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POR QUE LER E COMO LER: EIS A QUESTÃO

TITLE: WHY TO READ AND HOW TO READ: THAT IS THE QUESTION

Flávia Amparo*

Palavra puxa palavra, uma ideia traz outra, e assim

se faz um livro, um governo, ou uma revolução.

(Machado de Assis)1

RESUMO: "Como e por que ler os clássicos" parece ser, na atualidade, uma questão muito em voga, sendo pensada e respondida por autores importantes da literatura brasileira e mundial como: Ana Maria Machado, Harold Bloom e Ítalo Calvino. Mas como trabalhar, na prática, o clássico em sala de aula? O Ensino Básico deve se enveredar apenas pelo caminho da literatura infanto-juvenil e das adaptações dos clássicos ou pode compreender textos do nosso cânone literário - como Machado de Assis, por exemplo? Esse trabalho apresenta um relato vivenciado em sala de aula, partindo do estudo de um clássico da nossa literatura.

ABSTRACT: "How and why read the classics?" this question has been much debated, in actuality, being investigated by important authors in Brazilian literature and world literature as: Ana Maria Machado, Harold Bloom and Italo Calvino. But how to work in practice, the classic texts of literature in the classroom? The primary school level should not only choose the path of children's literature and adaptations of the classics, but also choose the authors of our literary canon. This work presents an account experienced in the classroom, based on the study of a classic text of Machado de Assis.

PALAVRAS-CHAVE: clássicos, literatura brasileira, Machado de Assis.

KEYWORDS: classical, Brazilian literature, Machado de Assis.

Um mundo em constante mudança é palco e, ao mesmo tempo, cenário das representações humanas. Passado, presente e futuro são as instâncias a que nos submetemos, seja para nos apropriarmos da herança cultural ou para nos tornarmos 1 A epígrafe foi retirada do conto “Primas da Sapucaia” (ASSIS, 1986, p. 417).

Interletras, volume 3, Edição número 17,abril 2013/ setembro.2013 - p 1

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produtores de cultura. Conhecer o passado e a tradição é algo imprescindível para repensarmos o presente, assim como a assimilação das linguagens e tecnologias da atualidade torna-se ferramenta essencial para construirmos o futuro.

Assim sendo, reconhecendo o processo educativo como um ato dinâmico que envolve tanto o professor quanto o aluno, conclui-se que a assimilação desses conhecimentos torna-se relevante para ambos. O educador precisa aprimorar seus estudos, conhecer bem sobre o que fala, não apenas para transmitir, mas para compartilhar as experiências e vivências adquiridas neste processo. Aquele que ensina deve ser o primeiro a buscar o saber e a manter acesa a chama de pesquisador, de leitor, de discípulo, sempre em constante diálogo com os mestres do passado e do presente.

Segundo Ana Maria Machado, o professor e a escola têm um papel fundamental na formação do leitor, para o bem ou para o mal. Seus relatos e opiniões, em Como e por que ler os clássicos desde cedo (MACHADO, 2002), enfatizam que a leitura na sala de aula pode assumir um caráter de obrigatoriedade, como mera avaliação escolar, o que faz do livro um objeto indesejável. Por outro lado, pode ser uma forma prazerosa de conhecimento, quando o professor consegue despertar no jovem leitor a paixão pelos livros.

Se o leitor travar conhecimento com um bom número de narrativas clássicas desde pequeno, esses eventuais encontros com nossos mestres de língua portuguesa terão boas probabilidades de vir a acontecer quase naturalmente depois, no final da adolescência. E podem ser grandemente ajudados na escola, por um bom professor que traga para sua classe trechos escolhidos de suas leituras clássicas preferidas, das quais seja capaz de falar com entusiasmo e paixão. (MACHADO, 2002, p.13)

Destacando a importância dos clássicos, Ana Maria Machado participa das ideias apregoadas por dois grandes literatos de relevância mundial: Harold Bloom (BLOOM, 2001) e Ítalo Calvino (CALVINO, 2007), que também destacam o legado clássico como fonte essencial de leitura. Porém, a escritora brasileira se difere de ambos ao destacar o texto adaptado como uma leitura mais apropriada para crianças e adolescentes penetrarem no universo dos clássicos. Como argumentos para essa escolha, a autora aponta a velocidade das informações do tempo atual e a dificuldade de absorção do texto original por parte de leitores jovens:

Hoje todos têm pressa, ninguém mais aprende latim e grego, há excelentes adaptações de Homero para as crianças e jovens em português e vivemos na

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civilização da imagem, repleta de tentações visuais e muitos outros meios de cada um se informar (MACHADO, 2002, p.33).

Sem dúvida, existem ótimos textos infanto-juvenis e excelentes adaptações de clássicos que podem ser trabalhados em aula sem problema algum, mas até que ponto podemos dizer que estamos, de fato, fazendo a leitura de clássicos?

Na verdade, toda adaptação é uma releitura pessoal, tornando-se o adaptador o verdadeiro autor do livro. Assim, um livro adaptado se pauta nas ideias e nas temáticas dos clássicos, mas não é verdadeiramente um texto de Homero, Shakespeare, Cervantes, Swift, dentre outros importantes autores. A internet, por sua vez, disponibiliza resumos de romances da literatura brasileira de maneira que o jovem leitor não precisa ler nossos autores para conhecer o enredo de seus romances.

Entretanto, o essencial de um clássico não é o que se conta, mas como se conta. Cada vez mais nos distanciamos da leitura dos autores originais em nome da falta de tempo, de maneira que os clássicos passam a ser textos muito conhecidos, mas quase nunca lidos, mesmo por aqueles leitores mais experientes e maduros.

O grande dilema está lançado: ceder ao tempo atual ou romper com o hábito? Como ensinar o prazer da leitura diante de um mundo que não para? A leitura é um desfrutar gradual e exige muito do leitor, principalmente aquilo que mais lhe falta: tempo. Ler apressadamente talvez seja o grande mal da nossa época, impedindo a compreensão da matéria lida e provocando distorções das mais sérias e graves.

Talvez o ideal fosse captar a atualidade como o rumor do lado de fora da janela, que nos adverte dos engarrafamentos do trânsito e das mudanças do tempo, enquanto acompanhamos o discurso dos clássicos, que soa claro e articulado no interior da casa. Mas já é suficiente que a maioria perceba a presença dos clássicos como um reboar distante, fora do espaço invadido pelas atualidades como pela televisão a todo volume. (CALVINO, 2007, p. 15)

O professor, sem poder se isolar do mundo lá fora, se vê numa situação inquietante diante de uma classe dispersa e agitada, que aparentemente não consegue dedicar muita atenção a textos antigos e “difíceis”. O problema é que não se cria um leitor instantaneamente, como ocorre com a maioria das atividades interativas da era da

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tecnologia. Por isso é importante a formação de novos hábitos, a constância da leitura, a perseverança do professor numa caminhada gradativa e motivadora.

É certo que o professor precisa partir da realidade do aluno, mas não pode se tornar refém disso, senão a escola se transformaria numa mera reprodução do cotidiano. Por outro lado, a escola não deve se afastar dessa realidade ou ignorar as vivências e experiências de cada um, incluindo-se também nesse “cada um” o professor. Não é possível que alguém sem experiência de leitura possa motivar seus alunos, nem mesmo falar daquilo que ele mesmo não experimentou em sua trajetória de leitor.

Antes de se construir um projeto de leitura, é necessário ter um professor que domine bem os textos que serão apresentados aos alunos e, o mais importante, que se identifique com as obras selecionadas para o programa de cada turma/ano/série em que atua, isto é, que seja o agente das escolhas dos livros extracurriculares ou paradidáticos. Essa autonomia do professor precisa ser o ponto de partida de qualquer instituição que se julgue democrática e comprometida com a Educação.

Assim como poderíamos dizer que o melhor método não é o que está em voga, mas o que o professor mais domina, o gosto pela leitura é mais facilmente despertado quando o leitor primeiro, que seria o professor, se sente motivado pelo texto que vai ler para seus alunos. Logicamente, também é preciso que o docente tenha bom senso para saber de que maneira trabalhar determinadas leituras conforme a maturidade linguística/ literária da turma em que leciona.

Harold Bloom tentou encontrar uma fórmula de leitura fazendo uma fusão das ideias de Bacon, Samuel Johnson e Emerson: “encontrar algo que nos diga respeito, que possa ser utilizado como base para avaliar, refletir, que pareça ser fruto de uma natureza semelhante à nossa, e que seja livre da tirania do tempo.” (BLOOM, 2001, p. 18).

Antes de tudo, um autor clássico parece ter a fórmula para romper as barreiras do tempo, provando que uma escrita pode ser atemporal e refletir não só a respeito do passado, mas trazer aspectos inerentes ao homem de todos os tempos. Mas não se pode desprezar o papel do leitor primeiro em relação à escolha de um clássico para a sala de aula: antes de avaliar a capacidade de leitura dos alunos, deve-se medir a própria capacidade de compreensão diante do texto escolhido.

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O relato de uma experiência com um clássico da nossa literatura, Machado de Assis, pretende apontar um dos caminhos possíveis nessa difícil, porém magnífica, caminhada pelo universo dos clássicos no Ensino Básico.

1- PALAVRA PUXA PALAVRA

“Palavra puxa palavra” e, de palavra em palavra, de ideia em ideia, um escritor compõe o seu livro, porém, mais do que simples palavras um livro, pode também propor a revolução de um conceito, de uma sociedade, ou ainda, do interior do homem. A epígrafe do escritor Machado de Assis, que abre esse trabalho, parece atentar para a importância da palavra na formação do indivíduo.

Nosso mundo se compõe de palavras ditas, pensadas, mas, sobretudo, escritas em forma de leis, códigos, documentos, livros, passatempos, propagandas, mensagens trocadas na página social, e numa infinidade de outros usos sociais da escrita. No universo especificamente literário, não só a escrita como também o escritor passam a assumir um papel social diante do público de seu tempo e o da posteridade.

Segundo Antonio Candido, o papel do escritor e o da obra literária só podem se completar a partir da ação recíproca entre estes e seus leitores.

A literatura é pois um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os leitores; e só vive na medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-a, deformando-a. A obra não é produto fixo, unívoco ante qualquer público; nem esse é passivo, homogêneo, registrando uniformemente o seu efeito. São dois termos que atuam um sobre o outro, e aos quais se junta o autor, termo inicial desse processo de circulação literária, para configurar a realidade da literatura atuando no tempo. (CANDIDO, 2010, p. 84).

Pensando a obra literária como um organismo vivo, precisamos permitir que os alunos-leitores executem plenamente a função de vivenciá-la, decifrá-la, aceitá-la (ou mesmo rejeitá-la a partir de um exercício crítico) e também deformá-la. Avaliação e reflexão parecem ser dois pontos em comum na definição de Candido e de Bloom advindas da relação do texto com o leitor. Na maioria das vezes, ao contrário do que deveria ser feito, a leitura da obra literária em sala de aula parece se preocupar unicamente em avaliar o leitor, se esse é devidamente competente para assimilar a leitura escolhida.

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Mas não se faz o caminho natural das situações de leitura no âmbito social da escrita, que seria a avaliação do texto lido pelos próprios leitores.

Se admitirmos a concepção de Candido de que a literatura não é um “produto fixo, unívoco, ante qualquer público” e nem que este possa ser “passivo, homogêneo, registrando uniformemente seu efeito”, devemos modificar também a maneira de trabalhar com o clássico na sala de aula, uma vez que esse caráter da literatura não se aplica unicamente a um público especializado, mas está relacionado ao leitor em geral.

O estudo do texto literário, portanto, deve comportar também o trabalho com o leitor, permitindo que o acesso ao texto possa incluir suas intermediações, deformações, e seu olhar individual em relação ao que foi lido. Há a necessidade de vivenciar, sentir e, principalmente, modificar o que foi assimilado, segundo as suas próprias concepções e opiniões. Esse trabalho, entretanto, não se encerra na concepção individual de cada leitor, mas no conjunto dessas visões, incluindo a do professor, como leitor primeiro e mediador de leitura na sala de aula.

Tratando do assunto sob um ponto de vista prático, posso relatar aqui um pouco de minha experiência em sala de aula, a fim de demonstrar a minha experiência com um autor clássico da literatura brasileira junto aos alunos da Rede Pública de Ensino.

Durante 15 anos, lecionei nas escolas da Prefeitura do Rio de Janeiro, tanto nas séries iniciais quanto nas séries finais do Ensino Fundamental. Um dos pontos considerados mais críticos na aprendizagem desses alunos era a dificuldade de serem alfabetizados e, no decorrer dos anos na rede, de desenvolverem competentemente a escrita. A constatação da maioria dos professores era de que as dificuldades econômicas e a falta de integração da família nas tarefas escolares tinham se tornado fatores preponderantes no baixo desempenho escolar desses alunos. Alguns educadores, mais radicais em suas concepções, consideravam até impossível a tarefa de ensinar certas crianças a ler e a escrever, assim como criar nelas o hábito de leitura.

Talvez devêssemos inverter o processo e pôr o hábito da leitura em primeiro lugar, antes mesmo de iniciar o processo “oficial” de formalização da leitura e da escrita. O contato com o texto escrito e, principalmente, com o texto literário deve estar presente desde os primeiros anos da Educação Infantil, muito mais do que simples pretexto de situações de aprendizagem ou de temáticas relacionadas a conteúdos específicos. A leitura deve ser algo relacionado ao prazer, à reflexão, à manifestação das emoções e opiniões, à

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livre expressão do leitor, entendendo aqui o leitor não só como aquele que lê um texto, mas o que interpreta as situações lidas por um interlocutor.

Se a relação da criança com o texto literário, desde os primeiros anos escolares, for algo prazeroso, certamente ela sentirá desejo de se apropriar do código para usufruir desse prazer de uma forma independente. A conquista da escrita torna-se, portanto, a chave que abre um universo único para aquele que se descobre “leitor”, antes mesmo de se inteirar do código linguístico.

Creio que a tarefa mais difícil seja começar esse processo em leitores adolescentes, já alfabetizados, que, entretanto, passaram por experiências nada prazerosas com a literatura e trazem ideias pré-concebidas a respeito dos textos, apresentando muita resistência às experiências de leitura.

Em 2004, desenvolvi um projeto com alunos do 8º ano do Ensino Fundamental de uma escola da Prefeitura, localizada no subúrbio do Rio. Havia na classe alunos entre 12 e 16 anos, que estavam em diferentes estágios da escrita, desde os que escreviam com dificuldade até aqueles que possuíam grande competência linguística. As opiniões sobre as leituras escolares, trabalhadas até aquele momento, eram quase sempre negativas, estando relacionadas a avaliações bimestrais e conteúdos curriculares.

A minha intenção era trabalhar textos clássicos e contemporâneos a partir de um viés temático, a fim de aproximar obras distantes no tempo, avaliar a atualidade de alguns temas e perceber a validade de certas temáticas inerentes ao homem. Mais especificamente, o projeto procurava resgatar os dramas comuns no período da adolescência e ver como eram trabalhados nas obras literárias do séc. XIX, XX e XXI. Os alunos escolheram como tema inicial do projeto “o primeiro beijo”.

Feita a escolha do tema a ser trabalhado, comecei uma seleção dos textos que eu conhecia sobre o assunto e acrescentei outros, dentre os que mais me agradavam como leitora, partindo do princípio de que a motivação primordial de leitura deve levar em consideração o professor como mediador desse processo na sala de aula. Dentre as obras escolhidas, havia um conto de Clarice Lispector, “O primeiro beijo”, e Fruta no ponto, livro de poemas de Roseana Murray.

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Como leitora e admiradora de Machado de Assis, resolvi incluir um texto do escritor, com a finalidade de mostrar pontos de aproximação e de afastamento entre os jovens de ontem e de hoje. Como o tema era o primeiro beijo, escolhi dois capítulos de Dom Casmurro2, que, naquela ocasião, seriam mais profundamente trabalhados em relação à temática escolhida pelos alunos. Era uma forma de recorte do tema, partindo de trechos significativos da obra que funcionariam melhor do que se eu adotasse o romance inteiro como leitura obrigatória.

Harold Bloom, ao realizar uma coletânea (em quatro volumes) de seus textos preferidos, escolheu nomeá-la: Contos e poemas para crianças extremamente inteligentes de todas as idades (BLOOM, 2003). Entretanto, apesar do título, alguns dos textos selecionados não são contos, mas capítulos de obras importantes, como “A história da Falsaruga”, que faz parte de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, ou ainda “A história do trapaceiro curdo contado por Ali, o persa”, que integra as narrativas das Mil e uma noites.

Mais do que fragmentos, esses trechos escolhidos por Bloom são capazes de transportar os leitores ao universo dessas obras, ainda que esses não tenham uma leitura prévia do texto integral. As leituras servem, portanto, como porta de entrada para futuras incursões nas obras originais. Apesar de fragmentos, esses capítulos superam as expectativas do texto meramente adaptado, pois permitem a experiência com a obra original de um autor, que é diretamente apresentada ao leitor sem as distorções dos textos adaptados.

Em relação às diferenças linguísticas e ao uso de palavras em desuso em nosso tempo, ao contrário de serem barreiras para o leitor, podem ampliar o seu conhecimento a partir da mediação do professor, sendo a leitura em voz alta e a declamação meios interessantes de entrosamento entre leitores/ouvintes dos clássicos. A respeito disso, nos revela Bloom:

Mas é surpreendente como uma história ou um poema excelentes de repente se expandem num cosmo de iluminação absoluta, quando se escuta a declamação. Lembro-me então de que os épicos de Homero eram declamados para um público, e de que Geoffrey Chaucer escreveu a fim de ler sua obra na corte real e nas residências dos nobres. Eu me sentiria muitíssimo satisfeito com o destino deste livro se ele ajudasse a levar pessoas a ler em voz alta, fosse individual ou coletivamente. (BLOOM, 2003, p. 22)

2 Os capítulos eram “Olhos de ressaca” (cap. XXXII) e “O penteado” (cap. XXXIII).

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Assim, antes de pôr minha turma em contato direto com o texto escrito de Machado, o que poderia resultar em dificuldades e, consequentemente, desinteresse, resolvi ler os dois capítulos em voz alta para meus alunos, fazendo antes um breve resumo da história do livro. Quando, no momento da leitura, me deparava com palavras de significado difícil para eles, tentava complementar a minha narração com gestos que pudessem esclarecer o significado das palavras, o que funcionou muito bem.

A atenção dos meus ouvintes foi extrema, o que provou a qualidade narrativa do escritor ao relatar as descobertas adolescentes e retratar as sensações e dicotomias do personagem na cena do primeiro beijo. Após a leitura, ainda sem permitir o contato com o texto escrito, pedi aos alunos que se sentassem em dupla e reescrevessem a narrativa a partir de suas próprias impressões de ouvinte.

Só após essa reescrita, os alunos tiveram contato com o texto escrito, o que provocou uma discussão interessante sobre a percepção de cada leitor/ouvinte e sobre o que cada um pôde captar/memorizar da leitura em voz alta. Cada dupla apresentou seu texto aos demais colegas, resultando em inúmeras variantes de leitura, que incluíam livres adaptações, deformações, acréscimos, escritas até mesmo fidedignas ou enriquecidas pelas opiniões dos leitores, agora autores de um texto próprio.

Outro aspecto importante foi a assimilação de algumas palavras do vocabulário machadiano, o que resultou em ampliação do vocabulário usado pelos alunos e na aplicação de novos recursos linguísticos. Houve também a presença de algumas variáveis na escrita, tendo alguns alunos escolhido o uso coloquial e outros alunos o uso culto da língua.

A partir desse primeiro encontro com o escritor, alguns outros aspectos foram explorados, como a visão do que seria a adolescência no séc. XIX, assim como a análise dos ritos de “passagem”, a partir dos quinze anos de idade, da infância à vida adulta, sem a intermediação de um meio-termo. Sobretudo, o que mais provocou a inquietação dos alunos foi a hesitação do narrador de Dom Casmurro com relação aos seus sentimentos, característica que marca a adolescência, a partir de situações como a dificuldade da tomada de decisões, a timidez, a descoberta do amor e do desejo, o rompimento com os padrões sociais e uma série de outras questões do universo adolescente.

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A cooperação foi outro fator importante na percepção da leitura e na construção do texto, na medida em que a atividade exigiu a parceria de duplas que precisaram se entrosar para aperfeiçoar a escrita de cada um. Várias etapas de leitura e reescrita foram efetuadas, com a minha intermediação e a dos colegas, até a escrita do texto final de cada dupla.

Como leitora de Machado de Assis, foi também uma experiência nova para mim a percepção de como aqueles adolescentes (re)leram certas cenas dos dois capítulos do romance com muito mais sensibilidade, identificando com apuro certas insinuações que nós, leitores adultos, já não conseguimos captar com tanta perfeição.

Duas semanas depois da assimilação do primeiro texto, passamos para a leitura de poesias de Machado relacionadas à adolescência, com destaque para o poema “Menina e moça”.

Está naquela idade inquieta e duvidosa,Que não é dia claro e é já o alvorecer;Entreaberto botão, entrefechada rosa,Um pouco de menina e um pouco de mulher.

Às vezes recatada, outras estouvadinha,Casa no mesmo gesto a loucura e o pudor;Tem cousas de criança e modos de mocinha,Estuda o catecismo e lê versos de amor.

Outras vezes valsando, o seio lhe palpita,De cansaço talvez, talvez de comoção.Quando a boca vermelha os lábios abre e agita,Não sei se pede um beijo ou faz uma oração.

Outras vezes beijando a boneca enfeitada,Olha furtivamente o primo que sorri;E se corre parece, à brisa enamorada,Abrir as asas de um anjo e tranças de uma huri.

Quando a sala atravessa, é raro que não lanceOs olhos para o espelho; e raro que ao deitarNão leia, um quarto de hora, as folhas de um romanceEm que a dama conjugue o eterno verbo amar.

Tem na alcova em que dorme, e descansa de dia,A cama da boneca ao pé do toucador;Quando sonha, repete, em santa companhia,Os livros do colégio e o nome de um doutor.

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Alegra-se em ouvindo os compassos da orquestra;E quando entra num baile, é já dama do tom;Compensa-lhe a modista os enfados da mestra;Tem respeito a Geslin, mas adora a Dazon.

Dos cuidados da vida o mais tristonho e acerboPara ela é o estudo, excetuando-se talvezA lição de sintaxe em que combina o verboTo love, mas sorrindo ao professor de inglês.

Quantas vezes, porém, fitando o olhar no espaço,Parece acompanhar uma etérea visão;Quantas cruzando ao seio o delicado braçoComprime as pulsações do inquieto coração!

Ah! se nesse momento, alucinado, foresCair-lhe aos pés, confiar-lhe uma esperança vã,Hás de vê-la zombar de teus tristes amores,Rir da tua aventura e contá-la à mamã.

É que esta criatura, adorável, divina,Nem se pode explicar, nem se pode entender:Procura-se a mulher e encontra-se a menina,Quer-se ver a menina e encontra-se a mulher!(ASSIS, 1979, p. 209-210).

Após a leitura do poema, foi realizada uma pesquisa do vocabulário e dos costumes do século XIX. Os alunos fizeram um levantamento do que representava a adolescência, a começar pela definição “idade inquieta e duvidosa/ Que não é dia claro e é já o alvorecer”, e de hábitos comuns daquele tempo como valsar, experiência ainda mantida nos bailes de debutantes.

A nova proposta de reescrita tomava como base a paródia. A partir do poema original, os alunos deveriam compor individualmente um novo poema adotando o ponto de vista do séc. XXI, podendo também alterar o gênero para “Menino e rapaz”. Logicamente, a complexidade da escrita poética e a composição de versos, estrofes e rimas foram os novos desafios para os alunos.

Feita essa primeira aproximação com o autor clássico, cada aluno trazia em si a sua experiência de leitor, com maior ou menor identificação com o autor, mas todos conscientes do valor do texto literário como representação do homem de um dado tempo, ou, ainda, da atemporalidade de um autor clássico como Machado de Assis.

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Alguns alunos, no decorrer das pesquisas efetuadas pela turma, demonstraram um interesse pela biografia do escritor Machado de Assis, identificando no autor a origem humilde e o posterior destaque no cenário das Letras brasileiras. Reconhecendo que esse aspecto era muito oportuno para a construção de um conhecimento mais amplo do escritor, inclusive de valorização da leitura como processo de transformação do indivíduo, realizamos uma visita-guiada à Academia Brasileira de Letras.

Esta visita-guiada, oferecida pela ABL, foi um evento inesquecível tanto para mim quanto para os alunos, pois inseriu-nos no universo do século XIX. Por meio da performance de atores e cantores, que contaram e cantaram a história da Instituição durante o percurso da visita, nos inteiramos da vida de Machado e dos demais acadêmicos que fizeram parte da fundação da ABL. Visitamos também o “Espaço Machado de Assis”, conhecendo os móveis e objetos que pertenceram ao escritor e tendo acesso à sua biblioteca pessoal, formada por milhares de livros.

Cada olhar espantado para aquela imensa biblioteca parecia descortinar o segredo de uma escrita tão especial e o conhecimento que a leitura foi capaz de conceder àquele que se debruçou sobre tantos livros e autores. O grande valor de um texto clássico reside nessa capacidade de apropriação de uma tradição e, ao mesmo tempo, de renovação/inovação a partir da escrita autoral, capaz de lançar o indivíduo à posteridade.

Machado de Assis, como grande leitor que foi, já reconhecia a importância da leitura dos clássicos de sua época como estratégia de (re)conhecimento de outras linguagens e estilos, mas não como modelo unívoco e estático. A mediação leitor/autor/obra seria necessária para a renovação da literatura e para a formação do público-leitor, opinião que ele expressa no ensaio crítico “Instinto de nacionalidade”.

Feitas as exceções devidas não se leem muito os clássicos no Brasil. Entre as exceções poderia eu citar até alguns escritores cuja opinião é diversa da minha neste ponto, mas que sabem perfeitamente os clássicos. Em geral, porém, não se leem, o que é um mal. Escrever como Azurara ou Fernão Mendes seria hoje um anacronismo insuportável. Cada tempo tem o seu estilo. Mas estudar-lhes as formas mais apuradas da linguagem, desentranhar deles mil riquezas, que, à força de velhas se fazem novas, não me parece que se deva desprezar. Nem tudo tinham os antigos, nem tudo têm os modernos; com os haveres de uns e outros é que se enriquece o pecúlio comum. (ASSIS, 1979, p. 809).

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O processo dinâmico de construção do texto literário revela o quanto nós somos reflexo de uma herança cultural deixada por nossos antecessores. As leituras e releituras, individuais ou coletivas, favoreceram a maturidade dos textos produzidos pelos adolescentes e também fortaleceu as iniciativas posteriores, como a dinamização dos resultados com os alunos de outras turmas, após a conclusão dos trabalhos. Foram preparados murais e saraus que divulgaram o projeto para toda a escola. O tema provocou certa curiosidade em outras turmas da mesma série, que decidiram aderir ao nosso projeto. Os alunos acabaram apresentando os trabalhos produzidos naquele semestre para os demais colegas, de outras séries, numa das culminâncias organizadas pela Unidade Escolar.

E, assim, de palavra em palavra, esses meninos e meninas não só leram um autor clássico como puderam expressar suas emoções e mostrar seu talento para todo o grupo. No lugar de conhecerem a obra de Machado de Assis adaptada por um outro autor, os alunos tiveram contato com o texto original e, a partir dele, num caminho inverso, criaram suas próprias adaptações, traduzindo, por meio do crivo pessoal, as ideias expressas no texto literário.

Essa foi apenas uma das possibilidades de se trabalhar com as obras de Machado de Assis nas aulas de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental. Quando se entra em contato com a obra machadiana, nota-se a atualidade do autor, e, guardadas as mudanças ocorridas até o nosso tempo, a escrita machadiana ainda traz reflexões muito atuais. Se as épocas mudaram, se as modas sofreram transformações, se o cenário é diferente, o homem retratado na obra machadiana revela a essência da alma não só brasileira, como universal. Conhecer seus personagens é compreender as contradições do homem mais a fundo.

Assim, “palavra puxa palavra” e, de palavra em palavra, é possível compartilhar nossos conhecimentos e desfrutar da herança cultural deixada pelos antigos e, sobretudo - mesmo diante dos atrativos midiáticos e da velocidade da vida moderna - preparar os jovens para o exercício da reflexão, para o uso da palavra e para a grande revolução das ideias.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSIS, Machado de. Obra completa. 2 vol. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 1986.

______. Obra completa. 3 vol. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 1979.

BLOOM, Harold. Como e por que ler. Trad. José Roberto O’ Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

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*Professora de Literatura Brasileira da UFF e do Mestrado Profissional do Colégio Pedro II.

Interletras, volume 3, Edição número 17,abril 2013/ setembro.2013 - p 14