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1 - Nietzsche e a celebração da vida A interpretação de Jörg Salaquarda Scarlett Marton 2 - A compaixão no poder médico- assistencial Sandra N. C. Caponi 3 - Rorty, Nietzsche e a democracia Paulo Ghiraldelli Jr. 4 - O trágico, a moral, o fundamento Miguel Antonio do Nascimento 5 - O Platão de Nietzsche. O Nietzsche de Platão. Osvaldo Giacóia Júnior 6 - O lugar da interpretação Franklin Leopoldo e Silva 7 - Nietzsche, Sócrates e o pragmatismo Richard Rorty 8 - Nietzsche e o Ser Social Histórico ou Da Utilidade de Nietzsche para os Estudos Históricos Regina Horta Duarte 9 - Nietzsche e a Psicanálise Alfredo Naffah Neto 10 - Nietzsche e a História da Literatura Regina Zilberman 11 - Ler Nietzsche com Mazzino Montinari Ernani Chaves 12 - Ler Nietzsche: O crepúsculo dos ídolos Mazzino Montinari 13 - Filosofia e linguagem em Nietzsche: considerações acerca do recurso às figuras Cristiano Novaes de Rezende 14 - Ecce homo: um livro quase homem Alexandre Mendonça 15 - A influência de Schopenhauer na filosofia da arte de Nietzsche em O nascimento da tragédia Rosa Maria Dias 16 - A concepção básica de Zaratustra Jörg Salaquarda 1 - Nietzsche e a celebração da vida A interpretação de Jörg Salaquarda Scarlett Marton Professora do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo Nietzsche and the celebration of life Abstract: This article intends to introduce to the Brazilian public the innovating interpretation of Nietzsche's philosophy and chiefly of Nietzsche's thought of the eternal recurrence of the same presented by Jörg Salaquarda. Starting from the analysis of Salaquarda's article "The basic conception of Zarathoustra", the first to be published in Brazil, it is aimed to show the importance of his philosophical work. Key-words: Zarathoustra – nihilismus – amor fati – eternal recurrence Resumo: O objetivo que aqui se persegue é o de apresentar ao público brasileiro a interpretação inovadora que Jörg Salaquarda faz da 1

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1 - Nietzsche e a celebração da vidaA interpretação de Jörg Salaquarda Scarlett Marton2 - A compaixão no poder médico-assistencial Sandra N. C. Caponi3 - Rorty, Nietzsche e a democracia Paulo Ghiraldelli Jr.4 - O trágico, a moral, o fundamento Miguel Antonio do Nascimento5 - O Platão de Nietzsche. O Nietzsche de Platão.

Osvaldo Giacóia Júnior6 - O lugar da interpretação Franklin Leopoldo e Silva7 - Nietzsche, Sócrates e o pragmatismo Richard Rorty8 - Nietzsche e o Ser Social Históricoou Da Utilidade de Nietzsche para os Estudos Históricos Regina Horta Duarte

9 - Nietzsche e a Psicanálise Alfredo Naffah Neto10 - Nietzsche e a História da Literatura Regina Zilberman11 - Ler Nietzsche com Mazzino Montinari Ernani Chaves12 - Ler Nietzsche: O crepúsculo dos ídolos Mazzino Montinari 13 - Filosofia e linguagem em Nietzsche: considerações acerca do recurso às figuras Cristiano Novaes de Rezende14 - Ecce homo: um livro quase homem Alexandre Mendonça15 - A influência de Schopenhauer na filosofia da arte de Nietzsche em O nascimento da tragédia Rosa Maria Dias16 - A concepção básica de Zaratustra Jörg Salaquarda

1 - Nietzsche e a celebração da vidaA interpretação de Jörg Salaquarda

Scarlett Marton Professora do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo

Nietzsche and the celebration of lifeAbstract: This article intends to introduce to the Brazilian public the innovating interpretation of Nietzsche's philosophy and chiefly of Nietzsche's thought of the eternal recurrence of the same presented by Jörg Salaquarda. Starting from the analysis of Salaquarda's article "The basic conception of Zarathoustra", the first to be published in Brazil, it is aimed to show the importance of his philosophical work. Key-words: Zarathoustra – nihilismus – amor fati – eternal recurrence

Resumo: O objetivo que aqui se persegue é o de apresentar ao público brasileiro a interpretação inovadora que Jörg Salaquarda faz da filosofia de Nietzsche e, em particular, do pensamento do eterno retorno do mesmo. A partir do exame de "A concepção básica de Zaratustra", o primeiro texto de Salaquarda a ser publicado no Brasil, conta-se fazer ver a relevância de seu trabalho filosófico.

Palavras-chave: Zaratustra – niilismo – amor fati – eterno retorno

"Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Desviar o olhar: que seja minha única negação! Em suma, quero em algum momento por uma vez ser apenas aquele que diz-sim!"

Dos textos de Nietzsche, Assim falava Zaratustra é sem dúvida o mais controvertido. O leitor sente-se de imediato atraído por uma sucessão de parábolas que evidenciam o talento estilístico do autor; deixa-se envolver numa teia de imagens oníricas que revelam episódios de sua biografia; e acaba arrebatado por uma rede de discursos que põem a nu seus experimentos filosóficos. Diversas são as leituras que o livro suscita; de ordem variada os trabalhos a que ele se presta.

O estilo que Nietzsche então adota é duplamente específico; constitui uma exceção no contexto da escrita filosófica em geral e, outra, no conjunto de seus próprios escritos. No Nascimento da tragédia

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e na Genealogia da moral, ele opta pelo discurso contínuo; nas Considerações extemporâneas, escolhe o tom polêmico; no Ecce homo, assume a forma autobiográfica; nos Ditirambos de Dioniso, adota o recurso poético; em outros textos, apresenta máximas vigorosas e veementes; e na maior parte de sua obra talvez, privilegia o aforismo como modo de expressão.

À primeira vista, a nova linguagem que o filósofo inventa em Assim falava Zaratustra parece uma mistura de "verdade" e "poesia". E assim teriam razão os que defendem a idéia de que ele não passa de literato ou poeta. Desta perspectiva, seria possível abordar o livro como um "romance de aventuras", uma vez que conta as peripécias de uma personagem central, ou como um "romance psicológico", já que enfatiza a sua vida interior, ou até mesmo, a exemplo do Werther de Goethe e da Educação sentimental de Flaubert, como um "romance de formação". Mas, nele, Nietzsche agencia um conteúdo filosófico e uma forma literária, que se mostram indissociáveis. Recusando-se a opor forma e conteúdo, tenta recuperar a unidade original do conceito e da imagem. Contudo, em sua correspondência é de forma ambivalente que se refere à obra.

É dessas ambivalências que parte Salaquarda em seu artigo "A concepção básica de Zaratustra". Começa por investigar as hesitações que o filósofo manifesta quanto à rubrica a que pertenceria Assim falava Zaratustra. E faz ver que o livro poderia ser uma "pregação moral", uma "sinfonia", uma "poesia", um "escrito sagrado" – e, também, nada disso.

Por certo, Nietzsche recorre nessa obra a uma forma estilística, que apresenta múltiplas implicações. Salta aos olhos, desde logo, que ela é tributária do Novo Testamento e dos dramas musicais de Wagner. As parábolas da personagem central imitam os Evangelhos, mas não constituem apenas sua inversão num sentido paródico; elas anunciam uma nova anticristã. As situações que se desenrolam no texto aludem a momentos das óperas wagnerianas, mas não consistem simplesmente em sua negação; elas põem em cena um anti-herói.

Zaratustra fala em circunstâncias diversas e de diferentes maneiras. Discursa para o público reunido na praça, dirige-se aos discípulos e, por vezes, a apenas um em particular, dialoga com várias personagens que cruzam o seu caminho: o saltimbanco, o aleijado, o espírito de peso. Zaratustra fala, mas também canta; discursa e monologa; tem interlocutores e entretém-se com si mesmo; conversa com seus animais e troca segredos com a vida. E, na maior parte das vezes, o falar esconde mais que o calar; o silêncio revela mais que as palavras.

É assim que fala Zaratustra, "o sem-Deus", "o porta-voz da vida, o porta- voz do sofrimento, o porta-voz do círculo", "o mestre do eterno retorno", "o que não em vão disse a si mesmo: 'torna-te quem tu és'". É Zaratustra, aquele que vem desvincular a metafísica e a moral, quem assim fala. Ao contrário do profeta báctrio, que teria introduzido no mundo os princípios de bem e mal, submetendo a cosmologia à moral, ele vem refazer a obra do Zoroastro histórico. Alter ego de Nietzsche, quer recuperar a inocência do vir-a-ser. Contudo, são ambivalentes as facetas que revela ao longo do livro.

É dessas ambivalências que trata Salaquarda no momento seguinte de seu texto. Passa então a examinar as oscilações que Nietzsche deixa entrever quanto à maneira de caracterizar sua personagem. E mostra que Zaratustra é moralista, poeta, profeta, fundador de religião, sedutor – e, mais uma vez, nada disso.

Na primeira página da obra, na seção inicial do prólogo, o filósofo retoma ipsis litteris o último aforismo da quarta parte da Gaia ciência (FW/GC § 342). Se nele já põe em cena Zaratustra, no penúltimo, intitulado "O mais pesado dos pesos" (FW/GC § 341), expressa pela primeira vez em seus escritos sua idéia do eterno retorno do mesmo. Publicados imediatamente antes da redação de Assim falava Zaratustra, os dois aforismos antecipam o que virá a constituir a personagem central e a concepção básica deste texto.

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Aliás, é Nietzsche mesmo quem fornece ao leitor essa chave de leitura. Em sua autobiografia, ele faz questão de registrar que a Gaia ciência "contém mil indícios da proximidade de algo incomparável; afinal, ela mesma já dá o começo do Zaratustra e, no penúltimo trecho do quarto livro, dá a concepção básica do Zaratustra" (EH/EH, Zaratustra, § 1). Portanto, eterno retorno e Zaratustra constituem os elementos nucleares de seu livro mais controvertido.

Ora, a estratégia a que Salaquarda recorre é tal que ele analisa as hesitações de Nietzsche quanto à rubrica a que pertenceria Assim falava Zaratustra e suas oscilações quanto à maneira de caracterizar a sua personagem, para ressaltar, com maior vigor, a idéia de que a concepção básica da obra não se deixa apreender facilmente e ainda menos através de um único conceito. Procurando trabalhar com o mosaico que as indicações dadas pelo filósofo compõem, ele acaba por refazer a trama conceitual presente no livro. Com isso, lança nova luz sobre temas centrais da filosofia nietzschiana da maturidade: a idéia de auto-superação, a noção de além-do-homem, a exigência de tornar-se si-mesmo. E chega, assim, à concepção básica do livro: a "doutrina" do eterno retorno.

É bem verdade que existe estreita ligação entre os dois últimos aforismos da quarta parte da Gaia ciência. Mas também é fato que ambos se acham intimamente relacionados com o primeiro dessa mesma parte. Não é por acaso que Nietzsche começa por exprimir um voto: não quer mais ser iconoclasta e destruidor, não quer mais desmascarar e demolir; doravante, quer apenas afirmar. E termina por apresentar um pensamento e um protagonista. O pensamento de que tudo retorna sem cessar requer que abandonemos o além e nos voltemos para este mundo em que nos achamos; exige que entendamos que eterna é esta vida tal como a vivemos aqui e agora. O protagonista Zaratustra, saturado de sua própria sabedoria, tem de deixar a solidão de sua caverna no alto de sua montanha; é para presentear e partilhar que precisa ir ter com os homens.

À quarta parte da Gaia ciência o filósofo dá o nome de "Sanctus Januarius", em homenagem ao ano de 1882 que se inicia(1). Tanto o primeiro aforismo quanto os dois últimos são sintomáticos da atitude que ele pretende abraçar. Se nestes introduz o eterno retorno e Zaratustra, naquele traz a idéia de amor fati. Tudo se passa como se quisesse desprender-se da crítica dos valores, desligar-se da vertente corrosiva de seu pensamento, numa palavra, libertar-se do não. Tudo se passa como se agora pudesse aceitar o sofrimento enquanto parte integrante da existência, afirmar tudo o que há de mais terrível e doloroso mas também de mais alegre e exuberante, numa palavra, construir sua filosofia positiva.

Ora, é justamente esse vínculo profundo entre o pensamento de que tudo retorna sem cessar, o protagonista Zaratustra e a idéia de amor fati que Salaquarda quer pôr em relevo em seu artigo. E nisto reside o caráter inovador de sua interpretação. Se ele se limitasse a apontar a ligação, estreita por certo, entre Zaratustra e eterno retorno nada teria acrescentado ao que Nietzsche mesmo já afirmara. Mas, perscrutando ao longo do livro os silêncios da personagem diante de seu pensamento abissal, dirige sua análise para o momento decisivo em que, por fim, ela o aceita enquanto a máxima afirmação da existência.

É por eleger este fio condutor que Salaquarda tem de considerar Assim falava Zaratustra um livro constituído tão-somente de suas três primeiras partes. "Ora", diz ele, "Nietzsche poderia ter iniciado uma continuação ou uma nova obra-Zaratustra, em que o protagonista anunciasse de outro modo o seu pensamento do retorno tão dificilmente conquistado. Se assim considerou, não chegou a realizar". E conclui: "Fez apenas uma espécie de sátira, em que representa a compaixão com os 'homens superiores' de seu tempo como uma 'tentação de Zaratustra'" (Salaquarda 4, p. 33).

É fato que a relação que Nietzsche estabelece com seu texto mais controvertido se transforma à medida em que ele escreve e publica as diversas partes. Em janeiro de 1883, redige a primeira parte de Assim falava Zaratustra; em julho do mesmo ano, a segunda. Em janeiro de 1884, escreve a terceira; em janeiro do ano seguinte, a quarta. Ao todo, dois anos. Para publicar o livro, tem de enfrentar vários obstáculos. A primeira parte leva meses para aparecer. Schmeitzner, seu editor, dá prioridade à

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impressão de cânticos religiosos e brochuras anti-semitas; cumpre, sem pressa, o contrato com um autor mal- sucedido. Aceita ainda editar a segunda parte e a terceira, mas recusa, categórico, a quarta. Depois de tentativas humilhantes e estéreis, o filósofo custeia uma tiragem de quarenta exemplares; é mais do que suficiente: não chega a dez o número de pessoas a quem pensa enviá-los em caráter confidencial. Em 1886, E. W. Fritzsch, o editor de Wagner, negocia com Schmeitzner a compra dos exemplares de suas obras anteriores. Reedita, então, as três primeiras partes de Assim falava Zaratustra num único volume(2). A quarta, porém, é mantida em segredo até 1891, quando Peter Gast se dispõe a torná-la pública(3).

Contudo, vale notar que, em abril de 1883, quando faz aparecer a primeira, Nietzsche não inclui no título "Erster Theil". Em abril de 1884, quando prepara com Peter Gast a edição da terceira, considera-a a última. Em abril do ano seguinte, quando traz a público a quarta, faz questão intitulá-la "Vierter und letzter Theil". Algum tempo depois, porém, renega as três primeiras partes e pensa elaborar um novo Zaratustra a partir da quarta. Planeja, ainda, compor a quinta e sexta, mas não chega a fazê-lo. E até o outono de 1888 mantém a intenção de concluir o livro.

Em Assim falava Zaratustra, aqueles a quem a personagem central se opõe já aparecem nas primeiras linhas; o cristianismo e o platonismo serão seus principais adversários. Depois de abrasar a terra, o sol tem de pôr-se no horizonte; depois de saturar-se de sabedoria, Zaratustra tem de voltar ao convívio com os homens. Aos quarenta anos, ele tem de descer da montanha para o vale, dos cumes para as profundezas, do mundo para o submundo; por excesso, ele tem de declinar(4). À diferença dos Evangelhos(5), é aos quarenta e não aos trinta anos que começa seu ministério e, ao contrário da República(6), é na caverna e não fora dela que se faz sábio. O deslocamento espaço-temporal não é gratuito; indica distância e recuo em relação a referenciais milenares de nossa cultura. Não é por constatar a miséria do ser humano, querer resgatá-lo e salvá-lo que Zaratustra vai ter com os homens – mas por estar farto da própria sabedoria. Não é por perfazer a ascese dialética, abandonando a diversidade sensível e contemplando a verdade inteligível que ele desce da montanha para o vale – mas por compreender que não existe tal dicotomia. O que o move não é a penúria alheia mas a própria abundância; o que o impulsiona não são as carências do homem mas o transbordamento do mundo. Presente já na primeira página, ainda que de forma alusiva, a crítica ao dualismo metafísico e à religião cristã, aliada aos ataques à moral do ressentimento que deles decorre, será uma constante no livro.

Para Salaquarda, mais importante, porém, que apontar o tom crítico da obra é ressaltar a intenção de Nietzsche em abraçar o amor fati. E sua estratégia se torna cada vez mais instigante. Ao exame do desenvolvimento conceitual presente em diversas passagens de Assim falava Zaratustra, ele junta a análise do desenrolar dramático das cenas que se sucedem. Com especial atenção, focaliza dois discursos da terceira parte, "Da visão e enigma" e "O convalescente", os únicos em que a idéia de eterno retorno aparece de forma expressa no livro. Lançando um contra o outro, de forma a iluminarem- se reciprocamente, faz ver que o adversário decisivo de Zaratustra é um inimigo interior.

Aceitar que tudo retorna sem cessar implica aceitar que o pequeno, o miúdo, o mesquinho também retorna. E, como o pulgão, este está em toda parte; assume as mais diversas máscaras, encarna os tipos mais variados. Encontra-se – diríamos – na figura do erudito que não quer sujar as mãos, do burocrata que arrota seu pequeno poder. Encontra-se na figura daqueles com quem Nietzsche tem de conviver em sua época; com quem ainda hoje temos de conviver na nossa. Diante de tal espetáculo, só resta o nojo.

Não! É preciso dar mais um passo, dar o passo decisivo. Para aceitar plenamente o eterno retorno do mesmo, Zaratustra tem de vencer "o grande fastio pelo homem". Tem de "não querer nada de outro modo, nem para diante, nem para trás, nem em toda eternidade. Não meramente suportar o necessário, e menos ainda dissimulá-lo – todo idealismo é mendacidade diante do necessário –, mas amá-lo..." (EH/EH, Por que sou tão esperto, § 10) Nem conformismo, nem resignação, nem submissão passiva:

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amor; nem lei, nem causa, nem fim: fatum. Assentir sem restrições a todo acontecer, admitir sem reservas tudo o que ocorre, anuir a cada instante tal como ele é, é aceitar amorosamente o que advém; é afirmar, com alegria, o acaso e a necessidade ao mesmo tempo; é dizer-sim à vida. Converter o impedimento em meio, o obstáculo em estímulo, a adversidade em bênção, eis a "fórmula da grandeza no homem".

Com "A concepção básica de Zaratustra", o primeiro texto de Salaquarda que temos o privilégio de publicar no Brasil, é a face positiva da filosofia nietzschiana que vem à luz. Com Nietzsche, podemos enfim celebrar a vida.

Notas 1. E inclui esta epígrafe: "Tu que com a lança de tuas flamas Partes o gelo de minha alma, Que ferve agora e corre ao mar De sua esperança mais alta: Sempre mais clara e mais sadia, Livre em sua lei mais amorosa: – Assim louva ela teus milagres, Ó tu, mais belo dos janeiros!" (Gênova, janeiro de 1882). 2. Trata-se de Nietzsche 3. 3. O editor Naumann encarrega-se desta reedição e, em 1893, publica, pela primeira vez, as quatro partes de Zaratustra num único volume. 4. Aplicado ao sol e também a Zaratustra, o termo untergehen inscreve-se em diferentes registros: alude ao ocaso do astro e à descida da personagem ao vale; comporta ainda a idéia de declinar, ir abaixo, sucumbir. 5. Cf. Lucas, 3, 23. 6. Cf. República, livro VII.

Referências Bibliográficas 1. NIETZSCHE. Werke. Kritische Gesamtausgabe. Edição de Colli e Mon- tinari. Berlim, Walter de Gruyter & Co., 1967-78. 2. _______. Obras incompletas. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo, Abril Cultural, 1978, 2a edição. 3. _______. Also sprach Zarathustra. Ein Buch für Alle und Keinen. In: drei Theilen. Leipzig o. J., Verlag von E. W. Fritzsch. 4. SALAQUARDA, J. "A concepção básica de Zaratustra". In: Cadernos Nietzsche, 2, 1997. São Paulo, Departamento de Filosofia/USP, p. 17-39.

2 - A compaixão no poder médico-assistencial Sandra N. C. Caponi

Professora do Departamento de Saúde Pública - Universidade Federal de Santa Catarina

The compassion in the medical-assistence powerAbstract: Taking Nietzsche's critique to compassion as starting point, we study medical-assistence interventions which reveal that both at individual and collective levels, compassion emerges as an efficient instrument to strengthen and reproduce social asimmetries. Key-words: compassion - pity - medicine - assistence

Resumo: Tomando como ponto de partida a crítica nietzschiana à compaixão, analisamos as intervenções médico-assistenciais, observando que, tanto na assistência individual quanto na assistência coletiva, a compaixão parece ser um instrumento eficaz para reforçar e reproduzir dissimetrias.

Palavras-chave: compaixão - piedade - medicina - assistência

Interessa-nos problematizar a lógica interna da compaixão piedosa, pois ela instaura uma modalidade peculiar de exercício do poder que se estrutura a partir do binômio servir- obedecer, multiplicando assim a existência de relações dissimétricas, entre quem assiste e quem é assistido. Se acreditamos que é necessário excluir do discurso médico a caridade cristã e a piedade religiosa, aquela que costumava

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situar o doente no lugar da debilidade mais absoluta e da mais extrema impotência, então será mister que possam ser desenvolvidas estratégias capazes de fazer que a palavra dos doentes possa formar parte de uma rede dialógica, que permita instituir um genuíno consenso, onde hoje existe aceitação passiva. Mas, para que este objetivo seja atingido, acreditamos que é preciso analisar a estrutura e o modo de funcionamento dessa compaixão piedosa.

As estratégias de poder que no dia-a-dia percorrem o âmbito dos saberes médico-assistenciais situam-nos perante conflitos urgentes que, longe de emergir sob circunstâncias excepcionais e limites, definem a maior parte de nosso cotidiano. E, se isto é possível, é porque as tecnologias médicas apontam para essa dimensão do humano que mais nos aproxima de uma coisa manipulável: nosso corpo. Para que este controle possa ser aceito, para que essa manipulação possa ser entendida e até exigida, é mister apresentá-la sob a forma, dificilmente objetável, de uma compaixão piedosa para com as pessoas que estão, atual ou virtualmente, em posição de inferioridade pela sua condição de doentes. Acreditamos que é mister problematizar o fato de que, quase invariavelmente, a assistência compulsiva encontra sua justificativa e se faz aceitável, por referência a um sentimento de piedade pelos necessitados e pelos sofredores.

É mister sublinhar que não pretendemos aqui descobrir, finalmente, este véu que tem a forma da piedade, para poder mostrar assim, em toda sua crueldade, a verdade nua da coerção e da hipocrisia. Não pretendermos desmascarar, finalmente, uma ideologia por trás da qual o controle social gosta de se apresentar. Muito pelo contrário, nosso interesse aqui é poder tematizar a própria compaixão piedosa como uma estratégia de poder que, originariamente, e pela sua própria lógica, reproduz e afirma um tipo de racionalidade fundada em distinções subordinantes, que excluem e anulam a existência de vínculos legítimos entre iguais.

Empreender uma crítica da ética da caridade e da compaixão exige que nos lembremos de Nietzsche, pois é mérito seu ter sabido iniciar, com lucidez e firmeza, um estudo demolidor destas estratégias de poder que, no preciso momento em que nos prometem auxílio e assistência, multiplicam os mecanismos de coerção, docilização e submissão.

As perguntas que Nietzsche faz a respeito da caridade e da compaixão podem ser resumidas nestas duas: "É conveniente ser antes de mais nada homens compassivos?"; "É conveniente para os que padecem que deles vos compadeçais?". A resposta a esta questão será, por sua vez, determinante: "Nossos benfeitores diminuem nosso valor e nossa vontade, ainda mais que nossos próprios inimigos" (FW/GC § 338).

O que acontece é que eles estão impossibilitados, a partir do início, de interpretar corretamente em toda sua complexidade a dor de quem padece, e é ali que radica uma característica que define o compassivo: "pois o próprio do sentimento de compaixão é despojar à dor alheia do que ela tem de pessoal", de individual, de único e irrepetível. Quando o sentimento de piedade pretende superar este limite, ele se faz intolerável e é por isso que "na maior parte dos benefícios aos necessitados existe algo que indigna, pela indiferença intelectual com que o compassivo julga o destino, sem saber nada das conseqüências e complicações interiores que para mim e para você se chamam infortúnio" (FW/GC § 338). A pessoa compassiva tem o impulso de socorrer, quanto antes melhor, mas o que não existe é o tempo para medir se as conseqüências deste socorro imediato são ou não desejadas por aquele que padece um infortúnio. Para Nietzsche, a figura do homem piedoso é a de alguém que não pode tolerar uma mínima margem de dor, que não pode desfrutar ou aprender de sua solidão, é alguém que "quer socorrer e não pensa que o infortúnio pode ser uma necessidade pessoal e que você e eu podemos necessitar tanto do terror, das privações, da pobreza, das aventuras, dos perigos, dos desenganos quanto dos bens contrários" (idem). Enfim, trata-se de alguém cuja única religião não é a caridade, pois ele professa também a "religião do bem-estar", ficando assim impossibilitado de entender aqueles para os quais o bem-estar, seja ele imediato ou possível, longe de representar um valor, representa uma ameaça, algo assim como a calma que precede a nada.

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É por isso que cotidianamente podemos assistir a imorais mas piedosas atitudes que respondendo à força da compaixão e à procura do bem-estar, reproduzem a mais ilegítima ainda que legalizada coerção: aquela que pessoas caridosas exercem sobre os infortunados. Nietzsche se defronta com esses mecanismos obscuros e cotidianos, através dos quais a piedade e a compaixão se revelam como uma perigosa e temível tecnologia de poder que, no entanto, insiste em aparecer com a máscara de um desapaixonado e necessário "humanismo".

É provável que, cotidianamente, descubramos a existência desses espetáculos de coerção e submissão, mas a força da freqüência nada nos diz a respeito dos motivos que levam esses homens e mulheres comuns e benfeitores a compartilhar a crença de que, por trás dessas inclinações caridosas, eles realizam atos morais e que é através dessas realizações que eles podem converter-se e afirmar-se como pessoas virtuosas. É preciso descartar a existência de um maquiavelismo consciente que prefere se apresentar como compassivo para poder exercer assim, mais livremente, o domínio e o poder. Quiçá os motivos sejam mais simples, e é outra vez em Nietzsche que devemos procurar alguma resposta à pergunta pela conveniência em ser homens compassivos.

Veremos então que as conveniências são múltiplas: "O contratempo sofrido por outra pessoa nos ofende, nos faz sentir nossa impotência e talvez nossa covardia, se não acudirmos em seu auxílio. (...) Ou na dor alheia vemos algum perigo que também nos ameaça, ainda que sejam somente sinais da insegurança e da fragilidade humanas, os infortúnios alheios podem produzir em nós penosos efeitos. Rejeitamos esse gênero de ameaça e de dor e lhe respondemos por meio de um ato de compaixão, no qual pode existir uma sutil defesa de nós mesmos e até algum resquício de vingança" (M/A § 133). Em todos esses e outros fenômenos que se resumem na palavra "caridade", o que se evidencia é que, na realidade, "pensamos muito mais em nós mesmos que nos outros". O que fazemos no momento de realizar um ato de caridade é libertar-nos de um sentimento de dor que é absolutamente nosso, a dor que inspira o espetáculo da miséria, e ficamos assim livres de um padecimento ou de um medo que é individual e pessoal.

O problema aparece quando elevamos essa compaixão - que sabemos inútil e ineficiente, que reconhecemos como um pobre instrumento para suprir qualquer necessidade - ao nível de uma categoria moral ou social: quando acreditamos que a mesma é capaz e eficiente a ponto de nos construir como agentes "morais", ou quando pretendemos fundamentar nela uma ordem social mais justa.

O que está em jogo ali é a lógica interna da moral da compaixão. Uma lógica que, como já foi dito, pode e deve ser analisada como sendo a racionalidade própria de uma estratégia de poder. Como afirma Nietzsche, "ao realizar atos de caridade o que fazemos é libertar-nos de um padecimento que é nosso. No entanto, não agimos nessa direção impulsionados por um único motivo, e ainda quando seja verdade que queremos nos libertar de uma dor, também é verdade que agimos impulsionados pelo júbilo provocado pelo espetáculo de uma situação oposta à nossa, pela idéia de poder socorrer àquele infortunado se assim o desejarmos, pela esperança da gratidão que haveremos de obter pela atividade do socorro" (M/A § 133).

Ainda que nos horrorizemos perante a idéia desse júbilo, não é outra coisa que se evidencia na enunciação de algumas frases tais como: "deves sacrificar-te com entusiasmo", "deves imolar-te a ti mesmo". A moral da compaixão, que apregoa a entrega e a mortificação, detesta reconhecer que por trás de um ato de piedade e na própria entrega de si (quanto maior o sacrifício, maior a dívida gerada), o que se afirma é a existência de uma dívida que haverá de ser paga com eterna gratidão e com humildade. Por isso, sentimos o pior ressentimento quando alguém se nega a aceitar nosso sacrifício. "O homem caridoso satisfaz uma necessidade de sua alma fazendo o bem. Quanto maior for essa necessidade menos se posiciona no lugar daquele que socorre e que lhe serve para satisfazer essa necessidade, e até reage duro e ofensivo em certos casos" (M/A § 134).

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Limitamo-nos aqui à tentativa de responder à primeira das duas perguntas formuladas por Nietzsche, aquela que se refere especificamente à conveniência em sermos homens compassivos. Para resumir, digamos que essa conveniência pode ser analisada como uma dívida que se impõe à pessoa auxiliada e, na medida em que se trata de uma dívida contraída por alguém, cuja condição é de precariedade extrema, esta retribuição esperada não haverá de ser outra que um estado de gratidão permanente. Porém, e ao mesmo tempo, o que ali está em jogo é uma perigosa tranqüilidade de consciência, que impossibilita a análise das conseqüências de nossas ações caridosas: "Em si própria a compaixão não tem de benfeitora mais do que qualquer outro instinto. Só quando a exigimos e a elogiamos - e isto acontece quando não se compreende o prejuízo que produz, quando é olhada como fonte de prazer - é que ela vem acompanhada da tranqüilidade de consciência e então nos entregamos a ela sem temer suas conseqüências" (M/A § 134). Fica ainda por delimitar em que consiste a conveniência de ser objeto de compaixão para aqueles que padecem.

Se quisermos aventurar alguma resposta a essa questão, não poderemos prescindir de uma problematização da distinção existente entre aquele que se compadece e aquele que é compadecido. Em outras palavras: entre aquele que se afirma, em seu gesto de entrega, como um benfeitor e aquele que, por receber assistência (ainda que esta não seja solicitada), se diz beneficiado. Esta distinção parece estar fundamentada em uma dissimetria que, na perspectiva de Nietzsche, é insuperável. Para ele, "compadecer equivale a depreciar". Por isso, "entre os selvagens, o homem pensa com terror em quais poderão ser as causas que o levariam a ser compadecido, pois isso seria considerado como prova de que ele carece de qualquer virtude" (M/A § 134).

A partir do momento em que alguém pode manifestar piedade por outra pessoa, a caracteriza como sujeita a uma debilidade, como alguém que só pode superar suas limitações pelo socorro que a pessoa compassiva pode oferecer. Então, com um mesmo gesto se estabelece uma divisão binária entre aquele que se engrandece ao realizar a ação e aquele que se diminui ao recebê-la. Como já dissemos, conceder à compaixão, à caridade ou à piedade um valor moral pode levar a crer, erradamente, que ao socorrer aos outros nos engrandecemos como agentes morais, e que, deste modo, podemos converter-nos em sujeitos moralmente inobjetáveis. Mas, é justamente esta ilusão, baseada no suposto engrandecimento "moral" de si, que nos impede de pensar que, talvez, nosso gesto de compaixão não seja desejado; que, quiçá, ele possa ter conseqüências negativas para o "beneficiário"; ou que, simplesmente, possa gerar e promover estados de dependência e de submissão. Nesse jogo perverso o infortúnio do semelhante corre o risco de converter-se em "edificante" para os seres compassivos. Então, pode tornar-se viável esse irônico e implacável aforismo nietzschiano: "quando um homem é infortunado, acodem as pessoas piedosas e lamentam seu infortúnio. Quando elas saem, no fim satisfeitas e edificadas, ficaram fartas do espanto do infortunado, como se fosse seu próprio espanto, e passaram uma boa tarde" (M/A § 224).

Podemos, então, formular algumas perguntas: será que sempre e fatalmente depreciamos o beneficiário de nossa piedade? Não existe um sentimento legítimo através do qual me reconheço como igual ao outro, no momento em que me compadeço de seu sofrimento? Aparentemente não é possível responder afirmativamente a nenhuma dessas questões se tomarmos como ponto de partida o aforismo nietzschiano antes citado. Porém, haverá de ser o próprio Nietzsche quem fornecerá um suporte para refletir sobre um modo legítimo de piedade. Este pode ser um sentimento capaz de gerar vínculos positivos e moralmente legítimos, só em certos casos singulares: ali onde exista proximidade e identificação com essa pessoa que consideramos como infortunada.

Então, quando um amigo admirado ou um inimigo respeitado viverem uma situação de infelicidade ou se vejam forçados a padecer algum tipo de sofrimento, é que minha compaixão pode ser definida como legítima, pois ali é minha própria desgraça que sofro. Isso poderá acontecer cada vez que, por causa de um infortúnio, deva enfrentar a privação desse afeto e dessa amizade que me alegra e gratifica. Mas também pode existir um modo legítimo de piedade quando vejo "padecer um inimigo a

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quem considero um igual em orgulho e a quem o tormento não derrota, e em geral quando vemos padecer a um ser que não quer pedir compaixão, que é a humilhação mais vergonhosa e mais baixa" (FW/GC § 324). Ali parece que nos enfrentamos com um sentimento próximo da admiração, mas que, no entanto, não pode ser inteiramente separado de uma forma de piedade que é menos "compassiva" do que "apaixonada".

O que diferencia este sentimento legítimo da piedade compassiva é que não existe nada ali que possa ser associado ao desprezo; muito pelo contrário, ele se funda em um sentimento que é próximo da admiração. Esse infortúnio não nos enaltece nem nos faz mais humanos ou mais virtuosos, simplesmente nos iguala com aquele que padece. A compaixão assim como pode gerar atos virtuosos também pode representar uma debilidade moral. E é assim como os estóicos a vêem; para eles não existe distinção entre a piedade e a inveja: "Pois o homem que se compadece de outro, também pode ficar aflito pela prosperidade dos outros" (Szasz 10, p.25).

Mas, a piedade é sempre uma debilidade "para aquele que, num sentido ou em outro, quer servir de médico à humanidade. Ele tem que tomar precauções contra esse sentimento que o paralisa nos momentos decisivos, que ata sua consciência e sua mão hábil" (M/A § 134). Trata-se de um sentimento que não é, em si próprio, nem bom nem ruim. Mas, no momento em que ele é exigido e exaltado como um valor moral, na medida em que fazemos desse sentimento uma regra de comportamento capaz de definir por si própria um parâmetro do que é moralmente desejável para um grupo humano, corremos o risco de legitimar certas estratégias de coerção que se exercem em nome e pelo bem dos considerados beneficiários.

A Piedade como Virtude

Alguma coisa parece unificar a todos e a cada um dos benfeitores: "Os bons sentimentos", a compaixão pelos doentes. Ou como diria Rousseau "uma repugnância inata em ver o sofrimento de um semelhante". É assim que os filantropos ingleses se unificam com os revolucionários franceses, no momento em que se identificam com aqueles princípios que Rousseau isolou e caracterizou melhor que qualquer outro pensador. A partir de Rousseau, o interesse e a preocupação pelos outros vira uma paixão e um sentimento. Segundo a tese de G. Himmelfarb esta prioridade concedida à compaixão está longe de ser exclusiva de Rousseau; para ela, os filósofos morais ingleses, os filantropos, também sustentaram seus projetos e idéias "na benevolência, no humanismo, na simpatia, e nos afetos sociais: eles até usaram a palavra 'compaixão', no mesmo sentido".

Como Rousseau, eles situaram esse sentimento no coração da natureza humana, convertendo-o no atributo característico mais importante da humanidade, e encontrando evidências em todas as esferas da vida" (Himmelfarb 5, p.48). É verdade que os filósofos ingleses souberam sublinhar o caráter desinteressado e solidário da compaixão; porém, muitos dos projetos defendidos pareciam silenciar esse seu caráter igualador, e reforçar, em troca, sua face coerciva. Isso não é um dado secundário; como já dissemos: no preciso momento em que a compaixão e a piedade se convertem em parâmetros de moralidade, no preciso momento em que faço extensivo um sentimento, que só pode existir na intimidade (entre sujeitos que se reconhecem semelhantes), para o largo mundo dos pobres ou dos sofredores, a piedade perde seu caráter de sentimento legítimo e se torna uma eficaz estratégia de poder. Lembremo-nos mais uma vez de Nietzsche, que, em sua crítica à "benevolência", diz que devemos diferenciar ali duas coisas "o instinto de assimilação e o instinto de submissão, desde que se trate do mais forte ou do mais fraco. O prazer e o desejo de abarcar o outro se juntam no mais forte que quer transforma-lo numa de suas funções, o prazer e o desejo de ser assimilado são proprios do fraco, quem gosta de ser uma função (um atributo) alheia. A compaixão é, essencialmente, o primeiro caso: uma emoção agradável que o instinto de assimilação experimenta quando vê o fraco. Mas, devemos levar em consideração que forte e fraco são sempre conceitos relativos" (FW/GC § 118).

O que Nietzsche soube destacar é o fato de que a compaixão parece apresentar-se sempre no interior

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de uma rede de poder; um jogo de forças da qual faz parte e não pode fugir. Por sua vez, Hannah Arendt resumiu em poucas palavras os perigos próprios da sobrevalorização da compaixão e da piedade quando elas pretendem aparecer como o fundamento do agir político: "A piedade, tomada como fonte de virtude, tem demonstrado possuir uma capacidade para a crueldade, maior do que a própria crueldade. 'Par pitié, par amour pour l'humanité, 'soyez inhumains'" (Arendt 3, p.71) . Foi isto o que legitimou, para Arendt, o exercício do terror nos anos que sucederam à Revolução Francesa, crueldade que ficou para sempre associada com o nome de Robespierre. Para ele, a ação política deveria sustentar-se "naquele impulso imperioso que nos atrai para les hommes faibles", nessa capacidade de "sofrer com a imensa classe dos pobres" (Arendt 3, p.71).

Certamente, essa valorização da piedade como fonte de toda virtude é uma herança do pensamento de Rousseau; mais especificamente, provém da tese sobre a "comiseração" que aparece em Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens. Para ele, todos os valores humanos e todas as virtudes sociais se derivam de uma única virtude, que é a compaixão. "Com efeito, que são a generosidade, a clemência, a humanidade, mais do que a piedade aplicada aos fracos, aos culpados ou à espécie humana em geral? (...) A comiseração não é mais do que um sentimento que nos posiciona no lugar daquele que sofre, sentimento escuro e vivo no homem selvagem, desenvolvido, porém mais fraco, no homem civilizado" (Rousseau 9, p. 93). Perante a razão que isola, que estimula o amor próprio e o egoísmo, Rousseau venera a força niveladora de uma paixão primitiva e natural, a mais selvagem de todas as paixões, pois é o "sentimento primeiro de toda a humanidade". A piedade auxilia os homens racionais a moderar seu amor próprio e, na medida em que se trata de um sentimento natural, desnuda a valentia dos mais simples: "a ralé, as mulheres da feira são as que separam os combatentes, as que impedem os homens decentes seu mútuo extermínio" (Rousseau 9, p. 93).

Essa tese rousseauniana da comiseração é a mesma que Nietzsche critica duramente quando se refere ao sentimento da "simpatia". Assim, o aforismo 142 de Aurora parece refutar um a um os pressupostos que levaram Rousseau a afirmar a primazia de um sentimento, que nos unifica e iguala, por sobre a razão que nos diferencia. Para ele essa primazia da simpatia, longe de ser gloriosa, mantém uma forte dívida com a predisposição ao temor que nos produz o desconhecido. Através da simpatia, da comiseração, posso reproduzir em meu próprio corpo aquilo que o outro sente e pensa, e desse modo dominar o temor que ele poderia produzir. A simpatia foi estendida também para esses fenômenos temíveis da natureza, e isso explica a ilusão de que não existe na Natureza nenhuma coisa que seja verdadeiramente inanimada, nenhuma coisa que seja alheia aos sentimentos humanos. "Quanto entristece, depois de expor a teoria da simpatia, lembrar outra teoria muito estimada, que fala de um processo místico pelo qual a piedade faz com que dois sujeitos se fundam em um, sendo possível, assim, a compreensão imediata do outro?... Que grande deve de ser o deleite que proporciona o incompreensível" (M/A § 142).

Para Rousseau será justamente esse caráter incompreensível e quase místico da mais natural e selvagem das paixões que conferirá à piedade seu verdadeiro valor. A piedade se apresentará assim como uma ousadia irracional e primitiva. Perante essa ousadia da piedade, e como sua outra face, obscura e covarde, Rousseau decide situar a racionalidade sob a figura do filósofo que prefere tapar seus ouvidos ao clamor do sofrimento alheio e "argumentar um pouco para impedir que a natureza, que nele se subleva, o identifique com o culpável". Estes e outros exemplos falam da grandiosidade dessa virtude natural que é a piedade, ela nos leva "sem reflexão, ao socorro dos outros" (Rousseau 9, p. 94), ao auxílio imediato, não mediado pela razão, daquele que vemos sofrer. Assim sendo, acreditamos poder fazer extensivo a Rousseau aquilo que Nietzsche afirmava a respeito de Schopenhauer: "Deixo à consideração do leitor se é que pode ter verdadeira vontade de conhecer as coisas morais aquele que fica, a partir do primeiro momento, gratificado com a idéia da 'ininteligibilidade' das mesmas! Somente pode pensar assim aquele que acredite sinceramente nas revelações do céu, na magia, nas aparições e na fealdade metafísica do sapo" (M/A § 142).

Em sua exaltação da piedade como virtude, Rousseau se opõe ao pensamento grego. No Discurso

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podemos ler que "Ainda que possa corresponder a Sócrates a aquisição da virtude pela razão, faz muito tempo que o gênero humano não existiria se sua conservação tivesse dependido exclusivamente dos argumentos dos indivíduos que o compõem" (Rousseau 9, p. 95). Contra essa afirmação Hannah Arendt lembrará um fato significativo: "A história nos diz que de modo algum é uma coisa natural que o espetáculo da miséria mova os homens à piedade; mesmo durante os longos séculos em que a religião cristã de misericórdia impôs padrões morais à civilização ocidental, a compaixão se manifestava fora do domínio político" (Arendt 3, p. 56).

Mas voltemos agora aos gregos e lembremos que, segundo Aristóteles, "nem as virtudes nem os vícios são paixões, não somos chamados de bons ou de maus em razão de nossas paixões.... Pois aquele que vive conforme manda a paixão não ouvirá argumentos que venham a dissuadi-lo, nem os compreenderá.... A paixão parece conduzir, não ao argumento, mas à força" (Aristóteles 4 ). E isso mesmo poderia ser dito a respeito dos instintos, pois a partir do momento em que um mesmo instinto pode ter mais de um significado moral, a partir do momento em que pode dar lugar, em circunstâncias diferentes, ao sentimento deprimente da covardia ou ao elogio cristão da humildade, a partir do momento em que "pode conduzir, segundo seja o caso, à tranqüilidade ou intranqüilidade de consciência", devemos concluir, com Nietzsche, que "sendo assim, e como todo instinto é independente da consciência, não pode possuir caráter nem determinação moral alguma" (M/A § 38).

Por sua vez, o elogio de Rousseau à pureza e à espontaneidade natural do sentimento também precisa ser questionado. A oposição entre o sentimento de compaixão, que nos unifica prescindindo da mediação de razões, e os argumentos, que nos isolam parece desconsiderar um fato: por trás de todo sentimento existe sempre uma aceitação não reflexiva de um juízo. Por trás do sentimento não se esconde a natureza nua, mas sim juízos que não foram questionados, que foram aceitos como naturais e necessários. "Os sentimentos não são coisas definitivas ou originais; por trás deles estão os juízos e as apreciações que nos foram transmitidas como sentimentos (preferências, antipatias). A inspiração que emana de um sentimento é a neta de um juízo. E muitas vezes de um juízo equivocado! Mas em todos os casos, de um juízo que não é próprio. Ter por guia o sentimento significa obedecer aos avós, e a seus avós mais do que aos deuses que moram em nós: a nossa razão e a nossa experiência" (M/A § 35). O sentimento não prescinde dos julgamentos, mas o substitui pela aceitação sem questionamento daquelas preferências que algumas vezes apreendemos e aceitamos sem crítica alguma. Nietzsche coincide com Rousseau na distinção entre o sentimento e a razão; o primeiro vê a verdade nua da natureza por trás do sentimento, enquanto que o segundo prefere ver a aceitação passiva dessa autoridade que é a força do costume.

Como Hannah Arendt soube mostrar, a esfera de discussão e diálogo, o jogo de perguntar e responder, faz parte desse âmbito da existência que os gregos isolaram como o âmbito do " propriamente humano". Ele define-se por um modo de existir entre iguais, que exige o uso dessas artes que são a dialética e a retórica.

A Polis era esse espaço onde tudo devia ser enunciado, onde a violência podia ser excluída para o exterior de seus muros. "Para o modo de pensar grego, obrigar as pessoas pela força, mandar em lugar de persuadir, eram formas pré-políticas para tratar com pessoas cuja existência estava nas margens da Polis" (Arendt 1, p. 33). Certamente era isto o que permitia aos gregos conviver com formas despóticas de organização, como a escravidão ou o patriarcado. Coexistiam, assim, espaços onde regia a violência muda junto com espaços de diálogo entre iguais, que eram considerados como a esfera do propriamente humano. Escravos, bárbaros e mulheres eram "aneu logou" (sem logos); e claro que isto não significa que eles estivessem "desprovidos da faculdade do discurso, mas sim de uma forma de vida na qual o discurso e só ele tinha sentido, e onde a preocupação primeira entre os cidadãos era falar entre eles" (Arendt 1, p. 44).

Segundo H. Arendt "os filósofos gregos, seja qual for sua posição a respeito da Polis, não duvidaram de que a liberdade se localiza exclusivamente na esfera política, que a necessidade é de maneira

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fundamental um fenômeno pré-político (...) e que a força e a violência se justificam nessa esfera porque são os únicos meios para dominar a necessidade e chegar a ser livres" (Arendt 1, p. 41).Ali está a maior dificuldade em pensar a compaixão dentro da esfera da política. Ela permanece alheia a esse âmbito que é próprio do diálogo entre iguais. Pretende superar uma necessidade que é urgente e imediata. Enfrenta-se com o sofrimento e com a miséria, mas não com o sofrimento singular de determinado indivíduo, com o qual posso me identificar, mas sim com o sofrimento de um grupo, aquele dos chamados "miseráveis".

Assim sendo, quando aquele que vemos sofrer já não é um sujeito individual e próximo, quando os sofredores são o conjunto de um povo chamado também de "pobres", "miseráveis", "homens fracos" e "desgraçados", esse socorro imediato e irrefletido, essa piedade apaixonada, quase inevitavelmente se converterá numa escusa para legitimar o exercício da violência.

Superar esse sofrimento através da compaixão significa excluir o diálogo e a argumentação da cena política e substitui-los pela imediatice da força. Implica também sair do âmbito da liberdade para ingressar no registro da violência, pois essa esfera da liberdade estava signada pela palavra, pelo diálogo entre iguais, um diálogo que nem sempre significava harmônica convivência, mas sim exclusão de formas pré-políticas e mudas de violência.

Para o pensamento de Rousseau, e daqueles que levaram seus ensinamentos para a cena política, era preciso liberar a mais primitiva e natural das paixões humanas dos grilhões que a razão impõe; então poderia lograr-se que essa "repugnância inata em olhar o sofrimento de um semelhante" possa substituir à indiferença reinante. Como já assinalamos, é pela razão que, para Rousseau, o homem se transforma em "egoísta" e perde sua capacidade para "se identificar com o infortunado" (Arendt 3, p. 63). Da perspectiva de Arendt, só se pode concluir que a capacidade de refletir nos isola e nos faz despreocupados em relação aos outros, porque se desconhece que o pensamento político é essencialmente representativo, que é um diálogo sempre mediatizado por "numerosos pontos de vista que tenho presentes em meu espírito , no momento em que avalio uma questão; e, quanto melhor posso imaginar de que modo sentiria se estivesse no lugar desses outros, tanto mais forte será minha capacidade de pensamento representativo (Arendt 2, p. 300). O que caracteriza nosso pensamento é seu caráter discursivo, a possibilidade de deslocar-se de um ponto de vista até outro, passando por pontos de vista diferentes e antagônicos tentando atingir uma generalidade imparcial.

O pensamento, longe de isolar-nos na interioridade do eu, nos obriga a fazer um esforço por integrar posições diversas, por imaginar como atuaríamos no lugar dos outros. Ele estabelece um diálogo com aqueles outros que estão presentes em meu espírito, quando avalio uma questão, embora isso não implique que devamos recorrer ao sentimento de "empatia". Existe uma única condição para esse processo de "formação de uma opinião refletida" que é o desinteresse, a libertação de nossos interesses privados, ou a capacidade de tornar minha posição a mais universal possível.

À diferença do que acontece com o pensamento político, a compaixão nunca pode ir para além do individual, ela implica nessa capacidade de sentir, na própria pele e no próprio corpo, o sofrimento alheio: "como se fosse alguma coisa contagiosa" (Arendt 3, p. 67). A compaixão caracteriza-se, como foi explicitado a partir de Rousseau, por "uma aversão a qualquer espécie de diálogo conciliatório e argumentativo, onde alguém fala com outro sobre alguma coisa que é de interesse de ambos. Esse interesse no mundo, loquaz e argumentativo, é inteiramente alheio à compaixão, que se dirige unicamente e com veemente intensidade ao próprio homem que sofre" (Arendt 3, p. 70). Ela é sempre e necessariamente um co-sofrimento que não pode ir além do padecimento de um semelhante.

A compaixão apaga as diferenças, elimina o espaço material que separa os homens entre eles, aproxima as pessoas, não pela palavra, mas sim pelos gestos ou pelos silêncios. "Sua força reside na força da própria paixão, que, à diferença da razão, só pode olhar para o particular, pois não possui noção do geral nem capacidade de generalização" (Arendt 3, p. 68). Para que esses gestos e silêncios

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possam resultar significativos é preciso que esse co-sofrimento associe entre si os sujeitos que se reconhecem como semelhantes. Só então, como diz Nietzsche, estaremos frente a uma compaixão legítima, onde não existem relações dissimétricas, onde os vínculos não encontram seu fundamento no desprezo, mas sim na admiração. Essa legitimidade nunca poderá exceder o vínculo que se estabelece entre duas pessoas que se reconhecem mutuamente como iguais em orgulho e dignidade. Mas, nesse preciso momento no qual a compaixão se faz extensiva às relações sociais, nesse momento em que um sentimento privado, às vezes legítimo e outras ilegítimo, ingressa no âmbito do público e se constitui no centro da cena política, ingressaremos, quase que inevitavelmente, na legitimação do exercício da violência.

Assim, para Hannah Arendt só é possível falar de compaixão quando existe esse vínculo imediato a que já fizemos referência. E isso implica, é claro, que fica "eliminado o espaço material entre os homens, onde se localizam os eventos políticos e todo o universo das relações humanas". Poderá afirmar então que "do ponto de vista político a compaixão é irrelevante e sem conseqüências" (Arendt 3, p. 68). E que, se de fato existem conseqüências dessas atitudes compassivas, elas serão inevitavelmente negativas; no momento em que se propõem a assistir e a auxiliar os que sofrem, acabarão por reforçar a coerção e a submissão. Efetivamente, não será a partir da compaixão que podem ser iniciadas modificações reais nas "condições materiais", capazes de aliviar o sofrimento das pessoas. Mas no momento em que se pretende fazê-lo, é inevitável que sejam "eliminados os extenuantes processos de persuasão, negociação e acordo, que são próprios da lei e da política, e que se empreste a voz ao próprio sofrimento, que clama por ação direta e rápida, isto é, ação com os meios da violência" (Arendt 3, p. 79).

Diante disto, podemos dizer que Hannah Arendt parece ter levado os ensinamentos de Nietzsche do domínio da ética para o âmbito da cena e da ação política. Ela parece ter evidenciado os riscos efetivos que decorrem da pretensão de fundamentar a ação política no sentimento de compaixão pelos que sofrem.

Na medida em que a piedade estende ao âmbito do público um sentimento que pertence inicialmente ao privado, se torna indispensável que ela saia da "obscuridade do coração", onde encontrava seu local, e fique exposta ao mundo público. A compaixão que, como vimos, pretendia ser refratária a todos os argumentos e palavras, precisa ser enunciada quando entra no mundo das relações sociais. Mas, assim sendo, a declamação de que cada ato que se realiza está motivado por um sentimento piedoso faz aparecer a suspeita da falsidade, da mentira, e da hipocrisia. Sabemos que, quase inevitavelmente, a enunciação pública da própria bondade é a forma mais usual de ocultar outras "motivações sub-reptícias". Sabemos também que são muitos os sentimentos, entre eles a compaixão, que, na medida em que permanecem ocultos podem ser corretos, mas que deixam de sê-lo no momento preciso em que decidimos comunicá-los publicamente, e então começam a ter aquele gosto desagradável da "hipocrisia".

Declamar nossa bondade, torná-la pública, parece legitimar nosso direito de exigir que os outros reconheçam, também, suas motivações ocultas. Porém todos ficam, assim, sob suspeita: tanto aquele que declara suas motivações bondosas, altruístas e piedosas como aquele que prefere calar-se e reservar suas paixões, sejam elas compassivas ou não, ao silêncio do privado. Como afirma Arendt: "A exigência de que todos anunciem em público suas motivações íntimas transforma todos os atores em hipócritas; no instante em que se inicia a exibição dos motivos, a hipocrisia começa a envenenar as relações humanas. Ademais, o esforço por arrancar o que está obscuro e escondido para a luz do dia só pode resultar numa livre e ruidosa manifestação daqueles atos cuja própria natureza os leva a procurar a proteção da escuridão" (Arendt 3, p. 79).

Outorgar prioridade à monotonia do diálogo entre iguais, sobre a aparente luz do sentimento, nos permite excluir qualquer forma de glorificação da miséria e, conseqüentemente, qualquer interesse sentimental em sua existência. "Por tratar-se de um sentimento, a piedade pode encontrar em si

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própria seu prazer; isso leva, quase que automaticamente, a glorificar sua causa: o sofrimento alheio" (idem, p. 71). Pela própria existência da miséria e do sofrimento, o homem compassivo se reconhece como um benfeitor, e conseqüentemente se pode regozijar com sua bondade caridosa. Assim, e pela lógica perversa da piedade, a miséria e a dor terminam por legitimar a mesma dissimetria de poder que as gerou.

Como vemos, as premissas nietzschianas que possibilitaram a crítica da compaixão parecem ter sido transladadas por Arendt até o âmbito da ação política, deslegitimando-se assim o recurso a políticas e ações benfeitoras que pretendam achar seu fundamento moral ou político na "piedade". Uma vez mais, lembremo-nos de Nietzsche: "A compaixão, por pouca dor que engendre, é uma debilidade, como todo abandono a uma paixão prejudicial. Acrescenta a dor no mundo, se aqui ou ali produz o efeito de diminuir indiretamente alguma dor, não bastam essas conseqüências ocasionais e insignificantes em conjunto, para justificar os casos nos quais ela é perigosa. Se estes últimos casos predominam, poderiam levar o mundo a sua perdição" (M/A § 134).

Iniciamos este trabalho falando dos riscos implicados nesses vínculos singulares que podem ser estabelecidos entre o médico e o paciente onde a compaixão parece ser o fundamento. Assim como foi analisado por Thomas Szasz, entre outros, esse vínculo compassivo parece ser o que garante a existência de relações paternalistas e dissimétricas entre quem assiste e quem é assistido, seja no caso de uma assistência compulsória e não requerida, seja no caso de doenças mentais, adições ou dependências. Sem dúvida Nietzsche parece ser um auxílio inelutável na hora de tematizar esses riscos. Por sua vez, Hannah Arendt nos fala dos perigos involucrados nas estratégias e ações político-assistenciais que pretendem justificar-se por uma generalização desse sentimento singular e privado de compaixão para o universo dos que sofrem; neste caso a compaixão dará lugar à piedade, que é considerada por Arendt como a universalização dessa paixão privada. Essa crítica arendtiana recupera as observações que Nietzsche dirige à compaixão. Nos dois casos, na assistência individual e na assistência coletiva, a compaixão parece ser um instrumento eficaz para reforçar e reproduzir as dissimetrias.

Porém, não podemos concluir este trabalho sem fazer referência a um fato. Se nos perguntarmos qual é o uso que a medicina e a assistência poderiam vir a fazer do pensamento nietzschiano, é provável que nos defrontemos com duas críticas que convergem. De um lado aquela crítica à compaixão que já revisamos e, de outro, a crítica a uma idéia que ainda hoje está muito difundida entre leigos e profissionais da saúde: a suposição de que a doença é de algum modo um efeito de nossas atitudes, condutas e temores ou, dito de outro modo, a associação que ainda existe entre doença e culpabilidade. Trata-se de duas teses que podem ser pensadas como complementares, pois as duas são decorrentes do questionamento nietzschiano ao "ideal ascético", ideal que está a serviço de uma finalidade que não parece ser outra mais do que: "a exaltação do sentimento" (GM/GM III § 20).

Nietzsche dirá que a origem do vínculo entre a doença e a culpabilidade deve ser procurada no ascetismo cristão, no sentimento de compaixão pelos que sofrem. "O homem doente, indeciso e turbado, ignorante de razões e de causas, procurando nelas seu consolo, concluiu por se entender com alguém que compreenda essas coisas e o sacerdote ascético deu-lhe a primeira indicação da "causa" de seu mal; fez com que ele procurasse essa causa nele próprio, nalguma falta cometida no passado, fez com que ele interpretarsse a sua dor como um castigo" (GM/GM III § 20).

A tese da compaixão e o argumento da culpabilidade parecem ser complementares. Acontece que aquele sentimento de comiseração do qual nos falava Rousseau, aquele sentimento imediato, que prescinde de argumentos e razões para poder sentir a dor alheia em nosso próprio corpo, parece ser insuficiente na hora de procurar as causas dessa dor. Então o sentimento de compaixão deverá ter como aliado um outro sentimento que nos permite olhar para as causas, um sentimento que, como a compaixão, prescinde de argumentos e razões e os substitui por explicações mágicas e místicas que nos falam de "culpas" e de "castigos". Hoje, mais uma vez, poderíamos repetir a pergunta de

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Nietzsche: "Quem ousaria pretender que essa exaltação do sentimento tenha sido útil para o doente?" (GM/GM III § 20).

Tudo parece indicar, pelo contrário, que nesse jogo de dissimetrias a maior utilidade é para o próprio benfeitor. Pois, pela patética lógica da compaixão e da culpabilidade, a miséria e o sofrimento deixam de ser obstáculos que devem ser superados tecnicamente para se converter em uma realidade triste, que devemos tolerar. Em virtude de sua existência, o compassivo pode se reconhecer como um sujeito benfeitor, e se regozijar no prazer que decorre de sua bondade filantrópica e caridosa. Bondade que será ainda maior se pensamos que a dor e o sofrimento se convertem num signo de culpas que devem ser pagas ou de castigos que devem ser assumidos pelos que sofrem, se pensamos que a cura e a assistência prodigada pelos benfeitores resulta ser também uma forma de redenção e de salvação.

Referências Bibliográficas

1. ARENDT, H. La condicion humana. Mexico: Siglo XXI, 1993. 2. _______. "Verdade e política" em Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1992. 3. _______. A revolução. São Paulo: Atica, 1990. 4. ARISTÓTELES. Ética a Nicómaco. Buenos Aires: Aguilar, 1980. 5. HIMMELFARB, G. La idea de la pobreza. Mexico: FCE, 1986. 6. NIETZSCHE, F. La gaya ciencia. Madrid: Sarpe, 1984. 7. _______. Aurora. México: EMU, 1978. 8. _______. Genealogía de la moral. Valencia: Ed. Sempere, 1920. 9. ROUSSEAU, J.J. Discurso sobre el origen de la desigualdad entre los hombres. Buenos Aires: Hispamérica, 1984. 10. SZASZ, T. Cruel compaixão. Campinas: Papirus. 1994.

3 - Rorty, Nietzsche e a democracia Paulo Ghiraldelli Jr.

Professor de Filosofia Contemporânea na UNESP-Marília

Rorty, Nietzsche and democraciaAbstract: The aim of this article is to show the deflacionary theory of truth as a link between Nietzsche and the Rorty's utopian dream. Key-words: deflacionary theory of truth - democracy - pragmatism - contingency

Resumo: O objetivo deste artigo é mostrar a teoria deflacionária da verdade como elo entre Nietzsche e o sonho utópico de Rorty.

Palavras-chave: teorias deflacionárias da verdade - pragmatismo - democracia - contingência - metáfora

I

Gilles Deleuze escreveu certa vez que enquanto os europeus possuem um "senso inato da totalidade orgânica" e, então, devem adquirir o "senso do fragmento", os americanos, habitantes de um país feito de Estados federados e de diversos povos imigrantes, ao contrário, têm um senso natural do fragmento e o que devem conquistar é o sentimento da totalidade, da bela composição.

Se quiséssemos levar adiante este pensamento, talvez pudéssemos dizer que, para servir de contrapeso ao que lhes é inato, os europeus deveriam ler Nietzsche, e os americanos, Hegel. Ora, que os americanos leram seriamente Hegel não há dúvida. O sistema de John Dewey, por exemplo, pode ser visto como um hegelianismo naturalizado, darwinizado - a busca do sentimento de totalidade, mas em

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um plano não-metafísico. Todavia, por outro lado, os americanos também leram Nietzsche, o que nos sugere que tenham realimentado aquilo que, na conta de Deleuze, lhes é inato. Poderíamos então ficar com a impressão de que tivemos uma experiência com resultado zero: a leitura de Nietzsche teria devolvido os americanos ao seu ponto original.

Mas é claro que não foi isso que aconteceu. Tanto entre o final do século XIX e início do XX, com os pragmatistas, como agora no término do século, com o neopragmatismo, os americanos sempre fizeram questão de operar Nietzsche, arrancando órgãos e desviando o fluxo sangüíneo, de modo a reconstruir um corpo segundo o seu interesse. De todas essas manobras, a que eu acho mais curiosa é a levada adiante por Richard Rorty.

A pergunta que nos vem à mente quando escutamos Rorty falar bem de Nietzsche é a seguinte: o que este pensador tão profundamente ligado aos valores democráticos quer com Nietzsche? Ou: o que este nova-iorquino filho de pais socialistas e discípulo de John Dewey quer com um pensador decididamente desdenhoso em relação às formas modernas e igualitárias de convívio social?

Dado que esta pergunta é de ordem política, poder-se-ia acreditar que o mais óbvio é procurar sua resposta percorrendo os textos de filosofia política do norte-americano. No entanto, este é um caminho que julgo pouco frutífero. Democracia & Nietzsche, em Rorty, é uma associação que deve ser procurada a partir do que um dos pioneiros do pragmatismo, William James, considerava o núcleo desta doutrina: a discussão sobre a verdade - exatamente a discussão, adianto, que Rorty quer ver ultrapassada.

Assim, no que se segue vou fazer três coisas. Primeiro, vou expor de modo breve o que Rorty pensa atualmente sobre a verdade. Segundo, vou localizar onde e como ele se encontra com Nietzsche neste assunto. E, por fim, vou aludir à maneira que, sob a luz de Nietzsche, Rorty lê Donald Davidson para retirar daí um entendimento sobre a linguagem afinado com os seus anseios democráticos, contrários a Nietzsche.

II

Entre as várias precauções que devemos tomar ao iniciarmos a leitura de Rorty, uma parece essencial. Devemos distinguir o que é que pode ser dito em geral dos pragmatistas pioneiros, como C. S. Peirce, W. James e J. Dewey, e o que ele próprio diz desses filósofos. Rorty se orgulha da filosofia americana na sua tradição pragmatista, e quer mantê-la, além de unificada, voltada para o que entende ser a tarefa dessa tradição na construção do futuro: colaborar com uma sociedade utópica centrada na liberdade e não na Verdade. Daí ele escolher, nos filósofos que nomeia de pragmatistas, as posições que favorecem a diluição das diferenças mútuas, afinando-os todos com o seu projeto. Por isso, aqui, no que se refere à questão da verdade, não vou colocar os pragmatistas pioneiros junto com Rorty, como ele gostaria.(1)

Seguindo fins didáticos, divido as teorias da verdade em dois grupos. De um lado, as posturas que substantivam a verdade, a saber, as teorias correspondentista, coerentista e pragmatista, de outro lado, em termos gerais, a teoria deflacionista. Se Rorty simpatiza com a teoria coerentista e com a pragmatista, ele o faz de um modo muito peculiar, pois, a meu ver, as utiliza como ante-sala do deflacionismo, com o qual ele quer se identificar.

As teorias que substantivam a verdade, o fazem considerando-a como uma propriedade importante dos elementos tidos como primariamente depositários da verdade (sentenças e/ou declarações e/ou proposições e/ou crenças). As teorias que deflacionam a verdade, ao contrário, advogam que afirmar uma proposição p é equivalente a afirmar que p é verdadeira. Elas entendem que o predicado "é verdadeiro" é dispensável, só se mantendo por razões de economia de expressão e/ou porque cumpre uma função performativa no sentido de ajudar os falantes a expressarem concordância mútua. "P é

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verdadeira" não teria uso explicativo.

Recordo aqui, rapidamente, as três teorias que substantivam a verdade e, após isso, elenco os argumentos de Rorty pelos quais ele, segundo o que entendo, parece melhor situado entre os deflacionistas.

A teoria correspondentista da verdade é aquela que advoga que um candidato à verdade é dito verdadeiro quando ele "corresponde aos fatos". Os críticos dessa teoria dizem, entre outras coisas, que a sua noção de "fato" só pode ser explicada nos termos da sua noção de verdade, dado que, para ela, um fato é o correspondente no mundo de uma sentença ou proposição verdadeira. Sendo assim, a teoria correspondentista conteria um círculo vicioso.

A teoria coerentista, seguindo os críticos do correspondentismo, entende que não pode haver uma relação entre elementos - lingüísticos ou mentais - depositários da verdade e elementos não depositários da verdade, como os fatos. Advoga então que a verdade consiste na relação, digamos, interna, entre os elementos depositários da verdade - a relação entre as crenças de um mesmo indivíduo ou as crenças de uma mesma comunidade. Os críticos dessa teoria, entre outras coisas, dizem que ela conduz a um insustentável relativismo.

A teoria pragmatista, diante dos impasses das duas primeiras, sugere uma mudança de foco. Os pragmatistas pioneiros acreditam que clareiam as coisas ao dizerem que a verdade e quaisquer outros conceitos podem ser melhor entendidos se considerarmos seriamente a prática, as alterações na prática. Cada um dos pragmatistas pioneiros fornece um modo de clarear a noção de verdade. Peirce define a verdade como o resultado último da investigação levada a cabo por uma comunidade de investigadores, um resultado de hábitos de ação instalados e acordados. James diz que as crenças verdadeiras tornam as relações humanas mais consistentes, estáveis e contínuas. Dewey, por sua vez, vê a verdade como a solução de um problema - afirmação assegurada, comprovada.

Rorty tende a ver os pragmatistas como antagonistas dos correspondentistas. Eles alimentariam a "atmosfera reducionista", na qual ele próprio se vê inserido. Ele os lê como pessoas menos interessadas em dizer algo sobre a natureza da verdade e mais como pessoas que querem apontar para os procedimentos justificatórios que se erguem quando estamos envolvidos com o "é verdadeiro" e o "não é verdadeiro". Pois Rorty entende que, quanto a crenças, a avaliação da verdade e a avaliação da justificação são a mesma coisa. Entende que, se alguém tem uma dúvida concreta, específica sobre se uma crença sua é verdadeira, tal dúvida só pode ser resolvida perguntando se tal crença está adequadamente justificada.

No entanto, Rorty sabe que, contra isso, há um uso da expressão "é verdadeiro" que cria problemas. Trata-se do seguinte: "a crença X está plenamente justificada, porém não é verdadeira". Rorty tende a dizer que este "não é verdadeira" do final da frase, mostra a palavra verdadeiro sendo usada de um modo que, se à primeira vista pode parecer explicativo, não o é. A força de tal expressão estaria no uso preventivo da palavra verdadeiro. Este uso da palavra verdadeiro, um uso não explicativo, não diferiria em espécie dos outros usos possíveis - o uso disquotational e o uso recomendativo(2). A frase citada nada explicaria, mas atuaria, sim, negativamente. Sua tarefa seria a de indicar a existência efetiva ou possível de uma audiência, digamos, melhor informada ou mais imaginativa, para a qual a tal crença X que parece plenamente justificada, ainda não está aceitavelmente justificada. E este é um processo infinito, diz Rorty, pois "se houvesse limites de justificação, eles seriam limites da linguagem, mas a linguagem (como a imaginação) não tem limites" (Rorty 6, pp. 281-87).

III

Pretendo ter mostrado até aqui que o neopragmatismo de Rorty implica em uma abordagem pragmático-deflacionista da verdade. Por isso, digo que não são propriamente as passagens

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pragmatistas de Nietzsche, em um sentido clássico, que Rorty mais gosta, mas sim as passagens pragmático-deflacionistas.

Uma das passagens que o entusiasma é aquela de "Verdade e mentira em um sentido extra-moral" na qual Nietzsche diz que a verdade é 'um exército móvel de metáforas, metonímias e antropomorfismos - em resumo uma soma de relações humanas, que foram alteradas, transpostas e embelezadas poética e retoricamente e que, depois de um longo tempo, parecem firmes, canônicas e obrigatórias para um povo' (Rorty 8, p. 32). O entusiasmo por esta passagem, a meu ver, é que, estabelecendo a verdade como metáfora, isto é, como o que por definição não pode corresponder representativa e adequadamente ao fato, tal trecho nos leva à indistinção entre o falso e o verdadeiro no sentido tradicional, o que no limite nos empurra ao abandono de uma distinção. Descartada a distinção falso-verdadeiro, altera-se a distinção literal-metafórico. Rorty pode então, inspirado em Nietzsche-Davidson, advogar a idéia de que os jogos de linguagem não são um meio - de representação ou de expressão - que ligam sujeito e objeto, como no modelo epistemológico tradicional. Seriam, sim, conjuntos de instrumentos, todos renováveis e aposentáveis, com os quais lidamos com o meio circundante, principalmente no sentido de controle e previsão. O metafórico seriam os ruídos e sinais que lançamos, sem qualquer significado, para provocar o meio circundante ou para reagir a uma provocação dele. O literal seriam as metáforas saboreadas e não cuspidas, aquelas que gradualmente adquiriram um uso habitual, isto é, um lugar familiar em um jogo de linguagem. O literal, neste caso, o que ganhou significado (o que ganhou valor de verdade), é o que está mais à mão e o que é mais conveniente para lidarmos com o meio circundante com mais sucesso.

A concepção rortiana sobre a metáfora e, enfim, sobre a linguagem, coloca esta última no reino da contingência. Uma visão nietzschiana da história da cultura e uma filosofia davidsoniana da linguagem, diz ele, nos leva a ver a linguagem como atualmente vemos e aceitamos a evolução das espécies, "como novas formas de vida constantemente fazendo sucumbir formas velhas - não para realizar um propósito superior, mas às cegas" (Rorty 4, p. 120).

Ao elogiar a idéia da contingência da linguagem e ao advogar uma concepção fortemente historicista-nominalista da cultura, Rorty faz eco à ironia de Nietzsche a Descartes. "Por que sempre a verdade?", pergunta Nietzsche ao filósofo francês, querendo com isso ridicularizar a busca de "conforto metafísico" que estaria na base de uma obsessão pela verdade. No entanto, se para Nietzsche o "conforto metafísico" necessita ser denunciado e ridicularizado porque é um sintoma de fraqueza - o avanço do niilismo que traz em seu leito Descartes como "avô da Revolução Francesa". Para Rorty, ao contrário, a denúncia do "conforto metafísico" é apenas uma forma de elogiar a contingência. E por que elogiá-la? É que a contingência é o elemento próprio à experiência democrática.

A democracia, como forma de organização social moderna que procura articular harmoniosamente a vontade da maioria com o respeito aos direitos das minorias e dos indivíduos, só pode vingar porque nela os vocabulários alternativos, novos, subversivos ou sem sentido, podem vir a ser aceitos e ter a chance de se tornarem instrumentos viáveis para a garantia de direitos ou, melhor, para a ampliação de direitos que protejam os fracos da exploração e humilhação dos fortes. A redescrição do mundo e das pessoas, que os novos vocabulários permitem, levando-nos a falar, pensar e agir diferentemente, não são úteis apenas ao autocrescimento privado, mas também podem colaborar com a imaginação social-democrática (Ghiraldelli Jr. 2).

Assim, inusitadamente, a postura pragmático-deflacionista - comum a Nietzsche e a Rorty - desemboca na idéia da possibilidade da política liberal com forte apelo social - a única política da qual Rorty quer participar (Rorty 5). Se Rorty quer abandonar a Verdade porque desconfia que ela prejudica a liberdade, ele não está pensando somente na liberdade privada mas na liberdade social, na idéia da democracia enquanto sociedade livre na medida em que pode ser uma sociedade justa, na qual todos tenham as mesmas oportunidades de desenvolvimento pessoal (Ghiraldelli Jr. 1).

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O adeus ao "conforto metafísico" e a adoção de um mundo sem ponto arquimediano, a vertigem que sentimos diante da fragmentação de vocabulários, de culturas e de perspectivas, para Rorty, ao contrário de conduzir à desesperança, deve ser entendido como inerente à democracia enquanto experiência que o Ocidente moderno inventou - esta forma de vida que, se vingar plenamente, será, como ele diz, obra nossa e não de qualquer força superior não-humana (Rorty 7). Assim, mutatis mutandis, Deleuze tem razão: nos americanos típicos mesmo Nietzsche pode e deve ser integrado na busca do sentimento da totalidade harmoniosa, da bela composição.

Notas

(1) Rorty não nega as diferenças que existem entre ele e os pragmatistas pioneiros. Alguns autores, no entanto, incomodados com a sua insistência em escrever "nós, pragmatistas", procuram expor detalhadamente tais diferenças. Com esse intuito, Susan Haack construiu um diálogo imaginário entre Rorty e Peirce, principalmente em torno da questão da verdade (Haack 3). (2) Uso recomendativo: "é verdadeiro" é uma expressão que usamos do mesmo modo que usamos "bom!", "certo!", etc. Uso disquotational: situações formuladas segundo o esquema: "A não pode corretamente dizer que B fala a verdade na declaração S a menos que A também possa dizer algo equivalente a S. (Rorty 8, p. 59, pp. 126-50)

Referências Bibliográficas 1. GHIRALDELLI JR., P. "Os americanos estão chegando: desconfiança na verdade e democracia na pensamento filosófico atual". Mimeo. Esse texto foi publicado parcialmente, sob o título "A desconfiança na verdade" no jornal Folha de S. Paulo, caderno Mais!, p. 5, 12 de outubro de 1997. 2. _______. "Para ler Richard Rorty e sua filosofia da educação". In: Filosofia, sociedade e educação, n. 1, 1997. Marília: Pós-Graduação - UNESP. 3. HAACK, S. "'We Pragmatists...'- Peirce and Rorty in conversation. In: Partisan Review. vol. 64, n. 1, 1997. Boston: Boston University. 4. RORTY, R. "The contingency of language". In: GOODMAN, R. B. (org.). Pragmatism - A contemporary reader. Nova York/Londres: Routledge, 1995. 5. _______. "A filosofia e o futuro". Trad. Paulo Ghiraldelli Jr. In: Filosofia, sociedade e educação, n. 1, 1997. Marília: Pós-Graduação - UNESP. 6. _______. "Is truth a goal of enquiry? Davidson vs. Wright". In: The Philosophical Quarterly, v. 45, n. 180, 1995. 7. _______. "Nietzsche, Socrates, and Pragmatism". In: South African Journal of Philosophy, v. 3, n. 10, 1991. 8. _______. Objectivity, relativism, and truth - Philosophical papers. Cambridge: Cambridge University Press, 1991.

4 - O trágico, a moral, o fundamento Miguel Antonio do Nascimento

Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Paraíba

The tragic, the moral, the fundamentalAbstract: It is concerned with an approach about Nietzsche's reflection. Three conceptual points are distinguished. The moral identified as an obstacle against the inconditional afirmation of life; the notion of fundamental taken as the need for the truth in the teleologic sense; and the tragic taken as the inconditional afirmation concept and expressed while eternal return of the same. Key-words: Nietzsche - tragic - moral - fundamental

Resumo: Trata-se de uma abordagem sobre a reflexão de Nietzsche. Três marcos conceituais são destacados. A moral, identificada como obstáculo contra a afirmação incondicional da vida; a noção de fundamento, tomada como a necessidade de verdade no sentido teleológico; e o trágico, tomado como conceito da afirmação incondicional e expresso enquanto eterno retorno do mesmo.

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Palavras-chave: Nietzsche - trágico - moral - fundamento

Quando se lê Nietzsche, a pergunta: "que é a filosofia?" se torna o fato mais interessante. Mas, isso não indica que Nietzsche esteja falando já em defesa da filosofia. Antes, o que se sobressai, com o pensamento de Nietzsche, é o impasse de se ter então que dizer, sempre mais uma vez: o que é a filosofia? Trata-se do próprio significado da filosofia, que volta a ser posto em questão.

Se se aborda Nietzsche em nome e em defesa da filosofia, esta aparece já como necessária. Aparece, por exemplo, como necessidade de ética ou moral; como necessidade do científico; necessidade de um pensar essencial. Mas não parece que Nietzsche defenda a filosofia como tal; ao contrário, trata da filosofia pondo-a sempre em questão. Em suas palavras: "Quem, realmente, nos coloca questões? O que, em nós, aspira realmente à 'verdade'? Por que queremos a 'verdade' e não a 'inverdade', a 'incerteza', a 'inciência'? (JGB/BM § 1). Por isso, a presente abordagem sobre Nietzsche segue também esta outra direção.

No início de sua atividade de pensar, Nietzsche, então ainda filólogo, trata da questão do trágico. Logo em seguida, o trágico não figura mais, propriamente, como a questão da atividade de pensar, ao menos como o faz em O nascimento da tragédia. E, além disso, em relação ao conteúdo daquela obra, onde o problema do trágico é abordado, Nietzsche trata de fazer, mais tarde, uma crítica a si próprio. Mas, é também igualmente verdade que, em Ecce homo, ele trata de demonstrar que, com isso, não pretendia mudar em nada o propósito inicial de seu pensamento. Naquele início de carreira, apenas na aparência podem alguns fatos indicar o contrário disso. No fundo, expressam aquilo que já estava determinado como pensamento. Somente assim é que chega a se referir a um rompimento consigo mesmo. Mas nisto, a importância de conteúdo subjaz no subentendido, no não explicitado. Pois a ruptura vem a significar depois revigoramento do signo do trágico e crítica ao caráter moral da filosofia. Pode-se notar esta espécie de ambivalência em afirmações como a que segue: "O que em mim se decidiu não era uma ruptura com Wagner - eu percebi um total extravio de meu instinto, do qual um desacerto particular, fosse ele Wagner ou a cátedra de Basiléia, era apenas um sinal" (EH/EH, Humano, demasiado humano, § 3).

O que Nietzsche apresenta como autocrítica não parece significar correção de alguma coisa em seu pensamento. É autocrítica apenas ao modo como conduz seu pensar que é sempre o mesmo, seja quando ainda sob a influência de Kant e Schopenhauer, de Wagner, do idealismo ou depois, sob uma motivação estritamente pessoal, cognominada por ele, às vezes, de pensar a marteladas, como é a marca de seu segundo momento. Nietzsche fala de um "extravio", é verdade, mas em referência a um pensamento então descoberto e ainda não levado às últimas conseqüências. Diz, por exemplo: "... a alimentação de meu espírito havia cessado literalmente (...) nada de útil havia mais aprendido..." eu "havia esquecido absurdamente muito", por permanecer "sobre uma tralha de erudição empoeirada" (EH/EH, Humano, demasiado humano, § 3).

Em 1886, Nietzsche dá a entender, no entanto, que sua reflexão se mantém, desde o começo, sob a exigência do trágico, exigência típica da própria atividade de viver. Ele diz: "... há uma vontade de trágico e de pessimismo que é o signo tanto do rigor quanto da força do intelecto (do gosto, do sentimento, da consciência). Com essa vontade no peito, não se teme o temível e problemático que é próprio de toda existência; até mesmo se procura por ele. (...) Essa foi minha perspectiva pessimista desde o começo, uma nova perspectiva (...) Até este instante estou firme nela..." (VM/OS Prefácio § 7). Uma passagem de Além de bem e mal (cf. JGB/BM § 2) pode servir como referência para se mostrar o caráter filosófico desta inquietação sobre o trágico. Nietzsche impõe ao debate filosófico a exigência de exame da procedência genealógica do "verdadeiro", do "simples", do "desinteresse", etc. O aspecto de imprescindível disto deriva do fato de a reflexão filosófica ainda continuar sendo conservação de valor criado, de valor efetivado. Situação que abrange, desde as mais antigas formas e apelos, até a simples idéia de "bom gosto" com que a "razão" se traveste para se impor e dominar.

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Fazer o pensar recair sobre o criar valor, nisto deveria consistir a discussão filosófica. Significa dizer que, embora seja supremo e imprescindível o valor da "verdade" e do "desinteresse", isto não substitui a ação (poder) de criá-los.

A partir deste entendimento, "vontade de engano", "aparência", "egoísmo" e "cobiça", tudo isto vale mais e é "mais fundamental à vida". Resulta que seria preciso tomar por objeto da discussão a possibilidade de que o valor daquelas "primeiras coisas" venha a ser encontrado nas segundas, mesmo sendo isto o que há de mais difícil. Na verdade, elas são "talvez até essencialmente iguais a essas coisas ruins e aparentemente opostas". Enfim, diz Nietzsche: "Talvez! - Mas quem se mostra disposto a ocupar-se de tais perigosos 'talvezes'? Para isto será preciso esperar o advento de uma nova espécie de filósofos, que tenham gosto e pendor diversos, contrários aos daqueles que até agora existiram - precisam ser filósofos do perigoso 'talvez' a todo custo."

No interior de declarações como esta, o trágico figura como o conteúdo da relação entre vida e pensamento. Torna esta o elemento de avaliação primordial. O sentido de trágico passa a ser uma espécie de transcendência em que todo valor criado precisa ser pensado como sendo afirmação e vigor de sua origem, a própria aparência - instintos, afetos, sentimentos. Sem tal entendimento, os conceitos e a cronologia das obras de Nietzsche tomam uma posição secundária na compreeensão e explicitação de sua filosofia. Se Nietzsche se refere a um "extravio", isso nem altera o seu pensamento em relação às obras anteriores, nem evita que continue alterando seu estilo. Deve-se observar, por exemplo, que, sobre o livro O nascimento da tragédia, ao mesmo tempo em que diz: "... marcou e mesmo fascinou, pelo que nele era erro..." (EH/EH, O nascimento da tragédia, § 1), diz também: "só tiveram ouvidos para uma nova fórmula da arte, do propósito, da tarefa de Wagner - por isso não atentaram para o que no fundo o escrito encerrava de valioso" (EH/EH, O nascimento da tragédia, § 1).

É oportuno que se indague sobre o que aí está sendo considerado por ele como "valioso". Nietzsche está a se referir à "compreensão do fenômeno do dionisíaco". E isso abrange desde o modo como os gregos encararam o pessimismo, expresso na tragédia, até o que se exprime depois sob os conceitos de eterno retorno, vontade de potência, além-do-homem, etc. Cada um fala apenas da vida sob seu próprio signo de força.

A partir de Nietzsche percebe-se que o nível mais alto que a filosofia alcança é o de questionar-se sobre o que ela pode ser. Este poder significa poder obter a verdade, experimentando-se até que ponto ela obedece à vontade de verdade. É por isso que se pode afirmar: "desde que Nietzsche tomou consciência de sua condição fatal na filosofia..., pergunta ele sempre de novo o que é a filosofia? Em que consiste sua essência? Qual é, propriamente, sua tarefa?" (Djuric 3, p. 43). Procuro destacar, com isso, o modo como Nietzsche se relaciona com a filosofia. Esta, enquanto tal, não existe senão como a atividade mesma de pensar. Dizendo de outro modo: a atividade de pensar não pode ser algo que exista fora da ação e intimidade dos instintos. Justo por isso, não pode cessar de ser a força e o que determina esses próprios instintos. Nas palavras de Nietzsche, "pensar é apenas a relação desses impulsos entre si..." (JGB/BM § 36). Entretanto, uma coisa - instintos - não se iguala à outra - pensar - pura e simplesmente. Tem-se, então, um problema. Como a questão desta diferença tem sido discutida pela filosofia?

A separação criada pela filosofia entre o domínio do sensível e o domínio do supra-sensível consiste numa formulação desta questão. A relação entre as duas instâncias toma por base a verdade e a necessidade desta última é que a define, propriamente. A verdade é, então, cumplicidade fundamental entre estas duas instâncias. Mas quando se indaga por que pode a verdade ser verdade, isto é, de onde ela surge para, então, justificar o fim, percebe-se que o aspecto complexo disto vai incidir lá na instância de poder dos "impulsos", criadores da relação entre o sensível e o supra-sensível. O significado de questão em filosofia passa a residir, a rigor, naquela instância de poder. Do contrário, a verdade pode parecer significativa em relação ao seu papel de "fundamento verdadeiro" dos

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"impulsos", mas permanece fora destes. Quer dizer: a importância da verdade resulta secundária, pois consiste no valor de verdadeiro já criado e efetivo. O sentido de importância, essência, necessidade, fim, razão, que a verdade adquire, pertence à categoria de valor. É o valor de retitude, conservado como o modo de ver determinado fim. Como não é possível que a força dos "impulsos" se reduza a qualquer uma destas qualidades ou valores, a verdade tem posição secundária enquanto questão filosófica. No momento em que se quer que a verdade tome a posição de fundamento primeiro e sentido de finalidade para todas as coisas, trata-se, então, de um problema moral. A filosofia torna-se radical e incondicionalmente a própria moral.

Para Nietzsche, toda e qualquer exigência de verdade tem se efetivado como princípio teleológico, ou seja, enquanto condicionado à exigência de fim. Enquanto pensamento, isto se apresenta como determinada interpretação do mundo em que este aparece como tendo um sentido, uma finalidade. Esta concepção da realidade dependerá sempre da existência de um supra-sensível e um sensível-aparência, gerando a relação racionalizada de causa e efeito, de verdadeiro e falso, de bem e mal, etc. Nietzsche, no entanto, não crê que o mundo tenha uma finalidade. Por isso, esta pretensão de um sentido verdadeiro do mundo se torna duplamente falsa. Por um lado, impede que o homem assuma o desígnio trágico que é a existência sem um sentido verdadeiro. Por outro lado, torna vã e ilusória a busca de um fim verdadeiro através do conhecimento racional, justificado pela relação entre o sensível e o supra-sensível. É preciso remarcar nisto que o teleológico se efetiva como predominância de valor entre valores. Significa dizer que a consistência de fim é valor conservado como algo efetivo. O atribuir desta atitude à moral advém do fato do significado de fim se encontrar condicionado à conservação de seu valor pela ação prática.

O pensamento, neste caso, se caracteriza como verdade ("necessidade") para leis ("imprescindíveis") do agir retamente. Caracteriza-se pois como base metafísica do fim a que se destina a vida prática. Tem de se caracterizar sob o aspecto de princípio em si, Deus, sujeito, consciência etc. A consistência do fundamento, no entanto, reside, como se vê, no valor que e como a vida prática - os costumes - assegura, conserva. Fim é sempre realização, efetiva finalidade. Por mais que se busque tornar radical a verdade para se alcançar determinado fim, não se conseguirá mais do que apenas assegurá-lo, sempre. Nunca será a sua natureza que, nisto, venha a ser posta em questão. Pois é apenas o método de como conservá-lo - até mesmo quando da renovação e substituição do fim -, que está sendo debatido e posto em discussão. Fiel a isto, o pensamento tende a definir caminhos, leis, normas para a vida atingir seu destino, seu fim.

Se este é o papel que a moral desempenha, e se o teleológico consiste nisto, então a moral se torna o modo mesmo de pensar. Neste sentido, a exigência moral de verdade é que constitui também o que Nietzsche compreende por pensamento metafísico. Pois se identifica com o teleológico. Nietzsche reconhece este poder de abrangência da moral quando diz: "Desde Platão, a filosofia está sob o domínio da moral: também entre seus predecessores, as interpretações morais exercem um papel decisivo (em Anaximandro, a destruição de todas as coisas como castigo pela sua emancipação do ser puro, em Heráclito, a regularidade dos fenômenos como o atestado do caráter moral e legítimo do vir-a-ser no seu conjunto)" (XII, 7(4)). Isto coincide com certa crítica que Aristóteles dirige a Platão, embora não vise ao mesmo objetivo nietzschiano e nem deixe de ser também alvo da crítica de Nietzsche. Aristóteles (Cf. La métaphysique 987a 30 - 987b 10) se refere ao fato de se poder encontrar na consistência do conceito platônico de idéia algo da compreensão socrática da ética. Por um lado, a consistência da instância do sensível, em Platão, teria preservado o teor das "doutrinas de Heráclito". E isto ocorrera associado à familiariadade mantida por Platão com Crátilo que, supõe-se, tenha exagerado no abordar das "doutrinas" de seu mestre, Heráclito. O estado de eterno "fluxo" das coisas sensíveis teria revelado a impossibilidade do conhecimento verdadeiro.

Mas, por outro lado, teria sido também porque Platão se mantivera fiel à "doutrina" socrática, que passara a defender o supra-sensível como a instância do conhecimento verdadeiro. Visando ao universal em "questões éticas", Sócrates secundarizara o mundo enquanto "Natureza" em geral. Teria

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mostrado com isso, porém, que o pensamento pode ser "aplicado" aos conceitos ou "definições". Aristóteles quer indicar que Platão soubera aproveitar isto marcando a exigência de que a "definição comum" entre o supra-sensível e o sensível nunca poderia residir em algo mutável, inconstante. Por isso é que teria vindo a ter a consistência de "idéias". A importância do interesse de Aristóteles não é pequena. Pois ele quer mostrar certa lógica em que a necessidade de princípio verdadeiro entre a 'aparência' e o 'em si' nas coisas prevalece sobre a explicitação descritiva do movimento no qual tudo tem causa primeira e fim. A alegação aristotélica contém o esclarecimento de que a explicitação de que necessita o conceito tem de dizer respeito ao nexo entre as causas que compõem o movimento. Não é suficiente eleger uma das causas, por mais que pareça ser o que há de mais amplo ou total. O sentido de nexo traz a importância de que começo tem de ser dito como o ato típico de ser, como "ser enquanto ser". Platão teria empregado para isto apenas o sentido de "participação". Isto revelaria, em primeiro lugar, que se precisa que causa primeira seja uma unidade essencial acabada - onde todo fim se identifica com o bem - para ser capaz de atrair e condicionar à "participação" tudo o mais. Em segundo lugar, a "participação" mesma não teria sido transformada em questão.

Nietzsche critica a moral, mas querendo atingir, com isso, a filosofia. Se, num determinado momento, define a filosofia como "a busca de tudo o que é estranho e problemático no existir" (EH/EH, Prefácio, § 3) é compreensível que acrescente, imediatamente: "tudo aquilo que foi, até agora, banido por meio da moral" (EH/EH, O nascimento da tragédia, § 3). Isto ocorre não só porque a idéia de fundamento verdadeiro repele o trágico, mas também porque a noção de fim verdadeiro torna a moral aparentemente necessária e muito abrangente. Destaca o fato de que os gregos enfrentaram o pessimismo criando a tragédia. Mais que isso: "Sente-se arrebatado", diz Lou Andreas-Salomé, "ao imaginar que lá possam ter estado os primórdios de um tipo ainda mais elevado de filosofia, que talvez Platão, 'livre do encantamento socrático', houvesse descoberto" (Andreas-Salomé 1, p. 70). Isto significa que uma providência para o dilema típico do jogo de forças dos instintos precisa ser indicado como afirmação e nunca como decadência. A sabedoria para essa afirmação suprema da vida não conseguiu, entretanto, manter-se através da filosofia. Isso se deve ao fato de se ter encaminhado o pensar mediante um modo moral de refletir e de se ter investido no fortalecimento deste.

Na tática utilizada por Nietzsche contra a moral, vemos sempre uma procura pelo significado da filosofia, em vez de falar já em nome desta. Considera filosófico aquilo que consegue acompanhar o jogo de força da vida sob a intenção de afirmá-la mediante o pensamento. A filosofia teria se mostrado incapaz disso, embora aparentemente tenha demonstrado o contrário. Para se manter nesse equívoco, teria ela investido num saber estratégico, em armadilhas e espreitas contra a afirmação trágica. Zaratustra percebe estes dois lados de se tratar o problema do sentido para o real. Ele diz: "É inquietante a existência humana e ainda sempre sem qualquer sentido: um farsante pode torná-la uma fatalidade" (Za/ZA, Prefácio, § 7). Esta afirmação informa o sentido de começo, mas de um começo trágico. Quer dizer: nem há possibilidade de um sentido essencial-ontológico, nem do nada como sentido. Por isso qualquer sentido pode ser, com direito, o sentido da realidade. Ao mesmo tempo, isso significa, por fim, que este direito é falso. Nunca pode existir enquanto a verdade, apesar dessa condição de desequilíbrio próprio e inevitável da existência. Em conseqüência disso, ouvimos depois do próprio Zaratustra o seguinte: "Pensai até o fim os vossos sentidos" (Za/ZA II Nas ilhas bem-aventuradas). Nisso se percebe o caráter do pensar trágico. Ele é o adestramento na afirmação do todo do mundo. A filosofia terá de teorizar um sentido para a vida a partir dessa falta de equilíbrio da existência; a partir dessa verdade que não é verdade alguma nem poderá vir a ser depois.

No entanto, Nietzsche não põe a filosofia, com isso, no ceticismo ou no pessimismo. Requisita para a filosofia uma exigência, em vista da qual ela possa dar conta do caráter trágico do sentido da existência. Em Aurora, mostra ocupar-se da tarefa de livrar a humanidade do "domínio do acaso e do sacerdote", simultaneamente (cf. EH/EH, Aurora, § 2). A gênese dos valores morais é revelada por Nietzsche como um esconderijo em que a filosofia se dissimula. Por isso, se queremos formular uma tese nietzschiana da moral devemos começar dizendo que se trata, necessariamente, de um problema do pensar.

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A moral impera e se moderniza com a ciência. Aí ela ainda nos convence e parece imprescindível. Mas, em relação a isto vale citar esta afirmação de Nietzsche: "'O conhecimento pelo conhecimento' - eis a última armadilha colocada pela moral: é assim que mais uma vez nos enredamos inteiramente nela" (JGB/BM § 64).

Há pelo menos dois aspectos de esclarecimento decorrentes desta afirmação. O primeiro concerne ao equívoco da ciência de ter interpretado o "espírito feliz" de descoberta e invenção como conhecimento "verdadeiro". Teria de ter interpretado isto como vontade de verdade(1). É preciso adiantar que tal acusação não é feita, propriamente, à ciência e sim à filosofia. O erro da ciência, neste caso, consiste apenas em não ter ido além da noção de verdade enquanto rigor metafísico, enquanto imparcialidade supra-sensível, enquanto princípio verdadeiro. Por não a ter transgredido, a ciência teve de substituir a crença trágica própria da vontade de verdade, pela crença moral na verdade "primeira", facultada pela metafísica. Com isto não contribuiu para que a filosofia ultrapassasse sua concepção metafísica da verdade. Em conseqüência disso, também o saber filosófico não pôde propôr à ciência a direção de novos axiomas e pressupostos. A acusação é dirigida, pois, à filosofia no sentido de que a ciência depende de pré-condições: "A rigor, não há ciência 'sem pressupostos'; o pensamento de uma tal coisa é inconcebível..." (GM/GM III § 24). Se o saber filosófico é requisitado pela ciência nestas circunstâncias, como pôde a filosofia, em determinado momento, adotar aquele rigor da ciência para auto-correção? No entanto, o "ideal do homem teórico" - a tentativa da filosofia de tomar-se por aquele conhecimento da "ciência" mesma -, que chega a se fundir com a modernidade, Nietzsche já o encontra em Sócrates (GT/NT § 18). Apesar da potência deste conhecimento, deixa ele claro que, "quem compreende às avessas, quem se dispõe a pôr a filosofia 'em bases estritamente científicas', precisa antes pôr não só a filosofia, mas também a própria verdade de cabeça para baixo" (GM/GM III § 24). Este é o segundo aspecto do esclarecimento.

A discordância nietzschiana em relação ao pensamento moral, chega, finalmente, a um grau de total intransigência. Isto se deve, certamente, à perspectiva de superação da moral. Nietzsche assegura distinção ao trágico em detrimento da pretensão de verdade própria do caráter moral do pensar. Ele diz, nesse sentido, que "a vida não foi inventada pela moral: ela quer engano, ela vive de engano..." (MAI/HHI Prefácio § 1).

Em que consiste este engano trágico próprio da vida? Enquanto "engano" trágico, a vida é, para Nietzsche, vontade de potência. Vontade de potência é, em primeiro lugar, nada de teleológico, nada de fim, causa primeira, nada de fundamento verdadeiro. Na verdade, vontade de potência é apenas o modo como se comporta aquilo que não pode ter finalidade ou sentido. Só que isto é já o próprio mundo em sua totalidade. Entende-se vontade de potência no que se recorre à noção de força. Neste sentido o mundo é força e vida é também força. Mas, o que pode ser força, nesta exigência de trágico? Antes de qualquer outra noção, força não é um determinado tipo de força, nem das várias modalidades de forças explicadas e compreendidas pelas ciências e pelo senso comum. Segundo Nietzsche não há força "física" nem "dinâmica" ou outra força qualquer. Só há força enquanto vontade de potência, isto é, só se pode compreender por isto a já efetivação mesma de toda força. De maneira que se trata apenas de tomar emprestado o signo e compreensão corrente de força para apontar a efetivação de tudo o que ocorre tal como ocorre. No sentido de contrastar com a compreensão lógica e racional, esta efetivação terá de ser sempre somente "engano", "erro", vontade de potência. Conseqüentemente, para dizer o que é o mundo, diz Nietzsche simplesmente: "o mundo é vontade de potência - e nada além disso!". E para definir a condição do homem perante o sentido de sua vida, - o âmbito de ação da filosofia - acrescenta ele: "E também vós próprios sois essa vontade de potência - e nada além disso!" (XI, 38 (12)).

Com isso, vontade de potência tende a ser necessariamente outra coisa que fundamento "verdadeiro". No sentido de força, por exemplo, Nietzsche explica a vontade de potência enquanto certo tipo de "erro". "Erro" aqui quer dizer perspectiva, que, por sua vez, quer exprimir a dinâmica, ou seja, o jogo

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da realização da realidade, que só pode se mostrar como movimento entre aparência e essência ou verdade ou finalidade. Assim, como já está afirmado, pode dar-se sob a condição de aparência e verdade, mas que não é nem uma coisa nem outra; é, sempre, apenas poder para tal realização. Deste modo, verdade e aparência, ou seja, supra-sensível e sensível, tornam-se apenas ilusão e fé. E é somente sob essa diferenciação que vontade de potência, sob o signo de força, pode ser tomada por fundamento.

O que, pois, a partir do fundamento da vontade de potência, pretende ser atividade de pensar, em detrimento do pensamento moral? A resposta é: a repetição do igual, isto é da força mesma. Referindo-se ao eterno retorno diz Nietzsche: "o único medidor de valor", mas não enquanto supra-sensível e sim sob a fórmula de: "'Quanto de verdade suporta e ousa um espírito?'" (XII, 10 (3)). Nesta circunstância, pensar é vontade de potência enquanto "dionisíaco dizer-sim ao mundo, tal como ele é...". Em lugar de escolha e exceção, acolher o devir sem restrição do desdobramento, sua falta de lógica e o seu "eterno retorno absoluto". (Cf. XIII, 10 (3)). O pensar, para continuar consistindo no poder que "suporta e ousa" e quer o expoente máximo de verdade, precisa não sucumbir ao valor efetivo desta última. Como no caso da verdade, todo valor vale pelo exercício de ser criado, exercício de intensificar-se do poder criar. Visto que a realidade é somente jogo de repetição da força limitada que é a vontade de potência (cf. XI, 38 (12)), pensar implica em acolher tudo o que vem-a-ser. Terá de ser, por isso, uma superação trágica, visto ocorrer como afirmação incondicional de todo o vir-a-ser.

Não há sentido em se compreender isto como uma nova moral, como uma ética dionisíaca. Se assim o fosse, ter-se-ia de admitir o já utilizado sentido de moral da tradição, ora criticado. Ter-se-ia de tomar o sentido de moral pelo valor de "verdadeiro" assegurado como valor efetivo. No caso de uma tal ética, o dionisíaco teria de ser sempre apenas valor de "verdadeiro", por mais que fosse incondicional. E, no entanto, ele se destina, de fato, a ser sentido para o agir humano. Não na fórmula da "consciência" mas na da solidão do criador (Cf. Za/ZA I Do caminho do criador). Trata-se da arte de criar valor ou sentido como sendo a arte de pensar. E isto ocorre como exercício da vontade de potência enquanto eterna repetição. Que significa isto? Terá de ser uma força própria, somente comparada a uma "roda que gira por si mesma". Terá de ser um poder, interpretado e compreendido como o sentido, em função do qual "estrelas" e tudo o mais existe e age. Mas sua identidade não é já "ambição", "cobiça" e divagação. Não pode ser o poder de "escapar" de qualquer tipo de adversidade; não há qualquer "direito" e sentido em se "escapar de um jugo".

Terá de ser o poder de obedecer e ser fiel à adversidade, mas nunca na condição de escravo desta. Não pode ser um poder de ser livre do domínio de qualquer ente possível; não há sentido em se ser livre de algum ente ou fato, pois nada é em relação ao ser do criador de valor; a existência de alguma coisa é já e somente a existência do criador; o criador e todas as coisas têm seu ser no vir-a-ser. Tem de ser um poder em que a vontade é uma lei única que determina o que seja bem e o que seja mal, isto é, todo valor; e tem de ser ainda o transgressor da lei e o juiz. Tem de ser o poder de perceber a decadência enquanto a verdade da "consciência", mas não afirmá-la como o óbvio nem o contrário disto. Tem de ser a atitude daquele que não separa entre verdadeiro e falso nem elege um ou o outro como verdade e sentido e então por isso nunca terá razão de afirmar que tudo é "falso". Tem de ser o poder de "desprezar" tudo o que já se tornou valor, a fim de que a força de criar valor seja o único sentido existente e corrente; tem de ser o "desprezo" sobretudo dos valores supremos, a saber, as virtudes (a simplicidade, a santidade, o bem ou bondade, a compaixão e, a mais necessária de todas, a justiça); toda virtude tem de consistir em "desprezar" todo valor, tal como instrui este demônio: " 'Esta vida, assim como tu a vives agora e como a viveste, terás de vivê-la sempre ainda uma vez mais e inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e seqüência... A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez - e tu com ela, poeirinha da poeira!'" (FW/GC § 341).

A crítica nietzschiana à história da filosofia funda-se no sentido de que a verdade não tem sido

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caracterizada como "dionisíaca" ou trágica e sim como esclarecimento moral entre bem e mal, mediante a estrutura de supra-sensível e sensível. Contrapondo-se a isto, Nietzsche procura definir a reflexão filosófica como a "voluntária procura também dos lados execrados e infames da existência" (XII, 10 (3)). O pensamento não pode evitar de ser vontade de potência. A filosofia, diz Nietzsche, "sempre cria o mundo à sua imagem. Não pode ser de outro modo; filosofia é esse impulso tirânico mesmo, a mais espiritual vontade de potência, de 'criação do mundo', de causa prima" (JGB/BM § 9).

A crítica de Nietzsche à moral permite que passemos a ver como a história da filosofia tem se identificado com necessidade, importância, e defesa da própria filosofia. Neste sentido, a atividade de pensar tem se tornado, antes de mais nada, uma estratégia de avaliação e não criação de valor ou sentido, conforme pretende Nietzsche. Não é por brincadeira, por exemplo, que Nietzsche se expressa nos seguintes termos: "Ainda sem considerar o valor de afirmações como 'existe em nós um imperativo categórico', sempre se pode perguntar: o que diz uma tal afirmação sobre aquele que a faz?" (JGB/BM § 187). A moral é uma "interpretação equivocada" (Missdeutung) dos afetos porque implica-os num "fim". Toma-se por imprescindível uma relação estrutural de bem e mal para compreendê-los. Mas tal compreensão ou interpretação é sempre já secundária em relação àquela, relativa à força ou vontade de potência. Lá não é possível o sentido de "categórico".

Sob esta mesma perspectiva é possível destacar como ilustração o fato de Platão, ao mesmo tempo que diz "só Deus sabe se os meus pensamentos são ou não verdadeiros", já encaminha o apelo mesmo da lógica disto, isto é, o valor da necessidade de solução lógico-racional disto para ser o sentido. Embora afirme que somente pela contemplação - ou seja, pelo pensamento - pode-se alcançar a "idéia do Bem", precisa concluir disto, rapidamente, que o Bem "constitui a causa de tudo quanto há de reto e de belo no mundo..." (Platão 6, p. 51)

O próprio Nietzsche confessa, mais tarde, que também cultivou a defesa da necessidade da filosofia, como o seu próprio pensar. Visava a uma "educação" sem precedentes; "um cultivo de si, defesa de si até a dureza, um caminho à grandeza e a tarefas histórico-universais". Por isso, Nietzsche não deixa de acrescentar que tudo isso era algo que nunca vai além do "humano, demasiado humano" (EH/EH, As extemporâneas, § 3).

Estabelece, com isso, um pretenso modo de pensar o começo, a partir do qual a própria metafísica possa ser posta em questão; supõe ter descoberto que nada mais pode se antepor como princípio primeiro, como verdade fundamental. Como diz Fink: "Nietzsche não conhece qualquer ordem hierárquica do existente, não conhece qualquer hierarquização das coisas até uma coisa suprema ou supercoisa (Überding)" (Fink 4, p. 171).

Mas, a importância que o significado de abrangência e limite da metafísica recebe depois, sobretudo com Heidegger, torna este assunto, com efeito, mais complexo. É preciso dizer que nesta abordagem evitou-se, por conveniência, adotar também isto como temática(2).

Notas (1) Encontra-se a compreensão nietzschiana de ciência em bases totalmente diversas das que a noção de "verdadeiro" oferece. Num determinado momento, por exemplo, emprega Nietzsche um novo significado para "objetividade", no que declara: "Há somente um ver perspectivo, somente um 'reconhecer' perspectivo; quanto mais afetos permitirmos deixar falar sobre uma coisa, quanto mais olhos soubermos utilizar para essa coisa, tanto mais completo será nosso 'conceito' dela, nossa 'objetividade'" (GM/GM III § 12). Fica indicado que o espírito científico, no homem, consiste no poder não se enganar. Isto o faz derivar e se manter no combate inerente ao viver. Não consiste, propriamente, já no não engano, no não falso, na "neutralidade científica", no "verdadeiro". (2) Uma tentativa - sem o êxito esperado - de aprofundar a contribuição e crítica de Heidegger a Nietzsche se encontra em uma outra abordagem minha do pensamento de Nietzsche: "A condição do trágico na crítica de Heidegger à metafísica" in Interpretação do trágico em Nietzsche. UFRJ-IFICS,

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1994.

Referências Bibliográficas

1. ANDREAS-SALOMÉ, L. Nietzsche em suas obras. São Paulo: Brasiliense, 1992. 2. ARISTÓTELES. La métaphysique. Tradução de J. Tricot. Paris: J. Vrin, 1953. 3. DJURIC, M. "Philosophie als fröhliche Wissenschaft" In Nietzsches Begriff der Philosophie. Würzburg: Königshausen u. Neumann, 1990, p. 37-52. 4. FINK, E. A filosofia de Nietzsche. Lisboa: Presença, 1983. 5. NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe. Editada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari pela de Gruyter, (dtv) Munique/Berlim/N.York, 1988. 6. PLATÃO. A república - Livro VII. Apresentação e comentários de Bernard Piettre. Tradução de Elza M. Marcelina. Brasília: Universidade de Brasília, 1985.

5 - O Platão de Nietzsche. O Nietzsche de Platão. Osvaldo Giacóia Júnior

Professor do Departamento de Filosofia da UNICAMP

Plato by Nietzsche. Nietzsche by PlatoAbstract: The aim of this article is to compare certain rhetorical devices in Plato and Nietzsche, in order to clarirify central aspects of Nietzsche's project of inverting Platonism. Key-words: Ethics - metaphysics - sophistry - perspectivism - inversion of platonism

Resumo: O objetivo desse trabalho é comparar determinadas figuras retóricas em Platão e Nietzsche, com o propósito de explicitar aspectos essenciais do projeto nietzschiano de inversão do platonismo.

Palavras-chave: ética – metafísica – sofística – perspectivismo – inversão do platonismo

No prefácio a Para além de bem e mal, Nietzsche indica com concisão e clareza exemplares sua oposição à filosofia dogmática em geral e à sua fonte: Platão e o platonismo. Esse prefácio nos fornece, talvez, a mais preciosa chave de leitura para a obra tardia de Nietzsche, a expressão de sua ambição mais ardente: a inversão ou reversão do platonismo, tanto do platonismo vulgar quanto do original. Nos termos de Nietzsche, "o pior, mais duradouro e perigoso de todos os erros até aqui foi um erro de dogmáticos, ou seja, a invenção por Platão de um espírito puro e de um bem em si" (JGB/BM Prefácio). Gostaria de sugerir que justamente essa dupla vertente do erro dogmático de Platão serve também de princípio de organização a Para além de bem e mal, onde Nietzsche procura desconstituir, nas primeiras seções, o erro platônico do puro espírito, da razão pura; ao passo que as seções finais se dedicam à reversão da ética socrático-platônico-cristã do bem-em-si.

Muito se escreveu a respeito desse desígnio fundamental da filosofia de Nietzsche que identifica a transvaloração de todos os valores com o projeto de reversão do platonismo. Meu propósito, no presente trabalho, é menos examinar aquilo que se encontra explícito nessa obstinada oposição de Nietzsche a Platão do que examinar suas sinuosidades e ambigüidades, seus meandros e bastidores; interessa-me menos o Platão de Nietzsche do que, provocativamente formulado, o Nietzsche de Platão, ou seja, gostaria de examinar o como e o quanto Nietzsche se esforça por assumir as intenções

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de Platão em seu próprio terreno, como e quanto certas figuras do pensamento presentes em Nietzsche correspondem, de modo surpreendente, a outras tantas figuras do pensamento de Platão, a ponto de se poder suspeitar de que a tão propalada superação do platonismo é muito menos manifesta do que podem sugerir as fachadas retóricas da filosofia nietzschiana.

Tomemos, pois, alguns pontos que ilustram essa suspeita; comecemos por uma das últimas obras de Nietzsche, pelo Crepúsculo dos ídolos. Ali, na seção dedicada ao ajuste de contas com os antigos, pode-se ler, a respeito de Platão, entre outras coisas, o seguinte: "Em última instância, minha desconfiança com respeito a Platão vai ao fundo: eu o julgo tão extraviado dos instintos fundamentais dos helenos, tão moralizado, tão cristão antecipadamente – ele tem já o conceito 'bom' como conceito supremo – que a propósito do inteiro fenômeno Platão preferiria utilizar, mais que qualquer outra palavra, a dura expressão 'patranha superior' ou, se nos é mais agradável ao ouvido, idealismo. Pagou-se caro por que esse ateniense fosse à escola dos egípcios (– ou dos judeus no Egito?...). Na grande falsidade do Cristianismo Platão é aquela ambigüidade e fascinação chamada o 'ideal', que tornou possível às naturezas mais nobres da antigüidade o mal-entender-se a si mesmas e o pôr o pé na ponte que levava até a 'cruz'... E quanto Platão continua havendo no conceito 'Igreja', na organização, no sistema, na praxis da Igreja! – Minha recreação, minha predileção, minha cura de todo platonismo foi em todo tempo Tucídides" (GD/CI, O que devo aos antigos, § 2).

Fica, portanto, perfeitamente claro, que Nietzsche imputa a Platão a "patranha superior", a farsa do idealismo, essa denegação da crueza bruta da existência que leva a procurar refúgio no ideal, no "verdadeiro mundo". Para Nietzsche, em Tucídides alcança sua expressão perfeita e elevada a cultura realista dos sofistas, "esse inestimável movimento em meio da farsa da moral e do ideal próprio das escolas socráticas que começavam, então, a irromper por todas as partes. A filosofia grega como décadence do instinto grego; Tucídides como a grande soma, a última revelação daquela objetividade forte, rigorosa, dura, que o heleno antigo tinha em seu instinto" (idem). Pensemos aqui no realismo brutal, na crua franqueza por que se pauta a narrativa por Tucídides do famoso diálogo entre os enviados atenienses e os mélios. Para Nietzsche, por conseguinte, os helenos autênticos sentem o platonismo como signo de um perigo fundamental para a vida da polis, na medida em que nele se expressa a tendência da cultura superior a se dissociar da vida ativa, a se divorciar da realidade para se enclausurar nos conventículos dos teóricos especulativos, a aprofundar o fosso entre o homem de ação e o homem de pensamento. Por essa razão, o profundo realismo ático teria que ser hostil à filosofia e a Sócrates-Platão; relativamente ao que Nietzsche denomina as 'naturezas mais fortes da Antigüidade', eles são manifestações da décadence. Aqui ele se orgulha de ter sido pioneiro: "A mim mesmo esta irreverência de pensar que os grandes sábios são tipos decadentes se me ocorreu pela primeira vez justamente em um caso em que a ela se opõe, do modo mais enérgico, o preconceito douto e indouto: eu me dei conta de que Sócrates e Platão são sintomas de declínio, instrumentos da dissolução grega, pseudo-gregos, anti-gregos" (GD/CI, O problema de Sócrates, § 2) Por essa razão, Tucídides – a expressão e a somatória do autêntico realismo helênico – simboliza para Nietzsche a pedra de toque do gosto anti-platônico. Tucídides e, modernamente, Maquiavel.

Ora, com essa indicação nos aproximamos de um outro aspecto fundamental: até que ponto esse realismo duro e forte personificado em Tucídides e em Maquiavel não fornecem o modelo de uma das principais personagens da filosofia de Nietzsche, qual seja a figura do senhor, do aristocrático, daquele que é, por natureza, forte, poderoso, distinto do rebanho, superior a ele e, por direito natural, o seu senhor : "Utilizei a palavra 'Estado': já se entende a quem me refiro – uma horda qualquer de fúlvios animais de rapina, uma raça de conquistadores e senhores que, organizados para a guerra e dotados da força de organizar, coloca em escrúpulo algum suas terríveis garras sobre uma população talvez tremendamente superior em número, mas todavia informe e errante. Assim é, com efeito, como se inicia na terra o 'Estado': penso que fica assim refutada aquela fantasia que o fazia começar com um 'contrato'. Quem pode mandar, quem por natureza é 'senhor', quem aparece despótico em obras e gestos – que tem ele a ver com contratos! Com tais seres não se conta, chegam como o destino, sem motivo, razão, consideração, pretexto, existem como existe o raio, demasiado terríveis, demasiado

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súbitos, demasiado convincentes, demasiado 'distintos' para ser sequer odiados" (GM/GM II § 17).

A esse aspecto se liga um outro, não menos importante e significativo: do mesmo modo como o 'contrato' não pode ser pensado como fonte e origem do 'Estado', também os homens não são iguais por natureza: há de um lado os fortes por natureza, os senhores e dominadores e, de outro lado, os fracos, as populações tremendamente superiores em número, o rebanho desprovido de uma organização guerreira: em termos de provocação cínica, as aves de rapina e os cordeiros. "Que os cordeiros guardem rancor das grandes aves de rapina é algo que não se pode estranhar: só que não há nisso motivo algum para levar a mal que estas lhes arrebatemos cordeirinhos. E quando os cordeirinhos dizem entre si: 'essas aves de rapina são malvadas; e quem é o menos possível uma ave de rapina, antes porém sua antítese, um cordeirinho, não deveria ser bom?; nada há aqui que objetar a esse modo de estabelecer um ideal, exceto que as aves de rapina olharão talvez para baixo com um pouco de zombaria e dirão talvez: 'não estamos zangadas, em absoluto, com esses bons cordeiros, inclusive os amamos: nada há de mais saboroso que um tenro cordeiro'" (GM/GM I § 13)

Negar essa diferença natural no plano das forças, identificar forte e fraco, tanto do ponto de vista do quantum de potência quanto da possibilidade de sua exteriorização, implica em incorrer na lógica própria da impotência que desejaria se persuadir – e também ao forte – que a fortaleza "não seja um querer-dominar, um querer-subjugar, um querer-assenhorar-se, uma sede de inimigos e resistências e de triunfos" (idem), o que, em si, é tão absurdo quanto exigir da debilidade que se exteriorize como fortaleza, pois "um quantum de força é justamente um tal quantum de pulsão, de vontade, de atividade – mais ainda, não é nada mais do que esse mesmo pulsionar, esse mesmo querer, esse mesmo atuar" (ibidem) e só pode parecer de outra forma graças à invenção da moral dos fracos e de seu pressuposto metafísico fundamental: o livre arbítrio. Graças a ele, toda diferença de força se neutraliza na medida comum da impotência, devidamente protegida e assegurada pela vigência de uma lei universal que determina e impõe a igualdade entre todos, de modo que passa a valer como cânone de justiça e moralidade que não é lícito a ninguém ter mais do que o outro.

Escolho de propósito esses textos especialmente estridentes, polêmicos, provocativos, segundo o mote nietzschiano: "será preciso estropiar-lhes os ouvidos para fazê-los ouvir com os olhos?" Eles devem indicar esse efeito buscado por Nietzsche de rude, brutal franqueza, esse pathos no gênero de Tucídides, essa impudente, quase debochada zombaria da pudicícia idealista e de sua "patranha superior". Perguntemo-nos, no entanto: seria isso inverter, subverter, reverter Platão? Ou isso não seria mais que aceitar seu desafio, repeti-lo, retomá-lo, aceder ao convite indisfarçado para segui-lo no seu próprio terreno. A esse respeito, caberia se perguntar se não há, de modo especial no Górgias, um Nietzsche de Platão, ou seja, se essas figuras e conseqüências já não se encontram, em larga medida, tematizadas nas personagens desse diálogo. Consideremos, para começar, uma passagem fundamental do Górgias: "A própria natureza prova, ao contrário, penso eu, que é justo que o mais nobre tenha mais do que aquele que é pior, o mais capaz do que o incapaz. Ela mostra de muitas maneiras que isso se comporta assim, tanto nos demais animais quanto em estados inteiros e gerações de homens: o direito se determina de tal maneira que o melhor domine sobre o pior e tenha mais. Pois de acordo com que direito Xerxes fez guerra a Hellas, ou o pai dele contra os Skitas? E se poderia trazer milhares da mesma espécie. Portanto, eles o fazem conforme a natureza e, por Zeus, também conforme a lei, qual seja aquela da natureza; em verdade, porém, talvez não segundo aquela que nós mesmos arbitrariamente fazemos, que nós, por meio de ensinamento como de encantamento, servilmente inculcamos aos melhores e mais fortes entre nós desde a juventude, como se faz com o leão, ao afirmar-lhes: todos tem que ter o mesmo e justamente isso seria o belo e o justo. Quando, porém, penso eu, alguém com uma natureza efetivamente prestante se torna homem, ele sacode tudo isso, se arranca, quebra e pisoteia todos nossos escritos, charlatanices, ensinamentos e leis anti-naturais, levanta-se, manifestamente como nosso senhor, ele o servo, e precisamente aí resplandece inequivocamente o direito da natureza ... Isso eu o mostro nos feitos de Héracles, que, sem pagamento, mais ou menos assim, pois não a sei de cor, reza a canção, sem ter comprado nem recebido de presente tomou ele os touros de Geryones, como se isso fosse justo por natureza, como se touros e

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toda outra propriedade dos inferiores e piores coubessem àquele que é mais" (483-4).

O mais surpreendente, contudo, quando se trata de aproximar esses tipos e figuras do pensamento, é determinar, nos termos do discurso de Calicles, quem são esses mais fortes e senhores por natureza. Nesse ponto a semelhança com os efeitos nietzschianos mais salientes é inequívoca. Quando Sócrates pergunta a Calicles quem e no que estes seriam os melhores, recebe como resposta: "Mas já o disse: aqueles que, nos negócios do Estado, são conhecedores e corajosos. A eles cabe dominar os Estados e isso justamente é o Direito: que eles, os que dominam, tenham mais do que os outros, os dominados... justamente isso é por natureza o belo e o direito, que eu o diga completamente e sem peias: que aquele que quer viver corretamente tem que deixar crescer seus desejos tanto quanto possível e não constrangê-los; e ser capaz de satisfazê-los, tão grande quanto sejam, por meio de coragem e perspicácia; satisfazer seu desejo para onde quer que ele vá. De tudo isso, penso eu, a maioria não está em condições, razão pela qual censura, por vergonha, tais homens, ocultando a própria impotência e dizem: a incontinência é algo torpe, para – como o disse anteriormente – constranger os homens melhores por natureza; e porque eles próprios não conseguem dar satisfação a seus desejos, então louvam a circunspecção e a justiça, por causa de sua própria covardia. Pois para aqueles que ou já foram originariamente filhos de reis, ou que, por força de sua própria natureza, conseguiram fundar para si um império, uma força e domínio, o que seria mais feio e pior para tais homens do que a circunspecção, se eles – posto que poderiam gozar do bom e que ninguém lhes barra o caminho – instituíssem para si próprios um senhor, qual seja a lei, o palavrório e o juízo da multidão ... Segundo a verdade, Sócrates, que tu afirmas procurar, as coisas se comportam desse modo: opulência, incontinência e generosidade, se elas têm onde se apoiar, são justamente Virtude e Felicidade; tudo o mais, porém, é ornamento, prescrições anti-naturais, palavrório vazio das pessoas e desprovido de valor" (491-2).

Impossível não pensar aqui na célebre e cínica oposição entre cordeiros e aves de rapina; impossível não reconhecer que a instituição da lei, de que fala Calicles, se faz de acordo com os mesmos procedimentos e intenções que animam a lógica da moral do livre arbítrio, como se a retórica nietzschiana da Genealogia da moral reproduzisse o elogio da retórica e da sofística, tal como praticado no Górgias. Tudo se passa como se Nietzsche simplesmente retomasse as posições dos adversários de Sócrates-Platão, seja as posições dos defensores da sofística e da retórica, ou o juízo severo dos antigos atenienses. A esse respeito, mostra-se ilustrativo o comentário de W. Jäger; a respeito do Górgias, afirma o erudito alemão: "Platão faz com que esta hostilidade tão espalhada contra a filosofia ganhe carne e osso na figura de Calicles. Sócrates recorda que 'já antes', num círculo de Atenienses conhecidos, ouviu Calicles discutir a questão de até quando se iria tolerar esta cultura filosófica moderna. O mesmo problema transparece também na oração fúnebre de Péricles, onde este exalta o amor do Estado ateniense pela cultura, mas põe prudentemente certos limites a esse amor, com o que evidentemente procura fazer justiça à oposição, para a qual a desgraça política de Atenas era devida ao seu espírito. Este problema fora suscitado então pela sofística; mas reaparece agora com Sócrates de modo tanto mais premente quanto maior é a clareza com que se vê que este influi na juventude de maneira mais directa que os sofistas, com as suas teorias políticas. Depois da morte de Sócrates e ainda em vida de Platão, vemos representada por Isócrates e seu ideal de cultura esta reação realista contra o suposto divórcio entre a filosofia e a vida ... Todavia, ninguém como o próprio Platão consegue emprestar àquela reacção palavras tão eficazes. Este homem tinha que ter mergulhado bem fundo nos raciocínios dela para a poder pintar com tão convincente realismo, com força tão pujante, como a que põe na figura do Calicles do seu Górgias. Não há dúvida que a Platão se proporcionou ocasião, desde os anos da sua mocidade, de ouvir estas críticas no círculo íntimo dos seus parentes e amigos. Sempre se suspeitou que por trás de Calicles se ocultava uma certa personagem histórica da alta sociedade ateniense daquele tempo. Esta hipótese é muito verossímil e tem até certa probabilidade psicológica" (Jäger 1, p. 620).

Percebe-se aqui que a arraigada hostilidade da antiga nobreza ateniense contra Sócrates e contra a sofística – hostilidade que decorria da percepção de que o divórcio entre o pensamento e a vida

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acarretava a decadência da polis – encontra expressão literária e filosófica, muito antes de Nietzsche, já no próprio Platão. Ao contrário de sua própria convicção, Nietzsche, que como se sabe dedicou a maior parte de seu mais acurado e erudito esforço filológico à exegese dos escritos deixados por Platão, não teria sido o primeiro na história da filosofia a detectar em Sócrates os sinais e sintomas da decadência; teria simplesmente se apropriado de uma problematização genuinamente platônica.

Ora, isso nos oferece ensejo para formular uma questão mais abrangente: O que há efetivamente de anti-Platão em Nietzsche? O que significa inverter, reverter Platão e o platonismo? Que sentido outro pode ter esse empreendimento filosófico que não se limite a uma retomada das posições mais radicais dos adversários de Sócrates nos diálogos de Platão? Tudo se passaria, pois, de tal maneira que Nietzsche, milênios depois, no Standpunkt em que o insere o desenvolvimento da história da filosofia ocidental, ainda insistisse na repetição teimosa (eventualmente mais elaborada do ponto de vista retórico) dos argumentos clássicos da sofística e dos personagens representativos da cultura grega contemporânea a Platão? Seria possível, então, afirmar que as objeções de Nietzsche a Platão já se encontrariam antecipadas e, o que é mais importante, enfrentadas e vencidas por esse último, mais ou menos como se pode afirmar, em certo sentido, da esquerda e da direita hegeliana que algumas de suas objeções foram antecipadas e refletidas pelo próprio Hegel?

Aqui, porém, há que se retornar ao emblemático prefácio de Para além de bem e mal. Que sentido tem a sentença de acordo com a qual o mais duradouro e funesto erro dogmático é o erro platônico do espírito puro e do bem em si? Nietzsche quer dizer com isso que com a crença na razão pura e no bem em si o Sócrates platônico dá origem ao gesto metafísico por excelência, aquele que consiste na instauratio e na consagração, como elementos matriciais do pensamento filosófico ulterior, da oposição 'idealista' entre sensível e supra-sensível, essa divisão fatal que põe fim ao 'realismo' dos antigos helenos, na medida em que implica e supõe uma desqualificação do sensível em proveito do inteligível, do temporal em função do eterno, do verdadeiro mundo em favor do mundo somente aparente, do ser em contraposição ao vir-a-ser. É a isso que Nietzsche denomina renegação e desqualificação da vida, anti-natureza, fuga da realidade. Evidentemente os pares antitéticos real-ilusório; verdadeiro-falso; idealismo-realismo só fazem sentido em mútua referência, de maneira que o discurso nietzschiano, pelo menos desde Para além de bem e mal, se apresenta necessariamente como um contra-discurso anti-platônico. O Sócrates platônico seria, então, o responsável filosófico pelo gesto seminal que, por meio da negação do mundo imanente e da vida, realiza uma espécie de inversão na perspectiva cultural que julga e avalia as relações entre o físico e o metafísico. Em Sócrates se corporifica o desenfreado otimismo especulativo, como fé inabalável na lógica e na dialética, essa hybris de uma razão pura que, guiada pelo 'fio condutor da causalidade' torna-se capaz de penetrar os abismos mais profundos do Ser, não somente para conhecê-los, como também para corrigi-los.

Entretanto, encontramos até mesmo a consciência dessa inversão no Górgias de Platão; Nietzsche, por conseguinte, se limita ainda aqui a repetir uma avaliação de que o próprio Sócrates platônico se vangloria de ter operado. Tratar-se-ia – aqui ainda uma vez mais – de retornar a um estado de coisas anterior a Sócrates e coincidente com o modo retórico-sofístico de teorizar e avaliar? O intento de Nietzsche coincidiria com a tentativa de fazer pender a balança para o lado dos adversários de Sócrates, invertendo o curso do movimento a que este dera origem? Contrapondo-se à descrição por Calicles do ideal de virtude e felicidade como vida opulenta, licenciosa, desenfreada e plena de prazer, Sócrates afirma: "Mas também, com efeito, como tu o descreves, a vida é penosa. Eu, ao menos, não me admiraria se Eurípides tivesse razão quando diz: quem sabe se nossa vida não é apenas uma morte, estar morto, ao contrário, é a vida? Se nós, talvez, de fato estamos mortos? O que também já ouvi alhures, da parte de um dos sábios, a saber que nós agora estaríamos mortos e nossos corpos seriam nossos sepulcros, porém a parte da alma onde estão as inclinações seriam um permanente atrair e repelir para a frente e para trás..." (493).

Aqui se situaria aquele passo, aquela ponte que conduz da Antigüidade ao Cristianismo, de que tratava

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o texto do Crepúsculo dos ídolos: o Sócrates platônico, como figuração da inversão dialética que dá origem à 'farsa idealista do verdadeiro mundo', do mundo metafísico como objeção ao 'mundo real', a este mundo. Talvez possamos encontrar aqui uma indicação para a interpretação do mito que figura no final do Górgias, assim como para a presença de mistérios órficos e dos mitos relativos à vida post-mortem encontrados em Platão. A esse respeito, podemos ler em W. Jäger: "O Górgias desvenda ao nosso olhar uma nova valoração da vida, uma ontologia que radica no conhecimento socrático da essência da alma... Sem um tal ponto de apoio num mundo invisível, a existência do homem que vive e pensa como Sócrates perderia o equilíbrio, pelo menos se for vista pelos olhos de seres limitados ao mundo dos sentidos. A verdade da valoração socrática da vida só se podia compreender se referida a um 'além', tal qual o apontava a linguagem vigorosa e sensível das representações órficas da vida post-mortem: uma morada onde se podia emitir um juízo definitivo acerca do valor e do desvalor, da felicidade e da ruína do Homem, onde a 'própria alma' era julgada pela 'própria alma', sem o invólucro protetor e enganoso da beleza, da posição social, da riqueza e do poder. Este 'juízo', que a imaginação religiosa transpõe para uma segunda vida, situada para além da morte, torna-se para Platão uma verdade superior, quando procura desenvolver até o fim o conceito socrático da personalidade humana como um valor puramente interior, baseado em si próprio" (Jäger 1, p. 640-1).

Eis, pois, onde poderíamos situar os fundamentos da oposição de Nietzsche a Platão e de seu projeto de inverter o platonismo. Inverter seria, então, simplesmente reverter, revalorizar o extremo oposto daquele valorizado pelo Sócrates platônico. Penso ser aqui fundamental distinguir o Nietzsche de fachada de um Nietzsche mais sutil, de intenções filosóficas abissais. Inverter o platonismo não significa, no fundo, retornar à sofística ou ao realismo cru de Tucídides; significa, antes, levá-lo além e acima de si mesmo, superá-lo e transfigurá-lo numa espécie de grandeza, profundidade e elevação cuja virtude não consiste na violência ou na crueldade da dominação física ou política, mas naquilo que se poderia denominar domínio de si, tornar-se senhor de seus próprios demônios. Talvez uma das mais felizes expressões a esse respeito seja a de G. Lebrun: "a doçura do temer", pois o ideal nietzschiano da nobreza e da força, sua verdadeira e suprema inversão do platonismo não se perfaz no tipo brutal da fera loira ou na figura histórica de Cesare Borgia, mas sim como beleza que não mais ataca.

No fundamental, o gesto metafísico do Sócrates platônico importaria em renegar o que é terrível, sombrio, trágico, na existência, enquanto a reversão de Nietzsche procuraria se apropriar e sublimar o caos incandescente dos mais temíveis abismos da alma humana: "admitir muitos estímulos e deixá-los atuar profundamente, muito deixar-se arrastar de lado, quase até o perder-se, sofrer muito e – apesar disso – impor sua direção geral" (Fr. póstumo do verão de 1883, VII 7 (253)); grandeza, fortaleza significa, em última instância, elasticidade, graça, força plástica. Essa a objeção fatal de Zaratustra aos homens sublimes: seu pesado esforço de auto-superação ainda não foi suprassumido na leveza da graça e da beleza: "Hoje vi um sublime, um solene, um penitente do espírito: Oh! Como se riu minha alma de sua feiúra! Guarnecido de feias verdades, seu botim de caça, e com muitos vestidos rotos; também muitos espinhos pendiam dele – mas não vi nenhuma rosa. Ele retornou do combate com animais selvagens: mas, de dentro de sua seriedade, fita-me ainda um animal selvagem, não superado. Domou monstros, resolveu enigmas: mas ainda deveria redimir seus próprios monstros e seus próprios enigmas, em filhos celestes deveria ainda transformá-los. Seu conhecimento não aprendeu, todavia, a sorrir e a não ser ciumento; ainda não se tornou tranqüila na beleza sua caudalosa paixão. Em verdade, não na saciedade deveria calar e submergir sua ânsia: mas na beleza! A graça forma parte da magnanimidade dos magnânimos. Mas cabalmente para o herói o belo lhe resulta, de todas as coisas, a mais difícil. Inconquistável é o belo para toda vontade violenta" (Za/ZA II Dos sublimes).

Nesse mesmo contexto, Nietzsche efetua uma de suas mais desconcertantes e sublimes aproximações entre beleza, poder e clemência. Depois de ter afirmado que o belo é inacessível a toda vontade violenta, Nietzsche acrescenta; "Um pouco mais, um pouco menos (ein Wenig weniger): justamente isso é aqui muito, isso é aqui o mais. Estar de pé com os músculos relaxados e com a vontade desatrelada: isso é, para vós, o mais difícil, oh sublimes! Quando o poder se torna misericordioso

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(gnädig) e vem cá para baixo, no visível: esse vir cá para baixo eu denomino beleza ... Esse é o segredo da alma; só quando a abandonou o herói é que se aproxima, em sonho, o além-do-herói" (ibidem).

Suprassunção da força bruta na beleza que não mais ataca, eis o essencial da inversão a que Nietzsche pretende submeter o Sócrates platônico. E, para Nietzsche, o essencial da violência socrática, que não lhe torna possível, como herói e homem sublime, conquistar a leveza do belo, é justamente sua fixação na perspectiva do juízo e da condenação, do ciúme e do rancor. E com isso tocamos, mais uma vez, precisamente no mito órfico com o qual se encerra o Górgias: depois da morte, despojadas dos enganadores atavios terrenos representados pelos belos corpos, as riquezas, os nobres parentescos, as almas devem ser julgadas apenas por seus feitos e conforme os méritos de suas vidas. "Com efeito, quando mortas, devem ser julgadas. E também o juiz deve estar nu, ser um morto, para contemplar, com a alma nua, a alma nua de cada um, prontamente, quando cada um morrer, desnudado de todo parentesco e depois de ter deixado para trás, sobre a terra, todos aqueles ornamentos, para que seja julgado" (523-4). Tal julgamento, pelo qual se dará cumprimento à ordenação moral do curso do mundo, será proferido sobre o relvado onde duas sendas se bifurcam em fatal encruzilhada: um dos caminhos conduz à ilha dos bem-aventurados, o outro ao Tártaro (cf. ibidem).

Trata-se aqui, sempre ainda, de um juízo final, de recompensa e de punição, de tribunal e de carrasco. Aqui seria indispensável ouvir, ainda uma vez, a palavra radicalmente anti-platônica de Zaratustra: "Não me agrada vossa justiça fria; e de dentro dos olhos de vossos juizes olham-me sempre o carrasco e seu ferro frio." (Za/ZA I Da mordida da serpente). Eis, então, enunciado o estrato mais fundamental do projeto de reversão do platonismo: não o retorno puro e simples ao ideal grego pré-socrático, nem a simples retomada da retórica e da sofística, contra Sócrates e Platão, mas a superação da perspectiva da vingança, do juízo e do carrasco.

Referências Bibliográficas 1. JÄGER, W. Paidéia. Trad. de Artur M. Parreira. São Paulo, Martins Fontes, 1979.2. NIETZSCHE, F. Also sprach Zarathustra. In: Sämtliche Werke, ed. G. Colli/M. Montinari. Kritische Studienausgabe. Berlin/New York/München, de Gruyter/DTV, 1980. Vol. 04.3. _______. Jenseits von Gut und Böse. Id. Vol. 05.4. _______. Zur Genealogie der Moral. Id. Vol. 05.5. _______. Götzendämmerung. Id. Vol. 06.6. _______. Nachgelassene Fragmente (1882-84). Id. Vol 10.7. PLATÃO. Werke. Ed. F. Schleiermacher. Berlin. Akademie Verlag,

6 - O lugar da interpretação Franklin Leopoldo e Silva

Este texto reproduz com pequenas modificações a arguição da Dissertação de Mestrado de Alberto Marcos Onate, "O Crepúsculo do Sujeito em Nietzsche ou Como Abrir-se ao Filosofar sem

Metafísica". Agradeço ao autor e à sua orientadora, Profa. Dra. Scarlett Marton, a oportunidade de tomar conhecimento de um texto cujo caráter instigante está na origem das observações aqui

publicadas.

The place of interpretationAbstract: The reading of Alberto Marcos Onate's MPhil dissertation, "The Twilight of the Subject in Nietzsche", suggests many issues about the Nietzschean conception of interpretation. These issues are related not only to the specific sphere of genealogy, but yield questions about the own possibility of interpreting Nietzsche's philosophy, if for interpretation we mean the elucidation of the philosopher's position, that is, the place of whom thinks the final and original sense of the thought itself. The possibility of thinking that place without putting it in the ambit of metaphysics is the aporia that Nietzsche's interpret should confront. Key-words: metaphysics - fundamental - interpretation

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Resumo: A leitura da Dissertação de Mestrado de Alberto Marcos Onate, "O Crepúsculo do Sujeito em Nietzsche", sugere várias questões acerca da concepção nietzschiana de interpretação. Tais questões não apenas dizem respeito ao quadro específico da genealogia, mas produzem interrogações sobre a própria possibilidade de interpretar a filosofia de Nietzsche, se por interpretação compreendemos a elucidação da posição do filósofo, isto é, do lugar daquele que pensa o sentido último e originário do próprio pensar. A possibilidade de pensar este lugar sem situá-lo no âmbito da metafísica é a aporia que deve enfrentar o intérprete de Nietzsche.

Palavras-chave: metafísica - fundamento - interpretação

Não é fácil fazer história da filosofia depois de Nietzsche. Ele desmistificou a estratégia de aproximação das filosofias através de múltiplos pontos de vista que se complementariam nos vários atos de visar, a partir do exterior, a área da superfície esférica em que acreditamos tocar a linguagem expressiva do pensamento filosófico. Agora sabemos que esta crosta polida, uniforme e regular, nada mais é do que a solidificação de massas fluídas e incandescentes, que ascendem de forma revolta e através de movimentos desordenados, provindas dos infernos da alma e da história. A sonda nietzschiana desceu a estes abismos e demorou-se na visão do caos primordial, tomando o caminho da vertigem como a única via que permite pensar o pensamento como o desdobramento dos ardis da sobrevivência daqueles que desejariam esquecer que a montanha em que habitam oculta o vulcão. Foi por este ato de deixar a camada superficial da solidez conceitual para adentrar profundamente a massa instável das motivações ocultas que Nietzsche nos indicou o que é interpretar. E visto que, neste caso, entrar equivale a sair e encontrar significa perder, a interpretação retira sua força do abismo, em que a profundidade do que se pode ver deriva da ausência do solo que funda o que há para ver. E é por isso que a voz interpretativa, como o som que rebate nas paredes dos abismos, ecoa sem que possamos localizar a origem, já que a ouvimos sempre como exterior a si própria.

Assim, a primeira tarefa daquele que vai em busca da originalidade de Nietzsche é colocar-se desde logo à altura desta radicalidade, abandonando, por princípio, a expectativa de encontrar o princípio da interpretação. A compreensão da genealogia exclui o entendimento de sua gênese, e isto não é paradoxal, pois a crítica genealógica tem precisamente a função de mostrar que todo ponto de partida metafísico é exterior à razão metafísica. Para tanto, é preciso compreender como a crítica de Nietzsche realiza aquilo que os filósofos contemporâneos denominam "la pensée du dehors". Torna-se difícil aceitar, portanto, a tese de Heidegger, para quem Nietzsche seria o último metafísico: aceitar esta tese seria aceitar também que há em Nietzsche um princípio de interpretação, o que faria da crítica uma espécie de prolegômeno a um sistema, ainda que este nunca viesse à luz. Isto significa que devemos compreender a crítica de Nietzsche na sua absoluta radicalidade, a partir da qual ela nos apresentaria a verdadeira raiz da metafísica e o caráter segundo de sua construção teórica, por via do processo genealógico que atingiria as matrizes morais da metafísica. Para exercer esta crítica em toda a sua profundidade, Nietzsche visou a noção central da metafísica moderna: o sujeito. A genealogia das significações nos mostra que as idéias de unidade e fundamento, consubstanciadas no cogito cartesiano, de que o Eu penso kantiano constitui a forma transcendental, correspondem apenas a necessidades inerentes ao modo de sobrevivência do ser humano. A transfiguração de necessidades vitais em conceitos é o motor da metafísica. A partir destas observações, e de outras do mesmo teor, já não seria mais possível concordar com as afirmações heideggerianas acerca do antropomorfismo e do humanismo presentes em Nietzsche, isto é, da permanência deste pensador no interior das exigências fundamentais da metafísica, que ele teria mantido no próprio ato de repensá-las de modo a levá-las ao limite de sua realização histórica.

Concordar com a argumentação acerca da insuficiência da interpretação de Heidegger não nos impede entretanto de observar que a sua leitura nos permite responder a uma questão que é tão incômoda quanto necessária: de onde fala Nietzsche? Como se define a sua posição diante da metafísica? Como estaria constituído em Nietzsche o espaço e a origem de um discurso que realizaria plenamente a idéia

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crítica de dissolução da filosofia e ao mesmo tempo abriria a possibilidade do filosofar sem metafísica? A tese de Heidegger responde a esta questão, ao sustentar que o filósofo substituiu a subjetividade epistêmica de Descartes pela subjetividade voluntarista, transpondo o caráter fundamentante do espírito puro para a noção de vida, de força ou de poder, sem contudo abandonar as coordenadas metafísicas no interior das quais Descartes teria construído a posição do sujeito como fundamento. Nietzsche falaria a partir deste lugar: a subjetividade corporificada das forças plurais que são os impulsos primários.

Se lemos Nietzsche assumindo a absoluta exterioridade da crítica, deixamos de poder responder a essa pergunta porque a própria coerência desta interpretação nos impede de circunscrever qualquer espaço que se pudesse apontar como a origem constituinte do discurso nietzschiano. A consequência, de largo alcance, é que a compreensão da radicalidade da crítica dissolvente que Nietzsche endereça à metafísica - a atribuição de um peso efetivo a esta expressão: crítica dissolvente -, na medida em que significa compreender como e até que ponto Nietzsche põe em questão a metafísica, é, ao mesmo tempo, para o intérprete de Nietzsche, pôr-se em questão como intérprete de Nietzsche. E isto porque a compreensão de um Nietzsche além ou aquém da metafísica, em todo caso exterior a ela, supõe partilhar com o filósofo a significação radical do que seja interpretar. Ora, o que poderíamos até então dizer a partir de nossa ingenuidade interpretativa? Que a elucidação de uma filosofia supõe a compreensão da posição do filósofo diante da filosofia, sobretudo quando se trata de uma filosofia que é mais crítica do que doutrina, ou na qual o que há de doutrina é como que desentranhado da crítica. Mas quando se trata de um filósofo que recusa toda instância originária de interpretação, a interpretação deste filósofo não pode localizá-lo sem cometer infidelidade ao autor que é o seu "objeto". Quando Nietzsche recusou para si a segurança de um solo fundante de interpretação, por entender que todo fundamento é dissimulação, também o recusou de antemão para todos os que viessem a enfrentar o risco de interpretá-lo, pois os proibiu, implicitamente, de configurar a instância a partir da qual ele fala. E assim, da mesma forma que nenhum homem serve de companheiro para Zaratustra, nenhum leitor serve de intérprete para Nietzsche, porque não se pode partilhar o lugar com alguém que não está em lugar algum. Há uma relação entre a violência da crítica e a fragilidade das interpretações metafísicas, violência necessária a partir do momento em que o genealogista descobre que esta fragilidade oculta a dissimulação. Não basta destituir as metafísicas, mostrando a falsidade de suas posições. É preciso mostrar que toda posição metafísica se constrói "em falso", isto é, o seu centro não está ali onde o metafísico pretende. O "caso" Descartes é ilustrativo: o que significa o sujeito senão a medida cartesiana do mundo? O que significa o ponto fixo senão a dissimulação das tensões? O que significa o sistema cartesiano senão a projeção de visões morais? Interessa menos marcar a fragilidade destas interpretações do que indicar que toda interpretação é frágil, e que esta fragilidade é diretamente proporcional à certeza dos seus pressupostos.

Esta suspeita de toda interpretação não pode ser por sua vez interpretada como uma "posição" de denúncia de qualquer posição? O tom polêmico do filósofo do martelo talvez permita tal suposição. Em todo caso não se trata de uma denúncia com propósito restaurador, o que seria uma outra forma de moralismo metafísico. Seria possível notar na linguagem da crítica a metalinguagem da denúncia, indicativa assim da posição exterior, mas, por isto mesmo, da posição daquele que fala? Seria esta uma outra maneira de Nietzsche assumir os privilégios interpretativos que nega aos outros? Questões de difícil resposta; a construção delas, no entanto, talvez indique que se trata antes de um problema de linguagem. Aquele que fala a partir de lugar nenhum faz forçosamente a experiência dos limites da linguagem e das possibilidades de enunciação. O abandono da cristalização conceitual dos sistemas de verdades lança a fala num redemoinho da linguagem, em que as possibilidades do dizer giram vertiginosamente sobre si mesmas. Poderíamos denominar esta errância desesperada de "posição"?

O resultado da genealogia - a desmistificação dos sistemas de verdades - abre o espaço da interpretação infinita, de que fala Foucault. A partir de então, só é possível encontrar-se e encontrar por via da experiência da perda. Mas se assumimos que a interpretação infinita significa que tudo fica por dizer após se ter dito tudo que se podia dizer, a própria interpretação perde a referência do ato que

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a instaura. Só há interpretação, não há interpretantes, nem mesmo na instantaneidade de um cogito solitário e sem Deus. Isto torna difícil a posição do intérprete de Nietzsche. Ao menos permite que se atente para um dos mais admiráveis aspectos do pensamento de Nietzsche: ter ele armado um dispositivo, que funciona como armadilha, uma espécie de prolegômeno perverso a quem quer que queira constituir-se como seu intérprete. Compreender Nietzsche é fazer a descrição desta armadilha, mostrando a radicalidade absoluta de uma pura crítica da razão - o trabalho do martelo que, contrariamente ao do deus forjador ou formador, aniquila toda forma, mostrando a gratuidade das construções instrumentais e revelando a origem obscura das formações culturais.

Ao assumir a relatividade de qualquer instância fundadora, e ao mostrar que os princípios fundantes estão submetidos à vontade de unidade, vontade de identidade, vontade de estabilidade - enfim, vontade de verdade como mecanismo de dissimulação do devir e mascaramento das forças em tensão, Nietzsche põe à mostra o caráter de pobreza vital do sistema de verdades, que se torna então conjunto dos dogmas e ilusões voluntárias necessário à sobrevivência do fraco. Esta descoberta é que permite relacionar a crítica da vontade de verdade com a afirmação da vontade de poder. O caminho genealógico vai portanto da negação à afirmação: da constatação da vontade negadora da força à constatação de que mesmo esta vontade é, ainda, a positividade do querer. A genealogia do empreendimento cartesiano parte da suspeita do significado da negação do corpo como gênese do sujeito na sua pureza substancial, na autonomia do pensamento. Isto significa que o Descartes real, isto é, a significação cartesiana e o seu lugar na história, somente se tornam visíveis e legíveis quando a genealogia atribui a Descartes a posição moral que permite sua interpretação do homem e do mundo. Mas a visão ou a descoberta desta posição, por via do radicalismo crítico, não pode ser ela mesma uma posição, pois se o fosse mal poderíamos distinguir aquele que critica daquele que é criticado. Interpretação universal significa que só há o jogo perspectivo. Poderíamos dizer, torcendo um pouco o termo de Foucault, que é possível jogar e problematizar o jogo? A vontade de verdade pode tornar-se problema ao tornar-se consciente dela mesma? E Nietzsche, além da metafísica, seria o pensador em quem a vontade de verdade "tomou consciência dela mesma, enquanto problema"?

A história da metafísica problematizada torna-se a história dos sentidos, não dos fatos, porque os fatos são posteriores aos sentidos. E por isto a história da metafísica torna-se uma tarefa do psicólogo, que é também semiólogo, isto é, vai em busca das origens, mas sempre para encontrar na origem a ficção da origem. É esta a única possibilidade de travessia histórico-genealógica das ilusões subjetivas que se colocam como âncoras dos sistemas de verdades. Encontrar na origem a ficção da origem significa que, tendo a vontade de verdade se tornado um problema, nunca mais a consciência da verdade deixará de ser um problema, isto é, um movimento interpretativo que não pode ter fim. Um suceder de meios sem qualquer horizonte de finalidade, o jogo inacabável. O contra-lugar do lugar dos "artigos de fé". No entanto, a interpretação das interpretações não é o lugar do observador: o complexo de Argus, como todo complexo, revela sua gênese ao ser, por sua vez, interpretado. Prospecção, regressão, percurso infinito, dificuldades que de forma alguma nos isentam do trabalho de ler e interpretar, principalmente quando percebemos que interpretar não significa formar sistema, mas compartilhar aporias.

7 - Nietzsche, Sócrates e o pragmatismo Richard Rorty

Publicado originalmente no South African Journal of Philosophy, n. 10 v. 3, 1991 Traduzido por Paulo Ghiraldelli Jr.

Todas as citações dos textos de Nietzsche foram vertidas do inglês, conforme tradução do alemão feita por Rorty.

Nietzsche, Socrates and pragmatismAbstract: Nietzsche's views of truth and knowledge are often trought to be incompatible with political liberalism. But these views are pretty much the same as those of William James and John Dewey, who were right to see no such incompatibility. The pragmatists, like Nietzsche, wanted to

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drop the congnitivism which has dominated western intellectual life since Plato, but, unlike Nietzsche, they wished to do so in the interests of an egalitarian society rather than in the interests of a defiant and lonely individualism. Key-words: truth - democracy - pragmatism - contingency

Resumo: As perspectivas de Nietzsche sobre a verdade e o conhecimento são freqüentemente pensadas como incompatíveis com o liberalismo político. Mas essas perspectivas são quase as mesmas que aquelas de William James e John Dewey, que estavam certos de não verem nenhuma incompatibilidade. Os pragmatistas, como Nietzsche, procuraram descartar o cognitivismo que dominou a vida intelectual ocidental desde Platão, mas, diferentemente de Nietzsche, eles desejavam com isso agir no interesse de uma sociedade igualitária, e não no interesse de um individualismo solitário e desafiante.

Palavras-chave: verdade - pragmatismo - democracia - contingência

O trabalho de Johan Degenaar(1) combinou uma afeição à teoria e à prática da política liberal com um entendimento do papel da arte e do mito na criação de nossa própria humanidade, e também com uma apreciação da contribuição de Nietzsche e Derrida ao entendimento deste papel. Políticos liberais que falem bem de Nietzsche são difíceis de encontrar, e é mesmo raro de achar aqueles que não rejeitam Derrida como um "irracionalista", um corruptor da juventude. Filósofos típicos do liberalismo político seguem Kant, traçando uma linha nítida entre moral e estética, entre a obrigação moral e a satisfação artística. As disposições de Nietzsche e de Derrida em borrar esta linha, tanto quanto as linhas entre mito e ciência e entre filosofia e literatura, são vistas pelos políticos liberais como perversas e possivelmente perigosas.

Compartilho da admiração de Degenaar por Nietzsche e Derrida tanto quanto das suas convicções políticas. No que segue quero mostrar como meus próprios heróis filosóficos - William James e John Dewey - ilustram o modo que muitas das críticas de Nietzsche ao "cognitivismo" comum a Platão e a Kant e muito das perspectivas de Heidegger e Derrida sobre a função reveladora da linguagem poética podem ser combinadas com um ponto de vista político liberal.

Alguns de nós, filósofos americanos, nas últimas décadas, temos pensado em Nietzsche como o mais eminente discípulo de Emerson, e como oferecendo uma versão européia do pragmatismo de um outro seu discípulo, William James. Vemos Nietzsche e James concordando que "a época do homem socrático está encerrada" (GT/NT § 20), mas discordando sobre o que deve sucedê-la. Assim é que vemos, também, as diferenças entre o mais eminente discípulo de Nietzsche, Heidegger, e o sucessor de James, John Dewey. Heidegger e Dewey estão juntos nas suas atitudes para com a tradição filosófica que culmina em Kant, mas divergem completamente nas suas percepções das possibilidades que estão abertas a uma cultura pós-socrática, pós-kantiana.

O jovem Nietzsche pensava a alternativa ao homem socrático como o homem que seria capaz de "ver a ciência com os olhos do artista, mas ver a própria arte pela ótica da vida" (GT/NT, Tentativa de autocrítica, § 2). James e Dewey, por contraste, concordavam que a ciência deveria ser vista através da ótica da arte, mas eles procuraram ver a arte através da ótica da esperança social. Eles não compartilharam da desconfiança de Nietzsche em relação aos sentimentos cristãos nem da sua desconfiança em relação à democracia como "cristianidade naturalizada". Assim, a alternativa deles ao socratismo não foi um retorno à percepção trágica da vida. Ao contrário, foi uma visão emersoniana e whitemaniana da democracia, da civilidade igualitária.

James e Nietzsche concordam que é essencial enfrentar o que este último chamou "o problema da própria ciência" (GT/NT § 2). Ambos querem tornar a própria ciência problemática e questionável quanto à sua condição de paradigma da atividade humana, a ciência enquanto o lugar onde a mente humana se defronta com algo diferente e maior que ela própria. Eles insistiram em ver a matemática

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não como Platão a viu, como conhecimento da realidade imaterial, mas como desenvolvimento de um conjunto de ferramentas úteis. Ambos negaram que a física é uma representação acurada do que Locke chamou de "qualidades primárias", ou do que Bernard Willians chama "a realidade enquanto apartada das necessidades e das incertezas humanas". Em vez disso, vêem as ciências naturais simplesmente como um modo de satisfazer desejos humanos, e não como uma tentativa de corresponder à realidade.

Esta renúncia à idéia de que a verdade científica é uma questão de correspondência a uma realidade preexistente é o mais familiar e óbvio exemplo de uma doutrina comum a Nietzsche e aos pragmatistas americanos. Isto foi observado bem cedo, em um livro publicado na França em 1908 chamado Nietzsche, ou le pragmatisme allemand. Foi reenfatizado por Arthur Danto em 1965 com Nietzsche as philosopher, um livro que atribuiu a Nietzsche uma teoria pragmatista da verdade. Porém, alguns últimos comentadores americanos de Nietzsche, notadamente Richard Schacht e Alexander Nehamas, objetaram que Nietzsche deve ter mantido alguma forma de teoria correspondentista da verdade. Seus argumentos estão baseados no fato de que, no começo e no fim, Nietzsche fala da "falsidade como uma condição de vida" (JGB/BM § 4). Em tais passagens, ele sugere um contraste lockeano entre verdade e erro e mentira que necessitamos a fim de viver. Ele contrasta o meramente humano, injustamente, com algo que é inumano, verdadeiro e real.

Tais passagens são, de fato, difíceis de reconciliar com passagens de trabalhos anteriores que soam pragmatistas, como a seguinte: "(...) a questão de qual, entre duas, é a percepção mais exata é inteiramente sem sentido, pois um critério para exatidão da percepção é simplesmente não avaliável para nós. Mais genericamente, a noção de 'percepção exata' - a noção de uma expressão adequada do objeto no sujeito - é uma monstruosidade autocontraditória (widerspruchvolles Unding). Pois nenhuma relação causal, nenhuma relação de 'expressão' ou de 'exatidão' relaciona sujeito e objeto; a relação entre eles é, no máximo, uma relação estética (WL/VM).

As passagens que Schacht e Nehamas enfatizam também contrastam com passagens dos últimos trabalhos, como a seguinte: "Nós eliminamos o mundo verdadeiro. Que mundo restou? Talvez aquele das aparências? Mas não! Com o mundo verdadeiro também eliminamos o mundo aparente" (GD/CI, Como o mundo verdadeiro finalmente tornou-se uma fábula, § 6).

Penso que temos de admitir que há aqui uma contradição entre as passagens em que Nietzsche vê o conhecimento humano como erros úteis para a vida e aquelas que simplesmente deixam de lado toda idéia de verdade como fidelidade a uma realidade antecedente. As últimas são passagens que nos incitam a simplesmente apagar de nossas mente noções tais como "verdade", "erro", "aparência" e "realidade". Essas noções podem ser substituídas por noções tais como "crenças vantajosas para certos propósitos, mas não para outros" e "uma descrição de coisas úteis para certos tipos de pessoas, mas não para outros". Estas são noções completamente pragmáticas, noções que abandonaram inteiramente a metáfora da correspondência.

Não penso que esta contradição é resultado de um mero descuido, nem estou convencido de que ela desaparece gradualmente no desenvolvimento do pensamento de Nietzsche(2). Suspeito que esta contradição força-nos a admitir que Nietzsche nunca foi suficientemente capaz de livrar-se da esperança de que, se alguém pudesse, de alguma maneira, libertar-se de Sócrates, poderia então transcender a condição humana - entrar de algum modo em relação com alguma coisa mais real do que o humano. Como a vejo, esta incapacidade é o último vestígio do que Habermas, no seu The Philosophical Discourse of Modernity, chama "a filosofia da subjetividade" - a tradição que assegura que os seres humanos tem algo profundo dentro deles mesmos, algo como Razão, ou uma vontade de potência, algo que nos coloca em contato com alguma coisa maior do que nós mesmos. Nietzsche foi um grande crítico da idéia de que a finalidade da vida humana é tentar encarnar em alguma coisa

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maior do que o meramente humano, ou filiar-se a tal, mas sua persistente tentativa de ver todas as crenças humanas possíveis como erros e mentiras parece-me mostrar que ele foi incapaz de abafar o desejo de transcender a condição humana. Nisto, ao menos, Heidegger está certo ao ler Nietzsche como mais um metafísico, certo de ver seu pensamento simplesmente como uma inversão do platonismo. Mesmo que alguém possa criticar Heidegger com propriedade por sua leitura altamente seletiva de Nietzsche, deve admitir que há passagens que podem razoavelmente serem lidas como uma metafísica da Vontade de Potência.

Como um bom americano, e como alguém que se pensa como um pragmatista, é claro que sou inclinado a ver o pragmatismo como tendo duplicado todas as melhores coisas de Nietzsche, evitando as contradições, inclusive a não encoberta tentação de erigir uma metafísica. A diferença crucial entre Nietzsche e os pragmatistas americanos, eu penso, é que Nietzsche, tal como Heidegger, viu sua própria aventura pessoal de auto-superação como ligada à história do Ocidente, como tendo uma importância histórica mundial. Nietzsche e Heidegger foram incapazes de resistir em pensar suas próprias realizações como sendo algo que irrompeu em uma claridade, um lugar onde nenhum pensador tinha ainda entrado. James e Dewey, pelo contrário, estavam livres da ambição histórico-mundial para eles mesmos. A única ambição que tinham era para seu país, que viam como o lugar mais provável para uma democracia social igualitária, o lugar mais provável para emergir uma sociedade romântica esperançosa. A única ambição que tinham para o pragmatismo era de que ele fosse de algum uso na construção de uma tal sociedade. Eles não viam a troca de uma teoria da verdade como correspondência por uma teoria pragmatista como uma irrupção através do escuro em direção à luz. Ao contrário, viam-na como um ajustamento retórico menor, algo que podia fazer a vida intelectual de uma sociedade democrática um pouco mais fácil.

A troca dos pragmatistas, deixando a encarnação em alguma coisa maior do que o meramente humano, ou a filiação a tal coisa, e passando para a idéia de expansão da justiça social e da liberdade pode, como sugeri, ser vista como uma alternativa para a tentativa de superar e suplantar o que Nietzsche chamou de o "homem socrático". Sócrates foi, aos olhos de Nietzsche, a figura que sobrecarregou nossa civilização com a idéia de que a finalidade do ser humano era conhecer. Ele era, como Nietzsche escreveu, "(...) o protótipo do otimista teórico, a pessoa diferenciada por sua crença na inteligibilidade da natureza das coisas, e assim pela convicção de que conhecimento e entendimento são uma panacéia, e que o erro é o mal último" (GT/NT).

Nietzsche e os pragmatistas concordam que o conhecimento - a formação de crenças confiáveis - não possui um fim em si mesmo. Tal formação de crença está a serviço dos desejos humanos. As crenças são simplesmente, como disse Peirce, "hábitos de ação", e a formação e a correção de crenças são simplesmente um modo de conseguir o que queremos. O que vemos quando "olhamos para a ciência através da ótica da arte e a arte através da ótica da vida" é a cultura humana, como algo que não aponta para nada maior ou mais nobre do que a felicidade humana.

Mas para os pragmatistas nunca houve uma "ótica" exatamente correspondente ao que Nietzsche chamou "vida". Pois "vida", a noção que torna-se "potência" nos últimos trabalhos de Nietzsche, Dewey substituiu por "crescimento". No vocabulário de Dewey, "crescimento" nada tinha a ver em particular com potência, mas significava alguma coisa como "a capacidade para uma experiência mais rica e mais completa". Esta não é uma capacidade que o ser humano possa exercitar sobre si próprio - independente da sociedade na qual ele vive. Ao contrário, é uma capacidade que se amplia na medida em que se amplia a complexidade do comportamento dos membros da mesma comunidade. Tal como Hegel, Dewey não via um modo de dar um passo para fora da história, realizando o tipo de ruptura dramática com o passado para a qual Nietzsche e o último Heidegger apontaram. Assim, para Dewey, olhar a ciência pela ótica da arte significava olhar a ciência como o fim da criação de uma sociedade que seria ela própria uma obra de arte. Sua visão desta era a de uma sociedade igualitária e pluralista. Era a de uma sociedade na qual a tolerância mútua estaria combinada, em um máximo possível de

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acordo, com uma proliferação sem fim de variedades de estilo de vida e de pensamento.

Essa é, obviamente, uma visão totalmente antinietzschiana. Nietzsche pensava o socratismo como algo ligado ao cristianismo, ao utilitarismo e à democracia. Ele não via nenhuma terceira alternativa, ao menos quando escreveu O nascimento da tragédia, entre a perspectiva trágica que Sócrates suplantou e o "otimismo socrático", e pensava o otimismo como um sintoma de exaustão. Assim, ele pergunta "(...) a despeito de todas as 'idéias modernas' e de todos os preconceitos criados pelo gosto popular, não poderia a vitória do otimismo, o predomínio do razoável, o utilitarismo prático e teórico e mesmo a própria democracia (com a qual todos somos contemporâneos) ser um sintoma de perda de potência, de velhice, de fadiga fisiológica?" (GT/NT, Tentativa de autocrítica, § 4).

Para os pragmatistas, pelo contrário, não há conexão entre a idéia socrático-platônica de que a perfeição humana é uma questão de cognição e o valor da democracia. A única coisa que Dewey e James pensam que temos de abandonar quando renunciamos a esta idéia é o que Nietzsche chamou de "conforto metafísico". Podemos não mais acreditar que algum poder maior está do lado de quem busca o conhecimento. Mas isto não conduz ao pessimismo, a uma percepção trágica, nem ao abandono de noções cristãs e democráticas. Pois a liberdade humana, tomada não em um sentido metafísico mas no sentido político e concreto de capacidade dos seres humanos de viverem juntos sem se oprimirem uns aos outros, ocupa o lugar da Verdade e da Realidade como nossa finalidade. A diferença de tomar a Verdade como um objetivo, com Sócrates, e tomar a Liberdade como um objetivo, com os pragmatistas, é a diferença entre apontar para alguma coisa não-humana e apontar para alguma coisa que, se em algum momento vier a existir, será uma criação inteiramente humana.

O filosofar pragmatista existe com a compreensão de que, nas palavras de Nietzsche, "(...) a ciência, impelida pelas suas próprias poderosas ilusões, avança para os seus limites, limites nos quais o otimismo que está embutido na lógica deve estilhaçar-se" (GT/NT § 15).

O filosofar pragmatista começa com a sugestão de Kant de que a verdade empírica é uma questão de coerência entre nossas representações, ao contrário do que uma correspondência destas representações com o modo que as coisas são em si mesmas. Nietzsche e os pragmatistas americanos avançaram mais além do ponto de Kant, negando sua distinção entre a coisa-em-si e o fenômeno, e então entre o empírico e o transcendental. Isso tornou possível a ambos aliarem-se ao relato naturalista de Darwin dos seres humanos. Também tornou possível a ambos verem a investigação e a cultura como uma continuação do processo de adaptação evolutiva. Uma vez assegurada esta assimilação do biológico e intelectual, o socratismo não é mais possível. Não é mais possível manter uma imagem do conhecimento de tipo sujeito-objeto, e então não é mais possível pensar a cognição humana como alguma coisa que escapa às categorias biológicas. Uma tal concepção darwiniana do conhecimento é o resultado do processo que Nietzsche descreveu como "a volta da lógica sobre si mesma até morder sua própria cauda" (GT/NT § 15).

Uma vez que esta aliança com Darwin está selada, a filosofia perdeu a posição conquistada na cultura dominada pelo otimismo socrático. Pois a posição de regina scientiarum torna-se vaga quando as ciências são simplesmente pensamentos de ajuda à manipulação. Se há áreas da cultura que fixam a que a manipulação deve servir, estas serão agora ou a arte ou a política: atividades de autocriação individual ou social, e não alguma forma de autoconhecimento socrático. Em uma comunidade democrática essas duas áreas dividem responsabilidades. O consenso democrático fixará fins sociais, ao passo que a arte - tomando o termo em um sentido amplo - fixará os fins idiossincráticos dos indivíduos.

A diferença entre essas duas variedades de pós-socratismo - o pensamento americano pós-emersoniano e o pensamento europeu pós-nietzschiano - pode talvez ser melhor expressa como a diferença entre uma tentativa de separar a arte da política e uma tentativa de assimilar as duas. Os

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intelectuais americanos, na tradição de Emerson e James, têm pensado a tarefa de modelar uma sociedade pluralista e igualitária como algo bastante diferente da perseguição da grandeza. O único sentido no qual eles pensam uma sociedade utópica como uma obra de arte é que a pensam como uma criação meramente humana, não modelada por qualquer coisa maior do que o humano. Eles, pode-se dizer, abandonaram a grandeza e a transvaloração de todos os valores. Eles desistiram da retórica apocalíptica e escatológica. Na Europa, por outro lado, a influência de Heidegger, e em particular sua tentativa de ultrapassar Nietzsche, mantiveram viva tal retórica. O trabalho de Degenaar deu-nos uma África do Sul paralela à tentativa dos pragmatistas americanos de fazer igual justiça ao liberalismo democrático e à crítica da tradição kantiana e platônica de Heidegger e Derrida.

Notas (1) Johan Degenaar é professor da Stellenbosch University e autor de Myth & Simbol. (N.T.) (2) Ver, contudo, sobre esta última sugestão, o recente e admirável Nietzsche on truth and philosophy de Maudemarie Clark (Clark 1). Referências Bibliográficas 1. CLARK, M. Nietzsche on truth and philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. 2. NIETZSCHE, F. Beyond good and evil. Middlesex: Penguin, 1974. 3. _______. Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik. In: Werke, vol. 1. Frankfurt: Ullstein, 1979. 4. _______. "Versuch einer Selbstkritik". In: Werke, vol. 1. Frankfurt: Ullstein, 1979. 5. _______. "On truth and lies in a non-moral sense". In: BREAZEALE, D. (ed.). Philosophy and truth: selections from Nietzsches's notebooks of the early 1870's. Nova York: Humanities Press, 1979. 6. _______. Götzen-Dämmerung. In: Werke, vol. 3. Frankfurt: Ullstein, 1979.

8 - Nietzsche e o Ser Social Históricoou Da Utilidade de Nietzsche para os Estudos Históricos

Regina Horta Duarte Professora Adjunta do Departamento de História da FAFICH/UFMG

Nietzsche and the social-historical beingAbstract:This article presents some considerations about different possibilities of understanding Nietzsche's writings. These ideas are based on analysis under a theory of history perspective and ontologic discussions that have been quiding historiography in the last decades. Along these lines several cathegories are dealt with such as specificity, causality, context, process and resistence. Key-words: history – theory of history – new history – Nietzsche

Resumo: O artigo introduz algumas reflexões acerca das possíveis leituras de Nietzsche sob a perspectiva da teoria da história a partir da discussão dos pressupostos ontológicos que têm guiado o trabalho da historiografia das últimas décadas. Nesse caminho, analisam-se categorias como particularidade, causalidade, contexto, processo e resistência.

Palavras-chave: história – ser social histórico – teoria da história – Nietzsche

Para Bárbara,plena de doçura,intensidade e vontadede viver.

Em sua segunda Consideração extemporânea, intitulada Da utilidade e desvantagem da história para a vida, Nietzsche nos incita a contemplar um rebanho: sem diferenciar o hoje e o ontem, ele se movimenta, come, dorme, vive prazeres e dores à medida que estes se apresentam em seu caráter imediato. Perante tal condição, o homem afirma sua superioridade em relação ao animal, ao mesmo tempo que não pode deixar de invejar sua felicidade. Mas se, impulsionado por tal sentimento, o homem indagasse a ele "Por que não me falas de tua felicidade e não fazes mais que mirar-me?", o animal talvez desejasse falar-lhe "Porque esqueço a cada instante o que quero responder". Mas

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enquanto preparasse tal explicação, ela seria esquecida e o calmo silêncio, mantido.

Esse homem se assombraria duplamente: em primeiro lugar, frente à atitude imóvel do animal a fitá-lo, exatamente como o fazia antes da formulação de sua pergunta. Era como se nada houvesse ocorrido. Em segundo lugar, frente a si mesmo e à sua própria incapacidade de esquecer, à sua ligação inexorável com o passado. Esse tempo decorrido e repleto de lembranças vergará seu corpo, dificultará seu passo, "como um fardo obscuro e invisível".

Ele também se emocionará ao ver a criança que, nada tendo ainda a lamentar, vive entre o presente e o passado, entrega-se a seus jogos com venturosa inconsciência. Como Fernando Pessoa, cujos versos dizem da criança que com ele vive:

É uma criança bonita de riso e natural.Limpa o nariz ao braço direito.Chapinha nas poças de água,Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.("O Guardador de Rebanhos", VIII)

Porém, rapidamente a criança conhecerá a palavra "era", que Nietzsche define como palavra ponte, "com que a luta, o sofrimento e a mortificação se acercam do homem, para recordar-lhe o que sua existência é, no fundo: um imperfeito que nunca deixa de ser imper- feito". Se a morte aparece como a única chance de descanso, pelo esquecimento que contém, por outro lado, ela levará consigo tanto o presente quanto a vida.

Nessa dura percepção de sua própria incompletude, o homem buscará enfrentar a morte que o espreita e se anuncia em sinais, que vão marcando seu corpo. Confronta o caos que o cerca. Impõe-se-lhe o desafio de sobreviver junto à visão aterradora de sua própria condição.

É nesse enfrentamento que Nietzsche situará o nascimento da tragédia e a forma específica construída pelos gregos de – a partir da experiência artística – transformar o horror em um poderoso sentimento de indistinção de tudo o que compõe a vida, suprimindo as barreiras entre os seres individualizados entre si e em relação à própria natureza. Nessa solução, vence a valorização da vida, com toda a alegria e toda a dor nela contidas.

Mas serão os próprios gregos os criadores de um outro tipo de posicionamento frente a este caos, destruidor do espírito trágico e instaurador de uma lógica de desvalorização da vida. Frente à finitude humana, a vivência socrática da morte, que aparece como a libertação de um mundo desprezível. Perante a indistinção da embriaguez dio-nisíaca, a separação fixa de identidades. Contraposta à inexistência de sentido das coisas, a criação de uma totalidade a que tudo passa a ser remetido e que confere a tudo um significado essencial. Ao mundo e à vida restam o desprezo por tudo o que é imperfeito, perecível e aparente.

Guiada por uma insaciável vontade de verdade, a lógica sistematizada pelo pensamento de Sócrates e Platão ganhou ressonância decisiva em nossa civilização cristã e ocidental. E com ela venceram a concepção do ser como fixo e imutável, a visão de um mundo supra-sensível perfeito e composto por valores verdadeiros a serem imitados, as idéias de totalidade, de causalidade e de racionalidade necessária das coisas.

É a partir dessas considerações básicas que eu gostaria de refletir sobre como o pensamento de Nietzsche é necessário ao historiador. E a questão da necessidade aparece aqui como um importante parâmetro. Gilles Deleuze nos mostra, magistralmente, no artigo "Pensamento nômade", que Nietzsche construiu textos não interpretáveis, frustrando os que neles buscassem, ingenuamente, um sentido original ou genuíno. Utilizando aforismos, o pensamento e a escrita do filósofo alemão têm

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relação imediata com o exterior, são jogo de força, atravessados por movimentos que vêm de fora. Assim, ler Nietzsche não impõe problemas de interpretação, mas de maquinação, de encontrar as forças que atravessem e recortem seu texto, fazendo-o funcionar.

Assim, poderíamos perguntar: como as questões que a história vem enfrentando trazem a necessidade de Nietzsche?

Suas considerações sobre a utilidade dos estudos históricos criticam uma historiografia alemã marcada por um espírito filisteu, seu apontamento como um mal, um vício depauperador e degenerador da vida, um saber que se coloca fora dela, ao mesmo tempo que se apresenta como legítimo enunciador de suas verdades. Entretanto, Nietzsche afirma a necessidade da história para a vida e a ação. Voltando-se contra a "história decorativa", afirma: "Queremos servir à história somente à medida que ela sirva à vida".

Entretanto, há muito que a história voltou-se para a vida. Podemos percebê-lo claramente em um evento citado por Marc Bloch, um dos mais importantes historiadores de nosso século. Chegando a Estocolmo, juntamente com Henri Pirenne, seu colega de profissão, recebeu dele o convite para iniciarem o passeio por um dos mais recentes prédios construídos. Temendo que sua escolha pudesse causar surpresa a Bloch, Pirenne acrescentou: "Se eu fosse um antiquário, só teria olhos para as coisas velhas. Mas sou um historiador. É por isso que amo a vida". Ao descrever o episódio, Bloch conclui como a qualidade fundamental do historiador é a apreensão do que é vivo.

A fundação da Annales d'histoire économique et sociale, em 1929, representou para o pensamento histórico contemporâneo uma transformação epistemológica decisiva. Em um editorial escrito por Marc Bloch e Lucien Febvre, atacava-se a história burocrática, mera compiladora de documentos. Propunha-se a derrubada dos muros que impediam aos historiadores a percepção e o estudo de tudo o que o cercava e potencializava a história: a geografia, a lingüística, a psicologia, a antropologia, a matemática. Ampliou-se o que poderia ser objeto de reflexão para o historiador: a ele passaram a interessar poemas, palavras, canções, contos, romances, dramas, signos, paisagens, formas de cultivo, ervas daninhas, eclipses da lua, exames de pedras feitas por geólogos, análises de espadas feitas por químicos.

A partir de então, os rumos da história adquiriram uma complexidade e variedade estimulantes. Na esteira daqueles pioneiros, vários trabalhos deram continuidade à Revista dos Annales, bem como às possibilidades ali inauguradas. Impossível assistir, sem euforia, ao desbravamento de novos problemas (a operação histórica, os caminhos da história antes da escrita, a história conceitual, o quantitativo, a história dos povos sem história, a aculturação etc.), de novas abordagens (a arqueologia, a economia, a demografia, a religião, a literatura, as artes, as ciências), de novos objetos (o clima, o inconsciente, o mito, as mentalidades, a língua, os jovens, o corpo, a cozinha, o filme, a festa, a vida privada, e tantos outros).

A Nova História consolidou ainda a ênfase ao presente no procedimento histórico. O historiador tem seu olhar cada vez mais direcionado para as questões de seu tempo.

Mas, entre tantas conquistas, a discussão da verdade talvez assuma importância fundamental. Esta tradição histórica, que reúne historiadores muito diferentes entre si, debateu minuciosamente a noção de verdade absoluta, pôs em causa a idéia de leis rígidas e estáveis conferidoras de sentido à diversidade histórica. A partir daí questionou temas como origem, finalidade, progresso, evolução, continuidade e linearidade.

A história afirmou-se como um saber voltado para a vida, mudou seus registros de produção de conhecimento, relativizando o conceito de verdade e reivindicando para si uma especificidade em relação às outras ciências. Mas se menosprezar tudo o que foi feito seria uma atitude absurda, é

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também impossível deixar de perceber que o pensamento histórico enfrenta um impasse. De um lado, críticas de imprecisão e irracionalidade por parte de estudiosos de outras áreas do conhecimento. Por outro, uma dificuldade dos próprios historiadores de enfrentar a sucessão de modismos, o ecletismo teórico, a incoerência de parte das análises.

Nietzsche afirma a necessidade do caráter radical das transformações. Os questionamentos superficiais, a substituição de valores não possibilitam uma alteração efetiva de posturas. Na verdade, as mudanças na prática histórica tiveram um cunho eminentemente epistemológico. Mas os pressupostos ontológicos desse saber não foram profundamente problematizados. Gostaria de discutir um pouco algumas noções correntes nos textos históricos atuais e que ilustram algumas das dificuldades que vêm sendo deixadas em suspenso.

A história voltou-se para o singular, num claro desafio à lógica unificadora. Afirmando-se como saber de especificidades e de diversidades, apresenta-se como ciência do particular. Mas o discurso de um grande e influente historiador como Carlo Ginsburg não nos deixa dúvidas: o compromisso com a verdade permanece. Propondo um novo paradigma para a recuperação do passado, compara o historiador ao caçador que, através de sinais – como pegadas, vestígios de saliva e fezes, pêlos ou penas – imagina sua presa. Ambos possuem um conhecimento conjetural, baseado em fragmentos de evidências. A grande questão aqui apresentada não passa pela problematização da razão em si, mas da construção de um caminho em que a história garanta as condições de sua racionalidade. Lidando com fenômenos irrepetíveis e imprevisíveis, a história não pode operar como outras disciplinas. Para a explicação desses fatos e o entendimento do particular, torna-se necessário o desenvolvimento de métodos alternativos que garantam a cientificidade. Permanece aqui, intacta, a vontade de verdade.

O conceito de resistência aparece como outra peça-chave de boa parte de nossa historiografia. Resistência operária, mulheres que resistem em atos cotidianos, velhos que resistem através de suas memórias, culturas populares que resistem à massificação e uma série sem fim de resistências apontadas pelos quatro cantos das sociedades. Mas o conceito de resistência acaba sendo utilizado em detrimento da consideração de que as pessoas criam práticas. Há uma diferença essencial entre resistir a algo e criar atitudes. Quem resiste responde a alguma coisa, sua ação é reativa e tem seu sentido naquilo que a gerou. Criação supõe o completamente novo, o que tem sentido essencialmente positivo e inexplicável racionalmente. Nada determina a criação, a passagem do nada ao ser.

O conceito de resistência está intrinsecamente ligado a uma lógica causalista, em que os fenômenos são explicáveis uns a partir dos outros e em que uma racionalidade, mesmo que específica, se delineia em um processo.

Processo histórico: outro tema recorrente. Mas o que é um processo? Além da própria noção de formação da sociedade, o termo possui outros usos, todos comprometidos com a noção de encadeamento. É um termo do vocabulário filosófico, indicativo de procedimentos metódicos de operar ou agir, como no pensamento tomista, que nomeia processos que indicam métodos de ir das causas ao efeito ou do efeito às causas, ou de uma causa a outra. É também corrente nos estudos da física ou da química, no sentido de explicar uma concatenação de eventos. Na física, uma sucessão de estados em um sistema que evolui. Na química, noções como processo da digestão ou processo fotomecânico. No vocabulário jurídico, indica peças de documentos fundamentadores da avaliação de um caso concreto. É claro que a questão da mudança está indelevelmente explícita na noção de processo. Mas será que o seu uso pela história se distancia dos outros usos possíveis no que diz respeito ao comprometimento com uma visão causalista?

A visão de contexto surge como outra categoria a ser pensada. É fato que vários trabalhos privilegiam o particular, através do enfoque a eventos que surgem quase como curiosidades, mas que ao serem explorados desvendam um contexto maior em que se inserem. Assim, o fato é ilustrativo, remete a um lugar, dizendo-nos dele. Mas será que tal lógica abandonou realmente a noção de totalidade? Será que

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não houve, predominantemente, uma inversão: a prática anterior consistia em partir da totalidade e daí explicar os eventos. Mas a prática atual tem muitas vezes reunido eventos que remetem, mesmo que imperfeita e fragmentariamente, a uma totalidade em que foram gerados. O fato nos esclarece acerca de uma época, na medida em que nela estão contidas as determinações que o tornam inteligíveis. Não há duvida da existência de um matiz importante na discussão do que seria esta totalidade. No entanto, o que deve ser enfrentado é que a totalidade pode ter sido relativizada, mas certamente não foi abolida. A particularidade não é, na maioria das vezes, estudada no sentido de ser uma singularidade não determinada. O historiador pode se deliciar com fatos exóticos, diferentes. Mas esta é a primeira impressão, pois à medida que ele avançar, acabará por conjuntizá-los em um mundo de determinações – que serão diferentes daquelas presentes em nosso mundo –, mas que continuam configurando um mundo de determinações.

É nesse ponto que eu diria que Nietzsche se apresenta como obra a ser maquinada. A transformação epistemológica da história é inegável e certamente é essencial. Mas grande parte da história permanece ligada à mesma perspectiva ontológica. O ser permanece pensado como ser determinado. E, nesta medida, por mais que o neguem e que afirmem ter eliminado de vez formas de pensar tradicionais, inúmeros historiadores continuam lidando com as perspectivas de totalidade, de causalidade e de determinação.

Mas se pensamos o ser, e portanto também o ser social histórico, como devir, a perspectiva se transforma radicalmente. Nesse vir a ser, tudo é criação, e criação do absolutamente novo, portanto, indeterminado. Desfaz-se a continuidade do ser.

Aqui, a particularidade não é explicável a partir de, não é remissível ao contexto x, não é peça de um processo. Ela é, em si, singularidade. Remete-nos à necessidade do historiador enfrentar a fragilidade de seus esquemas de racionalização. Não mais a consideração da impossibilidade do historiador acessar integralmente o passado – mesmo que isto tenha deixado de ser encarado como limite e vivido alegremente pelos nossos estudiosos. Mas algo muito mais decisivo: a inexistência mesmo de um ser fixo desse passado. Questionamento tanto em relação aos esquemas objetivistas quanto subjetivistas. Renovação não apenas no que diz respeito ao sujeito do conhecimento, mas ao objeto do conhecimento. Ou, como diria Deleuze: nem física, nem filosofia.

É claro que estas questões vêm surgindo em vários trabalhos, vários historiadores têm trilhado caminhos que rompem com a lógica da determinação – e não necessariamente se referenciam em Nietzsche. Há momentos em que a criação surge em toda sua força, em que as análises mostram o rigor que o pensamento histórico pode assumir. Pois o historiador é levado à reflexão pela sua própria vida, pelo seu próprio tempo; ele dialoga com tudo e seu discurso é pura intenção, ação que quer transformar. Como não pensar em Os reis taumaturgos de Marc Bloch, A economia antiga de Finley, Acreditavam os gregos em seus mitos? de Paul Veyne, O tempo das catedrais de G. Duby, A formação da classe operária de Thompson, e por que não?, O queijo e os vermes, do citado Carlo Ginsburg. Tantas vezes a criatividade excede o próprio método que se acredita fielmente seguir. Mas há, por outro lado, uma produção maciça de ensaios, monografias e teses que se apresentam como inovadoras, mas que mal conseguem disfarçar o determinismo de seus esquemas explicativos. Comemorando singularidades, para imediatamente enjaulá-las em determinações históricas, são válvulas de segurança que parecem nos dizer:– Vejam como isto é diferente! Mas não se iludam. Confiram as determinações. Observem como é possível racionalizar tudo. Não resta nada que não seja explicável...

O historiador enfrenta o caos. Mas foge dele ao mascará-lo, disfarçá-lo, dissolvê-lo em um mundo de totalidade. Provavelmente por sua própria dificuldade em defrontar-se com o absurdo e a dor de sua própria existência. A história é, também, enfrentamento da morte. Mas que atitude tomará o historiador frente a isto? É preciso que ele invista na ousadia, já exemplificada em tantos momentos de sua criatividade, de romper com uma lógica negadora da vida, detonando as certezas

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tranqüilizadoras e as totalidades apaziguadoras.

Aqui situarei a utilidade dos textos de Nietzsche para os estudos históricos da atualidade: máquina de guerra capaz de destruir, decisivamente, a lógica e a ontologia herdadas que, tantas vezes, ainda permanecem como obstáculos para a criação de um saber histórico que potencialize a vida.

Referências Bibliográficas 1. ALBUQUERQUE, D.M. "Menocchio e Rivière – criminosos da palavra, poetas do silêncio". In: Resgate. Campinas, v. 2, no 2, p. 48-55, 1991. 2. BLOCH, M. Introdução à história. Lisboa, Europa-América, s/d. 3. _______. Os Reis taumaturgos. São Paulo, Companhia das Letras, 1994. 4. DELEUZE, G. "Pensamento nômade". In: Por que Nietzsche? Rio de Janeiro, Achiamé, s/d, p. 9-17. 5. _______. Proust e os signos. Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1987. 6. DUBY, G. O tempo das catedrais. Lisboa, Editorial Estampa, 1978. 7. FEBVRE, L. Combates pela história. 2a ed. Lisboa, Editorial Presença, 1985. 8. FINLEY, M. A economia antiga. 2a ed. Lisboa, Afrontamento, 1986. 9. GINSBURG, C. "Morelli, Freud and Sherlock Holmes: clues and scientific method". In: History Journal Workshop, 9, 1980, p. 5-36. 10. _______. O queijo e os vermes. São Paulo, Cias das Letras, 1987. 11. NIETZSCHE, F. "De la utilidad de los estudios historicos". In: Obras Completas. Buenos Aires/ Mexico, Aguillar, 1955. 12. THOMPSON, E.P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987. 13. VEYNE, Paul. Acreditavam os gregos em seus mitos? Lisboa, Edições 70, 1987.

9 - Nietzsche e a Psicanálise Alfredo Naffah Neto

Psicanalista, Professor-Titular do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP

Nietzsche and the psychoanalysisAbstract: This essay has by theme the possible relations between Nietzsche's genealogy and psychoanalisis. First of all, it examines the controversies that cross the historical relation between Nietzsche's and Freud's production; then it exemplifies the use of Nietzsche's genealogy as a critic evaluating tool of psychoanalisis. In that purpose, it takes the concept of unconscious and discusses its transformations all over Freud's work and the values which those changes produced. It concludes that the growing identification/superposition between the concept of unconscious and the concept of Oedipus complex transformed the purpose of an opening to the unknown part of soul into a new form of family shaping. Key-words: genealogy – psychoanalisis – consciousness – unconscious – Oedipus complex – opening to the unknown part of soul – family shaping.

Resumo: Este ensaio tematiza as relações possíveis entre a genealogia nietzschiana e a psicanálise. Examina, primeiramente, as controvérsias que permeiam a relação histórica entre a produção nietzschiana e a freudiana para, em seguida, exemplificar o uso da genealogia nietzschiana como ferramenta de avaliação crítica da psicanálise. Para tanto, toma a noção de inconsciente, discutindo as suas transformações ao longo da obra freudiana e os valores veiculados por essas mudanças. Conclui que a crescente identificação/sobreposição entre a noção de inconsciente e a de complexo de Édipo acabou por transformar a proposta de uma abertura ao desconhecido em uma nova forma de modelagem familiar.

Palavras-chave: genealogia – psicanálise – consciência – inconsciente – complexo de Édipo – abertura ao desconhecido – modelagem familiar

1. Nietzsche e Freud: controvérsias

Trazer Nietzsche para o interior do campo psicanalítico envolve questões polêmicas. Pois significa,

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necessariamente, lançar sobre a psicanálise as indagações críticas da genealogia nietzschiana, criando incômodo para a instituição psicanalítica, pelo menos para aquela que pretende se sustentar em "verdades universais". Indo além do mero incômodo, poder-se-ia, entretanto, questionar a própria validade de contrapor formulações teóricas exteriores entre si. Acontece que essa exterioridade constitui, ela própria, outra questão polêmica.

As relações históricas entre Nietzsche e Freud permanecem, até hoje, controvertidas. Embora os escritos de Nietzsche e de Freud sejam rigorosamente consecutivos, no sentido cronológico do termo, e os de Nietzsche já estejam bastante difundidos no fim do século XIX e começo do XX, Paul-Laurent Assoun aceita a tese de que Freud não tenha lido quase nada de Nietzsche, baseando-se em declarações do próprio criador da psicanálise (cf. Assoun 1, primeira parte). Já Ronald Leher (Leher 6) afirma existirem evidências históricas de que Freud conhecia os escritos mais antigos de Nietzsche e que, em 1908, teria discutido seções da Genealogia da moral e de Ecce homo com membros da Sociedade de Psicanálise de Viena. Chega a se perguntar, inclusive, se as leituras de Freud não teriam ido mais longe, dada a grande coincidência entre as idéias básicas de ambos os autores. De fato, uma dívida teórica de Freud para com Nietzsche é afirmada por psicanalistas im- portantes como Ernest Jones e Didier Anzieu, Jones enfatizando a correspondência entre o super-ego freudiano e a formação da má-consciência, descrita por Nietzsche; Anzieu dizendo que Nietzsche já descrevera anteriormente a repressão sob o nome de inibição, o super-ego e os sentimentos de culpa sob a forma de ressentimento, má-consciência e falsa moralidade, além de ter antecipado vários outros processos e conceitos [como a volta dos impulsos sobre si próprios, as imagens paterna e materna, a renúncia imposta pela civilização aos nossos instintos etc (id., ibid., p. 2-3)]. Indo nessa direção, poderíamos chegar a supor que Freud teria sido um mero continuador das idéias nietzschianas, desdobrando-as e dando-lhes um cunho terapêutico, o que, além de exagerado, pressupõe um achatamento indiscriminado de ambas as obras.

Michel Foucault considera Nietzsche, Marx e Freud como os grandes hermeneutas do século XX, por terem questionado a homogeneidade codificadora dos saberes – vigente desde o século XVI – encadeando os símbolos em redes inesgotáveis e tornando a interpretação uma tarefa infinita e auto-reflexiva. Nesta perpectiva, os três autores são colocados lado a lado, mas sem qualquer tentativa de reduzir os respectivos pensamentos uns aos outros (Foucault 4). Gilles Deleuze dá um passo além, ao discriminar Nietzsche tanto de Freud quanto de Marx. Na sua avaliação, tanto o devir do marxismo quanto o do freudismo são recodificadores da sociedade e da subjetividade moderna, o marxismo recodificando através do Estado ["'vocês estão doentes pelo Estado e serão curados pelo Estado', não será o mesmo Estado" (Deleuze 3, p. 57)], a psicanálise fazendo o mesmo através da família ["estar doente pela família, curar-se pela família, não a mesma família" (id., ibid.)]. Já Nietzsche, segundo ele, funda uma espécie de contracultura, pois "através de todos os códigos, do passado, do presente, do futuro, trata-se para ele de fazer passar algo que não se deixa e não se deixará codificar. Fazê-lo passar num novo corpo, inventar um corpo em que isso possa passar e fluir: um corpo que seria o nosso, o da terra, o do escrito..." (id., ibid., grifos meus). É um desdobramento deste ângulo interpretativo que pretendo desenvolver aqui.

2. Avaliando a noção de Inconsciente

São inúmeras as perspectivas a partir das quais se pode trazer Nietzsche para o campo psicanalítico e fazê-lo vibrar a sua crítica. Como é impossível, aqui, abarcar todas elas, escolhi uma que considero das mais importantes: a avaliação genealógica da noção freudiana de inconsciente.

É possível dizer que a maior reviravolta operada por Freud na cultura ocidental foi a postulação do inconsciente e a dimensão dada a esse inconsciente, a de fundamento do psiquismo. Outros pensadores do século XIX, entre eles o próprio Nietzsche, já haviam falado em processos inconscientes; nenhum deles, entretanto, o havia postulado como substantivo: o inconsciente, dando-lhe uma dimensão tópica ou criando uma terapêutica baseada na sua interpretação. A psicanálise se

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definiu, assim, desde o início, como uma espécie de teoria e prática do inconsciente, em oposição à tônica vigente até então nas psicologias, que prestavam tributo à consciência como equivalente de psiquismo. Entretanto, talvez seja possível dizer, também, que a absorção cultural deste novo bacilo, que Freud diagnosticou ser portador de uma "peste", em consonância com o próprio rumo que tomou o desenvolvimento posterior da psicanálise, transformou gradativamente o que poderia ter sido o destronamento da consciência e a abertura ao desconhecido que nos atravessa e nos constitui numa nova codificação da subjetividade pela família, o que quer dizer, pelas formas e valores que conformam a família burguesa. Trata-se, como veremos mais adiante, da absorção da noção de inconsciente pela de complexo de Édipo. Antes disso, convém situar brevemente o universo que Freud veio questionar.

A hegemonia da consciência na cultura ocidental, se somente se consolida tardiamente com Descartes, no século XVII, já vem preparada desde Sócrates e Platão. É Nietzsche quem nos mostra que esse processo faz parte de um projeto mais amplo, qual seja: disciplinar e controlar o devir das forças, criando uma metafísica e uma moral capazes de esconjurar a presença do caos e de fazer o mundo assentar-se sobre bases firmes. Em suma, de substituir a aventura e o risco pela previsibilidade racional.

No universo trágico, anterior ao socratismo, concebe-se o homem como um ser eminentemente descentrado, oscilando entre as múltiplas potências divinas, que podem possuí-lo a qualquer momento, e um movimento, ainda incipiente, de apropriação subjetiva. Nesse universo, nem a noção de responsabilidade existe totalmente formada; o homem trágico não possui vontade própria, na exata medida em que pode ser invadido e conformado por potências divinas e, nesses estados entusiásticos, cometer os crimes mais hediondos, assim como participar de estados místicos de bem-aventurança, fecundidade, êxtase. Nesse sentido, ele partilha da multiplicidade das forças vivas de forma direta, num mundo ainda fora da égide codificadora de Bem e Mal. Nessa mesma época, entretanto, o direito já procura instituir uma nova ordem: a do sujeito responsável, distinguindo crimes cometidos "de bom grado" dos cometidos "de mau grado", ou seja, na ignorância ou com conhecimento de causa. Desta forma, no universo trágico, a avaliação da responsabilidade oscilava entre duas interpretações diferentes: por um lado, associava-se à noção de falta (hamártema = "erro" de espírito, polução religiosa, em que o ser humano é tomado por forças sinistras que o arrastam e enlouquecem), por outro lado, era engolfada pela noção legal de delito(1). Tentativas primeiras de colocar ordem em um mundo ainda em grande parte dominado pelo caos, esse abismo insondável, vazio primordial, que antecede a ordenação do mundo(2) . Nesse período, as cidades gregas, em plena expansão, já solicitam um controle maior sobre as ações humanas; o caos ameaça, urge colocar ordem no mundo.

O socratismo e o platonismo expandirão essa disciplina imposta à realidade com a instituição das noções de Verdade e de Bem e a postulação de formas transcendentes e racionais, como critério avaliador do mundo: é o advento das Idéias, modelos capazes de selecionar o mundo através das boas e das más cópias: cópias-ícones e simulacros-fantasmas. Esse niilismo ganhará novo alento na era cristã, com a divinização do critério-avaliador- transcendente.

Deus permanece, então, em cena durante toda a Idade Média e atravessa a Idade Moderna, funcionando como o grande aliado de Descartes, no séc. XVII, para a instituição da consciência como res cogitans, critério para qualquer conhecimento possível. A crítica subseqüente de Kant, se questiona a consciência substancializada posta por Descartes, termina por erigir uma nova consciência, depurada, em princípio transcendental: pensada como forma vazia, ela torna-se, então, fundamento universal do conhecimento.

O séc. XIX começa com o idealismo racionalista de Hegel, ainda totalmente apoiado na consciência e na divindade, e termina com Schope- nhauer, Nietzsche e Freud, principais figuras disruptoras da hegemonia desses fundamentos metafísico-morais.

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A noção de inconsciente, tal qual formulada por Freud, assentava-se em duas noções básicas. A primeira era a de sexualidade. O inconsciente era pensado como desejo sexual recalcado, na primeira tópica; e como Id, Superego e parte do Ego, na segunda tópica – noções estas que giram, todas, em torno da sexualidade e das suas transformações. A segunda era a de representação: só as representações, segundo Freud, podiam ser recalcadas, portanto, todo o inconsciente recalcado era re-presentado (o que quer dizer, etimologicamente: re-apresentado). Esse apego às representações poderia, num primeiro exame, sugerir o deslocamento da mesma dualidade de mundos, começada por Platão e continuada por Descartes, para o nível psíquico. Poderíamos, por exemplo, imaginar que as representações, ao serem recalcadas, permaneceriam inalteradas, operando como representações-modelo e produ- zindo cópias no psiquismo consciente. Nessa época, entretanto, a construção freudiana parecia caminhar na direção oposta, colocando em xeque todo o universo bem comportado dos critérios transcendentes modelares(3). Pois a noção de representação inconsciente, assumida por Freud, parecia operar como um simulacro-fantasma, subvertendo e demolindo qualquer critério de verossimilhança, na exata medida em que incluía na sua própria definição os ângulos delineados pela conjuntura traumatizante e os desvios subjetivos decorrentes(4). Não guardava, nesse sentido, qualquer relação com a representação do objeto, no sentido clássico do termo, primeiramente porque estava ligada ao sistema de memória e esta, na acepção freudiana, nunca descreveu um puro receptáculo de imagens, mas um desmembramento, uma multiplicação da recordação em várias redes associativas. Ou seja, por traço mnésico, Freud designava "...menos uma 'impressão fraca' que permanece numa relação de semelhança com o objeto, do que um sinal sempre coordenado com outros e que não está ligado a esta ou àquela qualidade sensorial" (Laplanche e Pontalis 5, p. 583, grifos meus).

Em segundo lugar, a representação inconsciente não podia guardar qualquer relação de verossimilhança com o objeto porque designava o que Freud chamou de representação de coisa, que é a representação dissociada da palavra capaz de designá-la, impossibilitada, assim, de reconhecimento por parte da consciência.

Dessa forma, o inconsciente freudiano era formado por representações incapazes de qualquer verossimilhança com o que quer que fosse; constituídas na própria subjetividade e seus desvios, incapazes de assumir qualquer identidade nominal e fazendo-se representar de forma múltipla nas várias redes associativas, elas compunham um universo de fluxos transmutantes em devir. Não é por acaso que Freud, nos textos da Metapsicologia, descreve o inconsciente como atemporal, como lugar de convivência pacífica de contrários, como regido pelo processo primário, com suas condensações e deslocamentos; só pode funcionar assim um espaço que escape à tirania das Idéias, à disciplina dos modelos.

Nessa primeira etapa, o inconsciente freudiano parecia vir a serviço de uma expansão da vida por novas searas, propondo uma abertura a esse grande desconhecido que nos atravessa e nos constitui; nesse sentido, rompia o comodismo do chão firme e lançava o mundo novamente na aventura e no risco, criadores de devir. Nesse período, o que Freud fazia era, pois, desenvolver e dar forma terapêutica à tradição iniciada por Schopenhauer e Nietzsche. Esses autores tinham começado sua reflexão colocando a consciência no seu devido lugar, Schopenhauer postulando a Vontade como núcleo do mundo e como essência íntima do homem e descrevendo-a como destituída de consciência; Nietzsche indo um pouco mais longe.

Para este, linguagem e consciência estavam indissoluvelmente ligadas em seu desenvolvimento, ambas articuladas às necessidades de comunicação e de representação da vida gregária, ao seu funcionamento adaptativo, a consciência sendo uma aquisição tardia da humanidade. Freud pensava numa direção convergente, ao postular a consciência e o pré-consciente como formados por representações de coisas articuladas às respectivas representações de palavras; o inconsciente, ao contrário, por representações de coisas dissociadas das palavras capazes de propiciar-lhes reconhecimento. Para ambos, pois, consciência significava, fundamentalmente, linguagem;

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inconsciente, experiência privada de representação verbal. Nietzsche chega a afirmar que nossas experiências mais fundamentais não são tagarelas, porque lhes falta linguagem, que, aliás, só serve às coisas medíocres (GD/CI § 26). E que podemos pensar, sentir, querer, recordar, sem que para isso necessitemos de consciência, o que quer dizer, de qualquer representação verbal (FW/GC § 354).

Entretanto, enquanto Nietzsche empurra o inconsciente mais para a vertente da experiência inusitada, rara, indizível e irrepresentável pela vulgaridade do verbo, Freud tende a pensá-la na vertente do proibido: é a sexualidade moralmente condenada, capaz de gerar uma carga de angústia suficiente para expulsar da consciência a sua representação. Diferença de concepções que se constitui sobretudo pelo ângulo por onde se enfoca a experiência humana: o da nobreza de um lado, o da marginalidade, de outro; em ambos persiste, entretanto, a mesma marca de alteridade: inconsciente é sempre o Outro da cultura dominante. Desbravar ou fazer florescer o inconsciente significa, pois, abrir a subjetividade e o mundo a esse Outro, avesso do instituído.

Totalmente diferentes tornam-se as conseqüências disso tudo quando, a partir de 1910, a noção de complexo de Édipo começa a assumir nos textos de Freud um papel centralizador e codificador. Pois, a partir de então e cada vez mais, todos os desejos passam a encontrar um denominador comum: centram-se todos no triângulo pai-mãe-filho, como se tudo na vida se resumisse à família, à interdição do incesto, ao ingresso numa sexualidade modelar: renunciar a papai e mamãe para, um dia, vir a ser papai ou mamãe. Ora, é sobejamente conhecido o quanto essas formações sociais são pedras angulares da cultura e da moral dominantes, o quanto, a partir delas, se excluem e se marginalizam todas as outras formas, incompatíveis com tais modelos legitimados. Lacan, mais tarde, virá tentar dar dignidade a tudo isso; então dirá que se trata de algo mais fundamental: a própria fundação do inconsciente e consequente aquisição da linguagem, impossibilitadas sem o rompimento da simbiose mãe-filho. Não ingressar nessa suposta Lei da Ordem significa tornar-se psicótico; assim, as opções não são muitas: ou se aceita a inserção no modelo ou se está condenado à loucura. A partir desse rumo, a noção de inconsciente enreda-se num beco sem saída; desde Totem e Tabu até os escritos freudianos finais, tudo gira no mesmo círculo; a filogênese, de um lado, a cultura familialista de outro, tudo se reduplica em significantes edipianos: desejo incestuoso, inveja, fantasia de morte, culpa etc. etc. etc. O que parecia designar o Outro da cultura dominante ameaça tornar-se, então, a expressão mais direta da codificação disciplinar instituída.

Mas entenda-se bem: não se está, aqui, censurando Freud por se preocupar com as questões de transmissão dos códigos familiares, nem tampouco desconsiderando o papel central e nuclear que a família passou a desempenhar no mundo burguês, com o conseqüente confinamento da sexualidade infantil a esse universo modelar. Tudo isso é bastante conhecido, conceitualizado. O que é importante assinalar é que a ausência de uma avaliação crítica dos valores leva Freud a tomar por universal o que é historicamente datado e a reduzir o alcance da sua "peste", confinando o inconsciente ao desejo edipiano recalcado e suas figuras modelares. Mesmo a ampliação posterior da noção, com a postulação do Id, do Superego e da parte inconsciente do Ego, se por um lado parece diversificar o conceito de inconsciente, não chega a alterar significativamente o rumo das coisas, pois, nessa etapa, o peso da filogênese familialista sobre tais noções já é muito grande. É possível, inclusive, que o apego progressivo de Freud às explicações filogenéticas, universalizando biologicamente formas sociais, deva-se, em grande medida, à ausência de uma genealogia dos valores realmente crítica.

Contudo, poder-se-ia argumentar que Freud não opera essa redução em todos os níveis, que isso descreve mais uma tendência geral do que um fato consumado ou, enfim, que é sempre possível se descobrir inúmeros Freuds, cada vez que se relêem os seus textos. Também penso assim. É possível, inclusive, que a potência crítica de um livro importantíssimo como O anti- Édipo – escrito por Deleuze e Guattari no início dos anos 70 – tenha sido, em parte, diminuída pela maneira contestatória – e, até certo ponto, pouco nuançada – com que enfrentou os textos freudianos. Resquícios de maio de 68? É possível que sim. De qualquer maneira, essa forma beligerante acabou produzindo resistência em muitos psicanalistas. Naquela época, ouvi vários colegas comentando coisas do tipo: "Aquilo é

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esquizoanálise, não tem nada a ver conosco."

Trazer Nietzsche para o interior do campo psicanalítico pode significar usá-lo como critério seletivo para descobrir, textualmente, o melhor dos Freuds: o mais criativo, o mais potente, o mais crítico, o que conseguiu olhar mais longe. Ou para detectar qual Freud é absorvido e digerido por Melanie Klein, por Bion ou por Lacan e a que valores servem tais transformações. Ou para avaliar as guinadas que provoca Winnicott e em que direções. Isso apenas à guisa de alguns exemplos.

Nietzsche conserva sobre os psicanalistas uma única mas singular vantagem: ter feito da sua genealogia uma prática de avaliação crítica dos valores; para ele, como diz Deleuze, trata-se de fazer passar através de todos os códigos algo que não se deixa e não se deixará codificar, que permanece numa certa distância crítica do mundo, entrando em ressonância com o seu devir, dissecando e avaliando os movimentos das suas forças, produtoras e disseminadoras de valores.

As conseqüências de uma depuração crítica da psicanálise são bastante preciosas no nível da clínica: trata-se, nada mais nada menos, de saber que tipo de homem queremos ajudar a construir, se um que seja criador de valores ou meramente reprodutor. O número de anos de prática clínica, na profissão psicanalítica, pode levar à ampliação progressiva da capacidade de escuta, mas também a um certo excesso de familiaridade com a alma humana, criando a ilusão de uma sabedoria pronta, acabada. Vi psicanalistas freudianos bastante experientes e conceituados operarem um tipo de diagnóstico inicial de um paciente e, ao concluirem tratar-se de uma histeria, por exemplo, sentirem-se absolutamente autorizados a encaminhar todo o "processo psicanalítico" na direção da interpretação do complexo de Édipo. Mas aí a psicanálise cessa como investigação e torna-se pura disseminação de pré-conceitos; o psicanalista, um produtor de subjetividades seriadas. Zaratustra perguntava a esse tipo de "sábio":

" Para mim, em tudo, assumis excessivas familiaridades para com o espírito; e da sabedoria, com freqüência, fazeis um asilo e um hospital para maus poetas.Não sois águias: por isso não experimentastes tampouco a felicidade que há no terror do espírito. E quem não é pássaro não deve fazer o seu ninho sobre abismos.Me resultais tíbios; mas fria é a corrente de todo conhecimento profundo. Gélidos são os poços mais íntimos do espírito: um alívio para mãos e trabalhadores ardentes.Para mim, aí estais respeitáveis, tesos e empertigados: vós, sábios famosos! Nenhum vento ou vontade poderosos vos empurram. Nunca vistes uma vela caminhar por sobre o mar, arredondada, inflada e trêmula pelo ímpeto do vento? Igual à vela, trêmulo pelo ímpeto do espírito, caminha por sobre o mar a minha sabedoria – a minha sabedoria selvagem!Mas vós, servidores do povo, vós, sábios famosos – como poderíeis caminhar junto a mim?" (Za/ZA II Dos sábios famosos).

É provável que a psicanálise, neste final de século, ainda tenha a aprender com vôos de águia sobre abismos, correntes geladas e o ímpeto do vento sobre velas no mar. Quem sabe Nietzsche possa ensinar-nos um pouco desses diferentes tremores do espírito.

Notas (1) Mais tarde, Aristóteles oporá a noção de hamártema às de adíkema = delito intencional e atýchema = acidente imprevisível, inteiramente estranho às intenções e ao saber do agente (Vernant e Vidal-Naquet 9, p. 45-6). (2) Este é o sentido etimológico do termo segundo Brandão 2, p. 184. (3) Nesse trajeto, sigo os desenvolvimentos já realizados por mim num ensaio intitulado "O inconsciente e os fluxos nômades" (Naffah Neto 7). (4) Segundo Deleuze, os simulacro-fantasmas extraem a sua potência, subversora das Idéias, desse tipo de inclusão (Deleuze 4).

Referências Bibliográficas 1. ASSOUN, P.-L. Freud e Nietzsche – semelhanças e dessemelhanças.

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São Paulo, Brasiliense, 1989. 2. BRANDÃO, J. Mitologia grega. vol. I. Petrópolis, Vozes, 1986. 3. DELEUZE, G. "Pensamento Nômade". In: Marton, S.(org.) Nietzsche hoje? São Paulo, Brasiliense, 1985. 4. _______. "Platão e o simulacro". In: Lógica do sentido. São Paulo, Perspectiva, 1982. 5. LAPLANCHE, J. e Pontalis, J.B. Vocabulário da Psicanálise. Santos, Martins Fontes, 1970. 6. LEHER, R. Nietzsche's presence in Freud's life and thought. Albany, State University of New York Press, 1995. 7. NAFFAH NETO, A. Paixões e questões de um terapeuta. São Paulo, Ágora, 1989. 8. NIETZSCHE, F. Werke. Kritische Studienausgabe. Edição organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. 15 vols. Berlim, Walter de Gruyter & Co., 1967-78. 9. VERNANT, J. P. e VIDAL-NAQUET, P. Mito e tragédia na Grécia antiga. São Paulo, Duas Cidades, 1977.

10 - Nietzsche e a História da Literatura Regina Zilberman

Professora de Teoria da Literatura no curso de Pós-Graduação em Letras da PUC-RS

Nietzsche and the history of literature

Abstract:Analysis of The birth of tragedy, verifying the contribution of this book for the Theory of Literature, particularly for the Poetics and History of Literature.

Key-words: apolline – dionysiac – Socrates – history of literature – Nietzsche

Resumo: Exame de O nascimento da tragédia, procurando verificar sua contribuição para os estudos literários no âmbito da Poética e da História da Literatura.

Palavras-chave: espírito apolíneo – espírito dionisíaco – socratismo – história da literatura – Nietzsche

De fato, está mais que no tempo de avançar com um exército inteiro de malícia e sátira contra as aberrações do sentido histórico, contra o desmedido gosto pelo processo em detrimento do ser e da vida, contra a confusão cega de todas as perspectivas (HL/Co. Ext II § 9).

Os vínculos de Friedrich Nietzsche aos estudos literários remontam à sua formação acadêmica: em 1864, começou a estudar Filologia Clássica na Universidade de Bonn, de onde se transferiu para a Universidade de Leipzig; e, entre 1869 e 1879, lecionou aquela disciplina na Universidade da Basiléia, na Suíça. Seu primeiro livro, O nascimento da tragédia no espírito da música, lançado em 1872, inscreve-se nesse percurso acadêmico, porque responde, de certo modo, às aspirações de um jovem professor de alçar vôos mais altos em sua carreira docente (Silk & Stern 11, p. 39).

Na época em que o livro foi publicado, Friedrich Nietzsche já tinha produzido alguns estudos, a maior parte deles tratando do pensamento helênico, tais como as palestras ministradas em 1870, "O drama

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musical grego" e "Sócrates e a tragédia", que prenunciam a perspectiva com que examinará o teatro ateniense. Em 1873, escreve "A filosofia na época trágica dos gregos", como que fechando um ciclo dedicado à cultura da Antigüidade. M.S. Silk e J.P. Stern, no seu livro sobre Nietzsche, aludem ao fato de este, em 1871, ter- se candidatado à cátedra de Filosofia na mesma universidade em que trabalhava; seu pleito foi indeferido, mas, na prática, ele deixou os estudos clássicos, dedicando-se doravante à reflexão filosófica (Silk & Stern 11, p. 50).

O nascimento da tragédia constitui de certo modo o único livro em que Nietzsche se volta inteiramente a temas via de regra abrigados pela Teoria da Literatura e pela História da Literatura. O impacto e a originalidade de suas conclusões foram tais, que obrigaram doravante os pensadores da Poética e da Estética a levarem-nas em conta, posicionando-se contra ou a favor delas, mas jamais ignorando-as.

O livro se desenvolve em torno a teses sobre a vida, a religião e a poesia grega. A primeira dá conta de seu conceito de arte, produto de dois espíritos, o apolíneo e o dionisíaco. Nietzsche postula aprioristicamente a existência desses dois espíritos, sob cuja influência nascem os diferentes tipos de arte: do espírito apolíneo provêm as artes plásticas; do espírito dionisíaco, a "arte sem formas ou musical"; da fusão dos dois, procede "a obra superior que será ao mesmo tempo apolínea e dionisíaca, – a tragédia ática". Por sua vez, a evolução da arte "resulta do duplo carácter do espírito apolíneo e do espírito dionisíaco" (GT/NT § 1). Silk e Stern resumem: "apolíneo e dionisíaco devem ser pensados como tendências ou impulsos artísticos antitéticos; e a natureza de qualquer arte, em qualquer época, varia conforme o [impulso ou tendência] que é operativo" (Silk & Stern 11, p. 63).

A conceituação de Nietzsche abre o primeiro parágrafo de O nascimento da tragédia, e nele verifica-se de imediato uma teoria sobre a criação artística, os gêneros e a história da arte:• conforme a poiesis de Nietzsche, a arte nasce de um impulso cons- titutivo da natureza, e não do indivíduo; como escreve num parágrafo mais adiante, os espíritos apolíneo e dionisíaco correspondem a "forças artísticas que brotam no seio da própria natureza" (GT/NT § 2).• a diferença entre esses impulsos determina a variedade das espécies artísticas, divididas em três grandes grupos: as artes plásticas, gênero puramente formal; a música, carente de forma; e a tragédia, para ele "superior" por fundir os dois princípios;• as modificações históricas sofridas pelos diferentes gêneros decorrem igualmente do modo como os dois espíritos se manifestam. Nesse ponto do ensaio, Nietzsche não é muito preciso a respeito, porém, adiante, ele proporá que a interferência de um terceiro processo, o socrático, com seu otimismo racionalista, provocará a morte da tragédia, cujo nascimento parece ser o principal objeto de estudo do livro.

Com efeito, dos três tópicos o que mais interessa ao autor é o que diz respeito à emergência da tragédia no contexto do mundo grego; por outro lado, dado o fato de o gênero em questão ter tido vida breve, em menos de cem anos aparecendo e desaparecendo os grandes criadores – Ésquilo, Sófocles e Eurípides – ativos da cena ateniense, Nietzsche reflete igualmente sobre o que motivou seu fim e, é claro, sobre o que provocaria seu renascimento. Nascimento e morte, com possibilidade de ressurreição, são os pólos entre os quais se move o livro, o primeiro indicado pelo título da obra, o último sugerido por seu interesse pela ópera de Richard Wagner, artista que na época o entusiasmava e que o ajudou a publicar o estudo (Silk & Stern 11, p. 58). A hipótese de se poder almejar o retorno do trágico leva-o ao entusiasmo manifestado no último parágrafo do capítulo 20: Sim, meus amigos, acreditai também na vida dionisíaca e no renascimento da tragédia. O tempo do homem socrático já lá vai! Coroai-vos de heras, empunhai o tirso, e não vos admireis de que o tigre e a pantera se deitem carinhosamente junto dos vossos pés. Ousai agora ser homens trágicos: ousai porque haveis de ser libertados. Tereis de acompanhar o cortejo dionisíaco que vai da Índia à Grécia! Armai-vos para duros combates, mas acreditai nos milagres do vosso deus! (GT/NT § 20).

A idéia de "nascimento" (Geburt) contém a tripla orientação do projeto de Nietzsche, dando conta da

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poiesis, da variedade dos gêneros artísticos e da história da arte ocidental. "Nascimento", noção aparentemente exclusiva da história, sobretudo em tempos de apogeu da historiografia ou romântica ou positivista, ambas de cunho progressivo, responde pelas três exigências, e em torno a elas movimenta-se o livro inaugural daquele filósofo.

Fundando o nascimento da arte na emergência dos espíritos mencionados antes, Nietzsche trata de caracterizá-los. O espírito dionisíaco, situado para além do homem, gera a "experiência dionisíaca", conforme a qual "o homem deixou de ser artista para ser obra de arte: o poderio estético de toda a natureza, agora ao serviço da mais alta beatitude e da mais nobre satisfação do Uno primordial, revela-se neste transe, sob o frêmito da embriaguez" (GT/NT § 1). Na base da experiência dionisíaca está o "colapso da individuação", quando "um homem sente que todas as barreiras entre ele e os outros estão quebradas em favor de uma harmonia universal redescoberta" (Silk & Stern 11, p. 64). Considerado seu exato oposto, o espírito apolíneo apóia-se no princípio da individuação e da medida, equivalendo ao mundo do sonho, enquanto que o espírito dionisíaco, correspondendo à embriaguez, suscita a desmedida e a imersão no uno primordial:Vemos em seguida a força inaudita do seu instinto dionisíaco aniquilar este mundo de aparências, para anunciar pela aniquilação deste mundo uma primordial e suprema alegria artística no seio do Uno primordial (GT/NT § 22).

Para Nietzsche, interessa caracterizar os dois espíritos contraditórios para acentuar o momento em que eles se fundem, dando nascimento à tragédia: "e então oferece-se aos nossos olhares a obra de arte sublime e gloriosa da tragédia ática e do ditirambo dramático, como alvo comum de ambos instintos, cuja união misteriosa, depois de longo antagonismo, se manifestou fecunda dando à luz ao mesmo tempo Antígona e Cassandra" (GT/NT § 4). Mais importante, contudo, é constatar o que a tragédia representa, ou seja, a expressão da "destruição do indivíduo e a sua identificação com o Ser primordial" (GT/NT § 8). Em formulação mais completa, escreve Nietzsche:A tragédia mostra na pessoa do herói trágico a libertação do gosto rude de viver esta vida, e sugere, com um gesto de advertência, o pensamento de uma outra existência e de uma alegria mais alta, entrevistas pelo herói combatente e para as quais ele se prepara, não pelas suas vitórias, mas pela sua derrota e pela sua ruína (GT/NT § 21).

Mais adiante, ele retoma a idéia, indicando que "o mito trágico tem precisamente por fim convencer-nos de que até o que nos parece horrível e monstruoso não é mais do que uma representação estética, com que a vontade brinca na eterna plenitude da sua alegria" (GT/NT § 24). Em outras palavras, na tragédia fica exposto o sem sentido da vida humana, sua trajetória rumo ao nada, portanto, a impotência da vontade perante as forças da natureza. Porém, graças à interferência do espírito apolíneo, o sujeito depara-se com a aniquilação de sua existência e a ruína de modo contemplativo, como um espetáculo que expressa seu próprio ser, sem contudo comprometê-lo. Segundo Silk e Stern, a tragédia, na acepção de Nietzsche, vira "o horror e o absurdo de ser" em "idéias com as quais é possível viver" (Silk & Stern 11, p. 352).

Assim sendo, a tragédia se destaca porque expressa uma visão de mundo cara ao filósofo, que a elege como gênero exemplar: é pessimista por sua própria natureza, mas coloca o sujeito diante do espetáculo, não como vivência, mas enquanto contemplação. Nietzsche funda em um elemento estrutural da tragédia a base de seu raciocínio, destacando, de um lado, o coro, para ele "a imagem refletida do próprio homem dionisíaco" (GT/NT § 8), de outro, os heróis trágicos, considerados "máscaras de Diónisos" por expressarem o aniquilamento e a ruína presentes na história daquela divindade, revivida a cada encenação nas diferentes peças. Por isso, Nietzsche endossa a tese de Aristóteles, que, na Poética, considera que a tragédia, originada dos solistas do ditirambo, assume sua forma natural quando um ator se destaca e estabelece o diálogo com o coro (Aristóteles 2, p. 72). Também para Nietzsche, o drama começou quando um ator mascarado foi introduzido, nesse caso, "para representar o deus", o que ocorreu no século VI a.C. (Silk & Stern 11, p. 70).

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Ainda que interessado na expressividade da tragédia, Nietzsche não negligencia os elementos estruturais, nem históricos. Se o gênero se diferencia pela presença do coro, o autor busca entender sua função e representatividade; se o gênero teve um começo, demarcado conforme já aponta Aristóteles, Nietzsche trata de colocá-lo numa linha de tempo, com início, meio – quando a tragédia atinge seu apogeu, com Ésquilo e Sófocles, principalmente o primeiro – e fim.

A preocupação com o fim, quando, conforme o autor, a tragédia experimenta sua decadência, ocupa boa parte do livro. Não porque Nietzsche queira fazer um tipo progressivo de história da literatura, em voga em seu tempo, mas que ele rejeitou (Nietzsche 10). Seu fito é refletir sobre a natureza da tragédia, que se explicita nas condições de seu nascimento; quando essas se perdem, a tragédia naufraga. Portanto, preservar o gênero é garantir as circunstâncias originais, quando ele se manifesta em estado puro e na pujança de suas potencialidades.

Pensar o nascimento é, portanto, pensar a essência, porque ali se congregam a natureza que deu margem ao aparecimento da tragédia – os dois espíritos em processo de manifestação e fusão – e as formas de que carecia para se expressar – o coro e o herói trágico. Na falta de um deles ou na introdução de um elemento novo, a tragédia assume outra feição, entrando em processo de degeneração.

É o que ocorre com Eurípides, que importa para a tragédia o que Nietzsche denomina espírito socrático. Se o espírito apolíneo e o espírito dionisíaco podem se opor, eles podem igualmente se harmonizar, construindo uma unidade corporificada na tragédia; é quando "Diónisos fala a língua de Apolo, mas Apolo acaba por falar a língua de Diónisos" (GT/NT § 21). O espírito socrático, de cunho racionalista, crente de que, pela razão, podem ser superados os males da existência, impede a experiência trágica, que não admite solução; logo, "pressupõe que os problemas essenciais da existência possam ser resolvidos pelas atividades da mente racional" (Silk & Stern 11, p. 76). Para Nietzsche, Sócrates "simboliza o homem liberado pela razão do medo da morte, o otimista para quem toda a verdade é racionalmente acessível" (id., ibid., p. 78).

Também quando examina a tragédia de Eurípides o filósofo vai em busca dos elementos estruturais para compreender a alteração ocorrida. Assim, destaca a nova função do prólogo, a diminuição do papel do coro e a introdução do deus ex-machina, artifício que opõe ao aniquilamento do herói a perspectiva de uma mudança favorável, antecipada na fala das divindades que se interpolam à ação dramática. Nietzsche integra a esse processo histórico a ascensão do diálogo platônico, procedendo a uma curiosa e relevante associação entre as duas formas, a do drama e a do discurso filosófico, fundadas ambas no diálogo, mas carente, a segunda, do elemento tétrico e ameaçador contido na trajetória do herói trágico. Platão retoma o elemento fundamental do teatro, o diálogo, para neutralizar sua força dramática e, com isso, afastá-lo da vida, jogando-o para o plano abstrato das idéias e do pensamento.

A história do ocidente é a história do otimismo socrático, que, em obras posteriores, tomará o nome de Cristianismo. Nietzsche, ainda não o virulento crítico da moral cristã, antecipa em O nascimento da tragédia, os votos de um retorno saudável, agora ao espírito da tragédia, corporificado na Gesamtkunstwerk de Richard Wagner, conforme o filósofo, música trágica que, antes, teve sua expressão mais acabada nas criações de Ésquilo.

O nascimento da tragédia no espírito da música, lançado em 1872, conclui com uma utopia, a de que a arte possa retomar o bom caminho da tragédia, propiciando a expressão harmoniosa e conjunta de dois espíritos fundamentais à vida humana, o apolíneo e o dionisíaco. Valorizando a ópera de Wagner num período anterior à consagração do compositor em Bayreuth e almejando o renascimento do trágico no seu tempo, Nietzsche escreve um livro voltado para o presente e para os que acredita serem os problemas contemporâneos.

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Assim sendo, o ensaio estabelece com a ciência literária de sua época uma relação simultaneamente de atração e de recusa. De um lado, pertence de corpo e alma à tradição germanista dos estudos clássicos, em consolidação desde o século XVIII com Johann Joachim Winckelmann, autor de Reflexões sobre a arte antiga, de 1755, e expressos nas pesquisas de Friedrich August Wolf, na poesia de Hölderlin e nas reflexões sobre o trágico encontráveis em ensaios de Schiller, Schelling e Hegel. Havia já cem anos que os alemães dedicavam-se a estudar os gregos, por uma parte para chegar "à reconstrução da Antiguidade em todos seus detalhes reais" (Silk & Stern 11, p. 11), por outra para encontrar no drama grego parâmetros para o estabelecimento de um teatro nacional, como desejam Lessing e Schiller. Graças a esses esforços, "no início do século XIX a Alemanha tornou-se o centro europeu para os estudos clássicos, tanto tradicionais como novos" (id., ibid., p. 11), ensejando a fundação de uma disciplina, a Altertumwissenschaft, na qual se tornou especialista.

No mesmo sentido, O nascimento da tragédia pode ser relacionado à ascensão da história da literatura, que, na Alemanha, tem entre seus fundadores Friedrich Schlegel, autor de Sobre o estudo da poesia grega, de 1795, e de História da literatura antiga e moderna, de 1815, e August Wilhelm Schlegel, autor do Curso de literatura dramática, de 1809. Como se vê, também na obra dos irmãos Schlegel dá-se um cruzamento entre história da literatura, estudos clássicos e reflexão sobre o drama, respondendo a questões caras aos intelectuais alemães de seu tempo, que viam a Grécia como o padrão inspirador da Alemanha atual(1).

Nietzsche, porém, não adota nenhum dos dois modelos de investigação. Rejeita a idéia de pensar a Grécia enquanto o distante e perdido no tempo, escolhendo a tragédia ateniense como paradigma para a arte revolucionária de que o presente carece. Também não faz história da literatura enquanto uma narrativa do passado, que, se vai em busca do início, como procede Nietzsche ao pesquisar o nascimento da tragédia, é para contar o crescimento e o processo de maturação, retratando sua evolução rumo ao aperfeiçoamento contínuo.

O nascimento da tragédia parece querer contestar de modo visceral essa forma de fazer história, segundo a qual o início guarda um componente mítico. Com efeito, as histórias literárias produzidas pelo Romantismo, e nem o Positivismo desmentiu essa fórmula, vão em busca do herói fundador, aquele que deu origem ao processo de produção literária a partir de um tipo de separação radical: seja entre a literatura e as criações populares, seja entre a literatura do país dominador e a do país dependente, ou entre a literatura da Metrópole e a da colônia, agora convertida em nação autônoma.

O começo coincide com a origem, e para narrá-la só dispomos do mito; eis por que as histórias literárias do século XIX (e muitas das do século XX) recorrem ao modelo narrativo do mito de origem para darem início ao texto (Zilberman 12, p. 59-68). Além disso, esse começo é primitivo, as formas ainda estão em processo de constituição, sendo que sua consolidação decorre do avançar do tempo, num permanente processo de melhora. Também essa visão é moldada pelo padrão do mito, que, ao apresentar uma origem, situa-a num passado remoto, irrecuperável mas primordial, de que adveio a trajetória da comunidade responsável por sua criação e narração(2).

Ao apresentar seu estudo sobre a tragédia, Nietzsche não fala em origem(3), e sim em nascimento, diferença semântica que aponta para um outro posicionamento metodológico. Além disso, a tragédia mais antiga, a de Ésquilo, é considerada exemplar, e não uma forma primitiva que, depois, teria sofrido correções na pena de seus sucessores. Pelo contrário, quando ela veio à luz, já estava pronta, porque continha os elementos básicos, o coro – e Nietzsche admira de modo especial os coros de Ésquilo – e o herói trágico. Depois, sobreveio a ruptura, dada a introdução do segundo ele malfadado socratismo, verificável na obra de Eurípides. Assim sendo, na sua perspectiva, a história da literatura caracteriza-se pela descontinuidade porque não provém de algum começo, nem ruma para o cumprimento de um destino. As obras acontecem e dão certo quando ocorre de modo espontâneo e acabado o encontro, para ele até mágico, entre Apolo e Dioniso, corporificação dos espíritos vitais existentes na natureza.

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Mas o fito de Friedrich Nietzsche não é fazer história da literatura, e sim encontrar na tragédia um meio de refletir sobre:• a natureza da criação literária, segundo a qual o verdadeiro artista é aquele que dá vazão aos espíritos vitais da natureza, nesse sentido facultando a configuração da "obra de arte total", expressão de Richard Wagner que ilustra a utopia do filósofo;• a possibilidade de uma experiência estética globalizante, conforme a qual se verifica o retorno à natureza primordial, quando o ser humano não se distingue do todo, podendo contemplar o que é sua existência enquanto aniquilação e ruína, mas sem sofrer as conseqüências da catástrofe;• a vida humana enquanto derrota, fracasso da vontade, destruição, pois, conforme apontam Silk e Stern, a "preocupação última" de O nascimento da tragédia é com "a condição trágica do homem", encarnada pelo protagonista: "O herói sofrente da tragédia grega, Édipo ou Prometeu, é o modelo original para o Übermensch de Nietzsche, o super-homem e NT, coerentemente, o protótipo de toda sua filosofia" (Silk & Stern 11, p. 296).

O legado do livro advém, por uma parte, de suas intenções; de outro, das relações que ele estabelece. Consideradas suas metas e seu objeto, O nascimento da tragédia transmite-nos, pelo menos:• as noções de apolíneo e dionisíaco, incorporadas à teoria estética enquanto princípios vitais geradores de obras de arte, no âmbito da produção, ou emanados delas, enquanto experiência de recepção;• uma tese sobre o nascimento da tragédia que, se de um lado carece de pesquisa de campo (aspecto em que Nietzsche se diferenciou substancialmente de seus parceiros de Altertumwissenschaft) e revela uma série de equívocos históricos e de interpretação(4), de outro, é rica em sugestões e insights sobre a civilização grega. Destaque-se, nesse sentido, que ele supera a visão da cultura helênica enquanto todo homogêneo, entendido como expressão da serenidade e do classicismo acabado; apresenta, pelo contrário, uma perspectiva dialética que opõe ao perfeccionismo formal, próprio ao universo apolíneo, o sensoria- lismo, o naturalismo e a despreocupação com a aparência, característicos do comportamento dionisíaco.

O próprio Nietzsche, em obra posterior, assinala como méritos do livro esses aspectos, sublinhando a conceituação dada aos espíritos dionisíaco e socrático, bem como a apreciação positiva dos valores estéticos:As duas inovações decisivas do livro são, em primeiro lugar, a com- preensão do fenômeno dionisíaco entre os gregos: o livro dá a primeira psicologia deste, vê nele uma das raízes de toda a arte grega; em segundo lugar, a interpretação do socratismo: Sócrates considerado como instrumento da dissolução grega, reconhecido pela primeira vez como decadente típico. A racionalidade contra o instinto. A racionalidade a todo custo considerada como força perigosa, que mina a vida! Em todo o livro um profundo e hostil silêncio sobre o cristianismo. Este não é apolíneo nem dionisíaco; nega todos os valores estéticos, os únicos valores que A origem da tragédia reconhece (EH/EH).

De modo menos direto, podem-se considerar igualmente produtos de O nascimento da tragédia:• a superação da dicotomia entre arte e vida, em que a primeira se caracteriza pelo desinteresse e a segunda pelo pragmatismo; para Nietzsche, a arte é visceralmente interessada enquanto exposição do sentido radical da existência, em uma intensidade que a própria vida não alcança, a não ser quando revelada em sua perspectiva trágica. É o que o drama ateniense do século V a.C. realiza e que o filósofo espera rever, no momento em que escrevia o texto acreditando que sim e, depois, decepcionando-se(5);• a proposta de uma outra escrita da história da literatura, feita não de continuidades, mas de rupturas, em que a evolução é substituída pela manifestação. Observe-se que a literatura grega é particularmente adequada para a contestação do modelo então vigente de história da literatura, pois ela abre com duas obras-primas, as epopéias de Homero, Ilíada e Odisséia, e se constitui de ápices, como o da tragédia e da comédia do século V a.C.

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De outra parte, o legado de Nietzsche decorre das relações que estabelece, de um lado, com o mundo grego que investigou, de outro, com a modernidade, que o inquiriu. Com efeito, o filósofo, interpretando a tragédia ateniense, deixou-se em grande parte levar por suas leituras: Aristóteles lhe sugeriu várias idéias, entre as quais a premissa inicial, em que informa que o gênero nasceu entre os solistas do ditirambo, de onde proveio o primeiro ator, virtualmente o herói trágico. Aristófanes lhe inspirou a avaliação da tragédia de Ésquilo, contraposta à de Eurípides, verborrágica(6), racionalista, cheia de artifícios facilitadores, como os que Nietzsche denuncia, provavelmente informado por As rãs. O mesmo dramaturgo o ajuda a entender a proximidade entre Eurípides e Sócrates, bem como a associação entre esse pensador e os sofistas, relação negada e sonegada por Platão em seus diálogos, mas a que se tem acesso graças à comédia As nuvens. Grande é também a dívida de Nietzsche para com Heráclito, cujo mérito reconhece e a quem, de certo modo, agradece, quando escreve o autobiográfico Ecce homo; deste filósofo pré-socrático procede a concepção de natureza como múltiplo em permanente conflito e mutação.

Já se vê que o mundo grego de Nietzsche é o da poesia; ou, se se quiser reservar esse conceito para uma produção de estilo mais específico, dele é o mundo grego literário, que se transmitiu pela escrita. O filósofo confia no poder e representatividade da escrita, retirando dela as informações de que carece. A natureza múltipla e plural que privilegia é ainda a que se corporifica no texto, âmbito de onde Nietzsche não se afasta, circunstância que, caso acontecesse, talvez relativizasse suas certezas e introduzisse a suspeita sobre o material disponível, cuja legitimidade enquanto tradução da cultura helênica não questiona.

Examinando suas avaliações, é possível recompor as relações que Nietzsche propôs com o passado e com sua formação intelectual, homem da escrita e de gabinete, alheio à palpitação social e natural que atribuía aos gregos, mas que parecia não experimentar. Por outro lado, verificando-se as projeções que provocou, chega-se ao impacto de sua obra sobre contemporâneos e sucessores. Uma dessas projeções relaciona-se à teoria da história embutida no livro, manifesta desde seu título, ao privilegiar a noção de nascimento, e não de começo, produção ou gênese, conceitos estes rejeitados igualmente por Walter Benjamin, no ensaio que talvez possa ser considerado resposta e contradição às idéias de Nietzsche.

Com efeito, em A origem do drama barroco alemão, Walter Benjamin escolhe como tema de investigação o gênero com que, na Alemanha, a tragédia se confundiu, o Trauerspiel, sendo os dois termos seguidamente considerados sinônimos. Elege também um período da história da arte, o Barroco, com sua respectiva localização cronológica e geográfica, a Alemanha do século XVII, em contraposição à Atenas do século V a.C., para desenvolver sua tese principal sobre a natureza da criação artística. E detém-se sobre o conceito de ruína, que, corporificado na alegoria, revela o significado da vida humana ou o fracasso da experiência existencial.

É quando se detém no estabelecimento das diferenças entre origem (Ursprung) e gênese (Entstehung) que Benjamin parece dialogar com Nietzsche(7). O assunto ocupa a primeira parte de seu estudo, visando provar que origem, ao contrário de gênese ou aparecimento, não descreve o processo histórico, recusando, tal como Nietzsche, os procedimentos da historiografia em geral e da história da literatura em particular. Característico da origem é o fato de corresponder ao momento em que o objeto toma forma, "torna-se". Escreve ele:Acontece em cada fenômeno original uma determinação da forma na qual uma idéia vai confrontar constantemente o mundo histórico, até que ela se mostra completa, na totalidade de sua história. A origem não é, portanto, descoberta pelo exame de seu fundo real, mas relaciona-se à sua história e subseqüente desenvolvimento (Benjamin 3, p. 45-6).

A Benjamin interessa o que ele chama de "ciência da origem" ou "história filosófica", capaz de revelar "a configuração da idéia – a soma total de todas as possíveis justaposições significativas de tais opostos" (Benjamin 3, p. 47). Conforme explica George Steiner, origem "não significa apenas 'fonte', mas também o salto (Sprung) primordial no ser, que de imediato revela e determina a estrutura a

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desdobrar a dinâmica central da forma num organismo de fenômeno espiritual" (id., ibid., p. 16).

Como se vê, o conceito proposto, em oposição ao de Nietzsche, é preferentemente idealista, rejeitando as determinações da natureza, para entender o objeto de arte como estruturação formal que dá vazão a uma idéia. Por isso, seu estudo sobre o drama barroco alemão propõe-se como alternativa à interpretação de Nietzsche, buscando no conceito do objeto a possibilidade de sua compreensão, conforme um centramento auto-suficiente que exclui a interferência de fatores extra-estéticos. Contrapõe-se à atitude do filósofo, que, manifestando o propósito de estudar a tragédia, descreve as condições que lhe deram nascimento, deixando o objeto, com suas determinações, para segundo plano.

Se O nascimento da tragédia aponta para uma releitura da tradição germânica de estudos clássicos e para uma reescrita da história da literatura a partir do conhecimento que tinha da arte grega, a discussão introjetada pela Origem do drama barroco alemão emerge da leitura que Walter Benjamin fez de Nietzsche, estabelecendo-se, graças ao elo entre as duas obras, uma outra história, aquela que provém do diálogo intenso que se dá no interior do corpo literário.

Notas (1) A admiração dos intelectuais alemães do final do século XVIII e do início do século XIX pela Grécia era tão grande, que eles supunham ser sua língua a que mais se aproximava da língua grega (cf. Silk & Stern 11, p. 7). Cabe lembrar que, até 1870, a Alemanha era uma nação dividida politicamente, mas unificada pela mesma língua, tal qual a Grécia do período clássico antigo, o que talvez justifique a expansão dos estudos clássicos nas universidades germânicas. (2) Relativamente ao conceito de mito, cf., entre outros, Eliade 5. (3) A edição portuguesa da obra de Nietzsche, aqui citada, revela esse problema de tradução, considerando a palavra alemã Geburt equivalente à origem; nas Obras incompletas corrige-se o erro, denominando o ensaio O nascimento da tragédia no espírito da música. Cf. Nietzsche 7. (4) Em seu livro, M.S. Silk e J.P. Stern elencam os erros cometidos por Nietzsche, como, por exemplo, sua avaliação da música grega, a concepção sobre Apolo, a análise da relação conflituada entre Apolo e Dioniso, entre outras. A propósito, cf. Silk & Stern 11. (5) Quando escreveu O nascimento da tragédia, Nietzsche mantinha excelentes relações com Richard Wagner, cuja obra operística admirava, por considerar paradigmática para os novos tempos. Contudo, logo sobreveio a decepção, sendo que, em seus últimos escritos, ele veio a considerar o compositor o exemplo acabado do artista decadente. Em "O caso Wagner", Nietzsche acusa: "a arte de Wagner é doente". Cf. Hollingdale 6, p. 142. (6) Em certo sentido, Paul De Man acusa Nietzsche do mesmo pecado, quando afirma: "Ainda mais do que o Discurso sobre a origem da desigualdade, de Rousseau, O nascimento da tragédia é na realidade um discurso, uma arenga que combina o poder sedutivo da narrativa genética com a cumplicidade retórica de um sermão." De Man 4, p. 93. (7) Walter Benjamin discute diretamente as teses de Nietzsche durante o andamento de sua pesquisa, mas não aborda questões propriamente conceituais. Cremos que esta discussão fica subentendida no decorrer da obra, conforme propomos aqui.

Referências Bibliográficas 1. ARISTÓFANES. Obras completas. Tradução de D. Federico Baraibar y Zermárraga. Buenos Ayres. El Ateneo, 1958. 2. ARISTÓTELES. Poética. Porto Alegre. Globo, 1966. 3. BENJAMIN, W. The origin of german tragic drama. Tradução de John Osborne. Londres, NLB, 1977. 4. DE MAN, P. Allegories of reading – figural language in Rousseau, Nietzsche, Rilke, and Proust. New Haven and London, Yale University Press, 1979. 5. ELIADE, M. Mito y realidad. Madrid, Guadarrama, 1968. 6. HOLLINGDALE, R.J. A Nietzsche reader. London, Penguin, 1977. 7. NIETZSCHE, F. Obras incompletas. Tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho. Col. Os Pensadores. 3a ed. São Paulo, Abril Cultural, 1983. 8. _______. A origem da tragédia. Tradução de Álvaro Ribeiro. Lisboa, Guimarães, 1978. 9. _______. Ecce hommo. Cómo se llega a ser lo que se es. Tradução de Federico Milá. Buenos Ayres, Ediciones Siglo Veinte, 1978. 10. _______. On the

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advantage and disadvantage of history for life. Tradução de Peter Preuss. Indianapolis & Cambridge, Hackett Publishing Company, Inc. 1980. 11. SILK, M.S. & STERN, J.P. Nietzsche on tragedy. Cambridge, Cambridge University Press, 1995. 12. ZILBERMAN, R. "A fundação da literatura brasileira". Revista de literatura comparada. São Paulo, Associação Brasileira de Literatura Comparada/ABRALIC, 2, maio de 1994, p. 59-68.

11 - Ler Nietzsche com Mazzino Montinari Ernani Chaves

Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Pará

Reading Nietzsche with Mazzino MontinariAbstract: This article aims to present to the Brazilian public the methodological prescriptions for reading Nietzsche offered by Mazzino Montinari in "Reading Nietzsche: the Twilight of Idols". It aims to show that these prescriptions issue from consideratioons done by Nietzsche himself about the reader that he desired for his books. Key-words: reading – philology – history

Resumo: O presente artigo visa a apresentar ao público brasileiro as prescrições metodológicas indicadas por Mazzino Montinari para a leitura de Nietzsche, que se encontram expressas em "Ler Nietzsche: O Crepúsculo dos Ídolos". Procura-se mostrar que estas prescrições decorrem de considerações do próprio Nietzsche a respeito do leitor que desejava para os seus livros. Elas implicam no estabelecimento de uma condição preliminar, de ordem filológico-histórica, para que possamos aceder à interpretação filosófica, sem que aquela se constitua numa substituta desta. Palavras-chave: leitura – filologia – história

À memória de Federico Gerratana

A importância de Mazzino Montinari (1928-1986) para a pesquisa sobre Nietzsche a partir da década de 60 pode ser medida, entre outras, por duas declarações. A primeira, de Karl-Heinz Hahn, na época o diretor do Arquivo Goethe-Schiller de Weimar, onde estavam depositados desde 1950 os manuscritos de Nietzsche: a chegada de Montinari a Weimar, diz ele, "nos começos de 1961", "inicia uma segunda fase nas pesquisas sobre Nietzsche" (Hahn 3, p. 1). A outra declaração está no necrológio de Montinari escrito por Henning Ottmann. Ao lembrar que Montinari havia ganho, em 1985, o prêmio "Friedrich-Gundolf para Germanística no Estrangeiro", Ottmann acrescenta que o prêmio "fora um pequeno agradecimento a um germanista italiano, por aquilo que a filologia alemã não fora capaz de fazer" (Ottmann 11, p. 297). Ambas as declarações tocam num ponto em comum: com Montinari começou, de fato, uma nova etapa nas pesquisas sobre Nietzsche. Os resultados do seu

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esforço de pesquisador infatigável são, hoje, sobejamente conhecidos. O principal deles, a organização, ao lado do ex-mestre e amigo Giorgio Colli, da edição crítica e completa das obras de Nietzsche que, pela primeira vez, dava um tratamento adequado aos fragmentos póstumos ao ordená-los cronologicamente, integrando-os de maneira confiável à obra publicada e destruindo, de uma vez por todas, a legenda em torno da existência de uma obra com o título de Vontade de Potência. Além disso, ao lado de Wolfgang Müller-Lauter, Karl Pestalozzi e Heinz Wenzel, Montinari reorganizou, a partir de 1972, os Nietzsche-Studien, anuário internacional para a publicação dos resultados das pesquisas sobre Nietzsche, à maneira dos Kant – ou Hegel-Studien, ao mesmo tempo em que fundou e coordenou até a sua morte a coleção intitulada Monographien und Texte zur Nietzsche-Forschung, todos publicados pela mesma Walter de Gruyter que acolhera, após longos percalços, a publicação da edição completa e crítica(1). Acrescente-se a isso a organização e edição da correspondência e das inúmeras anotações para o Zaratustra, publicadas, finalmente, em 1991, trabalho que sua morte havia interrompido.

Entretanto, seria extremamente injusto reduzir a importância de Montinari a um trabalho meramente editorial. Ao lado dessa tarefa, tornou-se também um intérprete fundamental de Nietzsche, deixando-nos além de uma "Introdução" (Montinari 5 e 6) ao seu pensamento um número bastante elevado de artigos, ora escritos em alemão, ora em italiano e nem todos ainda publicados (Campioni 1). Se há um ponto em comum nesta vasta produção, ele diz respeito a um tema que ocupou Montinari sobremaneira: a de como "ler Nietzsche". Questão fundamental para Montinari, que via na sua possível resolução um caminho seguro de acesso ao controvertido pensamento de Nietzsche. Afinal, poucos filósofos no decorrer da História provocaram tantas controvérsias quanto Nietzsche. Controvérsias que ganharam relevância ímpar após o seu colapso psíquico e o trabalho de divulgação, mas também de falsificação e deturpação de sua obra, empreendido por Elizabeth Förster-Nietzsche. Com mãos de "empresária moderna", a "irmã de Zaratustra", título que ela mesma se atribuiu, Elizabeth Förster-Nietzsche transformou o nome e a obra do irmão num empreendimento acima de tudo lucrativo e contribuiu, de maneira decisiva, para sua apropriação pelo nazismo. Controvérsias que só faziam aumentar, na medida em que intérpretes tão importantes quanto Jaspers, Löwith, Heidegger, Fink, Kaufmann e Deleuze, continuavam utilizando-se, em maior ou menor medida, das edições pouco confiáveis dos fragmentos póstumos, publicadas por Elizabeth ou sob seus auspícios. Controvérsias, enfim, que faziam com que intérpretes tão distantes ideologicamente, como o nazista Alfred Baumler e o marxista Georg Lukács, acabassem por repetir os mesmos equívocos (Montinari 7, p. 169). Mas, a questão "ler Nietzsche" passou a ganhar, para Montinari, uma absoluta atualidade, em vista dos "novos nietzschianismos" que grassavam a partir da década de 60 e reconstruíam algo que lhe aterrorizava: um novo mito em torno de Nietzsche (Montinari 7, p. 1). Como ler Nietzsche tornou-se uma questão que não é menor, irrelevante, pois o próprio Nietzsche não desejava ser lido de qualquer maneira(2).

O artigo que ora é publicado, o primeiro de Montinari no Brasil, nos dá uma amostra precisa do "método" de leitura proposto por ele. Trata-se de uma espécie de guia ao leitor de Crepúsculo dos Ídolos, de uma "Introdução" imprescindível, sem a qual parece que a obra nos escaparia. Em que consiste tal "método"? Ou, talvez, uma pergunta deva anteceder esta explicitação: qual o seu ponto de partida? Este é, sem dúvida, a crítica de toda interpretação que, por ignorar as prescrições do próprio Nietzsche à leitura de sua obra, incorriam em uma "dogmatização" ou, pior, em uma deturpação de suas idéias. A questão "ler Nietzsche" torna-se, assim, uma questão ancorada nas inúmeras declarações do próprio filósofo a respeito do leitor que pretendia. Por isso, ela não é uma questão à margem das considerações filosóficas de Nietzsche mas, ao contrário, está intrínsecamente ligada a elas. Dessas prescrições, Montinari destaca a importância que Nietzsche conferia à leitura filológica (Montinari 7, p. 9). Eis aqui a pedra de toque do "método" de Montinari: sem um cuidado filológico prévio, toda leitura de Nietzsche está condenada ao fracasso. Uma tal declaração provocou, sem dúvida, inúmeras críticas e mal-entendidos. Queria Montinari encontrar o "verdadeiro" Nietzsche, tal como o título em italiano de seu livro sugeria? Ao valorizar de maneira tão decisiva a base filológica, não estaria negligenciando as questões filosóficas? Mas, como esquecer, por outro lado, que o próprio

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Nietzsche traçara o retrato ideal do seu leitor, "um leitor como eu o mereço, que me leia como velhos e bons filólogos liam seu Horácio" (EH/EH, Por que escrevo livros tão bons, § 5)? Ou ainda, que pretendia para Aurora "leitores e filólogos perfeitos", exortando seu leitor a "aprender" a lê-lo "convenientemente" (M/A, Prefácio, § 5)? E que muito cedo já distinguia entre seu leitor ideal, que lê tranquilo, sem pressa e deixa de lado seus preconceitos, em oposição à voracidade do leitor de jornal (BA/EE, Prefácio, I)?

Atento às críticas, Montinari procurava esclarecer desde o "Ler Nietzsche" (1981), seu escrito programático acerca do tema, que a base filológica e histórica não substitui, de modo algum, a interpretação propriamente filosófica, mas que é o seu pressuposto indispensável (Montinari 7, p. 4)(3). É ainda neste texto, ao aproximar filologia e história, que Montinari igualmente adverte, num "aditamento para especuladores", que inserir Nietzsche historicamente, colocá-lo em confronto com o seu tempo, identificar os interlocutores que lhe eram contemporâneos, reconstruir sua biblioteca ideal, não significa sacrificar a necessária interpretação filosófica (Montinari 7, p. 6). Filologia e história não podem ser tomadas, às expensas do que Nietzsche pensava sobre isso, como possíveis substitutas da interpretação filosófica, como se esta estivesse submetida às vissicitudes do intérprete, enquanto aquelas poderiam promover uma leitura objetiva. Montinari não está reivindicando uma filologia positivista, que restituiria a "verdade" última de um texto. Até porque, ele mesmo o ressalta, a leitura de um autor como Nietzsche nunca passa ao largo das vivências de seu leitor. A base filológico-histórica funcionaria, portanto, como uma espécie de sabedoria apolínea, indispensável ao leitor que não queira transformar Nietzsche naquilo que ele não é ou que nunca quis ser, necessária para evitar toda crítica sem fundamento, mas também toda espécie de mitificação. Entretanto, mesmo que se possa flagrar em Montinari uma intenção de objetividade, ela só pode ser atribuída à necessidade de não repetir os equívocos e os mal-entendidos dos nietzschianos e anti-nietzschianos de ontem e de hoje.

"Ler Nietzsche: O Crepúsculo dos ídolos" não é apenas mais um exemplo do procedimento adotado por Montinari. De certo modo, ele testemunha a radicalização da sua proposta. Se no "Ler Nietzsche", filologia e história são "aproximadas", na medida em que, lembra Montinari, a questão do "sentido histórico" em Nietzsche não se esgota no diagnóstico feito na Segunda consideração extemporânea, aqui filologia "é" história. Não apenas aproximadas, filologia e história constituem agora um único procedimento, tornando-se quase que sinônimas uma da outra. Entretanto, a ressalva feita no texto de 1981 permanece: o procedimento filológico-histórico é um "trabalho preliminar", que "sozinho não é suficiente para a compreensão de Nietzsche, mas que pode deixar o caminho livre para ela". E é exatamente isso que o movimento do texto vai concretizar: a passagem do procedimento "preliminar" para a "interpretação filosófica".

Com a minúcia, a paciência e a precisão do ourives – figura que Nietzsche compara à do filólogo no mesmo "Prefácio" à Aurora acima citado – Montinari disseca (para usar uma metáfora médica, tão cara ao Nietzsche da época) o texto do Crepúsculo dos ídolos nas seis primeiras partes que o compõem. Com o auxílio do procedimento filológico-histórico, o que vimos aparecer é um vasto painel, de onde surge não apenas o Crepúsculo dos ídolos, mas toda a última produção teórica de Nietzsche: os dois últimos textos sobre Wagner, O anticristo e Ecce homo, na sua necessária conexão com o projeto de uma obra intitulada Vontade de potência. O exame dos fragmentos póstumos permitirá a Montinari demonstrar o quanto a consideração da obra publicada exige uma confrontação com os póstumos, para que possamos reconstiuir a gênese de uma idéia ou de um conceito. Assim, ficamos sabendo, por exemplo, que a máxima que abre o livro – "A ociosidade é o início de toda psicologia. Como? Seria a psicologia um – vício?" – já existia há sete anos nos manuscritos de Nietzsche. Podemos acompanhar portanto as transformações que ela sofre desde este primeiro momento, onde se lia: "A ociosidade de Zaratustra é o início de todos os vícios". Ora, uma análise detida destas modificações até a versão final no livro publicado permite-nos acompanhar o movimento da produção de um conceito em Nietzsche. O leitor é surpreendido pela montagem de uma extraordinária teia de relações entre obras e fragmentos póstumos, onde as sucessivas modificações

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dos planos inicialmente estabelecidos vão aparecendo, para dar lugar, finalmente, à forma que ganharam nos últimos livros. Movimento de ir-e-vir, como uma lançadeira, que vai, aos poucos, costurando as bordas de um texto, em princípio, velado. Trabalho da mais fina ourivesaria (da parte de Montinari), que revela a outra brilhante ourivesaria (a de Nietzsche), ao mostrar como uma frase, uma palavra, pedra bruta numa primeira aparição, alcança todo o seu brilho e valor inestimável anos depois, no texto publicado. Processo de lapidação, através do qual o pensamento de Nietzsche vai se mostrando em formação, ganhando vida em meio a tantas hesitações e flutuações.

Do mesmo modo, a nova terminologia usada por Nietzsche no livro, o "ar de hospital" que emana dele, só pode ser compreendida se Nietzsche for inserido no debate que lhe era contemporâneo. À sua leitura fundamental dos Essais de psychologie contemporaine de Paul Bourget e de outros franceses, acrescente-se a do livro Dégénerescence et criminalité do psiquiatra Charlé Féré, um estagiário no serviço do famoso Charcot, na Salpêtrière de Paris. Pode-se, portanto, ter um entendimento mais acurado da presença de tantas análises "fisiológicas" nos textos da época e, principalmente, de que modo Nietzsche se posiciona, para freqüentemente criticar, em relação ao conhecimento médico-psiquiátrico da época. Por outro lado, detecta-se mais uma falha nas edições tão conhecidas das coletâneas intituladas como Vontade de potência: num dos aforismos (o de número 52 da edição conhecida como "canônica"), uma passagem do livro de Féré, traduzida por Nietzsche, aparece como sendo do próprio Nietzsche! Chamo particularmente a atenção para o fato de que a complexa elaboração da idéia de uma "fisiologia da arte" liga-se diretamente com essas leituras de Nietzsche.

A passagem à qual aludimos acima, do procedimento filológico-histórico para a interpretação filosófica, é feita na última parte do artigo. O texto denso é, entretanto, demasiado rápido, criando, de fato, um flagrante desequilíbrio entre os dois níveis de análise. De todo modo, o que é tratado nele é absolutamente importante: Montinari considera o cerne filosófico do livro a reiteração do pensamento do eterno retorno como um pensamento da pura e total imanência, ou seja, configurando o caráter absolutamente anti-metafísico do pensamento de Nietzsche. Conclusão ousada, pois a única referência ao eterno retorno no livro é, exatamente, sua última frase, onde Nietzsche diz de si mesmo, que é "o último discípulo do filósofo Dioniso" e, por isso, é também "o mestre do eterno retorno" (GD/CI, O que devo aos antigos, § 5). Para chegar até ela, Montinari retoma uma idéia de Heidegger, para quem o método de Nietzsche é um "método de conversão". Tal "conversão" acontece, de início, no plano da teoria do conhecimento, pela crítica da separação entre "mundo verdadeiro" e "mundo aparente". A partir daí, a "conversão" atinge o plano da moral, para desmentir a igualdade entre razão, virtude e felicidade anunciada por Sócrates, afirmando, ao contrário, que a virtude é conseqüência da felicidade, para denunciar a limitação patológica do moralismo da filosofia grega. O pensamento do eterno retorno é "a confirmação da imanência após a morte de Deus". Com isso, quando Montinari pensa a questão do eterno retorno, o faz exclusivamente a partir da sua concepção enquanto "imperativo ético". A afirmação do eterno retorno significa a afirmação e a justificação da vida: "Ele é, de fato, a maior justificativa da vida e, nesta medida, está em oposição ao que calunia a vida; mas porque isto é parte da vida, é também justificado e não julgável". Mais ainda: é o pensamento do eterno retorno que impede que o conceito de "vontade de potência" acabe por se tornar um princípio metafísico, um princípio sistematizador. O pensamento do eterno retorno é apresentado, enfim, como a superação da pretensão sistemática que o conceito de "vontade de potência" acabava por implicar.

Como dissemos acima, é muita coisa para pouca explicação. A tentativa de procurar esclarecer a posição de Montinari nos levaria, necessariamente, aos seus outros textos. Entretanto, gostaria de assinalar uma possível pista, a partir de uma certeira observação de Karl Pestalozzi, na sua "Introdução" à tradução alemã do livro de Montinari sobre Nietzsche. Como já assinalara Wolfgang Müller-Lauter, Montinari, no seu combate à mitificação de Nietzsche e a idéia de Nietzsche como criador de mitos, na contra-mão da maioria dos intérpretes, considera-o um continuador da Aufklärung (Müller-Lauter 9, p. 33). Pestalozzi vai dizer-nos então, que, deste ponto de vista, o Zaratustra é um obstáculo, um "embaraço" para Montinari e "contra o estilo do Zaratustra e sua pretensão poética, ele dirigiu uma verdadeira guerra" (Pestalozzi 12, p. XI). A conseqüência disso tinha sido a impressão de

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"provisioriedade" do capítulo sobre o Zaratustra neste livro, cuja primeira edição italiana é de 1975. A intensa ocupação filológica com o Zaratustra, que culminará na publicação de todas as variantes do texto em 1991, fez com que Montinari, posteriormente, tivesse uma compreensão mais profunda desta obra. Assim sendo, em 1984, a posição central do eterno retorno na sua análise do Crepúsculo dos ídolos já mostra os resultados deste aprofundamento(4), embora, para fugir de toda mitificação e de todo modismo, Montinari também submeta o Zaratustra ao seu "método" de leitura. Restaria, enfim, apontar, que permanece ainda uma questão: o lugar do conceito de "vontade de potência" que, de todo modo, precisa ser "superado", segundo Montinari. A análise deste conceito no livro de 1975 mostra claramente a importância do livro de Wolfgang Müller-Lauter (Müller-Lauter 8), em especial sua crítica à interpretação heideggeriana, que faz dele um princípio metafísico. Entretanto, parece que em 1984, Montinari entende que exorcizar o perigo deste tipo de interpretação, supõe radicalizar o papel do pensamento do eterno retorno. E aqui residiria a originalidade deste pensamento, que segundo Pestalozzi, ele não reconhecia em 1975: é ele e não a teoria da vontade de potência, que pode fazer-nos escapar das armadilhas da metafísica. Daí ser ele, apesar da única e breve referência no livro, o núcleo filosófico do Crepúsculo dos ídolos. Ousaríamos dizer que, para Montinari, o é de toda a última produção teórica de Nietzsche. Como podemos observar, a base filológico-histórica não nos garante nenhuma interpretação filosófica definitiva. Entretanto, ela nos garante algo precioso quando se trata de um filósofo como Nietzsche: impede toda interpretação abusiva.

A que tradição de leitores de Nietzsche Montinari se filiaria? É Pestalozzi ainda que nos responde: "Torna-se claro que o próprio Montinari se via naquela tradição da recepção de Nietzsche fundada por Owerbeck e Bernouilli na Basiléia e que se alinhara contra as manobras do Arquivo Nietzsche de Weimar" (Pestalozzi 12, p. xiii). Uma tradição, portanto, para quem o pensamento de Nietzsche, como o declarou uma vez Owerbeck, não comporta "nenhum entusiasmo póstumo" (cit. em Montinari 7, p. 3). No limite, é como se a contribuição fundamental de Montinari pudesse ser resumida em dois pontos básicos: primeiro, o "indivíduo" Nietzsche, celebrado por sua "loucura genial" ou criticado por seu "estilo" ou "falta de sistematicidade" pode, enfim, ser restituído "como parte da história" (Campioni 1, p. xlix); segundo, sua "atualidade" reside muito mais no fato de que ele, a despeito de suas inúmeras declarações em contrário, foi um filósofo "como os outros" (Simon 13, p. 1). Estes dois pontos só ganham sua relevância, quando confrontados, seja com as leituras ditirâmbicas, seja com aquelas que criticam Nietzsche como irracionalista, ideólogo das classes dominantes, etc. Como estes dois tipos de leitura são ainda muito usuais no Brasil, a publicação deste artigo de Montinari me parece, mais do que nunca, necessária.

Em 31.05.65, Montinari escrevia de Weimar a Giorgio Colli, acerca de seu trabalho. Um trecho desta carta, devolve-nos um pouco o "homem" Montinari, debruçado sobre os manuscritos de Nietzsche. Não com devoção, mas com os instrumentos que o próprio Nietzsche lhe legara: "Desde a última quarta-feira, estou absorvido com os Ditirambos. Hoje, terminei a compilação das folhas. Mas, o mais importante é que encontrei dois fragmentos, que devem ser datados de após o primeiro de janeiro de 1889. Creio que deverão ser os últimos de nossa edição. Um deles, decifrei inteiramente; o outro, ainda faltam algumas partes. Até agora, ninguém os conhecia: a respeito da decifração, realizei um milagre [...] Sigrid vai bem e manda lembranças a Ana e a ti. Amanhã, espero receber notícias tuas; escreverei de volta logo depois. Abraços, Mazzino" (Campioni 1, p. xxxv).

Notas (1) Como se sabe, o resultado do trabalho de Colli e Montinari recebeu aprovação imediata das editoras Adelphi, de Milão e Gallimard, de Paris. Só foi possível encontrar uma editora alemã, a partir da intermediação de Karl Löwith, que Colli e Montinari conheceram pessoalmente no Colóquio de Royaumont (França), em 1964 (Montinari 7, p. 20). (2) No Brasil, Scarlett Marton tem se ocupado bastante com esta questão. Sua conclusão é que, em geral, devemos principalmente a Heidegger e a Foucault nossa perspectiva de leitura de Nietzsche. A estes, ela opõe em um trabalho recente a perspectiva de Wolfgang Müller-Lauter (Marton 4), à qual poderíamos alinhar a de Montinari. O que não quer dizer que intérpretes como Foucault e Deleuze,

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por exemplo, não tivessem conhecimento do que acontecia do outro lado do Reno. Pelo contrário. Para tanto, lembramos dois fatos: 1) que foi Deleuze quem insistiu no convite a Montinari, para que ele participasse do Colóquio de Royaumont (cf. a carta de Montinari a Colli, escrita de Weimar, em 13.05.64 in Campioni 1, p. liii). Segundo Campioni, "o convite ao Colóquio de Royaumont pareceu a Montinari, de imediato, como uma oportunidade bem-vinda para tornar conhecido internacionalmente o trabalho na edição crítica e o seu significado (Campioni 1, p. li; 2). Na "Introdução" escrita por Deleuze e Foucault para a edição francesa, eles destacam a importância da edição nos mesmos termos de Montinari (Foucault 2, p. 561). Quanto a Heidegger, embora tenha morrido oito anos após o início da publicação da edição crítica, não conhecemos nenhuma alusão ao trabalho de Montinari. (3) O artigo "Ler Nietzsche", que também traduzimos, deverá ser publicado em breve, na revista "Idéias", da UNICAMP. (4) Acerca da análise do Zaratustra no livro de 1975, escreve Pestalozzi: "O destaque principal concentra-se nos filosofemas do Zaratustra: a doutrina do eterno retorno e a do além-do-homem. Através da análise, a doutrina do eterno retorno é relativizada na sua originalidade, na medida em que é colocada ao lado de idéias semelhantes de outros pensadores contemporâneos. É expressamente descrita, também, como um conceito-limite da racionalidade" (Pestalozzi 12, p. xi). Sobre a importância do Eterno Retorno em 1984, cf. Müller-Lauter 9, p. 39.

Referências Bibliográficas 1. CAMPIONI, G. "Die Kunst, gut zu lesen. Mazzino Montinari und das Handwerk des Philologen". In: Nietzsche-Studien, 18, 1989. 2. FOUCAULT, M. Dits et Écrits. Paris, Gallimard, 1994, Vol. 1. 3. HAHN, K-H. "Das Nietzsche-Archiv". In: Nietzsche-Studien, 18, 1989. 4. MARTON, S. "A terceira margem da interpretação". In: MÜLLER-LAUTER, W. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. São Paulo, Annablume, 1997. 5. MONTINARI, M. Che cosa ha veramente detto Nietzsche. Roma, Casa Ed. Astrolabio-Ubaldine Editore, 1975. 6. _______. Friedrich Nietzsche. Eine Einführung. Berlin/New York, Walter de Gruyter, 1991. 7. _______. Nietzsche lesen. Berlin/New York, Walter de Gruyter, 1982. 8. MÜLLER-LAUTER, W. Nietzsche. Seine Philosophie der Gegensätze. Die Gegensätze seiner Philososphie. Berlin/New York, Walter de Gruyter, 1973. 9. ___. "Ständige Herausforderung. Über Mazzino Montinaris Verhältnis zu Nietzsche". In: Nietzsche-Studien, 18, 1989. 10. NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA). Hrsg. G. Colli und M. Montinari, Bd. I-XV. Berlin/Ney York, Walter de Gruyter, 1980. 11. OTMANN, H. "Nachruf auf Mazzino Montinari (1928-1986)". In: Zeitschrifte für Philosophische Forschung, 41, 1987.

12 - Ler Nietzsche: O crepúsculo dos ídolos Mazzino Montinari

Artigo publicado originalmente em Nietzsche-Studien, 13, 1984. Tradução de Ernani Chaves

Reading Nietzsche: The twilight of idolsAbstract: Starting from the idea that the philosophical interpretation of Nietzsche has to have as its basis the philological-historical work, this article aims to present The twilight of idols. It rebuilds the genesis of the book in the context of the "Will to power"'s project. Key-words: philology – history – will to power – eternal recurrence

Resumo: Partindo do pressuposto de que toda interpretação filosófica de Nietzsche deve ter por base um trabalho filológico-histórico, o presente artigo visa a fazer uma apresentação do Crepúsculo dos ídolos. Nesta perspectiva, reconstrói-se a gênese do livro do interior do projeto da Vontade de potência para, enfim, concluir que, do ponto de vista filosófico, Crepúsculo dos ídolos mostra que é através do pensamento do eterno retorno que a superação da metafísica pode se realizar.

Palavras-chave: filologia – história – vontade de potência – eterno retorno

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1. Em 3 de setembro de 1888, em um esplêndido, o mais belo dos dias que Nietzsche vira em Sils-Maria, na Engadina – "uma força luminosa de todas as cores, um azul no lago e no céu, uma claridade do ar, totalmente inesperada" – ele escreveu o Prefácio da "Transvaloração de todos os valores". Nas semanas anteriores, sua vida se desorganizara; impulsionado pelo espírito, acordava muitas vezes às duas da madrugada e anotava o que antes lhe passara pela cabeça: nesses momentos, ouvia como seu senhorio abria a porta com cuidado e se esgueirava para caçar cabras alpinas (a Meta von Salis, 07.09.1888). Ele talvez também caçasse cabras alpinas... Estava no início de um novo trabalho e acreditava ter encontrado a forma de comunicá-lo, para publicar a obra independente "Transvaloração de todos os valores", cujo primeiro livro chamava-se O anticristo. Mas, a partir do material reunido até então surgiu também um outro escrito, inicialmente intitulado "Ociosidade de um psicólogo" e, depois, Crepúsculo dos ídolos ou como se filosofa com o martelo. Este era o resumo da sua mais essencial heterodoxia filosófica, a comunicação do resultado mais maduro do seu filosofar no último ano. Ambos, o projeto da "Transvaloração de todos os valores" em quatro livros e o Crepúsculo dos ídolos , surgiram do material da "Vontade de potência. Tentativa de uma Transvaloração de todos os valores", obra entrevista até o fim de agosto de 1888.

2. Antes de mais nada, e para evitar mal-entendidos acerca das minhas considerações sobre Crepúsculo dos ídolos , gostaria de dizer que o trabalho editorial, filológico, é um trabalho preliminar, que ele sozinho não é suficiente para a compreensão de Nietzsche, mas que pode deixar o caminho livre para ela. A filologia, ou seja, a história, pode franquear em três aspectos o caminho para a compreensão do Crepúsculo dos ídolos : a) na medida em que o coloca como a formulação filosófica e artística de suas idéias entre o começo e o verão de 1888; b) na medida em que estabelece sua íntima conexão com os fragmentos póstumos e, com isso, com a totalidade do desenvolvimento das idéias de Nietzsche; c) na medida em que ela, através da exploração das fontes, coloca o Crepúsculo dos ídolos em uma frutífera conexão com o mundo anterior, contemporâneo e com a posteridade de Nietzsche.

Os fragmentos póstumos, no sentido amplo desta palavra, formam aqui o pano-de-fundo onde se desenha este momento separado de nós, mas também acoplado a nós. A história do surgimento do Crepúsculo dos ídolos é, ao mesmo tempo, a história das intenções literárias de Nietzsche em relação a todo o material que ele reunira até então, tendo em vista a "Vontade de potência"; isto significa que se decifra o mistério do Crepúsculo dos ídolos colocando-o em uma conexão primeira, uma conexão de todo modo sui generis, na medida, enfim, em que devem ser encontradas as referências às fontes de Nietzsche, principalmente nos fragmentos póstumos. Gostaria de manter a diferença dos três pontos de vista, tal como os enumerei e fundamentei acima e isso pelas razões que se seguem: o primeiro ponto diz respeito ao Crepúsculo dos ídolos , na medida em que ele foi publicado, transmitido em uma forma muito específica; o segundo, na medida em que até a sua publicação ele era, em todo caso, parte de fragmentos igualmente bem específicos; o terceiro, na medida em que descobre as fontes, as leituras e os interlocutores de Nietzsche.

3. Acerca da função do Crepúsculo dos ídolos entre o Caso Wagner, publicado um pouco antes e os seus últimos escritos – O anticristo, Ecce homo – Nietzsche escreveu no "Prefácio": "Este pequeno escrito é uma grande declaração de guerra". Nietzsche se compreende em guerra pelo fortalecimento da "Transvaloração de todos os valores", pelo questionamento dos deuses. Certamente não é examinado nenhum deus temporal, mas sim os deuses eternos, que aqui são espicaçados com o martelo, como com um tridente. O martelo, com o qual Nietzsche filosofa em seu livro, é mais o martelo do minerólogo do que a rude ferramenta da brutalidade; sim, um tridente, através do qual como resposta "ouve-se esse famoso som oco", "que fala de entranhas insufladas". O Crepúsculo dos ídolos contém 10 seções de extensão desigual. As "Sentenças e setas", uma coletânea de 44 sentenças, correspondem a uma antiga tradição dos escritos de Nietzsche e também a um exercício literário neste gênero, com o qual nos deparamos, freqüentemente, em seus póstumos a partir de 1882. Elas são uma espécie de pré-paração (Vor-Spiel) séria para as exposições (Abhandlungen) filosóficas que se seguem.

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A primeira máxima da coletânea – "A ociosidade é o início de toda psicologia. Como? Seria a psicologia um – vício?"– existia há sete anos nos manuscritos de Nietzsche. Ela era – além disso – pensada, originariamente, como uma retomada do primeiro título de Crespúsculo dos ídolos ("Ociosidades de um psicólogo"). Um caderno de anotações de Gênova, da época imediatamente anterior à redação da Gaia ciência, contém, de fato, o seguinte fragmento: "A ociosidade de Zaratustra é o início de todos os vícios" (fragmento póstumo 12 (112) do outono de 1881; KSA, 9, p. 596) e, ao final, ainda como título: "A ociosidade de Zaratustra. de F(riedrich) N(ietzsche) " (fragmento póstumo 12 (225) do outono de 1881; KSA, 9, p. 616). Sete anos depois, Nietzsche não apenas retorna à sentença, mas também ao título. Neste meio-tempo, ele transcreveu a sentença em um caderno do início de 1888, em uma forma ligeiramente modificada: "A ociosidade é o início de toda filosofia. – Em conseqüência – é a filosofia um vício?..." (fragmento póstumo 11 (107) de novembro de 1887 a março de 1888; KSA, 13, p. 51). No manuscrito, filosofia; no livro publicado, psicologia: isto nos permite talvez compreender melhor o que Nietzsche pensava sob a palavra psicologia (e filosofia). Mas também (compreender melhor a conexão) Zaratustra – Filosofia – Psicologia. O otium filosófico como início de todos os vícios.

A ociosidade de Zaratustra tornou-se na primeira versão do título do Crepúsculo dos ídolos , "Ociosidade de um Psicólogo" (fragmento póstumo 22 (6) de setembro a outubro de 1888; KSA, 13, p. 586). Quando recebeu as primeiras folhas de correção da gráfica de Leipzig, Peter Gast (aliás Heinrich Köselitz), auxiliar e discípulo de Nietzsche, escreveu em 20 de setembro de 1888: "O título 'Ociosidade de um psi(cólogo)'" soa-me demasiado modesto, quando me lembro como ele poderia agir sobre as pessoas comuns: o senhor dirigiu sua artilharia para as montanhas mais elevadas, o senhor tem canhões como nunca houve antes e precisa apenas atirar às cegas, para aterrorizar os arredores. Um passo de gigante sob o qual as montanhas estremecem nas origens, não é mais nenhuma ociosidade. Além disso, na nossa época, a ociosidade é costume após o trabalho e o Mü (de "Müssigang") aparece também em Müdigkeit (cansaço).(1) Ah, eu suplico como só um homem incapaz deve suplicar: um título espetacular, brilhante". A retórica de artilheiro deste Peter Gast encontrou ouvidos exagerados e até mesmo sua manifestação em algumas passagens do Ecce homo. Nietzsche respondeu sete dias depois (em 27.9): "No que diz respeito ao título, no seu reparo tão humano, minhas próprias reflexões lhe anteciparam: finalmente, a partir das palavras do Prefácio, encontrei a fórmula que também talvez satisfaça suas necessidades. O que o senhor escreveu acerca da 'grande artilharia', devo simplesmente adotar em meio à escrita final do primeiro livro da 'Transvaloração'. Caminha-se para uma horrível detonação". O novo título – "Crepúsculo dos Ídolos" – era também uma maldade contra Wagner, como Nietzsche observara na mesma carta: Wagner compôs um "Crepúsculo dos deuses". As detonações da Transvaloração encontrariam então sua conclusão desmesurada em toda "Lei contra o cristianismo", que Nietzsche anuncia no "primeiro dia do ano um (em 30 de setembro de 1888 do falso calendário)", no final de O anticristo. O Prefácio do Crepúsculo dos ídolos também era datado de 30 de setembro de 1888, "no dia em que foi concluído o primeiro livro da Transvaloração de todos os valores (isto é, O anticristo)".

A impressão do Crepúsculo dos ídolos terminou no início de novembro. Neste meio-tempo – após a conclusão do manuscrito O anticristo – surgiu um outro escrito: Ecce homo. Neste, Nietzsche trabalhou até o fim de dezembro e o concluiu ao mesmo tempo que Nietzsche contra Wagner e os Ditirambos de Dioniso. Ecce homo fora pensado, inicialmente, como um apêndice do Crepúsculo dos ídolos ; ele ganhou sua própria autonomia, mas manteve do Crepúsculo dos ídolos o último capítulo: "O que devo aos antigos".

O Crepúsculo dos ídolos representa uma espécie de obra-gêmea de O anticristo, sobretudo da perspectiva da história de seu surgimento. Do mesmo modo que O anticristo, ele tem suas origens em um e mesmo material; eles até mesmo coexistem durante um longo tempo, em uma boa terça parte de um único manuscrito, isto é, as primeiras 24 seções de O anticristo. Isto aconteceu entre a desistência de Nietzsche em relação ao plano da "Vontade de potência" e o surgimento de uma nova idéia, a da "Transvaloração de todos os valores", com quatro livros específicos, isto é, entre 26 de agosto e 3 de

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setembro de 1888.

4. O Crepúsculo dos ídolos dá ao leitor a impressão de uma coleção disparatada de pequenos ensaios que, em si, não são mais aforismos, sobretudo nos seis capítulos: "O problema de Sócrates", "A 'razão' na filosofia", "Como o 'mundo verdadeiro', enfim, tornou-se fábula", "Moral como contra-natureza", "Os quatro grandes erros", "Os melhoradores da humanidade". Pode-se reconhecer com exatidão, em cada um desses capítulos, o seu lugar nos diferentes planos da "Vontade de potência", datados do começo/verão de 1888. Comum a esses diferentes planos é o destaque ao niilismo (e ao pessimismo) como sintoma, como expressão da décadence.

Assim, o "Problema de Sócrates" era o começo do capítulo "Filosofia como décadence" (fragmento póstumo do início de 1888, 15 (5); KSA, 13, p. 403), "Moral como contra-natureza" surge a partir de um texto sob o título de "Moral como tipo da décadence" ( KSA, 14, p. 215), "Os quatro grandes erros" (que, não obstante, originariamente eram três), em um plano da "Vontade de potência" fazia parte do primeiro livro, cujos quatro livros tinham os seguintes títulos: I. Psicologia do erro; II. Os falsos valores; III. O critério de verdade; IV. Luta entre falsos e verdadeiros valores (fragmento póstumo 16 (86) do início ao verão de 1888; KSA, 13, p. 515-6). "Os melhoradores da humanidade" deveria formar o conteúdo do terceiro capítulo (Os bons e os melhoradores) no segundo livro (Proveniência dos valores) do último plano da "Vontade de potência" (26 de agosto de 1888) (fragmento póstumo 18 (17) de julho a agosto de 1888; KSA, 13, p. 537). "A razão na filosofia" aparece sob a rubrica de "Filosofia como idiossincrasia" e, em um outro plano como "O mundo verdadeiro e o aparente" ( fragmento póstumo 18 (44) de setembro de 1888; KSA, 13, p. 543 e fragmento póstumo 14 (156) do início de 1888; KSA 13, p. 340 respectivamente). Finalmente, a parábola filosófica "Como o 'mundo verdadeiro', enfim, tornou-se fábula" (fragmento póstumo 14 (156) do início de 1888; KSA, 13, p. 340) deveria tornar-se – de acordo com um plano do início de 1888 – o primeiro capítulo da "Vontade de potência"; a preparação desta seção do Crepúsculo dos ídolos foi, de fato, transcrita no manuscrito "Primeiro capítulo".

A restituição do texto do Crepúsculo dos ídolos ao seu lugar de origem nos manuscritos não conduz ao que estaria contido por inteiro nesses manuscritos, cuja origem se deve a uma determinada concepção do conjunto da "Vontade de potência", algumas vezes diferente. Nenhuma dessas concepções de conjunto foi levada a cabo por Nietzsche. A esse respeito, mais um exemplo. O curto capítulo "Como o 'mundo verdadeiro', enfim, tornou-se fábula" pertence, como já foi mencionado, a um plano do início de 1888, no qual o erro da oposição entre um mundo verdadeiro e um mundo simplesmente aparente é apresentado como a premissa de um querer equívoco em relação à vida por parte dos filósofos (como tipos da décadence). Segue-se a ele um capítulo sobre a "Moral como expressão da décadence", criticada como altruísmo, compaixão, cristianismo, espiritualização. O quarto capítulo examina a possibilidade de uma posição contrária à décadence na filosofia e na moral. O quinto deveria conter a crítica do presente como niilista, na qual um elemento afirmativo do presente é a boa consciência da ciência. No sexto capítulo, a Vontade potência deveria ser tratada como vida. Enfim, o sétimo e último capítulo, sob o sugestivo título de "Nós, hiperbóreos" diz o seguinte, de maneira impressionante, num plano que como todos os outros nunca foi realizado: "Puros lugares absolutos, por exemplo Felicidade! por exemplo História / ao final, monstruoso gozo e triunfo, ter um puro e claro Sim e Não... Salvação da incerteza" (fragmento póstumo 14 (156) do início de 1888; KSA, 13, p. 341).

O material mais antigo – fechamos nossa análise – é rubricado; novos textos aparecem até surgir um novo plano, inicialmente com pequenas divergências e talvez um outro, que com os dois ainda tem alguma semelhança. Assim sendo, no decorrer de outras meditações, são pensados outros planos, as divisões em capítulos são de novo restituídas ao invés daquelas dos livros, sua seqüência modificada, etc.

A partir desse fluxo de idéias, fixadas diferentemente, Nietzsche fez sua primeira seleção; ele

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terminou uma cópia, na qual os capítulos atuais do Crepúsculo dos ídolos foram transcritos juntamente com os primeiros 24 capítulos de O anticristo. Mas então ele decidiu, de um lado, comunicar o essencial de sua heterodoxia filosófica através das "Ociosidades de um psicólogo" (= Crepúsculo dos ídolos ) e, por outro lado, atacar o projeto da "Transvaloração de todos os valores" em quatro livros específicos, enquanto iniciava O anticristo . Das ruínas da "Vontade de potência" que, entretanto, jamais fora um edifício, ele apanhou o material utilizável para o Crepúsculo dos ídolos como o resumo de sua filosofia e transformou as idéias sobre o cristianismo trabalhadas anteriormente, na prosa forte e inventiva de O anticristo .

5. De volta ao texto do Crepúsculo dos ídolos , para os seus três últimos capítulos. "O que falta aos alemães", mesmo que numa forma bastante divergente da versão definitiva era, originariamente, o "orgulhoso" Prefácio de 3 de setembro de 1888, do qual nos lembrávamos no início de nossa exposição. Neste sentido, Nietzsche escreveu para a "Transvaloração de todos os valores" o curto Prefácio atual, que podemos ler ainda no início de O anticristo . Soberanamente, Nietzsche dispôs sobre seus textos até o último momento, mesmo quando falava deles em suas cartas (neste caso, carta a Meta von Salis, de 7 de setembro de 1888). Para a maioria das 51 partes que, de acordo com o modelo dos livros de aforismos, formam o capítulo "Incursões de um extemporâneo" pode-se, ao contrário, encontrar uma data mais antiga de seu aparecimento. Uma parte deles, da 2ª à 4ª seção dos excertos existentes, ele os constrói novamente pequenos; outra parte, organiza de acordo com uma analogia de conteúdo, aforismos sobre escritores e artistas, sobre a modernidade, sobre questões relativas ao trabalho, política, etc. A proveniência desses excertos e aforismos é – mais uma vez – o material desordenado e não utilizado da "Vontade de potência". Os excertos são de nº 8 a 11 (CI: Psicologia do artista; Fragmentos póstumos: Para a psicologia da arte); 19-21 (CI: Belo e feio; Fragmentos póstumos: Aesthetica. Ponto fundamental: o que é belo e feio?); 32-35 (CI: O imoralista fala. O valor natural do egoísmo. Cristo e os anarquistas. Crítica da moral da décadence; nos fragmentos póstumos, sem título, mas como textos correlacionados); o longo aforismo 36, "Moral para médicos", pertence nos fragmentos póstumos a um extenso texto em três partes: 1. A reabilitação do suicídio (=CI 36); 2. uma seção sobre a proibição da propagação das doenças crônicas; 3. uma seção acerca da reabilitação da prostituição. Os dois últimos textos não foram incluídos por Nietzsche no Crepúsculo dos ídolos : talvez ele os tenha suprimido visando ao segundo livro da "Transvaloração de todos os valores" ("O imoralista"). A partir do ponto de vista desse livro surgiram também as anotações espalhadas, a partir das quais Nietzsche compôs o longo aforismo 37 das "Incursões de um extemporâneo" (Se nos tornamos moralistas). As seções 38 (Meu conceito de liberdade) e 39 (Crítica da modernidade) formavam novamente nos fragmentos póstumos uma parte com o título: "A modernidade. Vademecum de um futuro vindouro". Finalmente, a seção 45 das "Incursões" (O criminoso e o que lhe é aparentado), constituía uma continuação do texto dos póstumos mencionado acima acerca do suicídio, propagação das doenças e prostituição.

Originariamente, o Crepúsculo dos ídolos deveria ser concluído após os dois textos sobre Goethe (49 e 50) das "Incursões" com o seguinte texto (51): "Perguntam-me, freqüentemente, porque escrevo em alemão, quando em nenhum outro lugar do mundo sou tão mal lido como na minha pátria. Quem sabe afinal se eu também desejo ser lido hoje? – criar coisas em que inutilmente o tempo experimenta seus dentes; buscar uma pequena imortalidade segundo a forma, segundo a substância – jamais fui suficientemente modesto para exigir menos de mim. O aforismo, a sentença, nas quais, sendo o primeiro, sou o mestre entre os alemães, são as formas da 'eternidade'; minha ambição é dizer em dez frases aquilo que qualquer outro diz em um livro, – aquilo que qualquer outro não diz em um livro. Ofereci à humanidade o livro mais profundo que ela possui, o meu Zaratustra: breve, oferecer-lhes-ei o livro mais independente".

Com este anúncio da "Transvaloração de todos os valores", Nietzsche queria terminar o livro. O capítulo "O que devo aos antigos" foi incluído depois e, mais precisamente, durante a correção; Nietzsche o retirou de um texto volumoso, que ele entrevira como a primeira versão do Ecce homo.

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Resumamos os resultados dessa abordagem crítica do texto do Crepúsculo dos ídolos : a redução do Crepúsculo dos ídolos aos fragmentos póstumos é uma operação sem sentido, caso se prometa através disso a reconstrução de uma obra – a "Vontade de potência". O Crepúsculo dos ídolos fornece, ao contrário, a justificativa para o fato de que Nietzsche desistira do projeto da "Vontade de potência", que o ocupava desde setembro de 1885. Os pensamentos do Crepúsculo dos ídolos ganham seu pano-de-fundo genético, se forem lidos mais uma vez nas suas conexões originárias. Os fragmentos póstumos tornam-se aqui um complemento, na medida em que eles foram restringidos na obra publicada ou até mesmo suprimidos.

6. Chama a atenção de todo leitor do Crepúsculo dos ídolos , que Nietzsche utiliza uma nova terminologia: Sócrates como raquítico, bastardo e de desenvolvimento decadente, o criminoso típico como monstro, despotenciação, degenerescência e degenerado, fisiologia, psicologicamente degenerado, estado de necessidade fisiológica, sentimentos fisiológicos fundamentais, "nós fisiólogos", aprisionamento pela doença, decadência e esgotamento – e, por toda parte, décadence: esta terminologia sinaliza em Nietzsche um desvio em direção à fisiologia contemporânea. Algumas semanas depois, seu espírito é vencido sob estes signos: em uma de suas últimas declarações, quer "homenagear a fisiologia". Um esquisito ar de hospital sopra contra nós, de muitas páginas do Crepúsculo dos ídolos . A mesma coisa é válida para o Caso Wagner, panfleto redigido um pouco antes. Ou seja: quem não se defende de Wagner, é já ele mesmo signo de décadence, da décadence fisiológica e "O instinto é enfraquecido. Veste-se aquilo que deveria amedrontar. Coloca-se nos lábios o que mais rapidamente impulsiona para o abismo – Um exemplo? Deve apenas observar o regime que se prescreve para os anêmicos, os doentes de gota ou para os diabéticos" (WA/CW § 5). A invasão do medi-cínico (do processo de medicalização das condutas)(2) é um distintivo do amortecido século XIX. Criminosos e prostitutas, alcoólatras e neuróticos, degenerados e loucos: Dégénerescence et criminalité é um tema popular dos fisiólogos, é o título de um livro de Charlés Féré que Nietzsche, no começo de 1888, pouco depois de sua publicação, estudou e anotou e a quem ele deve seu conhecimento acerca do regime das doenças no Caso Wagner e muitas outras coisas no Crepúsculo dos ídolos . Charles Féré (1852-1907) foi um médico dos nervos e estagiário no serviço de Charcot, na famosa Salpêtrière de Paris. Sua sóbria obra acerca da degenerescência e da criminalidade fornece a Nietzsche importantes referências sobre o falso modo de vida e alimentação dos doentes, dos degenerados no sentido amplo que, exatamente a partir de sua degenerescência, escolhem arruinar-se. Os póstumos mostram, da mesma maneira que o Caso Wagner e o Crepúsculo dos ídolos , profundos traços da ocupação de Nietzsche com este fisiólogo. O conhecido aforismo 52 do livro conhecido como "Vontade de potência" (fragmento póstumo 15 (41) do início de 1888; KSA, 13, p. 433), um texto de caráter fisiológico, singularmente terrível acerca da ausência de compaixão na natureza para com os degenerados, não é um texto de Nietzsche, mas uma tradução dele de um trecho do livro de Féré: o que, sem dúvida, os compiladores da "Vontade de potência" não revelaram aos seus leitores! Ao mesmo tempo em que Nietzsche tentou acompanhar a mais recente situação da fisiologia, ele produziu para si mesmo e para seus contemporâneos conceitos e metáforas pregnantes. Isto é válido sobretudo para a complexa elaboração de uma fisiologia da arte, motivada pelas pré-condições fisiológicas do êxtase. Deste mundo de morbidezza, de aprisionamento pela doença, chegam outras vozes parisienses que Nietzsche ouvia com uma singular atenção, tal como pode-se concluir a partir dos póstumos e das citações referidas na obra: Paul Bourget e Ernst Renan, os irmãos Goncourt, Baudelaire e muitos outros escritores e cientistas menos importantes. A solidão de Nietzsche era algo bem diferente de um bloqueio contra contemporâneos e livros de contemporâneos. Recuperar este meio-ambiente vivo e histórico é um pressuposto necessário para lê-lo corretamente.

7. Um método de conversão (sobre o qual Heidegger já chamara a atenção); o destaque à décadence na filosofia, na religião, na moral, na política, na arte; a tentativa de mostrar a limitação fisiológica da décadence; o êxtase como o momento mais elevado da criação artística (fisiologia da arte): enfim, a recordação da "visão dionisíaca do mundo". Com isso, queremos circunscrever o conteúdo do Crepúsculo dos ídolos .

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A conversão acontece, de início, no plano da teoria do conhecimento: não é o mundo verdadeiro que tem realidade, mas a realidade é, exatamente, aquele mundo descrito pela filosofia como aparente; dividir o mundo em um "verdadeiro" e outro "aparente" é apenas uma sugestão da décadence . O mesmo vale para a moral: as paixões, a sensualidade, não devem apenas ser exterminadas, mas espiritualizadas. Mais ainda: não há nenhum sentido em dizer que o homem deve ser assim e assado. Deve-se afirmar, ao contrário, o império encantado dos tipos, de um profuso jogo de formas e de mudanças na realidade. A moral é uma degenerescência idiossincrática. Uma pessoa feliz e educada deve fazer certas ações e, instintivamente, se envergonha diante de outras ações. Sua virtude é conseqüência de sua felicidade (e não a felicidade conseqüência de sua virtude). Neste ponto, então, a moral a partir de Sócrates, através da igualdade entre razão, virtude e felicidade, que conduziu a guerra contra os instintos, tornou-se uma expressão da décadence ; o moralismo da filosofia grega a partir de Platão era patologicamente limitado; os instintos devem perder – esta é a fórmula da décadence . Sócrates sabia que era doente, Sócrates quis morrer.

Esta e outras confrontações com a décadence devem ser compreendidas de acordo com o princípio estabelecido por Nietzsche nos póstumos: o pessimismo não é nenhum problema, mas apenas sintoma, o nome correto para isso é niilismo; entretanto, "o niilismo não é nenhuma causa, mas apenas a lógica da décadence " (fragmento póstumo 14 (86) do início de 1888; KSA, 13, p. 265). Valores niilistas, valores decadentes conduzem à dominação sob os nomes mais sagrados. Onde falta vontade de potência, há decadência. Todos os valores nos quais a humanidade resume seus mais elevados desejos são valores da décadence . Assim o diz Nietzsche em O anticristo . Mas, ao lado desse processo de pensamento que se orienta pelo conceito de vontade de potência, há um outro no Crepúsculo dos ídolos , do qual Nietzsche queria tratar no quarto livro ("Dioniso filósofo") da "Transvaloração de todos os valores". Ele não chegou até aí e, neste sentido, somos instruídos pela execução do Crepúsculo dos ídolos . Com as palavras de Nietzsche: o valor da vida não pode ser julgado, a vida não permite o juízo de um ser em particular, porque este faz parte desta própria vida. "O indivíduo é parte do fatum, à frente e atrás, é uma lei a mais, uma necessidade a mais para tudo o que chega e virá. Dizer-lhe 'muda tua natureza' é desejar uma transformação do todo, até mesmo uma transformação do passado..." (GD/CI §§ 5 e 6). "Somos necessários, somos um fragmento do destino, formamos parte do todo, estamos no todo: não há nada que possa dirigir o nosso ser, medí-lo, compará-lo, julgá-lo... Não há nada fora do todo! – Que ninguém mais possa ser responsabilizado, pois o ser não deve se referir a uma causa primeira, pois o mundo não é nem uma unidade como sensação, nem como 'espírito', eis a primeira grande libertação, – com isso restaura-se a inocência do vir-a-ser... O conceito 'Deus' era até aqui a maior objeção contra a existência... Nós negamos Deus, nós negamos a responsabilidade em Deus: com isso, antes de mais nada, redimimos o mundo-" (GD/CI § 8). "O poder que não tem mais necessidade de nenhuma justificativa, que desdenha o agradar, que dificilmente contesta, que não vê testemunhas em volta de si, que vive sem a consciência de que há oposições contra ele; que nele descansa, fatalísticamente, uma lei entre as leis (...)" (GD/CI § 11). Um espírito tornado livre como Goethe "aparece no centro do universo com um fatalismo feliz e confiante, na crença de que apenas o indivíduo é condenável, que na totalidade tudo se resolve e se afirma – ele não renega mais... Mas, uma tal crença é a maior de todas as crenças". Nietzsche "a batizou com o nome de Dioniso" (GD/CI § 49 e 50). "A afirmação da vida até em seus problemas mais estranhos e duros; a vontade de viver, regozijando-se no sacrifício de seus tipos mais elevados da própria inesgotabilidade – isso chamei de dionisíaco"; o poeta trágico quer ser ele mesmo "o eterno prazer do vir-a-ser", "todo prazer que em si encerra ainda o prazer na destruição (...)". "O nascimento da tragédia – assim conclui Nietzsche o Crepúsculo dos ídolos – foi a minha primeira transvaloração de todos os valores: com isso, retorno novamente ao solo do qual cresceu meu querer, meu poder – eu, o último discípulo do filósofo Dioniso, – eu, o mestre do eterno retorno..." (GD/CI § 5).

Esta posição, no fim, do pensamento do eterno retorno do mesmo, não me parece ocasional. Este é um pensamento que está na conclusão de toda uma história de vida e paixão. Através de sua afirmação, a vida torna-se justificada, o mundo redimido, quando toda a dura realidade da vida for percorrida por uma vontade de potência múltipla. Este pensamento não se deixa compreender por fórmulas, ou

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melhor, todas as suas formulações são provisórias e superáveis, na medida em que abarca num todo a vida, o mundo e o tempo, mas não de forma transcendental, porque ele já expressa a totalidade. Através dele acontece a confirmação da imanência após a morte de Deus. Ele é, de fato, a maior justificativa da vida e, nesta medida, está em oposição ao que calunia a vida; mas porque isto é parte da vida, é também justificado e não julgável. Neste sentido, o pensamento do eterno retorno não oferece à vida aquilo que, como tal, o perspectivismo da vontade de potência precisa. Não se entrega o conhecimento do eterno retorno a preço de pechincha. Por conseguinte, existe uma tensão no pensamento do eterno retorno, considerado por um lado como fundamento especulativo último, como inocência do vir-a-ser, como redenção do mundo, como a mais elevada forma de afirmação da vida e (por outro lado) como confrontação com situações particulares, seja a filosofia até então, ou a modernidade, o niilismo e a décadence , a moral ou a religião, uma tensão que não é superada, que por princípio não deve ser superada. Uma sistematização geral da vontade de potência como princípio eliminaria, por um lado, a resolução da luta necessária ao perspectivismo e, por outro, se igualaria à construção de uma metafísica da vontade de potência (análoga à metafísica schopenhaueriana da vontade de vida). Mas, a presença do pensamento do eterno retorno impede toda sistematização. Agora, entendemos o sentido profundo da máxima de Crepúsculo dos ídolos : "A vontade de sistema constitui uma falta de lealdade" (GD/CI § 26).

O sentido filosófico do Crepúsculo dos ídolos não é uma sistemática da Vontade de potência, mas sua superação no pensamento do eterno retorno do mesmo.

Notas (1) Peter Gast destaca que as palavras "Müssigang" ("ociosidade") e "Müdigkeit" (cansaço) iniciam com a mesma sílaba "Mü". Mesmo que as palavras em português não tenham esta mesma afinidade há, contudo, uma afinidade de sentido quando se diz, por exemplo, "estou cansado de não fazer nada" ou "a ociosidade cansa", da mesma maneira que também se "acredita" em português que "a ociosidade é a mãe de todos os vícios" (N.T.). (2) Ao separar pelo hífen a palavra "Medizinisch" (que indicaria para o processo de "medicalização" das condutas no século XIX), Montinari, por aliteração, faz soar o "zynisch" (cínico) e, com isso, acentua o aspecto moralizador, do ponto de vista médico-psiquiátrico, do estudo das degenerescências. Basta lembrar os inúmeros estudos a respeito – de Foucault aos historiadores da psicanálise (N.T.).

13 - Filosofia e linguagem em Nietzsche: considerações acerca do recurso às figuras Cristiano Novaes de Rezende

Pós-graduando do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo

Philosophy and language in Nietzsche's thoughtAbstract: In this article we have the intention of examining the relationship between philosophy and language in Nietzsche's writings, and particulary the philosophical sense of his use of figures of speech. In order to achieve this goal, firstly, we analyse Jörg Salaquarda's interpretation of the Ass in Zarathustra and the Ass. Secondly, we discuss the Nietzschean writings status based on some considerations given to this aspect by Wolfgang Müller-Lauter in The doctrin of will to power in Nietzsche. And thirdly, we seek to produce a synthesis of the questions examined, inserting them in the context of the polemics which surrounds the so-called Heraclitean tradition and its problemizing of the philosophical discourse. Key-words: conviction - figure - language - meaning - opposition - symbol - metaphysics

Resumo: No presente artigo pretende-se examinar as relações entre filosofia e linguagem nos textos de Nietzsche e, em particular, o sentido filosófico do recurso às figuras. Com essa finalidade, num primeiro momento, é analisada a interpretação de Jörg Salaquarda, em Zaratustra e o Asno, acerca da figura do asno. Num segundo momento, discute-se o estatuto dos escritos nietzschianos a partir de

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algumas considerações de Wolfgang Müller-Lauter a esse respeito em A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. E, num terceiro momento, busca-se uma síntese das questões assim examinadas colocando-as no contexto das polêmicas em torno da tradição dita heraclitiana e de sua problematização do discurso filosófico.

Palavras-chave: convicção - figura - linguagem - significar - oposição - símbolo - metafísica

"Também aqui, como tão freqüentemente, a unidade da palavra nada garante para a unidade da coisa." (MA/HH I § 14)

"...há um dever contra o qual se revolta, no fundo, meu hábito, e mais ainda o orgulho de meus instintos, ou seja, de dizer: ouçam-me, pois sou tal e tal. Sobretudo, não me confundam !" (EH/EH, Prólogo, §1)

Não há muita novidade na simples constatação de que os textos de Nietzsche estão repletos de contrastes e tensões internas. Os mais eminentes comentadores já sublinharam o fato de que "a história da repercussão de seus escritos é essencialmente marcada pela discussão de saber se são, no todo ou em particular, coerentes entre si ou se contêm uma variedade de afirmações parcialmente contraditórias" (Müller-Lauter 7, p.12). Entretanto, o sentido determinado pela escolha das duas passagens que constituem a epígrafe do presente artigo, indica uma contradição de outra ordem. Nela não se opõem dois conteúdos quaisquer, agenciados pelos textos nietzscheanos, mas sim princípios que dizem respeito a esse agenciamento mesmo: se, aflitos com a dificuldade de compatibilizar suas afirmações, buscamos bases textuais nas obras de Nietzsche para saber que tipo de conexão elas pretendem manter entre si e entre suas partes internas, os próprios textos, novamente, só nos apresentam controvérsias. Isso, então, poderá nos sugerir algo um pouco mais sutil do que aquela primeira constatação, a saber, que tais tensões seriam imanentes ao pensamento de Nietzsche como parte necessária da constituição de um discurso capaz de comportá-lo. Assim, se, por um lado, é verdade que a ausência de uma exposição sistemática e unificada de idéias salta aos olhos dos leitores – leitores que, muitas vezes, em função disso, recusam o título de filósofo a Nietzsche, tomando-o, exclusivamente, por um poeta ou literato –, não é, por outro lado, menos verdade que essa ausência se encontre, ela própria, de modo sistemático ao longo da obra(1), e que o suposto caráter "literário" dos textos seja, antes, o resultado de uma problematização legitimamente filosófica(2) acerca da linguagem.

Tais considerações podem ser feitas a respeito de toda obra de Nietzsche. Quando, porém, o livro a ser examinado for Assim falava Zaratustra, a pergunta por essa mesma relação deverá dar conta não somente do tipo de conexão existente entre as afirmações contidas no livro, mas também do sentido dos peculiares recursos estilísticos nele empregados e, de modo geral, da natureza da linguagem aí posta em ação. Como, afinal, caracterizar as falas que se apresentam neste que é o mais controvertido dos textos de Nietzsche? Como poderá fazê-lo qualquer leitor quando o autor mesmo hesitou a respeito do gênero a que pertenceria a obra?

Não pretendemos, neste artigo, empreender qualquer caracterização ampla de Assim falava Zaratustra; menos ainda discutir globalmente a unidade do pensamento nietzscheano em suas obras ou o significado fundamental da presença de tensões internas. A problematização filosófica da linguagem que viemos indicando, feita através da própria forma e do estilo dos textos, será examinada, aqui, a partir de uma abordagem bastante específica, a saber, aquela que se depreende do artigo de Jörg Salaquarda intitulado Zaratustra e o asno (Salaquarda 12). Ao estudar o modo pelo qual têm sido interpretadas as figuras e situações que Nietzsche faz desfilar na quarta parte de Assim falava Zaratustra, e, mais especificamente, a figura do asno, o comentador nos dá condições de retomar, a partir desse caso particular, alguns pontos concernentes às questões mais gerais que foram levantadas acima. Para tanto, dos diversos aspectos pelos quais essas questões se entremostram na linguagem

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utilizada por Nietzsche em seu Zaratustra, cuidaremos principalmente daquele que diz respeito ao recurso às figuras, procurando indicar que a figura do asno – segundo a leitura que dela faz Salaquarda – pode constituir-se como núcleo privilegiado não somente para a discussão acerca do emprego de tal recurso, mas também para o entendimento de sua relação com a qualidade da leitura que o texto nietzscheano parece exigir em razão de seus contrastes e tensões.

I

É preciso, portanto, que partamos do reconhecimento de que não se trata de figuras e situações mudas ou de meros elementos ornamentais. Por todo o início do texto de Salaquarda, vemos surgir expressões tais como "as figuras e situações (...) têm significado(3)..."; "Zaratustra representa..."; "os homens superiores representam..."; "o adivinho evoca..."; "também desempenham um papel as coisas..." etc. (Salaquarda 12, p.167-68). E, como é a figura do asno aquela em que se concentra o interesse do comentador, este principia fazendo um levantamento das posições de outros intérpretes a seu respeito. Assim, além de identificar qual o significado que mais freqüentemente tem sido atribuido a essa figura, tal levantamento também permite perceber, na base de todas as interpretações, a presença de certa espécie de reenvio: "o asno representa o povo"; "o asno serve de imagem do povo"; "o asno é utilizado como símbolo do povo", e ainda "o asno é o povo" (Salaquarda 12, p.168). Não cuidando tanto, no presente momento, daquilo a que a figura se refere, basta-nos constatar que deve haver, na linguagem do texto de Nietzsche, uma natureza específica de reenvio ou referência constituindo essas mesmas figuras e, talvez, a própria dinâmica da linguagem de Assim falava Zaratustra. Na compreensão de qual seja essa especificidade reside muito do que é necessário para decifrar o texto, e nisso o próprio Salaquarda parece reconhecer a orígem da superficialidade da interpretação que reúne imediatamente asno e povo, quando, depois de havê-la apresentado, diz que tal interpretação "ignora aspectos básicos desse livro singular" (Salaquarda 12, p.169). Estes aspectos básicos, que determinam, por assim dizer, as condições e o método para a interpretação, ligam-se, pois, à natureza da linguagem filosófica em questão: se tais singularidades do livro de Nietzsche fossem respeitadas, o asno não se mostraria como uma figura secundária de mera ridicularização da plebe – como quer demonstrar Salaquarda – mas sim uma figura de importância talvez insuspeitada para o problema da relação entre filosofia e linguagem em Nietzsche – como queremos demonstrar

Encaminhando-se, portanto, para a apresentação do estatuto específico da figura do asno, a estratégia de Salaquarda consiste, num primeiro momento, em mobilizar os três livros anteriores do Zaratustra mostrando como essa figura, de acordo com o comportamento que se verifica empiricamente nos animais dessa espécie, e também com a visão que dele a tradição das fábulas produziu – Salaquarda cita o dicionário dos irmãos Grimm (Salaquarda 12, p.171, nota 9) –, está marcada por caracteristicas tais como: perseverança, tenacidade, capacidade para suportar, robustez, obstinação, esperteza e adesão, mas também aceitação, estupidez, preguiça, rudeza e insolência. Assim, Salaquarda procura indicar que o asno "não representa (...) diretamente povo"(Salaquarda 12, p.170) mas sim uma síndrome complexa que apenas se aplica ao povo. Todavia, para que se possa falar de um uso específico da figura do asno como metáfora dessa síndrome, a análise se encaminha, num segundo momento, ao exame das ocorrências dessa figura ao longo de toda a obra de Nietzsche; e é então que o comentador nos apresenta um texto de fundamental importância. Trata-se do trecho do Ecce homo em que Nietzsche se auto-define como o anti-asno par excellence. Para Salaquarda, a presença da figura do asno nesse trecho lhe confere uma relevância de primeira ordem porque, não apenas está, como contraponto, participando de certa auto-definição que Nietzsche se dá, mas também porque essa auto-definição ou auto-conhecimento é uma das mais difíceis tarefas que se pode tentar empreender: se o asno participa dela é porque ele constitui uma posição em que Nietzsche pode se ver sem estar demasiado próximo ou demasiado distante(4). Mas o asno, portanto, não está absolutamente distante de Nietzsche, e esse anti-asno não é uma exclusão total do sentido de asno da compreensão que Nietzsche tem de si mesmo, pois se define como anti-asno, ou seja, pelo asno.

Entretanto, a importância que o referido trecho possui para o tema que estamos procurando

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circunscrever vem não somente do fato de que Nietzsche está, nesse momento, empreendendo um esforço de auto-conhecimento, mas sobretudo do fato de que o contexto amplo do capítulo tem a ver precisamente com a compreensão que o próprio filósofo tem de seus singularíssimos livros. O Ecce homo, de um modo geral, é um esforço de auto-conhecimento – nele "o anti-asno par excellence relata sua vida a si mesmo"(Salaquarda 12, p.198). Mas, no capítulo em que se define como anti-asno, Nietzsche está escrevendo justamente sobre o seu escrever: Porque escrevo livros tão bons. É também dessa maneira, com efeito, que se nos insinua a importância da figura do asno especificamente para o entendimento do que sejam as figuras em geral e o que seja buscar seu significado.

Na sequência de seu comentário, Salaquarda se dedica a compreender o que seja o anti-asno par excellence. Destacaremos, nessa seqüência, partes da análise a respeito de duas daquelas características opostas que eram atribuídas ao asno – a estupidez e a esperteza – e explicaremos melhor o que foi dito logo acima sobre a distinção entre anti-asno e anti-asno.

Salaquarda, articulando passagens do Zaratustra e de outras obras, chega a uma primeira concepção do asno como sendo aquele que é estúpido; da mesma forma que, para Nietzsche, os alemães são estúpidos, isto é, sem esprit, com isso designando algo que é inerte, rígido e medíocre – o que se aplica apenas indiretamente ao povo e ao povo alemão, indicando, antes, uma síndrome. A partir dessa primeira característica – a estupidez – explica-se uma outra que lhe é complementar, a saber, a aceitação, ou, mais especificamente, a "aceitação impensada sempre do mais óbvio", e o exemplo dado não é outro senão "a tendência a compreender o que é dito ou escrito em seu significado mais trivial e imediato"(Salaquarda 12, p.174). Ora, isso não pode deixar de nos lembrar a crítica de Salaquarda àqueles que não percebiam a singularidade do livro de Nietzsche – o que, então, nos aproxima um pouco mais da compreensão do que seja uma tal singularidade estilística: tratar, nesse livro, as figuras como signos óbvios e aquilo a que elas reenviam como um significado fixo, é ser um asno diante do texto de Nietzsche; o que, com efeito, se reverte numa trágica ironia quando a figura em questão é a própria figura do asno: nesse caso, o intérprete apressado se converteria num asno diante do espelho, e o texto de Nietzsche, num espelho para asnos.

Salaquarda, então, estabelece a base de sua interpretação da figura do asno escrevendo o seguinte: "Quando a aceitação impensada diante do mais óbvio aparece não apenas ocasionalmente, mas se consolida numa atitude, Nietzsche fala de convicção. Convicção é, em seu conteúdo básico, a consolidação da perspectiva de um impulso ou complexo de impulsos. (...) Nietzsche prefere usar asno para referir-se a toda espécie de convicção" (Salaquarda 12, p.174). O asno, com suas grandes orelhas, não tem uma escuta suficientemente refinada para penetrar, por exemplo, naqueles discursos cujo estilo se origina do estabelecimento de obstáculos seletivos para seus leitores, e que, a estes, demandam certa cumplicidade com o estranhamento que eles desafiadoramente impõem(5). E à escuta do asno vem acrecentar-se também sua fala, seu "I-A"que, em alemão soando "sim", compõe o retrato daquele que aceita sem resistência e facilmente abraça com firmeza qualquer perspectiva que se lhe apresente com ares de verdade. Mas essa consolidação de uma perspectiva nada tem a ver com a verdade, sendo, até mesmo, mais sua inimiga do que as próprias mentiras (Cf. MA/HH I § 483), uma vez que está ligada aos chamados sentimentos edificantes, os quais fornecem uma tranqüila desculpa para o descompromisso com a máxima metodológica de não se deter em algo de modo definitivo – "quem está convicto abandona a investigação e enterra sua desconfiança" (Salaquarda 12, p.175). Esta é a estupidez do asno: seu empacamento, sua falta de jogo, sua falta de malícia, sua honestidade modesta e ingênua, sua falta de suspeitas, sua inocência que passa por virtude, enfim, sua falta de espírito.

Assim, num primeiro momento, o anti-asno torna-se aquele que desconfia sobretudo da obviedade, de tudo que se oferece como imediatamente sensato e plausível, como convidativo à aceitação e como promotor de uma tranquilidade definitiva, na qual, um impulso dominante poderia sentir-se autorizado a fixar sua perspectiva. O anti-asno seria marcado por uma consciência crítica própria, por exemplo, à filologia e ao espírito da incessante pesquisa científica. Esse mesmo espírito recebe, no aforismo 289

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de Para além de bem e mal – lembrado pelo próprio Salaquarda (Salaquarda 12, p.176) – uma caracterização que se dá em termos verdadeiramente muito profícuos para relacionarmos a figura do asno e a síndrome da convicção com o problema particular da interpretação das figuras no texto nietzscheano. Pedimos licença, portanto, para citar este aforismo integralmente. "Ouve-se sempre nos escritos de um ermitão algo também do eco do ermo, algo do tom sussurrado e da arisca circunspecção da solidão; em suas palavras mais fortes, mesmo em seu grito, soa ainda uma nova e mais perigosa espécie de calar, de silenciar. Quem, entra ano, sai ano, e de dia e de noite, sentou-se a sós com sua alma em confidencial duelo e diálogo, quem em sua caverna – pode ser um labirinto, mas também uma jazida de ouro – se tornou urso de cavernas ou cavador de tesouro ou vigia de tesouro e dragão: seus próprios conceitos acabam por conter uma cor própria de lusco-fusco, um odor de profundeza como de mofo, algo de incomunicável e renitente. O ermitão não acredita que um filósofo – suposto que um filósofo sempre foi primeiro um ermitão – tenha jamais expresso suas últimas opiniões em livros: não se escrevem livros, precisamente, para resguardar o que se guarda em si ? – ele duvidará se um filósofo pode, em geral, ter opiniões 'últimas e próprias ', se nele, por trás de cada caverna, não jaz, não tem de jazer uma caverna ainda mais profunda, um modo mais vasto, mais alheio, mais rico, além de uma superfície, um sem-fundo por trás de cada fundo, por trás de cada 'fundamento'. Cada filosofia é uma filosofia de fachada – eis um juizo ermitão: 'há algo de arbitrário se aqui ele se deteve, olhou para trás, olhou em torno de si, se aqui ele não cavou mais fundo e pôs de lado a enxada – há também algo de desconfiado nisso'. Cada filosofia esconde também uma filosofia; cada opinião é também um esconderijo, cada palavra também uma máscara." (JGB/BM § 289)

Nesta primeira caracterização de um anti-asno, ele é, por um lado, este cavador que não se cansa de buscar um fundo sempre mais profundo – na verdade desacreditando de qualquer fundamento último – mas também, por outro lado, quando escreve, é o custódio que se recusa a simplesmente entregar de imediato seu tesouro: tampouco ele próprio poderia ser alguma coisa óbvia. De textos nos quais até mesmo os conceitos estão sempre à meia luz e à meia sombra, o leitor não pode esperar clareza e distinção, não pode esperar senão um significado sub-entendido, escondido, e, no limite, incomunicável. Com efeito, fica-nos a impressão de que uma leitura cuidadosa de Nietzsche deve sempre se deparar com o problema de saber se a questão acerca daquilo que, na filosofia do anti-asno, as situações e figuras expressam, não deveria ser substituída pela questão acerca do que elas mascaram. Como leitor ou como escritor, o anti-asno se apresenta possuindo a mesma atitude diante da linguagem: desconfia sempre de um texto que dê a conhecer "as verdadeiras opiniões" ou que contenha a "última palavra".

Notemos, entretanto, que nesse trecho de Para além de bem e mal algo se insinua de maneira curiosa: não estaria presente, nesse texto em que se fala justamente da recusa àquilo que Salaquarda demonstrara receber o nome de convicção, latente sob o juizo desse filósofo solitário e desconfiado, uma convicção relativa à sua própria desconfiança ? Assim sendo, nossos desenvolvimentos quanto à natureza da relação entre as figuras e aquilo a que elas se referem receberiam uma importante inflexão. Interpretar a figura do asno, como vimos, é interpretar uma figura privilegiada para pensarmos a questão da natureza do texto e do estilo nietzscheano, uma vez que seu sentido remete justamente a uma forma de interpretação: a aceitação impensada do mais óbvio constituindo uma atitude. Mas agora, percebemos que no limite em que, para a atitude radicalmente oposta à do asno, se paga o preço de ver o texto filosófico tornar-se incomunicável, algo do asno reaparece tornando um tal limite legitimamente incômodo, isto é, porque, nele, n'alguma medida ainda se permanece convicto.

Com essas palavras, pretendemos evocar o aforismo 344 de A gaia ciência – Em que medida nós também somos devotos ainda, lembrado pelo próprio Salaquarda (Salaquarda 12, p.177) – em que se explicita aquilo que, no aforismo 289 de Para além de bem e mal, também se pressentia, a saber: o irônico paradoxo da oposição. Se se opõe, por pretender ser um anti-asno, de um lado, a dissolução das convicções pela incessante pesquisa científica e, de outro, a convicção mesma, então, nessa oposição, a vontade de verdade, que se entremostra por trás da rejeição das convicções, se constitui como convicção tão incondicionada que afasta qualquer outra além dela mesma. Há, também aí, algo

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de arbitrário: uma prévia tomada de partido em benefício dessa vontade de verdade e da consequente exclusão das demais convicções. E essa tomada de partido, na medida em que consiste, em última instância, na pressuposição de que "não se deve enganar nem sequer a si mesmo" (FW/GC § 344), recoloca a convicção científica como sendo, pois, uma convição moral. Afinal, se a vida exigir um auto engano, uma aparência, então, essa primeira forma do anti-asno, ao voltar seu pensamento para algo que seria como um mundo à parte ao da vida, da natureza, da história, estaria repondo, além de uma crença moral, a própria base metafísica em que ela se assenta. A oposição ciência / convicção, enquanto dicotomia que se infiltra na forma de organização do pensamento, acaba por recolocar, nele, a firme perspectiva da divisão da realidade.

Aliás, não nos parece fora de propósito sugerir que a pergunta do aforismo – em que medida nós também somos devotos ainda? – poderia corresponder, em última instância, à célebre pergunta heideggeriana(6): em que medida Nietzsche permanece metafísico ainda ? Entretanto, o fato de que o próprio Nietzsche tenha colocado a si mesmo uma tal questão não deixa de sugerir que não se poderia reconduzí-lo facilmente ao estatuto de mero metafísico dogmático. Ademais, não se trata apenas de percebermos que o paradoxo da oposição se dá na medida em que aquele que se opõe de modo absolutamente unilateral às convicções já está, nessa desconfiança incondicionada, confiando cegamente em sua desconfiança. Caso fosse isso, não haveria, no referido aforismo, grandes diferenças relativamente ao que diz, por exemplo Hegel, na introdução à Fenomenologia do Espírito, ao escrever: "Entretanto, se o receio de cair no erro introduz uma desconfiança na ciência (...), não se deve deixar de considerar igualmente por que não se deva cuidar de introduzir uma desconfiança nessa mesma desconfiança e recear que esse temor de errar já não seja o próprio erro" (Hegel 3, p.42). Também aquí, com efeito, descobre-se a arbitrariedade de um pressupor na essência mesma da precaução. Mas, em Nietzsche, o contexto e suas implicações parecem ser bastante diferentes(7): ambas são, de fato, simultaneamente necessárias – muita confiança e muita desconfiança. E "justamente essa convicção" de que a verdade é mais importante do que qualquer outra coisa "não poderia ter surgido se verdade e inverdade se mostrassem, ambas, constantemente úteis: como é o caso." (FW/GC § 344). O que a perspectiva de Nietzsche ressalta é, pois, a utilidade da aparência, do erro, do autocegamento.

Assim, podemos ler também em Gaia ciência 346 – onde se examina a atitude homem contra mundo – o aforismo intitulado Nosso ponto de interrogação. Nesse texto, Nietzsche nos pergunta se não caímos, em função dessa atitude, na suspeita de uma oposição entre "o mundo em que até agora nos sentíamos em casa com nossas venerações – em virtude das quais, talvez, tolerávamos viver – e um outro mundo que somos nós próprios...". Sem que saibamos como lidar com nossas suspeitas, somos levados, pela mencionada atitude, a experimentar essa oposição sob a forma de uma exclusão recíproca, a qual nosso filósofo descreve como sendo "esse terrível ou-ou: 'ou abolir vossas venerações ou – vós mesmos'!", e conclui perguntando "este último seria o niilismo; mas o primeiro não seria também... o niilismo? Esse é nosso ponto de interrogação" (FW/GC § 346).

É desse ponto de interrogação que pode emergir a segunda caracterização do anti-asno: menos opositivo que o primeiro, menos preocupado em afastar as convicções e mais envolvido com o que é útil à vida. A primeira determinação do anti-asno era por demais calcada no anti-, e nisso residia a sua estupidez. O caráter de asno, portanto, não se produz apenas naquela convicção que era estúpida por ser ingênua – ligada à inocência virtuosa que caracteriza a moral dos fracos. Mesmo aquele que aparentemente tem espírito pode ser de um espírito estúpido, de uma espirituosidade capaz de reverter-se em espiritualidade. Em contrapartida, os fracos podem, até com bastante esperteza – vivendo do modo que lhes é próprio – intensificar a oposição a partir da qual se definiriam reciprocamente fracos e fortes, rebaixando estes últimos ao seu nível. A esperteza dos fracos, que lhes permite tornarem-se senhores dos fortes, é a fixação de sua perspectiva contra aquela que fica, assim, obrigada a cristalizar-se como sua outra. O paradoxo da oposição é, em certo sentido, aquele modo pelo qual os opostos compartilham de uma íntima comunidade, e que Nietzsche radicaliza, transforma, e converte também para o contexto da psicologia. Nietzsche escreve, por exemplo, em O andarilho e

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sua sombra, a respeito do Hábito das oposições, que, vendo-as por toda parte – como por exemplo quente e frio – "a observação inexata comum" não percebe não haver oposições mas apenas "diferenças de grau"; e esse "mau hábito" acaba nos induzindo a dividir também o mundo ético-espiritual de acordo com dicotomias: "É indizível o quanto de dor, pretensão, dureza, estranhamento, frieza, penetrou assim no sentimento humano, por se pensar ver oposições em lugar das transições" (WS/AS § 67).

Desse modo, como dissemos, é inevitável que o anti-asno ao asno se aproxime, na medida em que por ele e em oposição a ele o anti-asno se define. Mas o anti-asno por excelência é aquele que, ao tomar consciência disso, subverte essa mesma oposição. Essa é a esperteza que, como o sal que tempera o escritos de Nietzsche, jamais se torna estúpida. Nietzsche é o anti-asno por excelência porque também pôde perceber-se como asno. Caso contrário não teria saída e, ao invés do hábito das transições, padeceria, por exemplo, do mesmo problema de Sócrates: "é um auto-engano dos filósofos e moralistas pensar que já saem da décadence ao fazerem guerra contra ela. O sair está fora de sua força." (GD/CI, O problema de Sócrates, § 11). A possibilidade da saída surge, com efeito, do espaço aberto por aquela interrogação que faz com que o mero asno em que se convertera o asno-por-oposição, ao perceber-se como tal, descubra-se como asno trágico: "Pode um asno ser trágico? Sucumbir sob uma carga que não se pode carregar nem abandonar? (...) o caso do filósofo." (GD/CI, Sentenças e setas, § 11).

Assim, esta pergunta, bem como o ponto de interrogação de que falava Gaia ciência 346, também poderiam ser pensados, agora, como a coragem para o talvez que nos aparece em Para além de bem e mal (Dos preconceitos dos filósofos, § 2): "Pode-se, com efeito, duvidar, em primeiro lugar, se há em geral oposições e, em segundo lugar, se aquelas vulgares estimativas e oposições de valor sobre as quais os metafísicos imprimiam seu selo não seriam apenas estimativas de fachada, apenas perspectivas provisórias...? (...) Talvez ! mas quem tem vontade de se afligir com tão perigosos talvez ! Para isso já é preciso esperar pela chegada de uma nova espécie de filósofos (...) – filósofos do perigoso talvez em todos os sentidos." (JGB/BM § 2)

Assumida a perspectiva aberta por esses perigosos questionamentos, "a aparência, a vontade de engano, o egoísmo e o apetite" poderiam mostrar-se como sendo coisas do mais alto valor para a vida. E, se ousássemos ainda mais, esse talvez poderia mesmo nos fazer admitir que o que constitui o valor das coisas ditas boas seria, precisamente, o fato de não se oporem às ruins, e de estarem "da maneira mais capciosa" conectadas a elas. Abre-se, com isso, a caracterização do que seja positivamente o anti-asno por excelência. Salaquarda nos fala de uma síntese a que esse filósofo do futuro deveria levar aquilo que se encontrava em oposição recíproca, indicando, assim, o que venha a ser o além-do-homem. O cuidado que parece ser importante tomar, relativamente à noção de síntese, é que não se pode, aqui, pensar em qualquer síntese última, ou num processo que, mesmo sendo incessante, seria, ele próprio, constituído segundo alguma finalidade. Nietzsche, aliás, numa frase que poderia ajudar a entender o que significa pensá-lo como "protótipo do movimento rumo-ao-além do homem" (Salaquarda 12, p.186) afirma que: " 'querer' algo, 'empenhar-se' por algo, ter em vista um 'fim', um desejo – nada disso conheço por experiência própria (...). Não quero em absoluto que algo se torne diferente do que é; eu mesmo não quero tornar-me diferente... Mas assim vivi sempre." (EH/EH, Porque sou tão esperto, § 9). A síntese que pode ser pensada no presente contexto, conforme nos explica Salaquarda, é a que destrói o domínio demasiado prolongado de um mesmo impulso mas sem que isso implique num enfraquecimento de todos os impulsos ou num auto-aniquilamento. Essa síntese dinâmica deve ocorrer, antes, "pelo fortalecimento, a cada vez, de um outro impulso que deve romper esse domínio nele mesmo" (Salaquarda 12, p.181). Isso é o que haviamos chamado de hábito das transições(8) como alternativa ao hábito das oposições a que se referia o aforismo 67 de O andarilho e sua sombra. É um tal hábito que, ao que tudo indica, caracteriza a perspectiva devida ao anti-asno por excelência, a saber, "distância; arte de separar sem incompatibilizar; nada misturar, nada 'conciliar'; uma imensa multiplicidade, que no entanto é o contrário do caos..." como é dito no Ecce Homo, num capítulo cujo titulo ressalta justamente sua esperteza (EH/EH, Porque sou tão esperto, §

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9). Aliás, bem poderia ser em razão de um tal hábito que, nas primeiras páginas desse mesmo livro – aquelas que nos serviram de epígrafe – Nietzsche confessa que "dizer: sou tal e tal (...) não me confundam" (EH/EH, Prólogo, §1) é algo contra o que se rebelam os seus hábitos e o orgulho de seus instintos.

Julgamos, com efeito, que seria este mesmo jogo cambiante de matizes em contraste, que viemos chamando de paradoxo da oposição, aquilo que, no texto de Salaquarda, acaba organizando, de certo modo, todas as discussões em torno da interpretação da figura do asno: a tensão entre o último-homem e o além-do-homem, conotando a relação entre o definitivo, o último, e o sempre mais-além – já antevista pelo aforismo 289 de Para além de bem e mal; o aparente liberalismo das idéia modernas e o moralismo empedernido e tradicional que sob elas irônicamente se revela; a constatação de que o asno é uma síndrome aplicável aos diversos graus do estar convencido, e que, portanto, como nos ensina o aforismo sobre hábito das oposições, são graus capazes de reunir até mesmo opostos como o mais estúpido alemão e o mais desconfiado cientista – semelhantemente à reunião do quente e do frio; a oposição e a reunião entre esperteza e estupidez; etc.

II

Mas a justificativa para realizarmos nosso recorte na exposição de Salaquarda sobre o asno – deixando de lado outras precisões essenciais ao texto – era a de que isso permitiria que fossem ensaiadas algumas considerações sobre a linguagem filosófica de Nietzsche. Assim, os resultados obtidos até aqui devem permitir, agora, que avancemos um pouco nessa direção. Numa pergunta: como não confundir Nietzsche se ele próprio, bem como as figuras que emprega – e de modo paradigmático a do asno – se definem, ironicamente, ao deslizarem entre opostos que se comunicam e em múltiplos sentidos de oposição? Ou ainda: se quando ele se diz "tal e tal" poderia estar indicando, na verdade, a transição e a subversão constante de um impulso dominante que começava a pretender fixar-se como identidade – uma sutileza da palavrinha 'e'?

É aqui, pois, que o espírito daquele outro texto de Nietzsche com que abrimos nosso artigo pode se fazer valer. Esse texto – "Também aqui, como tão frequentemente, a unidade da palavra nada garante para a unidade da coisa" (MA/HH I § 14) – é precisamente a epígrafe do ensaio de Müller-Lauter, A doutrina da vontade de poder em Nietzsche (Müller-Lauter 6), no qual, novamente empreendendo certo recorte de problemáticas e de argumentos, poderemos encontrar algumas idéias que nos ajudem a compreender tanto a questão sobre a natureza das figuras quanto a de sua relação com as tensões internas nos escritos nietzscheanos. Começaremos, então, selecionando uma passagem do texto de Müller-Lauter, em que se discute o estatuto da obra de Nietzsche frente ao problema do estatuto dos fragmentos póstumos. É preciso esclarecer, porém, que uma tal aproximação de contextos e questões não é – como poderia parecer – de todo inusitada, visto que, no Ecce homo, precisamente no capítulo sobre seus 'livros tão bons', Nietzsche principia abordando a questão acerca de tais livros serem compreendidos ou incompreendidos, afirmando o seguinte: "Faço-o com a negligência mais apropriada: pois este não é ainda o tempo para a questão. Tampouco é ainda meu tempo, alguns nascem póstumos." (EH/EH, Porque escrevo livros tão bons, § 1).

Com efeito, a referida passagem do texto de Müller-Lauter traz, em parte, esse espírito, quando nos propõe que, como para Nietzsche "não se ama suficientemente o próprio conhecimento quando se o comunica a outros" (JGB/BM § 160), seria, pois, legítimo supor que "aquilo que o próprio Nietzsche publicou seria sempre 'fachada'. A autêntica filosofia de Nietzsche teria permanecido como 'póstumo' " (Müller-Lauter 6, p.59). Como ficou dito, tal condição – a de póstumo – não lhe é acidental mas sim congênita. Ademais, o uso da expressão "fachada" – grafada entre aspas por Müller-Lauter – também poderia ser tomado como uma referência indireta àquele contexto de Para além de bem e mal (Dos preconceitos dos filósofos, § 2) que foi citado anteriormente em que se dizia que se pode duvidar "se há oposições em geral e se aquelas vulgares estimativas e oposições de valor sobre as quais os metafísicos imprimiam seu selo não seriam apenas estimativas de fachada, apenas perspectivas

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provisórias." (JGB/BM § 2)

Essa aproximação de contextos mostra-se, ademais, bastante proveitosa, uma vez que a discussão de Müller-Lauter sobre a doutrina da vontade de poder tem, como um de seus panos-de-fundo, a crítica de Heidegger a Nietzsche, segundo a qual este seria o último dos metáfisicos. Heidegger, coerentemente, interpreta o laconismo de Nietzsche acerca da vontade de poder, nas obras publicadas, como "um sinal de que ele quis proteger o mais longamente possível esse elemento mais interior da verdade do ente enquanto tal, por ele reconhecida, e colocá-lo ao abrigo de um único e simples dizer" (apud Müller-Lauter 6, p. 59, nota 14). Ora, por tudo que vimos até aqui, não seria incompreensível que pensássemos tal laconismo como devendo-se, antes, à desconfiança característica que Nietzsche mantém tanto relativamente à última palavra e à opinião filosófica "verdadeira", quanto – e sobretudo – relativamente à existência de um fundamento último (Cf. JGB/BM § 289).

Em que medida Nietzsche ainda permanece metafísico? Talvez, como pudéramos supor anteriormente, na mesma medida em que ele ainda permanece devoto, ou seja, provisoriamente e ao realizar uma estimativa de fachada: Nietzsche permanecia metafísico só durante o tempo em que se constituía como a primeira forma de anti-asno. De fato, através de seu pensamendo sobre o eterno retorno do mesmo e da aproximação entre ser e devir, Nietzsche, se não continua simplesmente a metafísica clássica, inscreve-se, porém, justamente por assim havê-la criticado, no interior da mesma história que a produziu, e – como talvez ele próprio tenha previsto(9) – paga pelo embate o preço de ver seu nome ligado ao do adversário. Todavia, como ensina Müller-Lauter, "o essencial é que, por trás das fachadas, sempre de novo erigidas por ele, a metafísica desmorona, em consequência de seu incessante perguntar" (Müller-Lauter 6, p. 53). Nessa passagem, fica clara a oposição entre 'erigir' e 'desmoronar' – momentos de um movimento incessante que os traz 'sempre e de novo'. Aí se encontraria a atitude do verdadeiro anti-asno, do anti-asno par excellence, pois o que de novo e sempre há de ser erigido não pode possuir a firmeza e a solidez de um edifício do conhecimento, alicerçado, ademais, sobre a base estável do absoluto: a obra é só fachada, perene é apenas o perguntar: eis novamente... aquele ponto de interrogação. A nós, porém, nos resta sempre a mesma pergunta que, desde o início, norteia este artigo: que tipo de coisa linguística e filosófica são essas obras, cujo conteúdo envolve tão intensa crítica à linguagem e à filosofia?

III

Comentando outra metáfora nietzschana – a da verdade como mulher – Müller-Lauter, num artigo intitulado justamente Sobre o trato com Nietzsche (Müller-Lauter 8), assegura que a estratégia linguística de Nietzsche não se reduz à mera contraposição do mutável às estabilidades, e, para explicá-lo, escreve algo que nos abre amplos horizontes de investigação: "Nietzsche não é um dos heraclitianos dos quais Aristóteles conta em sua Metafísica" (Müller-Lauter 8, p. 6). Mas o que significa essa afirmação? Ora, ela significa, antes de mais nada, que, para pensar os problemas aqui em pauta, poderemos inserir o discurso nietzscheano na seqüência de uma história que remonta às polêmicas entre Aristóteles e os heraclitianos e que, então, estebelecidas as devidas precisões, será possível compreendê-lo melhor. Aliás, visto que, em certo sentido, um dos panos-de-fundo de nosso tema é a relação, tomada a partir da problematização da linguagem, entre Nietzsche e a metafísica, será lícito, pois, buscarmos uma formulação paradigmática das questões gerais aí implicadas recorrendo, por exemplo, ao livro G da Metafísica de Aristóteles: nesse livro, com efeito, encontram-se articulados precisamente o problema da significação das palavras, a validação do princípio de não contradição e o debate com a tradição heraclitiana.

Não pretendendo um aprofundamento minucioso no interior do pensamento de Aristóteles, será suficiente trazermos à tona partes de seus argumentos contra aquela opinião que, segundo os próprios antigos, seria de Heráclito, a saber, a de que é possível tomar o mesmo como sendo e não sendo no mesmo, ao mesmo tempo e no mesmo sentido (Cf. Aristóteles 1, 1005b 19-25). Investindo contra esta tentativa de negar aquele que seria um dos axiomas constituintes da própria filosofia, Aristóteles se

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depara com o problema de ter que demonstrar, nessa polêmica, algo que constitui a própria condição de qualquer demonstração, o que implicaria, portanto, uma petição de princípio. Diante disso seria necessário proceder refutativamente, ou seja, mostrando como a afirmação do adversário se autodestrói pelo fato mesmo de que é feita. Mas, em se tratando especificamente desse princípo das demonstrações, mesmo tal procedimento refutativo encontra um limite, visto que de nada adiantaria indicar a contradição interna como razão da autodestruição de um argumento justamente a quem não aceita que as contradições sejam perniciosas(10). A refutação que Aristóteles, então, apresenta, precisa ser, pois, de uma outra ordem: "... o ponto de partida para [nossos] argumentos não é exigir que o adversário reconheça que ou algo é ou algo não é (pois isso seria cometermos uma petição de princípio) mas apenas [exigir] que ele signifique algo [semainei ti] para si mesmo e para outro; isso necessariamente ele há de reconhecer se realmente quiser dizer algo, pois, caso contrário, não poderia pensar nem com si mesmo nem com outro. Mas se reconhece isso, será possível que façamos [nossa demonstração daquele princípio], pois haverá algo definido. E culpável não será aquele que demonstra, mas o que se submete à demonstração, pois ao destruir o raciocínio [logon] ele se submete ao raciocínio." ( Aristóteles 1, 1006a 18ss, incisos nossos).

Procedendo dessa maneira, isto é, indicando que, na ação mesma de querer dizer algo determinado, os negadores do princípio da não-contradição se submetem e se servem do logos que sua atitude problematizava, Aristóteles não está acusando de contraditórios aqueles que não se incomodariam com isso, nem tampouco incorrendo em petição de princípio, ele está, antes, mostrando como estes outros, eles sim, incorrem em tal petição – e uma atitude tão própria aos dogmáticos certamente incomodaria céticos e sofistas: "a fim de argumentar, se valem daquilo mesmo que puseram em questão" (Aubenque 2, p. 123). A alternativa do renitente, seria, com efeito, a de nada dizer, mas com este, afirma Aristóteles, porque não pode dizer nada, é ridículo tratar de discutir, e "esse tal, enquanto tal, é por isso mesmo semelhante a uma planta." ( Aristóteles 1, 1006a 13)

Todavia, o pressuposto da refutação realizada por Aristóteles parece ser, pois, a tese de que, para que haja discurso possível, significar algo deve ser necessariamente significar um: "...o não significar um único [en semainei] é não significar nada [ouden semainei]; e se os homens não significam nada, é impossível dialogarem uns com os outros e, em verdade, consigo próprios" (Aristóteles 1, 1006b 6ss). Ora, é sobretudo frente a essa tese que podemos compreender melhor qual a natureza do discurso nietzscheano: a argumentação exposta logo acima fornece um quadro conceitual exemplar para que se possa entender a gravidade da opção de Nietzsche pelo estilo que emprega, por exemplo, no Zaratustra, bem como a profundidade de sua crítica à "aceitação impensada sempre do mais óbvio", à "tendencia a compreender o que é dito ou escrito em seu significado mais trivial e imediato", pois tal tendência nos atira diretamente no centro dos preconceitos dos filósofos – que não deixam de ser, em certo sentido, também os preconceitos de Aristóteles – de que significar deve ser, necessariamente, significar um único, e de que, não sendo assim, qualquer discurso que realmente almeje dizer algo seria impossível. Isso feito, já aceitamos seu axioma primeiro, e, na perspectiva de Nietzsche, já somos, com efeito, metafísicos.

O paradoxo do asno trágico revela aqui toda sua crueldade, pois, por outro lado, poderíamos também perguntar se aquele solitário, aquele custódio de tesouros a que se referia o aforismo 289 de Para além de bem e mal, com seus conceitos incomunicáveis, não seria ele, nos termos aristotélicos, uma planta. Sua solidão não seria antes uma desculpa para o fato de que não pode mais pensar com os outros ? E, no limite, poderia ele pensar com si mesmo, dialogando intimamente com sua alma? Recolocando o problema que desde o princípio nos aflige, perguntaríamos: não oscila Nietzsche entre a planta e o asno ? Talvez. Mas talvez seu vigor seja mesmo essa própria oscilação, esse movimento de erigir e demolir que, talvez, se constitua como a verdadeira obra por detrás da fachada. Talvez.

Müller-Lauter, em Sobre o trato com Nietzsche (Müller-Lauter 8, p. 6) nos garantia que Nietzsche não é mais um dos que, como Crátilo, discípulo de Heráclito, só no silêncio encontraram alternativa ao

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pensamento da não-contradição e se limitaram, por fim, a mover o dedo: as metáforas de Nietzsche, agitadas pelas oscilações do texto conflituoso, devem permitir que o discurso entre e saia rapidamente de sua significação, num momento estabilizando-se provisoriamente para, em seguida, destruindo a possibilidade do domínio demasiado prolongado desse único significado, enfatizar, mais uma vez, um outro significado que deve romper esse domínio nele mesmo. Nietzsche quer dizer algo determinado, quer que nós o ouçamos e não o confundamos; mas quer que o façamos precisamente ao saber que, em seus textos, como tão freqüentemente, a unidade das palavras nada garante à unidade da coisa. Nesse mesmo sentido, Müller-Lauter, em A doutrina da vontade de poder em Nietzsche, recoloca a questão de sabermos se, por exemplo, a expressão singular 'a vontade de poder' designa um princípio unitário que operaria, no pensamento nietzscheano, como um fundante metafísico. Na parte que se intitula "A vontade de poder como um e mútiplo", esse comentador nos mostra que uma tal vontade não poderia ser pensada por Nietzsche como unidade simples, mas tão somente como "organização e concerto, não diferente de como uma comunidade humana é unidade", e assim, a multiplicidade acede ao primeiro plano: "só uma multiplicidade pode ser organizada em unidade" (Müller-Later 6, p. 74). Dessarte, embora a vontade de poder seja sempre uma vontade singular efetiva, e sua unidade sempre ainda multiplicidade em forma de organização sob a ascendência provisória dessa vontade de poder dominante, seria possível, contudo, que se falasse em ' a vontade de poder ' – no singular – isto é, desde que a unidade aí pressuposta não... "fosse um, mas significasse um" (Müller-Lauter 6, p. 78).

Portanto, se Müller-Lauter tem razão ao introduzir tal distinção – entre significar e ser –, devemos considerar verdadeira a hipótese que nos vem norteando, a saber, que, em Nietzsche, significar, e mesmo significar um, deve ser coisa muito diferente daquele tipo de significação caracterizada pelo semainei en de Aristóteles. Num póstumo citado por Müller-Lauter (Müller-Lauter 6, p. 75, nota 41), Nietzsche escreve: "Um impulso ainda tão complexo, se ele tem um nome, vale como unidade, e tiraniza todo pensador que procura sua definição". Ora, aparentemente, trata-se aqui daquela antiga noção de definição e unidade nominais. Mas o que é novo no sentido que esse conceito assume no presente contexto é que, contrariamente ao que se passa em boa parte da históra anterior da filosofia, esta unidade nominal não se opõe imediatamente à unidade real, pois aquela unidade se dá a partir de uma efetiva formação de domínio: de um lado, porque, por um momento, de fato uma vontade de poder se tornou senhora de algo menos poderoso e, com isso, proporcionou certa organização, mas de outro lado, e sobretudo, porque "Toda interpretação surge do anseio de poder de formações de domínio (...). O arranjar é sempre um igualar falsificador e tornar fixo. Aquilo que é igualado e tornado fixo é preparado para ser apanhado (...). 'A' coisa significa um para o intérprete, embora a ele, na efetividade, somente uma multiplicidade se contraponha" (Müller-Lauter 6, p. 78). É então que podemos compreender o sentido reflexivo ou meta-linguístico do asno como figura da própria interpretação das figuras no texto nietzscheano: o asno, com sua convicção, é aquele hermeneuta que, ignorando a diferença entre ser e significar, não se reconhece como intérprete, nem sua fala como vontade de dominar. Compreendemos, enfim, o sentido do seu 'Sim !', ele significa 'É !'

Em Crepúsculo dos ídolos (A razão na filosofia, § 5) lemos a exata contrapartida do texto de Aristóteles supra citado, e que se compõe com o que acabamos de afirmar sobre o asno: "De fato, nada teve uma mais ingênua força persuasiva do que o erro do ser, tal como foi, por exemplo, formulado pelos eleatas: pois esse erro tem a seu favor cada palavra, cada proposição do que falamos! (...) A 'razão' na linguagem: oh, que velha enganadora personagem feminina! Temo que não nos desvencilharemos de Deus, porque ainda acreditamos na gramática..." (GD/CI, A razão na filosofia, § 5)

Comentando essa passagem, Müller-Lauter afirma que, de fato, Nietzsche está convencido de que a linguagem nos engana quando tomamos a palavra ao pé da letra, isso é, "quando permanecemos nela e deixamos de perceber, por meio dela, a indicação a processos que não são absorvidos nela" (Müller-Lauter 6, p.75-6). Esse é o asno. Mas, ainda segundo Müller-Lauter, Nietzsche falaria indicativamente, isto é, segundo uma natureza de discurso que lhe permite tanto "dizer 'é' quanto negar efetividade ao 'é' " (idem supra p. 76). Esse é o anti-asno par excellence. Dessarte, se voltarmos

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ao contexto em que Nietzsche se define, no Ecce homo, como anti-asno par excellence, e perguntarmos, fazendo referência ao título do capítulo: "por que, afinal, os livros de filosofia de Nietzsche são tão bons ?" a resposta bem poderia ser, se nos valêssemos daquela referida passagem da Metafísica de Aristóteles: porque, de um modo talvez sem precedentes, alguém ousou criticar a filosofia e a 'razão' na linguagem sem, simultaneamente, acabar, de modo definitivo, ou submetido a elas ou obrigado a calar-se por completo. E, aqui, na fenda assim aberta entre este terrível ou-ou, aquele paradoxal trânsito das oposições novamente se faz sentir: enquanto, por um lado, o 'Sim !' do asno – na medida em que pode ser remetido ao 'é' paralisante da filosofia eleata – denuncia seu espírito de negação, por outro lado, entretanto, Nietzsche-Zaratustra, o negador da filosofia, "aquele que em grau inaudito diz Não, faz Não a tudo a que até então se disse Sim, é, contudo, o oposto de um espírito de negação"(EH/EH, Assim falava Zaratustra, § 6).

Para caracterizar a linguagem empregada no texto de Assim falava Zaratustra, diremos que, em toda palavra, os opostos se fundem, a cada instante, em novas unidades: "As mais baixas e as mais elevadas forças da natureza humana, o mais doce, o mais terrível flui de uma nascente com certeza perene. (...) A mais poderosa energia para o símbolo até aqui existente é pobre brincadeira, frente ao retorno da linguagem à natureza da imagem" (EH/EH, Assim falava Zaratustra, § 6)

***

Se o que desde o início buscávamos era a natureza específica da significação das figuras e situações que Nietzsche faz desfilar na Quarta Parte de Assim falava Zaratustra, chegamos agora a conhecer seu nome; ela é o símbolo. E, na verdade, desde a segunda linha do texto de Salaquarda, Zaratustra e o asno, isso já estava dito(11). Todavia, essa natureza linguística mesma parece exigir que, antes de tentar inadvertidamente taxá-la de poética, alegórica, simbólica, metafórica etc., empreendamos um percurso repleto de dificuldades que solapam nossas pretenções iniciais e desmascaram, sob a obviedade de nossas qualificações, uma tremenda estupidez. O texto nietzscheano é isso tudo mas também nada disso – uma observação que se aplica tanto, de modo amplo, ao gênero de Assim falava Zaratustra(12), quanto, de modo específico, à natureza da referência ou reenvio das figuras(13) que compõem um dos aspectos elementares para a decifração dessa obra singular. Não apenas as afirmações de Nietzsche são parcialmente divergentes entre si: mas o modo pelo qual afirma também é diversificado e cambiante, mudando e estabilizando-se provisóriamente em cada situação e no correr de seu discurso. Essas tensões mais internas são, afinal, constitutivas de uma linguagem que se descreve como sendo aquela em que "todo vir a ser quer aprender a falar" (EH/EH, Assim falava Zaratustra, § 3). É preciso, pois, estar à altura desse vir-a-ser e, assim, também tornar-se leitor de Nietzsche: seus escritos nos demandam uma experiência que somente eles próprios efetivam, e seus ensinamentos não são apenas o que dizem, mas também o que fazem ao dizer – o que nos fazem.

Dessarte, se, procurando indicar a problematização filosófica que a própria forma e o estilo nietzscheanos realizam, acabamos produzindo uma interpretação bastante particular, queremos crer, no entanto, que diante do texto nietzscheano e dos comentários que sobre ele se apoiam, não parece possível simplesmente safar-se do desafio da interpretação. E, para comprová-lo, incorremos, mais uma vez, no paradoxo de citar o próprio autor: "Não se tem ouvido para aquilo a que não se tem acesso a partir da experiência. Imaginemos um caso extremo: que um livro fale de experiências situadas completamente além da possibilidade de uma vivência frequente ou mesmo rara – que seja a primeira linguagem para uma nova série de vivências. Neste caso simplesmente nada se ouvirá, com a ilusão acústica de que onde nada se ouve nada existe... Esta é, em definitivo minha experiência ordinária, ou, se se quiser, a originalidade da minha experiência. Quem acreditou haver compreendido algo de mim, havia me refeito como algo à sua imagem..." (EH/EH, Porque escrevo livros tão bons, § 1)

Notas (1) Müler-Lauter mostra-nos como a assistematicidade de Nietzsche está relacionada, por exemplo,

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com sua crítica à fundamentação de verdades no mero caráter sistemático do pensamento que as sustenta. Tal fundamentação consistiria essencialmente num preconceito que transpõe para a realidade um comportamento humano de ordem moral: "é absolutamente indemonstrável que o em-si das coisas se comporte conforme essa receita de um funcionário padrão" (Nietzsche, apud Müller-lauter 7, p.14).

(2) É isso, entre outras coisas, o que o presente artigo visa a demonstrar. Cf. Müller-Lauter 7, p. 13: onde se apresenta a interpretação de Deleuze sobre a relação entre o estilo aforístico e a elaboração de uma contra-filosofia.A pergunta que essa interpretação ainda nos deixa é a de saber se seria possível recusar a filosofia sem, nesse mesmo empreendimento, fazê-la: uma pergunta que, conforme pensamos, está inteiramente dentro do espírito do próprio pensamento nietzschiano. (3) Os destaques dados por nós para as palavras pertencentes a textos citados estarão grafados sempre como no presente caso. (4) Cf. Salaquarda 12, p. 171, nota 10: aqui Salaquarda cita um poema em que Nietzsche escreve: ".../ Meu olho está demasiado perto de mim /.../ Se pudesse estar mais distante de mim mesmo / Mas não tão distante quanto meu inimigo! /..." (FW/GC § 25) . (5) Cf. Müller-Lauter 8, p.3: "O leitor é exposto a uma elevada exigência. Nietzsche enfatiza de bom grado e freqüentemente que ele não escreve para qualquer um." (6) "Heidegger atribuiu à filosofia de Nietzsche uma significação particular no interior da história da metafísica. Ele a interpreta como acabamento (Vollendung) da metafísica ocidental, na medida em que, na inversão (Umkehrung) da metafísica por ele operada, as possibilidades essenciais desta última deveriam esgotar-se." (Müller-Lauter 6, p.52). (7) Nietzsche deve poder não somente desmascarar a unidade secreta existente entre os opostos que pretendem excluir-se reciprocamente, como também, uma vez mais, criticar a unidade aí descoberta indicando seu caráter circunstancial e dela tirando proveito apenas enquanto assim for útil para o aumento da potência vital. (Cf. Marton 4). (8) Cunhamos a expressão 'hábito das transições' a partir do contraste com 'hábito das oposições' que o próprio Nietzsche apresenta em WS/AS § 67. Ao termo transição, que poderia levar-nos a um tentador hegelianismo, devemos acrecentar, no entanto, a noção de matiz: "A linguagem aqui, como em todos os outros lugares, tem que arrastar consigo toda sua torpeza e continuar falando de suas oposições, quando se trata de matizes e sutis gradações" (JGB/BM § 24). (9) "...atacar é em mim prova de benevolência, ocasionalmente de gratidão. Eu honro, eu distingo, ao ligar meu nome ao de uma causa ou pessoa: a favor ou contra – não faz diferença para mim" (EH/EH, Por que sou tão sábio, § 7). (10) Cf. Aubenque 2, p.122 "... em nome de que, senão do princípio de não-contradição, objetamos suas contradições aos adversários que negam precisamente esse princípio?" (11) Salaquarda 12, p.167: "Sabe-se que as figuras e situações (...) têm significado sobretudo alegórico, ou antes, simbólico." (12) Cf. Salaquarda 11: Nesse artigo, Salaquarda nos mostra, a partir de trechos extraídos da correspondência de Nietzsche, de que modo e quanto este hesitou a respeito do gênero no qual poderia ser colocado Assim falava Zaratustra, chegando a caracterizá-lo sob as mais diversas categorias, tais como: pregação moral, sinfonia, poesia e escrito sagrado. (Cf. também Marton 5). Admitindo a interpretação de Salaquarda – a saber, que o texto é isso tudo mas também nada disso – ressaltaríamos, apenas, o fato de que tamanha hesitação bem poderia ser pensada como sendo a melhor pista que Nietzsche nos oferece acerca da rubrica a que pertenceria o livro. (13) Eis por que preferimos o uso da expressão figuras no lugar, por exemplo, de metáforas: uma vez que o que estava em questão era precisamente a natureza da significação de certas palavras, e que o uso de metáfora já determinaria previamente o que se buscava, a expressão figura – usada pelo tradutor do artigo de Salaquarda, Zaratustra e o Asno – nos ocorreu como alternativa suficientemente neutra para nos referirmos ao asno e a tudo mais do mesmo tipo.

Referências Bibliográficas 1. Aristóteles. Metafísica. Ed. trilingue e trad. espanhola: V.G. Yebra. Madri, Editorial Gredos, 1987. 2. Aubenque, P. El problema del ser en Aristóteles. Trad. espanhola: Vidal Peña. Madri, Taurus

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Humanidades, 1987. 3. Hegel, G.W.F. A fenomenologia do espírito. Trad. Henrique C. de Lima Vaz. Col. Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1980. 4. Marton, S. "Nietzsche e Hegel, leitores de Heráclito". In: Discurso, 21, 1993, p. 31-51. 5. _______. "Nietzsche e a celebração da vida". In: Cadernos Nietzsche, 2, 1997. São Paulo, Departamento de Filosofia – Usp, p. 7-15. 6. Müller-Lauter, W. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. Trad. Oswaldo Giacoia Jr. São Paulo, Annablume, 1997. 7. _______. "O desafio Nietzsche". In: Discurso, 21, 1993, p. 7-29. 8. _______. "Sobre o trato com Nietzsche". Trad. Oswaldo Giacoia Jr. Mimeo. Esse texto foi publicado parcialmente, sob o título "Uma filosofia para ruminar", no jornal Folha de S. Paulo, caderno Mais!, p. 7, 09 de Outubro de 1994. 9. Nietzsche, F. Ecce homo. Trad. Paulo Cesar Souza. São Paulo, Max Limonad, 1986. 10. _______. Obras incompletas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. Col. Os pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1980. 11. Salaquarda, J. "A concepção básica de Zaratustra". In: Cadernos Nietzsche, 2, 1997. São Paulo, Departamento de Filosofia – Usp, p. 17-39. 12. _______. "Zaratustra e o Asno". In: Discurso, 28, 1997, p. 167-208.

14 - Ecce homo: um livro quase homem Alexandre Mendonça

Mestrando do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro

Ecce homo: a book almost like a manAbstract: The purpose of this article is to discuss some of the possible meanings taken by Nietzsche's autobiography, regarding his conception of life as a work of art. Key-words: autobiography - life - art - metaphysics

Resumo: O objetivo deste artigo é discutir alguns dos possíveis sentidos assumidos pela autobiografia de Nietzsche, levando em conta sua concepção da vida como obra de arte.

Palavras-chave: autobiografia - vida - arte - metafísica

Ao nome do filósofo alemão Friedrich Nietzsche costuma ser associada, quase que imediatamente, a imagem de um crítico mordaz da tradição de pensamento metafísico, de um demolidor da moral cristã, e ainda de um eloqüente apologista da arte. De fato, ao longo de sua obra, o filósofo parece ter se dedicado, por um lado, a denunciar, por trás do pensamento religioso, filosófico, moral ou científico, as artimanhas para a mera conservação de uma vida doente, enfraquecida, voltada contra si própria e, por outro, a apontar para a arte como uma instância do pensamento afirmadora da vida, intensificadora de sua potência. Não é à toa que, para o próprio filósofo, e ainda para muitos de seus estudiosos, Assim falou Zaratustra - texto poético-filosófico, composto entre 1883 e 1885 - ocuparia um lugar privilegiado entre seus escritos. Nietzsche trata Zaratustra como a solução da parte afirmativa de sua tarefa (EH/EH, Para além de bem e mal, §1). Eugen Fink - para citar um de seus importantes comentadores - considera que "no Zaratustra Nietzsche encontra a sua própria linguagem para os seus próprios pensamentos" (Fink 1, p. 65). Tudo se passa como se, ao expressar o seu pensamento através da dramatização de embates entre personagens conceituais, Nietzsche tivesse driblado radicalmente a tradição racionalista, dificultando interpretações que procurem no Zaratustra a voz de um sujeito racional veiculador de verdades absolutas. No lugar de uma doutrina filosófica balizada por supostos valores universais, o leitor toma contato com uma obra assumidamente ficcional. Se por uma abordagem filosófica convencional, que exigiria uma argumentação propriamente conceitual, a exposição da filosofia de Nietzsche no Zaratustra poderia parecer deficiente, pela perspectiva nietzschiana de escapar à valoração metafísica e produzir um pensamento guiado por valores artísticos, a dramatização seria uma solução radical para a expressão de seu pensamento.

Como situar, então, o último texto escrito por Nietzsche para ser publicado - a autobiografia Ecce

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homo - em relação à sua pretensão de escapar às valorações metafísicas, que privilegiam a verdade como critério para a avaliação do pensamento? Qual seria o estatuto de uma autobiografia no interior de um pensamento que se pretende radicalmente crítico das noções de verdade e sujeito? Um texto autobiográfico não implicaria um certo compromisso com a veracidade? E ainda, não reforçaria a própria categoria do sujeito tão criticada por Nietzsche? Em suma, a escritura de Ecce homo não apontaria para um certo enfraquecimento da radicalidade de seu pensamento, que teria atingido o ápice com o Zaratustra?

Para evitar respostas apressadas, dadas a mal-entendidos, seria interessante atentar para o esforço, exercido pelo pensamento nietzschiano, no sentido de ultrapassar a suposta oposição entre vida e arte através da sua concepção da vida como obra de arte. E ainda para a articulação deste tema com a singular concepção anti-metafísica do sujeito colocada em jogo por Ecce homo - não como uma identidade prévia, entendida a partir dos modelo da alma ou do espírito, mas como uma produção, um efeito de um jogo entre forças.

Parece certo que já em seu primeiro livro, O nascimento da tragédia, escrito em 1871, Nietzsche anuncia a sua crítica ao espírito científico e toma a arte, mais especificamente a arte trágica, como um modelo alternativo à racionalidade socrática - entendida por ele como expressão da decadência da civilização grega. Mas se seu pensamento já se constitui como anti-socrático, antiplatônico, ainda não se pode detectar aí seu aspecto propriamente antimetafísico. Ao contrário, Nietzsche, ainda preso a formulações schopenhauerianas e kantianas, ainda discípulo de Wagner, superestima a arte como atividade propriamente metafísica do homem. Faz da arte trágica lugar privilegiado da revelação daquilo que haveria no fundo da existência, da verdade sobre a vida. Nietzsche chega a opor a sua concepção de um certo consolo metafísico oferecido pela arte trágica - traduzido na idéia "de que a vida, no fundo das coisas, apesar de toda mudança das aparências fenomenais, é indestrutivelmente poderosa e cheia de alegria" (GT/NT § 7) - à pretensão socrática de, pelo fio da causalidade, penetrar no abismo do ser para não só conhecê-lo, como também corrigi-lo (idem). Se a arte trágica ocupa, neste momento, um lugar privilegiado no pensamento de Nietzsche é em função dos pressupostos metafísicos que a cercam.

Ora, são justamente estes pressupostos que serão profundamente abalados a partir da ruptura de Nietzsche com Kant, Schopenhauer e Wagner. Ruptura da qual Humano, demasiado humano, escrito em 1878, seria o primeiro testemunho público. Se a arte continuará a ser valorizada no pensamento nietzschiano, não mais o será por expressar a verdade sobre a existência, mas por servir de modelo de inteligibilidade da própria vida. Modelo antimetafísico por excelência, que exclui a possibilidade de se pensar a vida em termos de verdade e essência. Se é possível compreender a vida pelo modelo da arte é porque a vida não repousa sobre nenhum fundamento, mas sobre a aparência, a ilusão, a óptica, a necessidade do perspectivo e do erro (GT/NT, Tentativa de autocrítica, § 5). A existência torna-se, para Nietzsche, algo da ordem do provisório, do conflituoso, do inventado. E ainda que talvez se possa argumentar que a compreensão da vida, ou do mundo, como fenômeno estético não seja de todo estranha a O Nascimento da Tragédia (GT/NT, § 5), não se pode ignorar que neste primeiro momento ela pressupõe um fundamento metafísico - no caso, a vontade schopenhaueriana, como fundo último sobre o qual repousaria o mundo da representação, dos fenômenos. Nietzsche passa, então, de uma valorização metafísica da arte para uma apologia da arte como modelo não-metafísico de compreensão da existência. Compreensão que lhe permite ir longe na sua guerra contra o pensamento dogmático, ultrapassando as oposições entre vontade e representação, coisa em si e fenômeno, essência e aparência, verdade e mentira.

Se no primeiro livro de Humano, demasiado humano a arte, ao ter a sua auréola metafísica desmitificada, parece esvaziada de valor, já na Miscelânea de Opiniões e sentenças - publicada como complemento ao primeiro volume de Humano demasiado humano - Nietzsche parece apontar para um outro modo de valorizá-la, absolutamente desvinculado da chamada metafísica de artista característica de seu primeiro escrito. Interessado em abalar a crença romântica no pretenso valor inquestionável das

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obras de arte, o filósofo chega a escrever um aforismo intitulado "Contra a arte das obras de arte" (§ 174). Pelo próprio título já se pode perceber que a crítica de Nietzsche incide sobre a arte institucionalizada, presa a limites que a separam da vida. O que não impede uma valorização da arte para além de tais limites. Ao contrário, o filósofo chega a atribuir à arte a tarefa primeira de embelezar a vida, de "reinterpretar tudo o que é feio, aquele lado penoso, apavorante, repugnante que, a despeito de todo esforço, irrompe sempre de novo, de acordo com a condição da natureza humana" (VM/OS § 174). A arte aliada à vida serviria como uma arma para se vencer o pessimismo, inventando um sentido para as paixões, as dores e as angústias da alma, fazendo transparecer o significativo mesmo no inevitável ou insuperavelmente feio" (idem). Frente a esta dupla função daquilo que Nietzsche passa a conceber como arte, a chamada arte propriamente dita, a das obras de arte, é interpretada por ele como um mero apêndice. As obras de arte seriam criações de homens que sentem em si um excedente de forças reinterpretativas da própria vida e que descarregariam tal excedente também nas chamadas obras de arte. O erro moderno, para o filósofo, estaria em tomar o apêndice como finalidade primeira, em começar a refeição pela sobremesa, e privilegiar a arte enquanto obra de arte, ignorando as forças artísticas voltadas para a própria vida.

Esta concepção da arte como uma atividade do pensamento eminentemente criativa, aliada ao próprio movimento da existência e, portanto, liberada dos limites que constituiriam as chamadas obras de arte, é retomada de forma mais intensa em vários dos aforismos que compõem o livro IV de A gaia ciência. Num deles, intitulado "O que é preciso aprender dos artistas" (§ 299), a arte é explicitamente tomada como uma atividade reinterpretativa da vida, como um meio de tornar as coisas belas , atraentes e desejáveis, mesmo quando elas não o são - aliás o filósofo chega a crer que por elas mesmas as coisas jamais o são. Ao recusar a idéia de que possa haver uma verdade última sobre a vida, Nietzsche se afasta tanto da perspectiva metafísico-religiosa tradicional quanto da perspectiva científica moderna, aliando a sua gaia ciência a um saber que se quer criativo, valorizando a arte, de forma bastante polêmica, pelo que ela tem de artificial, perspectivo e parcial: Afastar-se das coisas até que tenhamos delas uma visão parcial e falha e ajuntar muito por nós mesmos para continuar a vê-las ainda; ou contemplar as coisas a partir de um ângulo para vê-las parcialmente; ou vê-las através de um vidro colorido, sob a luz do crepúsculo; ou ainda dar-lhes uma superfície e uma pele que não possua uma transparência completa: tudo isso precisamos aprender com os artistas. (FW/GC § 299).

Ora, se para o Nietzsche antimetafísico não existem verdades absolutas, universais, imparciais, a arte pode ser duplamente valorizada. Primeiro por se tratar de uma criação que se afirma enquanto tal - ao passo que a filosofia, a moral, a religião, ou ainda a ciência se constituem em criações, em perspectivas, que se pretendem não-condicionadas, universais. Mas sobretudo por investir no artifício de modo a possibilitar a produção de um sentido afirmativo para a existência, apesar de seus possíveis pesares. Fica claro aqui que a apologia de Nietzsche à arte já não se limita a obras de arte. Trata-se da apologia de um modo de pensamento capaz de afirmar o artifício, ou mesmo a vontade de ilusão, como instância constitutiva da própria vida. Por isso, Nietzsche, mais uma vez, não deixa de dirigir sua crítica ao artista que se restringe aos limites das chamadas obras de arte. Se é preciso aprender algo dos artistas, também é preciso ser mais sábio que eles. A razão disso reside no fato de que entre os chamados artistas "essa força sutil que lhes é própria cessa geralmente onde termina a arte e começa a vida" (idem). Nietzsche, no entanto, interessado em ultrapassar os limites entre arte e vida, pretende que nos tornemos poetas de nossa própria existência - e isso diante mesmo das pequenas coisas do cotidiano. Num outro aforismo do livro IV de A gaia ciência, intitulado "Uma única coisa é necessária" (§ 290), a concepção da vida como obra de arte é desenvolvida minuciosamente em sintonia com aquilo que, segundo o filósofo, seria imperativo para as naturezas fortes. Para o homem pleno de forças criativas, a única coisa necessária seria "dar estilo" a seu caráter. Esta atividade, que pressupõe uma lenta preparação e um trabalho cotidiano, consistiria em perceber em seu conjunto tudo o que a natureza oferece de forças e fraquezas para, em seguida adaptá-la a um plano artístico, até que cada coisa apareça em sua arte e que as próprias fraquezas sejam de tal modo transmutadas que cheguem a ofuscar os olhos (FW/GC § 290). Mesmo aquilo que é feio, embora talvez não possa

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ser suprimido, pode ser mascarado, tornado sublime por este homem que se torna poeta de sua própria vida (idem). Em "Ilusão dos contemplativos", outro aforismo - também do livro IV de A gaia ciência -, Nietzsche não deixa de nos prevenir que em muitos casos esta verdadeira atividade artística empreendida por um tal homem superior pode perfeitamente lhe passar despercebida: ele freqüentemente "acredita situar-se como espectador e ouvinte diante do grande espetáculo que é a vida; diz que sua natureza é contemplativa e não se apercebe que é o verdadeiro poeta e criador da vida" (FW/GC § 301). Mas ainda que este verdadeiro artista da existência pareça compactuar por um momento com a ilusão contemplativa, com a crença estabelecida pela metafísica num conhecimento objetivo sobre a vida ou sobre o mundo, e neste ponto seja menos altivo do que possa ser, isto não faz dele menos poeta no sentido forte que Nietzsche parece pretender dar à palavra - isto é, criador da própria vida. Noutras palavras: a valorização antimetafísica da arte, através da concepção da vida como obra de arte, não faz da obra de arte uma forma de expressão privilegiada em relação às demais. Neste sentido, acreditar que Nietzsche, em sua crítica à vontade de verdade, se limita a uma simples apologia da arte, parece tão ingênuo quanto desqualificar Ecce homo por julgar que uma autobiografia implica necessariamente uma subordinação a categorias metafísicas como verdade e sujeito.

Neste momento, já é possível arriscar a seguinte questão: que sentido teria o gesto autobiográfico de Nietzsche senão o de dar estilo ao seu caráter, o de reinterpretar a sua própria vida de modo a embelezá-la, tornando mesmo o feio, o angustiante, significativo? Ainda que um texto autobiográfico possa sugerir um comprometimento com a verdade, com a imparcialidade, um pacto com a ilusão contemplativa ao promover o retrospecto de sua vida, não podemos esquecer que para o Nietzsche antimetafísico não existem fatos em si, apenas interpretações. Assim, o seu gesto autobiográfico, longe de indicar um enfraquecimento de seu pensamento, por compactuar com uma forma de expressão supostamente vinculada a valores metafísicos, parece perfeitamente afinado com a sua concepção da vida como obra de arte, com a sua intenção de se tornar poeta da própria existência. Ao invés de se deixar capturar pela exigência de compor um texto verídico, Nietzsche parece efetivamente interessado em combater a verdade em seu próprio terreno, inventando, através da escritura de Ecce homo um sentido, afirmativo, embora necessariamente provisório, para a série de acontecimentos que teriam composto a sua vida até então.

Um leitor não necessariamente perspicaz pode depreender este caráter eminentemente ficcional da autobiografia de Nietzsche já pelo pouco volume do texto - demasiado sumário caso se tratasse de uma biografia "cuidadosa" - e ainda pelo tom provocativo de alguns de seus capítulos (Por que sou tão sábio, Por que sou tão esperto, Por que escrevo livros tão bons). Ecce homo, a começar pelo próprio título, é uma paródia de autobiografia. Contudo, não se trata simplesmente de tornar a autobiografia uma obra de arte, uma ficção que contrariasse as exigências de veracidade e imparcialidade - uma vez que isto talvez ainda deixasse intactos os limites que separariam vida e arte - mas de tornar indecidível a fronteira entre a existência e a atividade artística, entre realidade e ficção. Trata-se sobretudo de elevar a ficção à condição de ser, de conceber a própria existência como ficção, ou ainda, para retomar o título de um aforismo de Humano, demasiado humano, de tornar um livro quase homem (VM/OS § 208). A concepção de uma autobiografia como obra de arte não se limita a fazer de uma forma de expressão tradicionalmente comprometida com a verdade uma forma de expressão artística, mas, sobretudo, parece criar uma imagem da vida como puro artifício, sem qualquer essência metafísica que lhe sirva de apoio. Por essa perspectiva, talvez o próprio Zaratustra pudesse ser lido positivamente como uma ficção que não respeita os limites que separariam arte e vida, deixando-se contaminar por um certo tom autobiográfico. Zaratustra e Ecce homo: os dois textos não estabeleceriam entre si uma curiosa cumplicidade? De um lado uma ficção autobiográfica, de outro uma autobiografia ficcional. Mas, em ambos os casos, não se tratariam de saídas originais e antidogmáticas criadas pelo filósofo para expressar seu pensamento?

Também não parece interessante interpretar o texto autobiográfico como um reforço da já tão criticada por Nietzsche categoria do sujeito. A concepção da vida como obra de arte faz do sujeito não uma identidade prévia - como se concebe comumente a alma, o espírito - mas uma criação provisória. Ecce

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homo, ao invés de representar o retorno de Nietzsche a categorias identitárias como o ser, o sujeito, a verdade, parece efetuar a radicalização de um outro modo de pensar, necessariamente crítico da lógica da identidade. De certa forma, o subtítulo do livro se presta a desfazer possíveis mal entendidos a este respeito: Como Alguém se torna o que é. O próprio Nietzsche adverte: "que alguém se torne o que é pressupõe que não suspeite sequer remotamente o que é" (EH/EH, Por que sou tão esperto, § 9). É o ser que pressupõe o vir-a-ser, o tornar-se. Sua concepção é a de que alguém só pode ser aquilo que até então se tornou. Em vários fragmentos póstumos acerca do eterno retorno, o filósofo insiste na idéia de que qualquer ínfimo acontecimento é imprescindível à existência de qualquer um. Como não há identidades prévias, ou uma substância subjacente a seus acidentes, é a série exata de acontecimentos de uma vida que constitui o seu ser. Cabe ao poeta de sua própria existência revestir os mínimos acontecimentos, mesmo os mais terríveis ou vis, com este sentido de necessidade. Se, no caso de Nietzsche, escrever um texto autobiográfico é contar como se tornou aquilo que é, não se trata portanto de revelar uma essência, uma identidade embutida desde a origem que teria se desdobrado no tempo, ou ainda aquilo que constituiria previamente o seu ser e que permaneceria como tal apesar de todo o vir-a-ser. Trata-se sim de afirmar o próprio vir-a-ser, de criar, através da escritura, um sentido para a série de acontecimentos que até então teriam constituído o seu ser. Sentido necessariamente retrospectivo e provisório, jamais prévio ou definitivo. Vale lembrar que para Nietzsche "a 'obra' do artista, do filósofo, só ela inventa quem a criou, quem a teria criado" (JGB/BM § 269).

Mas se a força de Ecce homo estaria não em resgatar verdades sobre um sujeito idêntico a si mesmo, mas em dar estilo ao caráter de Nietzsche, de inventar um sentido, uma imagem para a vida do filósofo, que sentido, que imagem seria esta? Ora, a imagem do filósofo trágico, do afirmador do eterno retorno, do homem dionisíaco, anticristão por excelência. Mas, para isso, não basta se dizer discípulo de Dioniso. O texto autobiográfico de Nietzsche parece exigir do filósofo uma tomada de posição em relação a toda sua vida, na medida em que coloca em jogo a criação de um sentido para a série de acontecimentos que a teriam composto; parece exigir que o filósofo dê provas de ter se tornado um afirmador do eterno retorno, de não se ressentir de ter vivido o que viveu. Nietzsche precisará retornar ao longo do texto autobiográfico a todas as suas outras obras, e ainda reinterpretá-las, de modo a torná-las afinadas com o seu pensamento trágico. Mesmo o seu primeiro e mais problemático livro, por se tratar de um texto ainda metafísico, será posto à prova. É afirmando o eterno retorno de toda a sua vida, através de seu último livro, que Nietzsche parece levar a cabo o projeto de se tornar poeta da própria existência. Apesar de sua suposta morte filosófica com o colapso de Turim, em janeiro de 1889, é a imagem do filósofo trágico, produzida por seus últimos escritos, e passada a limpo por Ecce homo, que se eterniza. É através dela que hoje lemos mesmo seus primeiros e ainda metafísicos escritos. Ecce homo, este livro quase homem, parece ter adquirido uma certa independência em relação a seu próprio autor, parece mesmo tê-lo criado, tê-lo tornado imortal.

Nietzsche sabia o quanto se paga por se tornar imortal: "morre-se várias vezes em vida" (EH/EH, Assim falou Zaratustra, § 5). Num texto do livro Armarinho de Miudezas, Waly Salomão, ao comentar o suicídio de Torquato Neto, sugere ser próprio do poeta "morrer" diversas vezes em vida. E mais: para o autor, o que parece permitir ao poeta experimentar e continuar a experimentar a "morte" são as aspas: ele ousa "morrer", mas "morre" entre aspas. O suicídio de Torquato seria, então, efeito de um esquecimento - ele teria esquecido as aspas e simplesmente morrido. Se nos apropriássemos desta idéia e nos esforçássemos por lançar alguma luz sobre a chamada morte filosófica de Nietzsche, seríamos tentados a admitir que o filósofo, em seus escritos, e sobretudo em Ecce homo, sempre soube lidar com as aspas ao flertar com a "loucura". Talvez, no colapso de Turim, Nietzsche tenha delas se esquecido, e, então, enlouquecido literalmente.Talvez a máscara da loucura, vestida com tanta freqüência, tenha lhe pegado à cara - como sugere a Tabacaria, de Fernando Pessoa (Pessoa 9, p. 256). Ou talvez pudéssemos compreender esta experiência singular, não universalizável, de uma forma absolutamente afirmativa, como uma aventura original, que lhe teria permitido livrar-se da máscara enrijecida do homem comum, e fazer variar sobre o seu não-rosto identidades múltiplas - daí as estranhas insígnias para seus bilhetes pós-colapso, daí afirmar ser no fundo todos os personagens da história. E assim, talvez ainda valesse a pena atentar para uma canção de Caetano Veloso, na qual o

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suposto eu-lírico, além de se confundir com Renato Aragão, Mussum, Dedé e Zacarias - verdadeiros bufões da civilização contemporânea - e lembrar, repentinamente, que sua identificação - seu registro geral - carece de revisão, ainda nos adverte: "Não me digam que eu estou louco/ É só um jeito de corpo/ Não precisa ninguém me acompanhar" (Veloso 11, p. 46). Mas isso já valeria um outro texto, com outras palavras.

Referências Bibliográficas 1. FINK, E. A filosofia de Nietzsche. Tradução de Joaquim Lourenço. Lisboa: Presença, 1983. 2. NIETZSCHE, F. Werke. Kritische Studienausgabe. Edição organizada por Colli e Montinari, 15 volumes. Berlin: Walter de Gruyter & Co., 1988. 3. _______. Obras incompletas. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1974. 4. _______. Além do bem e do mal. Tradução de Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 5. _______. Assim falou Zaratustra. Tradução de Mário da Silva. São Paulo: Circulo do Livro. 6. _______. Ecce homo. Tradução de Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 7. _______. O nascimento da tragédia. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 8. _______. The gay science. Tradução de Walter Kaufmann. New York: Vintage Press, 1976. 9. PESSOA, F. O Eu Profundo e os Outros Eus. Seleção poética de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. 10. SALOMÃO, W. Armarinho de miudezas. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1993. 11. VELOSO, C. Songbook. Organização de Almir Chediak. Rio de Janeiro: Lumiar, 1989.

15 - A influência de Schopenhauer na filosofia da arte de Nietzsche em O nascimento da tragédia Rosa Maria Dias

Professora do Departamento de Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

The influence of Schopenhauer on Nietzsche's philosophy of artAbstract: The purpose of this article is to analyze the Schopenhauer's influence on The Birth of Tragedy and also to show that even though Nietzsche conceive his philosophy of art with Schopenhauerian categories, he is able to escape from pessimism of Schopenhauer's philosophy. Key-words: Dionysus - Apollo - will - representation - pessimism

Resumo: O objetivo do artigo é analisar a influência de Schopenhauer em O nascimento da tragédia, mostrar que, embora pense sua filosofia da arte com as categorias schopenhauerianas, Nietzsche consegue escapar do pessimismo característico da filosofia de Schopenhauer.

Palavras-chave: Dioniso - Apolo - vontade - representação - pessimismo

Nietzsche descobre o livro de Schopenhauer O mundo como vontade e representação em 1865. A influência desse livro em sua obra de juventude é inegável. O nascimento da tragédia incorpora não só alguns princípios da metafísica de Schopenhauer como também aspectos de sua teoria da arte. O que é passível de discussão é se ele endossa o pessimismo schopenhaueriano. A análise a ser desenvolvida visa a elucidar essa questão. Um cuidadoso estudo comparativo de O Mundo como Vontade e Representação e O Nascimento da Tragédia revelará a natureza e a extensão dessa influência. Desde já é preciso salientar que Nietzsche oferece uma solução para o problema do pessimismo; todavia é preciso investigar se essa solução se apresenta como uma verdadeira superação do pessimismo ou se é uma tentativa frustrada, como apontam alguns comentadores de Nietzsche, já que surge no âmbito de uma filosofia marcadamente pessimista. Em outras palavras, será que Nietzsche, utilizando-se de uma "roupagem schopenhaueriana", como ele mesmo revela em "Tentativa de Autocrítica", consegue escapar do que é característico dessa filosofia? Será que a

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despeito das semelhanças não há algo em Nietzsche que não existe em Schopenhauer? Será que por estarem desnudadas de ascetismo e de renúncia, características da metafísica schopenhaueriana, as concepções de Nietzsche não apontariam para uma nova metafísica da arte? Todas essas questões serão analisadas a partir da arte e pessimismo na filosofia de Schopenhauer e da arte e pessimismo na filosofia de Nietzsche.

O ponto de partida do pensamento de Schopenhauer encontra-se na filosofia kantiana. Ele se utiliza da distinção feita por Kant entre mundo dos fenômenos e da coisa em-si e introduz, em sua metafísica, algo que não existe no kantismo: o contraste entre a representação e a vontade, a pluralidade e a unidade. O mundo como representação é o mundo tal que nos aparece em sua multiplicidade e em suas numerosas particularidades. A diversidade que se apresenta nada tem de caótica, é regrada e articulada no espaço e no tempo. Dois princípios compõem o mundo e guardam a sua ordem: o princípio de individuação e o de razão suficiente. Por princípio de individuação, Schopenhauer entende o espaço e o tempo, que individuam, multiplicam e fazem suceder os fenômenos; por princípio de razão ou de causalidade, compreende o fato de todo fenômeno aparecer no espaço-temporal como explicável, como efeito de certas causas que dão a razão de ser de um fenômeno, de ele se manifestar de um modo e não de outro.

Apesar de toda essa ordenação, que caracteriza nosso campo da consciência, de toda essa regularidade, que parece fazer do mundo da representação o lugar mesmo da verdade, tudo seria mesmo um sonho vazio ou uma insana quimera, se não houvesse uma coisa mais fundamental, mais metafisicamente real: o mundo da vontade. O mundo é para Schopenhauer, sobretudo, vontade.

Mas como perceber essa realidade que se encontra atrás das aparências, que existe fora do espaço e do tempo? Segundo Schopenhauer, é através do corpo que se tem acesso a essa realidade mais íntima. É através do corpo que o homem tem a consciência interna de que ele é vontade, um em-si. Agora, não do corpo visto de fora, no espaço e no tempo, não como objetivação da vontade, como representação, mas enquanto imediatamente experimentado em nossa vida afetiva. É na alternância entre dores e prazeres, faltas e satisfações, desejos e decepções que surge a vontade como essência e princípio do mundo, como querer sem dono, transindividual, cego e sem razão, em sua tenebrosa e abismal perpetuação.

Essa vontade é força que age na natureza e desejo que move o homem. Mas antes de se objetivar em diversos fenômenos, de se exprimir na multiplicidade dos indivíduos, a vontade se objetiva em formas eternas, imutáveis, que não estão nem no espaço nem no tempo. Schopenhauer chama essas formas de idéias platônicas. Elas são os modelos ou os arquétipos das coisas particulares, as primeiras objetivações do querer na natureza, realidades intermediárias entre a vontade una e a multiplicidade das individualidades: "A idéia platônica", escreve Schopenhauer, "é necessariamente objeto, algo reconhecido, uma representação e, justamente devido a isto, distinta da coisa-em-si. Ela se despojou apenas das formas subordinadas do fenômeno, todas por nós compreendidas sob o princípio de razão, ou melhor, ainda não as adotou, contudo manteve a forma primeira e mais geral, a da representação do ser em geral, do ser objeto para o sujeito" (WWV/MVR III).

Aproximando agora o enunciado kantiano ao platônico, Schopenhauer mostra que, graças ao tempo, espaço, causalidade, dispositivos do intelecto humano, "o ser único de qualquer espécie", "a essência genérica dos objetos naturais" se apresenta como multiplicidade de seres da mesma espécie, num nascer e perecer incessantemente renovado, numa sucessão infinita. Resumindo o que foi dito sobre a compreensão que Schopenhauer tem da vontade, poder-se-ia dizer que, como impulso cego e gratuito, como anseio ávido de vida, a vontade se objetivaria imediatamente em idéias e mediatamente em fenômenos. Para saciar o seu desejo incessante de vida, a unidade primitiva da vontade se multiplicaria por meio do princípio de individuação e de causalidade, espalhando-se em miríades de parcelas que constituiriam o mundo dos fenômenos, mas, até no menor e no mais isolado desses

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fragmentos, permaneceria inteiramente una, produto e expressão da vontade. Com a finalidade de se abrandar a caracterização de Schopenhauer como filósofo do pessimismo, costuma-se dizer que ele é primeiro um filósofo da vontade, só depois, o do pessimismo. Como bem observa Thomas Mann, em seu ensaio "Schopenhauer", as duas coisas são, na realidade, uma só. Schopenhauer foi pessimista justamente porque pensou a vontade como fonte de todo o sofrimento: "Se encararmos", diz Thomas Mann, "como oposto da satisfação beata, a vontade é em si mesma uma infelicidade fundamental: é insatisfação, esforço em vista de algo, inteligência, sede ardente, cobiça, desejo, sofrimento. É que, se tornando mundo, segundo o principio de individuação, pela sua fragmentação na multiplicidade, a vontade esquece a unidade primitiva e, não obstante todo o seu esmigalhamento, continue una, torna-se uma vontade que está milhões de vezes em luta consigo mesma, que se combate e se desconhece a si própria, que, em cada uma de suas manifestações, procura seu bem estar, seu "lugar ao sol", às expensas de outra e, ainda mais, às expensas de todas as outras, não cessando, pois, de morder a própria carne, como aquele habitante do Tártaro que, avidamente, devorava a si mesmo" (Mann 2, p. 311).

Para deixar mais claro o seu ponto de vista de que o pessimismo e a vontade não se distinguem, Thomas Mann escreve: "as idéias de Platão adquirem em Schopenhauer uma voracidade incurável". Por que isso? Entendamos a afirmação de Thomas Mann. Para Schopenhauer, a vontade se objetiva de vários modos, ou melhor, em graus diferentes de claridade, que vão desde o mais inferior, aquele das forças da natureza inanimada, ao mais elevado, que é o homem, passando pelos mundos vegetal e animal. Os diferentes graus correspondem a um progresso no devir-representação da vontade, mas é no homem que ela representa a si mesma com mais clareza e perfeição. Essa hierarquia, porém, é estática e não evolutiva; todos os graus coexistem desde a eternidade. Agora, reencenados no mundo fenomênico, eles disputam entre si a matéria, o espaço e o tempo. O mundo vegetal serve de alimento para o mundo animal, este de presa e alimento para um outro animal, e, assim, a vontade de vida não cessa de se devorar a si mesma. O homem, enfim, considera tudo o que é criado como algo que existe para seu uso e contribui desse modo para movimentar ainda mais o combate de todos contra todos. Segue-se então que a dor e a destruição fazem parte da ordem das coisas, tudo decretado pelo mundo da vontade, criminalmente indiferente ao destino dos indivíduos. Além disso, a vida humana é dominada por egoísmos rivais, a satisfação de um indivíduo necessariamente acarreta o sofrimento do outro. O egoísmo é uma postura natural de um ser em relação a outro. A razão disso está no seguinte raciocínio: só um corpo é habitado pela vontade, capaz de desejo e frustração, suscetível de prazer e dor; os outros, meros corpos, coisas inanimadas, podem ser usados como meios para satisfazer determinados fins. O que resulta, para a natureza como um todo, fora ou dentro da sociedade, ser, essencialmente, o homem o lobo do homem.

Essa concepção pessimista de Schopenhauer encontrou expressão no livro de Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas. Nesse romance, Brás Cubas, o "defunto autor", resolve começar a escrever sua história a partir do fim, narrando o delírio que o acometeu, antes de morrer. Nesse delírio, cavalga num hipopótamo que o leva ao fim dos tempos, a um campo muito branco, em que de súbito aparece a figura gigantesca de uma mulher: Pandora. Ela quer levá-lo direto para a morte. Com a recusa de Brás, Pandora o pega pelos cabelos e o faz ver toda a história universal da humanidade até então. É o pessimismo de Schopenhauer que parece estar atrás dessa figura: "Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das cousas.Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. (...) Os séculos desfilavam um turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim, – flagelos e delícias, – desde essa cousa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença,

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que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das cousas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, – nada menos que a quimera da felicidade, – lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, com um escárnio, e sumia-se, como ilusão" (Machado de Assis 1, p. 522-523).

Nessa visão de Brás Cubas, as desilusões, encadeando-se em cascata, fica revelado o cerne da compreensão da vontade para Schopenhauer: ser uma vasta máquina repetidora incapaz de gerir algo novo. Condenada a recomeçar eternamente, e eternamente sem objetivo real, as mesmas tarefas, traça circularmente a imagem do suplício da humanidade. De um querer que se assemelha à roda de Ixion, que não cessa de retornar, às Danaides, que pegam água eternamente para encher seu cesto, e a Tântalo, que permanece sedento para todo o sempre.

Mas a filosofia de Schopenhauer, para interromper esse oscilar da vida entre a dor e o tédio e escapar da temporalidade repetidora que se volta sobre si mesma, que não consegue passar e que não se pode mais suportar, aponta para dois caminhos: um temporário, outro mais duradouro. O primeiro é o caminho da contemplação estética, o segundo, do ascetismo, o caminho do Nirvana, da negação da vontade. Esse aspecto encontra-se no quarto livro de O mundo como vontade e representação; dele não me ocuparei. Tratarei aqui apenas do primeiro aspecto que terá repercussões maiores na filosofia da arte de Nietzsche.

Schopenhauer encontra na contemplação estética a possibilidade para transcender o modo comum de se perceber o mundo, para se libertar do desejo, da vontade e apaziguar temporariamente a dor. Por meio da arte "nos subtraímos, por um momento, à odiosa pressão da vontade, celebramos o sabá da servidão do querer, a roda de Ixion se detém" (WWV/MVR III). A percepção estética é visão imediata e direta, representação intuitiva pura na qual não intervêm nem o entendimento nem a razão, sempre conceituais. O sujeito se perde no objeto da percepção. Torna-se um claro espelho do objeto. Deixa de se preocupar consigo mesmo como um objeto espaço-temporal, deixa de ver os objetos em relação com a vontade individual e se torna repentinamente "sujeito puro de conhecimento", isto é, destituído de vontade. A subjetividade da consciência comum desaparece, a percepção se torna objetiva. A consciência, que está inteiramente no objeto da percepção, não se preocupa mais nem com a disjunção entre a vontade e o mundo, nem com o fato de a vontade estar sem objetos.

O sujeito puro de conhecimento, o gênio, arranca o objeto de sua contemplação da "corrente fugidia dos fenômenos", contempla-o independentemente do princípio de razão e mergulha no intemporal. O mundo agora é visto por ele do ângulo da eternidade. Sua percepção estética não olha o presente – tempo da paixão, da dor e do tédio – , coisa relativa ao passado quanto ao arrependimento ou ao futuro quanto ao desejo; evoca sim o tempo da arte, da contemplação pura, do interlúdio de sabedoria e paz. Fernando Pessoa, enquanto Alberto Caeiro, parece descrever com acuidade isso que Schopenhauer compreende como ausência de temporalidade na percepção artística. Diz Pessoa: Não quero incluir o tempo no meu esquema.Não quero pensar nas cousas como presentes; quero pensar nelas como cousas.Não quero separá-las de si próprias, tratando-as por presentes.Eu nem por reais as devia tratar.Eu não as devia tratar por nada.Eu devia vê-las, apenas vê-las;Vê-las até não poder pensar nelas,Vê-las sem tempo, nem espaço.Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê.É esta a ciência de ver, que não é nenhuma. (Pessoa 5, p. 244-5).

Ora, ao deixar de se preocupar com o aqui e o agora, com a localização dos objetos no mundo espaço-

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temporal, o que percebe então o gênio? o objeto de sua contemplação estética são as idéias de Platão. Mas, ao usar a terminologia platônica das idéias, Schopenhauer não pretende introduzir a noção de que o artista apreende ou faz o conteúdo da obra de arte a partir de um domínio de objetos ontologicamente distintos da esfera dos indivíduos comuns. Perceber ou representar um objeto como idéia é trazer à luz sua forma significante, sua forma essencial e desprezar tudo aquilo que é estranho e acidental. Para Schopenhauer, a beleza é luz da idéia que irradia do objeto particular, é luminosidade que obscurece os traços individuais e as qualidades desse objeto e aponta para a possibilidade total de libertação da servidão da realidade prática, particular e concreta.

Tendo feito essas observações sobre a filosofia da arte de Schopenhauer com o objetivo de explicitar a influência desse filósofo em O nascimento da tragédia, iremos, primeiro, revelar a influência de Schopenhauer na teoria da arte de Nietzsche, principalmente na formulação dos impulsos artísticos, o apolíneo e o dionisíaco; segundo, indicar os caminhos que sugerem ter Nietzsche escapado das teses pessimistas de seu mestre.

Nietzsche abre O nascimento da tragédia apontando para dois "impulsos artísticos da natureza": o apolíneo e o dionisíaco. Apolo é o princípio de individuação, é o princípio de luz que faz surgir o mundo a partir do caos originário; é o princípio ordenador que, tendo domado as forças cegas da natureza, submete-as a uma regra. Dá forma às coisas, delimitando-as com contornos precisos, fixando seu caráter distintivo e determinado, seu sentido individual, modelando o movimento de todo elemento vital, imprimindo a cada um a cadência – a forma do tempo –. Apolo impõe ao devir uma lei, uma medida.

Dioniso, o nome grego para o êxtase, é o deus do caos, da desmesura, da fúria sexual e do fluxo de vida; é o deus da fecundidade da terra e da noite criadora do som: é o deus da música, arte universal, mãe de todas as artes. Seu espaço está sob o mundo das aparências, das formas, da beleza, da justa medida. Nascido da fome e da dor, perseguido e dilacerado pelos deuses hostis, Dioniso renasce a cada primavera, e aí cria e espalha alegria. Despertadas as emoções dionisíacas, o homem, em êxtase, sente que todas as barreiras entre ele e os outros homens estão rompidas, que todas as formas voltam a ser reabsorvidas pela unidade mais originária e fundamental – o Uno primordial (das Ur-Eine) – onde só existe lugar para a intensidade. Nesse mundo das emoções inconscientes, que abole a subjetividade, o homem perde a consciência de si e se vê ao mesmo tempo no mundo da harmonia e da desarmonia, da consonância e da dissonância, do prazer e da dor, da construção e da destruição, da vida e da morte.

Não é necessária uma atenção redobrada para se ver que a distinção do apolíneo e do dionisíaco, tal como Nietzsche a concebe, apóia-se certamente na oposição de Schopenhauer entre a representação e a vontade. Apolo, visto como deus do brilho, da aparência, da bela aparência e da ilusão, simboliza o mundo da representação, isto é, da individuação e da razão suficiente; Dioniso, identificado como deus da fúria sexual e do fluxo de vida, como figura que reúne em sua natureza dor e prazer, manifesta o Uno Primordial, a vontade mesma para além da representação.

Embora se possa encontrar ainda muitos pontos de semelhança entre a concepção da arte de Schopenhauer e a de Nietzsche, interessa-nos aqui salientar que há também algo neste que não existe naquele. Para ambos, a vontade é caos, contradição e dor, mas, enquanto para Schopenhauer a arte se apresenta como uma negação da vontade, opera uma espécie de redenção, uma fuga da voracidade do querer viver, para Nietzsche a própria vontade é artista, é nela que se dá a redenção. É a vontade mesma que se redime na aparência: "Com efeito, quanto mais percebo na natureza aqueles onipotentes impulsos artísticos e neles um fervoroso anseio pela aparência (Schein), pela redenção através da aparência, tanto mais me sinto impelido à suposição metafísica de que o verdadeiramente-existente (Wahrhaft-Seiende) e Uno primordial, enquanto eterno sofredor e pleno de contradição, precisa, ao mesmo tempo, para a sua perpétua redenção, da visão extasiante da aparência prazerosa" (GT/NT § 4).

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A vontade, o uno primordial, ou o querer é um ser de natureza emotiva que não pode ser pensado como repousando em si mesmo, impassível ou pacífico, mas que traz em si uma guerra sem limites. Vivendo em constante contradição consigo mesmo, em incessante dor, esse ser não pode permanecer por muito tempo indeterminado. Uma força vinda dele mesmo obriga-o a fragmentar-se, a multiplicar-se em seres finitos, a fixar-se em imagens e a produzir o mundo das formas individuais, da realidade fenomênica.

O mundo fenomênico, como resultado desse movimento do querer, traz em si as marcas da dor, do despedaçamento do uno primordial e, para se libertar dessa dor, faz um segundo movimento, dessa vez estético, reproduzindo o movimento inicial que a vontade realizou em direção à aparência. Desse último, emana a aparência da aparência ou a bela aparência do sonho, um bálsamo para o querer, um remédio para libertá-lo momentaneamente da dor pelo seu desmembramento em indivíduos.

É dessa maneira que Nietzsche, no capítulo IV de O nascimento da tragédia, explicita o processo transfigurador do Uno-primordial, que a "natureza artista" realiza por meio do sonho para criar a bela aparência. Esse não é o único, nem o mais fundamental estado fisiológico pelo qual a natureza realiza seus impulsos artísticos. O mais essencial é a embriaguez.

As aparências só adquirem sentido, quando relacionadas ao mundo dionisíaco, que lhes é metafisicamente anterior: "Na embriaguez dionisíaca, no impetuoso percurso de todas as escalas anímicas, durante as excitações narcóticas ou no desencadeamento dos impulsos primaveris, a natureza se manifesta em sua força mais poderosa: ela reúne novamente os indivíduos e faz com que se sintam como uma só unidade, de tal modo que o principium individuationis aparece como um estado prolongado de fraqueza da vontade. Quanto mais debilitada estiver a vontade, mais o todo se fragmentará em partes isoladas; quanto mais o indivíduo for egoísta e arbitrário, mais fraco será seu organismo. Por isso, em tais estados, apresenta-se um traço sentimental da vontade, um "soluço da criatura" pelas coisas perdidas; no prazer supremo, ressoa o grito de espanto, os gemidos nostálgicos de uma perda irreparável. A natureza exuberante celebra, ao mesmo tempo, suas saturnais e suas exéquias. (...) As dores despertam prazer, o júbilo arranca do peito gritos cheios de dor. O deus, o liberador, desatou, em torno dele, todas as amarras, a tudo transformou" (DW/VD § 1).

Na embriaguez, o processo pelo qual a vontade satisfaz seus impulsos artísticos é o inverso do movimento de produção das aparências. Com o colapso do principium individuationis pela intensificação das emoções dionisíacas, tudo volta a seu ponto de origem, à unidade primeira. Com a morte ou aniquilação das individualidades, o homem retorna ao estado natural, reconcilia-se com a natureza. Essa reunificação gera um prazer supremo, um êxtase delicioso que ascende desde o íntimo de seu ser e mesmo da natureza, ressoando em "gritos de espanto" e "gemidos nostálgicos". Com cantos e danças, esse ser entusiasmado, possuído por Dioniso, manifesta seu júbilo. Dá voz e movimento à natureza. Voz e movimento que não se acrescentam a ela como algo de artificial, mas parecem vir de seu âmago.

Contudo, não é apenas em relação ao tema da redenção que se pode distinguir Schopenhauer de Nietzsche, em cujas afirmações em O nascimento da tragédia já se pode constatar um pensamento oposto ao pessimismo schopenhaueriano. Cite-se, por exemplo, que as artes apolíneas "tornam a vida digna e possível de ser vivida" (GT/NT §1); ou ainda, ao tratar do fenômeno dionisíaco, na experiência trágica, que "não obstante terror e piedade, conhecemos a felicidade de viver, não como indivíduos, mas como este vivente único que engendra e procria e no orgasmo de quem nos confundimos" (GT/NT § 17). Essas pontuações no texto de Nietzsche nos sugerem que ele encontra nos gregos duas vias artísticas contrárias à interpretação pessimista de Schopenhauer: uma, através da arte apolínea; outra, através da arte dionisíaca.

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A profilaxia apolínea contra o pessimismo começou, segundo Nietzsche, no período homérico. Os gregos desse período superaram o terror e o horror da existência, produzindo em sua arte "uma radiante glorificação do mundo fenomenal" (GT/NT §16). Interpuseram, entre eles e as realidades da vida, "o radiante sonho de nascimento dos olímpicos". Em suas histórias dos deuses, glorificaram a vida humana. É desse modo que os gregos homéricos seduziram a si mesmos para continuarem existindo. A existência sob o sol brilhante dos deuses é olhada como desejável em si mesma (cf. GT/NT § 3). O mundo engendrado pela arte apolínea se coloca sobre a realidade, é ilusório, mas sugere que os gregos suplantaram o pessimismo, habitando o domínio da fantasia. O espelho transfigurador da aparência impedia o artista apolíneo de transformar-se e fundir-se em suas figuras. Deslumbrados com a contemplação das formas e figuras, eles não viam a realidade íntima de todas as coisas, e, conseqüentemente, o seu sofrimento.

Os gregos sabem, porém, que o apolíneo não oferece a total verdade sobre o mundo e que a sua solução contra o pessimismo é superficial. Se a solução que oferece a arte apolínea é superficial, o que se pode dizer da solução dada pela arte dionisíaca? Para Nietzsche, a tragédia grega tem uma perspectiva melhor. Ela pertence ao mais alto estágio da cultura grega e "oferece uma visão mais profunda do mundo que a arte apolínea" (GT/NT § 10). Enquanto a arte apolínea tenta nos convencer da alegria da existência pela glorificação da realidade fenomenal, a arte dionisíaca nos ensina que não devemos buscar a alegria nos fenômenos, mas atrás deles (GT/NT § 17). Mas como isso se dá? Essa é a questão a que Nietzsche pretende responder com o efeito trágico. Na arte dionisíaca, na tragédia grega em particular, a destruição do herói trágico traz alegria. Os espectadores, embora forçados a testemunhar a catástrofe trágica, não ficam cheios de terror, mas, ao contrário, têm um "consolo metafísico" que os arranca, momentaneamente, do alvoroço da mudança das figuras. Por um breve momento, a vida, no fundo das coisas, a despeito da mudança dos fenômenos, é indestrutivelmente poderosa e alegre. Por um breve momento, identificam-se com o Uno Primordial. O consolo metafísico aparece com nitidez corporal com o coro de sátiros, coro de seres naturais que vivem inextingüivelmente por trás de toda a civilização e que, a despeito da mudança das gerações e da história dos povos, permanecem os mesmos. Com esse coro, consola-se o heleno profundo, o único igualmente apto para as dores mais suaves e mais cruéis, que viu o horror da natureza e corre perigo de aspirar a uma negação budista da existência, que penetrou com olhar afiado até o fundo da terrível tendência ao aniquilamento, o qual move a chamada história universal.

A arte trágica demonstra uma notável capacidade alquímica de transmudar o estado de náusea, "estado negador da vontade", em afirmação, de modo que esse horror possa ser experimentado não como um horror, mas como algo sublime, e esse absurdo possa ser vivenciado não como absurdo mas como cômico.

Essa função terapêutica da tragédia, que Nietzsche define como o poder que "excita, purifica e descarrega" a vida inteira de um povo, não é vista da mesma forma por Aristóteles, que, na Poética, atribui à ação trágica um poder catártico e paradoxal, que, ao mesmo tempo, desperta e purga os sentimentos de terror e piedade. Em Nietzsche, essa função terapêutica é mais que um sedativo ou um calmante, é um tônico. Ao lado desses sentimentos, que transformam o horror e o absurdo em sublime e cômico, é gerado um mais poderoso, que está associado à experência estética dionisíaca – o sentimento da alegria.

A razão de ser da tragédia está na alegria. É assim que Nietzsche se distancia da metafísica de Schopenhauer. Para o filósofo de O mundo como vontade e representação, a tragédia é mensagem de renúncia, de negação do querer viver. O verdadeiro sentido da tragédia, numa visão mais profunda, mostra que o que é expiado pelo herói não são os seus pecados particulares, mas sim o pecado original – a culpa pelo simples fato de existir. O conhecimento perfeito da essência do mundo, enquanto miséria, triunfo da maldade, suscita a resignação, a renúncia não só do querer, mas da própria vida. Para Nietzsche, ao contrário, a tragédia é mensagem de afirmação de vida. O herói trágico é negado para nos convencer do eterno prazer do existir, pois, com a sua aniquilação, fica restaurada a unidade

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originária – a vida eterna da vontade. Nesse momento de êxtase, de "vitória alcançada na derrota", "a luta, a dor, a destruição dos fenômenos parecem necessários para nós", porque deixam entrever algo de mais profundo que transcende qualquer herói individual, o eterno vivente criador, eternamente lançado à existência. A arte em favor da vida, eis a chave do pensamento de Nietzsche. A arte transfigura todo existente, mas só a tragédia exprime a crença na eternidade da vida.

Referências Bibliográficas 1. MACHADO DE ASSIS, J. M. Memórias póstumas de Brás Cubas.Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1979.2. MANN, T. "Schopenhauer". In: Adel des Geistes. Oldenburg, Fischer,1967.3. NIETZSCHE, F. Werke. Kritische Studienausgabe. Edição organizada por Giogio Colli e Mazzino Montinari. 15 vols. Berlim, Walter de Gruyter & Co., 1988.4. _______. O nascimento da tragédia. Trad. de J. Guinsburg. São Paulo, Companhia das Letras, 1992.5. PESSOA, F. Obra Poética. Rio de Janeiro, Companhia José Aguilar Editora, 1974.6. SCHOPENHAUER, A. Le Monde comme volonté et comme répresentation. Trad. de A. Burdeau. Paris, PUF, 1966.

16 - A concepção básica de Zaratustra Jörg Salaquarda

Professor da Universidade de Viena

The basic conception of ZaratustraAbstract: Starting from the analysis of Thus spoke Zarathoustra, the author examines the thought of the eternal recurrence of the same in Nietzsche's works. Investigating how it stands in opposition to the nihilism and to the pessimism, he intends to show that it is closely related to the idea of amor fati. Key-words: Zarathoustra – nihilismus – amor fati – eternal recurrence

Resumo: A partir da análise de Assim falava Zaratustra, o autor examina o pensamento do eterno retorno do mesmo na obra de Nietzsche. Investigando de que maneira ele se opõe ao niilismo e ao pessimismo, pretende mostrar que se acha intimamente ligado à idéia de amor fati.

Palavras-chave: Zaratustra – niilismo – amor fati – eterno retorno

Nietzsche hesitou quanto ao gênero a que pertenceria a obra Zaratustra, uma vez concluída. Pouco depois de terminar a primeira parte, resumiu assim sua impressão: "É uma espécie original de 'pregação moral'" (a Peter Gast, 1/02/1883)(1). Alguns dias mais tarde, escreveu a seu editor: "É uma poesia ou um quinto 'Evangelho' ou algo para o qual ainda não existe nome" (13/02/1883). A Rohde confessou que sempre combateu em si mesmo o impulso para o poetar(2) e, apesar disso, foi como poeta que elaborou Assim falava Zaratustra... (22/02/1884) Pouco tempo depois, observou em contrapartida a Gast: "A que rubrica pertence com efeito esse Zaratustra? Creio que é quase à das 'sinfonias'" (2/04/1883). Gast respondeu com outra sugestão, que generalizou a característica da primeira parte como "quinto Evangelho": A obra pertence aos "escritos sagrados" (6/04/1883). Nietzsche acolheu o que lhe chegou pelo correio: Produzira um novo "livro sagrado" (a Malwida von Meysenbug, 20/04/1883).

Todas essas caracterizações põem em evidência um aspecto importante, mas somente um aspecto, de Assim falava Zaratustra. De "pregação" Nietzsche pode falar, se pensa na tradição retórica a que estava ligado; de "sinfonia", se leva em conta a forma sonora e rítmica de sua obra assim como a execução dos motivos que nela aparecem; de "poesia", se pensa na composição enquanto um todo; de "Evangelho" ou "escrito sagrado", se quer salientar a luta empreendida no livro contra o paradigma central da tradição. Mas cada um dos aspectos citados também não é correto, na medida em que a

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rubrica se altera, quando nela se inclui a obra. Assim falava Zaratustra é uma pregação, pois o autor fala de forma tética e serve-se de todas as figuras e truques retóricos, que os pregadores protestantes de Lutero a Ludwig Nietzsche desenvolveram; observa o andamento, o ritmo, o timbre, etc.; escreve uma prosa em suave transição para a poesia. Mas Zaratustra é também uma anti-pregação, pois a personagem exige de nós que deixemos falar nosso si-mesmo e nada aceitemos por mera autoridade. Do mesmo modo, Zaratustra é com efeito uma poesia, mas bem curiosa, pois nela todos os poetas, inclusive o seu próprio, são desmascarados como mentirosos. Por outro lado, esse inspirado escrito sagrado também anuncia "a morte de Deus" e representa todo sagrado como estabelecido por uma vontade de potência humana. O livro é, por fim, uma pregação moral, que incita a quebrar todas as "velhas tábuas".

Ambivalências análogas encontram-se na caracterização que Nietzsche faz de seu protagonista. Quem é esse Zaratustra?(3) Ele é poeta, profeta, fundador de religião, moralista e, sem dúvida, mais uma vez nada disso (cf. Za/ZA II Da redenção e EH/EH, prólogo, § 4). Ele é um sedutor, mas tal que gostaria de seduzir cada um para si mesmo. Seu pressuposto é "a grande saúde" (EH/EH, Zaratustra, § 2), que lhe permite desempenhar os mais diferentes papéis e encarná-los até melhor do que quem se identifica com eles – como o ator que no palco representa o rei com mais realeza que um verdadeiro rei faria ou poderia fazer. E, ao mesmo tempo, guarda distância em relação aos papéis, quando ocasionalmente pisca para o leitor, como numa peça didática de Brecht, e diz: "Veja, é assim que se faz!", para então, com o mesmo sucesso, e com a mesma distância, enfiar-se num outro papel. Zaratustra é um camaleão? Não tem nenhum si-mesmo? Pelo que responde? No fim das contas, qual é, segundo a própria opinião de Nietzsche, a intenção da obra?

O autor dá uma série de indicações, que compõem um mosaico. Zaratustra visa à probidade (Redlichkeit), ao tornar-se si-mesmo (Selbst-werdung) e à auto-suficiência (Eigenständigkeit), à síntese, ao futuro do indivíduo como da humanidade. Em tudo isso, visa à superação(4). Nietzsche faz de Zaratustra o protagonista, porque representa a "auto-superação da moral"(5). Depois de concluir a segunda parte da obra, confessa que a redação dessa parte significou também para ele próprio uma considerável (auto-) superação. "Não (teria sido) uma vitória pequena sobre o 'espírito de peso'" e "quase atrás de cada palavra" estaria "uma auto-superação de primeiro grau" (a Gast, final de agosto de 1883). Para ele está claro desde logo o que nós, homens, temos que superar(6), ou seja, a preguiça e a pusilanimidade que nos levam a "uivar com os lobos" e renegar nosso "verdadeiro si-mesmo". Essa tese também se encontra na base do Zaratustra.

Quando se lê no início da segunda parte: "Minha doutrina está em perigo", esse perigo não consiste no fato de que sentenças e pensamentos de Zaratustra não sejam tomados ao pé da letra em relação às suas intenções, mas que sejam tomados ao pé da letra por pessoas que não os conquistaram e vivenciaram e por isso não têm nenhum direito sobre eles. No final da primeira parte, o protagonista já exortava seus discípulos a renegarem-no e a procurarem a si mesmos. Quem repete maquinalmente, o "macaco" de Zaratustra (Za/ZA III Do passar além), ele não quer. Prefere os "homens superiores", porque têm coragem de voltarem-se para si mesmos, ainda que de outro ponto de vista não correspondam à sua expectativa. "Torna-te quem tu és!" permanece a divisa de Nietzsche também em relação a Zaratustra. Nesse sentido, ele escreve no final de abril de 1884 a Paul Lanzky: "Todos os homens que têm em si um impulso heróico qualquer para os seus próprios alvos extrairão uma grande força do meu Zaratustra"(7).

Zaratustra representa o tornar-se si-mesmo de duas maneiras. Por um lado, Nietzsche descreve como ele se tornou e se torna cada vez mais ele mesmo, ou seja, através de erros, tentações, experiências, etc... Por outro, a obra expõe o que o motiva e sobretudo o que ele tem de superar. Modelar é, ou melhor, deve ser somente o primeiro aspecto; o segundo mostra-se exemplar apenas na medida em que o homem, que quer encontrar a si mesmo, precisa ter coragem de sustentar suas opiniões como de atacá-las (cf. o fragmento póstumo 14 [159] da primavera de 1888; KSA, 13, 343). Em parte alguma lhe é dado esconder de si mesmo, por covardia ou preguiça, o que com efeito há muito tempo melhor

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conhece. O que quer Zaratustra? "(...) esse gênero de homem, que concebe, concebe a realidade como ela é; ele é forte o bastante para isso –; ele não é a ela estranho, dela alijado; ele é ela mesma; ele também tem ainda em si tudo o que nela é terrível e questionável" (EH/EH, Por que sou um destino, § 5).

No tema da "superação" pulsa sem dúvida a concepção que Nietzsche tem de "além-do-homem"(8) e que lhe serve para preparar a comunicação de outra doutrina – a doutrina do "eterno retorno do mesmo". Sobre esta vou estender- me um tanto, porque representa, segundo a própria expressão do filósofo no Ecce homo (EH/EH, Zaratustra, § 1), a "concepção básica" da obra. Em Assim falava Zaratustra, ela só é expressamente nomeada bem adiante, mas desde o início do livro está presente em imagens, metáforas e alusões, como no círculo da águia e no anelar-se da serpente(9). Quando da redação de seu Zaratustra, Nietzsche tem em vista essencialmente comunicar esse pensamento. Por certo, não chega a fazê-lo no trabalho em questão, embora o fato de Zaratustra reconhecer esse pensamento constitua seu clímax dramático e sua conclusão conceitual. Zaratustra é, antes de mais nada, "o mestre do eterno retorno".

O pensamento do retorno é, sem dúvida, a "doutrina" mais curiosa de Nietzsche. Onde quer que dele trate – na Gaia ciência, no Zaratustra, no Ecce homo, nas cartas e conversas – sempre o envolve com um ar de mistério e de algo extraordinário. Apresenta-o, por um lado, como assustador quando não mortífero e, por outro, como libertador, como a "fórmula suprema da afirmação" (EH/EH, Zaratustra, § 1). Limita-se assim, nos trabalhos por ele mesmo publicados, a caracterizações concisas e até incidentais desse pensamento extraordinário. E o que comunica nessas circunstâncias é bastante decepcionante. Teria ele em mente a doutrina, conhecida desde a antiguidade, de que o curso do mundo se repete em ciclos idênticos? É evidente! Pois se lê no Ecce homo: "A doutrina do 'eterno retorno', isto é, da translação incondi- cionada e infinitamente repetida de todas as coisas – essa doutrina de Zaratustra poderia, afinal, já ter sido ensinada também por Heráclito. Pelo menos o estoicismo, que herdou de Heráclito quase todas as suas representações fundamentais, tem vestígios dela" (EH/EH, Nascimento da tragédia, § 3).

Esta é uma estranha constatação. Por que Zaratustra se assusta com essa hipótese há muito conhecida e ainda altamente questionável? Por que é necessária uma visão nas montanhas suíças para que o próprio Nietzsche aceite o pensamento sobre o qual escreveu anos antes (cf. HL/Co. Ext. II) com sóbrio distanciamento? Durante sua excursão na Alta Engadina, em agosto de 1881, é evidente que ele experienciou de maneira aprofundada um tema que não lhe era novo de modo algum. Na variação de uma passagem familiar de Hegel, pode-se dizer: O pensamento do retorno há muito lhe era conhecido, mas seu verdadeiro significado até então ele não havia reconhecido.

Nietzsche pronuncia-se publicamente sobre o seu pensamento do retorno pela primeira vez no penúltimo aforismo do quarto livro da Gaia ciência(10). Lá, um demônio anuncia a repetição da vida. Com isso, enfatiza três aspectos que levam a radicalizar o pensamento: A repetição de tudo. Nada se perde; até o menor "suspiro", cada pensamento, cada prazer e cada dor, todos os pequenos e grandes acontecimentos retornarão. O retorno de tudo, na mesma disposição, sem qualquer possibilidade de variação: "Tudo na mesma ordem e seqüência". O retorno de tudo, que acontece sempre outra vez, na mesma ordem e seqüência. O interlocutor terá de viver esta sua vida atual não apenas "ainda uma vez", mas "ainda incontáveis vezes". "A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez". Sem que seja dito, isso também implica sem dúvida que ele já a viveu infinitas vezes.

O demônio não fundamenta essa radicalização e o interlocutor dela toma conhecimento, na exposição de Nietzsche, sem objeções. O demônio representa evidentemente uma voz interior, que no recolhimento da "mais solitária solidão" exprime o que há muito se preparou num homem. O que até então permaneceu inconsciente ou semi-consciente agora não se deixa mais reprimir. É com o que tem

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de haver-se o interlocutor do demônio.

De acordo com seu relato no Ecce homo, o próprio Nietzsche passou por isso com o seu pensamento do retorno. Durante uma caminhada na Alta Engadina, num lugar que localizou exatamente na margem sul do lago de Silvaplana, o pensamento dele se apoderou. Cerca de dez dias depois, manifestou-se a esse respeito de tal forma que leva a pensar numa visão(11): "No meu horizonte surgiram pensamentos tais como nunca vi" (a Gast, 14/08/1881). Em sua retrospectiva, lê-se algo semelhante: "No verão, de volta ao lugar sagrado, onde me iluminara o primeiro relâmpago do pensamento de Zaratustra (...)" (EH/EH, Zaratustra, § 4).

A primeira reação que apreendemos em Nietzsche, face à vivência que o despertou, não consiste em desdobrar o pensamento didaticamente. Na obra publicada, mesmo mais tarde ele quase não se manifesta sobre o seu conteúdo nem forneceu argumentos para sustentar sua pretensão à verdade. É apenas nos fragmentos póstumos que se encontram considerações desse tipo(12). No primeiro apontamento, sob o título "O eterno retorno do mesmo. Projeto" e munido da caracterização: "Início de agosto de 1881 em Sils Maria. Seis mil pés acima do mar e muito mais acima de todas as coisas humanas! –", ele põe no papel um esboço de plano em cinco partes, em que fala de sentimentos, opiniões e maneiras de viver (cf. o fragmento póstumo 11 [141] da primavera- outono de 1881; KSA, 9, 494). Nesse esboço de plano, lê-se, entre outras afirmações, que se pode conceber a vida enquanto "experimento", quando ela é centralmente tomada pela "paixão do conhecimento". Além disso, Nietzsche ressalta aqui expressamente o conceito-título do aforismo 341 da Gaia ciência: "O novo peso: o eterno retorno do mesmo", para prosseguir: "Importância infinita de nosso saber, nosso errar, nossos hábitos, maneiras de viver para tudo o que venha a acontecer". Por fim, fala de como se chega a "incorporar" a si o pensamento, assim como no curso da história do platonismo e do cristianismo se incorporou o peso atual. Como melhor meio para a incorporação, recomenda ensinar o novo conhecimento.

É evidente também a tarefa que Nietzsche atribui a Zaratustra. Este é basicamente o "mestre do eterno retorno" (Za/ZA III O convalescente; cf. EH/EH, Zaratustra). Quando se lê o livro com essa expectativa, percebe-se, sem dúvida, que Zaratustra justamente nele não ensina o pensamento. Não chega a fazê-lo; não encontra os "ouvidos" apropriados para sua mensagem; e, como o jovem Jeremias, assusta-se com a grandeza da tarefa. Nas duas primeiras partes da obra, o pensamento, como mencionamos, só aparece cifrado em alusões e símbolos. É somente na terceira parte que encontra expressão, mas aí também apenas quando Zaratustra está só com si mesmo. No capítulo "O convalescente" da terceira parte, ele fornece "the most direct statement of the meaning of eternal return"(13), como escreve com justeza Lampert(14). Mas, até aqui, Nietzsche representa o seu pensamento do retorno de forma a não deixá- lo claro de modo algum. O que entende a propósito do que seja o seu "filho Zaratustra" torna-se manifestamente indicado apenas através de parábolas e imagens. Os animais de Zaratustra e seu adversário expressam-se de forma mais direta e compreensível, mas ele mesmo recusa como insuficientes suas versões do pensamento. Faz-se necessária, pois, uma cuidadosa análise de texto, para compreender a "concepção básica" de "Zaratustra" na significação propriamente pensada por Nietzsche. E não devemos esperar que ela se deixe apreender a partir de um simples conceito.

O capítulo "O convalescente" apresenta dois subcapítulos. No primeiro, Zaratustra desafia o pensamento, mas desmaia antes de a luta parecer de fato começar. No segundo, restabelece-se e conversa com seus animais sobre os resultados e conseqüências da luta. A respeito dela própria, já fez um relato num capítulo anterior, ou seja, em "Da visão e enigma" (Za/ZA III 2).

Certa manhã, Zaratustra comporta-se como se não estivesse só em sua cama. Mas aqui o intruso que ele percebe consiste, como no caso do demônio do aforismo 341 da Gaia ciência, num antagonista interior. Zaratustra chama-o de seu "abismo" e sua "última profundeza", que já "trouxe à luz"(15), ou seja, identifica-o como o antagonista interior decisivo. Trata-se de uma disputa interior, de que ele

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tem de tomar parte completamente só e em que se trata para ele de ser ou não ser. Quando "a visão do mais solitário" (Za/ZA III Da visão e enigma; cf. FW/GC § 341) o tomou dessa maneira, seus animais (o orgulho e a esperteza), eles próprios, de lá fugiram. A iniciativa para esta derradeira luta só pode partir evidentemente dele mesmo: Ele é quem desafia o abismo. Quer despertar "o verme"(16) com o cantar do galo e cuidar para depois também permanecer desperto, portanto, para não mais recair no estado inconsciente/semi-consciente anterior(17). Não se dá por satisfeito com o "estertor" inicial do pensamento que se apresenta com resistência à claridade da consciência. Gostaria muito mais de levar seu abismo a falar, em vez de ouvi-lo proferir sons inarticulados(18).

Como o herói no mito que desafia o monstro para a luta, apresenta-se e, numa atitude verbal ameaçadora, posiciona suas peças de artilharia mais pesadas. Ele é Zaratustra– o sem-Deus, que ensina que Deus está morto!– o porta-voz da vida, que se volta contra a fuga e negação do mundo.– o porta-voz do sofrimento, para quem o sofrimento não representa uma objeção contra a vida.– o porta-voz do círculo, que se pronuncia contra toda forma de consideração teleológica.

Quando o adversário reage da maneira por ele esperada e começa a falar, Zaratustra primeiro se alegra. Exclama: "Viva!" e desafia o adversário a estender-lhe a mão. Ou é este que o desafia? Como o espírito de pedra desafia Don Giovanni no final da ópera de Mozart? Em todo caso, como na ópera, o aperto de mãos aqui também modifica a situação de uma só vez. Zaratustra parece não estar à altura do demônio. Começa a balbuciar: "deixa!", "nojo", "ai de mim!"(19) – e desmaia.

Depois de uma longa perda de consciência, quando volta a si, está pálido e treme. Permanece deitado e recusa o alimento. Dele cuidam seus animais. Esta situação dura sete dias. – O que sucedeu sabemos através do capítulo "Da visão e enigma" (Za/ZA III 2). Lá, no início de uma viagem marítima, Zaratustra encontra-se exatamente como depois de despertar do desmaio. Está triste e calado. Mas, por fim, comunica aos marinheiros – aos "buscadores, tentadores (...), ébrios de enigmas, que se alegram com a luz do crepúsculo", que preferem adivinhar a deduzir(20) – na forma de enigma suas vivências e pede-lhes que interpretem para ele a sua visão. Seu relato apresenta três partes: na primeira, carrega o anão para a montanha; na segunda, com ele disputa; na terceira, aconselha o pastor em apuros e vivencia a transformação dele. O que aprendemos com isso sobre o pensamento do retorno?

Zaratustra caminha numa paisagem sombria, num "crepúsculo cor de cadáver", e também está sombrio e duro, porque sem esperança. "Mais de um sol se havia posto (...para ele)". As imagens evocam a experiência do niilismo depois da supressão dos pressupostos platônico-cristãos. É apenas o seu "pé", portanto a "grande razão do corpo", que o impele para diante, para cima, apesar de todas as circunstâncias adversas. É a carga em seus ombros, meio anão, meio toupeira, que lhe cria os maiores problemas. Esse indesejável "cavaleiro" não é apenas pesado de carregar; ele ainda procura persuadir Zaratustra com ironia. "Pingando pensamentos-gotas de chumbo em (s)eu cérebro", quer convencer sua vítima de que é inútil todo aspirar e fazer. De que vale caminhar para diante e para cima: Por mais longe e alto que alguém possa chegar, de novo cairá(21), recairá em si mesmo.

Quanto à forma, o modelo encontra-se num tema dos contos de Mil e uma noites. Em sua quinta viagem, Simbad é escravizado por um gênio(22). Quanto ao conteúdo, Nietzsche parte de uma imagem conhecida de Schopenhauer: O cego poderoso (a vontade) carrega o vidente paralítico (o intelecto)(23). Lampert interpretou com justeza o anão como a personificação do niilismo fraco, que foge do mundo, à la Schopenhauer(24). Para Nietzsche, a imagem schopenhaueriana é uma caricatura do homem, uma conseqüência do domínio de dois milênios do paradigma platônico-cristão. O cavaleiro paralítico, o intelecto, usurpou o domínio às custas do corpo, escravizou-o, fez da terra um vale de lágrimas e deixou a nós, homens, como única esperança extinguir-se no nada. O anão e toupeira é um representante do pessimismo.

Já na Segunda consideração extemporânea, Nietzsche trata desse problema. Descreve, então, o

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niilismo como conseqüência da "febre histórica". A consideração histórica reduz per definitionem, através de seus pressupostos metodológicos, todo acontecer a um padrão médio. Através dele, toda (aparente) grandeza dissolve-se num vir-a-ser, em que só há diferença de quantidade, nunca de qualidade. No nono capítulo do escrito sobre a história, ele fala da "doutrina do vir-a-ser soberano, da fluidez de quaisquer conceitos, tipos e espécies, da falta de qualquer diversidade capital entre homem e animal e acrescenta expressamente que considera essa doutrina verdadeira, mas também mortal. Como remédio recomenda as forças a-históricas do esquecer e do abrir-se ao imediato, assim como os poderes supra-históricos da religião, da filosofia e da arte. Na redação de Zaratustra, insiste no diagnóstico, mas não mais na terapêutica.

A que apela Zaratustra na luta com seu arqui-adversário, o "espírito de peso"?(25) Depois que o orgulho e a esperteza o abandonaram, ele só pode apoiar-se em sua coragem. É ela que o arranca do sonho, cansaço e opressão. Zaratustra é um guerreiro. Não se conforma, mas busca a decisão. A coragem faz parte, junto com a perspicácia, a simpatia e a solidão, das quatro virtudes básicas de um filósofo (segundo JGB/BM § 284). Conhecer pressupõe coragem, ensina o psicólogo (das profundezas) Nietzsche, pois sempre "sabemos" muito mais do que nos atrevemos a saber. "Mesmo o mais corajoso de nós raramente tem coragem para o que de fato sabe..." (GD/CI, Sentenças e setas, § 2) Assim também Zaratustra "conhece" há tempo seu pensamento abissal, mas só agora, quando a necessidade se torna máxima, tem coragem para a vontade criadora como a virada possível de toda necessidade. Ele não se reporta a uma "convicção"; ao contrário, volta-se por fim contra o pré-juízo mais profundamente assentado(26).

Como no mito ou no conto, trata-se de uma luta de vida ou morte. Quem é mais forte? A vontade criadora de Zaratustra? Ou o paralisante espírito de peso? A decisão deve levar a um enigma que Zaratustra propõe ao anão. Se o anão "resolvê"-lo, Zaratustra estará perdido; caso contrário, será o anão(27). Mas não se trata aqui de um saber intelectual e sim de um problema existencial: quem pode suportar o "pensamento abissal".

No primeiro round da troca de golpes, importa a Zaratustra apenas não ter de continuar a levar a carga. Está saturado; qualquer coisa é melhor do que deixar que esse estado se mantenha. "Anão! Tu! Ou eu!" – A consciência subseqüente de sua coragem e vontade criadora faz com que Zaratustra fique certo de sair vitorioso da luta. No início do segundo round, repete assim o desafio na seqüência inversa, nomeando o tema do combate e sublinhando a sua certeza da vitória:"Alto, anão!", falei eu. "Eu! Ou tu! Mas eu sou o mais forte de nós dois-: tu não conheces meu pensamento abissal! Esse – tu não poderias carregar!" –

Como sinal de que aceita o desafio, o anão pula dos ombros de Zaratustra. Também ele parece estar certo de sua posição. O pensamento do curso circular certamente também lhe é familiar. Parece não ter-se impressionado com a auto- apresentação de Zaratustra. No fim das contas, há muito que é ateu. Sabe cantar uma canção do sofrimento. Tanto quanto seu adversário, dispensou a confiança num sentido superior. O que pode despertar a sua "curiosidade" é apenas o que possa levar o seu antagonista a ser um "porta-voz da vida". Está certo de que Zaratustra não sabe bem do que fala e por isso se vangloria.

Em seu ataque verbal, Zaratustra parte do "portal", em cuja entrada eles se postam, ou melhor, se agacham. O portal marca uma fronteira no espaço. Zaratustra faz uma analogia com o "instante" enquanto fronteira no tempo. Assim como o caminho que conduz através do portal aponta em duas direções opostas, também no instante o tempo presente. Ambos os caminhos que transcorrem em direções opostas acham-se aparentemente separados, mas, já que nossa terra é uma esfera, acabam por desembocar outra vez um no outro. Não deveria ser também assim com o tempo, que tende a separar-se aparentemente em passado e futuro? Não deveria também o "curso do mundo" desembocar de volta em si mesmo, ser da forma de um círculo? Ora, disso sa- biam Heráclito e os estóicos; era a doutrina dos pitagóricos (cf. HL/Co. Ext. II § 2) e inclusive Schopenhauer ensinou o "eadem, sed aliter"(28).

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Não há por que surpreender-se que o anão se veja confirmado e, até desapontado com esse fácil enigma, manifeste "com desdém": "Tudo o que é reto mente (...). Toda verdade é curva, o próprio tempo é um círculo". É a sua versão do pensamento do retorno. Como pôde Zaratustra tornar tudo tão fácil para ele? Conhecedores de enigmas e contos suspeitam de uma armadilha, e assim é de fato. Zaratustra queria apenas induzir o adversário a confessar o caráter circular do tempo, para ainda mais seguro poder nele desferir o golpe mortal(29).

A segunda etapa da disputa de vida ou morte termina com o desaparecimento do anão e uma mudança de cenário. O próximo argumento de Zaratustra deve dar o passo além do simples conhecimento do pensamento do retorno – ou melhor: um passo. Pois a verdadeira prova para ele mesmo só virá depois. O ápice de sua argumentação não é novo; já o conhecemos a partir do aforismo 341 da Gaia ciência: o mero pensamento do círculo ou da repetição intensifica-se na repetição infinita de tudo na mesma ordem e seqüência. Essa radicalização acerta na medula o "pessimismo fraco" do anão. O arqui-inimigo de Zaratustra conhece e afirma o pensamento do círculo, mas não ama a vida. Anseia por deixar de existir e ensina, como Schopenhauer, a possibilidade de extinguir-se no nada. Preconiza o pensamento do retorno, para que se quebre a vontade de viver nos "otimistas" tolos e "doidos". O radicalizado pensamento do retorno de Zaratustra, que também veda a saída no nada, é insuportável para ele. Com o anão acontece o que Nietzsche na Gaia ciência formula em forma interrogativa como reação provável à mensagem do demônio: "Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasse assim?" No fragmento da charneca de Lenz (Lenzer-Heide-Fragment) sobre o "niilismo europeu", ele anota nessa direção: "Pensemos esse pensamento na sua forma mais terrível: a existência, tal como é, sem sentido ou alvo, mas retornando inevitavelmente, sem um final no nada: 'o eterno retorno'. É a forma mais extrema do niilismo: o nada (o 'sem-sentido') eterno!" (fragmento póstumo 5 [71] de verão de 1886 – outono de 1887; KSA, 12, p. 212-17)

Para quem em contrapartida afirma a realidade e vive em sintonia com si mesmo, o próprio pensamento em sua forma radicalizada nada tem de assustador. Seria, ao contrário, a chancela de seu consentimento, de seu dizer- sim à vida. Para Zaratustra vale a alternativa ponderada presente na Gaia ciência apenas na forma interrogativa: "Ou então, como terias de ficar de bem contigo mesmo e com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela? –" Pelo menos, Zaratustra pensa em sua auto- apresentação que já avançou rumo a essa atitude. É na fórmula "amor fati" que Nietzsche a resumiu. "Para o ano novo", o autor da Gaia ciência permitiu-se exprimir um voto no início do quarto livro (FW/GC § 276): não quer mais negar ou acusar, não quer mais ser desmascarador, anticristo e crítico da ideologia; ao contrário, quer apenas ver o positivo e belo e contribuir assim para que as coisas se tornem belas. "Amor fati: que seja doravante o meu amor! Não quero fazer a guerra contra o feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Desviar o olhar: que seja minha única negação! Em suma, quero em algum momento por uma vez ser apenas aquele que diz- sim!"

A esfinge é portanto derrotada. Édipo sai vitorioso. Rumpelstilzchen tem de libertar o filho da rainha. Zaratustra, o porta-voz da vida, venceu a luta de vida ou morte. Ou?... Antes mesmo que o anão desapareça e o cenário mude, ele começa a hesitar. Sua fala não soa certa da vitória; ao contrário, fica mais baixa – "pois", mais tarde é assim que relata aos marinheiros que se puseram à escuta – "tinha medo dos meus próprios pensamentos e dos que estavam por trás deles".

Mas o que Zaratustra teme? Por que retarda tanto a comunicação do pensamento? O que lhe inspirou tanto nojo, quando por fim despertou o pensamento? Teme Zaratustra a repetição de seus sofrimentos e lutas, de suas penas e superações? Não! Zaratustra é também o porta-voz do sofrimento. Teme a falta de sentido? Não! Zaratustra, o negador de Deus e da teleologia, sabe e reconhece que só a vontade criadora produz os deuses e os que são além-do-homem.

Lancemos um olhar no próximo quadro, o mais horrível de todo Zaratustra. Um jovem pastor retorce-se, sufoca, cai em convulsão; seu rosto está desfigurado: nojo e pálido horror estão nele escritos.

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"Uma negra, pesada serpente" rastejara para dentro de sua boca e ali se aferrara. Zaratustra quer arrancá-la – em vão. Na decisiva luta interior, de que se trata aqui, um terceiro não pode trazer qualquer ajuda. Então, Zaratustra grita para o pastor que deve morder a cabeça da serpente fora. Ele faz o lhe mandam, cospe a cabeça fora, ri, transforma-se(30).

No capítulo "O convalescente", Zaratustra descobre o que Nietzsche em "Da visão e enigma" pôs na boca dos marinheiros. Ele mesmo é esse pastor. A "serpente do niilismo" rastejou para dentro de sua garganta; com a mordida, ele a venceu. Quando repetimos a sua expressão "serpente do niilismo" sem exame, corremos o risco de deixar escapar a nuança decisiva. Trata-se, por certo, de uma forma do desespero niilista face à realidade, mas ela não se ilumina sob os aspectos que tornam o eterno retorno insuportável para o anão, a saber, o sofrimento e a ausência de um sentido superior. O aspecto que aflige Zaratustra é muito mais"(...) O grande fastio pelo homem – era ele que me sufocava e havia rastejado para dentro de minha garganta (...) 'Eternamente ele retorna, o homem de que estás cansado, o homem pequeno' – assim bocejava minha tristeza (...) – 'Ai, o homem retorna eternamente! O homem pequeno retorna eternamente!'"

Da perspectiva do além-do-homem criador, o menor e o maior dos homens até agora são por demais parecidos, ambos são demasiado humanos. Quando Zaratustra, durante sua convalescença, disso se lembra, o nojo ameça apoderar- se dele outra vez. Ele não venceu o nojo definitivamente. O radicalizado pensamento do retorno, uma vez que impede a esperança de que o homem da plebe possa ser superado, é terrível para ele tanto antes quanto depois. Nosso herói apenas o suporta, porque e enquanto tem em vista o além-do-homem. Por certo, não extrai de sua problemática uma lei geral. Pois sabe que "a cada alma pertence um mundo diferente; para cada alma, qualquer outra alma é um ultra- mundo". Pode ser que outros homens sintam de outro modo o pensamento do retorno, tenham outras objeções. O que é decisivo é que o pensamento em sua forma radicalizada não deixa nenhuma saída em aberto. Quem espera por uma outra vida, por uma vida melhor – e também quem espera poder privar-se da vida definitivamente em algum momento e de algum modo – entra em crise com essa versão do pensamento do retorno. Ou também engole esse sapo – morde fora ele próprio a cabeça dessa serpente, que é a mais negra e nojenta – ou tem de desesperar-se e perecer.

Os animais de Zaratustra representam, nesse contexto, os seres da natureza, que vivem em sintonia com a terra. Para eles, o pensamento do retorno não cria problema algum; expressa a situação que lhes é normal. Eles cantam uma harmoniosa canção do retorno. Aceitam como evidente o que o anão e toupeira não suporta:"Para os que pensam como nós, as próprias coisas dançam: vêm e estendem-se a mão e riem e fogem – e voltam. (...) Em cada instante começa o ser; em torno de todo 'aqui' rola a bola 'acolá'. O centro está em toda parte. Curvo é o caminho da eternidade."

Zaratustra alegra-se com essa harmonia; dela toma conhecimento com um riso benevolente. Mas não pode partilhar o entusiasmo de seus animais. Está enfermo por morder e cuspir fora, enfermo por sua "redenção". Quando o nojo ameça apoderar-se dele outra vez, é interrompido por seus animais. Eles o desafiam a ir para fora, para o mundo, a aprender com os seres da natureza e, em particular, a aprender a cantar com os pássaros. Ele precisa de um novo instrumento para novas canções:"Canta e exulta, ó Zaratustra, cura com novas canções tua alma: para que suportes teu grande destino, que ainda não foi destino de nenhum homem! Pois teus animais bem sabem, ó Zaratustra, quem tu és e tens de te tornar: vê, tu és o mestre do eterno retorno – e esse é o teu destino!"

É o seu destino(31), porque ele é o primeiro a ensinar essa doutrina. Mas ser o primeiro comporta perigos: enganos e doença ameaçam. Os animais sabem o que Zaratustra ensina, repetem ainda uma vez: a repetição sem fim de tudo na mesma ordem e seqüência. Se Zaratustra devesse morrer, ele diria:"Retornarei com este sol, com esta terra, com esta águia, com esta serpente – não para uma vida nova

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ou uma vida melhor ou uma vida semelhante – Retornarei eternamente para esta mesma e idêntica vida, nas coisas maiores e também nas menores, para ensinar outra vez o eterno retorno de todas as coisas – para dizer outra vez a palavra do grande meio-dia da terra e do homem, para anunciar outra vez aos homens o além-do-homem. Disse a minha palavra, despedaço-me por causa dela: assim o quer a minha eterna sina –, como anunciador pereço! Chegou a hora em que aquele que declina abençoa a si mesmo. Assim – termina o declínio de Zaratustra".

Essa é a conclusão do desenvolvimento conceitual do livro. O "declínio" de Zaratustra, que começara no primeiro capítulo do prólogo, termina no momento em que o protagonista aceita o seu destino. Não mais se esquiva de seu "abismo", toma a si a sua "mais difícil superação" e – dentro de certos limites – dela sai vitorioso. Dessa forma assume a atitude do "amor fati". Efetiva (existencialmente) o que deveria ensinar. Tornou-se o que é.

Ora, Nietzsche poderia ter iniciado uma continuação ou uma nova obra- Zaratustra, em que o protagonista anunciasse de outro modo o seu pensamento do retorno tão dificilmente conquistado. Se assim pensou, não chegou a realizar(32). Fez apenas uma espécie de sátira, em que representa a compaixão para com os "homens superiores" de seu tempo como uma "tentação de Zaratustra". Essas pessoas precisam de Zaratustra, ou melhor, precisam de alguém que como ele se tornou o que é, ao sair vitorioso da sua "mais difícil superação". Junto de Zaratustra estão bem; por causa dele, também podem afirmar o pensamento do retorno, que fez o anão e toupeira despedaçar-se. Mas por sua própria vontade disso não são capazes(33). Zaratustra adivinha o perigo de poder deixar-se levar a um "papel de redentor", por sentir compaixão pelas disposições iminentes que esses "homens superiores" têm para a grandeza do além-do-homem e que sem sua ajuda se atrofiam – e supera mais essa tentação.

Ah! A terceira parte da obra não termina com a indicação acima citada quanto à completude do "declínio" de Zaratustra. Seguem-se ainda três capítulos, em que o desenvolvimento conceitual não tem continuidade. São momentos líricos; o "mestre do eterno retorno" segue claramente o conselho de seus animais. Exorta sua alma a cantar e ela não se faz de rogada por muito tempo. Em seus hinos, celebra naturalmente a vida(34), a eternidade e o retorno.

Também o próprio Nietzsche seguiu o conselho dos animais de Zaratustra. Nas últimas semanas antes de perder o controle de seu espírito, ainda preparou para a publicação os Ditirambos de Dioniso. No Ecce homo (EH/EH, Zaratustra, § 6), apresentou o seu "filho Zaratustra" como a encarnação do "dionisíaco" e com ele relacionou o canto ditirâmbico.

"Que linguagem falará um tal espírito, ao falar só com si mesmo? A linguagem do ditirambo".

Nietzsche acrescenta uma surpreendente observação:

"Eu sou o inventor do ditirambo".

Enquanto "historiador antiquário" (cf. HL/Co. Ext. II), tenho de contradizê-lo. No Klein Pauly, lemos que o ditirambo representa uma das mais antigas formas líricas conhecidas, mais ainda, "uma das mais significativas formas do coro lírico", intimamente relacionada com o culto de Dioniso. Sabemos, além disso, que Arquíloco (cerca de 680 a.C.) foi o primeiro a testemunhar o primeiro ditirambo não-grego na Grécia. Quanto ao conteúdo, compreendeu-se por ditirambo um poema entusiasmado, em que tardiamente a música se impõe cada vez mais no primeiro plano. Melanípides (um contemporâneo de Sócrates) converteu o ditirambo com uma espécie de libreto na então "música moderna". É o que encontramos, quando por fim lemos: "Sobre essa música 'moderna' deparamo-nos, a começar pelos cômicos áticos, passando por Platão e Aristoxeno, até Plutarco e ainda posteriores, quase só com testemunhos e juízos depreciativos".

Nietzsche retomou, pois, a forma das canções de embriaguez entusiástica do culto a Dioniso, que

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decaíram e foram proscritas na era clássica. Quando diz que "inventou" essa forma, então só pode ter em mente uma nova "transvaloração", assim como quando "criou" sua versão do pensamento do retorno enquanto a mais alta fórmula da afirmação. Em que consiste o novo? No seu entender, o normal da geração posterior sempre se mostrou primeiro no excepcional, o sadio no enfermo, o bem no mal. Assim também as experiências de êxtase dos primeiros homens se converterão em experiências normais dos homens superiores do futuro. Os ditirambos de Nietzsche, essas canções de Zaratustra, são canções bêbadas de um noctâmbulo, experiências de êxtase de um homem, que não precisa de drogas para tanto, exaltações vindas da altura.

"Serenidade, tesouro, vem"...

Notas (1) As indicações das citações de Nietzsche seguem Nietzsche 8. (2) Através da "cura positivista" que prescreveu a si mesmo, depois de sua ruptura com Schopenhauer e Wagner. (3) Cf. Heidegger 3, p. 101-126. (4) Cf. os capítulos "Das três transmutações", "Dos mil e um alvos" e "Da superação de si" (Za/ZA I 1; Za/ZA I 15; Za/ZA II 12). (5) Cf. em especial EH/EH, Por que sou um destino, § 3 e o fragmento póstumo 18 [15] de julho-agosto de 1888, KSA, 13, p. 536. (6) Cf. sobretudo a Terceira consideração extemporânea: Schopenhauer como educador. (7) Elucidativa é a atitude de Nietzsche em relação a H. von Stein, a quem não estimulou para nada, mas de quem muito esperava, porque nele julgava notar um essencial traço "heróico". "(...) por ora ainda trop wagnetisé", a respeito dele escreveu Nietzsche a Overbeck (14/09/84), mas através da educação racional, que recebeu com Dühring, "bastante preparado para mim". Apesar do afastamento temporário, Nietzsche nutria grandes esperanças em relação a Stein e por isso ficou profundamente comovido com sua morte prematura: "(...) ainda estou completamente fora de mim (...). Queria-lhe tanto bem; ele fazia parte dos poucos homens cuja existência em si me dava alegria. Também não duvidava de que ele como que me seria guardado para depois" (a Overbeck, 30/06/87; cf. ainda o monumento literário que erigiu para Stein no Ecce homo (EH/EH, Porque são tão sábio, § 4). É evidente, em todo caso, que Nietzsche não julgava que o discípulo devesse assumir todas as suas "doutrinas" e opiniões (cf. a documentação pormenorizada e a interpretação desse episódio em in Nietzsche 10. Tampouco de Lou von Salomé esperava mera repetição de seus pensamentos. Quando da estada em Tautenburgo em setembro de 1882, apreciou muito, ao contrário, a troca de impressões com uma pessoa intelectualmente independente. – A atitude geral de Nietzsche está bem expressa na seguinte anotação póstuma: "São os meus juízos; e, pelo fato de tê-los impresso, não dou a ninguém o direito de repeti-los como seus; não os considero um bem público e quero 'bater nos dedos' de quem atentar contra eles" (34 [156] de abril-junho de 1885, KSA, 11, 473). (8) Cf. Haase 2, p. 228 e ss. (9) É o que A. Pieper devidamente enfatiza (Pieper 11, p. 371) contra L. Lampert (Lampert 5, p. 81 e ss.), que contesta esse ponto. (10) FW/GC § 341. Cf. a propósito Salaquarda 12, p. 317 e ss. (11) Comparável à de Paulo em Damasco, de que Nietzsche trata no aforismo 68 da Aurora. A propósito desse paralelo, cf. Salaquarda 13, p. 288 e ss. (12) Cf. Magnus 6. (13) "O enunciado mais direto do sentido do eterno retorno" (N. T.). (14) Lampert 5, p. 211. (15) Cf. GB/BM § 146: "Quem luta contra monstruosidades deve cuidar para não se tornar com isso um monstro. E se tu olhares longamente num abismo, o abismo também olha dentro de ti". (16) Como no "Siegfried" de Richard Wagner, o herói desperta o dragão para desafiá-lo à luta. (17) Com a expressão "tataravós" (Urgroßmütter) Nietzsche alude nesse contexto à evocação de Erda por Wotan no primeiro ato de "Siegfried". Cf. a propósito também WA/CW § 9: "In summa: uma cena cheia de arrepios mitológicos, em que o wagneriano pressente..." Os leitores de Assim falava

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Zaratustra, ao contrário, devem não apenas pressentir mas compreender. (18) Cf. a nota autobiográfica de 1868 aproximadamente (Historisch-kritische Gesamtausgabe. Werke. V. 5, 1940, p. 205): "O que receio não é a forma assustadora atrás de minha cadeira, mas a sua voz; também não são as palavras mas o som horrível, inarticulado e desumano daquela forma. Se ela ainda falasse como os homens falam!" – Cf. também o "estertor" do "mais feio dos homens", que na quarta parte do Zaratustra é mencionado duas vezes e em ambas converte-se numa alusão ao pensamento do retorno: em IV, "O mais feio dos homens", está em questão o que tem a ver com a "vingança contra a testemunha"; e em IV, "A canção bêbada", com a confissão "ainda uma vez". (19) Cf. a evocação do espírito da terra no Fausto de Goethe (I, 466 e ss.): "Visão assustadora! (...) Ai! Não te suporto!" (20) Isto significa os homens que, como ele, abandonaram toda segurança. (21) Cf. Emerson 1, p. 341: "Podemos lançar uma pedra por um instante no ar; contudo, isto não se pode mudar: que todas as pedras caem de novo para baixo". (22) Cf. "Esclarecimentos" de M.-L. Haase a esse propósito no volume Nachbericht ao Zaratustra editado por ela e por M. Montinari (KGW VI/4), Berlim e Nova Iorque, 1991, p. 898. (23) Cf. Schopenhauer 14, v. 2, cap. 19. (24) Cf. id., ibid., p. 162 e ss. (25) Cf. "Do espírito de peso" (Za/ZA III): "O homem é difícil de descobrir e a si mesmo é ainda mais difícil; com freqüência, o espírito mente a respeito da alma. Assim obra o espírito de peso. Mas quem descobriu a si mesmo diz: 'Este é o meu bem e mal'. Com isso fez calar-se a toupeira e anão, que diz: 'Bem para todos, mal para todos'". (26) Cf. o fragmento póstumo 14 [159] da primavera de 1888; KSA, 13, 344: "– erro muito popular: ter coragem para suas convicções –? mas ter coragem para atacar suas convicções!!!" (27) Cf. suposição semelhante no mito de Édipo e no conto de Rumpelstilzchen. (Trata-se do nome do anão, que é personagem central de um conto da antiga mitologia germânica, conhecido na Inglaterra por Tom Tit Tot e na Suécia por Titteliture. Ele ajuda uma jovem donzela a tecer ouro a partir do linho ou da palha; em retribuição, ela terá de dar- lhe o filho, caso não adivinhe o seu nome em tempo oportuno (N.T.)). (28) "o mesmo, mas de outra maneira" (N.T.). (29) Cf. a interpretação penetrante e justa de Lampert quanto a esse ponto (Lampert 5, p. 160 e ss.), enquanto Heidegger não o percebeu (Heidegger 4, tomo I, p. 289 e ss.). (30) Cf. Nachbericht ao Zaratustra (p. 898 e ss.) quanto ao modelo tomado das Mil e uma noites (na sétima viagem de Simbad, embora inversamente, um homem foi engolido por uma serpente a tal ponto que apenas a sua cabeça fica de fora) e quanto a Emerson (que em Die Führung des Lebens (Conduct of life) relata práticas cruéis em "conversões" na velha Escandinávia, como por exemplo a de empurrar uma víbora pela boca de um "pagão obstinado"). (31) Nietzsche intitulou o último capítulo do Ecce homo "Por que sou um destino" – e respondeu: Porque represento uma crise, "a mais profunda colisão de consciências", "uma decisão (...) contra tudo o que até então foi acreditado, exigido, santificado", com a fórmula "transvaloração de todos os valores". Nas ilustrações que se seguem, ele refere-se naturalmente ao seu Zaratustra. (32) Cf. a propósito as exposições de M.-L. Haase "Planos para uma quinta parte de Zaratustra" e "Zaratustra depois de Assim falava Zaratustra" in Nachbericht ao Zaratustra, p. 972-78. (33) Cf. a observação de Nietzsche em GB/BM § 256 sobre os artistas de seu tempo, que tiveram de ensinar a muitos o conceito de "homem superior", mas – "todos por fim prostrados e quebrantados diante da cruz cristã" – não foram fortes o bastante para suportar a "morte de Deus". (34) Cf. o "Hino à vida", que Nietzsche compôs para o poema de Lou Salomé "Prece à vida". No Ecce homo (EH/EH, Zaratustra, § 2), ele descreve essa obra como expressão do "páthos afirmativo par excellence".

Referências Bibliográficas 1. EMERSON, R.W. Versuche. Tradução para o alemão de G. Fabricius, Hannover, 1858. 2. HAASE, M.-L. "Der Übermensch in 'Also sprach Zarathustra' und im Zarathustra-Nachlass 1882-1885". In: Nietzsche Studien. Vol. 18, 1984.

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3. HEIDEGGER, M. "Wer ist Nietzsches Zarathustra?". In: Vorträge und Aufsätze. Pfullingen, 1954. 4. _______. Nietzsche. 2 vols. Pfullingen, 1961. 5. LAMPERT, L. Nietzsches Teaching. An Interpretation of Thus spoke Zarathustra. New Haven and Londres, Yale University Press, 1986. 6. MAGNUS, B. Nietzsches Existential Imperative. Indiana Univ. Press, 1978. 7. Nachberichts-Band zu Also sprach Zarathustra. Volume editado por M.-L. Haase e M. Montinari. Berlim/Nova Iorque, 1991. 8. NIETZSCHE, F. Kritische Gesamtausgabe der Werke und der Briefwechsel Fr. Nietzsches. 9. _______. Kritische Studienausgabe. Edição organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. 15 vols. Berlim, Walter de Gruyter & Co., 1967-78. 10. Nietzsche und Wagner. Stationen einer epochalen Begegnung. Editado por D. Borchmeyer e J. Salaquarda. 2 vols. Frankfurt am Main, 1994. 11. PIEPER, A. Ein Seil geknüpft zwischen Tier und Übermensch. Nietzsches Erster Zarathustra. 1990. 12. SALAQUARDA, J. "Der ungeheure Augenblick". In: Nietzsche-Studien, 18, 1989. 13. _______. "Dionysos gegen den Gekreuzigten. Nietzsches Verständnis des Apostels Paulus". In: Salaquarda, J. (org.) Nietzsche. Darmstadt, 1980. 14. SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e representação.

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