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8/18/2019 Yahn Cac Me Assis
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CARLA ALVES DE CARVALHO YAHN
VERSOS, VEREDAS E VADIAÇÃO: uma viagem no mundo da
Capoeira Angola
ASSIS2012
8/18/2019 Yahn Cac Me Assis
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CARLA ALVES DE CARVALHO YAHN
VERSOS, VEREDAS E VADIAÇÃO: uma viagem no mundo da
Capoeira Angola
Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências eLetras de Assis – UNESP – Universidade EstadualPaulista para a obtenção do título de Mestre emLetras (Área de Conhecimento: Literatura e VidaSocial)
Orientador: Drº. Rubens Pereira dos Santos
ASSIS2012
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP
Yahn, Carla Alves de CarvalhoY13v Versos, veredas e vadiação: uma viagem no mundo da
Capoeira Angola / Carla Alves de Carvalho. Assis, 2012110 f. : il.
Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letrasde Assis – Universidade Estadual Paulista.
Orientador: Dr. Rubens Pereira dos Santos
1. Capoeira. 2. Tradição oral. 3. Linguagem e cultura. 4.Poética. I. Título.
CDD 796.8301.2
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AGRADECIMENTOS
Iê, viva meu Deus, gratidão pela vida, pela saúde, pela força, pela coragem, pela
vontade, sem as quais não faria este trabalho.
Iê, viva meu mestre de Capoeira Angola, Alexandre Zacarias e a todos os mestres que
tive o privilégio de conhecer e construir uma relação de amizade e respeito, os quais me passaram tantos conhecimentos no que concerne à arte da Capoeira Angola e da vida.
Iê, salve todos os meus amigos, que vivenciam a prática da Capoeira cotidianamente,
alguns leram meu trabalho e me ajudaram me animando e encorajando quanto à minha
produção.
Iê, à mestra Janja, (Drª. Rosangela da UFBA) por ter aceito meu convite em compor
esta banca, unindo seu saber de mestra de Capoeira e seu saber científico.
Ao Drº. Rubens Pereira dos Santos por ter aceito a tarefa de ser meu orientador. Sua presteza e dedicação, bem como seu entusiasmo pela temática da poética oral a partir das
cantigas de Capoeira Angola, foram decisivos para a realização deste trabalho.
Ao Drº. Gilberto Martins, também da Faculdade de Ciências e Letras de Assis, por ter
aceitado meu convite em compor a banca que analisará este trabalho, bem como pelo
empréstimo de uma parte do material bibliográfico que utilizei na sua elaboração.
Ao Drº. Frederico Fernandes da Universidade de Londrina, por ter se prontificado em
participar da minha banca de qualificação e por sempre ter se mostrado bastante atencioso e
disposto a contribuir com esse trabalho.
Por fim, não posso deixar de manifestar meus agradecimentos a meu companheiro
Pedro Ivo pelas conversas na rede, trocas de saberes e esclarecimentos teóricos e filosóficos, a
partir de conceitos discutidos por meio do conhecimento.
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Capoeira me mandou Dizer que já chegouChegou para lutar
Berimbau me confirmouVai ter briga de amorTristeza camará...
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YAHN, C. A. C. Versos, veredas e vadiação: uma viagem no mundo da Capoeira
Angola. 2012. 115 f. Dissertação (Mestrado em Letras). – Faculdade de Ciências e
Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2012.
RESUMO: Visa-se estudar as cantigas de Capoeira Angola e descobrir um pouco
mais sobre seus mitos e ensinamentos que muitas vezes funcionam como instrumento de
transmissão de uma tradição ancestral que resiste até hoje, que interage com a cultura e a
oralidade brasileiras enriquecendo-as e, que diante dessa interação por meio de
conhecimentos que são passados em situações múltiplas de comunicação forma novos
capoeiristas angoleiros. Procura-se demonstrar como os cânticos da roda de capoeira
denominados “ladainha”, “corrido” e “louvação” podem ser analisados como parte da poesia
oral afrobrasileira, pois de antemão já se sabe que os mesmos possuem forma e conteúdo
essencialmente enraizados na arte poética. Tais cânticos são providos de ritmo, rimas,
musicalidades, gestos, olhares e ambiguidades de vários tipos inerentes ao contexto da roda
onde se desenvolve o discurso do canto, revelando uma dupla faceta uma poética e outra
dinâmica do mesmo fenômeno. Ainda procura-se ilustrar parte da representação que a
Capoeira Angola tem no mundo atualmente. Convém destacar a cotidiana relação que se
estabelece com o seu universo por meio de treinamentos e trocas coletivas. Experiências degrandes mestres e mestras da Capoeira Angola contribuíram para o desenvolvimento deste
trabalho, pois como aqui tratamos de um saber específico, inevitavelmente em muitas etapas
debruçamo-nos diante de seus detentores para então se entender pequenos pedaços de sua
magia, que como já se sabe de antemão, é simples, porém reflete sentidos profundos.
PALAVRAS-CHAVE: Capoeira Angola, tradição oral, poética, linguagem e cultura.
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YAHN, C. A.C. Verses, paths and vagrancy: a journey into the world of Capoeira Angola.
2012. 115 f. Dissertation (Master's degree in Letters). – Faculdade de Ciências e Letras,
Universidade Estadual Paulista, Assis, 2012.
ABSTRACT: The aim is to study the songs of Capoeira Angola and discover a little
more about their myths and teachings which often act as instrument of transmission of an
ancestral tradition that endures until today, that interacts with the Brazilian culture and orality
and enriching them, interacting through knowledge that are passed in multiple situations of
communication creating new players of capoeira angola. It seeks to demonstrate how the
chants of wheel called "ladainha", "louvação" and "corridos" can be analyzed as part of the
oral poetry: struggling, because beforehand is already known that they have the form and
content essentially rooted in the poetic art. Such songs are fitted with pace, rhymes, gestures,looks and ambiguities of various types inherent in the context of the wheel where develops the
chant speech, revealing a dual facet a poetic and other dynamics of the same phenomenon. It
still seeks to illustrate part of the representation that Capoeira Angola has in the world today.
Everyday should highlight the relationship that is established with his universe through
collective exchanges and trainings. Experiences of grandmasters and master of Capoeira
Angola contributed to the development of this work, because here we treat a specific
knowledge, inevitably in many steps focusing on their holders to then understand small piecesof their magic, which as already known beforehand, is simple, but reflects deep meanings.
KEYWORDS: Capoeira, oral tradition, poetics, language and culture.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 9
CAPÍTULO I – ORIGEM E (IN)DEFINIÇÕES
1.1. Capoeira Angola: suas possíveis origens
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CAPÍTULO II - CULTURA POPULAR? 23
CAPÍTULO III – ASPECTOS GERAIS DA RODA 37
CAPÍTULO IV – DIÁLOGOS DA TRADIÇÃO ORAL 62
CAPÍTULO V – AS CANTIGAS DA CAPOEIRA ANGOLA 79
5.1. A Poética Oral 79
5.2. As Cantigas e a Literatura 83
CAPÍTULO VI – O DISCURSO DO CANTADOR NA ATUALIDADE 94
6.1. A relação de gênero na capoeira angola 94
6.2. Vozes e vozes, uma breve comparação 96
PARA TERMINAR (CONSIDERAÇÕES FINAIS) 103
BIBLIOGRAFIA 108
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INTRODUÇÃO
N’Golo, Dança Guerreira...
A Capoeira Angola é uma manifestação artístico-cultural que abrange universos como
a dança, a música, a literatura, teatro, arte marcial, outros. Brincadeira mandingueira que
revela em si indiscutíveis origens africanas. Alguns estudiosos e mestres acreditam que ela
teve sua origem no Ngolo, ritual ancestral dos negros bantos do sul de Angola. O Ngolo, ou
“dança da zebra”, conhecido também como Mufico, Efico ou Efundula, é um ritual que marca
a preparação à guerra e a passagem das meninas à vida adulta. Nessa dança ritualística dois
lutadores competem e o objetivo é atingir o rosto do adversário com o pé, o que condiz com
os objetivos do jogo da Capoeira Angola. Nesse jogo, o vencedor pode escolher sua esposa
entre as meninas iniciadas à vida adulta.
Atualmente, a Capoeira Angola vem sendo praticada e buscada em diversas partes do
mundo, porém não se deve perder de vista que ela é uma arte de origem africana que se
desenvolveu no Brasil e que busca preservar certos fundamentos básicos que veremos mais
adiante. Suas cantigas são em grande parte cantadas na língua portuguesa do Brasil, e há
também palavras de origem banto, nomes em quimbundo e em ioruba, por exemplo. Nos
depararemos mais à frente com vocábulos de origem africana presentes nas cantigas de
Capoeira Angola, como, por exemplo, ginga1, mandinga2, axé 3, kalunga4, nagô5, gunga6 ,
inquices7 , dentre muitos outros, algumas já absorvidas pela língua falada em nossa terra, e
outras que ainda são pouco conhecidas quando fora do contexto da Capoeira Angola.
1 Ginga era a rainha de Matamba e Angola nos séculos XVI-XVII (1587-1663), é considerada heroína angolana, portanto esse nome no Brasil ganhou outra conotação, referindo-se também ao balanço de corpo, é um termo bastante usado tanto no futebol quanto na capoeira. Na atualidade o grupo de capoeira Nzinga (a rainha
chamava-se Nzinga Mbandi Ngola), adota seu nome fazendo-lhe referência.2 Dedicaremos um tópico para tratar somente da mandinga dentro da capoeira, mas sabe-se que esse termo podefazer menção a Rhynchospora hirsutaum, erva da família das ciperáceas, é nome de um idioma de um ramo delínguas do grupo nigero-congolês, sua cognação de feitiço e habilidades de capoeiristas será tratada mais adiante.3Segundo Prandi em sua introdução do livro Herdeiras do axé de 1997, axé é força vital, energia, princípio davida, força sagrada dos orixás. Axé é benção, cumprimento, votos de boa-sorte e sinônimo de Amém. Axé é poder.4 Kalunga ou Calunga pode se referir a um determinado local da margem do rio Paranã, os moradores da regiãoindicam uma planta do mesmo nome; outra variante refere-se a divindade ligada ao mar, e a ideia de morte.5 Nagô é um termo étnico que se dá a todo negro que se comunica na língua ioruba. Faz também referência aXangô, o rei Nagô dentro do Candomblé.6 Gunga provém do quimbundo ngunga, possui diversas variantes, vai desde nome mitológico à referencia ao pênis de crianças. Aqui entenderemos como berimbau de barriga, que em alguns grupos é o nome dado ao
berimbau mestre.7 Os inquices, (de nkisi, plural minkisi, "sagrado" em quimbundo, termo usado para objetos, fetiches e estatuetasque contêm espíritos chamados mpungo), são divindades de origem angolana, cultuadas no Brasil peloscandomblés das nações angola e congo.
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Figura 1: copiada do freewebsite8 Nzinga Mbandi Ngola, a Rainha
Ginga
Arte afrobrasileira que se caracteriza por sua mandinga, por sua oralidade (cânticos,
mitos e ensinamentos) e por sua aparência estética e lúdica, que camufla na dança e na
teatralidade diversos movimentos que podem ser mortais, se executados. Ela não deve ser
reduzida à luta (arte marcial), mesmo com sua grande eficiência como tal, ela também não
deve ser reduzida à dança folclórica e muito menos a teatro de rua, pois, antes de tudo, ela
funciona desde seu surgimento no Brasil como manifestação cultural de raiz africana que
busca a liberdade de expressão, técnicas de defesa e ataque como forma de resistência ao
opressor (o senhor, a polícia, por exemplo) e funciona também como um espaço onde os
capoeiristas podem transcender o mundo do trabalho e dentro de seu cotidiano encontrar um
momento para “vadiar” (cantar, movimentar -se, tocar um instrumento musical, brincar, ser
feliz).
A primeira vista este trabalho pode parecer reducionista por se deter no texto, mas ao
maximum se tentará reconstruir a voz do cantador de Capoeira através dessa detenção textual
utilizando recursos próprios da escrita que ajudam na noção de como a voz funciona na
situação oral. Tais recursos serão possíveis por meio da acentuação, pontuação, transcrição da
forma como se canta, respeitando o som e não a ortografia correta, dentre outros mecanismos
que buscarão também descrever a performance da roda que engloba tais cânticos e os tornam
8 http://mnoticias.8m.com/
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significativos dentro de um acontecimento que traz em si música, gestos, golpes, vozes,
enfim: expressões do corpo, da “alma”e do rosto.
Quando se volta para uma tradição, seja ela ancestral, popular, erudita, clássica, tudo
independe. Vale sentimento (sensibilidade), criação, retorno, voz, letras. Assim, por enquantoindefinível permanece o conceito do que venha a ser essa tal Capoeira Angola. Pois como
diria Mestre Pedro Trindade Moraes, “ela é um mistério”. Talvez seus mitos contribuam de
forma a fortalecer suas narrativas e canções. Falaremos muito desses mitos correndo por essas
letras. Mas a oralidade presente nesse universo de roda é inalcançável por esses dedos que
tentam apalpá-la. Ela flui de forma a desaparecer no ar, é captada por ouvidos sensíveis e
atentos que a escutam e reside apenas em forma de memória e sentimento. Agora, em algum
lugar desse mundo alguém ecoa um cantar, um falar, um gesticular, um dançar, um brincar,
um sentir Capoeira Angola. Por isso, é bastante difícil tentar defini-la aqui, pois ela acontece
em ritual, convivência e também na rua.
Segundo o Mestre Pastinha (Vicente Ferreira Pastinha, 1889-1981), figura lendária no
mundo da Capoeira Angola, “a ginga que aprendera desde criança provinha de uma mistura
do batuque angolano e do candomblé dos jejes, africanos da Costa da mina, com a dança dos
caboclos da Bahia” (Escola de Capoeira Os Angoleiros do Sertão). Mestre Pastinha defendeu
essa tese até meados dos anos de 1960, pois depois disso recebeu em sua academia, localizada
no Pelourinho, Salvador-BA, a visita do ilustre pintor que viveu em Angola e estudou Belas-
Artes no Porto, Albano Neves e Sousa que lhe afirmou ter visto em Angola uma dança
semelhante à Capoeira que o Mestre ensinava, e lá, essa dança chamava-se N’golo. O pintor
acreditou tanto na semelhança das duas danças que até mesmo pintou um painel em 1990,
integrando a dança angolana na parte superior, e a brasileira na parte inferior de seu quadro
(figura 2).
Quando pequeno, mestre Pastinha sempre apanhava de um garoto mais forte,
Honorato, maior de estatura do que ele. Um velho africano (mestre Benedito) que sempre via
a cena um dia resolveu chamá-lo e ensinar-lhe a arte da Capoeira, depois denominada por
Pastinha de Capoeira Angola. No casuá (casa) desse africano o garoto aprendeu a ginga de
corpo tão buscada hoje na roda. Era mais do que conhecimento que o velho ancião tentava
passar? Talvez sentir o ritual na atualidade é uma das chaves para entender essa tradição que
agrega tantas variantes e diversidades dentro do seu vasto universo. Porém, cabe-nos aqui
analisar seus processos para entendermos seu papel na atual sociedade.
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Figura 2: S/N, Albano Neves e Souza
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Aqui dissertaremos e adentraremos na “malandragem” que vai além dos gestos, aquela
que está na voz, na roupa, no chapéu, no som das cabaças, caxixis, no aço do arame do
berimbau, no couro sagrado do tambor, nas mãos, nos pés, na cabeça e, principalmente, na
alma e no coração. É importante desde já esclarecer que essa pesquisa é desenvolvida por uma pessoa que vive a Capoeira, que busca a cada dia aprender mais e amadurecer dentro desta
arte. Boa parte dos conhecimentos aqui abordados terá por base o saber oral que é passado de
maneira informal, ou seja, histórias contadas por pessoas que as viveram ou ouviram seus
antepassados narrarem, depoimentos, pontos de vista e experiências de mestres capoeiristas
que trazem como bagagem de vida o saber popular da arte da Capoeira Angola, que é passada
também de maneira múltipla (de dentro, de academias, centros e escolas de Capoeira Angola;
e de fora, em ruas e guetos diversos). Será realizado, além das ensaísticas interpretações das
letras dos cânticos, um trabalho que buscará enfocar a Capoeira Angola como um todo, em
que se destacarão seus fundamentos de roda, de comportamento e de rito. Além da recolha e
do mergulho em seus saberes que se dá por meio da vivência em rodas, o que acarreta em
percepções das várias situações possíveis dentro de cada acontecimento ou ritual vivido.
Da Capoeira Angola, abordaremos um pouco sua possível origem, seu
desenvolvimento e sua atual situação, daremos algumas hipóteses para uma possível definição
(Arte?), trabalharemos dentro do campo da Cultura Popular para entendê-la como parte
atuante de uma sociedade. Esboçaremos noções básicas de tradição para então passar a
analisar as cantigas como forma de poética oral, tudo isso tendo por base a experiência dentro
da prática da Capoeira Angola, pois como diria a canção: “eu sou angoleira”, assim esse
trabalho apresenta o olhar de quem está dentro do movimento, vivenciando e aprendendo dia
após dia. Sabe-se que tudo isso (conhecimentos de Capoeira) se constrói a partir da
convivência direta entre pessoas que almejam descobrir um pouco mais sobre esse saber
ancestral, então muito do que será tratado terá grande contribuição coletiva, como já foi
destacado anteriormente, aqui temos por base o grupo Os Angoleiros do Sertão, do qual a
pesquisadora faz parte.
Em síntese, almeja-se analisar o discurso do capoeirista a partir de suas canções e, com
isso, sugerir algumas possíveis interpretações da representatividade das letras das cantigas,
dentro e fora da roda. Olharemos a função que elas desempenham no mundo de quem
vivencia e aprecia seus saberes e encantos. Abordaremos o conceito de oralidade e,
consequentemente, o de escrita. Trataremos desde a musicalidade, voz, gestos, performance
até as peculiaridades existentes no mundo da Capoeira Angola. Com isso, a partir de ícones da
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Capoeira, como Besouro, Bimba, Pastinha falaremos um pouco de mandinga, ritual e
misticismo.
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CAPÍTULO I – ORIGEM E (IN)DEFINIÇÕES
1.1. Capoeira Angola: suas possíveis origens
Antes de ser “descoberta” pelos historiadores, há poucas décadas, a capoeira já tinha vivido suas aventuras nas páginas da literatura, dos cronistas, dosmemorialistas do passado imperial do Rio de Janeiro. E antes mesmo destes – e de forma muito mais frequente – , num passado remoto, a capoeira só eratestemunhada pela pena dos escrivães de Polícia. (SOARES, 2002, p. 35)
Como já foi dito, este trabalho busca olhar para a Capoeira a partir de uma análise da
oralidade por meio das suas cantigas, desta forma não nos aprofundaremos em nenhum
período histórico específico, mas sim desenvolveremos um estudo panorâmico, abordando
desde a possível origem da Capoeira até sua manifestação na atualidade. Portanto os períodos
históricos aparecerão de forma secundária, já que é impossível falarmos de Capoeira sem
contextualizá-la no tempo e no espaço principalmente quando é vista a partir de suas cantigas
e de seus mestres. Assim, busca-se compreender um pouco do universo da Capoeira Angola a
partir de seus mitos cantados em rodas e narrados pelo imaginário popular, porque “a
atualidade, tomada fora da sua relação com o passado e o futuro, perde a unicidade,
decompõe-se em fenômenos e coisas isoladas, torna-se um conglomerado abstrato”(BAKHTIN, 1988, p. 263). Porém, sem perder de vista a ideia de Bakhtin, de que para se
compreender integralmente a atualidade é necessário ter conhecimento de seu passado e
prever um possível futuro, pode-se problematizar a impotência dessa previsão do futuro. Ao
futuro pertence uma realidade de outro tipo, mais efêmera, o “será” não tem aquela mesma
materialidade e solidez, aquele peso real que são próprios do “é” e do “foi”. Portanto, seremos
bastante cuidadosos nesse aspecto e buscaremos fazer uma previsão dentro da lógica atual da
Capoeira.Em documentário intitulado Besouro Preto, Mestre Moraes destaca que antes de virem
ao Brasil, os negros africanos já possuíam técnicas marciais e bélicas, pois há tempos
anteriores ao descobrimento do Brasil, numa África tribal, os negros já tinham a necessidade
de defesa, tanto em relação às tribos rivais quanto em relação aos perseguidores e
exploradores estrangeiros. No Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, na estância 58, é
descrita a prática de negros de tribos rivais que se caçavam e se vendiam:
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Hunos aos outros se vede,& haa muitos mercadores,Que nisso soomente entedem,& hos enganãm, & prendem,& trazemaos tratadores.
Muitos se vendem na terra,Se tem hunos com outros guerraServemse de béstas dellesPollas nõ aver entrelles,A mais terra he chaõ sem serra.(RESENDE, 1917, P. 23)
Neste português arcaico o cronista relata a prática de captura entre negros africanos de
etnias diferentes, o que sugere que antes de vir ao Brasil trazidos como escravos esses negros
já necessitavam de habilidades de combate físico. Com isso podemos destacar a visão de
mestre Moraes que de certa forma coloca em questionamento um dos argumentos que Mestre
Bimba usava, no que consta no livro de Pires, Bimba, Pastinha e Besouro de Mangangá (três
personagens da Capoeira Baiana) de 2002, quando o autor a partir de sua pesquisa feita em
Salvador relata que mestre Bimba defendia a nacionalidade da Capoeira por conta de seu
surgimento mediante a necessidade de se produzir meios de defesa e ataque por estes negros
no contexto em que se encontravam em solo brasileiro, fugindo e combatendo os ditos
capitães do mato e feitores (homens ou bandeirantes contratados para capturar negros
fugitivos).Por mais que a Capoeira Angola se assemelhe à “dança da zebra”, como vimos na
introdução deste trabalho e como tenta demonstrar Albano Neves em seus esboços e pinturas,
as vezes pode ser arriscado admitirmos que ela tenha se originado somente dessa dança
ritualista africana. Sua origem provável deve ter se dado mediante a junção de vários
elementos que a transformaram em luta, como, a situação do negro no Brasil Colonial,
Imperial e Republicano. E, pelo que se tem visto, pouquíssimos são os quadros e textos que
descrevem os movimentos desses antigos jogos combativos, o que dificulta nossa tentativa dedar-se uma certeza quanto a ligação extrema dessas duas artes como uma sendo parte da
outra, até mesmo porque grandes mudanças socioculturais se deram com o passar do tempo na
África, no Brasil e no mundo.
Para mestre Pastinha “a Capoeira teria sua origem em Angola, mas traria as
contribuições de congoleses, moçambicanos e indígenas” (PIRES, 2002, 74), na voz do
próprio mestre: “do índio, no quilombo dos Palmares, no contato com eles nas fazendas de
cana, a Capoeira ganhou novos golpes, principalmente as defesas, como a negativa, a queda
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para trás, a defesa com as mãos” (Vídeo sobre mestre Pastinha, arquivo privado de Fred
Abreu).
O primeiro estudioso a publicar teses que defendem a origem da Capoeira no N’golo
foi Câmara Cascudo, em seu livro Folclore do Brasil de 1967. Albano Neves explicou aofolclorista em grande carta suas ideias em relação à origem da Capoeira, nessa carta descreve
com profundidade o ritual da “dança da zebra”, em que o vencedor da luta tem o direito de
escolher sua noiva entre as meninas que participam do ritual sem pagar dote. Pelo fato do
N’golo ser uma luta de mãos abertas, ter o uso de golpes com os pés enquanto as mãos estão
no chão, ter o jogo de corpo com base na cintura, como deixa-nos transparecer as pinturas de
Albano, é impossível se negar a semelhança que ele tem com a Capoeira e Cascudo apresenta
na obra Folclore do Brasil a trajetória do N’golo até se transformar em Capoeira Angola.
Se formos tomar por base as teorias que acreditam que a Capoeira surgiu nos
quilombos, podemos afirmar que os negros trazidos principalmente da costa ocidental
africana, em sua maioria de grupos Bantos e Sudaneses, pela situação em que se encontravam
fugiam e em lugares isolados desenvolviam técnicas e meios de resistência ao sistema
opressor escravagista. Um desses meios de resistência foi justamente essa fuga para os
quilombos. Podemos destacar o quilombo de Palmares, aqui já citado na ideia de mestre
Pastinha, liderado por Zumbi como o mais significativo, pois perdurou cerca de cem anos e
resistiu a inúmeros ataques, tanto de capitães do mato, quanto de feitores. No período
colonial, as torturas aos negros africanos eram extremamente perversas e cruéis, havia desde
mutilações, nos chamados castigos exemplos, até queimaduras, furos em seios, chibatadas
etc., e como se sabe, desde o transporte nos navios negreiros até a sua chegada e instalação
em solo brasileiro, o negro já sofria torturas.
Assim como no Brasil Imperial, a Capoeira também foi severamente perseguida no
período de instalação do governo republicano, sendo um dos principais alvos de repressão
policial no início da República, tanto que no Código de 1890, por meio do Decreto Nº 847,
sob o título “Dos Vadios e Capoeiras”, teve a seguinte sanção:
Art. 402 Fazer nas ruas ou praças públicas exercícios de destreza e agilidadecorporal conhecido pela denominação de capoeiragem. Pena de 2 a 6 mesesde reclusão.Parágrafo Único: É considerado circunstância agravante pertencer o capoeira à alguma banda ou malta. Aos chefes ou cabeçasimpor-se-á pena em dobro.
Mesmo com sua proibição por conta das Maltas e de seu caráter marginal, geralmenteassociado a periculosidade por parte de uma sociedade branca e burguesa, a
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Capoeira não acabou. Ela continuou acontecendo de forma clandestina às margens dessa
sociedade principalmente nas cidades de Salvador, Recife e Rio de Janeiro. Era grandemente
perseguida pela polícia, sendo comum a deportação de capoeiristas para ilhas presídios.Os capoeiristas então inventaram alguns meios de burlar a repressão policial, como a
criação do toque do berimbau chamado de cavalaria, que funcionava como um aviso, um
sinal de alerta indicando a vinda dos policiais. Quando o toque de cavalaria era tocado, os
capoeiristas saiam em disparada para não serem detidos. Outro mecanismo de defesa contra o
poder policial adotado pelos capoeiristas foi a criação de codinomes e apelidos de capoeira,
pois assim ficaria mais difícil para a polícia identificar quem fazia parte da “vadiagem”.
Porém, cabe uma ressalva de que os apelidos também se davam por conta dos feitos dos
capoeiristas e por sua personalidade, como, por exemplo, Querido de Deus, Cobrinha Verde,
Doze Homens, Caiçara, Pé de Onça, Camafeu de Oxossi, Alfinete. Da mesma forma que os
capoeiras criavam mecanismos para dificultar a perseguição policial, a polícia, por sua vez,
também tinha suas estratégias de perseguição. Quando desconfiava ser algum homem
capoeirista, simulava um ataque, se a pessoa fizesse algum movimento de esquiva ou de
ataque característico da movimentação da capoeira, esta pessoa sofria a tentativa de prisão por
parte destes “praças” no linguajar da época.
Ao mesmo tempo em que a perseguição e a proibição eram constantes, a Capoeira foi,
aos poucos, ganhando espaços dentro da sociedade no início do século XX, principalmente
nos meios militares e intelectuais. A partir disso, a Capoeira começou a ser vista com certa
aceitação, pois era tida por “esporte” por esses meios, e então poderia ser considerado
genuinamente brasileiro, chegando a ser neste contexto a Ginástica Nacional, contanto
defendia-se que ela havia sido criada em solo brasileiro pelos negros vindos da África, talvez
pela busca da nacionalização brasileira. O que nos faz perceber o quanto ela era reduzida
pelos que a viam apenas como esporte e desconsideravam sua complexidade social, cultural e
artística,
Há teorias, como podemos observar no artigo de Luiz Carlos Soares, “Os escravos de
ganho no Rio de Janeiro do século XIX”, publicado na Revista Brasileira de História, que a
Capoeira também se manifesta nas cidades, por meio dos escravos de ganho, que exerciam
diversas funções, eles podiam ser desde barbeiros, garotos de recados, comerciantes
ambulantes até carregadores (de pessoas e/ou objetos): “no Brasil do século XIX, a escravidão
de ganho foi não só uma forma de exploração do trabalho cativo, mas também um regime detrabalho típico do ambiente urbano.” (SOARES, 1988, p. 107).
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Porém, não entraremos nessa discussão, mas destacaremos que se tratando de grandes
cidades a Capoeira se desenvolveu principalmente em Salvador, Recife e Rio de Janeiro naépoca do Brasil Imperial. Foi mais fortemente repreendida no Rio de Janeiro por causa das
Maltas e Bandas que eram fortemente organizadas por capoeiristas. Essas organizações eram
o terror da burguesia e o trabalho da polícia. Eram conhecidos por “desordeiros” ou “vadios”.
Ainda no período da ilegalidade, os capoeiristas viviam o que Antonio Candido chama
de “dialética da malandragem”, ou seja, é a situação de estar no limiar da ordem e da
desordem, pois ao mesmo tempo em que os capoeiras praticavam um ato criminalizado e
ilegal, estavam em contato e resistiam aos poderes abusivos da polícia.
Antes da legalização da Capoeira sua aprendizagem se dava de maneira marginal, nas
ruas, esquinas e praças públicas, nas feiras, nos fundos de quintais, em terreiros, e nas rodas
de final de semana, e, como diz Mestre Waldemar Rodrigues da Paixão (1916-1990):
“Naquele tempo não existia academia tinha outra roda no Periperi e a academia era onde
tivesse uma sombra boa, fazia aquele ringue e então vinha capoeirista de tudo quanto era
lugar”9. A atividade era sempre comandada por um mestre antigo, detentor de maior
conhecimento, como acontece ainda hoje nas tradicionais rodas de Capoeira Angola. Segundo
relato do mestre Canjiquinha (1925-1994) “A gente jogava Capoeira nos dias de domingo,
não tinha academia e quando aparecia a polícia a gente tinha que sair correndo” (VIEIRA,
1995, p. 103).
É somente na década de 1930 que a Capoeira vai ser legalizada. Por mais que as
tentativas de legalização tenham sido mais marcantes no Rio de Janeiro, é na Bahia que o fato
se sucede primeiramente, talvez pela imagem que a Capoeira carioca tinha ligada à
malandragem, ao ócio e à violência promovida pelas maltas. O caráter esportivo da Capoeira
possibilitou seu embranquecimento, e, por conseguinte, sua descriminalização, esta última se
deu lentamente e ainda se dá na atualidade.
É nesse momento que a importante figura do mestre Bimba, Manoel dos Reis
Machado (1899-1974), realizou grandes mudanças na prática da Capoeira. Mestre Bimba foi
o criador da Luta Regional Baiana, ele adota golpes de artes marciais orientais, retira o
atabaque da bateria, e passa a adotar uma sonoridade mais concisa, com apenas dois pandeiros
e um único berimbau. No seu disco curso de Capoeira Regional, podemos apreciar a rica
musicalidade de mestre Bimba, que mostra toques batidos a sua maneira, como São Bento
9 www.capoeirabayonne.com/mestre_waldemar_paroles.html acesso em 13/10/11.
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Grande, Iuna, Benguela, Amazonas, Cavalaria, Idalina e Santa Maria. Além dos corridos e
quadras cantados com a entoada forte e segura de mestre Bimba. É inegável a beleza do seu
coro feminino, com voz bem alta e cadenciada pelo tom grave do mestre. Raro hoje um grupo
de Capoeira que faça música como o fez mestre Bimba, atualmente mestre Ananias (1925) é oque mais se aproxima dessa maneira de proporcionar a música na Capoeira, claro que com
suas diferenças, pois ele adota duas congas ao invés do atabaque comum na bateria de
Capoeira Angola, e não adota apenas dois pandeiros e um berimbau, mas sim a bateria
completa da Capoeira Angola com a ressalva das congas. Portanto, a aproximação é mais
expressiva na forma de entoar o cântico e o responder do coral.
Mais do que essa caracterização musical mestre Bimba coloca a Capoeira dentro da
academia e cria o cerimonial de formatura. Iam treinar com mestre Bimba geralmente
estudantes ou aquele que tivesse carteira de trabalho registrada ou comprovasse que tinha
alguma ocupação. O mestre tentou, dessa forma, descriminalizar a atividade da Capoeira,
valorizá-la como forma de educação física e formação. Porém, essa atitude acarretou no tal
embranquecimento, pois como pode ser visto no documentário Mestre Bimba: a capoeira
iluminada, produzido pela Lumen, os frequentadores de sua academia no Centro de Salvador
eram em maioria estudantes do curso de medicina da Universidade de Salvador, que, como
pode ser visto no documentário, não contavam com nenhum negro, porém cabe a ressalva de
que no Terreiro do lobo, mestre Bimba também teve alunos negros e da classe subalterna.
As mudanças criadas pelo mestre Bimba não foram bem aceitas por todos os
capoeiristas, pois havia os que se preocupavam com a descaracterização e o desenraizamento
da Capoeira a partir das transformações que mestre Bimba vinha propondo. Esses eram os
“angolas”, como os chamava o mestre Bimba. Muitos dos “angolas” tinham por fundamento
manter as tradições da Capoeira, como a ancestralidade principalmente. Foi Vicente Ferreira
Pastinha (1889-1981), mestre Pastinha que nomeou a Capoeira que busca manter as
características que lhes são próprias, aquelas da tradição como Capoeira Angola, segundo ele,
no seu livro Capoeira Angola, esta arte “se assemelha a uma dança graciosa em que a ginga
maliciosa mostra a extraordinária flexibilidade dos capoeiristas. Mas, capoeira angola é, antes
de tudo, luta e luta violenta” (PASTINHA, 1988, p.21).
Mas isso não quer dizer que alguns “angolas” não participavam das lutas nos ringues
armados na atual Praça da Sé, na época palco chamado de “Stadium Odeon”. Lá mestre
Bimba era “bamba”, pois venceu muitas lutas e desafiadores nesse espaço que também
contribuiu à aceitação da Capoeira como luta nacional, o que gerou uma certa distorção de suaimagem original. Além da Capoeira no ringue, mestre Bimba também promoveu a
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Capoeira em apresentações artísticas, esta com um caráter mais lúdico e menos combativo.
Mestre Pastinha era contr a a Capoeira no ringue, pois defendia sua graciosidade: “é lógico
que nos referimos a Capoeira Angola, a legítima Capoeira trazida pelos africanos e não à
mistura de Capoeira com Box, luta livre americana, judô, jiu-jitsu etc. que lhe tiram ascaracterísticas, não passando de uma modalidade mista de luta” (ibidem).
Em suma, havia certa diferença ideológica entre essas duas potências da Capoeira na
Bahia. Porém, esses dois mestres buscaram cada qual a seu modo, descriminalizar a prática da
Capoeira. Mestre Pastinha era apoiado por pessoas como Jorge Amado, que assumia na época
uma postura esquerdista e comunista. Já mestre Bimba, com sua defesa da Capoeira Nacional,
esteve com o presidente Vargas, conforme os registros fotográficos evidenciados na pesquisa
de PIRES (2002). Porém, cumpri dissertar que ambos os mestres nunca tiveram ligação
partidária direta e ambos se queixam da falta de apoio que havia por parte do governo de
maneira geral, eles brigaram por espaços culturais, políticos e econômicos da sociedade, “o
comércio da Capoeira tornou-se um fato fundamental. A retirada da Capoeira do código penal
em 1934 foi uma tarefa que significou colocá-la no âmbito das relações fundamentais do
sistema capitalista, o que resultou na criação das academias de Capoeir a” (PIRES, 2002, 91),
desta forma, eles tentam fugir das práticas criminais e comercializar a Capoeira como bem de
consumo cultural como formas de ganho e sustento.
A Capoeira Angola e Regional hoje se disseminaram por todo o país, já estando
totalmente fundidas e enraizadas na cultura nacional, ambas competem dentro de suas
próprias linhagens e entre si mesmas, Angola e Regional, por um mercado em que mestres
buscam oportunidades de trabalhos em realizações de projetos culturais, educacionais e
artísticos, Workshops no Brasil e Exterior, cursos, presenças em eventos, mas claro que este
último, principalmente, não é só regido por uma relação de competitividade, mas também por
relações de amizades e contatos.
A Capoeira Angola (a qual tratamos neste trabalho) na atualidade busca manter as suas
raízes culturais e seus fundamentos tradicionais, como a musicalidade, a mandinga, a
teatralidade, a brincadeira, o ritmo, a memória, a ginga, o respeito mútuo entre os homens e as
mulheres, tanto no ritual da roda como na roda da vida. Devemos destacar que a Capoeira
hoje em dia é bem mais aceita pela sociedade se formos comparar sua aceitação há pouco
tempo atrás, não que o preconceito tenha acabado, mas diminuído de forma significativa. Na
verdade, isso deve ter se dado por conta dos esforços de mestre Pastinha e Bimba, mas
pensando na Capoeira Angola, também por conta do próprio negro que se fortaleceu,fortaleceu seus saberes e sua cultura, como forma de afirmação social e identitária.
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Se a Capoeira antes era uma prática criminalizada, hoje é patrimônio cultural brasileiro. Sua
manifestação causava medo, mas atualmente atrai mais e mais apreciadores, e é impulsionada
pela lei nº 10 639 que busca incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade
da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências; sancionada em janeiro de 2003 pelo ex-presidente Lula, já gera alguns resultados, pois atualmente busca-se
com esse apoio aprender-se mais sobre a cultura e a história afro-brasileira e a conviver e
respeitar as diferenças culturais e religiosas que existem em nossa terra.
É importante dizer que atualmente há estilos diversos de Capoeira, a Capoeira se
disseminou de tal forma que é complicado falar em apenas dois estilos, ou seja, Angola e
Regional, sua prática tem diversas funcionalidades na atualidade, há grupos que buscam
preservar os fundamentos de mestre Bimba, porém há muitos outros que a destorce tornando-
a apenas atração turística com vistas no lucro mercadológico ou como forma de
sobrevivência. Aqui nossa pesquisa se volta mais para a Capoeira Angola quando se refere à
atualidade, por conta da pesquisadora se encontrar dentro dessa denominação. Basicamente a
diferença entre a Capoeira Angola (que também apresenta vertentes diversas) e a Regional e
suas inúmeras vertentes é que estas geralmente possuem um caráter predominantemente
esportivo, de ginástica com movimentos acrobáticos de grande impacto, como saltos, por
exemplo, o que a coloca dentro da cultura de massa e a torna marketing em propagandas de
cereais matinais, seriados e novelas televisivas; e aquela possui movimentos de resistência e
domínio, quase sempre tendo algum apoio sobre o chão, funcionando mais como ritual do que
como espetáculo. Lembrando que isso se dizendo, grosso modo, algo que é bem mais
profundo e complexo e que não é o enfoque primeiro deste trabalho, ditas dessa maneira as
diferenças podem soar reducionistas e demasiado simplificadas.
De maneira bastante simplificada, pode-se afirmar que a Capoeira Angola defende o
respeito aos mestres antigos e aos seus ancestrais, mantém muito da tradição ritualística dos
negros africanos e, com os seus três cânticos (ladainha, louvação e corrido) ela é veículo do
saber dos antigos e de seus “mitos” por meio da oralidade que é fundamental em seu ritual e
se manifesta por meio de suas cantigas, lembrando que dentro dela também podemos nos
deparar com variantes que a diferencia de um grupo para outro a partir de simbologias ou até
alegorias, e crenças, como veremos no decorrer deste trabalho.
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CAPÍTULO II - CULTURA POPULAR OU CULTURA TRADICIONAL?
A cultura popular [...] manifesta-se como forma singular de resistência:
resistência astuciosa vinculada à idéia de jogo, trampolinagem, trapaçaria,todos mecanismos de recusa estratégica e tática à assimilação. Cultura popular que prevê a existência de um usuário capaz de fazer com, de utilizar,com esperteza e sabedoria, os referenciais culturais socialmente produzidose transformá-los em recursos próprios, resultados de uma arte de fazer. (BORELLI, 1996, p. 36)
Como já se observou, a Capoeira Angola é um movimento bastante complexo que não
se define com facilidade. Entretanto a princípio colocaremos sua prática dentro do conceito de
Cultura Popular, pensando-a mais como Cultura Tradicional, para um bom entendimento do
que ela pode representar no mundo das artes e da cultura em geral. Porém, não podemos
deixar de lembrar que os estudos relativos a culturas populares tornaram-se visíveis há apenas
algumas décadas, tendo seu florescimento na década de 60 (ABIB, 2004, 28) e o conceito é
bastante divergente e pode ter sentidos bastante opostos. Por isso, a tarefa aqui não é simples,
deve-se ter certa tomada de posição partindo de um ponto de vista bem direcionado. Aqui
entenderemos Cultura Popular segundo pensamentos de CANCLINI:
Do lado do popular, é necessário preocupar-se menos com o que se extinguedo que com o que se transforma. Nunca houve tantos artesãos, nem músicos populares, nem semelhante difusão do folclore, porque seus produtosmantêm funções tradicionais e desenvolvem outras modernas: atraemturistas e consumidores urbanos que encontram nos bens folclóricos signosde distinção, referências personalizadas que os bens industriais nãooferecem. (CANCLINI, 2000, p. 22)
A prática da Capoeira Angola é ampla e muitos são seus mestres, e por mais que sua
existência seja múltipla ela agrega saberes normativos que revelam sua ordem. Por mais quehaja tantas vertentes da mesma denominação Capoeira Angola, e por mais que diversos
possam ser seus ritos de roda, ela tem algo que resiste em comunidade, como, por exemplo, a
sequência ritualística onde se canta ladainha, louvação e corridos. Talvez essa resistência seja
uma das chaves para entendermos o caráter transcendental que acontece em roda. Quando
mestre Pastinha fala no tópico “A Capoeira na atualidade”, em seu livro Capoeira Angola, é
bastante claro e simples:
Não lhe falta o prestígio nem a compreensão das autoridades e do nosso povo. Em suas academias encontram-se discípulos de todas as idades e
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classes sociais. O capoeirista não é mais visto como um desordeiro – é umdesportista, a semelhança de outros que praticam o Box, a luta livreamericana, o judô etc. [...] Mas, a Capoeira Angola é, ainda folclorenacional. Os serviços de turismo, na Bahia, colocam como pontoobrigatório, em seus programas, uma visita às Academias de Capoeira.
(PASTINHA, 1988, p. 23)
De lá para cá muita coisa se transformou na Capoeira da Bahia. Agora os próprios
mestres regem seus negócios, muitos organizam encontros internacionais onde traçam um
percurso em regiões chave como o fez mestre Renê no evento: para contar certo, tem que ver
de perto! Com programação extensa de 15/07 a 31/07/2011 em que o grupo pôde conhecer
Ilha de Maré, Ilha de Itaparica, Pelourinho, Mercado Modelo, fundação Pierre Verger, dentre
muitos outros pontos. A Capoeira, principalmente na Bahia, é um veículo de Cultura Popular,
entendendo-a como Tradicional que atrai turistas, pesquisadores e praticantes de todo mundo.
Tanto a fala de mestre Pastinha citada acima, como eventos com caráter turístico organizados
por mestres podem revelar uma captura dependendo de onde se olha tais posicionamentos.
Se olharmos de maneira distanciada poderemos sim reconhecer que ocorre uma
captura por parte desses mestres (que são muitos), em especial mestre Pastinha, nunca negou
que a Capoeira era uma prática exercida por malandros e marginais, porém tentou
descriminalizá-la e colocá-la como atração folclórica, turística e como esporte. Não podemos
deixar de lembrar que nesta mesma época havia aqueles capoeiristas que não aderiram a tal
concepção da Capoeira e mantiveram-se vadios por opção (mestre Traíra, mestre Waldemar).
Pires em Bimba, Pastinha e Besouro de Mangangá observa que para mestre Pastinha “a
prática dos grupos de capoeiras do passado não aparece como ‘resistência’ e sim como algo
que impedia a capoeira de ascender socialmente” (2002, p. 65) tal a possível captura, o desejo
de ascensão, de reconhecimento por parte da sociedade, e não a capoeira como afirmação de
uma classe já estabelecida.
Porém, esse desejo de querer sair da marginalidade pode ser visto, se aproximarmos
nosso olhar da realidade de vida em que mestre Pastinha vivia como uma forma de reparar
sofrimentos e preconceitos que despotencializaram sua prática. Não é à toa que o mestre ficou
vinte anos afastado dela. Mesmo com a tentativa de encarar a Capoeira como prática cultural
que estaria sendo utilizada de forma ruim por parte de arruaceiros, Pires confirma que mestre
Pastinha “teria feito parte dos agrupamentos de capoeiras que, ele mais tarde, classificaria de
desordeiros e arruaceiros.” O próprio mestre Pastinha reconhece a periculosidade da
Capoeira: “mas o que serve para defesa também serve para o ataque. A Capoeira é tão
agressiva quanto perigosa” (1967, p. 80).
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A Capoeira Angola é uma espécie de “personificação” da resistência, aqui se entende
por resistência luta e permanência, desta forma, em diferentes fases de sua existência ela teve
formas distintas de combate, se no período colonial e imperial ela resistia a partir do disfarce,
luta disfarçada de dança, e na voz de mestre Pastinha: “os negro africanos, no Brasil colônia,eram escravos e nessa condição tão desumana não lhes era permitido o uso de qualquer
espécie de armas ou práticas de meio de defesa pessoal que viessem por em risco a segurança
dos seus senhores” (PASTINHA, 1988, p. 22) a partir da década de 1930 ela vai lentamente se
deparar com outros mecanismos para continuar funcionando como meio de luta, luta política e
social a partir de sua prática cultural, e é a partir daí que se traz a tese de que atualmente ela
tem por arma a voz, a oralidade, as cantigas. Sim, podemos pensar que atualmente a maior
forma de um angoleiro se apresentar, expor seus sentimentos é por meio de sua voz. A prática
física da Capoeira atualmente é recomendada, o poder público a vê com bons olhos, pois os
tempos mudaram, ela não funcionaria jamais como arma de guerra em nossos dias, algo que
era diferente em tempos remotos, porém hoje além de funcionar como defesa pessoal, ela
preserva o poder da voz, quando um cantador grita seu “Iê” e exprime sua visão de mundo ele
muitas vezes faz uma crítica social, ele dá um recado, homenageia alguém, detém o ato
comunicativo que pode ser inúmero dependendo da situação de roda como veremos mais
adiante.
Escolheu-se o termo resistência porque desde sua origem até o seu desdobrar atual a
Capoeira se faz acontecer. Na rua, na academia, na leitura e no mundo, ela nunca esteve tão
fortalecida. A Capoeira Angola é espaço de criação, construção e inspiração. Nela tudo é
possível, mas nem tudo se deve. É ética e democrática dentro do ritual do respeito ao sagrado
e ao mestre. O sagrado concretiza-se na voz, na entoada, no ritmo e na fala. A fala é sempre
múltipla e mutável. Pode ser gestual, pode ser musical, teatral, marginal, central, original,
nova, antiga. Ela varia na situação de roda e de jogo, mas ainda resiste quando observamos
rodas diversas com uma mesma estrutura: ladainha, louvação e corridos, que podem ser
primeiramente entendidos como subgêneros do gênero cantigas de Capoeira Angola. É nessas
cantigas que acontece parte da resistência, como se tentou ilustrar anteriormente. Nesta
vertente que compõe a subjacência da Angola, a voz poética manifesta-se. O cantador tem seu
momento e seu espaço para fazer um apelo, dar seu recado, demonstrar sua visão de mundo,
revelar valores ancestrais e compartilhar sentimentos. É nesse ritual que corpos dançam,
cantam, lutam, produzem sons, transpiram, depositam sua contribuição, seu axé. Assim, pode-
se dizer que o movimento acontece e cabe-nos, então, não manter e muito menos resgatar essa
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cultura, mas sim analisar seus processos para melhor entendê-la, pois ela por si só já se
mantém.
Busca-se notar as transformações dessa cultura tradicional, como ela acontece na
atualidade a partir de suas origens e evolução, questionaremos se a resistência é outra emrelação a essa prática que acontecia em outros espaços e tempos, sua função social hoje não é
a mesma de antigamente, mas mantém um desempenho comum? O vídeo, os gravadores, a
televisão por cabo, a transmissão via satélite, a internet, enfim, todo o conjunto de
transformações tecnológicas e culturais não apaga o folclore, pois muitas de suas
manifestações se desenvolvem transformando-se. É o caso da Capoeira Angola.
Não podemos esquecer que há certo apoio por parte de políticas públicas à prática e
desenvolvimento da Capoeira, são diversos os objetivos dessas políticas, vai desde atrair o
turismo (principalmente em Salvador), até segundo Canclini (2000, 217) criar empregos,
fomentar a exportação de bens tradicionais, aproveitar o prestígio histórico e popular do
folclore para solidificar a hegemonia e a unidade nacional sob a forma de um patrimônio que
parece transcender as divisões entre classes e etnias:
Todos esses usos da cultura tradicional seriam impossíveis sem umfenômeno básico: a continuidade da produção de artesãos, músicos, bailarinos e poetas populares, interessados em manter sua herança e em
renová-la. A preservação dessas formas de vida, de organização e pensamentos se explicam por razões culturais, mas também, como dissemos, pelos interesses econômicos dos produtores que tentam sobreviver ouaumentar sua renda. (CANCLINI, 2000, p. 217-218)
Por mais que as novas mídias contribuam para a divulgação e para o registro da
Capoeira Angola, elas não são necessárias para que a Capoeira aconteça. A tecnologia
audiovisual ajuda na pesquisa, mas não passa o sentimento que é potencializado pelo hic et
nunc. A Capoeira Angola não cabe na Cultura de Massa sem que sofra distorções, e não é arte
erudita. Antes, é mais seguro enquadrá-la no campo da Cultura Popular, mas como esseconceito é bastante amplo e abarca noções que nada se referem à prática da Capoeira Angola,
aqui será mais seguro se aludir o termo usado por Canclini (2000) de Cultura Tradicional.
Aqui deixaremos de lado as inúmeras definições que o conceito de Cultura Popular pode
apresentar e focalizaremos a capoeira como algo que manifesta saberes e práticas que se
fundem no cotidiano, algo mutável que constrói e reconstrói tradições de grupos.
Ainda a partir da leitura do livro de Canclini, Cultura híbrida, se buscará afirmar que a
tendência da modernização não é simplesmente provocar o enfraquecimento da prática daCapoeira, pelo contrário, cabe-nos neste trabalho perguntar-se como ela está se
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transformando e como interage com as forças da modernidade. Por mais que possa parecer
contraditório, assim como as tradições, a Capoeira Angola se reinstala para além das cidades:
em um sistema interurbano e internacional de circulação cultural, a partir disso pensa-se que é
impossível compreender a tradição sem compreender a inovação. A tradição da CapoeiraAngola será pensada aqui como organismo projetado em direção ao passado para legitimar e
entender o presente, como já se tentou esclarecer.
Por mais que a Capoeira tenha sido uma prática criada pelos negros vindos da África
ao Brasil como escravos, atualmente é possível afirmar que ela é constituída por processos
híbridos e complexos, usando como signos de identificação elementos procedentes de
diversas classes e nações. Os relatos de mitos dentro da roda são cantados e contados com
múltiplas variantes, os cantadores lhes dão ênfases diversas e os atualizam, dessa forma
renovam-se seus valores e o imaginário continua aberto e criativo.
A interação da Capoeira com a modernização permite sua renovação, o que não
aconteceria se ela se fechasse apenas nas suas relações ancestrais. E, segundo Canclini, “nem
a modernização exige abolir as tradições, nem o destino fatal dos grupos tradicionais é ficar
de fora da modernidade” (2000, p. 239), assim ocorre um jogo de equilíbrio, em que a
ancestralidade está presente, mas se reconfigura dentro da modernidade, ela resiste em
essência, principalmente no que se refere a sua performance de maneira geral, e se transforma
por conta dos processos de modernização que ocorrem no mundo.
A Capoeira Angola hoje, se entendida como cultura tradicional, exige desfazer-se da
pressuposição de que ela permanece como o era em seus primórdios, e, de que acontece de
maneira autossuficiente, isolada dos agentes modernos que hoje se podem observar em seu
meio e que podem ser identificados nas relações econômicas tanto no mercado do Brasil
quanto no transnacional de bens simbólicos. Isso porque na atualidade é inegável que ela
transita num campo de redes de dependência que a liga ao mercado, ao turismo, à industria
cultural, por mais que mantenha em si, e em seus fundamentos seus referentes ancestrais.
Mas, isso se dá, também, porque dentro do rito temos a perseverança e a diversidade dos
elementos tradicionais da Capoeira.
As formas híbridas que a Capoeira pode estabelecer na sua existência são visíveis
quando investigamos sua prát ica e examinamos seus procedimentos que a une sincreticamente
a diversas modalidades de cultura urbana. Isso pensando em sua inegável diversidade e
heterogeneidade dentro do mundo, mas sem perder de vista sua força tradicional que se
mostra presente em seu ritual, esse que acontece em grupos e locais diversos, mantendo ofundamento defendido por muitos mestres. Para Canclini, “A cultura tradicional se
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encontra exposta a uma interação crescente com a informação, a comunicação e os
entretenimentos produzidos industrial e maciçamente” (CANCLINI, 2000, p. 253). Portanto,
tenta-se incluir na análise deste trabalho a reorganização da Capoeira Angola em políticas e
movimentos que a subordinam e reformulam no contexto atual.Partindo ainda do sentido de resistência que a roda possibilita, torna-se a dissertar
sobre a continuidade e a transformação que se dá na tradição ancestral ensinada através dos
tempos. Por mais que essas duas ideias, a de resistência e de transformação, possam parecer
contraditórias, se aposta que não são. Elas funcionam como dois fatos que estão presentes
dentro do mundo da Capoeira, como já dissemos, são dois extremos que acarretam num
equilíbrio imaginário. Para falar da resistência que ocorre na prática dessa cultura tradicional
denominada Capoeira, cumpre dizer que o “vínculo criador -comunidade” apresentado por
Antonio Candido em Literatura e Sociedade, de 1965, é esclarecedor e nos será útil neste
texto, pois como argumenta:
à medida que remontamos na história temos a impressão duma presençacada vez maior do coletivo nas obras [...]; forças sociais condicionantesguiam o artista em grau maior ou menor [...], determinando a ocasião daobra ser produzida [...]; julgando a necessidade dela ser produzida [...]; sevai ou não se tornar um bem coletivo.(CANDIDO, 1965, p.30)
Desta maneira, entende-se que a voz artística que ecoa muitas vezes como forma de
resistência, pode ser de alguma maneira guiada por forças sociais condicionantes, que podem,
muitas vezes, ditar ao grupo que resista, por conta da situação em que a obra oral se encontra
dentro de um dado sistema sociocultural. Por exemplo, se antes se cantava “vamos jogar
capoeira enquanto a polícia não vem/ e quando a polícia chegar quebra a polícia também”,
isso se dava por conta da condição em que o grupo se encontrava. Atualmente, cantam-se
inúmeras cantigas, como por exemplo: “deu cinco horas/ galo começa a cantar/ gáveaassoviar/ ai meu bem é hora”, que expressam condições outras e bem diversas que muitas
vezes podem ser regidas por “forças sociais condicionantes”, ou que podem ser consideradas
a atualização como força viva da tradição em contextos outros, criando em cada ocasião
sentidos que exprimem partes de uma tradição oral dentro da comunidade que resiste de
várias maneiras, sejam elas individuais ou coletivas, mas que ainda revelam forças alheias a
essa tradição.
Todavia, há grupos que resistem mesmo sem reconhecimento ou valorização dasociedade como um todo, seres que resistem no ir treinar sozinhos, ouvindo um
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disco clássico no mundo da Capoeira, inspirando-se em tradições passadas para manifestar-se
no presente, porém mantendo vivo o dizer artístico do capoeirista, em que na voz de mestre
Claudio fala de si: “Sou eu angoleiro que vem do sertão/ Com chapéu de coro e berimbau na
mão”. E por aí vai numa infinidade de falas, ditos, sons, gestos, sentidos performáticos quetrazem à tona formas de criação coletiva em roda com estética própria, em que o improviso
aparece de maneira natural por conta da experiência que o possibilita. Muitas coisas
acontecem na roda de Capoeira, ela abarca o sagrado e depara-se com o profano, pessoas se
machucam, são felizes, buscam aventuras, brincam, vivem, jogam-se nela, podem senti-la,
crescem e nascem nela encontrando ali sua espiritualidade e contato com o sagrado. Antes de
jogar o angoleiro agacha no chão, e no pé do berimbau faz sua oração, alguns se concentram,
alguns se benzem, alguns tiram “sarro” do parceiro de jogo, outros beijam o chão, outros
fazem sua mandinga no chão e assim vai numa infinidade de gestos. Quando se está ao pé do
berimbau numa ladainha, geralmente seu tempo diante desta situação é maior, isso acontece
com os dois que abrirão o jogo da Capoeira, ou aqueles que reiniciarão a roda:
Iêêê...
Vou fazer o meu pedido (bis)Aiaiai, para o meu São BeneditoPorque ele é um santo negro
Ehhhh, Santo negro eu acreditoMeu santo Benedito (bis)Colega véioÉ meu santo protetorMe proteja nessa rodaAiaiai, nesse lugar que eu estouFaca de ponta não me furaEhhh,e jamais vai me furáOlho grosso não enxergaE jamais enxergará,Arma de fogo não me queimaAiaiai, São Benedito apagaráMeu santo Benedito (bis)É meu santo protetorProtegeu o negro escravoQue era carente de carinho e de amorCamará...(ladainha cantada por mestre Claudio)
Assim fica claro que a funcionalidade da ladainha acima é de proteção, é uma oração,
eis outro aspecto que iremos observar em dadas cantigas: sua funcionalidade, que também é
variada. Na ladainha cantada por mestre Claudio podemos perceber que a oração que eleva aSão Benedito, seu protetor, é bastante semelhante a oração a são Jorge. Mestre
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Claudio dá continuidade a uma tradição oral e cria sua própria oração em forma de ladainha,
então da ladainha citada acima podemos afirmar que sua funcionalidade é a de elevar uma
oração e de tal maneira buscar proteção.
Dependendo da situação (para quê e quando se canta) e do discurso (quem canta e paraquem canta) o vínculo pode ser bastante uniforme. A presença da voz é direcionada não só
pela tradição, mas também pela necessidade presente da circularidade formada pelos meios
de grupalidade e comunidade, ou seja, ela não tem como parâmetro somente a tradição, mas
sim a necessidade atual do grupo, quando um cantador canta, ela transforma a tradição de
forma a suprir as expectativas do presente, ela canta o passado e o traz para o presente da
roda, do grupo. É diferente um angoleiro (quem vive Capoeira Angola) interpretar um dizer e
uma pessoa desprovida de saberes específicos da ritualidade da roda tentar fazê-lo. O
angoleiro infere muito do universo que faz parte. Por isso há rodas e rodas. Quando o intuito
é aproximar saberes, o procedimento é aberto e dinâmico. O cantador versa livremente e
dialoga com seu público. Narra fatos da comunidade ali presente, gira em torno da roda por
meio da voz, é detentor do discurso, provoca o jogo de perguntas e respostas e pode ser
desafiado se houver outro cantador que tome a voz poética para expor suas ideias. A noção
dos repentes nordestinos está presente aqui, ou a noção de cantos de desafio, em que um
cantador provoca ou elogia o outro (as possibilidades são inúmeras), e ambos vão dialogando
através do versar. Como, por exemplo, acontece na cantiga de domínio público abaixo:
Eu não vou na sua casaPra você não ir na minhaVocê tem a boca grandeVai comer minha galinha
Daí segue uma possível resposta:
Eu não vou na sua casa
Por que tem muita ladeiraSeu cachorro é muito bravoSua mulher é faladeira
E assim segue, num jogo contínuo de perguntas e respostas, num jogo de improviso
que faz parte de toda a arte performática, pois o cantador improvisa de acordo com o
movimento da roda, quem chega, quem sai, quem escuta, e todo esse jogo de improviso tem
por base um vocabulário pré-trabalhado – o que contribui muito ao bom andamento do ato de
improvisar, pois os versos correm dentro de uma situação variada de vocábulos e sons, tudo
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dentro de um jogo de rimas e risos, em que a situação é a regente do tom e do rumo das
canções. O elogio, a declaração de afetos também são bastante recorrentes:
Escute aqui meu camará
Ouça o que vou lhe dizerVocê é meu grande amigoQuero cantar com você
E o outro responde:
Olha meu bom colegaSua fala já valeuUma pedra deu na outraO teu coração no meu
Ou referindo-se ao público:
Pimenta maduraque dá sementeMoça bonitaOlhando pra gente
Cantigas de amor também são bastante recorrentes:
O galho da limeiraA enchente carregouA maré já deu passagemVou buscar o meu amor
Da sua casa pra minhaCorre um riacho no meioEu daqui dou um suspiroVocê de lá suspiro e meio
E assim a voz prossegue numa infinidade de situações de roda, mais adiante veremos
em maior detalhe a multiplicidade das cantigas e seu papel não só na roda, mas na sociedade
atual, funcionando como instrumento de resistência, de luta, de reconstrução artística, de
expressão cultural e social, de criação, dentre outros. Borelli ajuda a esclarecer esse pensamento quando diz que a cultura popular não se afirma apenas pelas origens, tradições,
raízes,
mas por uma posição construída de forma complexa e conflituosa – frente aohegemônico. Nesse sentido, o popular não deve ser concebido como todohomogêneo que se opõe, monopoliticamente, a outro, erudito, culto ou demassa. Pelo contrário, para Gramsci, o folclore, por exemplo, está presenteem todas as esferas que compõem a cultura na sociedade; entretanto, e paradoxalmente, o mesmo folclore constitui-se como concepção de mundo emanifestação de caráter coletivo específicos das classes populares.
(BORELLI, 1996, p. 35)
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Se focalizarmos a prática da Capoeira Angola como algo que está presente em
camadas diferentes da sociedade, mesmo com sua essência marginal (nasce dos negros
escravizados que viviam às margens da sociedade) poderemos compreender como existe uma
grande diversidade de grupos e ritos no mundo da Capoeira Angola hoje. Ela agrega valores einterpretações múltiplas. É livre, nela ninguém precisa aceitar certas crenças ancestrais, a
religiosidade de quem baixa no pé do berimbau, no “altar” bateria de Capoeira Angola, é
subjetiva, cada um sabe de si, ela é repleta de mandinga, floreios e trocas. Numa mesma roda
podemos ter extremidades sociais que vão variar em termos de poder aquisitivo, grau escolar
e de diversidades de crenças, saberes e história.
Mas com isso partiremos da figura do malandro que se aproxima à do capoeirista
angoleiro, aquele que usa chapéu panamá e sapato de couro, aquele que canta, ginga,
ultrapassa na brincadeira seu oponente, aquele que esbanja malícia e manha. Manha de se
safar, de criar, de dialogar. Essa figura já foi muito lembrada em páginas da Literatura
Brasileira, de forma pejorativa ou não. Aqui não trataremos da figura do malandro-capoeira
representada na literatura, mas antes buscaremos ouvir a voz do angoleiro a partir de seus
cantares, que acontecem no ritual tradicional da roda. Como hoje essa figura do malandro-
capoeira já se disseminou, podemos encontrar tribos diversas que buscam a ginga da Capoeira
Angola. Cada corpo tem a sua ginga e sua voz, cada cantador tem o seu modo de falar, o
discurso dentro da roda é múltiplo, varia conforme a subjetividade do mestre que a dirige,
conforme a composição formal dos instrumentos, muito variada de grupo para grupo, mas
isso não é suficiente para afirmarmos que a Capoeira Angola não tenha sua própria
identidade, mesmo como seu indiscutível caráter permutável.
Assim como a Cultura Popular, aquela folclórica e tradicional, a Capoeira Angola não
deve ser territorializada. Por mais que seja mais expressiva em determinadas cidades ela
guarda em si um “quê” universalizante. Esse quê pode ser entendido no sentido da grande
diversidade expressa em seu mundo, no sentido da multiplicidade de sua composição estética,
no seu desejo em busca do belo e da expressividade, na sua independência frente aos meios de
dominação hegemônicos, nas suas ambiguidades presentes em seus corridos, ladainhas e
louvações, como veremos adiante em maior profundidade. Cabe ressaltar, para que não haja
contradições que essa movência da Capoeira, e sua não territorialização é pensada a partir da
resistência no sentido de prática, ou seja, ela resiste em diversos locais do mundo como
Capoeira Angola, luta, dança, brincadeira, sendo que em dados grupos ela pode ter uma
dessas modalidades prevalecendo mais do que em outros, portanto insiste-se que o termoresistência aqui apresenta um sentido móvel, e não um sentido fixo e estático, mas
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uma resistência que se transforma dentro de situações diversas de comunicação e de vida, mas
que se mantém a partir de fundamentos tradicionais, segundo Canclini, todo “grupo que quer
diferenciar-se e afirmar sua identidade faz uso tácito ou hermético de códigos de identificação
fundamentais para a coesão interna e para proteger-se frente a estranhos.” (2000, p. 164) Nesta linha, a Capoeira Angola vista como componente da Cultura Popular, ajuda na
visualização da sua diferença em relação a outras artes, como a literária, por exemplo, para
então, com as heterogeneidades presentes em ambas, fazer-se um trabalho de diálogos e
reconhecimentos do outro que, aparentemente oposto, estabelece semelhanças e
dessemelhanças que contribuem para o trabalho de interpretação e análise de ambos. Mas,
para tanto, deve-se considerar o campo literário como algo vasto, que une inúmeras formas de
expressão poéticas orais e escritas, capazes de estabelecer diálogos entre si, e,
conseguintemente, relacionarem-se de maneira a ampliar as possíveis intertextualidades de
vozes aparentemente opostas. O termo intertextualidade, com bases em KOCH, BENTES e
CAVALCANTE, é aqui compreendido como operação produtora de sentido no interior de um
dado universo discursivo, mas sem perder de vista que ela também se dá entre domínios
discursivos diferentes, como é o caso das cantigas de Capoeira Angola e a Literatura: “no
processo de produção de um discurso, há uma relação intertextual com outros discursos
relativamente autônomos” (KOCH, BENTES e CAVALCANTE, 2007, p. 15) aqui
entenderemos esse processo também como relações interartísticas que se expressam de forma
semelhante ou que falam de algo em comum, compreendendo texto como tudo aquilo que tece
alguma comunicação, seja ela visual ou auditiva.
Segundo Ecléa Bosi, a Cultura Popular tem suas raízes na vivência cotidiana do
homem da rua (1986, p. 77), tal pensamento contribui de maneira significativa ao trabalho
desenvolvido aqui. Em essência, a Capoeira Angola é também arte de rua, por mais que se
expresse também em Escolas e Grupos organizados. Se ela prega em seus fundamentos a
liberdade, ela agrega por isso, como já foi dito, uma grande diversidade. Desde o tempo do
Império ela existiu como forma de luta e combate. Era a arte das maltas cariocas, da dança
dos perigos portenhos tanto de Recife como de Salvador, foi se fortalecendo e se
disseminando por todo Brasil, se transformando e chegando aos nossos dias como algo
bastante peculiar dentro da Cultura Popular Brasileira, ou, de forma mais cautelosa, dentro da
Cultura Tradicional Afrobrasileira.
A Capoeira Angola confirma pensamentos como o de Borelli (1996, p. 51), que
baseada em Morin (1977, p. 11-85), defende o caráter planetário da Cultura Popular,entendida a partir do século XX, como algo que se internacionaliza e reafirma
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valores ao invés de excluí-los. Claro que nisso há um grande perigo, o da distorção desses
valores, mas que, por sua vez, condiz com o aspecto permutável e transitório da Cultura
Popular. Que pode manter uma tradição mesmo com suas possíveis adequações em universos
e realidades estranhos, onde a resistência se dá de maneira a adequar-se com a realidade dedado grupo.
Segundo Ecléa Bosi, o folclore, entendido como Cultura Popular, é uma forma de
educação informal e, se pensarmos nisso dentro da prática da Capoeira Angola faz bastante
sentido, e essa ideia nos é bem útil. Por mais que hoje em dia os ensinamentos da Capoeira
Angola possam ser passados de diversas formas: oficinas, textos escritos, vídeos, conferências
e muitas outras formas, em essência eles são passados a partir de relações cotidianas de
convivência e trocas. Há dentro da sua prática figuras que carregam em si conhecimentos e
valores que lhes foram passados e cabe a elas recodificá-los de acordo com sua vivência
coletiva, essas figuras muitas vezes são os mestres de Capoeira Angola.
Com a modernidade e a urbanidade, a Capoeira se afirma e se fortalece. Ela acontece
também (ela também é manifesta nos sertões e espaços rurais de nosso País) no espaço das
grandes cidades, isso se dá principalmente por meio da grande difusão que teve com
migrações, com as gravações de CDs e DVDs, com as divulgações em sites, blogs e youtube;
mas não se pode esquecer de que há aqueles mestres e estudiosos que acreditam que a
Capoeira já nasceu num contexto urbano, nas cidades portuárias, porém há também aqueles
que defendem sua origem nos quilombos, mas aqui cabe reconhecê-la como algo que surgiu
tanto no sertão, na ruralidade quanto nas cidades simultaneamente, e, hoje, com as novas
tecnologias pode conectar-se dentro de uma comunidade da Capoeira que não possui mais
barreiras.
Sua oralidade, através de contação de histórias por meio das cantigas, das rodas de
conversas e dos encontros de corpos predispostos a interagir dentro de um mesmo universo de
saberes e experiências traz à tona a necessidade ainda primária do hic et nunc. Por mais que
ela, inevitavelmente, aconteça dentro da modernidade, ela ainda mantém em alguns aspectos
sua característica tradicional, a necessidade da convivência grupal real (em contraponto com a
virtual que também acontece), o espaço dos cheiros, das vozes que passam dentro do ritual
uma emoção diferente de quando se assiste um DVD, ainda é fundamental para a
comunidade.
Assim, a Capoeira Angola entendida como uma manifestação da Cultura Tradicional
que se desenvolve e/ou se transforma constantemente, sem deixar de lado seu preceito decontinuidade (tradição), e que, segundo Bakhtin “sempre, em todas as etapas do seu
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desenvolvimento, tem resistido à cultura oficial e tem produzido o seu ponto de vista
particular sobre o mundo e suas próprias formas para refleti-lo” (1988, p. 429). Portanto, ela
produz espaços de convivência e de criação que podem dialogar a todo tempo com o mundo.
Os conhecimentos passados na roda refletem a grande roda da vida, a roda de capoeira é umreflexo do universo, é uma camada da grande camada circular que abriga universos dentro de
um cosmo, que também se vê dentro de cosmos. Nela aprende-se como entrar e como sair de
situações variáveis, aprende-se a defesa, o ataque, a malícia, a perspicácia, a manha, a ginga,
aprende-se a ouvir, aprende-se a falar, aprende-se esperar, e, o mais difícil, aprende-se a
mandingar. Mas dedicaremos um tópico especial para a mandinga.
Nesse tópico de Cultura Popular e Cultura Tradicional convém citarmos novamente a
ideia de “vínculo criador -comunidade” de Antonio Candido contida em Literatura e
Sociedade. Lá encontramos algumas chaves para a linhagem de pensamentos aqui seguida,
como, por exemplo, a questão da obra de arte. Pode-se com firmeza e segurança afirmar a
expressão da Capoeira Angola como algo pautado em elementos de arte. Começa-se pelo seu
desejo de beleza, sobre o qual já falamos. Mas, além disso, tal vínculo ajuda-nos a confirmar
o valor artístico dessa tal Capoeira Angola. Entende-se que a Cultura Popular estabelece um
vínculo criador-comunidade bastante significativo, é a situação do hic et nunc, que se firma na
proximidade entre a voz e o ouvinte, entre os gestos e as reações do público, entre a
espontaneidade e os risos, dentre muitas outras relações que se dão dentro dessa condição do
“aqui e agora”.
Na roda fica bastante clara essa aproximação de corpos, é na roda que as trocas se
concretizam, é lá que a voz ecoa, portanto é nessa corrente circular que energias circulam e
mais do que vida e encontros, a arte se faz presente. Ela se faz presente na manifestação
cultural por meio da espontaneidade, mas também por meio da elaboração do ritual. O ritual
possui valor estético e vai além do plano terreno, migra para outros planos, busca outros
sentidos, e seu veículo principal para transcender a normalidade da vida é a música, os cantos,
a composição dos corpos, o vínculo firmado dentro de uma roda, que por sua vez é simbólico,
pode-se imaginar desde a serpente engolindo seu próprio rabo até a volta ao mundo, são
infinitas possibilidades de interpretar o símbolo da circularidade e é dentro desse símbolo
mítico-artístico que se constrói a obra da Capoeira Angola, que, como arte, não tem uma
função específica, transcende ao som, às rimas, aos movimentos físicos, à dança, ao gesto,
pois tudo faz parte de um mesmo ritmo, ritmo marcado dentro dessa mesma junção, nas
subjacências da Capoeira Angola.
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Mas como Cultura Popular ela integra rituais múltiplos e diversidades que
transformam sua forma de ocorrer. Como tal, ela acontece na rua de maneira bem diferente do
que aconteceria num teatro, assim como numa escola, numa produção audiovisual, ela está no
mundo e para o mundo; e se refletirmos ainda sobre o termo Cultura Popular, podemosafirmá-lo como algo que “vem do povo”, mas pode ser desfrutado por quem quer que seja,
independente de credo ou classe. Na sua simplicidade, ocorrem os sentidos estéticos que
muitas vezes já serviram de inspiração à arte erudita, como por exemplo no poema Batuque
de Guimarães Rosa (1997). A Cultura Popular, entendida aqui por uma Cultura Tradicional
manifesta-se como arte, como diálogo, como cotidiano, como vida. Assim, a Capoeira Angola
pode ser considerada parte da Cultura Popular, mas é importante frisar que ela jamais se
resumirá a isso, pois dentro da sociedade ela pode assumir inúmeras funções partindo do
pressuposto caráter artístico que traz em sua performance:
O que chamamos de arte não é apenas aquilo que culmina em grandes obras,mas um espaço onde a sociedade realiza sua produção visual. É nessesentido amplo que o trabalho artístico, sua circulação e seu consumoconfiguram um lugar apropriado para compreender as classificações segundoas quais se organiza o social. (CANCLINI, 2000, p. 246)
Inúmeras são as possibilidades de definir a Capoeira: manifestação artística de cunho
popular, Cultura Popular Tradicional, tradição afrobrasileira composta por música, dança,
teatro de rua, luta baiana, brincadeira, mecanismo de defesa, de ataque, resistência, arte
marcial, diálogo de corpos, roda de repentes, arte marginal, esporte, malícia, ginga de corpo,
malandragem, tradição ancestral, coisa de vadios, poética oral, atração turística, macumba,
terapia, dentre muitas outras possibilidades, porém aqui, tentaremos olhá-la como uma forma
artística específica, dinâmica e com diversas funcionalidades de acordo com o contexto em
que se enquadra. Ela faz jus a um bom vadio, que vive nela como um camaleão, de bom pode
ser mal, pode ser multicor, multiforme, pode ser um simples camaleão dependendo de onde é
visto.
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CAPÍTULO III – ASPECTOS GERAIS DA RODA
É
no coração da música oral que se formam as constantes do verso
(BOSI, 1977, p. 85)
A roda da Capoeira Angola geralmente é composta por três berimbaus, instrumento
que foi e continua sendo tema de ladainhas e corridos, como a tradicional faixa “B-A-BA do
berimbau” cantada por mestre Pastinha, no disco Eternamente:
Eu vou ler o bê-a-baBê-a-ba do berimbauA moeda e o arameCom dois pedaços de pau
A cabaça e o caxixiAí está o berimbauO berimbau é um instrumentoQue toca numa corda sóVai tocar são Bento GrandeToca Angola em tom maiorAgora acabei de verBerimbau é o maior.(PASTINHA, S/D, Disco)
A partir dessa ladainha fica mais fácil visualizarmos o berimbau, instrumento
ancestral, de aparência rústica e som baseado em efeitos e dobras, segundo mestre Pastinha, o berimbau feito de cabaça10 possui influência indígena. Mário de Andrade fez um estudo
dedicado apenas ao berimbau de boca, aqui falamos do berimbau usado no Brasil em rodas de
Capoeira, lembrando que ele também pode aparecer em espetáculos artísticos variados, ele é o
conhecido berimbau de barriga, que pode apresentar influências afro-indígenas. Dentre os três
berimbaus presentes numa roda temos o Berra-boi ou Gunga (o nome varia dependendo do
grupo), mestre Claudio Costa, mestre do grupo Os Angoleiros do Sertão, defende o termo
Berra-boi, pois afirma que mestre Waldemar da Paixão assim o denominava e argumentaainda que se o berimbau médio não tem nome próprio, os outros dois deveriam então se
chamar grande, médio e pequeno, argumento este bastante pertinente, que defende a
nomeação dos três berimbaus sem diferenciação.
Mas voltando ao Berra-boi, esse berimbau “comanda” a roda. Ele é o berimbau
mestre, possui a cabaça maior “que se casa” com a verga, esta que pode ser de tamanho um
pouco variado e é derivada principalmente das madeiras de biriba (verga encontrada na região
nordeste do Brasil), e, de que se constata até este momento da pesquisa, amendoim e candeia,
10 Cucúrbita lagenaria, Linneu. Planta de vegetação rasteira encontrada em solo nacional.
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encontradas no Oeste Paulista. Este berimbau, segundo relato do Mestre Manoel, conhecido
como “Manel”, nascido em Caxias-RJ, e morador da Maré, o Berra-boi deve ser entregue,
para uma pessoa responsável, que tenha percepção do mundo dentro e fora da roda
(CAPOEIRA ANGOLA, 2007, DVD/Paris). Geralmente quem segura o Berra-boi é umMestre, e, se a roda tiver um mestre antigo, sábio, provido de axé, e com o chamado “dendê”
(o que dá sabor, graça, tempero), ele conduzirá a roda, ele será o cantador, muitas vezes ele
escolherá quem vai jogar, quem vai cantar e, provavelmente ele fechará a roda.
O berimbau Gunga é o intermediário entre o timbre grave do Berra-boi e o timbre
agudo da Viola, seu tom é soprano e sua função é segurar a harmonia entre os outros dois
berimbaus. A Viola é o berimbau de “cabacinha”, seu timbre é bem agudo e sua função é
repicar dialogando com o Berra-boi. Esses três berimbaus de barriga, (existe ou existiu o
berimbau de boca no Brasil, como contam os mestres antigos), são tocados geralmente
acompanhados de um caxixi que, como define Waldeloir Rego, “é um pequeno chocalho feito
de palha trançada com a base de cabaça, cortada em forma circular e a parte superior reta,
terminando com uma alça da mesma palha, para se apoiar os dedos durante o toque” (REGO,
1968, 87), traço da influência indígena, quando para tocar o berimbau ele é segurado pela
mesma mão que segura a baqueta (um dos dois pedaços de pau que é falado na ladainha), e o
tocador deve ter na outra mão um dobrão (moeda antiga, também citada na ladainha) ou uma
pedra.
Cabe ressaltar que adotaremos o termo Berra-boi por questões de opinião, didáticas e
de grupo, a pesquisadora faz parte da Escola de Capoeira Os Angoleiros do Sertão fundada
em Feira de Santana-BA, em meados dos anos 80, pelo Mestre Cláudio Costa, e que vem se
desenvolvendo no estado de São Paulo desde 1986. Recentemente, sob a responsabilidade do
Contramestre Xandão, a Escola vem desenvolvendo trabalhos junto a Faculdade de Ciências e
Letras de Assis – UNESP, com projeto de extensão, atuando das mais diversas formas no
contexto acadêmico.
Quanto aos berimbaus, segundo linhagem do Grupo em pesquisa, o responsável que
estiver segurand