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Impulso, Piracicaba, 16(40): 11-18, 2005 11 Apresentação Foreword Educação Brasileira no Século XXI – entre a cultura do medo e a busca da liberdade BRAZILIAN EDUCATION IN THE 21 ST BETWEEN THE CULTURE OF FEAR AND THE SEARCH FOR FREEDOM A história recente do Brasil, e da educação brasileira em parti- cular, é permeada por continuidades, descontinuidades ou rupturas decorrentes das mudanças na economia, na estrutura do Estado, na sociedade civil e na constituição da cidadania. Muitas reformas ins- titucionais ocorreram desde os anos 1950 até o primeiro lustro deste século. Tendo em geral origem no Estado, buscaram mudar os pro- cessos de construção da sociabilidade humana, com a finalidade de adequá-la à forma assumida pelo País em cada tempo histórico, para o que tem concorrido de maneira específica a educação. O golpe militar de 1964 concretizou-se como resultado da con- tradição entre o econômico e o político – entre um processo so- cioeconômico que buscava a internacionalização da economia brasi- leira e uma ideologia nacionalista da maioria da classe política, isto é, de parte do Partido Social Democrático ( PSD) e do Partido Traba- lhista Brasileiro ( PTB). O golpe significou, portanto, uma ruptura política na continuidade socioeconômica, ao impor, por processos coercitivos, drásticas e profundas modificações nas estruturas sociais, visando também atingir transformações nas superestruturas do País. Nesse contexto, no plano educacional, o governo militar-auto- ritário, sob pressão social, intentou aumentar a “produtividade” das escolas públicas, com a adoção de princípios administrativos empre- sariais, além de, desde o início, conduzir a uma gradativa privatiza- ção da educação. Dão clara demonstração disso os decretos-lei edi- tados pelo governo militar de turno. No caso da educação superior, os decretos-lei n.º 53/66 (fixando princípios e normas para as uni- versidades federais) e n.º 252/67 (que estabelece normas comple- mentares ao decreto-lei n.º 53/66), bem como os diversos acordos firmados entre o Ministério da Educação e Cultura e a Agência dos VALDEMAR SGUISSARDI Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP) [email protected] JOÃO DOS REIS SILVA JUNIOR Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) [email protected] impulso40.book Page 11 Monday, October 3, 2005 10:39 PM

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ApresentaçãoForeword

Educação Brasileira no Século XXI – entre a cultura do medo e a busca da liberdadeBRAZILIAN EDUCATION IN THE 21ST BETWEEN THE CULTURE OF FEAR AND THE SEARCH FOR FREEDOM

A história recente do Brasil, e da educação brasileira em parti-cular, é permeada por continuidades, descontinuidades ou rupturasdecorrentes das mudanças na economia, na estrutura do Estado, nasociedade civil e na constituição da cidadania. Muitas reformas ins-titucionais ocorreram desde os anos 1950 até o primeiro lustro desteséculo. Tendo em geral origem no Estado, buscaram mudar os pro-cessos de construção da sociabilidade humana, com a finalidade deadequá-la à forma assumida pelo País em cada tempo histórico, parao que tem concorrido de maneira específica a educação.

O golpe militar de 1964 concretizou-se como resultado da con-tradição entre o econômico e o político – entre um processo so-cioeconômico que buscava a internacionalização da economia brasi-leira e uma ideologia nacionalista da maioria da classe política, istoé, de parte do Partido Social Democrático (PSD) e do Partido Traba-lhista Brasileiro (PTB). O golpe significou, portanto, uma rupturapolítica na continuidade socioeconômica, ao impor, por processoscoercitivos, drásticas e profundas modificações nas estruturas sociais,visando também atingir transformações nas superestruturas do País.

Nesse contexto, no plano educacional, o governo militar-auto-ritário, sob pressão social, intentou aumentar a “produtividade” dasescolas públicas, com a adoção de princípios administrativos empre-sariais, além de, desde o início, conduzir a uma gradativa privatiza-ção da educação. Dão clara demonstração disso os decretos-lei edi-tados pelo governo militar de turno. No caso da educação superior,os decretos-lei n.º 53/66 (fixando princípios e normas para as uni-versidades federais) e n.º 252/67 (que estabelece normas comple-mentares ao decreto-lei n.º 53/66), bem como os diversos acordosfirmados entre o Ministério da Educação e Cultura e a Agência dos

VALDEMARSGUISSARDI

Universidade Metodista dePiracicaba (UNIMEP)[email protected]

JOÃO DOS REISSILVA JUNIOR

Universidade Federal de SãoCarlos (UFSCar)

[email protected]

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Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), quesupervisionou e financiou parcialmente a economia brasileira nosprimeiros governos militares. Assim, e disso decorreram, em grandemedida, a denominada reforma universitária de 1968 (lei n.º 5.540)e a reforma do ensino de 1.º e 2.º graus em 1971 (lei n.º 5.692). Osanos seguintes foram marcados por profunda reorganização do cam-po educacional no País, na direção de uma determinada sociabilida-de do cidadão brasileiro, como tantos estudos já o demonstraram.

No entanto, o projeto de Brasil Potência, expresso no progra-ma político-militar para o País, mostrou logo seus limites, quando asconseqüências da grande crise da social-democracia, especialmenteeuropéia, e do nacional-desenvolvimentismo, na América Latina,aqui aportaram, associadas à ausência de poupança nacional, provo-cando o crepúsculo do milagre econômico e conduzindo à iminênciade uma crise social sem precedentes. Com a redemocratização dosanos 1980, essa crise foi politizada no processo de transição do po-der político das mãos dos militares para as dos civis – de um regimeditatorial para uma quase-democracia.

A contradição entre, de um lado, um profundo déficit social eprodutivo e, de outro, a redemocratização do poder produziu a poli-tização da crise econômica. Isso enfraqueceu os movimentos sociais eas instituições e organizações políticas de mediação entre o Estado e asociedade civil, possibilitando o ajuste socioeconômico e político doinício dos anos 1990. Tal ajuste era visto como necessário à superaçãoda crise capitalista gestada no âmbito da social-democracia predomi-nante no século XX e se fez presente primeiro no Chile e, em seguida,nos Estados Unidos e em alguns países da Europa e da América Latina.

Como resultado, aconteceram radicais transformações nas for-mas de produção da vida humana, em todas as suas dimensões, emrazão da própria racionalidade da formação econômico-social capi-talista. A base produtiva alterou-se significativamente por meio dodesenvolvimento científico. A economia, em sua dimensão micro,reestruturou-se em face de seu próprio movimento e do ocorridocom a mundialização no âmbito macro, transformando de modo ra-dical as relações entre as grandes corporações, bem como o seu pa-radigma organizacional e de gestão. No plano político, a esfera pú-blica, primeiro, restringe-se e desregulamenta-se para, em seguida,regulamentar-se novamente e, assim, possibilitar a expansão do setorprivado, em movimento com origem no Estado, mediante reformasestruturais orientadas por teorias gerenciais próprias do mundo dosnegócios, em lugar de teorias políticas relacionadas à cidadania, ain-da que calcadas na concepção liberal.

Nessa nova etapa histórica, a ciência, a tecnologia e a infor-mação, de que se servia o capital de forma subsidiária em fases an-

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teriores, tornam-se suas forças produtivas centrais, desenvolvidas sobseu monopólio. O dinheiro converte-se no principal móvel econô-mico, em virtude do modo de reprodução ampliada do capital, con-cretizado pelo sistema financeiro via mundialização do mercado. Ascorporações transnacionais, escudadas em organizações financeiras,como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Interamericano deDesenvolvimento, o Banco Mundial etc., assumem, articuladas comos governos dos países centrais, o centro do poder mundial, em de-trimento dos anseios da sociedade civil que supostamente se expres-sariam no Estado nacional. Como decorrências e componentes estru-turais dessa nova fase, adquirem dimensão cada vez mais ampla o de-semprego, a desestatização/privatização do Estado (a mercantilizaçãoda democracia liberal) e a terceirização da economia, legitimados pe-las concepções ultraliberais, provocando intenso processo de mercan-tilização de espaços sociais, especialmente, no caso, os da educação.Tal movimento de mercantilização ocasiona densas mudanças noethos das instituições educacionais mediante novas relações com a so-ciedade e reformas educacionais assentadas no trabalho abstrato, pró-prio dessa nova forma histórica do capitalismo mundial e brasileiro,isto é, tendo-o como eixo central de sua estruturação e organização.Nesse momento, as relações entre capital e trabalho tendem a con-formar um campo novo para a esfera educacional. Diante da mate-rialidade desse quadro, os trabalhadores são induzidos a assumir, pormeio da educação, uma postura de permanente busca por capacitaçãocontinuada para torná-los reempregáveis. Suas qualidades subjetivasdevem ser entendidas como mercadorias, algo objetivo a ser adquiri-do como condição de sua empregabilidade numa sociedade cada vezmais sem emprego, situação resultante da ruptura da racionalidadehistórica do momento brasileiro que finda. Trata-se, pois, da incor-poração do perverso processo de culpabilização do trabalhador emface de seu eventual fracasso no mercado de trabalho.

Como se pode observar, a partir da segunda metade da décadade 1990, vários traços culturais que fundam as relações sociais bra-sileiras repõem-se sob nova feição histórica. O viés tecnicista da edu-cação brasileira, como meio eficaz para o desenvolvimento, atualiza-se num pacto social entre antagônicos e sob a égide de um governocentral pragmático, popular e democrático, em vez de sob os ditamesautoritários da finda ditadura militar. Ilustração disso é a desconti-nuidade dos movimentos sociais que reivindicavam políticas públicaspara o atendimento do déficit social e produtivo dos anos 1980,quando, hoje em dia, organizações não governamentais reclamam,com recursos públicos ou não, nacionais ou estrangeiros, o que antesera considerado direito social subjetivo do cidadão. A qualificação ea formação profissionais são um exemplo bem acabado dessa ruptura.

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A Central Única dos Trabalhadores, por exemplo, faz uso intensivo,para esse fim, das verbas do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT)– também o fazem organizações não governamentais, como a Uni-trabalho. Trata-se, no momento atual, de uma realidade muito com-plexa constituída por condensação de múltiplas realidades históricas,portanto, de difícil apreensão. No campo da política, as políticas pú-blicas para o social, com destaque das para a educação, outrora dedemanda da sociedade civil, tornaram-se políticas de oferta assenta-das num orçamento orientado pelas agências multilaterais e por umCongresso Nacional fisiológico, fato possível dada a reforma do Es-tado e os fatores anteriormente delineados. A feição histórica atualdo capitalismo no Brasil produziu uma regulação social que procuraa “nova institucionalidade” assentada na busca do consenso entreantagônicos, por meio de negociação submetida à política econômi-ca assumida desde o início dos anos 1990.

Em acréscimo, vale destacar que a economia tem experimenta-do avanços significativos, que, contraditoriamente, se contrapõem àpobreza da população e ao descaso oficial com as políticas sociais. In-telectuais conservadores atuam agressivamente, tirando partido dessacontradição, e produzem a cultura do medo – medo de um endure-cimento do regime político no País, reiterável na América Latina, queseria realizado por políticos oportunistas, num quadro de ausência dedensidade histórica partidária, mas na presença de um fazer políticoprenhe de patrimonialismo revitalizado sob novas formas históricas.

Trata-se, pois, de momento histórico crucial. E cenário de umaverdadeira ditadura dos símbolos, do presente e do aparente, queobscurece a visão e o entendimento da realidade social, quando, parausar célebre expressão, o vício faz falso elogio da virtude para per-petuar-se – em outros termos, quando a forma como se apresenta arealidade, diante da força brutal do capital sobre o trabalho, dispensamediações ideológicas. Despe-se a realidade e mostra sua incômodanudez. Na aparência, tudo parece mover-se para que o todo perma-neça aparentemente estático diante do esforço humano de sobrevi-vência. A objetividade social produzida historicamente pelo homemapresenta-se como uma segunda natureza, tal o seu nível de fra-gmentação e aparente virtualidade. Ilude, assim, quem a produz e areproduz e por ela é produzido e reproduzido. Essa ilusão constituia exata naturalização do que existe de mais cruel, objetivo e histórico:a forma fenomênica do capitalismo contemporâneo não percebida naprodução histórica e cotidiana do ser humano. A cotidianidade émarcada pela heterogeneidade, pela fragmentação e pela imediatici-dade, isto é, pela necessidade de o ser humano dar respostas automá-ticas – sem reflexão sobre o meio em que vive – a suas necessidades.Isso conduz, no universo diário, a grande maioria da sociedade a ver

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o mundo por meio do superficial e aparente, tendo, como critério deverdade, a potência de verdade produzida pelo conhecimento e, comoepicentro de sua moral, a utilidade em vez da história (Nietzsche).

Nesse contexto, observados o campo das políticas de educaçãonos últimos dez anos e a trajetória unilinear da economia e das po-líticas sociais, que se desenvolvem ancoradas nos princípios básicosdelineados anteriormente, verificam-se muito mais continuidades doque rupturas. O novo, por ora, está muito mais no plano do ideali-zado e expresso em dois instrumentos legais, que depedem de apro-vação no Congresso Nacional, do que revelado por políticas efetivas.O primeiro – uma proposta de emenda constitucional (PEC) regula-mentando o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da EducaçãoBásica e de Valorização do Magistério (Fundeb) – pretende estenderpara a educação básica (educação infantil, ensinos fundamental e mé-dio) as diretrizes, coordenadas e ações que até hoje, desde 1996 (EC

14/96; lei n.º 9.424/96 e decreto n.º 2.264/97), restringiam-se ao en-sino fundamental – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do En-sino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef). O segun-do, no formato de uma lei da reforma da educação superior, procuraestabelecer-lhe normas gerais e regular a educação superior no sistemafederal de ensino, alterando a lei n.o 5.540/68 e um conjunto de outrasleis complementares atinentes à educação, particularmente à superior.

Como é evidente, nenhuma PEC ou lei comporta toda a “re-forma” ou toda a “política” pública em andamento no campo daeducação ou de qualquer outra área específica das políticas sociaispúblicas. O alcance e os limites do Fundeb decorrem das políticas epráticas educacionais dos últimos anos, que podem se contar em dé-cadas, embora predominem as mais recentes. São as contradições daeconomia e da sociabilidade constituída sob o domínio do capital,com sua face contemporânea, que condicionam o essencial das po-líticas e práticas educacionais constitutivas da “reforma” em curso.1

Entre os aspectos mais importantes das práticas educativas noBrasil, atualmente, cabe aqui destacar um, que tem sido marca es-sencial da reforma do Estado, patrocinada pelo governo de Fernan-do Henrique Cardoso (FHC) desde 1995, isto é, a dimensão gerencialque deveria presidir essa reforma do aparelho estatal e que se estendeà administração e gestão da educação básica e das escolas públicas.2Além da administração do aparelho do Estado e das políticas públicasem moldes empresariais, dissemina-se e fortalece-se, a cada dia mais,

1 Esse é o tema desenvolvido por Celso Carvalho, em seu texto “Reforma da educação no contexto decrise do capitalismo contemporâneo”, desta 40.a edição da Impulso. Sobre o alcance e os limites do Fun-def e do Fundeb, neste dossiê “Educação & Política”, tratará Lisete Arelaro, com seu artigo “EducaçãoBásica no Brasil no Século XXI: tendências e perspectivas”. 2 Esse é o tema que João Ferreira de Oliveira e Marília Fonseca abordam em seu texto “A Educação emTempos de Mudança: reforma do Estado e educação gerenciada”, deste número da Impulso.

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a tese de que a educação, em especial a superior, é um bem de serviçoprivado, muito mais que público, cujas agências deveriam ser geridassob os princípios da administração gerencial. É a lógica do capital, fun-dada também na idéia de que os bens privados se produzem e repro-duzem ao impulso da competição ou competitividade, a impor-se gra-dativa e celeremente nos domínios da educação e do saber, agora mui-to mais valorizados que outrora como importante mercadoria ou qua-se-mercadoria dos novos modos de acumulação.

A proposta de nova lei da reforma da educação superior, que,rompendo com a continuidade das políticas anteriores, visaria o for-talecimento do setor público (com efetivação da autonomia, garantiade financiamento para prover as necessidades correntes e de expan-são, ampliação do percentual de matrículas públicas sobre o total dosistema etc.) e a regulação e o controle do setor privado (por meio decontenção da expansão em especial das privadas comerciais, aumentosignificativo das exigências de qualificação e vinculação integral docorpo discente etc.) está condicionada por muitos fatores. Antes detudo, pelo modelo de desenvolvimento e pelas características da ma-croeconomia, que dão continuidade aos ajustes ultraliberais promo-vidos desde o governo Collor de Mello e consolidados no octênio deFHC. Esse modelo faz das políticas sociais compromissos estatais desegunda ordem. Nesse sentido, os recursos orçamentários a elas des-tinados não poderiam pôr em risco as diretrizes básicas garantidorasda dita governabilidade do País, no contexto da mundialização do ca-pital e da crescente subalternização nacional ao capitalismo financeirointernacional. A prioridade número um é o pagamento do serviço dadívida externa, garantido por exorbitantes índices estabelecidos desuperávit primário, entre outras medidas. Como acreditar, pois, queseja aprovada, primeiro no Congresso Nacional, depois sancionadapela presidência da República, ouvida a área financeira, uma propostade financiamento, por exemplo, que cubra as necessidades atuais, re-cupere o déficit dos dez anos anteriores e garanta a expansão do setorpúblico da educação superior até atingir 40% das matrículas?3

A proposta de lei de reforma da educação superior está condi-cionada pela legislação anterior que regulamentou, via decretos eportarias, no governo passado, aspectos essenciais da Lei de Diretri-zes e Bases da Educação Nacional (lei n.º 9.394/96).4 Porém, é ne-cessário enfatizar que os condicionantes maiores e mais imediatosdecorrem de legislação aprovada durante os dois primeiros anos doatual mandato presidencial.

3 A questão do financiamento, em especial a sua vinculação com os procedimentos de avaliação da educa-ção superior, prática comum nos anos recentes, é abordada por Nelson Cardoso Amaral, em seu ensaio “AVinculação Avaliação/Financiamento na Educação Superior Brasileira”, neste dossiê “Educação & Política”.4 Esse conjunto de leis e seu significado é o tema que Carlos da Fonseca Brandão trata em seu texto“Política educacional para a Educação Superior Brasileira na Última Década”, deste número da Impulso.

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Entre os instrumentos legais aprovados sob a atual administra-ção federal, devem ser mencionadas três outras leis, que afetam di-reta ou indiretamente o subsistema de educação superior e condicio-nam a nova lei da reforma universitária. Isso, sem contar a aprovaçãodo Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior, substituin-do o Exame Nacional de Cursos (Provão), ainda em fase de teste esob críticas importantes quanto a seu efetivo respeito à autonomiauniversitária e mesmo à sua eficiência.

A primeira dessas leis é a de n.º 10.973 (Lei de Inovação Tec-nológica), de 2 de dezembro de 2004, que dispõe sobre incentivosà inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produ-tivo. Ela cria estímulos e facilidades para a utilização dos recursos –físicos, materiais e humanos – das universidades pelas empresas. Per-mite a transferência de tecnologia desenvolvida nas universidadespara as organizações, viabiliza a alocação de recursos públicos nosprojetos ditos de inovação e prevê a gratificação dos pesquisadorescujos conhecimentos venham a ser aproveitados pelas empresas.Considerando a extremamente baixa remuneração salarial dos do-centes/pesquisadores das instituições de ensino superior públicas,prevê-se uma importante interferência exógena na agenda universi-tária, contribuindo para acentuar os traços, cada dia mais evidentes,da heteronomia na vida universitária, em lugar da autonomia cons-titucional, jamais de fato efetivada.

A segunda é a lei n.º 11.079, de 30 de dezembro de 2004, queinstitui normas gerais para licitação e contratação de parceria públi-co-privada (PPP) no âmbito da administração pública. Ela estabelecee possibilita a parceria do Estado com empresas privadas nas mais di-ferentes áreas da produção e do comércio de bens e serviços de na-tureza pública e coletiva, isto é, pesquisa, desenvolvimento tecnoló-gico, meio ambiente, patrimônio histórico e cultural, incluindo edu-cação e ensino. O pressuposto a justificar a instituição das PPP seria,por um lado, a baixa capacidade de investimento estatal e, por outro,a suposta superioridade gerencial privada. É evidente que a imple-mentação das PPP irá fortalecer o pólo privado do Estado, uma vezque os recursos do Fundo Público estarão sendo gerenciados – cons-tituindo natural fonte de lucro e apropriação – por entidades eorganizações privadas, com ou sem fins lucrativos.5

Por último, a lei n.º 11.096, de 13 de janeiro de 2005, cria oPrograma Universidade para Todos (ProUni) e regula a atuação deentidades beneficentes de assistência social no ensino superior. Comessa lei, a pretexto de “publicização” do privado e numa aplicaçãolato sensu do espírito das PPP no ensino superior, fortalecem-se as

5 Cf. SGUISSARDI, V. “La universidad brasileña en tiempos de Lula”. Revista de la Educación Superior,México, v. XXXIV (2), n. 134, p. 149-153, abr.-jun./05.

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instituições privadas comerciais de ensino, exatamente no sentidooposto do que pretenderia, como um de seus objetivos nucleares, anova lei da reforma da educação superior a ser encaminhada peloPoder Executivo à discussão do Congresso Nacional. “Ao invés dacriação de centenas de milhares de vagas nas universidades públicas,para o que já existiria espaço físico no período noturno (70% dasmatrículas são diurnas), a baixo custo e razoável qualidade, aprovou-se a possibilidade de troca de cerca de 10% das vagas das instituiçõesprivadas ou 8,5% da receita bruta, na forma de bolsas para alunosegressos de escolas públicas, entre outros, em troca de isenção de umconjunto de impostos”.6

Dada a força dos lobbies da educação mercantilizada sobre oCongresso Nacional, recentemente manifestada com rara eficiênciana reconfiguração da proposta governamental relativa ao ProUni, éde se prever que não apenas a legislação em vigor torne-se um em-pecilho à plena eficácia da nova lei, caso seja aprovada como foi en-caminhada ao Congresso, mas, sobretudo, o serão as mudanças queali, na suposta casa do povo, poderá sofrer a proposta original.

Retomando, para fecho dessas reflexões, o mote da cultura domedo, que resulta da exploração reacionária das contradições gera-das no confronto dos avanços da economia com o recrudescer dapobreza, da miséria e da exclusão, pode-se afirmar que essa cultura– estampada no cenário socioeconômico nacional – encontra um lu-gar institucionalmente organizado pelas reformas educacionais paraa sua mais eficiente difusão. Descobre nas reformas um espaço quelhe possibilita tornar-se, por um lado, a melhor estratégia para aofensiva neoconservadora e, por outro, o embrião da perspectivaeducacional para o século XXI, que, em termos mais precisos, deveráconduzir à formação de seres humanos tendencialmente solitários,mudos, amedrontados, úteis... e desumanamente sem liberdade. Di-ante dessa perspectiva, parece não restar mais que a indignação e aresistência, as quais, na cotidianidade, poderiam traduzir-se, dada arelativa autonomia ainda possível nas instituições escolares, na con-cretização de reformas às avessas. Em outras palavras: na busca porsuperar a miséria, a subserviência e a exploração humanas, marcas dahistória passada e presente, e concretizar práticas efetivas de intensi-ficação humana cujo valor maior seja a liberdade.

Piracicaba e São Carlos, inverno de 2005

6 Ibid. O tema do ProUni e sua relação com a questão da renúncia fiscal são tratados, neste número daImpulso, por Cristina H. A. de Carvalho e Francisco L. C. Lopreato, no texto “Finanças Públicas,Renúncia Fiscal e o ProUni no Governo Lula”.

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