2002 - Hidropolitica e Seguranca

Embed Size (px)

Citation preview

  • HIDROPOLTICA e seguRAnA

    115

    motrizes na definio da geopoltica das guas, o que faz das locues a montante e a jusante elementos basilares na elaborao dos argumentos que daro forma ao ato-discurso (speech act) no campo da hidropoltica.

    Feito este breve adendo introdutrio, vejamos ento a citada importncia dessas terminologias para o estudo ora proposto. Tudo que se encontra acima do ponto de referncia subindo a correnteza do rio diz-se que se situa a montante (rio acima), enquanto tudo que est localizado entre ele e a foz de um curso dgua81 situa-se a jusante do ponto de referncia, ou seja, rio abaixo. Sendo assim, aplicando-se essa mesma lgica, infere-se que os impactos produzidos a montante repercutiro necessariamente na quantidade, qualidade e regularidade das guas utilizadas pelos atores localizados a jusante, tal qual esquematicamente demonstrado na figura seguinte:

    Fig. 2.5: A geopoltica das guas

    Com base na ilustrao, e tomando como referncia o ponto A, v-se que em relao a ele, o ponto B encontra-se a sua montante (rio acima), enquanto o ponto C a sua jusante (rio abaixo) sendo, por isso, o ponto C aquele que eventualmente ser o maior prejudicado pelas externalidades ocasionadas em decorrncia do uso deste curso dgua desde sua nascente. Em contrapartida, o ponto B aquele que tem sob seu controle o fluxo das guas corroborando, destarte, a regra geral de que no contexto de partilha dos recursos hdricos os Estados a montante possuem certa vantagem sobre os Estados a jusante (LE PRESTRE, 2000; p.443).

    Foi a partir destas colocaes gerais sobre a geografia dos sistemas hidrogrficos e a importncia multidimensional de seus recursos para as relaes internacionais daqueles que direta ou indiretamente so impactados pelos seus usos compartilhados que SANTOS (2004, p.07), 81 A foz ou desembocadura de um rio (ou de qualquer outro curso dgua) o ponto onde ele desgua. Assim, um rio pode

    ter como foz o mar, um lago, outro rio ou at mesmo o oceano. quando o rio desgua por vrias sadas - como o nilo, Amazonas, nger, Danbio - diz-se que sua foz em delta. J quando ele desgua por uma nica sada, uniforme at seu fim, dizemos que sua foz em esturio.

  • fbIO ALbeRgARIA De queIROz

    116

    didaticamente, sintetizou os principais danos em tais sistemas destacando, outrossim, os trechos do curso dgua que so potencialmente os mais afetados, como descrito no quadro a seguir:

    Quadro2.1:Principaisimpactosemsistemashidrogrficoscompartilhados

    Atividade Impacto Potencial 1 2

    Uso Pblico

    Diminuio do volume devido a bombeamentos intensivos para abastecimento pblico.

    X

    Contaminao, poluio devido a descargas de esgotos domsticos e resduos slidos.

    X

    Uso Industrial

    Diminuio do volume devido a bombeamentos intensivos para suprimento de demandas industriais.

    X

    Poluio, contaminao devido a descargas de efluxos e resduos slidos.

    X

    Uso agrcola

    Diminuio do volume devido a bombeamentos intensivos para irrigao.

    X

    Poluio, contaminao devido utilizao de agrotxicos.

    X

    Uso navegacional

    Poluio devido ao trfego de embarcaes. XPoluio, contaminao devido a acidentes envolvendo vazamento de cargas.

    X

    Alterao na velocidade e volume dos cursos naturais de rios devido a obras hidrulicas necessrias para o funcionamento de hidrovias.

    X

    Uso energtico

    Alterao do regime de vazo devido construo de barragens.

    X X

    Influncia na migrao dos peixes devido construo de barragens.

    X X

    Alteraes na fauna devido migrao de peixes. X XPerda de gua devido ao aumento da evaporao nas represas.

    X X

    Inundao de reas agricultveis. XRe assentamentos forados. X X

    1= a montante 2= a jusanteFonte: SANTOS (2004, p.07).

  • HIDROPOLTICA e seguRAnA

    117

    Com o subsdio dessas informaes, verificamos, pois, a confirmao da assertiva previamente citada de que os Estados situados a montante possuem vantagens em relao aos ribeirinhos de jusante. Essa constatao levou acadmicos como MACCAFFREY (1993) e LE PRESTRE (2000, p.443) a conclurem, de forma geral, que a disposio do primeiro grupo em cooperar naturalmente limitado, exceto quando pelo menos um dos seguintes fatores encontra-se presente:

    1) os ribeirinhos mantm relaes de boa vizinhana (histrico de amizade) e/ou os benefcios adicionais da cooperao so evidentes (jogo de soma positiva);

    2) o Estado a jusante possui recursos militares muito superiores ou um dos Estados mais poderoso que o(s) outro(s) ribeirinho(s) e pretende resolver o litgio pacificamente;

    3) o Estado a montante depende do Estado a jusante em matria de transporte fluvial82;

    4) a cooperao est circunscrita num conjunto de relaes mltiplas e integradas demonstrando, pois, que o interesse mtuo superior manuteno da disputa, como geralmente ocorre no mbito de uma comunidade de segurana (por exemplo, os cursos dgua da Unio Europeia).

    A dimenso geogrfica tambm ser determinante na configurao de regimes hidropolticos internacionais j que confere ao arcabouo normativo que busca disciplinar o compartilhamento de guas transfronteirias um carter bastante peculiar. Isso porque os tratados sobre a questo so, geralmente, regionais e fechados por refletirem regras casusticas moldadas de acordo com as singularidades geogrficas e polticas dos Estados partes (SANTOS, 2004; p.11).83

    Portanto, a acomodao satisfatria dos interesses concorrentes dos Estados de jusante e de montante um dos grandes desafios com os quais se deparam os mecanismos de cooperao evidenciando, destarte, que os interesses geopolticos destes atores figuram como importantes elementos neste complexo enredo de negociao. Considerando, ento, o cenrio

    82 A posio geogrfica dos pases de jusante (donos da foz de uma via fluvial) lhes confere um papel estratgico no que se refere ao regime jurdico da navegao. sua explorao pode ser muito restritiva para os ribeirinhos de montante e, sobretudo, para estados terceiros cujos nacionais e embarcaes pretendam, por exemplo, navegar a partir do mar, ou seja, da foz (CAubeT, 2006; p.07).

    83 segundo mACCAffRey (1993, p.98) na maioria dos casos os tratados sobre o tema so bilaterais, apesar de haver um grande crescimento de acordos multilaterais. seja qual for a natureza destes instrumentos jurdicos, a regra geral externada de que um estado, seja ele de jusante ou de montante, no pode comprometer a qualidade e quantidade de gua dos demais ribeirinhos por conta dos efeitos de suas aes ao longo do curso dgua compartilhado.

  • fbIO ALbeRgARIA De queIROz

    118

    da hidropoltica, v-se que os usos diversos dos recursos de uma mesma bacia por aqueles atores que a compartilham tm potencial para afetar substancialmente interesses vitais dos ribeirinhos e, como consequncia, a estabilidade poltica regional, ratificando, mais uma vez, a importncia da interdependncia hidrolgica no nvel subsistmico de anlise.

    Por conseguinte, como veremos adiante, o assunto muitas vezes apresentado, por meio do ato-discurso, como um tipo especial de poltica imune s regras ordinrias do jogo poltico endossando, pois, a utilizao de meios extraordinrios para lidar com o problema e, dessa forma, garantir a segurana do objeto referente (BUZAN et al., 1998; p.23-24), especialmente naquelas situaes em que os mecanismos disponveis no so eficazes na resoluo dos imbrglios existentes entre os ribeirinhos.

    2.2.1 O ato-discurso na hidropoltica

    A gua, por tudo o que foi dito, muitas vezes apresentada como tema protagonista das mais dramticas predies conflituosas por figurar, dentre alguns dos motivos suscitados, como recurso escasso e indispensvel manuteno da vida e ao exerccio de diversas atividades cotidianas, porm vitais. Assim, frequentemente tratada como fonte de poder e, consequentemente, matria de segurana.

    Portanto, no so poucos os atores que ressaltam em seus discursos a sensibilidade do tema ao destacar as multifacetadas questes que emergem da hidropoltica como possveis ameaas existenciais, principalmente naquelas regies em que a escassez hdrica e/ou a existncia de uma alta interdependncia resultante do compartilhamento dos recursos hdricos sobressaem como caractersticas importantes nas relaes entre os Estados condminos (HINRICHSEN et al., 1998; TURTON, 2001; ALLAN, 2001; YETIM, 2003; CLARKE e KING, 2005; p.75; PROCPIO, 2007; p.271-3; KISTIN, 2007).

    Tal quadro, a princpio, nos leva a refletir acerca da possibilidade de situaes de grande tenso, num futuro prximo, terem como motivao a disputa por recursos hdricos. Este , por exemplo, o ponto de vista defendido por Ismail Serageldin, ex-vice presidente do Banco Mundial, ao afirmar que if the wars of this century were fought over oil, the wars of the next century will be fought over water (PRESTRE, 2000; p.443) ou de VAN GINKEL (2001) apud (CASTRO, 2007; p.108) ao atestar que conflitos pela distribuio e alocao da gua se tornaro a key part of the 21stcentury landscape. Essa viso tambm compartilhada

  • HIDROPOLTICA e seguRAnA

    119

    por HINRICHSEN et al. (1998) que veem na questo hdrica, principalmente no tocante sua escassez, um fator de instabilidade nas relaes internacionais, afinal, complemetam CLARKE e KING (2005; p.19), atualmente mais de um bilho de pessoas no tem acesso gua e as estimativas indicam que, em 2050, cerca de quatro bilhes de indivduos, metade da populao mundial projetada, estar vivendo em pases com carncia crnica deste recurso.

    No obstante, um olhar panormico sobre o cenrio hidropoltico mundial revela-nos que a intensificao das tenses em torno da gua no ocasionada apenas por problemas de dficit hdrico. Como visto, ela envolve vrias outras questes complexas e multidimensionais capazes de afetar o equilbrio poltico dos atores que compartilham as guas de um sistema hidrogrfico (TURTON, 2001; YETIM, 2002; CAUBET, 2006; CASTRO, 2007).

    Observa-se, entretanto, que essa hiptese suscitou, e ainda suscita, como perceptvel em muitos discursos retricos, e at mesmo em documentos oficiais de agncias especializadas, afirmaes precoces nas quais se v que o carter eminentemente plausvel de uma dada situao, muitas vezes superdimensionada por avaliaes enviesadas, substitui a anlise concreta dos fundamentos empricos (LE PRESTRE, 2000; p.427; TURTON, 2001; p.07, HANDCOCK, 2004; p.6-7).

    Ademais, anncios desta natureza no surpreendem se levarmos em conta os frequentes alertas lanados por especialistas e autoridades em segurana internacional ao longo das ltimas dcadas de que os recursos hdricos esto se tornando uma potencial fonte de conflitos em todo o mundo, sejam esses alertas empiricamente fundamentados ou apenas especulaes (WESTING, 1986; GLEICK, 1993; HOMER-DIXON, 1994; REMANS, 1995; SAMSON e CHARRIER, 1997; BUTTS, 1997; GLEICK, 2000).

    Vejamos, por exemplo, a advertncia feita pelo governo britnico, em fevereiro de 2006, acerca da crescente possibilidade de testemunharmos muito em breve wars over water. Em tom assertivo, as autoridades ainda alardearam que suas foras armadas must be prepared to intervene in humanitarian disaster relief, peacekeeping and warfare related to dwindling natural resources, particularly water (THE INDEPENDENT, 2006 apud CASTRO, 2007; p.108).

    Por outro lado, tambm no so poucos os autores que contestam o anncio da gua como fonte primria de conflitos entre Estados. A base de suas argumentaes de que h poucas evidncias histricas que sustentem tal hiptese. Contrariamente, eles argumentam que a cooperao pacfica

  • fbIO ALbeRgARIA De queIROz

    120

    no compartilhamento dos recursos hdricos tem sido, historicamente, o comportamento-padro e o uso da violncia, por conseguinte, a exceo regra (LIBISZEWSKI, 1995; WOLF, 1998; SALMAN e BOISSON DE CHAZOURNES, 1998; ALLAN, 2001; COSGROVE, 2003, p.10-11; YOFFE et. al., 2004).

    Complementar tese deste grupo, CLARKE e KING (2005; p.75) destacam que, ao longo dos ltimos anos, muitos pases assumiram obrigaes e criaram comisses de gesto compartilhada para administrar as guas de importantes rios como o Reno, Zambeze, Nilo, Mekong e Danbio. A Europa, por exemplo, embora tenha apenas quatro bacias fluviais compartilhadas por mais de quatro pases, tem quase 200 tratados regulamentando o uso dessas guas.

    Por isso, ainda que muitas das admoestaes apresentadas nos discursos de atores securitizadores e funcionais sejam pertinentes, LE PRESTRE (2000, p.427-8) nos alerta acerca do perigo destes agentes incorrerem em reducionismos ao lidar com o assunto. Segundo ele, nas situaes em que os usos da gua so objetos de disputa, ser sempre possvel construir um lao direto ou indireto, prximo ou longnquo, entre o quadro de instabilidade que se pretende explicar e uma varivel hidropoltica e, assim, ver como resultado dessa perigosa associao, o anncio de instabilidades futuras.

    No que tenham faltado circunstncias entremeadas por um clima de real tenso em torno de problemas agudos ocasionados pelo comportamento abusivo reputado a algum ribeirinho. So vrios os exemplos de desentendimentos envolvendo Estados em decorrncia do uso de recursos hdricos compartilhados, como nos mostra o quadro a seguir:84

    Quadro 2.2: Casos de cursos dgua objeto de disputas

    RIO/BACIA ESTADOS AFETADOS OBjETO DA DISPuTANilo Egito, Sudo, Eritreia, Etipia Irrigao, inundaesJordo Sria, Lbano, Jordnia, Israel, Palestina Consumo, extraoEufrates/Tigre Turquia, Iraque, Sria Consumo, barragemIndus ndia, Paquisto IrrigaoGanges ndia, Bangladesh Consumo, inundaesMekong Laos, Camboja, Vietn, Tailndia Consumo, inundaes

    84 O quadro apresentado, por seu intento meramente ilustrativo, certamente no reflete a intensidade, o potencial de conflito e, tampouco, o grau de institucionalizao (politizao/securitizao) da gesto e das disputas envolvendo estes cursos dgua, fatores verificados em maiores detalhes em alguns dos casos citados ainda neste captulo.

  • HIDROPOLTICA e seguRAnA

    121

    Lauca Bolvia, Chile Barragem, salinidadeReno Sua, Frana, Alemanha, Holanda PoluioBrahmaputra ndia, Bangladesh Consumo, inundaesAmu Darya

    Syr Darya

    Cazaquisto, Uzbequisto, Tadjiquisto, Quirguisto, Turcomenisto

    Poluio, barragens, irri-gao, salinizao

    Paran Brasil, Argentina, Paraguai BarragemColorado EUA, Mxico Irrigao, salinizao Grande EUA, Mxico Consumo, poluioElba Repblica Tcheca, Alemanha PoluioUruguai Argentina, Uruguai Poluio

    Fonte: SIRONNEAU (1996), LE PRESTRE, 2000; p.445, CLARKE e KING (2005; p.78).

    Enfim, os fatos apresentados sugerem cautela ao lidar com o binmio segurana-gua, demonstrando haver a necessidade de se dimensionar a real influncia dos recursos hdricos diante da multiplicidade de variveis outras que tambm apresentam potencial para agravar uma situao de instabilidade ou dificultar sua soluo.

    Geralmente as desavenas pela gua so anunciadas em relao a pases onde h um histrico de animosidade e ressentimentos como no j citado caso entre Turquia, Iraque e Sria, entretanto, ressalte-se, nem sempre a gua ser o piv das controvrsias que surgem, mas, geralmente, um fator agravador de um quadro de tenso pr-existente catalisado por um cenrio de alta interdependncia hidrolgica.

    Dessa forma, torna-se mais til, e vivel, estudar a questo hdrica como um dos elementos a serem considerados nas polticas de segurana, um fator gerador de tenses suplementares em situaes conflituosas, e no como causa primeira da deflagrao das mesmas, ainda que por vezes assim seja apresentada nos discursos de diversos atores securitizadores. Afinal, ratifica BOUGUERRA (2004, p.97), difcil provar que a gua seja a varivel desencadeadora de um conflito, pois, geralmente, so mltiplas as causas que lhe do origem sendo, portanto, ilusrio querer isolar um fator em particular.

    Note-se, ademais, que muitas instabilidades e tenses derivadas dos recursos hdricos tm sua origem no interior das fronteiras dos Estados e no necessariamente entre eles. Seguindo essa linha, CAUBET (2006, p.24-27) salienta que, apesar do discurso de importantes players no cenrio da hidropoltica global, difcil encontrar evidncias explcitas que sinalizem a questo hdrica como fonte direta de um conflito armado internacional deflagrado por causa do consumo ou uso da gua.

  • fbIO ALbeRgARIA De queIROz

    122

    Da sua observao de que os conflitos pela gua muitas vezes assumem feies de tenses internas, civis e/ou sociais (CAUBET, 2006; p.30) ou, como define CASTRO (2007; p.109), intra-nationalwaterconflicts que incluem desde manifestaes pacficas e aes judiciais at a confrontao direta marcada por violncia, o que nos leva, inclusive, a considerar a aplicabilidade do dilema da insegurana no campo da hidropoltica.

    Ademais, assevera LE PRESTRE (2000; p.477), se os recursos hdricos so apresentados como fonte de conflito, isto se d na medida em que as disputas por seus usos favoream a emergncia de um sentimento de insegurana, conceito subjetivo e manipulvel, ligado a questes de identidade, soberania e nacionalismo. Portanto, reunindo os argumentos apresentados, podemos sumarizar as caractersticas que do forma ao speech-act na hidropoltica recorrendo sntese que faz DU PLESSIS (2001, p.13-4) apud TURTON (2003, p.74-5) ao apresent-lo como:

    [] concerned with, and intrinsically linked to, the concept of security. This concern extends to environmental security in general, and to water security in particular. This latter focus, and its collateral theoretical conceptualizations, is forced upon the scene by specifically linking the water discourse to the war/peace and to conflict/cooperation [problematique] and by considering water to be a potential source or cause of (violent) conflict. []This development is, in part, the result of the new security paradigm that has broadened and deepened the security agenda by including non-military (low politics) threats, as well as non-state, security stakeholders at all levels of society. Hence, it is also linked to the notion of common security, which has as its foundation common interests that, at a minimum, requires a shared interest in survival. Irrespective of the fact that post-1989 security has acquired a wider meaning than protection from military threat, its broader conceptualization has paradoxically contributed to securitization and militarization of water as a traditional non-military concern.

    Nesse sentido, central para os propsitos deste estudo relembrar que um assunto assume o status de securitizado no necessariamente por causa da existncia de uma ameaa real, mas sim pelo fato de ser apresentado e aceito como tal em um contexto em que a segurana entendida como um lcus de deciso situado alm das regras ordinrias do jogo poltico, o que confirma a importncia capital que pode ter o ato-discurso na hidropoltica.

    Portanto, cabe ao observador verificar se a questo hidropoltica apresentada dentro de um contexto social e cultural no qual as expresses e sentenas proferidas pelos interlocutores autorizados fazem sentido

  • HIDROPOLTICA e seguRAnA

    123

    para o pblico alvo em relao aos elementos constitutivos desse contexto (atos ilocucionrios) e se as mesmas produzem, como ato perlocucionrio, a securitizao/politizao do assunto proposto e a consequente formao de um CH ou, em casos mais sensveis, de um CHS.

    Considerando o que foi dito, aqui se faz importante abrir espao para um breve adendo de ordem semntica. Como visto em linhas gerais, o termo conflito no significa necessariamente a existncia de uma situao grave, podendo consistir, por exemplo, em mero desacordo sobre certo ponto de vista ou de fato, mas, ainda assim, ensejar movimentos de securitizao ou, em sentido contrrio, at mesmo a dessecuritizao (WOLF, 1999, 2006; WOLF e HAMNER, 2000; WOLF et al., 2003), como constataremos em maiores detalhes na seo dedicada anlise dos estudos de caso.85

    Nesse ltimo caso, v-se que muitas disputas por recursos hdricos tm sido mitigadas por meio de arranjos institucionais cooperativos, importantes instrumentos de dessecuritizao ou, em outras palavras, de normalizao das inter-relaes estatais ao realocar a questo hdrica do domnio da segurana para o nvel dos processos usuais de barganha e disputa da esfera poltica, ou seja, apenas como uma questo tcnica (BUZAN et al., 1998; p.04; TURTON, 2003; p.90).

    Neste quadro, por conseguinte, busca-se minimizar o potencial de conflito ao proporcionar a institucionalizao de mecanismos normativos de gesto e regulao de recursos hdricos por meio de iniciativas como a criao de regimes internacionais e comits intergovernamentais, o que desejvel (TURTON, 2008; p.189).

    Partindo-se, ento, da premissa construtivista de que as normas, ao institucionalizarem ideias, estabelecem padres a serem seguidos e outros a serem evitados influenciando, desta maneira, o comportamento dos agentes e suas possibilidades de ao, a seo seguinte abordar o compartilhamento das guas transfronteirias a partir da perspectiva do Direito Internacional. Desta maneira, buscar-se- demonstrar a importncia das normas e, tambm, as dificuldades que se interpem construo de um regime hidropoltico de alcance global.

    85 Como explicam bObbIO et al. (1998; p.226) o conflito uma das possveis formas de interao entre indivduos, grupos, organizaes e coletividades podendo variar, a partir de caractersticas objetivas, quanto sua dimenso (nmero de envolvidos), intensidade (grau de envolvimento dos participantes) e objetivos. Ressaltam, ainda, que embora a violncia seja um instrumento utilizvel num conflito, no o nico e nem necessariamente o meio mais eficaz, o que nos leva premissa de que um conflito pela gua no significa necessariamente uma guerra por ela (WOLf, 1995; ALemAR, 2006; p.205).

  • fbIO ALbeRgARIA De queIROz

    124

    2.2.2 O papel das normas na hidropoltica

    Ao longo da Histria hodierna, a navegao e a produo energtica destacaram-se, respectivamente, como os usos econmicos mais tradicionais da gua no campo das relaes internacionais norteando, inclusive, as primeiras codificaes acerca da gesto dos recursos hdricos compartilhados. Nesse contexto, a Conveno de Viena de 1815, alm de redefinir os aspectos geopolticos referentes ao equilbrio de poder na Europa, tornou-se tambm o marco institucional na regulamentao do uso dos rios internacionais para a navegao ao estabelecer as primeiras regras sobre o assunto. Apesar de embrionria, ela criou um arcabouo legal capaz de eliminar, ou ao menos dirimir, os entraves que impediam a liberdade navegacional, garantindo, assim, para fins comerciais, o exerccio desta atividade como um direito absoluto de todas as naes.86

    Como legado, os princpios estabelecidos no Concerto Europeu influenciaram diretamente, por mais de um sculo, a formulao de disposies regulatrias sobre a utilizao de rios internacionais (ALEMAR, 2006; p.142-143; CAUBET, 2006; p.03). A Conveno disps, por exemplo, em seu artigo 108, que aqueles Estados que estavam separados ou atravessados pelo mesmo rio deveriam estabelecer, de comum acordo, comisses para regular o seu uso.

    Implicitamente, v-se neste dispositivo uma importante contribuio que se consagraria como um dos elementos clssicos em torno dos quais se desenvolveria este emergente framework jurdico: a distino entre rios contguos (ou fronteirios) e rios sucessivos (ou contnuos). Enquanto os primeiros, por terem suas margens localizadas em pases distintos, servem como limites entre eles formando, assim, fronteiras, os cursos dgua ditos sucessivos atravessam continuamente os limites territoriais de soberanias diferentes.87 H, ainda, aqueles rios que ostentam as duas caractersticas como o Prata, o Amazonas, o Reno ou o Danbio, s para citar alguns casos.

    Estas pressuposies, explica FILHO (2005; p.02), devem ser entendidas no contexto histrico da afirmao dos Estados Nacionais que tinham na soberania territorial seu princpio constitutivo basilar. Seguindo esta lgica, enquanto um curso dgua estivesse em seu territrio, ainda que percorresse os domnios fsicos de outros Estados, seu governo nacional teria total soberania sobre tais recursos, cabendo-lhe utiliz-lo da forma que melhor lhe aprouvesse.86 A Ata final do Congresso de viena trata do assunto nos artigos 108 a 117 sob o ttulo Regulamentos para a livre navegao

    dos rios. Artigos referentes navegao dos rios, que em seu curso navegvel separam ou atravessam diferentes estados.87 Apesar de sua relevncia legal e poltica, esta diferenciao s foi estabelecida formalmente mais de um sculo depois,

    no Tratado de versalhes de 1919 (Parte XII: portos, cursos dgua e ferrovias; seo II: navegao).

  • HIDROPOLTICA e seguRAnA

    125

    O Direito Fluvial Internacional atingiria sua maturidade nas primeiras dcadas do sculo XX, mais precisamente em 1921, ocasio em que foi realizada sob os auspcios da Liga das Naes, com a presena de delegaes de 42 pases, inclusive do Brasil, a Conveno de Barcelona sobre o Regime das Vias Navegveis de Importncia Internacional que, alm de reiterar o princpio de liberdade de navegao, tambm proclamou a igualdade no tratamento de terceiros.88

    No obstante a primazia da navegao como atividade de cunho econmico, um uso concorrente dos recursos hdricos j despontava assumindo crescente importncia e, por isso, ateno em vrios instrumentos normativos: a explorao energtica hidrulica. Como amostras das primeiras codificaes sobre o tema, temos a Conveno de Berna para o rio Rdano, entre Frana e Sua (1913) e a Conveno para o rio Roya, entre Itlia e Frana (1914) (CAUBET, 2006; p.8).

    No entanto, essa tendncia logo se confirmaria no mbito multilateral com a celebrao em 1923, em Genebra, da Conveno relativa instalao de foras hidrulicas de interesse de vrios Estados. Ali estiveram reunidos dezesseis Estados com o intuito de estabelecer regras que regulamentassem a produo energtica.

    Um dos pontos principais do tratado versava sobre a criao de mecanismos que institucionalizassem a obrigao de consultas prvias, fossem elas multilaterais ou bilaterais, entre os pases que almejassem obter energia hidrulica a partir de cursos dgua compartilhados, ou mesmo nacionais, mas que, em virtude de sua localizao e/ou dimenso, pudessem afetar outros ribeirinhos (ALEMAR, 2006; p.147).

    Na medida em que surgiam outras necessidades de utilizao dos cursos dgua em contraponto aos usos ditos tradicionais, em grande parte para atender s demandas do capitalismo industrial e dos avanos tecnolgicos decorrentes como a modernizao da agricultura, o consumo industrial, a flotao de madeira e a disposio final de resduos e produtos poluentes concomitantemente acentuavam-se as contradies, aparentemente inconciliveis, entre os interesses defendidos pelos Estados de montante e jusante. O sculo XX, palco destas notveis e, por vezes, dramticas mudanas, testemunhava, ento, a gesto compartilhada dos recursos hdricos tornar-se, do ponto de vista jurdico, um assunto sensvel na esfera normativa do Direito Internacional contemporneo.

    88 mesmo antes deste tratado, vemos a incorporao de tais princpios, por exemplo, na Amrica do sul cujos rios mais notrios como o Paran, Paraguai e uruguai foram abertos, por fora de acordos bilaterais precedentes, navegao comercial de outras bandeiras em bases no discriminatrias, ou, no caso especfico do Amazonas, pelo ato unilateral do brasil de 07 de dezembro de 1866 que garantiu aos navios mercantes de todas as nacionalidades a livre navegao do rio enquanto em territrio brasileiro.

  • fbIO ALbeRgARIA De queIROz

    126

    O primeiro esboo de um regime tcnico mais abrangente e elaborado sobre o uso das guas internacionais comeou a ganhar contornos em agosto de 1966, em Helsinque, Finlndia. Ali, durante a 52 Conferncia da Associao de Direito Internacional (International Law Association - ILA), buscou-se codificar, em um nico instrumento formal, uma srie de normas at ento majoritariamente costumeiras.89 O arcabouo jurdico resultante, composto de 37 artigos distribudos em seis captulos, ficou conhecido como as Regras de Helsinque sobre os Usos das guas de Rios Internacionais, documento que se tornaria uma referncia para muitas outras convenes posteriores, inclusive, como veremos adiante, no mbito da ONU.

    Este relatrio tcnico trouxe grandes inovaes, dentre as quais, o conceito de bacia de drenagem internacional, definida como uma rea geogrfica que se estende por dois ou mais Estados, determinada pelos limites fixados pelos divisores de gua, incluindo as guas superficiais e subterrneas, que fluem para um ponto final comum (art. II).

    Partindo-se desta referncia conceitual, v-se que no apenas o rio internacional, mas toda a estrutura hidrogrfica na qual ele est inserido evidenciando, pois, a adoo de uma abordagem unitria do conjunto da bacia, abarcando todo o ciclo dgua. Com isso, sua aplicabilidade instrumental e analtica estende-se a qualquer territrio que, de alguma forma, esteja vinculado a um determinado complexo hidrogrfico.

    Nos artigos IV e V o documento vai alm e, subsidiariamente, define que a utilizao desta estrutura hidrogrfica por parte dos ribeirinhos deve ser razovel e equitativa, levando-se em conta fatores de variada ordem como: a extenso da rea de drenagem no territrio de cada Estado ribeirinho; os aspectos climticos da bacia; a perspectiva histrica da utilizao de suas guas; as necessidades econmicas e sociais de cada ribeirinho bem como os custos para satisfaz-las; os conflitos entre os seus mltiplos usos; os efeitos transfronteirios das aes dos ribeirinhos nos cursos dgua.

    Apesar da crescente importncia estratgica dos recursos hdricos nas relaes internacionais, o assunto ingressou efetivamente na agenda multilateral de discusses, em uma dimenso mais abrangente, pouco mais de uma dcada aps as Regras de Helsinque quando, em maro de 1977, a Organizao das Naes Unidas realizou sua primeira conferncia sobre a gua, na cidade argentina de Mar del Plata.90

    89 De acordo com o estatuto da Corte de Haia de 1920, o costume definido como uma prtica aceita e reconhecida como sendo o direito (art.38, 1, alnea b). significa dizer que a norma costumeira ostenta dois elementos indissociveis: a prtica, ou seja, a repetio, ao longo do tempo, de certo modo de proceder ante determinado fato, e o elemento subjetivo (opinio juris) que a convico informal (no escrita) de que tal prtica tem validade legal.

    90 A Onu, antevendo a dimenso estratgica do assunto, requereu por meio da Resoluo n.1901 (XIv), de 21/11/1959, que sua Comisso de Direito Internacional (CDI) analisasse a possibilidade de codificao das regras de Direito Internacional relativas ao uso dos rios internacionais, exceo da navegao j que esta atividade dispunha de um amplo e robusto

  • HIDROPOLTICA e seguRAnA

    127

    Os esforos empreendidos convergiram no sentido de estabelecer programas de gerenciamento integrado capazes de promover a cooperao em torno destes recursos e evitar, destarte, possveis cenrios conflituosos por sua disputa. Para tal, a Conferncia aprovou um documento que ficou conhecido como Plano de Aes de Mar del Plata, at ento o mais completo documento referencial sobre recursos hdricos (ALEMAR, 2006; p.153). Ele disps sobre uma vasta gama de assuntos como: acesso e uso; meio ambiente e poluio hdrica; polticas de planejamento e gesto; desastres naturais; informao e educao pblica, pesquisa; cooperao regional e internacional.91

    Com o desenvolvimento progressivo, e substantivo, das normas de Direito Internacional sobre a utilizao de cursos dgua, a ideia de um amplo regime hidropoltico mantinha-se factvel, apesar de grande parte das iniciativas regulatrias estarem circunscritas esfera regional j que cada sistema hidrogrfico apresenta caractersticas geogrficas peculiares, assim como cada ribeirinho, por razes distintas, diferentes prioridades e necessidades em relao ao uso dos recursos hdricos.

    Neste sentido, a Conveno das Naes Unidas sobre o direito relativo aos usos dos cursos de gua internacionais para fins diversos da navegao (ou Conveno dos Cursos Dgua Internacionais - CCAI),92 adotada em 1997, emblemtica, pois codificou, ao longo de seus 37 artigos, vrias regras e princpios aplicveis gesto dos recursos hdricos compartilhados em um instrumento normativo multilateral, mas, de fato, de alcance universal. Entretanto, sua difcil negociao revelou, outrossim, os muitos obstculos que ainda se interpem efetiva construo de um regime global das guas na arena poltica internacional.

    Prova disso que, apesar de sua relevncia, a CCAI sequer entrou em vigor, pois, para tal, faz-se necessrio que se renam, pelo menos, 35 instrumentos de adeso. At 2006, apenas 19 Estados a haviam assinado, e, desses, 12 ratificado (CAUBET, 2006; p.12).93 Nota-se, assim, como em outros

    arcabouo normativo desenvolvido, sobremodo, entre 1815 e 1921. no entanto, os membros da Onu no demonstraram entusiasmo na proposta que acabou no progredindo. Os trabalhos da CDI seriam retomados somente em 1970 quando uma nova resoluo, n. 2669 (XXv), instou-a a reiniciar as discusses sobre o direito relativo utilizao de rios internacionais para fins distintos da navegao. Da em diante, foram quase trs dcadas at que um texto formal fosse finalmente aprovado pela Assembleia geral, o que veio a ocorrer em 21/5/1997 por meio da Resoluo A/Res/51/229.

    91 Outro evento de igual magnitude seria realizado somente em 1992, em Dublin (Irlanda). naquela ocasio, a Conferncia Internacional sobre gua e Ambiente foi convocada como um dos preparativos para a Conferncia das naes unidas sobre meio Ambiente e Desenvolvimento (CnumAD), realizada em junho do mesmo ano, no Rio de Janeiro.

    92 Convention on the Law of the Non-navigational Uses of International Watercourses. Houve 103 votos a favor do texto apresentado, 03 contrrios e 27 abstenes.

    93 Os tratados multilaterais necessitam, para produzir os efeitos jurdicos esperados, de assinatura e ratificao. nestes casos, a assinatura o ato pelo qual o sujeito do Direito Internacional Pblico reconhece a legitimidade de um texto negociado, contudo, ela no suficiente para gerar efeitos legais, o que acontece somente aps a ratificao que o ato unilateral por meio do qual o sujeito signatrio de um tratado exprime, definitivamente, no plano internacional, sua vontade de contrair obrigaes ante seus pares.

  • fbIO ALbeRgARIA De queIROz

    128

    casos j citados, s que aqui em uma escala muito mais ampla, que este cenrio reflete diretamente as posturas divergentes sustentadas pelos Estados de jusante e montante, o que compreensvel, afinal, os interesses de cada pas so diretamente influenciados por sua posio geogrfica na bacia internacional.

    Fonte: GIORDANO e WOLF (2002; p.06)Fig.2.6:StatusjurdicodaCCAI(1997-2002)

    Neste contexto, de forma geral, os Estados de jusante demonstram-se favorveis abordagem jurdica mais recente, fundamentada no conceito de bacia de drenagem internacional. Por outro lado, os Estados de montante ou cuja situao a montante seja prevalecente, por conta desta condio geogrfica privilegiada, tem apoiado uma codificao voltada observncia dos direitos soberanos de cada pas sobre os recursos hdricos localizados em seu espao territorial, em conformidade com a clssica definio de rio internacional estabelecida no Congresso de Viena de 1815 (FERREIRA, 2000).

    Inclusive, o argumento central a embasar as crticas levantadas pelos pases predominantemente de montante que se abstiveram ou votaram contra a Conveno como Burundi, China, Turquia (contra), ndia e Ruanda (absteno) foi de que o texto no salvaguardou o princpio da soberania territorial dos Estados estando, portanto, inclinado aos interesses dos ribeirinhos de jusante (SANTOS, 2004; p.13-14).

    De fato, as peculiaridades regionais, tema do prximo tpico, so to dspares e complexas que qualquer projeto de codificao geral e universal representa um desafio de dimenses hercleas. Da, o eixo basilar da CCAI sustentar-se na difuso do j citado princpio do uso equitativo e razovel dos recursos hdricos de modo a evitar danos ou

  • HIDROPOLTICA e seguRAnA

    129

    prejuzos aos pases de jusante ou montante, contudo, mantendo um tom generalista, o que a torna, na verdade, um acordo guarda-chuva a ser complementado por outros tipos de instrumentos jurdicos que contemplem as especificidades de cada curso dgua.

    Conforme disposto em seu artigo III: watercourse states will enter into one or more agreements, hereinafter referred to as water agreements, which applyandadjusttheprovisionsofthepresentConventiontocharacteristicsanduses of a particular international watercourse or part thereof.

    Nitidamente influenciada pelas disposies e avanos emanados das Regras de Helsinque, a Conveno ainda buscou descrever uma srie de fatores e circunstncias a serem observados pelos ribeirinhos no momento da realizao de empreendimentos em cursos dgua transfronteirios de forma a viabilizar a to referenciada utilizao razovel e equitativa destes recursos. So eles:

    a) fatores geogrficos, hidrogrficos, hidrolgicos, climticos, ecolgicos e outros mais de ordem natural;

    b) as necessidades sociais e econmicas dos Estados ribeirinhos envolvidos;

    c) o grau de dependncia da populao de cada um dos Estados ribeirinhos em relao aos recursos hdricos;

    d) os efeitos transfronteirios do(s) uso(s) de um rio internacional;e) os usos atuais e potenciais do curso dgua;f) a conservao, proteo, desenvolvimento e racionamento do

    uso dos recursos hdricos e os custos que tero as medidas para se alcanar este objetivo;

    g) a avaliao das alternativas, de valor correspondente, para um projeto particular ou para um uso existente (ALEMAR, 2006; p.163).

    Assim, apesar dos interesses divergentes de certos ribeirinhos em relao aos usos das guas transfronteirias dificultarem a efetiva construo de um regime hidropoltico ou de mecanismos de preveno e resoluo de disputas, a CCAI desponta como um importante ponto de referncia, ainda que em uma perspectiva temporal de longo prazo (SANTOS, 2004; p.12). Entretanto, cumpre destacar que o reduzido xito quanto a adeses Conveno evidencia, pois, que os Estados continuam priorizando a proteo dos interesses nacionais em detrimento de solues multilaterais e integradas (CAUBET, 2006; p.13).94

    94 no obstante este quadro, desde ento, a cada trs anos, renem-se no evento conhecido como frum mundial da gua - atualmente o maior congresso voltado para discutir questes sensveis relacionadas segurana hdrica - representantes

  • fbIO ALbeRgARIA De queIROz

    130

    2.2.3 Complexos Hidropolticos: evidncias empricas

    Expostos os fundamentos conceituais que embasam este estudo partimos, por fim, para a identificao de evidncias empricas que abonem a hiptese de que quanto maior for o grau de interdependncia hidrolgica entre os atores que compartilham os recursos de uma determinada estrutura hidrogrfica, superficial e/ou subterrnea, maior ser a probabilidade de formao de CH (nos casos em que prevalece a cooperao) ou CHS (quando ela se torna um catalisador de divergncias e tenses no limiar da linha da beligerncia).

    Para tal, utilizaremos como ponto de partida os j citados trabalhos seminais de SCHULZ (1995), ALLAN (2001), TURTON (2003) e outros mais que contriburam, complementarmente, para explicar o papel central da hidropoltica na formao de CH/CHS nos Complexos Regionais de Segurana do Oriente Mdio, frica Meridional e Sudeste Asitico, sub-regies caracterizadas por uma grande interdependncia hidrolgica derivada, em boa medida, de um quadro predominante de estresse hdrico.

    Assim, tendo como base estas consideraes, TURTON (2006, p.8-9) mapeou, sistematicamente, os CH/CHS j identificados nestas regies, bem como possveis formaes que ainda no foram plenamente delineadas, mas que apresentam potencial para tomar forma a partir das relaes hidrolgicas decorrentes do compartilhamento de sistemas hidrogrficos.

    Destarte, como ilustra a figura abaixo, no caso do continente africano temos, pois, o Complexo Hidropoltico de Segurana do Nilo, originalmente definido por ALLAN (2001), o Complexo Hidropoltico da frica Meridional, objeto dos estudos de TURTON (2003), e uma provvel terceira formao, o Complexo Hidropoltico da frica Ocidental. Vamos, ento, s principais caractersticas que definem estas estruturas:

    governamentais, organizaes internacionais, OngATs, instituies financeiras e industriais, cientistas e acadmicos. At o momento, foram realizadas seis edies: em marrakesh (marrocos - 1997); Haia (Holanda - 2000); Kyoto, shiga e Osaka (Japo - 2003); cidade do mxico (mxico - 2006), Istambul (Turquia - 2009) e marselha (frana - 2012).

  • HIDROPOLTICA e seguRAnA

    131

    Fonte: http://www.transboundarywaters.orst.edu/publications/register/images/africa.gifFig. 2.7: Complexos Hidropolticos da frica

    2.2.3.1 Complexo Hidropoltico de Segurana do Nilo (CHSN)

    A Bacia do rio Nilo atravessa o territrio de dez pases: Tanznia, Burundi, Ruanda, Repblica Democrtica do Congo (RDC), Qunia, Uganda, Etipia, Eritreia, Sudo e Egito e tem como principais afluentes o Nilo Branco e o Nilo Azul.95 O primeiro se estende das montanhas ao leste do Lago Tanganyika, atravs do Lago Vitria, na Tanznia, at o delta do Nilo, no Mar Mediterrneo. J seu afluente menor, o Nilo Azul, nasce nas terras altas da Etipia e encontra-se, finalmente, com o Nilo Branco em Cartum, no Sudo.

    Como verificaremos na sequncia, a profunda interdependncia hidrolgica existente entre trs destes atores Egito, Sudo e Etipia constitui o principal eixo definidor da hidropoltica na Bacia do Nilo, embora no o nico. Assim, vejamos:

    95 Afluente um curso dgua que desemboca num curso maior ou num lago (mmA, 2008; p.11).

  • fbIO ALbeRgARIA De queIROz

    132

    Fonte: WWF (2007, p.28)Fig. 2.8: Bacia do Nilo

    O Egito, potncia militar e econmica regional, o pas mais vulnervel em termos hidropolticos. Como demonstra a ilustrao, por ser ele ribeirinho de jusante, no detm qualquer controle sobre as nascentes do Nilo, rio vital para o pas que depende totalmente de suas guas para atender crescente demanda de uma populao em forte expanso demogrfica e, em especial, para a manuteno da principal atividade econmica na regio: a agricultura. De acordo com CLARKE e KING (2005, p.35), a extrao egpcia das guas do Nilo para a atividade de irrigao to intensa que compromete diretamente o seu fluxo at o mar Mediterrneo.

    O Sudo, maior pas africano, um ator que tm na hidropoltica importante componente multissetorial de sua agenda de segurana. A parte sul do pas, alm de abrigar as maiores reservas e empreendimentos hdricos, tambm o palco de um conflito societal-religioso que pe em lados opostos, desde os anos 1950, as comunidades islmicas ali estabelecidas e movimentos rebeldes laicos que lutam pela autonomia da regio e que contam, para isso, com o apoio declarado de Uganda, Eritreia e, principalmente, Etipia.96

    Embora o conflito sudans no seja declaradamente uma luta pela gua, ele no deixa de ter conexo direta com o assunto. Esta relao visvel e pode ser exemplificada por meio do apoio externado pelas autoridades etopes guerrilha local tendo como objetivo impedir que se concretize um acordo entre Egito e Sudo para a concluso das obras de um canal de 360 km ligando a regio sudanesa de Jonglei ao Egito sem que haja, antes, uma reviso do Tratado para a Plena Utilizao das guas do Nilo, em vigor desde 1959 (CAUBET, 2006; p.36).97

    96 O fracasso do acordo de Addis Abeba (1972), instrumento que previa a autonomia regional, reacendeu o conflito que, desde os anos 1980, j fez mais de 1,5 milhes de vtimas (feRReIRA, 2003; p.55). enfim, em fevereiro de 2011, aps um referendo que contou com a expressiva aprovao de 98%, foi anunciada a criao de um novo estado: o sudo do sul.

    97 O precrio arcabouo normativo regional teve seu primeiro instrumento concludo em 1929, ocasio em que foi celebrado um tratado que estabelecia as quotas de gua do nilo que egito e sudo poderiam utilizar. Avalizado pelos ingleses, tal acordo privilegiava os interesses britnicos nos dois pases e, por conseguinte, beneficiava a ambos em detrimento dos demais ribeirinhos. Posteriormente, em 1959, foi adotado o Tratado para a Plena utilizao das guas do nilo que, em

  • HIDROPOLTICA e seguRAnA

    133

    O Canal de Jonglei foi concebido com o objetivo de drenar as guas dos pntanos sudaneses para serem utilizadas nas atividades de irrigao e gerao de energia nos dois pases condminos, saliente-se, sem consulta prvia aos ribeirinhos potencialmente afetados pelo projeto. Cinco anos aps o incio de sua construo, em 1978, a obra foi interrompida em decorrncia do acirramento das hostilidades no sul do pas. Alm da reviso do regime jurdico do Nilo, o desfecho do empreendimento est sujeito ao fim do conflito, manuteno da integridade territorial do Sudo e aceitao do projeto por parte de outros condminos como Qunia, Tanznia e Uganda, pases que sofrero graves danos ambientais com sua execuo.

    O Egito, para evitar o agravamento da situao que, certamente, comprometeria seus interesses, vem, desde os anos 80, apoiando financeiramente vrios ribeirinhos, dentre os quais a Etipia, pas-chave neste contexto e que enfrenta um acentuado e persistente declnio em sua produo agrcola por conta dos severos perodos de seca hidrolgica98 que pe em risco a subsistncia de mais de oito milhes de etopes. Este quadro levou, inclusive, o Banco Mundial a afirmar em um estudo que as guas do Nilo, das quais menos de 1% so utilizadas pela Etipia, constituem seu maior ativo natural contra o aumento da pobreza e da penria energtica e de alimentos que assolam o pas (ERLICH, 2002).

    Entretanto, apesar dos esforos, em 1990 as relaes entre os dois vizinhos se exacerbaram quando o Egito vetou um emprstimo do Banco Africano de Desenvolvimento Etipia para a consecuo de um projeto de aproveitamento das guas do Nilo. O veto foi justificado pelo temor egpcio de que o projeto pudesse comprometer o fluxo das guas do rio no pas.

    Pouco depois, em agosto de 1994, o Egito chegou a planejar um ataque areo contra o Sudo em represlia construo de uma represa em Cartum, ponto de confluncia entre o Nilo Branco e Azul. Embora no tenha se concretizado, essa ao evidenciou a gua como objeto claramente securitizado e, igualmente, a disposio do pas em intervir, inclusive

    linhas gerais, refora os direitos egpcios e sudaneses estabelecidos em 1929, mas, novamente, sem levar em considerao os interesses dos outros oito ribeirinhos que sequer foram consultados, motivo pelo qual se opuseram obstinadamente a ele. O acordo estabeleceu, dentre outras medidas, que a quantidade de gua anual destinada ao sudo subisse dos quatro bilhes de m estipulados no acordo de 1929, para os atuais 18 bilhes e meio de m. em troca seria permitido ao egito construir uma represa prxima s fronteiras do sudo para regular o fluxo do rio de forma a prover o pas de gua durante os perodos de seca. A construo da represa de Alta Assu foi iniciada em 1959, logo aps a assinatura do acordo com o sudo, e concluda em 1970. Como resultado foi inundada uma rea de mais de 6.500 km formando no lado sudans o Lago nbia e no egito o nasser, segundo maior lago artificial do mundo, com pouco mais de 600 km de comprimento, ao custo de mais de us$ 1 bilho financiado com recursos provenientes da ento unio sovitica.

    98 Tem-se uma seca hidrolgica quando h um perodo de tempo excepcionalmente seco e suficientemente prolongado para provocar considervel diminuio das reservas hdricas, como a reduo significativa da vazo dos rios e do nvel dos reservatrios e/ou dos nveis de gua nos solos e aquferos (mmA, 2008; p.19).

  • fbIO ALbeRgARIA De queIROz

    134

    militarmente, para manter o status quo caso projetos de aproveitamento hdrico de outros ribeirinhos venham a prejudicar seus interesses.

    A resposta foi rpida, embora no na mesma proporo. Em setembro as autoridades sudanesas deportaram um grupo de hidrologistas egpcios, o que causou grande repercusso na imprensa do pas vizinho. Na ocasio, Ibrahim Sehda, influente colunista egpcio, escreveu que este ato era uma grave violao do Tratado de 1959 e, no satisfeito, ainda cobrou explicaes sobre o porqu das foras armadas no terem agido em resposta (apud DARWISH, 1994; p.01).

    Imbrglios desta natureza vm alimentando uma crescente percepo de insegurana, sentimento que levou autoridades como o ex-Ministro das Relaes Exteriores do Egito, Boutros-Boutros Ghali (1977-1991), a securitizar as relaes com os dois principais contrapesos egpcios na Bacia do rio Nilo ao declarar que a segurana do pas depende de seu relacionamento com o sul (Sudo e Etipia) e no com o leste (Israel) (FERREIRA, 2003; p.58).

    Temos, ento, sob a tica construtivista, um contexto prevalecente na Bacia do Nilo que contribui concretamente para a perpetuao de um clima de tenso que conduz seus atores, a partir da construo de imagens nacionais ou, em outras palavras, de identidades, a se percebam como ameaa. Como ratifica CAUBET (2006, p.27), o Nilo certamente figura entre os chamados rios da cobia, aqueles que apresentam os maiores potenciais de conflito. Ademais, a combinao entre a assimetria de poder e o quadro predominante de escassez hdrica nos pases da Bacia, com destaque para o Egito, Estado de jusante que dispe de recursos militares muito superiores aos outros ribeirinhos, tem sido fator determinante para o agravamento deste quadro.

    Enquanto Egito, Burundi, Qunia e Ruanda encontram-se em situao de penria hdrica (menos de 1000 m3 de gua per capita por ano), Eritria, Etipia e Sudo alternam-se entre um quadro de estresse (menos de 1600 m3 de gua per capita por ano) e pr-estresse hdrico (entre 1600-2000 m3 de gua per capita por ano).99 Alm disso, o rpido crescimento populacional em praticamente todos os pases nilticos, saliente-se, metade deles entre os vinte mais pobres do mundo, potencializa as ameaas ao frgil equilbrio hidropoltico regional.

    A declarao dada por Boutros-Boutros Ghali ao jornal Islamonline, em maro de 2003, reflete esta preocupao. Ele reiterou seu temor quanto s dificuldades que envolvem a distribuio equitativa

    99 mais precisamente, os pases da bacia do nilo, de acordo com dados da fAO/Onu (2003) apud feRReIRA (2003, p.54) apresentam a seguinte disponibilidade hdrica (m3/per capita/ano): egito: 859; sudo: 2074; etipia: 1749; burundi: 566; eritreia: 1722; qunia: 985; RDC: 2518; Ruanda: 683; Tanznia: 2591; uganda: 2833.

  • HIDROPOLTICA e seguRAnA

    135

    das guas do Nilo entre os Estados ribeirinhos e o fato de a consequente competio pelo controle deste recurso poder gerar situaes dramticas em que a confrontao armada seja inevitvel.100 Suas ideias fazem eco a outros discursos securitizadores, de igual teor, como o proferido em 1979 pelo ento presidente Answar al-Sadat que disse, referindo-se Etipia, que a nica questo que poderia levar o Egito a outra guerra seria a gua (apud FERREIRA, 2003; p.51-2).

    Revelador dos receios egpcios, estes speech-acts evidenciam o grau de vulnerabilidade hdrica do pas e, consequentemente, a intrnseca relao existente entre a hidropoltica regional e sua agenda de segurana j que os interlocutores autorizados, por intermdio deste sistema de signos aplicado na comunicao de ideias, postulam a favor dos interesses nacionais o direito de usar meios extraordinrios para conter eventuais ameaas que surjam.

    Por conseguinte, revela, tambm, a indisposio do pas em rever o nico regime jurdico que regulamenta o uso das guas do Nilo, estabelecido h mais de cinco dcadas com o Sudo, e que impe um status quo que exclui deliberadamente os outros oito ribeirinhos de qualquer interveno quanto ao tema recursos hdricos (POSTEL, 1999). Esse cenrio agravou-se, sobretudo, com o processo de independncia dos pases africanos que integram a Bacia do Nilo, ocorrido principalmente ao longo da dcada de 1960, como nos mostra o quadro a seguir:

    Quadro 2.3: Independncia dos pases da Bacia do Nilo

    Pases da Bacia do Nilo Criao/Independncia Metrpole/Ocupante

    Burundi 1962, 01 de Julho Blgica

    RDC 1960, 30 de Julho Blgica

    Egito 1922, 28 de Fevereiro Reino Unido

    Eritreia 1993, 24 de Maro Etipia

    Etipia 1941, 05 de Maro Itlia

    Qunia 1963, 12 de Dezembro Reino Unido

    100 Anteriormente, em 1985, ghali declarou, quando ministro das Relaes exteriores do egito, que dependemos 100% do nilo. A prxima guerra em nossa regio ter a ver com suas guas, no com problemas polticos (apud Le PResTRe, 2000; p.444).

  • fbIO ALbeRgARIA De queIROz

    136

    Ruanda 1962, 01 de Julho Blgica

    Sudo 1956, 01 de Janeiro Egito, Reino Unido

    Tanznia 1961, 09 de Dezembro Reino Unido

    Uganda 1962, 09 de Outubro Reino Unido

    Fonte: http://pt.wikipedia.org/. Acesso em 18/08/2009.

    Consequentemente houve o inevitvel questionamento da Bacia como uma nica unidade, base do Tratado de 1959, condio que se tornou inaceitvel para os novos Estados africanos que passaram a reivindicar seus direitos soberanos de explorao das guas do Nilo exclusivamente em funo de suas prioridades domsticas, at ento desconsideradas pelos tratados celebrados no mbito da administrao colonial. Dessa forma, no Chifre da frica, defi niam-se os contornos de um CHS.

    Novamente revisitando os argumentos construtivistas, v-se que esse arcabouo normativo, moldado a partir das imagens que os atores constroem de si mesmos e daqueles com os quais se relacionam, defi ne, ao menos parcialmente, as estruturas que servem a intermediar suas mtuas interaes (ROCHA, 2002; p.61), j que elas, as normas, surgem e so reproduzidas na ao destes Estados (FARREL, 2001; p.123).

    Vemos, portanto, a questo do acesso s guas do Nilo como vital para os interesses nacionais dos atores envolvidos e, por conseguinte, para a estabilidade regional, um assunto com status de casus belli por ser capaz de elevar a gesto dos recursos hdricos into the heady heights of high politics with [...] probability of a zero-sum outcome (TURTON, 2003; p.117).

    Pelo menos assim vem sendo apresentado audincia por muitos atores securitizadores e funcionais, ainda que nenhum confl ito armado motivado pela gua tenha eclodido entre os ribeirinhos demonstrando, destarte, que esses processos discursivos, at o momento, no passaram de movimentos de securitizao sem resultados perlocucionrios outros alm de atos certamente inamistosos, mas que, de toda sorte, no ultrapassaram a linha da beligerncia.

    Para LOMBORG (2002, 189), a ausncia de situaes confl ituosas drsticas em torno dos recursos hdricos, como no caso aludido, pode ser explicada com base na hiptese por ele sustentada de que, embora a gua seja um insumo muito valioso, h poucos motivos que justifi quem a crena de que tal fato aumente o nmero de guerras entre ribeirinhos uma vez

  • HIDROPOLTICA e seguRAnA

    137

    que ela, a guerra, faz pouco sentido em termos estratgicos e econmicos. Portanto, de acordo com o autor, mais lgico esperar que a escassez de gua provoque um maior nmero de acordos do que de desavenas.

    No mbito desta discusso, cabe ressaltar que o conturbado cenrio hidropoltico na Bacia do Nilo tambm experimentou iniciativas cooperativas empreendidas ao longo dos ltimos anos, especialmente aps o fim da Guerra Fria, como medida, ou pelo menos tentativa, de institucionalizao de mecanismos de ao coletiva na gesto dos recursos hdricos muito embora, como visto, os ndices de vulnerabilidade hdrica na regio apontem para inevitveis conflitos de interesse entre os ribeirinhos e, consequentemente, para a perpetuao de um quadro de tenso.

    Assim, vejamos. Em 1992, por iniciativa egpcia, foi criada a Comisso de Cooperao Tcnica para a Promoo do Desenvolvimento e da Proteo Ambiental da Bacia do Nilo (Tecconile), ainda que sob muita desconfiana, principalmente por parte das autoridades etopes que nela viam, essencialmente, uma entidade voltada para a coleta de dados e monitoramento dos recursos hdricos dos Estados-parte indo, ento, de encontro aos interesses do Egito (FERREIRA, 2003; p.58).

    Seus resultados foram superficiais e sua durao efmera, apenas cinco anos. Em 1997, com o apoio do Banco Mundial e do PNUD, o Tecconile foi substitudo pela Iniciativa da Bacia do Nilo (IBN) que apresentou como principal projeto a criao de uma comisso multilateral para a gesto comum do Nilo tendo como fundamentos basilares o uso sustentvel e equitativo dos seus recursos.

    Mesmo com a adeso formal da Etipia em 1999, tal qual o Tecconile, o IBN continuou a se confrontar com a suspeita de muitos ribeirinhos uma vez que ele limitou-se anlise de projetos conjuntos de aproveitamento hdrico sem, contudo, promover quaisquer medidas concretas que viabilizassem a execuo dos mesmos (FERREIRA, 2003; p.58). Da a afirmao de CARLES (2007, p.12) de que however, an in-depth analysis of these events spotted the light on the fact that these cooperative schemes are for Egypt a tactic to gain time in order to complete its gigantic resource captureprojects.

    Assim, considerando-se o exposto, o cenrio descrito permite-nos concluir que apesar da incontestvel interdependncia hidrolgica existente entre os pases da Bacia, o aprofundamento da cooperao e a execuo de projetos de maior envergadura nos Estados a montante dependero diretamente de uma flexibilizao da posio egpcia, historicamente contrria a qualquer tipo de reviso do regime jurdico do Nilo. Isso, de fato, constitui um entrave para o desenvolvimento destes

  • fbIO ALbeRgARIA De queIROz

    138

    pases e, consequentemente, um fator fragilizador dos mecanismos de cooperao criados em um contexto onde a histria recente de conflitos violentos coincide com a existncia de constrangimentos hidropolticos para o desenvolvimento econmico.

    Em suma, os argumentos e fatos apresentados deram contornos ao quadro geral que levou ALLAN (2001), a partir de evidncias parciais, a identificar na regio a existncia de um Complexo Hidropoltico ou, como define com maior preciso FERREIRA (2003), do Complexo Hidropoltico de Segurana do Nilo j que as relaes entre os ribeirinhos desta bacia giram em torno de um cenrio de escassez hdrica e elevado crescimento populacional marcado pela ausncia de mecanismos de cooperao eficazes, o que favorece a manuteno do status quo no limiar do continuum de tenso.

    2.2.3.2 Complexo Hidropoltico da frica Meridional (CHAM)

    A frica Meridional, ou Austral,101 conviveu, ao longo de sua histria recente, com vrios exemplos de overlay: primeiramente o colonialismo e, subsequentemente, a Guerra Fria, j que esse espao figurou como um dos principais cenrios das disputas por reas de influncia entre as superpotncias. Somada a esse quadro, o apartheid tambm desempenhou papel significativo na paisagem geopoltica regional (BUZAN, 1991; p.217).

    Conjugadas, essas trs situaes contriburam para eclipsar as dinmicas polticas da regio e, por conseguinte, a emergncia de um Complexo de Segurana na frica Meridional. Com a remoo desses constrangimentos, as dinmicas endmicas, ou seja, prprias dos atores locais, assumiram proeminncia e passaram a compor a agenda de segurana sub-regional que visivelmente ganhou maior autonomia em relao aos assuntos da agenda sistmica global.

    Dentre as manifestaes que se sobressaram destacam-se as relaes hidropolticas, pois, como admoestam WOLF et al. (2003), para que a estabilidade poltico-social e o desenvolvimento econmico sejam condies duradouras na frica Meridional, especial ateno deve ser dedicada gesto das guas transfronteirias dada sua importncia estratgica para todos os atores que as compartilham. Corrobora esta assertiva o fato de que das 17 bacias hidrogrficas consideradas em risco

    101 frica do sul, Angola, botsuana, Comores, Lesoto, madagascar, malaui, Ilhas maurcio, moambique, nambia, suazilndia, RDC, zmbia e zimbbue.

  • HIDROPOLTICA e seguRAnA

    139

    no mundo, oito encontram-se no continente africano, sendo seis delas na frica Meridional: Incomati, Kunene, Limpopo, Okavango, Orange e Zambeze (WOLF et al., 2003; p.29;52).

    Assim, ao considerar os diversos nveis multidimensionais caractersticos deste espao, suas intrnsecas conexes com a hidropoltica e os potenciais desdobramentos desta associao nos vrios setores que compem a estrutura organizacional dos atores sub-regionais, notadamente, mas no exclusivamente, os Estados, TURTON (2002; 2003; 2005; 2006) reuniu subsdios para fundamentar sua hiptese de que na poro austral do continente estava emergindo um Complexo Hidropoltico.102 Vejamos, ento, as principais caractersticas deste modelo descritivo.

    Tal qual no caso do CHS do Nilo, a regio meridional da frica reunindo um grande nmero de bacias transfronteirias, pelos menos 15 (TURTON, 2005; p.15) depara-se com uma notvel taxa de crescimento populacional em um cenrio marcado por um quadro predominante de estresse hdrico, como visto no estudo de caso anterior uma combinao perigosa capaz de elevar a gesto dos recursos hdricos ao status de securitizado nas situaes em que prevalea entre os ribeirinhos a competio pelo acesso gua.

    Esta associao est, inclusive, na base dos argumentos sustentados por autores como FALKENMARK et al (1990) e MYERS (1993) que nela veem the ultimate limit para o desenvolvimento e, at mesmo, para a segurana nacional, an imminent threat to development (OHLSSON, 1995; p.04). Como atesta o prprio TURTON (2003, p.31), no caso aludido water [] is an important natural resource on which stable economic development is based, forming a fundamental component of the physical base of the state, particularly under conditions of aridity.

    Dessa forma, o Complexo Hidropoltico assume contornos ntidos neste tipo de cenrio em que a escassez hdrica desponta como um fator limitador do crescimento econmico e do desenvolvimento social, principalmente nas economias mais avanadas da regio, o que faz do acesso a este recurso um assunto de importncia estratgica em suas agendas polticas.

    No obstante os muitos alertas acerca da crescente possibilidade de presenciarmos entreveros envolvendo disputas por gua, GLEDITSCH et al., (2005) ressaltam que da mesma forma como o tema capaz de suscitar aes conflitivas drsticas, em situaes de escassez endmica ele apresenta igual potencial para fomentar iniciativas de cooperao e meios 102 exclui-se do Complexo Hidropoltico da frica meridional madagascar e Ilhas maurcio por sua condio insular.

  • fbIO ALbeRgARIA De queIROz

    140

    alternativos de soluo de controvrsias. Segundo TURTON (2003, p.31) e TURTON et al., (2006, p.08) essa ltima tendncia prevalece no quadro hidropoltico da frica Meridional, at o momento, por duas razes fundamentais.

    Em primeiro lugar, h na regio um histrico prvio de cooperao em relao aos recursos hdricos, observvel mesmo during the conflictyears of Superpower overlay and Apartheids struggle for regional hegemony (TURTON, 2009; p.06), o que indica a prevalncia de interaes pacficas entre os ribeirinhos e, igualmente, a politizao do tema ao se constatar a importncia das normas no apenas no nvel dos discursos, mas tambm sua codificao institucional e o seu grau de implementao nas polticas domsticas (condicionalidade) em uma disposio cronolgica durvel.

    Ilustra muito bem esta situao o tratado celebrado em 1986 entre frica do Sul e Lesoto para a implementao do projeto denominado LesothoHighlandsWaterProject (LHWP). Com o trmino dos empreendimentos hidrulicos previstos no LHWP para 2020, este acordo, erigido s bases de um notvel e audacioso plano cooperativo de engenharia, objetiva, de forma geral, fornecer gua e energia frica do Sul e, por outro lado, propiciar maior autonomia energtica ao Lesoto em relao a seu nico vizinho.

    Envolvendo uma ampla rede operacional (represas, tneis, canais, instalaes hidreltricas), o LHWP prev o represamento de alguns dos rios que correm para o sudoeste e o conseguinte desvio em direo ao norte de forma a canalizar parte das guas disponveis nos altiplanos do Lesoto para uso na agricultura e consumo urbano na frica do Sul, atualmente maior empregador de mo de obra do pas vizinho e responsvel por mais de 20% de seu PIB.

    Em contrapartida, o Lesoto recebe da frica do Sul um repasse anual de cerca de US$ 60 milhes em royalties103 pelo uso dos recursos hdricos transferidos e boa parte da energia hidreltrica gerada neste processo ratificando, outrossim, a existncia de uma genuna simbiose hidrolgica104 entre os dois ribeirinhos. Ademais, esse caso emblemtico uma demonstrao emprica de que even with power disparity, there is possibility for agreement over water resources through economic benefits (WOLF e NEWTON, 2008a; p.01)105 em um contexto em que a

    103 Cotao de 1983.104 no jargo da biologia, a simbiose entendida como uma relao mutuamente vantajosa entre dois ou mais organismos

    vivos que agem ativamente, em conjunto, para proveito mtuo. no exemplo citado, entre Lesoto e frica do sul, a aplicao analgica do termo descreve satisfatoriamente o que seria uma simbiose hidrolgica entre aqueles que so os atores por excelncia na hidropoltica internacional: os estados.

    105 H uma grande assimetria na regio do sADC. enquanto a frica do sul responde por 72% do PIb sub-regional, a segunda maior economia, Angola, gera 7%, moambique 2%, nambia 1,9% e o Lesoto apenas 0,4% (JAIAnTILAL, 2007; p.7).

  • HIDROPOLTICA e seguRAnA

    141

    dessecuritizao do tema vem deslocando, progressiva e consistentemente, o eixo das relaes hidropolticas na frica Meridional do conflito potencial ao potencial de cooperao:

    Fonte: Elaborado pelo autor a partir de: www.lesotho.gov.ls.Fig. 2.9: frica do Sul e Lesoto: um caso de simbiose hidrolgica

    Em segundo lugar, os possveis constrangimentos gerados pela escassez hdrica para o desenvolvimento local, em especial para os principais atores da sub-regio, induzem a busca por solues cooperativas na resoluo de problemas ao invs de incentivos ao conflito. Isso porque, segundo TURTON (2005, p.37), water is so important for each riparian state. Too importanttofightover,totheextentthatwateragreementsaresignificantenoughto be considered as drivers of international relations in their own right, leading to the conclusion that a Hydropolitical Complex exists in Southern Africa.106

    V-se, destarte, que nesta anarquia estrutural socialmente construda temos, pois, uma lgica kantiana prevalecente, ou seja, o comportamento dominante sendo moldado pela cooperao e os conflitos que eventualmente surgem sendo resolvidos pacificamente. Por conseguinte, o reconhecimento destas prticas resulta em um jogo de soma positiva (plus-sum outcome) em que os benefcios da cooperao so evidentes, o que, por sua vez, influi diretamente na forma como os ribeirinhos se percebem em um contexto em que ambos, agentes e estrutura, se constituem mutuamente.

    Neste aspecto, cabe destacar que o primeiro protocolo assinado no mbito da Comunidade para o Desenvolvimento da frica Austral

    106 no caso do CHAm constatamos, portanto, a importncia emprica das normas tal qual sugerida por LegRO (1995; p.16).

  • fbIO ALbeRgARIA De queIROz

    142

    (SADC)107 versa exatamente sobre Sistemas Hidrogrficos Compartilhados (Protocol on Shared Watercourses Systems), o que atesta tanto a importncia estratgica dos recursos hdricos para o desenvolvimento sub-regional como a opo por regimes cooperativos, na maior parte das vezes sob a forma de Comisses de Bacias Hidrogrficas (River Basin Commission), na busca de solues para mitigar os problemas que assolam a regio (RAMOELI, 2002; p.105; CONCA, 2006). Ressalte-se que este quadro apresenta-se como o mais adequado uma vez que a politizao tem representado, at o momento, o xito em lidar com o tema no mbito da esfera poltica convencional.

    Corrobora esta assertiva a criao, em setembro de 1994, da Comisso da Bacia do Rio Okavango (OKACOM - Okavango River Basin Commission) entre Nambia, Angola e Botsuana sob o lema trs pases, um rio com o objetivo de promover, dentre outras disposies, o desenvolvimento coordenado e sustentvel dos recursos hdricos compartilhados e do seu meio ambiente e, ao mesmo tempo, tratar das necessidades legtimas de cada um dos Estados ribeirinhos.108

    Esta Comisso, composta por representantes ministeriais ligados gesto dos recursos hdricos em cada um dos Estados-parte, estabeleceu, subsidiariamente, um frum de discusso que rene uma comunidade epistmica altamente especializada, a Comisso Diretora da Bacia Hidrogrfica do Okavango (Okavango Basin Steering Committee - OBSC). Dentre outras atribuies, ela responsvel pela elaborao de uma agenda tcnico-cientfica sobre assuntos ligados bacia como: a construo de barragens e desvios, o uso de pesticidas, irrigao, poluio e seus potenciais efeitos tanto a montante como a jusante.109

    Complementarmente, nota HEYNS (2002, p.158), um dos maiores desafios a serem enfrentados por estes atores est em implementar large regional water transfer schemes in order to meet the economic limitations imposed by endemic water scarcity, empreendimento possvel somente atravs da cooperao efetiva entre os envolvidos de forma a viabilizar projetos hidrulicos de grande magnitude, como a reverso de guas entre bacias.110

    107 A Comunidade para o Desenvolvimento da frica Austral (sADC Southern African Development Community) foi criada em 1992 com o intuito de incrementar as relaes comerciais entre os pases membros, promover esforos cooperativos para a manuteno da paz e segurana na regio, institucionalizar a utilizao sustentvel dos recursos naturais e a proteo do meio ambiente, dentre outras disposies.

    108 Angola, pas de montante e, portanto, em uma posio privilegiada do ponto de vista hidropoltico, apresenta necessidade urgente de desenvolvimento, em especial para a reconstruo ps-conflito no sul do pas. A nambia, pas de montante em relao a botsuana, mas de jusante em relao a Angola, encontra muitas limitaes ao seu desenvolvimento, especialmente na regio nordeste (sobretudo na rea rural) devido ao quadro de escassez que assola a rea. Por fim, botsuana, pas que apresenta bons indicadores de desenvolvimento econmico, o mais vulnervel em termos hdricos por ser um pas com relativamente poucos recursos e, tambm, por estar a jusante em relao aos outros dois ribeirinhos.

    109 Temos, neste caso, a comunidade epistmica exercendo papel central como ator funcional ao subsidiar os policy-makers e decision-makers no mbito do jogo poltico e, por conseguinte, do processo decisrio.

    110 Dentre estes projetos de grande envergadura destacam-se os planos de extrao de guas do zambeze para os rios Okavango e Cunene, alm de uma hidrovia ligando as bacias do zambezi e Limpopo (Heyns, 2002; p.163). Outro caso

  • HIDROPOLTICA e seguRAnA

    143

    Temos, ento, o Complexo Hidropoltico da frica Meridional, assim definido por TURTON (2001), desenvolvendo-se em torno de um eixo principal formado por algumas das economias mais dinmicas da regio frica do Sul, Botsuana, Nambia e Zimbbue que, concomitantemente, so tambm os pases que enfrentam os maiores problemas de estresse hdrico j que se encontram muito prximos de alcanar o limite de explorao dos recursos disponveis em seus territrios, o que pode ser um fator limitador tanto do desenvolvimento social como do crescimento econmico em cada um deles (TURTON, 2002; p.01).

    Estes quatro pases, os chamados pivotal states,111 encontram-se, em grande medida, interligados por duas das principais bacias hidrogrficas da regio (pivotal basins)112, Orange e Limpopo, alm de compartilharem outros sete sistemas hidrogrficos menores (Pungu, Buzi, Save, Incomati, Umbeluzi, Maputo e Thukela) com os demais co-riprios formando, assim, uma complexa e multifacetada rede de interdependncia hidrolgica. Dessa forma, como ilustra a figura abaixo, temos com o CHAM uma nova dimenso estrutural agregada ao Complexo de Segurana da frica Meridional originalmente definido por BUZAN (1991, p.210):

    Fonte: Adaptado de TURTON (2005, p.04)Fig.2.10:ComplexoHidropolticodafricaMeridional(CHAM)

    emblemtico est na proposta feita pela nambia, um dos pases mais ridos da regio, para desviar 1% do curso do Okavango para Windhoek, a capital, projeto este j rejeitado pelos outros ribeirinhos que nele veem uma sria ameaa sobrevivncia de comunidades riprias e de atividades econmicas importantes como a agropecuria e o turismo.

    111 Pivotal States, ou estados-Piv, so aqueles ribeirinhos que apresentam maior grau de desenvolvimento econmico e, igualmente, um alto grau de dependncia quanto aos recursos hdricos por eles compartilhado(s) como fonte estratgica de suprimento de gua para a manuteno de suas atividades produtivas (TuRTOn, 2005; p.16).

    112 Pivotal Basins so aquelas bacias que se encontram prximas de seu limite de explorao por serem estrategicamente vitais para o desenvolvimento das atividades econmicas desenvolvidas nos pases ribeirinhos, principalmente nos pivotal states. no caso do CH da frica meridional trs bacias encontram-se nesta categoria: Orange, Limpopo e Incomati (TuRTOn, 2005; p.16).

  • fbIO ALbeRgARIA De queIROz

    144

    Eis, ento, a sntese da rationale que defi ne o modelo terico do Complexo Hidropoltico da Africa Meridional. Amparada nos vnculos simbiticos estabelecidos entre os elementos ontolgicos que integram tal estrutura descritiva, ela a resultante de um notvel grau de interdependncia hidrolgica que inevitavelmente os conecta em um enredo multissetorial altamente politizado, efeito de um contexto prevalecente de cooperao observvel, sobretudo aps a remoo dos constrangimentos decorrentes de um longo perodo de overlay.

    2.2.3.3 frica Ocidental, um Complexo Hidropoltico?

    A frica Ocidental, situada na poro oeste do continente (em verde e laranja), rene, stricto sensu, 16 estados: Benin, Burkina Faso, Costa do Marfi m, Cabo Verde, Gmbia, Gana, Guin, Guin-Bissau, Libria, Mali, Mauritnia, Nger, Nigria, Senegal, Serra Leoa e Togo que, concomitantemente, exceo da Mauritnia, tambm integram a Comunidade Econmica dos Estados da frica Ocidental113 (CEDEAO), instituda em 1975 pelo Tratado de Lagos (Nigria),114 segundo JULIEN e GRECO (2006, p.5) the institutionalisation of a high level of international interactions and a symbol of shared identities, interests and concerns.

    Fig. 2.11: frica Ocidental

    113 Ao noroeste e extremo norte temos o maghreb (em amarelo e laranja), por vezes includo como parte desta sub-regio, ainda que com suas singularidades. Integram-no, lato sensu, a Lbia, o saara Ocidental (totalmente ocupado pelo marrocos desde 1979), o marrocos, a Arglia, a Tunsia e a mauritnia.

    114 Para os propsitos do livro, o conceito de frica Ocidental adotado faz referncia ao grupo de 16 pases que originaram a CeDeAO ou eCOWAs (Economic Community of West African States). A eCOWAs conta, atualmente, com 15 estados-membros uma vez que a mauritnia (destacada em laranja), um dos signatrios do Tratado de Lagos, retirou-se em 2002 (informaes disponveis em www.ecowas.info).

  • HIDROPOLTICA e seguRAnA

    145

    No obstante o otimismo demonstrado pelos autores afinal, como confirma a prpria organizao, seu objetivo maior est em promover um amplo e ambicioso projeto de cooperao e integrao em campos estratgicos como indstria, energia, agricultura, recursos naturais, finanas e comrcio115 cabe destacar que esta uma regio vitimada por graves problemas estruturais e um histrico recente de conflitos inter e intraestatais, herana de um longo passado colonial que trouxe consigo srios problemas ainda no resolvidos. Muitos deles so de ordem societal, resultado da diviso de vrias culturas e etnias entre diversos pases, culminando na desestruturao de sociedades autctones que haviam criado instituies prprias e que funcionavam com certa estabilidade h muito tempo (PENNA, 2000; p.18).

    Da a percepo prevalecente de que o processo de integrao na frica Ocidental bem como a construo de identidades compartilhadas, dada a conturbada natureza histrica da regio, requer um tempo que provavelmente ir muito alm do idealizado para sua plena consecuo. Formada predominantemente por Estados ditos fracos ou falidos, com baixa capacidade institucional, um quadro crnico de instabilidade poltica e subdesenvolvimento e, por conseguinte, uma grande dificuldade de insero na economia internacional globalizada (PENNA, 2000; p.20), a poro oeste africana, uma das regies menos desenvolvidas do mundo, apresenta necessidade urgente de melhora em seus indicadores socioeconmicos.

    Um aspecto relevante que parte significativa dos entreveros registrados entre estes atores apresentou alguma relao, em maior ou menor medida, com disputas pelo controle de recursos naturais considerados estratgicos para o desenvolvimento, como a gua. Neste ltimo caso especialmente por conta da agricultura, atividade vital para a economia destes pases, para a subsistncia de muitas comunidades locais e que requer a utilizao de gua em grande quantidade.116

    Portanto, a gesto dos recursos hdricos desponta como um tema relevante na agenda poltica da frica Ocidental que conta com 25 bacias hidrogrficas compartilhadas em um cenrio predominante de estresse hdrico, o que, por seu turno, contribui para exasperar outras disputas a ela sobrepostas, como os j citados problemas tnicos, polticos e econmicos (UN WATER, 2005; p.74). Assim ocorreu, por exemplo, na Bacia do rio

    115 Informaes disponveis em . Acesso em ago./2009.116 A agricultura consome cerca de 70% de toda a gua doce utilizada no mundo sendo que os pases em desenvolvimento

    usam at 40% de seus recursos hdricos na irrigao de lavouras. no entanto, mais da metade desta gua se perde devido ao mau uso, o que pode resultar em solo encharcado ou estril em decorrncia do aumento da concentrao de sais, problema que j atingiu, em mdia, mais de 30% das terras irrigadas nestes pases (CLARKe e KIng, 2005; p.33-4).

  • fbIO ALbeRgARIA De queIROz

    146

    Senegal quando uma explosiva combinao entre as latentes tenses raciais e os problemas relacionados partilha dos recursos hdricos (escassez e realocao) convergiu em uma srie de conflitos violentos, em 1989.

    Por outro lado, como constatado nos estudos de caso anteriores, fato que este mesmo cenrio pode suscitar, alm de situaes conflituosas, oportunidades de cooperao, o que nos leva a indagar, a partir da reviso conceitual apresentada por TURTON (2008, p.188), se no caso da frica Ocidental a interdependncia hidrolgica existente entre seus atores is [or will be] of such a strategic nature that this dependence starts [or will start] to drive inter-state relations of potential amity and/or enmity in a discernable manner (JULIEN e GRECO, 2006; p.10).

    Apesar de ser um espao ainda pouco estudado quanto aos possveis impactos da hidropoltica em suas relaes internacionais, especialmente em termos de segurana TURTON (2006), JULIEN e GRECO (2006) entendem que h indcios claros que permitem vislumbrar uma possvel regio hidropoltica a desenhar-se na poro ocidental africana.

    Cabe verificar, portanto, se as relaes entre os ribeirinhos, traduzidas na forma como eles se percebem, os conduzir a um quadro predominante de tenso ou de cooperao neste contexto em que o recente histrico de conflitos e instabilidade institucional coincide com uma srie de constrangimentos hdricos (escassez; baixa capacidade de armazenagem; esquemas de irrigao precrios e ineficientes e um potencial hidreltrico subexplorado) capazes de restringir o desenvolvimento econmico sub-regional (JULIEN e GRECO, 2006; p.09).

    Assim, e ainda de acordo com os estudos preliminares realizados pelos autores, v-se que as necessidades estratgicas relacionadas gua, at o momento, apontam para a emergncia de um Complexo Hidropoltico no mbito do Proto-Complexo da frica Ocidental (BUZAN e WVER, 2003; p.xxvi) com destaque para o eixo formado por Nigria-Gana-Senegal, trade responsvel pelas principais dinmicas hidropolticas neste rinco do continente, com as Bacias dos Lagos Nger e Chade e dos rios Volta e Senegal como suas principais estruturas hidrogrficas, aquelas por meio das quais se desenvolvem tais dinmicas.

    Apesar do histrico prvio de tenses e dos indicadores socioeconmicos desfavorveis previamente citados, algumas iniciativas cooperativas voltadas para a alocao eficiente dos recursos hdricos reforam esta tendncia ao contribuir para suprimir the outbreak of violence [...] in Western Africa (JULIEN e GRECO, 2006; p.12).

    Neste sentido, cabe destacar que os grandes sistemas hidrogrficos da sub-regio j contam com algum tipo de mecanismo legal e/ou arranjo

  • HIDROPOLTICA e seguRAnA

    147

    institucional que viabilize a gesto compartilhada de seus recursos, exceo da Bacia do rio Volta muito embora, desde 2006, venha se desenhando, com o aporte tcnico e financeiro da EU Water Initiative, uma Comisso institucional prpria que reunir os seis ribeirinhos em torno de projetos integrados. Trata-se da Autoridade da Bacia do Rio Volta (The Volta Basin Authority).117

    A par destas consideraes, ao revisitarmos as contribuies de JERVIS (1982) acerca da Teoria dos Regimes vemos, pois, no caso da frica Ocidental, a sntese de um regime de segurana uma vez que os Estados da sub-regio, em alguma medida, ainda se percebem como ameaas potenciais, no entanto, por meio de arranjos negociados, vem buscando evitar o dilema da segurana entre eles, lgica observvel inclusive com relao aos recursos hdricos.

    Assim, refletem a politizao das preocupaes hidropolticas regionais fruns institucionais especializados como o Comit Interestatal Permanente para o Controle de Secas no Sahel118 ou, no mbito da CEDEAO, a Unidade de Coordenao dos Recursos Hdricos (UCRH) que oficializou, a partir da Reunio Ministerial realizada em Ouagadougou (Burkina Faso), em maro de 1998, um Plano de Ao Regional para a Gesto Integrada de Recursos Hdricos na frica Ocidental. Na ocasio, os pases integrantes da CEDEAO concordaram em gerir os recursos hdricos de forma integrada e participativa, em consonncia com as recomendaes e princpios emanados da Conferncia das Naes Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Eco/1992.

    Finda a exposio acerca das estruturas hidropolticas presentes na frica, materializadas por meio do modelo dos CH/CHS, partimos, ento, para uma anlise anloga referente sia/Oriente Mdio que alm dos tradicionais Complexos Hidropolticos de Segurana do Tigre- -Eufrates e do Jordo ostenta outra possvel formao hidropoltica na regio central do continente asitico (TURTON, 2006; p.9), como sugere a figura seguinte. Vamos, ento, a elas:

    117 O rio volta compartilhado por seis pases: benin, burkina faso, Costa do marfim, mali, gana e Togo sendo que 85% de seus recursos so utilizados por gana e burkina faso. Ressaltam JuLIen e gReCO (2006, p.16) que os baixos nveis de renda de grande parte da populao na regio tem resultado na superexplorao dos recursos naturais da bacia que, por sua vez, pode afetar seriamente o desenvolvimento sustentvel sub-regional. Ademais, a reduo do fluxo normal e do volume de gua em burkina faso devido represa de Akosombo, responsvel por praticamente toda a energia hidreltrica consumida em gana; as poluies transfronteirias; e as inundaes ocasionais ao norte de gana devido ao sistema de represamento de burkina faso so alguns dos fatores que despontam como potenciais pivs de desentendimentos, ou, qui, de aes cooperativas, envolvendo esses que so os pases que mais dependem dos recursos do rio volta.

    118 Permanent Inter-States Committee for Drought Control in the Sahel. A regio do sahel corresponde a uma zona ecoclimtica situada entre o deserto do saara e as terras mais frteis ao sul, formando um grande corredor do Atlntico ao mar vermelho atravessando, praticamente de forma ininterrupta, os territrios de nigria, sudo, senegal, mauritnia, mali, burkina faso, nger, Chade, etipia e somlia.

  • fbIO ALbeRgARIA De queIROz

    148

    Fonte: http://www.transboundarywaters.orst.edu/publications/register/images/asia.gif Fig. 2.12: CH/CHS da sia/Oriente Mdio

    2.2.3.4 Complexo Hidropoltico de Segurana do Tigre-Eufrates (CHSTE)

    Os rios Tigre e Eufrates nascem na regio leste da Turquia e dali se estendem Sria e, finalmente, ao Iraque onde se encontram em Al-Qurnah, ao sul, convergindo para formar o canal de Chat-el-Arab antes de desaguar no Golfo Prsico. Este notvel sistema hidrogrfico criou, entre aqueles que compartilham as guas dos chamados rios gmeos, uma profunda interdependncia hidrolgica que remonta s antigas civilizaes que ali floresceram (como sumrios, assrios, amoritas, caldeus e acdios) e que, ainda hoje, propicia aos atuais ribeirinhos intensas relaes hidropolticas.119

    este cenrio que, como previamente referenciado, levou SCHULZ (1995) a identificar neste rinco do Oriente Mdio, regio where economicallydamagingwaterdeficitsfirstarose (ALLAN, 2001; p.37), o que ele chamou de Complexo Hidropoltico de Segurana do Tigre-Eufrates, modelo descritivo que, paralelamente ao CHS do rio Jordo, primeiro

    119 O rio Tigre conta com uma extenso total de 1900 km dos quais 20% encontram-se na Turquia, 2% na sria e 78% no Iraque. J o eufrates, com 2700 km, tem 40% de sua rea total na Turquia, 25% na sria e 35% no Iraque (Le PResTRe, 2000; p.449-450). Cf. figura 2.4, p.78.

  • HIDROPOLTICA e seguRAnA

    149

    conferiu densidade terica ao estudo da hidropoltica no campo das Relaes Internacionais como verificaremos, doravante, em pormenores.

    Geograficamente, a Turquia, por estar a montante em relao aos outros ribeirinhos, ocupa uma posio que lhe confere vantagens estratgicas j que controla cerca de 2/3 do fluxo normal do Tigre e do Eufrates (LE PRESTRE, 2000; p.450). Alm disso, a Turquia militarmente superior e poltica e economicamente mais estvel que seus vizinhos riprios, cenrio que indubitavelmente outorga-lhe condies mais favorveis para explorar sua situao geogrfica privilegiada.

    Foram estes fatores conjugados que a levaram, no incio da dcada de 1970, a iniciar um dos planos hidrulicos mais ambiciosos e notveis j empreendidos: o Projeto do Sudeste da Anatlia ou GAP,120 como conhecido. Tal qual indica o nome, o GAP consiste em um plano de investimento na regio sudeste da Anatlia abrangendo, destarte, nove provncias administrativas (Adiyaman, Batman, Diyarbakir, Gaziantep, Kilis, Mardin, Siirt, Sanliurfa e Sirnak) com os objetivos principais de promover o desenvolvimento da agricultura e o progresso social nesta que a rea mais pobre do pas, alm de buscar atender crescente demanda turca por energia:

    Fonte: http://www.gap.gov.tr/images/Haritalar/tr-gap1.jpgFig.2.13:reabeneficiadapeloGAP

    Para tal, os turcos projetaram a construo de 22 barragens e 19 centrais hidreltricas que resultaro na gerao de 7500 MW de eletricidade (22% do potencial hidreltrico turco) e na capacidade de irrigao de cerca de 1,82 milhes de hectares (19% das terras potencialmente agricultveis) beneficiando mais de 3,8 milhes de pessoas.121

    120 Iniciais turcas de Gneydou Anadolu Projesi.121 Informaes disponveis em http://www.gap.gov.tr. Acesso em out./2009.

  • fbIO ALbeRgARIA De queIROz

    150

    Somente a barragem de Atatrk122 a mais importante da Turquia e tambm o principal piv das controvrsias com a Sria e o Iraque responder pelo provimento de recursos hdricos para a irrigao de 882 mil hectares e para a gerao de 1/3 de toda a energia hidreltrica prevista no GAP (LE PRESTRE, 2000; p.449):

    Fonte: CAUBET (2006, p.37)Fig. 2.14: Aproveitamento hidreltrico no Tigre e Eufrates

    Projetos de grande envergadura, como o caso do GAP, revelam quo intensas podem ser as relaes hidropolticas entre aqueles que compartilham os mltiplos usos de um recurso comum como a gua e, consequentemente, expe as dinmicas multissetoriais e os fundamentos contraditrios que colocam em lado opostos os Estados de montante e jusante, cada qual buscando justificativas para a utilizao legtima deste recurso. Neste sentido, a Turquia sempre se ops a qualquer noo de rio

    122 Projetada sobre o eufrates, a barragem de Atatrk foi iniciada em 1983 e concluda em 1990, ano de seu enchimento. O represamento do eufrates por parte da Turquia - cujo fluxo foi totalmente interrompido durante seis semanas para encher o reservatrio da barragem - serviu de estopim para desencadear uma srie de protestos em 1991 e 1992 j que grande parte do abastecimento da sria e Iraque advm de suas guas.

  • HIDROPOLTICA e seguRAnA

    151

    internacional alm daquela que fora estabelecida em 1815, no Congresso de Viena, enquanto que a Sria e o Iraque defendem a ideia de bacia de drenagem internacional, claramente influenciados pelas possveis externalidades transfronteirias que possam ser causadas pelos projetos turcos (FERREIRA, 2000).

    Essas percepe