito ver comentários ao livro Cântico dos Cânticos, BÍBLIA DE JERUSALÉM. 103 Conforme SALVADOR, Federico Ruiz. Introducción a San Juan de la Cruz. Madrid, 1968, p. 222-223.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 41: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

155

simbolismo erótico não é privilégio da mística de San Juan de la Cruz, aparecendo

em tradições religiosas tão diversas quanto o hinduísmo, o budismo e o sufismo

árabe:

A união erótico-amorosa tem sido o único símbolo da união mística utilizado por praticamente todas as tradições místicas, incluindo a cristã, e ao contrário de qualquer outro símbolo sagrado, a sexualidade imanente no amor e no erotismo é universal e a-histórica: o ser humano jamais poderia prescindir dela, e quando o fez por meio de exercícios de ascetismo, recorre a metáforas ou alegorias para encontrar um caminho que permita expressar a inefabilidade da continuidade do ser, a participação em Deus através de sua semelhança com a vida amorosa104.

Faustino Teixeira105 chama atenção para uma imagem que aparece logo no

início do Cântico, que é a “saída” da Amada em busca do Amado, de forma

semelhante ao poema bíblico em que é do Amado o convite: “Levante-te, minha

amada, formosa minha, vem a mim!”106. A singularidade do poema sanjuanino é

que, em San Juan, trata-se de um movimento para dentro, para o fundo de si

mesmo, em um processo de interiorização de toda ação do poema, que passaria a

se dar no fundo do coração. Segundo interpreta o próprio San Juan, para encontrar

seu Amado a Alma deve “sair de todas as coisas segundo a inclinação e a vontade,

e entrar em sumo recolhimento dentro de si mesma, considerando todas as coisas

como se não existissem”107. Deus se esconde no íntimo da Alma, e para encontrá-

lo é necessário “sair”, abandona todas as afecções sensíveis e inteligíveis em uma

jornada que atravessa a noite escura do não-saber. Na análise de Faustino Teixeira

sobre o poema

Faz parte da trajetória purgativa da amada buscar libertar-se de seus antigos hábitos, romper com as “distrações” que a afastam de seu objeto amoroso, alhear-se de todas as coisas e criaturas (CB 8-9). Daí a necessidade da amada também esconder-se em sua interioridade, pois não é fora de si que ela poderá encontrar o Amado: “Que mais queres, ó alma, e que mais buscas fora de ti, se tens dentro de ti tuas riquezas, teus deleites, tua satisfação, tua fartura e teu reino” (CB 1,8). O Amado habita o interior da amada, mas ela não o percebe pois ele está escondido.

104No original: “La unión erótico-amorosa ha sido el único símbolo de la unió mística utilizado por prácticamente todas las tradiciones místicas, incluida la cristiana, y a diferencia de cualquier otro símbolo sagrado, la sexualidad inmanente en el amor y en el erotismo es universal e a-histórica: el ser humano jamás ha podido prescindir de ella, y cuando lo ha hecho con ejercicios del ascetismo, recurre a metáforas o alegorías para hallar una vía que permita expresar la inefabilidad de la continuidad del ser, de la participación de Dios por medio de su símil con el acto amoroso”. ROSADO, Juan Antonio. Erotismo, misticismo e arte. 105 TEIXEIRA, Faustino. Nos rastros do amado:o cântico espiritual de João da Cruz. In: Faustino TEIXEIRA (Org). Nas teias de delicadeza., p. 64. 106 Cântico dos cânticos 2: 10. BÍBLIA SAGRADA. 107 Comentário ao Cântico Espiritual, In: SÃO JOÃO DA CRUZ. Obras completas., p. 596.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 42: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

156

Ela necessita “sair” para dentro de si, e escondida em seu interior será capaz de encontrá-lo e senti-lo (CB 1,9)108.

Portanto, o Cântico apresenta-se como metáfora do processo místico que

conduz o homem mortal até Deus: nas primeiras estrofes (I – V) tem-se a via

purgativa, onde a Alma expõe suas feridas espirituais e declara que essas feridas

amorosas apenas podem ser curadas com “a presença e a figura” do Amado; nas

estrofes intermediárias tem-se uma via iluminativa (VI-XIII), na qual o Amado

fala pela primeira vez, e a Alma novamente tem como interlocutores as forças

anímicas da natureza e também seres mitológicos (como as ninfas da Judéia), já

agora pacificada pela recordação do que o Amado representa em sua vida — “No

Amado acho as montanhas,/ os vales solitários, nemorosos,/ as ilhas mais

estranhas,/ os rios rumorosos, / e o sussurro dos ares amorosos... —; e por fim nas

últimas estrofes a via unitiva(XIV-XV), onde Amante e Amado por fim se

encontram em um lócus amenus anteriormente preparado para eles109.

Seguindo a tradição que interpreta o Cântico dos Cânticos como alegoria da

união entre Cristo e sua Igreja, o Cântico Espiritual elabora uma narrativa lírico-

amorosa de desencontros e encontros: a Alma (a Esposa) é aquela voz que abre o

cântico, anunciando a ausência dolorosa do Amado, e interpelando as criaturas

(na verdade toda a natureza, que aqui é entendida como tendo vida e vontade

própria, capaz portanto de “ver” o Amado, e “saber” de seu paradeiro) em busca

de pistas que levem-na a seu encontro. Alguns versos depois aparece o Amado, e

fala ternamente, ao que ela, a Alma, responde contabilizando as doçuras do

Amado, expressando, às mesmas forças da natureza que viram seu anterior

sofrimento amoroso, a alegria de agora pela presença do Amado. Das estrofes 17-

26 narra-se a união mística dos amantes, em um Éden paradisíaco que é cenário

para a redenção da Alma perdida através da ”renovação” propiciada por Cristo, o

segundo Adão110; das estrofes 27-31 a consumação do casamento místico, onde a

Alma confessa “(...) não tenho outro ofício e amar é meu exercício”, e nas demais

estrofes (32-34 e 35-39) a narrativa das delícias amorosas da união entre Amante e

108 TEIXEIRA, Faustino. Nos rastros do amado: o cântico espiritual de João da Cruz., p. 63-64. 109Classificação dada pelo próprio San Juan no Comentário ao Cântico Espiritual, in: SÃO JOÃO DA CRUZ. Obras completas. 110 Conforme interpretado pelo Apóstolo Paulo em sua Carta aos Romanos cap. 5: 12-21. Veja-se o seguinte trecho: “Por conseguinte, assim como pela falta de um só resultou a condenação de todos os homens, do mesmo modo, da obra de justiça de um só, resultou para todos os homens justificação que traz a vida” (vers. 18). BÏBLIA SAGRADA.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 43: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

157

Amado e um novo monólogo da Alma, mas agora sem o desespero pela ausência

do Amado.

Se o Cântico Espiritual, como o definiu seu autor, é a narrativa da procura

desesperada da Alma por Deus e por fim da união mística entre ambos, há que se

atentar que é a Alma que sofre o pathos amoroso, é ela quem se perde de seu

Amado e quem por ele clama: “Onde é que te escondestes, Amado, e me deixaste

com gemido?”. É a coita amorosa, com alguma ressonância da poesia medieval,

expressa com intensidade e paixão pelo eu-lírico feminino, voz predominante

nesse poema dramático que se estrutura como um diálogo entre Amante e Amado,

mas no qual a voz feminina fica em primeiro plano. Na busca do Amado são

esquecidos prazeres e temores,

Quem poderá curar-me?!

Acaba de entregar-me já deveras; Não queiras enviar-me Mais mensageiro algum, Pois não sabem dizer-me o que desejo. E todos quanto vagam, De ti me vão mil graças relatando, E todos mais me chagam; E deixa-me morrendo Um “não sei quê”, que ficam balbuciando. Mas como perseveras, Ó vida, não vivendo onde já vives? Se fazem com que morra As flechas que recebes Daquilo que do Amado em ti concebes? Por que, pois hás chagado Este meu coração, não o saraste? E, já que mo hás roubado, Por que assim o deixaste E não tomas o roubo que roubastes? Mostra tua presença! Mate-me a tua vista e formosura; Olha que esta doença De amor jamais se cura, A não ser com a presença e com a figura.

Intrépida, a Alma avança, aventureira, sem se distrair com a beleza e sem temer

ultrapassar as fronteiras do dizível e conhecido. É movida pelo pathosamoroso, e

carrega feridas que só o Amado pode curar com sua presença e formosura, caso

contrário a vida já não poderá mais viver onde já não vive: nesse coração chagado.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 44: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

158

Apenas a presença e a figura do Amado pode estabelecer esse lócus amenus

propício para as delícias da paixão: um lugar longe de todo cuidado humano,

aprazível e em harmonia com a natureza, onde apenas a presença de Amante e

Amado seja permitida para gozarem da solidão amorosa todo prazer e deleite

proporcionado pela presença do Amado:

No Amado acho as montanhas, Os vales solitários, nemorosos, As ilhas mais estranhas, Os rios rumorosos, E o sussurro dos ares amorosos; A noite sossegada, Quase aos levantes do raiar da aurora; A música calada, A solidão sonora, A ceia que recreia e que enamora.

Após uma longa e cansativa busca a Amada encontra seu Amado, e pode enfim

fazer o convite:

Eis que a branca pombinha Para a arca, com seu ramos, regressou; E, feliz, a rolinha O par tão desejado Já nas ribeiras verdes encontrou. Em solidão vivia, Em solidão seu ninho há já construído; E em solidão a guia, A sós, o seu Querido, Também na solidão, de amor ferido. Gozemo-nos, Amado, Vamo-nos ver em tua formosura, No monte e na colina, Onde brota a água pura; Entremos mais adentro na espessura. E, logo, as mais subidas Cavernas que há na pedra, buscaremos; Estão bem escondidas; E juntos entraremos, E das romãs o mosto sorveremos. Ali me mostrarias Aquilo que minha pretendia, E logo me darias, Ali, tu, vida minha, Aquilo que me deste no outro dia.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 45: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

159

Agora talvez a declaração de que a retórica de San Juan de la Cruz seja uma

retórica feminina seja mais bem compreendida, pois o que se quer afirmar é

menos uma ausência de ação — o que de qualquer forma seria uma inverdade,

desde que o poema se estrutura a partir da efetiva ação de busca da Alma pelo

Amado — do que uma disposição ao outro, e uma alegre e corajosa aceitação da

coita e do pathos amoroso, vivendo-o sem subterfúgios, mas também sem

amargura ou desencanto: ainda que a Alma vague perdida e ferida de morte pela

ausência do Amado não há nela desespero, apenas esperança, fé e amor, as três

maiores virtudes cristãs, como nos ensina Paulo, o apóstolo 111.

111 “Porque agora vemos como por espelho, em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei plenamente, como também sou plenamente conhecido. Agora, pois, permanecem a fé, a esperança, o amor, estes três; mas o maior destes é o amor”. Primeira Carta aos Coríntios 13, 12-13. A BIBLIA DE JERUSALÉM.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 46: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

160

5.3.2 Nocheoscura

Se no Cântico espiritual as metáforas são de uma doce melancolia devido a

ausência do Amado, no poema Nocheoscura muda-se o campo semântico para a

incognoscibilidade e perigo presentes nas imagens noturnas, reafirmando uma

trajetória a que o místico se sente impelido a fazer: sair da doméstica tranqüilidade

do habitual para uma escuridão que ilumina justamente pelo que faz apagar. A

noite escura será o símbolo escolhido para o necessário abandono do sensível e do

inteligível, de modo que se possa aceder ao lugar onde habita a divina deidade: o

Monte Carmelo112. De acordo com Mancho Duque

A concepção da Noite como percurso, enfatizada pela grande maioria da critica sanjuanina, responde e se corresponde com o desenvolvimento da própria experiência mística. Trata-se de um processo de conversão ao divino, de um transformar-se em Deus por participação113.

A Subida ao Monte Carmelo é um dos comentários de San Juan ao poema

Nocheoscura, o outro comentário é NocheOscura de Alma. Comentar os próprios

textos místico-poéticos era seu costume, e esses textos em prosa são posteriores

aos poemas, configurando um esforço hermenêutico de esclarecer a doutrina

mística do autor a partir deles114. Um detalhe interessante notado por Franke é

uma certa distância entre forma e conteúdo que se abre entre os poemas e os

comentários dos mesmos, pois, se os poemas são permeados por uma exuberante

sensualidade, os comentários aconselham o mais severo ascetismo115. Para os

112 Como já destacamos anteriormente, o Monte Carmelo foi cenário da bíblica disputa entre Elias e os profetas de Baal (conf. I Reis 18), onde Deus havia se materializado consumindo com fogo o holocausto oferecido por Elias a Iahweh. Posteriormente a experiência de Elias será tomada como paradigma para a vida místico-contemplativa, inspirando, em torno do final do século XII, a origem da Ordem dos Irmãos da Bem-Aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo, que tem o profeta Elias como fundador de um novo estilo de vida. San Juan de la Cruz, como carmelita que era, inspira-se nesse episódio para compor o comentário ao poema Nocheoscura intitulado Subida

ao Monte Carmelo. 113 No original: “La concepción de la Noche como transito, destacada por la gran mayoría de la crítica sanjuanina, responde e se corresponde con el desarrollo de la propia experiencia mística. Se trata de un proceso de conversión a el divino, de un transformarse en Dios por participación”. MANCHO DUQUE, Maria Jesús. El símbolo de la noche en San Juan de La Cruz., p. 39. 114 De acordocomDamaso Alonso “ (...) de las obras que conocemos, las primeras fueron poemas, y los tratados doctrinales vinieron después en forma de comentarios en prosa a las poesías. He aquí una estricta ordenación intelectual: primero, el impulso, el anhelo, el fervor; sólo después la madurada introspección, la rigida ordenación, el demorado análisis.” ALONSO, Dámaso. La poesía de San Juan de la Cruz (Desde esta ladera)., p. 24-5. 115 FRANKE, William. FRANKE, William. (Edited with theoretical on critical essays). On what cannot be said., op. cit., p. 366.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 47: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

161

objetivos de nossa tese estaremos priorizando a análise do poema, recorrendo aos

comentários em prosa apenas para esclarecer algum ponto de nossa argumentação.

Nos comentários Subida el Monte Carmelo e NocheOscura de Alma o símbolo da

noite é desenvolvido apenas nas três primeiras estrofes, que tratam de percurso

através da noite do espírito e da noite dos sentidos. Já o poema Nocheoscura San

Juan trataria do simbolismo da noite em sua totalidade, constituindo-se na verdade

o núcleo central de toda a obra sanjuanina116.

Já de início San Juan adverte da dificuldade de tornar inteligível a

experiência da noite escura, a impossibilidade de capturar em conceitos uma

vivência que se dá quando todas as faculdades humanas (sensíveis e inteligíveis)

estariam “neutralizadas” por meio de um rigoroso processo de purgação e ascese.

Assim diz ele:

Para fazer declarar e dar a entender esta noite escura pela qual passa a alma para chegar à divina luz da união perfeita do amor de Deus, como é possível nesta vida, é preciso uma maior luz de ciência e experiência que a minha; porque são tantas e tão profundas as trevas e trabalhos, tanto espirituais quanto temporais, pelos quais costumam passar as ditosas almas para poder chegar a este alto estado de perfeição, que não a ciência humana não é suficiente para saber entendê-lo, nem a experiência para saber dizê-lo; porque apenas aquele que por ele passa saberá sentir, mas não dizer117.

A noite será uma das imagens mais poderosas e de maior expressividade na

poesia de San Juan, uma imagem negativa que fala-nos de um processo de

negação gradual e progressiva que avança até um ponto limite que é a afirmação

absoluta 118. Para San Juan a noite é uma via estreita, um caminho de perfeição de

amor que “passa a alma para chegar à alta e ditosa união com Deus”119, após ter

alcançado o mais alto cume da montanha (do Monte Carmelo) na mais extrema

pobreza de espírito e desprendimento, unida e transformada em Deus, como

explica San Juan em seu comentário:

A alma revela sumariamente, nesta canção, que saiu, levada por Deus, só por amor dele e inflamada neste amor, para procurá-lo em uma noite escura. Esta noite é a privação e a purificação de todos seus apetites sensitivos relativamente a todas as coisas exteriores deste mundo, aos prazeres da carne como também aos gostos da vontade. Este trabalho é feito pela purificação dos sentidos; e por isso diz ter saído “quando sua casa se achava sossegada”, isto é, tendo pacificada a parte sensível, e

116 MANCHO DUQUE, Maria Jesús. El símbolo de la noche en San Juan de La Cruz. 117 Prólogo a Subida ao Monte Carmelo. In: SÃO JOÃO DA CRUZ. Obras Completas. 118 MANCHO DUQUE, Maria Jesús., 41. 119 Noite escura. In: SÃO JOÃO DA CRUZ., op. Cit, p. 439.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 48: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

162

todos os apetites nela adormecidos; porque, em verdade, não pode sair das penas e angustias dos cárceres dos apetites sem estes estarem mortificados ou adormecidos. Ditosa ventura foi “sair sem ser notada”, isto é, sem que qualquer apetite da carne, ou qualquer outra coisa pudesse impedi-la, por ter saído “de noite”, isto é, quando Deus a privava de todos os apetites. A esta privação, a alma chamava “noite”120.

O itinerário místico proposto pelo poema, segundo explica San Juan nos

comentários dos mesmos, abrange as três fases da noite, que também assume

formas ativas e passivas. Primeiramente há o crepúsculo, quando ocorre um

progressivo apagamento da capacidade visual do sujeito para perceber e

identificar os objetos sensíveis.

Em uma noite escura, De amor em vivas ânsias inflamada, Saí sem ser notada, já minha casa estando sossegada121.

Essa é a noite dos sentidos, quando a alma vai aos poucos se desprendendo

dos afetos (paixões) e prazeres sensíveis, em um trabalho de ascese no qual é a

própria alma que precisa ir desnudando-se: essa é a noite ativa, que na leitura de

Pelle-Douel consistira mais em um trabalho de pacificação e restabelecimento da

ordem do que de purificação. Neste caso “não são somente as tendências o que é

preciso apaziguar e pacificar; também o entendimento deve começar a entrar na

noite, no não-saber, na Noite ativa do espírito”122. Trata-se aqui de um grande

esforço para preparar a alma para esse encontro que de outro modo não poderia

acontecer, pois “(o) aniquilamento, em San Juan de la Cruz é condição

indispensável para aceder à contemplação pura, à visão unitiva com Deus123”.É

preciso um verdadeiro processo de esvaziamento para a alma tornar-se um com

seu Amado, um desnudamento intensivo que avança do exterior para o interior, do

sensível para o inteligível, da posse para o desejo, da ação para a intenção: é

necessário que o místico esvazie a casa de sua alma para que, quando Deus ali

120 Subida ao Monte Carmelo. In: SÃO JOÃO DA CRUZ. Obras Completas, p. 142. 121 SÃO JOÃO DA CRUZ., op. Cit. 122 No original: “no solo son las tendencias lo que hay que apaciguar y pacificar; también el entendimiento debe comenzar a adentrarse en la noche, en el no-saber, en la Noche activa del espíritu”. PELLE-DOUEL, Yvonne. San Juan de la Cruz y la Noche mística., 1962, p. 141. 123 No original: “(...o ) aniquilamiento, en San Juan de la Cruz es condición indispensable para acceder a la contemplación pura, a la visión unitiva con Dios”. CAMON AZNAR, Jose. Arte y pensamiento en San Juan de la Cruz., p. 141.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 49: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

163

chegar não encontre sequer um sujeito a sua espera, mas apenas a casa vazia e

despojada de subjetividade.

O caminho que conduz ao cume da montanha onde apenas a Presença divina

subsiste é esboçado por San Juan em um desenho onde aparece uma trilha sobre a

qual está escrita vária vez a palavra “Nada”. Dos dois lados dessa trilha estão os

ilusórios bens da terra e bens do céu, aqueles que tencionam chegar ao cume da

montanha precisam se esquivar desses bens, pois aqueles que os buscam acabam

por perdê-los, perdendo também a experiência do encontro místico.

Transcrevendo-se os dizeres que compõem esse desenho tem-se o poema abaixo,

que ilustra o rigoroso processo de ascese que a alma deve passar até chegar ao

cume do monte:

Para vir a saborear TUDO, não queiras ter gosto em NADA. Para vir a possuir TUDO, não queiras possuir NADA. Para vir a possuir TUDO, não queiras possuir algo em NADA. Para vir a ser TUDO, não queiras ser algo em NADA Para vir ao que não GOSTAS, hás de ir por onde não GOSTAS. Para vir ao que não SABES, hás de ir por onde não SABES. Para vir a possuir o que não POSSUIS, hás de ir por onde não POSSUIS. Para chegar ao que não ÉS, hás de ir por onde não ÉS . Quando reparas em algo deixas de arrojar-te ao todo. Porque para vir de todo ao todo, hás de deixar-te de todo em tudo. E quando venhas de todo a ter, hás de tê-lo sem nada querer. Nesta desnudez encontra o espírito seu descanso, pois nada cobiçando, nada o impele para cima e nada o oprime para baixo, porque está no centro da sua humildade124.

O poema se estrutura por versos antitéticos onde predominam as palavras Tudo e

Nada, vocábulos organizados de forma paralelística, o que confere um efeito de

124 Esses versos são tomados de um esboço gráfico-literário que San Juan compôs para as monjas do Beas como ilustrativo do percurso místico-contemplativo. Esse esboço serviu de ponto de partida para o tratado Subida ao Monte Carmelo. O desenho foi também usado pelo carmelita em seu ministério doutrinal como uma espécie de cartilha. O desenho encontra-se em anexo à tese, vide anexo II. SÃO JOÃO DA CRUZ. Obras Completas, p. 86-87.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 50: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

164

equiparação entre eles, de modo que o Tudo que se quer saborear, possuir ou ser

torna-se Nada. O efeito de negação é duplo: se Tudo que se quer saborear, possuir

ou ser torna-se nada, o Nada que se saboreia, possui ou é torna-se Tudo. Vinicius

Carvalho, comentando esse poema afirma:

O uso dos pronomes indefinidos “tudo” e “nada” de forma substantivada, parte da antilogia apontada acima, é outro recurso que o místico lança mão na expressão de sua experiência. Duas totalidades opostas e extremas que se encontram pela condição mesma de extremidade e que não constituem por isso privação, senão excesso. Excesso na linguagem em busca de significação. A linguagem caminha para a liminaridade que aponta para a relação conhecido/desconhecido, principio da douta ignorância. As imagens liminares permitem, no poema, a presença na ausência, afinal o que é o “tudo” e o “nada”? A palavra está em seu limite de significação, mas ao mesmo tempo é silenciosa e representa apenas a ausência de significantes125.

A segunda fase da noite escura é chamada noite passiva, e concerne à meia-

noite, quando, após a renúncia e abandono dos afetos, gostos e conceitos, o

despojamento de todo o conhecimento natural ou sobrenatural, intelectual e

discursivo, a alma chega aos limites naturais de suas faculdades mentais e

espirituais. Essa é a parte mais escura da noite, quando após ter atravessado a

noite do não-saber a alma precisa ainda morrer para si mesma, experimentando as

trevas profundas da fé, esse hábito da alma certo e obscuro126 .

Na escuridão, segura, Pela secreta escada disfarçada, Oh! Ditosa ventura! Na escuridão, velada, Já em minha cada estando sossegada. Em uma noite tão ditosa, E num segredo em que ninguém me via, Nem eu olhava coisa, Sem outra luz nem guia Além da que no coração ardia. Essa luz me guiava Com mais clareza que a do meio-dia, Aonde me esperava Quem eu bem conhecia, Em sitio onde ninguém aparecia.

125 CARVALHO, Vinicius Mariano. Fora da poesia não há salvação: uma hermenêutica literária da poesia de Mario Quintana à luz da via negativa., p. 137. 126 Subida ao Monte Carmelo. SÃO JOÃO DA CRUZ. Obras Completas, p. 188.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 51: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

165

Se a primeira parte da noite se relacionava à ascese dos sentidos e paixões (o

lado inferior da alma, conforme San Juan127), a segunda parte da noite se refere às

capacidades cognoscentes e racionais do homem (parte superior), de modo que

esse é o momento de maior escuridão e introspecção, pois a alma é despojada de

sua luz própria, desnuda de todas balizas da cultura nas quais comumente nos

apoiamos. Pura fé, nudez de espírito, união de simplicidade são termos sinônimos

usados por San Juan para significar essa inteira privação de luz e de

enquadramentos teórico-filosóficos que caracteriza a noite do espírito128. Na

meia-noite da fé as três potências da alma – entendimento, memória e vontade –

irão ser aperfeiçoadas pelas três virtudes teológicas – fé, esperança e amor: a fé

age no entendimento, a esperança na memória e o amor na vontade de modo a

produzir em cada uma dessas potências vazio e obscuridade129

. Essa fase da noite

é caracterizada pelo poeta como noite passiva, pois aqui é a alma que sofre a ação,

o pathos divino:

Sente então, em si mesma, um profundo vazio e pobreza, quanto às três espécies de bens que se ordenam ao seu gosto, isto é, os bens temporais, naturais e espirituais; vê-se cercada dos males contrários, que são misérias de imperfeições, securas e vazios no exercício de suas potências e desamparo do espírito em treva. Como Deus purifica, nesta noite, a alma, segundo a substancia sensitiva e espiritual, e, segundo as potências interiores e exteriores, convém seja a alma posta em vazio, pobreza e desamparo de todas as partes, e deixada seca, vazia, e em trevas. A parte sensitiva é purificada na secura; as potências, no vazio de suas apreensões, e o espírito, em escura treva130.

Tal necessidade de negação nasce da profunda consciência do abismo existente

entre Criador e criaturas, divino e humano.

O esquema se faz então fulgurante por sua simplicidade, de um lado (si assim se pode dizer), Deus, em sua Transcendência e natureza totalmente não sensíveis. Noite para o entendimento; de outro lado, o homem e seu entendimento, totalmente ligado ao sensível, prisioneiro da noite do conhecimento natural. Nenhum vinculo, um hiato, um chaosmágnum; nenhuma escala nem analogia nem relação. A noite por todas as partes. Ao menos, segundo o modo do conhecimento, a partir do homem. Será pois, necessário situar-se na obscuridade e nas trevas, no não-saber131.

127 Subida ao Monte Carmelo, In: SÃO JOÃO DA CRUZ. Obras Completas., p. 188. 128 Síntese do comentário Subida ao Monte Carmelo, in: DELAYE, Alain. 129 Subida ao Monte Carmelo. In: SÃO JOÃO DA CRUZ., p. 200. 130 Noite escura. In: SÃO JOÃO DA CRUZ., p. 499. 131No original: “El esquema se hace entonces fulgurante por su sencillez; de un lado (si así puede decirse), Dios, en su Trascendencia y su naturaleza totalmente no sensible. Noche para el entendimiento; de otro lado, el hombre y su entendimiento, totalmente ligado a lo sensible, prisionero de la noche del conocimiento natural.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 52: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

166

Os vocábulos negativos comparecem testemunhando da impossibilidade de

predicar Esse que se esquiva a todo Nome: trevas noturnas, sossego, segredo,

invisibilidade, cegueira, encobrimento, disfarce.... são signos que compõem a bela

imagem desse Amante que se arrisca a um encontro que, apesar de amoroso,

acontece “fora” de toda possibilidade de representação, na noite do não-saber.

Entretanto, a negatividade que recobre essa noite escura e é enfatizada por esses

termos não pertence ao senso comum, que opõe trevas à luz, é antes uma noite

bem-aventurada, pois é ela que une amado e amada, essa transformada naquele. A

escuridão dessa noite tão amável parece antes se relacionar à necessidade expressa

pela mística apofática de se transcender às imagens, ao conhecimento e ao nome

de Deus, conforme fórmula expressa por MeisterEckhart:

Quando Deus se forma e infunde na alma, tu o tomas por uma luz ou um ser ou um bem, mas, se tu ainda poderes conhecer algo dele, então não é Deus. Vede, é necessário ir além dessa coisa “pequena”, tirando todos os atributos, para conhecer Deus como um132.

A mesma idéia de despojamento e nudez aparece em San Juan, como por exemplo

no comentário Nocheoscura:

Trata de como poderá uma alma dispor-s para chegar à divina união. Dá avisos e doutrinas, tanto aos principiantes como aos iniciados, muito proveitosa para que saibam desembaraçar-se de todo o temporal e não embaraçar-se com o espiritual, e ficar na suma nudez e liberdade de espírito, a qual se requer para a divina união. 133

Essa nudez e liberdade de espírito se assemelham àquela de nos fala Eckhart

na citação acima, muito embora com significativas diferenças de sujeito: se para o

Meister é a suprema Deidade que restará despida de atributos ante os olhos

místicos, para o poeta espanhol a nudez é um processo do sujeito místico, que

precisará desembaraçar-se da matéria e do espírito para alcançar o Nada divino.

Os processos são complementares: para ‘compreender’ a divindade como Um,

sem formas, atributos ou determinações, é necessário ir além da própria vontade,

conhecimento, capacidade de apreensão (posse), essência/existência: é preciso

Ninguno vinculo, un hiato, un chaos mágnum; ninguna escala ni analogía ni relación. La Noche por todas las partes. Al menos, según el modo del conocimiento, a partir del hombre. Será pues, necesario situarse en oscuridad y las tinieblas, en el no-saber”. PELLE-DOUEL, Yvonne. San Juan de la Cruz y la Noche mística., p. 120-121. 132 Sermão 71. ECKHART, Mestre. Sobre o desprendimento e outros textos/ Mestre Eckhart, p. 52. 133 Prólogo a Subida ao Monte Carmelo. In: SÃO JOÃO DA CRUZ. Obras Completas.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 53: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

167

deixar a alma ir, pela noite escura e tenebrosa, até o cume do Monte Carmelo,

onde não há espaço para um Eu conhecedor e um objeto Divino de conhecimento,

pois ali somente habita a honra e glória de Deus134. Sobre esse aspecto da

incognoscibilidade divina Villanova assim se pronuncia:

Impossível afirmar o que Deus é positivamente. O conhecimento de Deus não é conhecimento, mas um desconhecimento. No que se refere à Deus, todo progresso de conhecimento é paradoxalmente um progresso de desconhecimento; o caminho vai se fazendo escuridão, até a negação de tudo o que cremos saber ou provas de Deus. Este é o caminho dos místicos, de todos os que experimentam a Deus como uma queimadura em sua existência, a prova da noite e do deserto135.

Finalmente, chega a madrugada, quando as trevas vão se esvaecendo e

pouco a pouco chega a luz da alvorada. Com o raiar da Alba a alma chega ao

cume do monte e se une ao Amado, sendo transformada nesse. San Juan esclarece

que na união das potências (entendimento, memória e vontade) da alma com a

divindade não se trata apenas daquela união existente entre Deus e todas as suas

criaturas, pois essa é uma união por participação, ou união substancial, na medida

em que é Deus que confere ser às criaturas. Já na união da alma com Deus trata-se

de uma união de semelhança em amor, diferente da primeira, que é natural, por ser

sobrenatural, ou seja, ela só se consuma quando

(...) as duas vontades, a da alma e a de Deus, de tal modo se unem e conformam que nada há em uma que contrarie à outra. Assim, quando a alma tirar de si, totalmente, o que repugna e não se identifica à vontade divina, será transformada em Deus por amor136.

O pathos desse itinerário místico é expresso pela tradição sufi com a metáfora de

uma mariposa a voltear em torno da chama de uma lanterna, na noite escura do

desejo:

A mariposa vê uma chama ardendo à noite numa lanterna e, tomada por um desejo irresistível de estar unida àquela chama, põe a revolutear em torno da lanterna, namorando a flama até o alvorecer, quando retorna às suas companheiras para

134 No desenho feito por San Juan para ilustrar a Subida ao Monte Carmelo (em anexo) a frase “Sólo mora en este monte honra y gloria de Dios” encontra-se no cimo da montanha. Ver anexo II. 135 No original: “Imposible afirmar lo que Dios es positivamente. El conocimiento de Dios no es el no conocimiento, pero sí un desconocimiento. En lo referente a Dios, todo progreso de conocimiento es paradójicamente un progreso de desconocimiento; el camino va hacia la tiniebla, hacia la negación de todo lo que creemos saber o probar de Dios. Este es el camino de los místicos, de todos los que experimentan a Dios como una quemadura en su existencia, la prueba de la noche y del desierto”. VILANOVA, Evangelista. Lógica y experiencia en San Juan de la Cruz., p. 93. 136Subida ao Monte Carmelo.In: SÃO JOÃO DA CRUZ . Obras Completas., p. 196.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 54: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

168

narrar-lhes nas mais doces palavras a sua experiência: “Você não parece ter melhorado com isso”, é o que comentam, pois notam que suas asas estão amarrotadas e feridas: está é a condição do asceta. Mas a mariposa volta na noite seguinte e, encontrando um vão no vidro da lanterna, se une completamente a sua amada, tornando-se ela mesma a chama137.

Há, portanto, perdas e danos no processo místico. Carregar no corpo as

feridas desse encontro, esta é a condição do asceta, mas após tudo abandonar - o

sensível e o inteligível - a Alma, tendo se despido de todo criado, está pronta para

que nela seja impressa a marca, o signo e a semelhança divina, convertendo-se

naquele a quem ama por amor. Então, em uma noite mais amável que a alvorada

poderá cantar:

Oh! Noite mais amável que a alvorada; Oh! noite que juntaste Amado com amada Amada já no Amado transformada! Em meu peito florido Que inteiro só para ele se guardava, Quedou-se adormecido... E eu, terna, o regalava, E dos cedros o leque refrescava. Da ameia a brisa amena, Quando eu os seus cabelos afagava, Com sua mão serena Em meu colo soprava, E meus sentidos todos transportava. Esquecida, quedei-me, O rosto reclinando sobre o Amado, Cessou tudo e deixei-me, Largando meu cuidado

Por entre as açucenas olvidado.

Esquecida de si e tendo abandonado todo desejo que não seja o desejo do Amado,

a Alma encontra-se enfim distante de todo cuidado humano, nos braços daquele a

quem ama com amor maior que a morte. E não será uma espécie de morte essa

renúncia que San Juan exige, de si mesmo e de todo discípulo da contemplação?

Seria então a mística a destruição de tudo o que em nós é finito e humano,

demasiadamente humano: linguagem, cultura, racionalidade? Essa é a questão que

137Narrativa do místico sufi Hallaj, in: CAMPBELL, Joseph. Isto és Tu:Redimensionando a metáfora religiosa, p. 71.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 55: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

169

guiará nossos passos no próximo capítulo, mas antes vamos ao terceiro místico

em análise.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 56: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

170

5.4 Voltar a ser o que se é: a necessária aporia da mística de AngelusSilesius

5.4.1 AngelusSilesius: um inquieto peregrino

AngelusSilesius nasceu em Polônia, 1624, dentro de uma tradicional família

luterana, tendo como nome de batismo JohannesScheffer. O pseudônimo veio

depois, com a conversão ao catolicismo (em 1653, aos 28 anos), e faz referência a

Silésia, sua terra natal, onde nasceu outro grande místico, Jacob Böhme.

Tendo estudado medicina e filosofia em instituições respeitadas em Leyden

(Holanda) e Pádua (Itália), em 1649 Scheffer é nomeado médico particular do

príncipe de Öls, freqüentando círculos místicos e ligando-se a Abraham Von

Franckenberg, que possui forte sensibilidade religiosa de viés ecumênico, além de

reunir em torno de si um círculo de eruditos, alquimistas, intelectuais e místicos

cujos interesses iam da alquimia à literatura, da mística à medicina, da biologia à

metafísica. A influência de Abraham Von Franckenberg é intensa, apesar do

pouco tempo de convivência - Von Franckenberg morrerá em fins de 1652 -, e

esse desempenhará o papel de mestre socrático na iniciação de Scheffer no

itinerário místico. Após a morte do amigo e mentor, Scheffer herda sua biblioteca,

pródiga em obras de místicos como S. Boaventura, Ruysbroeck, Tauler, Suso,

Tomás de Aquino e Jacob Böme, esse último amigo íntimo de Von Franckenberg.

Scheffer se demite do cargo de médico pessoal do príncipe de Oels, e retorna para

Breslau, mergulhando nessas leituras místicas.

Em 1653, em circunstâncias não muito claras, Scheffer se converte ao

catolicismo, tomando o sacramento da crisma e adotando o pseudônimo de

AngelusSilesius (mensageiro da Silésia). A conversão de Silesius acontece

juntamente com a escrita dos livros III, IV e V do livro Viajante Querubínico,

podendo-se notar na obra um endurecimento doutrinário e um declínio da poesia.

Em 1661 ele recebe a ordenação sacerdotal, tornando-se um ardoroso combatente

do protestantismo, dedicando-se a escrever livros panfletários, de teor

apocalíptico e qualidade literária duvidosa, contra os “pecadores e hereges”

protestantes.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 57: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

171

O Viajante querubínico (KerubimnischerWandersmann), com o subtítulo

“epigramas e máximas espirituais para levar à contemplação de Deus”, é

organizado em epigramas com dísticos rimados em metro alexandrino, forma

poética inflexível e áspera que parece se adequar ao poema aforistico e

sentencioso. Na análise de Franke, o aforismo alexandrino é uma forma poética

minimalista, que diz o mínimo para sugerir o Todo, trazendo para dentro da

linguagem a “gagueira” e o silêncio advindos da experiência do inarticulado, isso

principalmente através do recurso da cesura, própria dos versos alexandrinos138.

Em uma das traduções portuguesas que usaremos para a maioria dos poemas, o

rigor estilístico do original alemão não é adotado por Dora Ferreira da Silva, a

poeta responsável pela tradução. Em palavras da própria Dora, a tradução

portuguesa tenta “sugerir a estreiteza da forma em contraste com a carga

explosiva do conteúdo”, havendo “(...) uma opção pela “pobreza” da forma

(corpo) veiculando a superabundância de uma experiência mística que se processa

no abismo da alma, numa espécie de quenose poética”139.

Dada a comprovada influência dos temas eckhartianos na mística de Silesius

nos eximiremos da tarefa de analisar conceitos teológicos e filosofemas aqui

presentes, na medida em que muito do que foi abordado na caracterização da

mística eckhartiana poderia ser aplicado a Silesius, com a devida prudência pelos

três séculos que separam um do outro. Faremos uma análise estritamente literária,

exceto quando for preciso algum novo esclarecimento, ou remissão a conceitos já

discutidos anteriormente.

***

138 O processo de cesura significa a quebra entre o primeiro e o segundo hemístico (que é o conjunto de seis sílabas poéticas) de um verso. 139 LEPARGNEUR, Hupert; SILVA, Dora Ferreira da. AngelusSilesius. A mediação do nada, p. 67.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 58: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

172

5.4.2 O difícil aprendizado do não-saber

Pertencendo a mesma tradição apofática de Eckhart, as imagens desérticas

comparecem nos poemas de Silesius como figuras de uma necessária aporia: a

necessidade de ir além Deus, ultrapassando toda forma de relação objetal entre um

eu humano e um Tu divino. Veja-se o conjunto de epigramas abaixo onde já no

titulo fica claro esse imperativo de transcendência humano-divina:

Devemos ir para além de Deus

Onde é minha morada? Nem eu, nem tu lá estamos. Qual é o fim encontrado? Onde nada encontramos. Como prosseguir e o que fazer por certo? Ultrapassando Deus*, entrar pelo Deserto. (I, 7)

* Ou seja, para além de tudo que se conhece de Deus e que dele se pode pensar, conforme a contemplação negativa, sobre a qual vejam-se os místicos. 140

Note-se que o aforismo propõe três perguntas, respondendo progressivamente a

cada uma delas. A primeira questão é sobre essa morada que é imperativo

encontrar: a pergunta “Onde é minha morada?” tem como resposta a constatação

de que esse é um lugar onde nem o eu nem o tu lá se encontram, ou seja, essa

morada é um “lugar” que prescinde de toda relação objetiva e subjetiva, quer em

se tratando de relações intra ou inter-humanas ou na relação humano-divino.

Paulo Borges chama atenção para a presença do verbo steben (estar) no verso

“Nem eu, nem tu lá estamos”, notando o que há de impermanência desse eu e

desse tu, que não podem ser lidos, na interpretação do autor português, como

entidades fixas e estáticas em uma morada determinada, desde que essa morada

aparece como um acontecer que rejeita toda entificação, sendo ausente de

“objetos” aos quais um “sujeito” se ponha em relação141.

Novamente aqui a idéia de ultrapassar Deus, esquecê-lo, abandoná-lo na

medida em que ele seja objeto de conhecimento, compartilhando a máxima de

MeisterEckhart de que seja preciso pedir a Deus que nos livre de Deus142. Ir além

de Deus é abandonar toda possibilidade de relação eu/Tu e toda pretensão

140 LEPARGNEUR, Hupert; SILVA, Dora Ferreira da. AngelusSilesius. A mediação do nada., p. 05. 141 BORGES, Paulo. Transcender Deus: de Eckhart a Silesius., p. 07. 142 Sermão 52 “Bem-aventurados os pobres... In: ECKHART, Mestre. Sobre o desprendimento e outros textos/ Mestre Eckhart., p. 36.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 59: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

173

cognitiva, pois essa morada que já se possui e à qual se deseja retornar é tanto um

não-lugar onde “nem eu, nem tu lá estamos” quanto uma espacialidade vazia

“onde nada encontramos”. É preciso portanto voltar a ser o que se é, na análise

precisa de Paulo Borges, trata-se aqui do mesmo tema presente na mística de

Eckhart e outros místicos apofáticos: uma experiência trans-conceitual da

realidade última que opera um retorno ao incriado – ao abismo eterno do ser

divino - onde sujeito e divindade não mais “existem” enquanto determinações

distintas entre si, em uma dupla abolição de todo referente possível: o sujeito da

razão e o Deus/Linguagem/Sentido.

A segunda questão - Qual é o fim encontrado? - diz respeito ao fim que se

encontra, ao encontrar tal morada. A resposta inquietante - Onde nada

encontramos - situa definitivamente essa fala no gênero apofático. Contrariando a

compreensão mecanicista de que todo movimento (humano e não humano) seja

orientado por um sentido e uma teleologia, o poema nos fala de um Nada que se

dispõe como horizonte tanto de partida quando de chegada para esse ‘movimento’

que, não obstante, é essencial ao místico. É preciso um percurso místico, um

caminhar – o perambular da alma pela noite escura, em San Juan; a “saída” da

alma para que Deus “entre” e o fundo da alma seja um com a deidade abissal em

Eckhart143 - que seja desapropriante, de tal forma que, ao fim, o fim que se

encontra seja um nada encontrar, posto que toda determinação foi abandonada,

não apenas as humanas (no sentido de uma ascese das paixões, dos saberes e da

linguagem que é tratada exemplarmente em San Juan de la Cruz), mas também

divinas (na medida em que seja preciso “perder” Deus para depois encontrá-lo,

como aparece no poema eckhartiano) em um processo que Borges chama de

transcender o transcendente.

O ultimo dístico propõe novas questões, desta vez relacionadas ao “método”

desse percurso e desse habitar que se desejou nos primeiros versos. “Como

prosseguir e o que fazer” quando todas as balizas sócio-culturais e estabilidades

cognitivas foram despedaçadas contra esse abismo sem fundo? A resposta é uma

aparente aporia: “Ultrapassando Deus, entrar pelo Deserto”. Aporia pois, afinal,

como ultrapassar Aquele que é limite e borda de todo cognoscível? Sendo Deus o

fundamento de todo fundado, como seria possível dele abdicar? A dissolução

143 Poema GranumSinapsis, ver análise do poema no tópico 4.2 da tese.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 60: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

174

dessa falsa aporia está na distinção echartiana entre Gott e Gottheit, sendo o

primeiro o Deus percebido, entificado, e tornado “objeto” de fé, dogma e teologia,

e o segundo a Deidade anterior ao processo de distinção entre as pessoas da

Trindade e de criação do mundo e do humano.Trans-divina divindade abissal,

Gotheit é um transcender de Gott, é esse deserto de permanência difícil ao qual é

preciso retornar, ‘recuperando’ uma identidade íntima e indissolúvel entre homem

e Deidade. Borges relaciona o deserto à metáfora eckhartiana da “centelha” ou

“fundo da alma”, a esse fundo incriado que é comparado pelo Meister como uma

terra estranha, desconhecida e inominada que nos habita, apesar de não nos

pertencer144. Habitando o que nos é mais intimo e transcendendo a toda

entificação, a centelha/fundo da alma se encontra “no que é menos doméstico e

habitável, onde nada nem ninguém na verdade habita, pelo menos como algo ou

alguém145”.

O desconhecimento como algo que seja próprio a Deus é tratado em outros

poemas de AngelusSilesius, veja-se esse cujo título, O Deus desconhecido, de

início faz referência à tradição apofática iniciada pelo Pseudo-Dionísio, mais

especificamente ao episódio da pregação de Paulo em Atenas, quando o apóstolo,

diante de um altar intitulado “Ao deus desconhecido”, faz uma pregação à qual se

converte o grego Dionísio, confundido posteriormente com o autor desse corpus

místico que influenciou toda a tradição da apofática cristã.

O Deus desconhecido. O que é Deus, não o sabemos. Ele não é luz, não é espírito. Não é verdade, nem unidade, nem um, ele não é aquilo que chamamos divindade. Não é sabedoria, não é intelecto, não é amor nem querer nem bondade. Nem uma coisa, muito menos uma não-coisa, Não é uma essência, não é um coração. Ele é aquilo que nem eu, nem tu, nem nenhuma criatura,

144 Veja-se o trecho do sermão 28 de MeisterEckhart: “[Mas] en todo lo creado no hay —como ya dije varias veces— ninguna verdad. Hay una cosa que se halla por encima del ser creado del alma [y] a la que no toca ninguna criaturidad que es [una] nada; no la posee ni siquiera el ángel que tiene un ser puro que es acendrado y extenso; hasta él no la toca. Ella es afín a la índole divina, es

una sola en sí misma, no tiene nada en común con nada. En cuanto a esta cosa muchos frailes insignes comienzan a cojear. Ella es una tierra extraña y un desierto, y antes que tener un nombre

es innominada, y antes que ser conocida es desconocida. Si tú pudieras aniquilarte por un solo instante, digo yo —aunque fuera por un tiempo más breve que un instante—, te pertenecería todo aquello que [esta cosa] es en sí misma. Mientras todavía prestas alguna atención a ti mismo o a una cosa cualquiera, sabes tan poco de lo que es Dios, como sabe mi boca de lo que es el color, y como sabe mi vista de lo que es el gusto: tan poco sabes y conoces tú lo que es Dios”. MAESTRO ECKHART. Tratados y sermones. 145 BORGES, Paulo. Transcender Deus., p. 08, grifos do autor.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 61: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

175

antes de ter-se tornado aquilo que ele é, jamais conhecemos. (IV, 21)146.

O poema se inicia com uma embaraçosa confissão, caso se trata-se de um

texto confessional ou litúrgico: o que Deus é, não o sabemos. Essa assunção de

uma ignorância não-ultrapassável lembra-nos o método maiêutico de Sócrates

que, como já mencionado no inicio do presente capítulo, produz resultados

cognitivos negativos dado que visa uma coreografia epistêmica entre as cavernas

dos conceitos e a noite escura do inarticulado. Assim também parece proceder o

pequeno aforismo de Silesius. A afirmação inicial de que não sabemos o que Deus

é prossegue com uma série de negativas que vão O afastando progressivamente

daquelas imagens mais tradicionais da divindade. A princípio é importante notar

que a declaração seja a de que não saibamos o que Deus é, e não quem Deus é, já

de inicio demarcando um estranhamento ontológico: não se trata aqui de uma

pessoa ou de um sujeito, ainda que com prerrogativas divinas. Trata-se de um

algo ou alguma coisa sobre a qual nosso discurso só pode se pronunciar negando-

se. E as negações se acumulam, alcançando definições clássicas da ontologia

divina: não sendo luz, nem espírito, nem verdade, nem unidade, nem divindade,

nem sabedoria, nem intelecto, nem amor, nem bondade, nem uma coisa, nem uma

não-coisa, nem essência, nem um coração, o que poderia Deus ser? Aliás, seria

pertinente usar tal categoria – do Ser – para se falar desse Isso que desliza sobre

nossa linguagem sem ser apreendido por ela? Como notado por Derrida, “Deus

“é” o nome desse desmoronamento sem fundo, dessa desertificação sem fim da

linguagem”147. É um nome que não nomeia nem afirma nada, ainda que, em se

perdendo esse Nome, salvo o nome, por ele seja salvo todo nome, ou mesmo a

própria possibilidade de nomeação.

Ao fim das negativas, o poema termina com uma declaração que causa

maior embaraço ainda: em sendo algo que rejeita todos nossos óculos epistêmicos,

a única forma de conhecer o que seja Deus é torna-se também Deus, naquele

processo de deificação que já mencionamos anteriormente quando comentávamos

a mística eckhartiana, e que é tão central em AngelusSilesius. O conhecimento

que aqui se exige é conhecimento por participação, sendo preciso tornar-se um

com o Um para então conhecê-Lo, prescindindo das relações sujeito-objeto,

146 SILESIUS, Angelus. O peregrino querubínico. 147 DERRIDA, Jaques.Salvo o nome., p. 37.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 62: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

176

interior-exterior, superfície-profundidade, essência-existência, etc. Conforme

nosso entendimento, um tal tipo de conhecimento pode ser denominado de

pensamento ecológico, na medida em que rejeita determinados pressupostos e

conclusões do paradigma mecanicista, e propõe um modo de aproximação “entre

coisas” que não seja hierarquizado e/ou regulado por pretensões de superioridade,

bem como por essas ficções tão úteis que são as noções de sujeito, objeto,

objetividade, isenção, reprodutibilidade da experiência, estabilidades

conceituais.... No capítulo final da tese tentaremos refletir sobre as especificidades

desse pensamento a partir dos insights que os textos místicos nos trouxeram, no

momento apenas mencionamos essa provocação que encontramos na mística de

AngelusSilesius.

Ainda segundo Derrida, o método negativo propõe a experiência de Deus

como espacialidade vazia e desértica, espaço “puro” e isento de toda humanização

de onde a palavra (o verbo) é pronunciada em um tempo imemorial, em uma

eternidade que é ‘agora’ e “sempre”, em permanente devir, de modo que a palavra

esteja sempre em vias de se tornar carne, mas sempre impronunciada. Veja-se o

belo aforismo abaixo, no qual Derrida se apóia para tais considerações:

O lugar é a Palavra Um são o lugar e o Verbo, e se o lugar não existisse (Pela eterna eternidade) também o Verbo não seria. (I, 205)148

Para se chegar a esse ‘lugar’ faze-se necessário, em consonância com os demais

místicos que estivemos analisando, um itinerário onde os passos vão sem saber

para onde, os olhos vêem sem saber o quê, e os ouvidos ouvem o som inexistente,

Deus fora da criatura Caminha onde não podes! Olha onde não vês! Ouve onde nada ressoa: estarás onde Deus fala. (I, 199)149.

É apenas aí, quando o impossível é experienciado enquanto impossibilidade de

sensibilidade e cognição que o homem místico pode estar nessa espacialidade

indemarcável – no deserto – e ali ouvir o pronunciar do verbo primordial. Um

filosofema também importante na mística de Silesius, que já tratamos

anteriormente comMeisterEckhart, é o de empobrecimento que culmina em uma

148 SILESIUS, Angelus. O peregrino querubínico. 149 Ibid.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 63: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

177

aniquilação deificante. O tema da pobreza/nobreza de espírito é aqui retomado em

termos muito próximos aos de Eckhart e San Juan de la Cruz, como se vê nos

epigramas abaixo:

A impotência que pode Quem nada deseja, nada tem, nada sabe, nada ama nem quer, Sempre muito mais tem, sabe, deseja e ama. (I, 45)150

E também:

A nudez repousa em Deus Feliz o espírito no seio do Amado! Despido de si, de Deus, do mundo criado. I, 130151

Os paradoxos, tão a gosto dos místicos em análise, são abundantes nesse pequeno

aforismo. Mais uma vez o percurso místico fará exigência pelo abandono de toda

potência humana, não apenas de ato, mas também de desejo, pulsão. É necessário

torna-se fraco pois, como ensina o apóstolo Paulo, é quando estou fraco que sou

forte152, tendo, sabendo, desejando e amando em plena liberdade e

desprendimento muito mais do que quando isso que se tem, sabe, deseja e ama é

parte de meu ser. É preciso portanto tudo abandonar: gelassenheit, deixar ser,

deixar-se, desprender-se, liberar, liberar-se, palavra do vocabulário eckhartiano

que fica implícita nesse aforismo e que aparece claramente em outros como: “O

desapego (gelassenheit) captura Deus: mas renunciar até mesmo a Deus/ é um

modo de desapego (gelassenheit) que poucos homens compreendem” (II, 92)153.

Os imperativos continuam, e já são nossos conhecidos: exige-se uma nudez

absoluta, pura e radical para se ter acesso ao terno repouso nos braços do Amado,

metáfora amorosa que retorna e restabelece, na poética de AngelusSilesius, os

mesmos topos do encontro amoroso divino-humano tão caros às beguinas, a San

Juan de la Cruz e a outros místicos ibéricos. Despir-se de si mesmo, de nossa

própria subjetividade, desejos, pulsões, heranças culturais, pressupostos e

conceitos. Despir-se do mundo criado, da beleza, da dor, do sofrimento, do medo,

das paixões que ele nos desperta. Despir-se por fim do próprio Deus, das idéias e

dos enganos que por ventura nosso desejo de presença possa ter provocado:

150 SILESIUS, Angelus. O peregrino querubínico. 151 Ibid. . 152 Segunda Carta aos Coríntios, 12, 10. BÍBLIA SAGRADA. 153 SILESIUS, Angelus., op. Cit.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 64: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

178

abandoná-lo, deixá-lo ir, estar só, nu, fraco e repousado frente a esse Isso que

apenas chamamos Deus pela necessidade irrecusável de ainda chamá-lo.

Aniquilar-se. Tornar-se nada, eis ai o (quase) fim da experiência e desse

percurso místico, exceto pelo fato que o fim é ponto de origem, sendo esse

caminhar um retorno àquele momento primeiro onde o pré-sujeito estava

plenamente repousado na Deidade pura e sem distinções, em um gozo eterno

imemorial: “Um puro Nada, sem presente ou passado: a beatitude do homem

deificado!”154, e também: “A doce divindade é nada e menos que nada: / quem

nada vê em tudo, acredita, homem, vê bem!”155. O Nada que aqui se convoca não

deve ser compreendido em termos essencialistas, sendo portanto inconfundível

com o não-Ser, remetendo antes para a noção de ausência não-privativa ou

negativa, e referindo-se ao incriado e não nascido. Paulo Borges trás à memória o

substantivo feminino nonada:não-nada, mas também bagatela, insignificância,

ninharia, e põe em destaque o fato de que o que vocábulo afirma não é a negação

do ser ou do ente, e sim a ausência de determinação ontológica, e mesmo de

transcendência da mesma.

O nada indica o que está antes e além do ser, conforme a sua procedência, nas duas línguas ibéricas, da expressão latina nulla res nata, ou seja, a instância anterior à manifestação ou, mais explicitamente, o non natum, o não nascido, o não manifestado, o não determinado, o incondicionado e incriado: na verdade, apesar destas expressões ainda negativas, próprias dos limites onto-lógicos do conceito e da linguagem, aquilo que não está condicionado por “ser” ou “ser algo” nem pela sua negação. O nada indica aquilo que transcende o domínio onde se constituem e operam dialecticamente os conceitos dualistas de ser e não ser, indicando o que transcende todas as possibilidades da predicação lógica: ser, não ser, ser e não ser, nem ser nem não ser; A, não A, A e não A, nem A nem não A156.

Transcendência que exige prévia aniquilação:

A aniquilação de si mesmo Nada te eleva mais acima de ti mesmo que a aniquilação: Quem é mais aniquilado tem em si mais divindade. II, 140.

No aforismo acima Silesius faz menção a uma gradação desse aniquilamento que

se propõe a alma mística e, nesse caso, menos é mais: quanto menos se é em si

154 92, LEPARGNEUR, Hupert; SILVA, Dora Ferreira da. AngelusSilesius. A mediação do nada., p. 71. 155 I, 111, SILESIUS, Angelus. O peregrino querubínico. 156 BORGES, Paulo. Do bem de nada ser. Supra-existência, aniquilamento e deificação em Margarida Porete., p. 09.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 65: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

179

mesmo, mais se possui da centelha divina. A aniquilação suprema, objetivo final

do místico que é preciso entender enquanto idealidade a conduzir uma práxis que,

exceto em raros casos, nunca se esgota157, é sinônimo de plena deificação,

confusão de substâncias que leva Silesius a exclamar, à beira do escândalo dos

fracos: “Sou criança e filho de Deus. Ele é meu filho: / então como podemos

ambos, ser os dois?”158. Pergunta difícil essa, a qual nos recusamos seguindo

conselho do próprio Silesius que afirma, em outro dístico:

Tu mesmo deves sê-lo Não perguntes o que é divino! Pois se não o és, Mesmo que disso te falem, meu cristão, não o saberás. II, 142.

A questão que aqui comparece, e que já se acenou nos outros místicos em

discussão, é a declaração de impossibilidade para o saber sobre Deus, declaração

paradoxalmente vinculada ao postulado de que seja possível experienciar, no

próprio corpo, o que Deus é por meio de um processo místico que conjuga

desprendimento (abegescheidenheit) e abandono (gelassenheit) - de si, do mundo

e do próprio Deus-percebido-e-relacional –, aniquilação e deificação. Entendendo

Deus como um “claro relâmpago e também escuro nada,/ que nenhuma criatura vê

com sua própria luz159”, Silesius nos dá uma poderosa pista para compreender

esse discurso (apofático) que se erige sobre sua própria ruína, teimando em falar

daquilo que não pode ser dito. Na mesma medida estranha e inquietante que é

claro relâmpago, bela imagem desse corte que rasga o corpo da linguagem e

imprime no mundo as marcas de nosso desejo e necessidade de inteligir, Deus

também é “escuro nada”, noite escura que confunde, atordoa, embaraça os

sentidos e rouba a capacidade de movimento e ação nesse mesmo mundo. Um

Deus que é noite, abismo e deserto pouco se presta a servir de fundamento para

nossas pretensões megalomaníacas de saber/poder que menosprezam o fato que,

para além do poder, saber também é gozo160, tantas vezes inútil e dispendioso.

157 Estamos pensando aqui em alguns místicos que levaram às últimas conseqüências essa auto-aniquilação, como por exemplo a beguina Marguerite Porete, queimada viva pela Inquisição em 1310 em função de seus escritos considerados heréticos pela Igreja de então. 158 II, 250, SILESIUS, Angelus. O peregrino querubínico, op. Cit., p. 77. 159 SILESIUS, Angelus., op. Cit., II, 146. 160 Lembremos que a palavra saber veio do latim vulgar sapere - ter sabor, bom paladar, sentir os cheiros - migrando depois para sabidus, sábio, aquele que percebe o mundo de modo organizado, usando os sentidos e a intuição. Conforme notações etimológicas de SILVA, Deonísio da. Etimologia.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA
Page 66: 5 Modos de apagamento do discurso - DBD PUC RIO · 5 Modos de apagamento do discurso ... “No lo que escribo no depende de la ”teología negativa”. En primer ... Aquella constituye

Modos de apagamento do discurso

180

Então, a questão, desde o inicio e agora mais pungentemente, é saber o que

nos pode ensinar, ou, em palavras menos pretensiosas, o que nos pode fazer

desaprender, o discurso negativo, que nesse capítulo compareceu através de seus

representantes místicos, mas que também esteve presente nos textos mais

propriamente literários que analisamos.

Passemos pois a essa questão decisiva e final.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610662/CA