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ARP!23 Acta Radiológica Portuguesa, Vol.XXI, nº 81, pág. 23-26, Jan.-Mar., 2009 Recebido a 18/01/2008 Aceite a 16/10/2008 Volvo Gástrico – Aspectos Imagiológicos e Implicações Clínicas Gastric Volvulus – Imaging Findings and Clinical Implications Tiago Bilhim 1 , Cláudia Videira 2 , Ana Germano 3 , Dulce Travassos 3 , Ana Costa 3 1 Interno de Radiodiagnóstico Centro Hospitalar de Lisboa Central – H. Stº António Capuchos 2 Interna de Radiodiagnóstico Hospital Santarém 3 Assistente Hospitalar Graduada Imagiologia, Hospital Fernando Fonseca Serviço de Imagiologia, Hospital Fernando Fonseca Directora: Dr.ª Celeste Alves Introdução O termo volvo (volvulus em inglês) é derivado da palavra Latina “volvere”, que significa rodar ou rolar, ou seja, a rotação de uma víscera sobre si própria. No caso concreto do estômago, o Volvo Gástrico define- se como uma rotação adquirida, total ou parcial, deste orgão, superior a 180º, em redor de um dos seus eixos. Tem vindo a ser referenciada há séculos, com a primeira documentação na literatura médica em 1966 por Berti e com aproximadamente 300 casos descritos desde então.[1] Pensa-se que se trata se uma patologia pouco frequente [2] ou mesmo rara [3], contudo não há estudos sobre a sua verdadeira incidência [3]. Pode apresentar-se clinicamente de forma aguda ou crónica, sendo que a forma aguda é bastante rara, enquanto que a forma crónica está a ser diagnosticada com maior frequência.[4,5,6] Afecta principalmente adultos a partir de quinta década de vida[1], com vários casos descritos, também, em crianças.[4,6] Na forma aguda surge como uma emergência cirúrgica, enquanto que na forma crónica pode manifestar-se por sintomas abdominais e torácicos inespecíficos.[7] Aproximadamente um terço dos casos apresentam-se de forma aguda, com dor súbita e severa nos quadrantes superiores do abdómen, lateralizados à esquerda ou na porção inferior e esquerda do tórax, havendo uma tríade clínica típica descrita por Borchardt em 1904, com dor severa e distensão epigástrica, reflexo de vómito ineficaz e incapacidade em fazer passar a sonda nasogástrica para o estômago. Nestes casos pode evoluir para complicações Resumo O volvo gástrico agudo é uma patologia bastante rara e a sua forma crónica é pouco frequente estando a ser diagnosticada com maior frequência. As formas crónicas podem ser diagnosticadas acidentalmente nos estudos contrastados do esófago, estômago e duodeno, que constituem a melhor técnica diagnóstica destas situações. Neste trabalho os autores fazem uma revisão dos aspectos imagiológicos do volvo gástrico e das suas implicações clínicas, com base em 5 casos do serviço de Imagiologia do Hospital Fernando Fonseca. Palavras-chave Volvo; Gástrico; Hérnia; Hiato. Abstract Acute gastric volvulus is considered a very rare disease, while its chronic presentation is believed infrequent although increasingly diagnosed. The chronic presentation can be an accidental finding during upper gastrointestinal series that are the best imaging modality in these situations. The authors do a revision of the imaging aspects of gastric volvulus and its clinical implications based on a series of five patients from Fernando Fonseca’s Imagiology Department. Key-words Volvulus; Gastric; Hernia; Hiatus.

Volvo Gástrico – Aspectos Imagiológicos e ... · O termo volvo (volvulus em inglês) ... e incapacidade em fazer passar a sonda nasogástrica para o estômago. ... como o radiograma

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Acta Radiológica Portuguesa, Vol.XXI, nº 81, pág. 23-26, Jan.-Mar., 2009

Recebido a 18/01/2008Aceite a 16/10/2008

Volvo Gástrico – Aspectos Imagiológicos e ImplicaçõesClínicas

Gastric Volvulus – Imaging Findings and Clinical Implications

Tiago Bilhim1, Cláudia Videira2, Ana Germano3, Dulce Travassos3, Ana Costa3

1Interno de Radiodiagnóstico Centro Hospitalar de Lisboa Central – H. Stº António Capuchos2Interna de Radiodiagnóstico Hospital Santarém3Assistente Hospitalar Graduada Imagiologia, Hospital Fernando Fonseca

Serviço de Imagiologia, Hospital Fernando FonsecaDirectora: Dr.ª Celeste Alves

Introdução

O termo volvo (volvulus em inglês) é derivado da palavraLatina “volvere”, que significa rodar ou rolar, ou seja, arotação de uma víscera sobre si própria.No caso concreto do estômago, o Volvo Gástrico define-se como uma rotação adquirida, total ou parcial, desteorgão, superior a 180º, em redor de um dos seus eixos.Tem vindo a ser referenciada há séculos, com a primeiradocumentação na literatura médica em 1966 por Berti ecom aproximadamente 300 casos descritos desde então.[1]Pensa-se que se trata se uma patologia pouco frequente[2] ou mesmo rara [3], contudo não há estudos sobre a suaverdadeira incidência [3].

Pode apresentar-se clinicamente de forma aguda oucrónica, sendo que a forma aguda é bastante rara, enquantoque a forma crónica está a ser diagnosticada com maiorfrequência.[4,5,6]Afecta principalmente adultos a partir de quinta décadade vida[1], com vários casos descritos, também, emcrianças.[4,6]Na forma aguda surge como uma emergência cirúrgica,enquanto que na forma crónica pode manifestar-se porsintomas abdominais e torácicos inespecíficos.[7]Aproximadamente um terço dos casos apresentam-se deforma aguda, com dor súbita e severa nos quadrantessuperiores do abdómen, lateralizados à esquerda ou naporção inferior e esquerda do tórax, havendo uma tríadeclínica típica descrita por Borchardt em 1904, com dorsevera e distensão epigástrica, reflexo de vómito ineficaze incapacidade em fazer passar a sonda nasogástrica parao estômago. Nestes casos pode evoluir para complicações

Resumo

O volvo gástrico agudo é uma patologia bastante rara e a sua forma crónica é pouco frequente estando a ser diagnosticada commaior frequência. As formas crónicas podem ser diagnosticadas acidentalmente nos estudos contrastados do esófago, estômago eduodeno, que constituem a melhor técnica diagnóstica destas situações. Neste trabalho os autores fazem uma revisão dos aspectosimagiológicos do volvo gástrico e das suas implicações clínicas, com base em 5 casos do serviço de Imagiologia do HospitalFernando Fonseca.

Palavras-chave

Volvo; Gástrico; Hérnia; Hiato.

Abstract

Acute gastric volvulus is considered a very rare disease, while its chronic presentation is believed infrequent although increasinglydiagnosed. The chronic presentation can be an accidental finding during upper gastrointestinal series that are the best imagingmodality in these situations. The authors do a revision of the imaging aspects of gastric volvulus and its clinical implicationsbased on a series of five patients from Fernando Fonseca’s Imagiology Department.

Key-words

Volvulus; Gastric; Hernia; Hiatus.

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como estrangulação, perforação, com oclusão em ansafechada, com taxas de mortalidade que podem chegar aos60%.[1]Os restantes dois terços das situaçãoes manifestm-se deforma crónica, podendo ser assintomáticos ediagnosticados acidentalmente durante a realização deexames imagiológicos por outros motivos, ou podendoapresentar-se de forma inespecífica com sintomas vagos,que resolvem espontaneamente, como epigastralgias,disfagia, saciedade precoce, dispneia, podendo simularcardiopatia nos doentes com volumosas hérniasdiafragmáticas, ou doença ulcerosa péptica ou colecistite,podendo permanecer não diagnosticada durante anos.[1,8]Quanto à sua patogénese divide-se em primária (quandonão há causa subjacente) ou secundária (frequentementeassociada a hérnia diafragmática, ou menos frequentementea eventração, após pneumectomia esquerda ou associadaa adesões pleurais).[1]A causa mais frequente de volvo gástrico é a hérnia dohiato, mas o principal factor predisponente é a laxidãoligamentosa.[9]Foi proposta uma classificação por Singleton em 1940,com três tipos de volvo gástrico:Tipo I – Organoaxial – ocorre em aproximadamente 59%dos casos, com o estômago a rodar em torno do seu maioreixo longitudinal, com a grande curvatura a girar anteriore superiormente. A grande curvatura do estômago ficalocalizada superiormente relativamente à pequenacurvatura e o antro fica numa posição anormalmentesuperior.[10]Tipo II – Mesentéricoaxial – responsável poraproximadamente 29% das situações, em que a rotação serealiza em redor do eixo transgástrico, transversal, que unea porção média da grande à pequena curvatura, ao longodo epíploon gastro-hepático (perpendicular ao eixoreferido anteriormente), com o estômago a ficar “dobrado”sobre si mesmo e a rodar da direita para a esquerda. Ascomplicações clínicas são mais frequentes neste tipo.[10]Tipo III – nos restantes 12% dos volvos gástricos há umacombinação de ambos os tipos descritos anteriormente.[1]

O diagnóstico clínico geralmente é difícil e baseia-seessencialmente em estudos imagiológicos convencionaiscomo o radiograma de tórax demonstrando um nível hidro-aéreo retrocardíaco, sendo que os estudos contrastados doesófago e estômago são essenciais. [5,9]A TC pode demonstrar a viabilidade vascular da paredegástrica e fornecer pormenores sobre possíveis alteraçõesligamentares. Pode demonstrar uma distensão hidro-aéreagástrica acentuada, permitindo excluir outras causas depatologia abdominal e as reformatações multiplanarespodem ajudar bastante no diagnóstico definitivo.[9,11]A endoscopia digestiva alta é frequentemente inconclusivae não costuma ser diagnóstica, com dificuldade emvisualizar a totalidade do estômago e sem conseguiralcançar o duodeno. [5,12]A ecografia abdominal geralmente não revela alterações,e não costuma ter utilidade diagnóstica nestas situaçõesembora alguns autores refiram, nas situações agudas, apossibilidade de demonstrar uma constrição entre a porçãogástrica superior dilatada do corpo e a porção mais inferior,denominado o sinal do “amendoim”.[13]O tratamento nas formas agudas é sempre cirúrgico,embora nas formas crónicas seja algo controverso, com amaioria dos cirurgiões recomendando sempre correcçãolaparoscópica, dadas as hipóteses de complicações,enquanto outros preconizam tratamento conservador paraas formas menos sintomáticas.[1,4,8]Neste trabalho os autores fazem uma revisão dos aspectosimagiológicos do volvo gástrico com base na casuísticado serviço de Imagiologia do Hospital Fernando Fonseca.

Resultados

Foram documentados cinco casos de volvo gástrico emadultos, com quatro doentes do sexo feminino e um dosexo masculino e uma média de idades de 61.2 anos(oscilando entre os 36 eos 75 anos de idade).Tratavam-se de volvos secundários em 4 casos (80%) eprimário num caso (20%). A hérnia difragmática foi aanomalia concomitante mais frequentemente associada,estando presente em 4 situações (80%).

Fig. 1 - Esquema ilustrativo: em cima, volvo gástrico tipo I organoaxial.Em baixo, volvo gástrico tipo II mesentéricoaxial.[11]

Fig. 2 - Alteração da disposição topográfica e da morfologia do estômago,observando-se rotação gástrica no seu maior eixo em relação com volvogátrico organoaxial, não obstrutivo, primário, com a grande curvaturalocalizada superiormente à pequena curvatura e com desvio superioranómalo do antro.

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azia, disfagia e vómitos ocasionais referidos em 20% doscasos.Não houve nenhuma situação de volvo gástrico agudo.A abordagem diagnóstica passou pela realização deendoscopia digestiva alta em quatro casos, com resultadosinconclusivos em todas as situações (Estase gástrica, pilorofixo e de acesso difícil. Não foi possível observar o bulbo-Num caso; Não foi possível passar o piloro pela grandedimensão da cavidade gástrica – noutra situação. Estômagodistendido, “em cascata”, “anel gástrico” impede passagemdo endoscópio em dois outros casos).Frequentemente, foi realizada uma TC abdominal queapenas apoiou o diagnóstico numa situação.O diagnóstico definitivo foi obtido em todos os casosatravés da realização de um estudo contrastado do esófagoe estômago, que demonstrou um volvo gástrico Tipo Iorganoaxial em quatro situações (80%) e Tipo IImesentéricoaxial nouto caso (20%).Não se observou nenhuma situação complicada de oclusão,isquémia parietal ou perfuração, sendo que todos os casoseram não obstrutivos, observando-se uma passagem docontraste baritado para o duodeno.

Fig. 3 - Estudo radiológico do tórax evidencia lesão ocupando espaçonodular, volumosa, retro-cardíaca, com nível hidro-aéreo, compatívelcom hérnia do hiato. Estudo contrastado do esófago, estômago e duodenoconfirma a presença de volumosa hérnia do hiato e demonstra umaalteração da disposição topográfica e da morfologia do estômago,observando-se rotação gástrica no seu maior eixo, em relação com volvogátrico organoaxial, secundário, não obstrutivo.

Fig. 4 - TC no mesmo doente da figura 3, com parte do corpo gástrico visualizado num plano superior relativamente à transição esófagogástrica.Coexiste um espessamento da parede esofágica, pequena lâmina líquida peri-gástrica e quisto biliar simples no segmento II hepático.

Trataram-se de situações de apresentação clínica crónica,com sintomas inespecíficos como dor epigástrica em 4casos (80%), dor retro-esternal numa situação (20%) e com

Fig. 5 - Estudo contrastado do esófago, estômago e duodeno demonstravolumosa hérnia para-esofágica, contendo um volvo gástricomesentéricoaxial, não obstrutivo, secundário. Grande curvaturapermanece num plano inferior à pequena cuvatura. Duodeno estirado.Divertículo de D2.

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Três doentes permanecem em terapêutica conservadoramédica (60%), um por ter recusado cirurgia e outros doispor se encontrarem em lista de espera.Nos restantes dois casos (40%) foi realizada uma cirurgiaelectiva correctiva que decorreu sem complicações,oservando-se uma normalização na topografia e morfologiagástrica nos estudos baritados de controlo pós-operatório.

Discussão e Conclusão

Neste estudo foram documentadas situações clínicascrónicas de volvo gástrico não obstrutivas e comsintomatologia moderada a leve, pelo que a abordagemterapêutica não foi a preconizada pela maioria dos autores,com uma elevada percentagem de casos tratados de formaconservadora e seguidos electivamente na consulta externa(60%).Além disso, existe frequentemente um cepticismo por partedos colegas cirurgiões e gastrenterologistas em aceitar odiagnóstico fornecido por uma técnica mais convencional,como são os estudos contrastados do esófago e estômago.Principalmente quando a TC não confirma o diagnósticoe porque em muitas situações a endoscopia digestiva altaé inconclusiva.Desta forma, é importante informar os colegas que emsituações raras como a do volvo gástrico, técnicas menosrecentes possuem uma muito melhor sensibilidade eespecificidade em estabelecer o diagnóstico definitivo, emcomparação com técnicas mais recentes, como a TC ou aendoscopia digestiva alta.A TC pode não ser diagnóstica, embora possa ser útil naconfirmação do diagnóstico, fornecendo informaçãoadicional acerca da viabilidade vascular parietal gástricae dos ligamentos peri-gástricos.Os estudos baritados do esófago e estômago facilmenteconfirmam a presença de volvo gástrico crónico e podemna maioria dos casos definir o seu tipo, bem como apresença de hérnia do hiato concomitante ou dar uma noçãosobre se está mantida a permeabilidade luminal ou se háevidência de obstrução que possa prever uma complicaçãoaguda.

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Correspondência

Tiago Campos Andrada de Faria BilhimR. Frei Amador Arrais nº5, r/c Drt1700-202 Lisboa