FICHA TÉCNICA
Título original: Half a Creature from the Sea
Autor: David Almond
Introdução e introdução aos contos © 2014 David Almond (UK) Ltd.
Slog’s Dad © 2006 David Almond (Edição original publicada em So, What Kept You?)
May Malone © 2008 David Almond (Edição original publicada em The Children’s Hours)
When God Came to Cathleen’s Garden © 2009, 2010 David Almond (Edição original publicada
em Sideshow: Ten Original Tales of Freaks, Illusionists and Other Matters Odd and Magical)
The Missing Link © 2008, 2014 David Almond (Edição original publicada em The Times)
Harry Miller’s Run © 2008 David Almond (Edição original publicada juntamente com
The Great North Run Culture)
Half a Creature from the Sea © 2007 David Almond (Edição original publicada em The Click)
Joe Quinn’s Poltergeist © 2014 David Almond
Klaus Vogel and the Bad Lads © 2009 David Almond (Edição original publicada em Free?
Stories Celebrating Human Rights)
Ilustrações © 2014 Eleanor Taylor
Edição portuguesa publicada por acordo com Walker Books Limited, London SE11 5HJ
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida sob
qualquer forma ou meio, eletrónico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação ou
armazenamento de informação, sem o consentimento prévio, por escrito, do proprietário.
Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2015
Tradução: Marta Mendonça
Composição, impressão e acabamento: Multitipo – Artes Gráfi cas, Lda.
Depósito legal n.º 397 811/15
1.ª edição, Lisboa, outubro, 2015
Reservados todos os direitos
para Portugal à
EDITORIAL PRESENÇA
Estrada das Palmeiras, 59
Queluz de Baixo
2730-132 Barcarena
www.presenca.pt
UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 6UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 6 9/17/15 8:34 AM9/17/15 8:34 AM
Í N D I C E
Introdução 11
O Pai do Slog 21
A May Malone 41
Quando Deus Apareceu no Jardim da Cathleen 59
O Elo Perdido 82
A Corrida do Harry Miller 105
Uma Criatura Feita de Mar 137
O Poltergeist do Joe Quinn 167
O Klaus Vogel e os Maus Rapazes 207
UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 9UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 9 9/17/15 8:34 AM9/17/15 8:34 AM
11
das quais mal
me lembro,
coisas que me
contaram,
coisas que são como
fragmentos de um sonho.
“começar
com coisas
ouV
UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 11UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 11 9/17/15 8:34 AM9/17/15 8:34 AM
12
DAVID ALMOND
Cresci numa cidade chamada Felling-on-Tyne. O meu pri-
meiro lar foi um apartamento no piso superior em White’s
Buildings, um conjunto de casas situadas junto à principal
praça da cidade. Tinha umas paredes brancas altas e umas
portas escuras muito largas, e uma cozinha pequena com o
lava-louça montado em cima de uma estrutura de madeira.
Um lavatório de estanho estava suspenso numa parede da
cozinha. Uns degraus íngremes e muito gastos conduziam a
um pequeno pátio nas traseiras e à retrete exterior. A minha
mãe costumava dizer que, antes de abrir a porta de qualquer
divisão, primeiro batia nela para se certificar de que os ratos
fugiam para os seus buracos nos rodapés e no chão. Havia cen-
tenas deles, contou-me ela. Milhares! Recordo-me do cheiro
a humidade, da retrete no exterior. O pó caía em cascata pe-
las faixas de luz que entravam por entre as janelas estreitas
da cozinha. Moscas mortas amontoavam-se em fitas de papel
mata-moscas dependuradas. Buzinas bradavam das fábricas
junto ao rio, sirenes de nevoeiro ecoavam do mar distante.
Éramos quatro, nessa altura: a minha mãe, o meu pai, o meu
irmão Colin e eu.
A minha mãe contou-me que eu tinha apenas meses
quando me levou a visitar o meu tio Amos pela primeira vez.
Empurrava-me no meu carrinho praça fora, passando pelo
UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 12UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 12 9/17/15 8:34 AM9/17/15 8:34 AM
13
INTRODUÇÃO
pub Jubilee, pelo café Dragone e pela charcutaria do Myers.
Descia até à High Street1 íngreme e sinuosa, onde havia um ta-
lho, uma mercearia, um alfaiate e pubs. Uma cabeça de porco
cor-de-rosa espreitava sorridente na montra do Myers. Viam-se
caixas de fruta colorida empilhadas à porta do Bamling. Havia
sempre um bacalhau enorme, maior do que um rapaz, esten-
dido sobre a laje de mármore à porta da peixaria. Sentia-se
o cheiro a fish and chips2 do Foster, a cerveja através das
janelas abertas da Halfway House, a óleo e a ferrugem pro-
venientes do outro lado da porta de vaivém do ferro-velho
caótico do Howie. Passávamos pelos rostos e pernas pálidos
e rachados dos manequins dos grandes armazéns Shepherd.
A minha mãe ia o caminho todo a cumprimentar familiares e vi-
zinhos. Eles baixavam-se para me sorrir e meterem-se comigo,
às vezes para enfiar uma moeda na minha mão pequena. Como
sempre, acima da altura dos telhados, o campanário esguio da
nossa igreja, a St. Patrick, apontava para o azul.
A meio da rua, a minha mãe virava para um beco estreito
e levava-me até à tipografia do Amos. Tinham existido vá-
1 High Street é a rua principal de uma cidade pequena onde se concentra a maior parte
do comércio, também conhecida por «rua das montras». (NT)2 Fish and chips, que significa literalmente «peixe e batatas fritas», é um prato britânico
vendido tradicionalmente embrulhado em folhas de jornal. É um prato típico do Reino
Unido. (NT)
UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 13UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 13 9/17/15 8:34 AM9/17/15 8:34 AM
14
DAVID ALMOND
rias gerações de tipógrafos na nossa família e o Amos era o
mais recente. Imprimia o jornal local naquele sítio escuro e
pequeno, em duas impressoras antigas. Se me lembro disso?
Gosto de pensar que sim, mas acho que no fundo apenas
recordo as palavras da minha mãe. Ela contou-me uma his-
tória sobre um dia em que estava na loja, comigo deitado
nos braços, e o Amos puxou uma alavanca e as impressoras
começaram a fazer barulho e a rodar, e as páginas do jornal
começaram a fluir delas, e eu comecei a mexer-me e a que-
rer saltar do colo dela, a rir-me e a apontar para as páginas.
Da mesma forma que os olhos de um bebé captam luzes
brilhantes ou pássaros a voar, os meus olhos captaram a impres-
são – e eu ficaria eternamente apaixonado por ela. Talvez te-
nha começado a ser escritor nesse dia na pequena tipografia,
um tempo de que não tenho memória, quando ainda tinha
apenas uns meses.
Para além de tipógrafo, o Amos era também escritor.
Escrevia poemas, histórias, romances e peças de teatro. Nas
festas de família, depois de uns copos, retirava uma folha de
papel do bolso e lia-nos um poema. Algumas pessoas revi-
ravam os olhos e riam-se, mas eu adorava-o por fazer aquilo.
Tinha um tio escritor; eu podia vir a ser o mesmo. Nenhum dos
textos dele tinha sido publicado ou levado à cena, mas ele não
UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 14UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 14 9/17/15 8:34 AM9/17/15 8:34 AM
15
INTRODUÇÃO
se importava com isso. Continuava a escrever porque gostava
de o fazer, e pela família e amigos. Eu era ainda um rapazinho
quando lhe revelei timidamente as minhas próprias ambições.
«Sim», respondeu-me ele, «faz isso!» Disse-me também: «Não
deixes que a tua escrita te separe das pessoas e dos lugares
que amas.»
White’s Buildings acabou por ser classificado como um
bairro degradado e foi demolido. Mudámo-nos para um bairro
social novinho em folha, The Grange, mesmo ao lado do no-
víssimo anel rodoviário situado na ponta oriental da cidade.
Frequentei a escola primária St. John Catholic School, um
edifício sombrio feito de pedra junto ao rio. O Amos fechou
a tipografia e mudou-se, mas o letreiro por cima do beco per-
maneceu lá durante muitos anos:
TIPOGRAFIA ALMONDPassei por baixo dele milhares de vezes durante o meu cres-
cimento.
Brinquei com os meus amigos nos campos situados por
cima da cidade. Fui mais além, às colinas para lá dos cam-
pos, onde havia minas de carvão abandonadas e aterros,
cercados cobertos de tufos de erva com póneis lá dentro,
charcos com tritões, estábulos em ruínas. Lá de cima via-se
UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 15UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 15 9/17/15 8:34 AM9/17/15 8:34 AM
16
DAVID ALMOND
a cidade inteira em escarpa: as ruas que conduziam à praça,
as fábricas mais abaixo, o rio cheio de estaleiros, a cidade de
Newcastle com as suas pontes, torres e campanários. A norte,
os longínquos montes Cheviot perdidos na neblina. A oeste,
as colinas do condado de Durham, as aberturas e o material
de extração das minas. A sul, mais campos, estradas, sebes de
pilriteiros e depois Sunderland, e mais à frente as cidades
de Teesside no horizonte distante. A este, o escuro mar do
Norte. Parecia que uma grande parte do mundo, em toda a sua
variedade, era visível desse pequeno lugar.
Comecei a escrevinhar as minhas próprias histórias. Lia
livros da biblioteca local. Sonhava um dia regressar a essa
mesma biblioteca e encontrar livros com o meu próprio nome
arrumados nas prateleiras. Uma ou duas vezes atrevi-me a
admitir a outras pessoas que queria ser escritor. Lembro-me
de um dia ter recebido a resposta: «Mas tu não passas de um
miúdo vulgar. E vens da pequena e vulgar cidade de Felling.
Sobre que raio irás tu escrever?»
À medida que o tempo foi passando, dei por mim a es-
crever cada vez mais sobre esse pequeno lugar. Muitas das
minhas histórias têm origem lá. Utilizam a sua paisagem, a
sua linguagem e a sua gente e transformam tudo isso em fic-
ção – meio imaginárias, meio reais. Todas as histórias deste
UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 16UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 16 9/17/15 8:34 AM9/17/15 8:34 AM
INTRODUÇÃO
livro estão, de certa forma, ligadas a esse sítio «vulgar». Tento
fazer o que muitos escritores fizeram antes de mim: mostrar
que os sítios vulgares podem ser bastante invulgares.
”
UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 17UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 17 9/17/15 8:34 AM9/17/15 8:34 AM
UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 18UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 18 9/17/15 8:34 AM9/17/15 8:34 AM
UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 19UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 19 9/17/15 8:34 AM9/17/15 8:34 AM
UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 20UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 20 9/17/15 8:34 AM9/17/15 8:34 AM
21
“A história d’O Pai do Slog tem lugar mesmo
no centro da cidade, na Felling Square.
Tratava-se de uma zona pequena cercada
por um muro baixo, com uma fonte de água antiga no
meio. Havia bancos onde as pessoas se sentavam a ver
passar os dias, a descansar após subirem a íngreme High
Street ou à espera de que o Black Bull ou o Jubilee
abrissem. De um lado da praça ficava a barbearia do
Ray Lough, com a montra em vidro laminado e uma
pequena fila de cadeiras. O Ray recusava-se a fazer
cortes modernos. A rapaziada podia entrar e pedir-lhe
um penteado ao estilo do James Dean ou dos Beatles,
mas acabavam todos com o mesmo corte: curto atrás
e dos lados, com um pouco de gel para rematar; do
tipo que ficava muito rijo assim que apanhava o ar da
rua. Na porta imediatamente ao lado ficava a agência
de apostas do meu avô. O nome na montra – Barbearia
John Foster – levava alguns homens a entrar à procura
UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 21UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 21 9/17/15 8:34 AM9/17/15 8:34 AM
22
DAVID ALMOND
de um corte de cabelo, mas em vez disso deparavam-
-se com o meu avô a dar baforadas no cachimbo atrás
do balcão, homens espalhados pela sala a lerem aten-
tamente o Sporting Life e os resultados das corridas de
cavalos emitidas pela rádio e a crepitarem através das
colunas da rádio afixadas nas paredes. A praça e a High
Street, assim como muitas lojas e pubs, ainda existem.
Exceto a do Lough e a agência de apostas. O meu tio
Maurice ficou com ela quando o meu avô se reformou,
mas depois abriu uma agência Ladbrokes na praça e o
Maurice mudou a loja para Hebburn, a uns quilómetros
de distância, para tentar apanhar a clientela dos ope-
rários dos estaleiros. Mas a construção naval começou
a diminuir até que cessou rapidamente e a agência de
apostas foi um dos muitos negócios que desaparece-
ram com ela.
A charcutaria do Myers vendia as melhores empadas de
porco, as melhores sandes de porco e as melhores saveloy
dips da região. A saveloy é uma variedade de salsicha. Para
mim e para os meus amigos eram o suprassumo do sabor, em
especial dentro de um pãozinho macio com recheio, cebola e
mostarda e depois mergulhadas num tabuleiro raso do molho
especial do Myers. Uma saveloy dip com tudo: um manjar dos
deuses!
UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 22UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 22 9/17/15 8:34 AM9/17/15 8:34 AM
23
O PAI DO SLOG
Eu era católico, tal como muitos dos meus amigos.
Ensinaram-nos a acreditar que, quando as pessoas boas
morriam, iam para junto de Deus. (As más, claro, iam para
o Inferno, onde ardiam para toda a eternidade.) Às vezes,
quando o Sol brilhava, o céu estava azul e o rio cintilava lá
em baixo, e as cotovias cantavam nas colinas, o Paraíso não
parecia muito distante. E éramos constantemente recor-
dados dos seus habitantes também. Havia estátuas de Jesus
e da sua mãe, assim como de santos e de anjos na Igreja de
St. Patrick. Todos tínhamos livros de orações, terços, esta-
tuetas e imagens religiosas nas nossas casas.
Padres bem-dispostos eram figuras familiares nas ruas da ci-
dade – a caminho de visitarem os enfermos, de confortarem os
enlutados ou de irem beber um copo de uísque com um paro-
quiano. Também se viam vagabundos com alguma frequência.
Havia um em particular que morava, dizia-se, algures nas coli-
nas por cima da cidade. Ninguém sabia o nome dele, nem de
onde vinha. Era um homem calado e de passo apressado, com o
cabelo louro. Parecia descontraído, imperturbado pelo mundo
que o rodeava, e era uma figura romântica para rapazes como
eu. Viver uma vida de liberdade a céu aberto! Quem é que não
gostaria de uma vida assim? Às vezes via-o sentado sozinho num
banco da praça, tal como o pai do Slog na história. Ansiava ten-
tar falar com ele, mas nunca o fiz.
UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 23UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 23 9/17/15 8:34 AM9/17/15 8:34 AM
DAVID ALMOND
Esta história surgiu de um fragmento do caderno de apon-
tamentos do grande escritor de contos Raymond Carver, que
utilizei como inspiração para um conto meu. Uma frase cap-
tou a minha atenção: «Quanto tempo é que ainda me resta?»
Assim que a apontei no meu caderno, O Pai do Slog ganhou
vida. Liguei o computador e comecei a escrever. Havia um
rapaz chamado Davie, a atravessar a praça com o seu amigo
Slog. Havia um tipo sentado no banco. Havia a charcutaria do
Myers com as suas deliciosas saveloys…
”
UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 24UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 24 9/17/15 8:34 AM9/17/15 8:34 AM
25
A primavera tinha chegado. Eu tinha passado o dia inteiro
de um lado para o outro com o Slog e estávamos esfo-
meados. Estávamos a atravessar a praça em direção à char-
cutaria do Myers. O Slog parou de repente.
– O que é que foi? – perguntei-lhe.
Ele apontou com a cabeça para o outro lado da praça.
– Olha ali – disse.
– O que é?
– É o meu pai – sussurrou ele.
– O teu pai?
UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 25UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 25 9/17/15 8:34 AM9/17/15 8:34 AM
26
UMA CRIATURA FEITA DE MAR
– Exato.
Limitei-me a olhar para ele.
– Aquele tipo ali – disse o Slog.
– Qual tipo, onde?
– Aquele, sentado no banco. Com a boina. O do pau.
Protegi os olhos do sol com a mão e tentei ver. O tipo
tinha as mãos pousadas na extremidade superior do pau.
Tinha o queixo apoiado em cima das mãos. O cabelo dele
era comprido e desgrenhado e a roupa estava gasta e em
farrapos, como se fosse pobre ou tivesse feito uma longa
viagem. O rosto estava escondido pela sombra da boina,
mas percebia-se que estava a sorrir.
– Ó Slog – disse eu. – O teu pai já morreu.
– Eu sei, Davie. Mas é ele. Regressou, tal como disse
que faria. Na primavera.
Ergueu a mão no ar e acenou.
– Pai! – gritou. – Pai!
O tipo acenou-lhe também.
– Estás a ver? – disse o Slog. – ’Bora lá.
Puxou-me pelo braço.
– Não – sussurrei-lhe. – Não!
Libertei-me e entrei na charcutaria do Myers, e o Slog
correu na direção do pai.
* * *
UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 26UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 26 9/17/15 8:34 AM9/17/15 8:34 AM
27
O PAI DO SLOG
O pai do Slog tinha sido um homem do lixo, um tipo
magro com o rosto cheio de rugas e com uma boina gor-
durenta. Estava sempre a fumar cigarros Woodbine. Ia
pendurado na parte de trás do carro do lixo enquanto da-
vam a volta ao bairro, saltava para o chão e depois voltava
a saltar para o carro, punha os caixotes do lixo ao ombro e
despejava a porcaria na parte de trás. Estava sempre a can-
tar hinos – Faith of Our Fathers, Hail Glorious Saint Patrick e
coisas do género.
– Lá vem ele outra vez – dizia a minha mãe, enquanto ele
sacudia os caixotes do lixo e cantava Oh, Sacred Heart a ple-
nos pulmões, às oito horas de uma quinta-feira de manhã.
Mas dizia-o a sorrir, porque toda a gente gostava do pai
do Slog, o Joe Mickley, uma alminha brincalhona e esperta.
O primeiro sinal da doença dele foi um ligeiro coxear:
depois um dia o Slog apareceu na escola e disse:
– O meu pai tem uma mancha preta no dedo grande
do pé.
– Como n’A Ilha do Tesouro? – repliquei.
– O que é que quererá dizer? – perguntou ele.
Eu ia responder «morte e tragédia», mas optei antes por
dizer:
– Ele podia perguntar ao médico.
– Ele já perguntou ao médico.
UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 27UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 27 9/17/15 8:34 AM9/17/15 8:34 AM
28
UMA CRIATURA FEITA DE MAR
O Slog baixou o olhar. Ele cheirava ao pai, um odor a lixo
em decomposição que não o largava. Eles moravam ao fundo da
nossa rua e a casa inteira cheirava ao mesmo, por muito que a Sra.
Mickley lavasse e esfregasse. O pai do Slog sabia-o. Dizia que
era o cheiro da terra. Dizia que não haveria nada assim no Céu.
– O médico disse que na’ era nada – disse o Slog. – Mas
hoje ele vai ficar de cama e amanhã vai para o hospital.
O que é que quererá dizer, Davie?
– Como é que eu hei de saber? – respondi.
Encolhi os ombros.
– É só uma mancha, Slog, pá! – disse eu.
Depois disso aconteceu tudo muito depressa. Cortaram-
-lhe o dedo grande, depois o pé e mais tarde a perna, até
metade da coxa. O Slog disse que a mãe estava convencida
de que o pai dele tinha apanhado uma infeção nos caixotes
do lixo. A minha mãe dizia que era dos Woodbines que ele
fumava. Fosse o que fosse, pareceram conseguir tratá-lo.
Puseram-lhe uma perna de lata e mandaram-no para casa.
E foi o fim dos caixotes do lixo, claro.
Ele passou a sentar-se no pequeno muro de jardim em
frente à sua casa. A Sra. Mickley sentava-se muitas vezes
com ele e ambos cheiravam as rosas, tagarelavam, sorriam,
bebiam chá e fumavam cigarros Woodbine. Ele costumava
mostrar a perna nova a quem passava.
UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 28UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 28 9/17/15 8:34 AM9/17/15 8:34 AM
29
O PAI DO SLOG
– Recebo a perna antiga quando chegar ao Céu – dizia ele.
Quando alguém lhe perguntava se andava à procura de
trabalho, ele ria-se.
– Trabalho? Mas se eu mal consigo andar.
E começava a cantar Faith of Our Fathers e toda a gente
sorria.
Depois apareceu-lhe outra mancha preta no dedo grande
do outro pé e eles levaram-no de novo, e começaram a
cortar-lhe a outra perna, e o Slog disse que era como viver
num filme de terror.
Quando o pai do Slog tornou a voltar para casa, passava
os dias sentado numa cadeira de rodas, no jardim. Nem se
dava ao trabalho de usar as pernas de lata: apenas umas cal-
ças de pijama com as pernas dobradas por cima dos cotos.
Andava mais reservado do que antes. Ficava sentado ao sol
dia após dia, entre as suas rosas, a fitar as paredes revestidas
a brita, os telhados vermelhos e o céu limpo. Os Woodbines
pendiam-lhe dos dedos. Oh, Sacred Heart brotava-lhe leve-
mente dos lábios. A Sra. Mickley levava-lhe chávenas de
chá, copos de cerveja, Woodbines. Uma vez estive com a
minha mãe à janela e vi a Sra. Mickley afagar o cabelo do
marido e beijá-lo ao de leve na face.
– Ela está a dizer-lhe que ele vai melhorar – disse a mi-
nha mãe.
UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 29UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 29 9/17/15 8:34 AM9/17/15 8:34 AM
30
UMA CRIATURA FEITA DE MAR
Vimos um sorriso assomar ao rosto do Joe Mickley.
– Aquilo é amor – disse a minha mãe. – Amor verdadeiro.
O pai do Slog continuava a brincar e a meter-se com as
pessoas que passavam.
– Andar? – dizia ele. – Nem sequer consigo saltar ao
pé-coxinho! Podem cortar-nos o corpo em mil pedaços –
dizia ele –, mas não nos podem cortar a alma.
Vimo-lo a definhar. O Slog contou-me que tinha ouvido
a mãe comentar em voz baixa algo sobre os dedos do pai
dele terem de ser cortados. Contou-me que a Sra. Mickley
levantava o pai dele da cadeira todas as noites, deitava-o em
cima da cama e sussurrava-lhe as boas-noites, como se ele
fosse uma criança. O Slog disse-me que nas noites em que
sentia mais medo enfiava-se na cama dos pais.
– Mas só piora as coisas – disse ele. Chorou. – Sou maior
do que o meu pai, Davie. Sou maior do qu’o raio do meu pai!
E pôs os braços à minha volta, deitou a cabeça no meu
ombro e chorou.
– Então, Slog? – disse-lhe eu, libertando-me dele.
– Deixa-te lá disso, Slog, pá!
Um dia, em finais de agosto, o pai do Slog apanhou-me
a olhar. Fez-me sinal com a mão para que me aproximasse.
Acerquei-me devagar. Ele piscou-me o olho.
UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 30UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 30 9/17/15 8:34 AM9/17/15 8:34 AM
31
O PAI DO SLOG
– Na’ há problema – sussurrou ele. – Eu sei que na’ que-
rias chegar-te demasiado.
Baixou o olhar para o sítio onde deviam estar as pernas.
– Dizem que mas devolvem assim que chegar ao Céu –
disse ele. – O qu’é qu’achas, Davie?
Encolhi os ombros.
– Não faço ideia, senhor Mickley – respondi-lhe.
– Achas que vou conseguir regressar pelo meu próprio
pé se mas devolverem?
– Não faço ideia, senhor Mickley.
Comecei a afastar-me.
– Vou sair daqueles portões perlados pelo meu próprio
pé – disse ele. Depois deu uma gargalhada. – Vou seguir os
cheiros. No Céu não cheira a nada. Vou seguir o raio dos
cheiros até regressar aqui à bela terra.
Olhou para mim.
– O qu’é qu’achas disso? – perguntou-me ele.
Uma semana mais tarde, o jardim estava vazio. Vimos o
Dr. Molly entrar, depois o padre O’Mahoney e assim que
começou a escurecer apareceu o Sr. Blenkinsop, o agente
funerário.
Na semana a seguir ao funeral, estava eu a sair do bairro
com o Slog, em direção à escola, quando ele disse:
– O meu pai disse-me que ia voltar.
UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 31UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 31 9/17/15 8:34 AM9/17/15 8:34 AM
32
UMA CRIATURA FEITA DE MAR
– Ó Slog… – respondi-lhe.
– Foi a última coisa que me disse. «Hás de ver-me na
primavera», disse-me ele.
– Ó Slog, pá. Isso foi só porque…
– Porquê?
Cerrei os dentes.
– Porque ele estava a morrer, pá!
Não era minha intenção gritar com ele, mas o trânsito
passava a toda a velocidade no anel rodoviário. Agarrei-lhe
o braço e parámos.
– A morrer, raios – disse eu, numa voz mais calma.
– A minha mãe também diz isso – respondeu o Slog.
– Diz que vamos ter de esperar. Mas eu não aguento es-
perar até chegar ao Céu, Davie. Quero vê-lo aqui, uma
última vez.
Em seguida, ergueu o olhar para o céu.
– Pai – disse ele, num sussurro. – Pai!
Entrei na charcutaria do Myers e havia salsichas e bacon
e morcela e carne assada e empadas expostas em pilhas
impecáveis na montra. Uma cabeça de porco cor-de-rosa,
com os pelos chamuscados e um sorriso estampado no
focinho, olhava f ixamente para a praça. No chão via-se
um balde com ossos para cães e outro balde com sangue.
UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 32UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 32 9/17/15 8:34 AM9/17/15 8:34 AM
33
O PAI DO SLOG
As bancadas de mármore, assim como o rosto do Billy
Myers, reluziam.
– Olá, Davie – cumprimentou-me ele.
– Olá – murmurei.
– É uma saveloy, não é? Com tudo?
– Exato.
Olhei lá para fora, por cima da cabeça de porco. O Slog
estava com o tipo, a olhá-lo de cima e a falar com ele. Vi-o
inclinar-se para tocar no tipo.
– Com molho? – perguntou-me o Billy.
– Exato – repliquei.
Ele mergulhou a sandes numa bacia com molho.
– Que espetáculo – disse ele. – Apesar de eu ser suspeito.
Um xelim, por ser para si, cavalheiro.
Paguei-lhe, mas não fui capaz de sair porta fora. A san-
des estava quente. O molho pingava-me para os pés.
O Billy riu-se.
– No que é que estás para aí a matutar? – indagou ele.
Vi o Slog sentar-se no banco ao lado do tipo.
– Acredita na vida depois da morte? – perguntei-lhe.
Billy deu uma gargalhada.
– Ora aí está uma bela pergunta para se fazer a um ta-
lhante! – exclamou ele.
Uma mulher magra entrou e passou por mim.
UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 33UmaCriaturaFeitaMar-5as-imac2.indd 33 9/17/15 8:34 AM9/17/15 8:34 AM