144
Volume XXVI Volume XXVI · · Número 1 Número 1 · · 2021 2021

Volume XXVI Número 1 2021

  • Upload
    others

  • View
    9

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Volume XXVI Volume XXVI middotmiddot Nuacutemero 1 Nuacutemero 1 middotmiddot 2021 2021

This periodical is indexed in the ATLA Religion Database published by the American Theological Library Association 250 S Wacker Dr 16th Flr Chicago IL 60606 USA

e-mail atlaatlacom wwwatlacomFides Reformata tambeacutem estaacute incluiacuteda nas seguintes bases indexadoras

CLASE (wwwdgbibliounammxclasehtml) Latindex (www latindexunammx) Francis (wwwinistfrbbdphp) Ulrichrsquos International Periodicals Directory

(wwwulrichswebcomulrichsweb) e Fuente Academica da EBSCO (wwwepnetcomthisTopicphpmarketID=1amptopicID=71)

Editores GeraisDaniel Santos Juacutenior

Dario de Araujo Cardoso

Editor de resenhasFilipe Costa Fontes

RedatorAlderi Souza de Matos

EditoraccedilatildeoLibro Comunicaccedilatildeo

CapaRubens Lima

Fides reformata ndash v 1 n 1 (1996) ndash Satildeo Paulo Editora Mackenzie 1996 ndash

Semestral ISSN 1517-5863

1 Teologia 2 Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper

CDD 2912

INSTITUTO PRESBITERIANO MACKENZIEDiretor-Presidente Milton Flaacutevio Moura

CENTRO PRESBITERIANO DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO ANDREW JUMPERDiretor Mauro Fernando Meister

Volume XXVI Volume XXVI middotmiddot Nuacutemero 1 Nuacutemero 1 middotmiddot 2021 2021

Igreja Presbiteriana do BrasilJunta de Educaccedilatildeo Teoloacutegica

Instituto Presbiteriano Mackenzie

CONSELHO EDITORIALAugustus Nicodemus Lopes

Davi Charles GomesHeber Carlos de Campos

Heber Carlos de Campos JuacuteniorJedeiacuteas de Almeida Duarte

Joatildeo Paulo Thomaz de AquinoMauro Fernando MeisterValdeci da Silva Santos

A revista Fides Reformata eacute uma publicaccedilatildeo semestral doCentro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper

Os pontos de vista expressos nesta revista refletem os juiacutezos pessoais dos autores natildeo representando necessariamente a posiccedilatildeo do Conselho Editorial Os direitos de publicaccedilatildeo

desta revista satildeo do Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper

Permite-se reproduccedilatildeo desde que citada a fonte e o autor

Pede-se permutaWe request exchange On demande lrsquoeacutechange Wir erbitten Austausch

Se solicita canje Si chiede lo scambio

ENDERECcedilO PARA CORRESPONDEcircNCIARevista Fides Reformata

Rua Maria Borba 4044 ndash Vila BuarqueSatildeo Paulo ndash SP ndash 01221-040

Tel (11) 2114-8644E-mail atendimentocpajmackenziebr

ENDERECcedilO PARA PERMUTAInstituto Presbiteriano Mackenzie

Rua da Consolaccedilatildeo 896Preacutedio 2 ndash Biblioteca CentralSatildeo Paulo ndash SP ndash 01302-907

Tel (11) 2114-8302E-mail bibliopermackenziecombr

EDITORIAL

Eacute com satisfaccedilatildeo que apresentamos aos nossos leitores o volume XXVI no 1 da revista Fides Reformata dando continuidade a mais de duas deacutecadas de contribuiccedilatildeo ininterrupta agrave pesquisa teoloacutegica na Ameacuterica Latina Nos uacuteltimos anos a publicaccedilatildeo de artigos em inglecircs tem ampliado a contribuiccedilatildeo de Fides tambeacutem no cenaacuterio mundial Conheccedila todo esse acervo em formato eletrocircnico no site oficial do Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper e em bancos de dados como ATLA Serials e Fuente Academica

Nesta ediccedilatildeo o primeiro artigo de autoria do Dr Leandro de Lima ldquoO chamado para o martiacuterio em Apocalipse as sete igrejas da Aacutesiardquo nos desafia a refletir sobre o niacutevel de perseguiccedilatildeo que os leitores originais do livro de Apo-calipse enfrentavam em seus dias Segundo o autor a situaccedilatildeo ainda natildeo era extrema mas os cristatildeos jaacute comeccedilavam a demonstrar sinais de acomodaccedilatildeo agrave cultura vigente para tentar manter os benefiacutecios da paz Dessa forma o livro de Apocalipse cumpre seu papel de confrontar tal acomodaccedilatildeo

No segundo artigo pelo professor Solano Portela ldquoDesconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo o poacutes-modernismo da teologia da esperanccedila agrave teologia da nova era e seus reflexos no campo educacionalrdquo o autor demonstra que o tema subjacente de desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo de pontos fundamentais com um progressivo desvio dos direcionamentos biacuteblicos estaacute sempre presente na teologia modernacontemporacircnea Segundo ele as tendecircncias que aparecem nessas reflexotildees teoloacutegicas satildeo similares ao que se observa no campo da edu-caccedilatildeo e algumas delas impactam profundamente o processo cristatildeo de ensino--aprendizagem O desafio feito pelo autor eacute para que um soacutelido alicerce biacuteblico venha a fundamentar qualquer filosofia de educaccedilatildeo escolar cristatilde

O terceiro artigo pelo professor Heber Carlos de Campos Juacutenior ldquolsquoCor meum tibi offero Domine prompte et sincerersquo um ensaio introdutoacuterio sobre espiritualidade reformadardquo apresenta a espiritualidade reformada como uma aacuterea ainda desconhecida em meios populares e acadecircmicos e carente de ser redescoberta No intuito de resgatar o aspecto piedoso e devocional da tradiccedilatildeo reformada seu artigo apresenta uma introduccedilatildeo agrave teologia praacutetica de perso-nagens como Joatildeo Calvino os puritanos ingleses o movimento reformado holandecircs ldquoNadere Reformatierdquo e Jonathan Edwards aleacutem de representantes contemporacircneos da piedade reformada

O quarto artigo por Paulo Eduardo Vieira da Veiga ldquoAs implicaccedilotildees missioloacutegicas do triunfo de Cristo uma anaacutelise da questatildeo juriacutedica no contexto da Grande Comissatildeo (Mt 2818-20)rdquo analisa o termo ἐξουσία (autoridade) mencionado no versiacuteculo 18 no contexto da teologia biacuteblica do Antigo e do Novo Testamentos reflete sobre a autoridade perdida por Adatildeo e reconquis-tada por Cristo e avalia como o triunfo e a exaltaccedilatildeo de Cristo satildeo a garantia de sucesso da missatildeo

No quinto artigo ldquoIgrejas e histoacuteria um modelo para interpretar a di-ferenccedila entre o catolicismo romano e o protestantismordquo Paul Wells aborda o conceito de tradiccedilatildeo a maneira pela qual um grupo religioso apresenta no desenvolvimento da histoacuteria a relaccedilatildeo entre o mundo espiritual e o mundo histoacuterico material Para abordar o tema igreja e histoacuteria o autor propotildee fazer uma comparaccedilatildeo entre essas duas posiccedilotildees em trecircs aacutereas a Igreja e os sacra-mentos a Escritura e a tradiccedilatildeo o Espiacuterito Santo e a vida cristatilde

O sexto artigo de Isaias DrsquoOleo Ochoa ldquoOn how Herman Bavinck res-ponds to the theory of evolution The primacy of biblical revelationrdquo (Sobre o modo como Herman Bavinck responde agrave teoria da evoluccedilatildeo a primazia da revelaccedilatildeo biacuteblica) oferece uma teoria de desenvolvimento modificada a qual estaacute fundamentada natildeo em uma cosmovisatildeo mecanicista e naturalista como vemos em Darwin mas em uma estrutura ldquoteiacutesta-amigaacutevelrdquo Nesse artigo o autor argumenta que a discussatildeo de Bavinck sobre evoluccedilatildeo em termos gerais endossa uma estrutura aristoteacutelicatomista modificada a fim de entender a teoria de desenvolvimento e assim superar os desafios suscitados pela cosmovisatildeo naturalista de Darwin agrave revelaccedilatildeo biacuteblica

A seccedilatildeo de resenhas traz avaliaccedilotildees de obras relevantes para o contexto atual da igreja Catolicidade Reformada A Promessa da Recuperaccedilatildeo para a Teologia e a Interpretaccedilatildeo Biacuteblica de Michael Allen e Scott R Swain resenha-da por Heber Carlos de Campos Juacutenior Francis Schaeffer e a Vida Cristatilde A Espiritualidade Contracultural de W Edgar resenhada por Wendell Gonzaga da Paixatildeo e Jesus e o Impeacuterio O Reino de Deus e a Nova Desordem Mundial de Richard A Horsley resenhada por Norval da Silva

Mantendo o compromisso da revista em proporcionar e incentivar uma reflexatildeo teoloacutegica reformada entrego aos leitores mais esta ediccedilatildeo de Fides Reformata desejoso de que estes artigos despertem mais uma vez o interesse por pesquisas que visam contribuir para a edificaccedilatildeo do povo de Deus servindo sua igreja ao redor do mundo

Boa leitura

Dr Daniel SantosEditor

SUMAacuteRIO

ARTIGOS

O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIALeandro A de Lima 9

DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO O POacuteS-MODERNISMO DA TEOLOGIA DA ESPERANCcedilA Agrave TEOLOGIA DA NOVA ERA E SEUS REFLEXOS NO CAMPO EDUCACIONALSolano Portela 29

ldquoCOR MEUM TIBI OFFERO DOMINE PROMPTE ET SINCERErdquo UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADAHeber Carlos de Campos Juacutenior 47

AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO ndash UMA ANAacuteLISE DA QUESTAtildeO JURIacuteDICA NO CONTEXTO DA GRANDE COMISSAtildeO (MT 2818-20)Paulo Eduardo Vieira da Veiga 71

IGREJAS E HISTOacuteRIA UM MODELO PARA INTERPRETAR A DIFERENCcedilA ENTRE O CATOLICISMO ROMANO E O PROTESTANTISMOPaul Wells 91

ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION THE PRIMACY OF BIBLICAL REVELATIONIsaias DrsquoOleo Ochoa 103

RESENHAS

CATOLICIDADE REFORMADA A PROMESSA DA RECUPERACcedilAtildeO PARA A TEOLOGIA E A INTERPRETACcedilAtildeO BIacuteBLICA (MICHAEL ALLEN SCOTT R SWAIN)Heber Carlos de Campos Juacutenior 125

FRANCIS SCHAEFFER E A VIDA CRISTAtilde A ESPIRITUALIDADE CONTRACULTURAL (W EDGAR)Wendell Gonzaga da Paixatildeo 131

JESUS E O IMPEacuteRIO O REINO DE DEUS E A NOVA DESORDEM MUNDIAL (RICHARD A HORSLEY)Norval da Silva 137

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

9

O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

Leandro A de Lima

RESUMONo final do primeiro seacuteculo quando Joatildeo recebeu a visatildeo e a registrou

no livro do Apocalipse as igrejas da Aacutesia natildeo enfrentavam o pior periacuteodo de perseguiccedilatildeo Muito embora existissem perseguiccedilotildees pontuais e alguma som-bra de intensificaccedilatildeo de perseguiccedilatildeo se apresentasse no horizonte boa parte dos cristatildeos vivia em relativa paz e seguranccedila desfrutando de privileacutegios e benefiacutecios vindos do rico comeacutercio imperial que permeava a regiatildeo da Aacutesia Menor e de seu status como cidadatildeos romanos O desejo de permanecer des-frutando de certos benefiacutecios levou muitos crentes a seguirem o caminho de acomodaccedilatildeo cultural proposto por falsos mestres eloquentes da eacutepoca Contra essa disposiccedilatildeo o Apocalipse demonstra que os crentes verdadeiros precisam seguir o exemplo de Cristo que foi fiel ateacute a morte e recebeu a recompensa na ressurreiccedilatildeo Desse modo se estiverem dispostos a viverem fieacuteis a Cristo e enfrentarem a proacutepria morte por causa disso daratildeo o verdadeiro testemunho ao mundo bem como participaratildeo da recompensa de Cristo

PALAVRAS-CHAVESete igrejas da Aacutesia Apocalipse Martiacuterio Testemunho Perseguiccedilatildeo

INTRODUCcedilAtildeOGeralmente o livro do Apocalipse eacute considerado um tratado que objetiva

trazer consolo agrave igreja que experimenta perseguiccedilatildeo e sofrimento Muitos cren-

O autor eacute ministro presbiteriano e professor de Novo Testamento no Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper Tem doutorado em Literatura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e atualmente cursa outro doutorado em Novo Testamento pela Universidade de Kampen na Holanda

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

10

tes acreditam que nos dias em que Joatildeo recebeu o Apocalipse e o registrou a igreja enfrentava grande e incessante perseguiccedilatildeo e que em parte por causa disso era uma igreja extremamente fiel disposta a viver e morrer por Cristo No entanto haacute fortes razotildees no proacuteprio livro do Apocalipse para entender que essas duas expectativas estatildeo erradas e natildeo descrevem a realidade dos fatos daqueles dias no final do primeiro seacuteculo O livro parece ter sido escrito como uma exortaccedilatildeo para alguns grupos de cristatildeos que estavam experimentando relativo fracasso em seu testemunho perante o mundo1 O objetivo do livro foi mostrar para aqueles crentes o ponto exato em que estavam falhando e chamaacute-los ao arrependimento e agrave mudanccedila de atitude

Eacute nossa convicccedilatildeo de que esse entendimento eacute importante natildeo apenas para compreender melhor o livro do Apocalipse como um todo mas tam-beacutem para ldquoaproximarrdquo leitores modernos do livro O livro natildeo descreve uma ldquoigreja dos sonhosrdquo em termos de fidelidade ou como se costuma dizer uma ldquoigreja fiel porque era perseguidardquo Isso nos mostra que em todos os tempos precisamos da exortaccedilatildeo de Deus para que sejamos fieacuteis ateacute agrave morte seja em tempos de intensa perseguiccedilatildeo ou de relativa paz e seguranccedila

1 MARTIacuteRIO EM APOCALIPSEA noccedilatildeo comum de que o livro de Apocalipse descreve uma eacutepoca histoacute-

rica de intensa e incessante perseguiccedilatildeo2 tem sido questionada por muitos estu-diosos3 A percepccedilatildeo da ameaccedila de perseguiccedilatildeo causada por eventos pontuais4

1 Eacute nossa convicccedilatildeo de que a chave hermenecircutica para entender o pano de fundo histoacuterico do Apocalipse estaacute nas cartas agraves sete igrejas Ver Elizabeth Schuumlssler-Fiorenza Priester fur Gott Studien zum Herrschafts-und Priestermotiv in der Apokalypse NtAbhNF 7 (Munster Aschendorff 1972) p 155-166

2 Ver Elisabeth Schuumlssler-Fiorenza The Book of Revelation Justice and Judgment (2nd ed Minneapolis Fortress 1998) p 187-99 A autora defende que existia perseguiccedilatildeo mesmo que natildeo haja evidecircncia para provar isso

3 Principalmente por Leonard L Thompson The Book of Revelation Apocalypse and Empire New York Oxford University Press 1990 p 95-115 Segundo Thompson duas visotildees contrastantes de Domiciano podem ser encontradas nas fontes antigas a oficial que o descreve como um tirano e outras que o descrevem como um bom imperador Thompson prefere a segunda e por isso natildeo vecirc justificativa para perseguiccedilotildees generalizadas no final do primeiro seacuteculo Adela Yarbro Collins por outro lado sustenta que havia perseguiccedilotildees Ver ldquoPersecution and vengeance in the Book of Revelationrdquo In Apocalypticism in the Mediterranean World and the Near East p 729-749 Tuumlbingen JCB Mohr (Paul Siebeck) 1983 ver tambeacutem Adela Yarbro Collins Crisis and Catharsis The Power of the Apocalypse Philadelphia Westminster 1984 p 84-110 Yarbro Collins destaca a importacircncia de distinguir entre uma crise real e uma crise percebida (p 32)

4 Beale define o ldquoclimardquo do periacuteodo com as seguintes palavras ldquoA evidecircncia interna do livro aponta para uma situaccedilatildeo de relativa paz e perseguiccedilatildeo seletiva com uma expectativa iminente de intensificaccedilatildeo da perseguiccedilatildeo em uma escala cada vez mais programaacuteticardquo (G K Beale The Book of Revelation A Commentary on the Greek Text New International Greek Testament Commentary Grand Rapids MI Carlisle Cumbria Eerdmans Paternoster Press 1999 p 12)

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

11

(Ap 210 213) mais do que perseguiccedilatildeo contiacutenua parece descrever melhor o periacuteodo do final do primeiro seacuteculo na regiatildeo da Aacutesia Menor5 Isso entretanto natildeo diminui o impacto que os casos especiacuteficos de perseguiccedilatildeo produziam so-bre as igrejas daquela regiatildeo Na verdade a caracteriacutestica quase randocircmica da perseguiccedilatildeo parece ter produzido em muitos dos disciacutepulos das sete igrejas da Aacutesia a esperanccedila de poder escapar dela E o meio escolhido para isso em muitos casos parece ter sido a subserviecircncia disfarccedilada (ou natildeo) aos padrotildees idolaacutetricos romanos6 Contra esse cenaacuterio7 Joatildeo apregoou a bem-aventuranccedila da morte testemunhal8

Apocalipse menciona vaacuterias vezes a palavra ldquovitoacuteriardquo ou ldquovencerrdquo e descreve os vencedores em cada epiacuteteto das sete cartas Mas ao contraacuterio do que isso representava nas batalhas romanas o vencedor em Apocalipse natildeo eacute aquele que permanece vivo mas aquele que morre como Cristo que eacute o Cordeiro vencedor (Ap 55-6) Kowalski estaacute certo ao afirmar que ldquoo obje-tivo principal da metaacutefora do Cordeiro eacute encorajar o povo de Deus que estaacute passando por sofrimento e afliccedilatildeo dando-lhe a chance de se identificar com Cristo especialmente em seu sofrimento luta e ressurreiccedilatildeordquo9 De fato aleacutem de exaltar a nobreza e a dignidade da testemunha que fielmente recusa-se a ceder agraves exigecircncias idolaacutetricas e morre por Cristo Joatildeo igualmente destaca de maneira contiacutenua a recompensa desses mortos O simples fato de Joatildeo mencionar tantas vezes a expressatildeo ldquomortosrdquo ao longo do livro evidencia que

5 Nosso pressuposto eacute que o Apocalipse foi escrito pelo apoacutestolo Joatildeo por volta do ano 95 dC durante o reinado de Domiciano Sobre perseguiccedilatildeo ver Alan S Bandy ldquoPersecution and the purpose of Revelation with reference to Roman jurisprudencerdquo Bulletin for Biblical Research 23 n 3 (2013) 377-398 O autor argumenta convincentemente pelo caminho da jurisprudecircncia romana que tanto a ameaccedila quanto a perseguiccedilatildeo eram reais Para uma defesa de que Domiciano era um grande perseguidor ver WHC Frend Martyrdom and Persecution in the Early Church Oxford Basil Blackwell 1965 p 2211-2218

6 Price estabelece que no tempo de Domiciano havia uma expectativa em meio agrave populaccedilatildeo de expressotildees puacuteblicas de lealdade ao imperador cada vez mais fortes atraveacutes do culto imperial Essa pressatildeo era por parte dos proacuteprios cidadatildeos da Aacutesia Menor e era especialmente devotada nos momentos em que o imperador visitava as cidades ou nas datas nataliacutecias Frequentemente se associava a cultos locais e agraves aspiraccedilotildees das guildas comerciais da eacutepoca (S R F Price Rituals and Power The Roman Imperial Cult in Asia Minor Cambridge University Press 1984 p 78-222)

7 Ver a anaacutelise de Friesen onde ele conclui que os estudos em Apocalipse deveriam focar menos em supostos excessos de perseguiccedilatildeo sob Nero ou Domiciano e mais no caraacuteter normativo das atividades do culto imperial (Steven J Friesen Imperial Cults and the Apocalypse of John Reading Revelation in the Ruins Oxford University Press 2001 p 135-151)

8 Beale entende que ldquoo principal objetivo retoacuterico do argumento literaacuterio do Apocalipse de Joatildeo eacute exortar o povo de Deus a permanecer fiel ao chamado para seguir o exemplo paradoxal do Cordeiro e natildeo se comprometer tudo com o objetivo de herdar a salvaccedilatildeo finalrdquo (G K Beale The Book of Revelation p 171)

9 B Kowalski Martyrdom and Resurrection in The Revelation to John Andrews University Seminary Studies 411 (2003) p 55

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

12

o autor estaacute preocupado em explicar a situaccedilatildeo deles (Ap 15 69-11 1118 1413 1824 205 12-13) O livro encoraja os crentes a perseverarem ateacute o fim significando prioritariamente a necessidade de morrer por Cristo a fim de receber a grande recompensa de sua fidelidade (Ap 210 1211)

No entanto essas menccedilotildees expliacutecitas e diretas podem ser apenas a ponta do iceberg Haacute no nosso entendimento uma intrincada e desenvolvida teologia em favor do martiacuterio ao longo de todo o livro a qual se relaciona diretamente com o martiacuterio de Jesus Sweet lista quatro aspectos da relaccedilatildeo entre o martiacute-rio de Jesus e o martiacuterio de seus seguidores conforme o livro de Apocalipse estabelece

(a) O sofrimento dos cristatildeos eacute o resultado do testemunho que natildeo eacute apenas o testemunho acerca de Jesus mas o testemunho de Jesus que eles mantecircm

(b) Mantido fielmente este testemunho traz sofrimento para eles como trouxe para ele do mundo que provoca e atormenta

(c) Natildeo consiste no sofrimento mas em falar pelo Deus verdadeiro em palavra e comportamento contra a idolatria e imoralidade do mundo

(d) Em uacuteltima anaacutelise eacute vitorioso natildeo pelo efeito moral do sofrimento em que incorre mas pela vindicaccedilatildeo de Deus que destroacutei a oposiccedilatildeo10

A vitoacuteria sobre a morte aparece como a grande vindicaccedilatildeo dos maacutertires em Apocalipse A morte eacute um inimigo personificado no livro (68) Ela aparece como o grande adversaacuterio que Cristo jaacute conquistou exatamente por ter morrido (118) O uacuteltimo ato julgador de Cristo no final do livro eacute banir a morte para o lago de fogo (2014 214) Uma vez que essa morte ainda natildeo foi banida a igreja se vecirc diante dela tendo que enfrentaacute-la Do mesmo modo que Cristo obteve a vitoacuteria sobre esse inimigo tambeacutem para a igreja o melhor modo de vencer a morte eacute paradoxalmente morrer Assim o chamado ao martiacuterio eacute na verdade em Apocalipse natildeo a exaltaccedilatildeo de um momento miacutestico de sofri-mento (como muitas vezes parece ser na literatura posterior de martiacuterio) mas a certeza da verdadeira vitoacuteria Os crentes derrotam a morte quando morrem como Cristo morreu Tornam-se testemunhas vitoriosas perante o mundo e herdam o mundo vindouro

Desde o estudo de Trites eacute comum pensar que os termos maacutertir martiacuterio (μαρτυς μαρτυρία) e seus cognatos11 em Apocalipse natildeo tenham o significado semacircntico plenamente assumido de ldquomorte testemunhalrdquo que veio a ser am-

10 J P M Sweet Maintaining the Testimony of Jesus The Suffering of Christians in the Revelation of John In Suffering and Martyrdom in the New Testament William Horbory and Brian McNeil (Eds) Cambridge University Press 1981 p 101

11 Esses termos possuem grande peso semacircntico nos escritos atribuiacutedos a Joatildeo no Novo Testamento O conceito ocorre normalmente no iniacutecio e no final dos escritos Jo 17 e 1935 2124 1Jo 12 e 59 Ap 12 e 2220 (Ver A Pohl Die Offenbarung des Johanes Wuppertal Teil 1969 Ap 12)

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

13

plamente desenvolvido e generalizado no segundo seacuteculo a partir do Martiacuterio de Policarpo Trites estabelece cinco estaacutegios para a mudanccedila e consolidaccedilatildeo semacircntica do termo maacutertir (μαρτυς) Primeiro tinha apenas o sentido de teste-munho perante um tribunal sem implicaccedilatildeo de morte Em segundo lugar foi aplicado a algueacutem que testemunhou diante de um tribunal e foi morto como consequecircncia Em terceiro lugar a morte se tornou parte do testemunho Em quarto lugar a palavra μαρτυς assumiu o caraacuteter teacutecnico de morte Por uacuteltimo a noccedilatildeo de testemunho desapareceu do termo ficando exclusivamente a ideia de morte ou martiacuterio12 A conclusatildeo de Trites eacute que

O estudo do uso de μαρτυρία no Apocalipse leva agrave conclusatildeo de que a palavra ainda natildeo atingiu o estaacutegio em que sua definiccedilatildeo de dicionaacuterio eacute ldquomartiacuteriordquo Onde as ideias martiroloacutegicas estatildeo presentes elas devem ser deduzidas do contexto e natildeo de uma mudanccedila semacircntica no significado da palavra13

Assim para Trites a terminologia em Apocalipse estaacute ainda no terceiro estaacutegio movendo-se na direccedilatildeo do quarto e do quinto estaacutegios O estudo se-macircntico de Trites eacute uacutetil para nossa discussatildeo pois parece evidente que haacute uma evoluccedilatildeo terminoloacutegica poreacutem natildeo eacute possiacutevel localizar o conceito de martiacuterio em Apocalipse precisamente no terceiro estaacutegio justamente porque embora o termo natildeo signifique semanticamente ldquomorte testemunhalrdquo o conceito estaacute firmemente associado a isso pois a morte eacute praticamente uma consequecircncia necessaacuteria do testemunho A teologia martiroloacutegica do livro de Apocalipse se ancora no termo ldquotestemunhardquo Deste modo a definiccedilatildeo de Dragas precisa ser adicionada ldquoEacute preciso lembrar tambeacutem no entanto que no Apocalipse μαρτυς se refere agravequeles que testemunham atraveacutes da morte e que tanto An-tipas quanto o proacuteprio Jesus satildeo portanto as verdadeiras testemunhasrdquo14 De fato ldquoembora o vocabulaacuterio sobre testemunho no Apocalipse de um modo geral provavelmente natildeo se refira ao martiacuterio neste caso o termo μαρτυς estaacute relacionado com uma morte violentardquo15 Entendemos portanto que embora Apocalipse ainda natildeo use semanticamente o termo μαρτυς como substituto de morte testemunhal o livro foi grandemente responsaacutevel por essa identificaccedilatildeo posterior pois associou fortemente os sentidos Segundo a definiccedilatildeo de Van Henten ldquoum maacutertir eacute uma pessoa que se encontra em situaccedilatildeo extremamente hostil e prefere uma morte violenta a cumprir uma exigecircncia de autoridades

12 A A Trites ldquoμαρτυς and Martyrdom in the Apocalypse A Semantic Studyrdquo Novum Testamentum 15 (1973) p 72-73

13 Ibid p 7714 G Dragas ldquoMartyrdom and orthodoxy in the New Testament era the theme of martyria as

witness to the truthrdquo The Greek Orthodox Theological Review 30 n 3 (September 1985) p 29215 P H R van Houwelingen The Book of Revelation Full of Expectation Saacuterospataki Fuumlzetek

1 (2011) p 16

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

14

estrangeirasrdquo16 O conceito portanto nos parece presente no livro de Apoca-lipse fortemente associado ao uso do termo μαρτυς e seus cognatos

Existe uma noccedilatildeo bem estabelecida da importacircncia e do valor de uma morte testemunhal anterior ao Apocalipse17 E ao usar esse conceito associado ao termo μαρτυς o Apocalipse moldou fortemente o sentido nessa direccedilatildeo18 O termo martiacuterio em Apocalipse tem a conotaccedilatildeo de um testemunho a sustentaccedilatildeo de uma verdade que natildeo se abaixa diante das exigecircncias mundanas mas que persevera em fidelidade ateacute a morte Uma testemunha verdadeira soacute pode ser algueacutem que estaacute disposto a ir ateacute o fim nesse testemunho mesmo que even-tualmente ele natildeo seja morto violentamente Para definir o mais precisamente possiacutevel a discussatildeo entendemos que o testemunho em Apocalipse natildeo exige necessariamente uma morte violenta da testemunha mas exige a disposiccedilatildeo para tal morte

2 A PALAVRA DO TESTEMUNHOO Apocalipse expressa a ideia de que o comportamento esperado de

um verdadeiro cristatildeo eacute algo que entra em conflito direto com as condiccedilotildees exigecircncias e padrotildees de comportamento impostos pela sociedade romana da qual os cristatildeos das sete igrejas da Aacutesia faziam parte Ou seja de acordo com o Apocalipse se um cristatildeo realmente vivesse como devia viver em relaccedilatildeo a Deus isso de fato poderia levaacute-lo a sofrer consequecircncias como a perda de direitos comerciais aleacutem de ter que enfrentar processos judiciais complicados e perigosos pois ser acusado de falta de lealdade ao imperador romano era algo muito grave naqueles dias Aparentemente natildeo era todo dia que algum cristatildeo era levado perante as autoridades romanas por causa da sua feacute e isso mostra que por um lado a perseguiccedilatildeo natildeo era maciccedila mas por outro lado que provavelmente a maioria dos cristatildeos natildeo estivesse vivendo como um cristatildeo devia viver Roma natildeo os via como ameaccedila aos seus padrotildees sociais religiosos e culturais

16 Ver J W van Henten amp F Avemarie Martyrdom and Noble Death ndash Selected Texts from Graeco--Roman Jewish and Christian Antiquity London amp New York Routledge 2002 p 3-4

17 Como ficou estabelecido na tese de Van Henten que analisou o conceito de martiacuterio como herdado do judaiacutesmo especialmente de 2 e 4 Macabeus Van Henten estabelece que ldquoa figura do maacutertir eacute mais antiga que o Cristianismo e tem raiacutezes judaicasrdquo (J W van Henten The Maccabean Martyrs as Saviours of the Jewish people A Study of 2 and 4 Maccabees Leiden Brill 1997 p 7) A origem provavelmente estaacute nas histoacuterias contadas em Daniel 3 e 6 onde Daniel e seus trecircs amigos enfrentam a condenaccedilatildeo agrave morte diante das autoridades estrangeiras pelo motivo de se recusarem a descumprir ordens de seu Deus

18 Provavelmente eacute possiacutevel ver isso em livros canocircnicos anteriores ao Apocalipse como no livro de Atos onde os apoacutestolos e disciacutepulos satildeo chamados a serem μου μαρτυρες (At 18) O primeiro disciacute-pulo de Cristo a ser morto Estevatildeo eacute chamado de μαρτυρός σου Paulo ao ser comissionado tambeacutem recebe a designaccedilatildeo de testemunha (At 2616)

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

15

A mensagem central do livro pode ser entendida como um chamado divino para que os crentes das igrejas assumam a responsabilidade de serem testemunhas de Jesus diante da sociedade idoacutelatra Os cristatildeos nas sete igrejas precisavam seguir o exemplo de Cristo o qual sofreu perante as autoridades romanas na Judeia em razatildeo de ter permanecido fiel a Deus Jesus pagou o preccedilo da fidelidade atraveacutes de sua morte mas recebeu a recompensa disso em sua ressurreiccedilatildeo Portanto na visatildeo de Joatildeo os cristatildeos precisam entender o que significa ser uma testemunha de Jesus ou seja qual eacute o conteuacutedo desse testemunho quais satildeo os desafios e consequecircncias imediatas dessa atitude e finalmente quais satildeo as recompensas O Apocalipse foi escrito primordialmente para trazer esse conhecimento aos cristatildeos Eacute um chamado para uma atitude de mudanccedila e consagraccedilatildeo

Haacute uma frase que aparece diversas vezes no livro e que resume bem o significado desse chamado ou convocaccedilatildeo ldquopor causa da Palavra de Deus e do testemunho de Jesusrdquo Essas palavras de fato quase parecem um brado de guerra e resumem o senso de heroiacutesmo e fidelidade esperado dos verdadeiros cristatildeos conforme estabelecido no livro do Apocalipse Essas duas expressotildees aparecem com algumas variaccedilotildees seis vezes no livro atribuiacutedas a certas pes-soas que por causa delas enfrentam seacuterias dificuldades inclusive perseguiccedilotildees prisotildees e morte mas tambeacutem triunfam esplendidamente E ainda aparecem uma seacutetima vez de maneira resumida Listamos abaixo todas as sete vezes em que a frase pode ser vista (com pequenas modificaccedilotildees)19

Apocalipse 11-2 ndash Revelaccedilatildeo de Jesus Cristo que Deus lhe deu para mostrar aos seus servos as coisas que em breve devem acontecer e que ele enviando por intermeacutedio do seu anjo notificou ao seu servo Joatildeo o qual atestou a palavra de Deus e o testemunho de Jesus Cristo quanto a tudo o que viu

Apocalipse 19 ndash Eu Joatildeo irmatildeo vosso e companheiro na tribulaccedilatildeo no reino e na perseveranccedila em Jesus achei-me na ilha chamada Patmos por causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus

Apocalipse 69 ndash Quando ele abriu o quinto selo vi debaixo do altar as almas daqueles que tinham sido mortos por causa da palavra de Deus e por causa do testemunho que sustentavam

Apocalipse 1217s ndash Irou-se o dragatildeo contra a mulher e foi pelejar com os res-tantes da sua descendecircncia os que guardam os mandamentos de Deus e tem o testemunho de Jesus e se pocircs em peacute sobre a areia do mar20

19 As modificaccedilotildees na frase em suas apariccedilotildees parecem intencionais e fazem parte do estilo de Joatildeo que poderia ser denominado de ldquoparalelismo progressivordquo

20 Em Apocalipse 1217 haacute uma mudanccedila interessante nos termos com ldquopalavrardquo sendo substituiacuteda por ldquomandamentosrdquo

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

16

Apocalipse 1412 ndash Aqui estaacute a perseveranccedila dos santos os que guardam os mandamentos de Deus e a feacute em Jesus21

Apocalipse 204 ndash Vi tambeacutem tronos e nestes sentaram-se aqueles aos quais foi dada autoridade de julgar Vi ainda as almas dos decapitados por causa do testemunho de Jesus bem como por causa da palavra de Deus tantos quantos natildeo adoraram a besta nem tampouco a sua imagem e natildeo receberam a marca na fronte e na matildeo e viveram e reinaram com Cristo durante mil anos

Aleacutem dessas seis ocorrecircncias em Apocalipse 1211 haacute uma abreviaccedilatildeo que parece ser intencional para essa dupla declaraccedilatildeo palavramandamentos e testemunhofidelidade A expressatildeo eacute traduzida como ldquopalavra do testemunhordquo e eacute a causa da vitoacuteria dos crentes sobre o dragatildeo Ou seja eacute a disposiccedilatildeo deles de morrer por Cristo que garante sua vitoacuteria ldquoEles pois o venceram por causa do sangue do Cordeiro e por causa da palavra do testemunho que deram e mesmo em face da morte natildeo amaram a proacutepria vidardquo

Essa ldquopalavra do testemunhordquo eacute o ato de um cristatildeo verdadeiro em defen-der a verdade de Deus diante do mundo em viver de acordo com ela mesmo sabendo que isso acarretaraacute perseguiccedilotildees perdas sofrimentos e em uacuteltimo caso a proacutepria morte

Aleacutem disso nota-se que os termos correlatos ldquotestemunhardquo ldquotestemunhordquo ou o verbo ldquotestemunharrdquo tambeacutem aparecem em outros lugares do livro Em grego esses termos podem ser transliterados como ldquomaacutertirrdquo ldquomartiacuteriordquo ldquomar-tirizarrdquo (μαρτυς μαρτυρία μαρτυρειν) O termo testemunho como algo que deve ser sustentado e que causa a proacutepria morte daqueles que o datildeo aparece como a tarefa que eacute dada agraves duas testemunhas em Apocalipse 117 ldquoQuando tiverem entatildeo concluiacutedo o testemunho que devem dar a besta que surge do abismo pelejaraacute contra elas e as venceraacute e mataraacuterdquo Percebemos que as duas testemunhas satildeo mortas pela besta que sobe do abismo Em Apocalipse 204 a causa da morte das almas foi justamente ldquonatildeo adorar a bestardquo

O termo μαρτυρία ldquotestemunhordquo aleacutem das ocorrecircncias mencionadas acima tambeacutem aparece em Apocalipse 15 onde o proacuteprio Jesus eacute descrito como ldquoa testemunha fielrdquo (ο μαρτυς ο πιστός) Essa expressatildeo provavelmente indica sua morte na cruz (tambeacutem em Apocalipse 314) Por causa disso em Apocalipse 213 Antipas que foi morto em Peacutergamo eacute chamado pelo proacuteprio Cristo de ldquominha testemunha fielrdquo (μαρτυς μου ο πιστός μου)

O tabernaacuteculo celestial eacute denominado em Apocalipse 155 como o santuaacuterio do tabernaacuteculo do testemunho Essa expressatildeo provavelmente aponta para os maacutertires reunidos no ceacuteu que satildeo vingados pelos flagelos que comeccedilam

21 Em Apocalipse 1412 ldquopalavrardquo eacute substituiacuteda por ldquomandamentosrdquo e ldquotestemunhordquo por ldquofideli-daderdquo ou ldquofeacuterdquo

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

17

a ser derramados depois Em Apocalipse 176 a grande prostituta eacute descrita como becircbada com o sangue das testemunhas de Jesus Aleacutem disso a expressatildeo ldquotestemunho de Jesusrdquo aparece duas vezes em 1910 com uma relaccedilatildeo direta com 229 onde tambeacutem aparece a expressatildeo para guardar as palavras do livro

Finalmente nos uacuteltimos seis versiacuteculos do livro haacute trecircs usos do termo ldquotestemunhordquo em sua forma verbal Em 2216 Jesus relembra o envio do anjo para mostrar a Joatildeo a visatildeo (descrita primeiro em 11) ldquoEu Jesus enviei o meu anjo para vos testificar estas coisas agraves igrejasrdquo Em 2218 o termo testemunho eacute usado como um aviso contra acreacutescimos ou subtraccedilotildees sobre o conteuacutedo do livro Em 2220 Jesus se autodenomina ldquoaquele que daacute testemunhordquo e anuncia seu retorno em breve

Por isso o chamado ao testemunho eacute a grande mensagem do livro e eacute o aspecto central que queremos demonstrar neste artigo Apocalipse eacute um cha-mado ao verdadeiro testemunho Infelizmente as sete igrejas da Aacutesia estavam falhando em dar esse testemunho naqueles dias e do mesmo modo a igreja atual tambeacutem pode estar falhando

3 O CHAMADO AO MARTIacuteRIO NAS SETE CARTASOs cristatildeos das sete cidades imperiais natildeo eram oriundos apenas das clas-

ses mais baixas da populaccedilatildeo muitos eram comerciantes ricos e bem-sucedidos (Ap 317)22 Eles ajudavam a abastecer o comeacutercio imperial com bens e serviccedilos Muitos eram comerciantes navais (Ap 189-19)23 Para natildeo perderem privileacute-gios nesse sentido evitavam entrar em confronto com as autoridades romanas e com a populaccedilatildeo em geral Para esses cristatildeos o Apocalipse foi endereccedilado como um alerta contra o perigo de se acomodar ao status quo dominante e participar do culto imperial24 Eacute provaacutevel que como diz Collins muitos dos leitores para quem Joatildeo escreveu o Apocalipse nem sequer percebiam a crise que os cercava25 Estavam de tal modo envolvidos com a vida romana que nem

22 Ver o estudo de Wayne Meeks sobre a origem social dos crentes a partir das cartas paulinas Ele conclui que os crentes vinham menos dos extremos das classes sociais romanas altas e baixas sendo na sua maioria artesatildeos e pequenos comerciantes (WA Meeks The First Urban Christians The Social World of the Apostle Paul New Haven Yale University Press 1983 p 73 Ver tambeacutem A J Malherbe Social Aspects of Early Christianity Baton Rouge LA Louisiana State University Press 1977 p 29-32) Ver ainda o resumo sobre o status social dos cristatildeos em L L Thompson The Book of Revelation p 128-129

23 Ver nesse sentido a bem fundamentada tese de J Nelson Kraybill Imperial Cult and Commer-ce in Johnrsquos Apocalypse Journal for the Study of the New Testament Supplement Series 132 Shefield Academic Press 1996 Sobre a relaccedilatildeo entre economia e religiatildeo ver tambeacutem Leonard L Thompson The Book of Revelation p 171-197 R M Royalty The Streets of Heaven The Ideology of Wealth in the Apocalypse of John Macon GA Mercer University Press 1998

24 Price faz uma anaacutelise dos motivos pelos quais as pessoas da Aacutesia Menor participavam do culto imperial Ver Rituals and Power p 234-48

25 Adela Yarbro Collins Crisis and Catharsis The Power of the Apocalypse Philadelphia West-minster 1984 p 77 A autora entende que o culto imperial natildeo era um problema para a maioria das

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

18

percebiam os riscos de idolatria agrave sua volta Poreacutem apoacutes lerem o Apocalipse teriam que tomar uma decisatildeo26

As igrejas estavam sofrendo basicamente por dois motivos problemas internos e externos Externamente como dissemos havia um clima de ameaccedila de perseguiccedilotildees e tambeacutem algumas perseguiccedilotildees pontuais por parte das au-toridades do Impeacuterio Apocalipse daacute a entender que muitos cristatildeos estavam sentindo a ameaccedila de serem cerceados em seus direitos civis mesmo como cidadatildeos romanos com perda de funccedilotildees cargos e bens E alguns temiam sofrer sanccedilotildees ainda maiores como prisatildeo escravidatildeo e morte Como jaacute dis-semos ser cristatildeo no primeiro seacuteculo costumava envolver um certo risco de perder coisas a liberdade ou a proacutepria vida O proacuteprio Joatildeo apoacutestolo de Cristo se encontrava preso como grande evidecircncia do preccedilo a ser pago27 Ao que parece muitos cristatildeos natildeo estavam dispostos a pagar esse preccedilo e tentavam encontrar maneiras de fugir agraves puniccedilotildees sem necessariamente abandonar a feacute cristatilde Isso provavelmente gerava o segundo grave problema que a maioria das igrejas enfrentava a abertura para os falsos ensinos e a imoralidade Aleacutem dos pecados tradicionais como desuniatildeo brigas fornicaccedilatildeo etc um tipo de impureza doutrinaacuteria e moral parecia estar muito ligado agrave questatildeo da ameaccedila de perseguiccedilatildeo e ao desejo de escapar dela Informaccedilotildees histoacutericas mostram que o culto imperial permeava todos os aspectos da vida das cidades e vilas da Aacutesia Menor de maneira que era impossiacutevel uma pessoa aspirar a uma melhor condiccedilatildeo social e econocircmica sem participar em algum grau do culto romano28 Cidadatildeos tanto das classes altas quanto das baixas eram convocados a oferecer sacrifiacutecios ao imperador em vaacuterias ocasiotildees e nas cidades principais como Eacutefeso fundos puacuteblicos eram distribuiacutedos para que os cidadatildeos pudessem pagar pelos sacrifiacutecios de modo que natildeo participar desses eventos era considerado deslealdade e falta de patriotismo incorrendo nas penalidades legais29

igrejas ou seja muitos crentes da regiatildeo natildeo pensavam que eram proibidos de participar por causa de sua convicccedilatildeo cristatilde Kraybill sustenta que ldquoas comunidades cristatildes da Aacutesia Menor provavelmente ex-perimentaram mais desejo interno de se conformar agrave sociedade pagatilde do que pressatildeo externa no caminho da perseguiccedilatildeordquo (Imperial Cult p 196)

26 J P M Sweet diz ldquoA parte apocaliacuteptica natildeo eacute tanto um ataque ao mundo para encorajar a Igreja mas um ataque agrave Igreja que estaacute abraccedilando o mundo ndash para seu proacuteprio perigo mortal e na traiccedilatildeo de seu verdadeiro papel de convencer o mundo por seu testemunho para a salvaccedilatildeo do mundordquo (Mantaining the testimony of Jesus in Suffering and Martyrdom in the New Testament Eds William Horbory and Brian McNeil Cambridge University Press 1981 p 102-103)

27 Apesar de Thompson sugerir que Joatildeo pudesse ter ido a Patmos para pregar o Evangelho (Apo-calyse and Empire p 172-173) a maior parte dos inteacuterpretes inclusive os pais da igreja entende que ele havia sido aprisionado De fato os termos θλίψει e ὑπομονῇ que ele usa para descrever sua estada em Patmos sugerem prisatildeo mais do que apenas pregaccedilatildeo

28 Ver Price Rituals and Power p 101-132 Friesen Imperial Cults and the Apocalypse of John p 135-151

29 Ver Beale Revelation p 240-241 Price Rituals and Power p 78-121

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

19

Os falsos mestres ensinavam maneiras de as pessoas escaparem das perseguiccedilotildees pelo caminho da infidelidade A menccedilatildeo aos nicolaiacutetas30 aos seguidores de um tipo moderno de ldquoBalaatildeordquo e uma moderna ldquoJezabelrdquo que aparecem em quase todas as cartas satildeo indicaccedilotildees nesse sentido Suas doutri-nas claramente liberavam as pessoas do compromisso de santidade por isso tambeacutem logicamente as livravam das sanccedilotildees puacuteblicas

Eacutefeso em princiacutepio parece um exceccedilatildeo nesse sentido A igreja recebe um inesperado elogio quando Cristo diz ldquoTens contudo a teu favor que odeias as obras dos nicolaiacutetas as quais eu tambeacutem odeiordquo (26) A cidade era a metroacutepole da Aacutesia Menor31 Certamente continha a igreja mais importante daquela regiatildeo32 Os efeacutesios ao menos no comeccedilo recusaram seguir o caminho alternativo indicado pelos falsos apoacutestolos aquele que os liberava de ldquosofrer provas por causa do nome de Jesusrdquo ao contraacuterio mostraram ldquolabor e perseve-ranccedilardquo (κόπον καὶ τὴν ὑπομονήν) Eles seguiram o caminho do sofrimento da perda de direitos perante as autoridades mas natildeo da perda da fidelidade diante de Deus Mas ao que parece a situaccedilatildeo mudou depois de um tempo pois o Senhor acusa a igreja ldquoTenho poreacutem contra ti que abandonaste o teu primei-ro amorrdquo Provavelmente isso significava uma falta de zelo no testemunho puacuteblico do Evangelho33 O chamado ao arrependimento por certo significava um chamado viril ao testemunho para voltar a suportar fielmente as provas por causa de Cristo Portanto Eacutefeso natildeo deu espaccedilo aos falsos pregadores mas no final natildeo se saiu melhor do que as outras igrejas fracassando no testemunho perante o mundo por medo das consequecircncias

Esmirna era uma igreja fiel Ela recebe elogios e forte admoestaccedilatildeo de Cristo a permanecer fiel a continuar imitando a Cristo o que a coloca como igreja padratildeo no livro Para ela Cristo se reapresenta nos termos jaacute ouvidos no capiacutetulo 1 o ldquoprimeiro e uacuteltimo que esteve morto e tornou a viverrdquo O Cristo que experimentou o sofrimento e a morte se identifica com a igreja sofredora

30 Natildeo parece haver razatildeo para a ligaccedilatildeo feita por Irineu entre os nicolaiacutetas e o proseacutelito Nicolau mencionado em Atos 65 (Adv Haereses 1263 3111) Outros pais da igreja como Hipoacutelito (Hae-reses 724) disseram que se tratava de uma seita gnoacutestica que praticava imoralidade Segundo Beale ldquoos nicolaiacutetas ensinavam que algum grau de participaccedilatildeo na cultura idoacutelatra de Eacutefeso era permissiacutevelrdquo (Revelation 233) Thompson diz que eram forasteiros que tentavam se estabelecer na igreja de Eacutefeso (Apocalypse and Empire p 12) Fiorenza afirma que os nicolaiacutetas ldquoexpressam sua liberdade em um comportamento libertinordquo (Apocalyptic and Gnosis p 570)

31 Efeacuteso se tornou proeminente no tempo de Domiciano com a instalaccedilatildeo do culto provincial ao imperador (S J Friesen Twice Neokoros Ephesus Asia and the Cult of the Flavian Imperial Family Leiden Brill 1993 p 41-49)

32 G E Ladd A Commentary on the Revelation of John Grand Rapids Eerdmans 1972 p 30 Foi o lugar em que Paulo pastoreou e antes de ir embora advertiu contra os falsos mestres e falsos ensinos que poderiam vir apoacutes a sua partida (At 2028-31)

33 Beale Revelation p 230

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

20

de Esmirna com as palavras ldquoconheccedilo a tua tribulaccedilatildeordquo O estado paradoxal ldquopobreza (material) versus riqueza (espiritual)rdquo tambeacutem foi algo experimentado por Cristo E as blasfecircmias dos ldquofalsos judeusrdquo que parecem ter agido como acusadores perante as autoridades romanas tambeacutem estatildeo evocadas aqui A falta de explicaccedilotildees adicionais para a expressatildeo ldquosinagoga de Satanaacutesrdquo quanto agrave sinagoga judaica existente em Esmirna nos impede de ter certeza acerca da iden-tidade desses ldquofalsosrdquo judeus34 Poreacutem levando em consideraccedilatildeo que Satanaacutes eacute chamado de ldquogrande acusadorrdquo em Apocalipse 1210 parece justificar a ideia de que provavelmente se deva agrave atitude acusatoacuteria adotada pelos judeus contra os cristatildeos perante as autoridades romanas35 Essa parece ser a maior ameaccedila de perseguiccedilatildeo contemplada no livro de Apocalipse Os judeus de Esmirna natildeo queriam conceder aos cristatildeos o mesmo privileacutegio de praticar sua religiatildeo fora da Judeia e provavelmente acusavam os cristatildeos perante as autoridades de-monstrando que eles natildeo eram judeus e assim incitavam as autoridades contra os cristatildeos36 Por essa atitude sem misericoacuterdia aqueles judeus se revelavam como ldquofalsos judeusrdquo pois apesar do sangue e da descendecircncia judaica natildeo agiam como filhos de Deus e sim como ldquofilhos do diabordquo (Jo 844)37 Para essa igreja tatildeo identificada com ldquoa testemunha fielrdquo (Ap 15 ndash ο μαρτυς ο πιστός) o Senhor Jesus diz ldquoNatildeo temas as coisas que tens de sofrerrdquo Esse parece ser o grande incentivo do Apocalipse para uma disposiccedilatildeo ao martiacuterio Do mesmo modo como Cristo tocou Joatildeo quando este estava ldquocomo mortordquo e lhe disse ldquonatildeo temas eu sou o primeiro e o uacuteltimo e tenho as chaves da morte e do Hadesrdquo (Ap 117-18) agora ele conforta a igreja de Esmirna Certamente no sofrimento e morte estaacute a promessa da recompensa daquele que pode abrir

34 Van Henten observa que ldquoagrave exceccedilatildeo das referecircncias a Satanaacutes e ao diabo (29-10) o decreto permanece um tanto vago sobre quem eacute responsaacutevel pelo sofrimento dos fieacuteis em Esmirnardquo (Martyrdom p 590) Ver tambeacutem a discussatildeo na nota 14 da mesma paacutegina sobre autores que assumem posiccedilotildees diferentes sobre a identidade desses judeus

35 Friesen entende que Joatildeo fez uso de ironia e sarcasmo nesse ponto como uma forma de ldquovi-lificaccedilatildeordquo (termo de A Y Collins ldquoVilification and Self-Definition in the Book of Revelationrdquo HTR 79 (1986) 308ndash20) Steve Friesen Sarcasm in Revelation 2ndash3 Churches Christians True Jews and Satanic Synagogues In David L Barr The Reality of Apocalypse Rhetoric and Politics in the Book of Revelation Number 39 Leiden Boston Brill 2006 127-144

36 Segundo informaccedilotildees histoacutericas ateacute a segunda metade do primeiro seacuteculo os cristatildeos desfru-tavam de certa liberdade de culto debaixo do guarda-chuva do judaiacutesmo pois as autoridades romanas natildeo distinguiam o cristianismo do judaiacutesmo Os judeus desfrutavam de certa toleracircncia por parte dos romanos natildeo eram obrigados a sacrificar a Ceacutesar como deus mas apenas como governante Apoacutes o tempo de Nero novas religiotildees natildeo foram permitidas em Roma entatildeo os judeus tentaram mostrar aos romanos que o cristianismo natildeo era o judaiacutesmo Ver Beale Revelation p 240

37 No Martiacuterio de Policarpo existe uma descriccedilatildeo interessante nesse sentido quando o prococircnsul proclama diante da multidatildeo no estaacutedio que Policarpo eacute um cristatildeo Entatildeo a multidatildeo composta de gentios e judeus que habitavam em Esmirna testemunhara contra Policarpo dizendo que ele pregava contra os deuses e ensinava a natildeo oferecer sacrifiacutecios Por causa disso Policarpo foi condenado agrave morte (MPoly 121-2)

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

21

o Hades O Cristo que padeceu a morte nas matildeos dos romanos por causa da acusaccedilatildeo dos judeus anima sua igreja a passar pela mesma situaccedilatildeo pois ldquoeles sofreram por isso nas matildeos dos judeus os quais assim se mostraram servos de Satanaacutes (29 39)rdquo38 Que sejam portanto imitadores de Cristo Devem imitaacute-lo na maneira como satildeo acusados pelos judeus na maneira como satildeo julgados e condenados mas tambeacutem na maneira como Cristo triunfou

Ele anuncia prisatildeo prova e tribulaccedilatildeo de dez dias39 para a igreja Isso significava que a acusaccedilatildeo dos judeus perante as autoridades levaria agrave prisatildeo de alguns irmatildeos da igreja de Esmirna40 Provavelmente exista aqui uma inter-textualidade com o tempo de teste de Daniel e seus trecircs amigos em Babilocircnia que solicitaram dez dias ao rei para provar que comendo soacute legumes sem participar das iguarias da mesa do rei poderiam se manter mais saudaacuteveis do que os outros (Dn 112-15)41 Se essa interpretaccedilatildeo estaacute correta Joatildeo estava dizendo aos crentes de Esmirna que eles natildeo podiam se beneficiar das vanta-gens da cidadania romana uma vez que isso os obrigava a participar dos cultos idolaacutetricos A consequecircncia entretanto para essa recusa seria sofrimento certo e provavelmente morte

Do mesmo modo que Cristo que se apresentou como aquele que este-ve morto mas tornou a viver ou seja a ldquotestemunha fiel e o primogecircnito dos mortosrdquo a igreja tambeacutem eacute chamada a permanecer ldquofiel ateacute a morterdquo (πιστὸς ἄχρι θανατου) pois do mesmo modo experimentaraacute a gloriosa recompensa de receber ldquoa coroa da vidardquo (τὸν στέφανον τῆς ζωῆς) Isso soacute pode portanto ser uma referecircncia agrave ressurreiccedilatildeo42 Poreacutem a proacutexima declaraccedilatildeo parece esclarecer detalhadamente a que isso se refere ldquoO vencedor de nenhum modo sofreraacute dano da segunda morterdquo (Ap 211) Ou seja quem permanecer fiel ldquoateacute a morterdquo (ἄχρι θανατου) o que daacute a ideia natildeo de um periacuteodo de tempo ateacute a morte mas de uma fidelidade que pode resultar em morte43 natildeo sofreraacute a destruiccedilatildeo da

38 J P M Sweet Mantaining the testimony of Jesus p 10639 O tempo da tribulaccedilatildeo como sendo de ldquodez diasrdquo provavelmente natildeo seja uma referecircncia a

um periacuteodo literal antes aponta para o aspecto perverso e maligno dessa detenccedilatildeo O nuacutemero dez em Apocalipse estaacute associado agraves forccedilas malignas (Ap 916 123 131)

40 As autoridades romanas podiam lanccedilar pessoas em prisatildeo para manter a ordem puacuteblica mesmo antes de serem condenadas (At 1623-24) O aprisionamento permitia aos oficiais realizar a acusaccedilatildeo e pressionar o acusado ateacute obter uma confissatildeo como aparece na carta de Pliacutenio o Moccedilo (Ep 10963-4) As pessoas eram mantidas na prisatildeo indefinidamente ateacute que que a sentenccedila fosse imposta a qual podia ser multa banimento ou morte Ver Craig R Koester Revelation A New Translation with Introduction and Commentary org John J Collins vol 38A Anchor Yale Bible New Haven London Yale University Press 2014 p 276 Esse ato era chamado de procedimento cognitio

41 Beale Revelation p 24242 Ver B Kowalski Martyrdom and Resurrection p 5843 A construccedilatildeo significa ldquonatildeo fiel ateacute a hora da morte mas fiel ateacute uma medida que suportaraacute a

morte por amor de Cristo Eacute um termo intensivo natildeo extensivordquo (Marvin Richardson Vincent Word

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

22

ldquosegunda morterdquo O proacuteximo lugar no Apocalipse onde a expressatildeo ldquosegunda morterdquo aparece eacute justamente 206 onde se diz que os participantes da ldquoprimeira ressurreiccedilatildeordquo estatildeo livres da segunda morte Nesse mesmo texto eacute declarado que as almas dos decapitados reinam com Cristo durante os mil anos Portan-to eacute possiacutevel concluir preliminarmente que ldquoa coroa da vidardquo prometida aos vencedores em Esmirna era participar da primeira ressurreiccedilatildeo Tal aconteceria se os crentes se mantivessem fieacuteis ateacute o ponto de morrerem por causa disso Entatildeo semelhantemente a Cristo tambeacutem viveriam novamente A coroa da vida portanto parece ser uma recompensa especial para os mortos fieacuteis uma distinccedilatildeo de participar diretamente do reinado de Cristo (204) passando pe-las portas do Hades diretamente para o ceacuteu Em resumo vale a pena ser uma testemunhamaacutertir de Cristo

A ameaccedila da morte que ainda era uma sombra futura para os crentes de Esmirna aparece como um fato consumado ao menos para uma pessoa em Peacutergamo A igreja ficava numa cidade imperial uma antiga cidade fortaleza conquistada por Roma e transformada num importante centro de adoraccedilatildeo ao imperador romano44 Peacutergamo era um centro do culto a Ascleacutepio uma divin-dade representada por uma serpente poreacutem isso natildeo parece estar agrave altura do desafio pretendido pela expressatildeo ldquotrono de Satanaacutesrdquo Eacute mais seguro identificar a expressatildeo como uma alusatildeo ao forte paganismo de Peacutergamo simbolizado no grande altar que provavelmente dominava a acroacutepole onde ficava o centro de adoraccedilatildeo ao Ceacutesar45

A menccedilatildeo agrave morte de um cristatildeo daquela igreja se reveste de grande significado Aparentemente eacute a uacutenica pessoa que recebe um nome proacuteprio em Apocalipse aleacutem do proacuteprio Joatildeo46 Eacute possiacutevel concordar com Kraybill que ldquoo fato de Antipas ser o uacutenico maacutertir mencionado no Apocalipse sugere que a perseguiccedilatildeo letal era possiacutevel mas ainda natildeo era comum para os cristatildeos na Aacutesia Menorrdquo47 Isso reforccedila a ideia de que o martiacuterio era uma possibilidade um tanto remota para os cristatildeos das sete igrejas48 De fato talvez por ser remota

studies in the New Testament New York Charles Scribnerrsquos Sons 1887 2445) A referecircncia natildeo eacute ldquoateacuterdquo mas ldquomesmo querdquo (Henry Alford The Greek Testament Boston Lee and Shepard 1872 4567)

44 W Ramsay The Letters to the Seven Churches of Asia London Hodder amp Stoughton 1904ss45 H B Swete Apocalypse of St John the Greek Text Grand Rapids Eerdmans 1951 p 34-35

Aune lista ao menos oito possibilidades de interpretar a expressatildeo ldquotrono de Satanaacutesrdquo (D E Aune Re-velation Word Biblical Commentary Dallas Word 1998 52A 182-183)

46 Considerando que Jezabel mencionada na carta agrave igreja de Tiatira natildeo seja realmente um nome proacuteprio

47 Imperial Cult p 3448 Eacute preciso reconhecer que claramente o episoacutedio de Antipas fazia parte do passado (Paul B

Duff The Synagogue of Satan Crisis Mongering and the Apocalypse of John In David L Barr The Reality of Apocalypse p 161) Poreacutem aparentemente um passado recente (M Gilbertson God and History in the Book of Revelation New Testament Studies in Dialogue with Pannenberg and Moltmann Cambridge University Press 2003 p 110)

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

23

era uma possibilidade que natildeo os preocupasse cotidianamente Se eles natildeo se indispusessem de algum modo diretamente contra Roma provavelmente natildeo sofreriam grandes consequecircncias No entanto essa tepidez eacute condenada no Apocalipse A posiccedilatildeo de Antipas eacute destacada Se Esmirna eacute o grande exem-plo de igreja Antipas eacute o grande exemplo de cristatildeo que o livro quer destacar Natildeo eacute apenas a menccedilatildeo ao nome mas principalmente os termos aplicados a ele por Cristo que chamam a atenccedilatildeo Antipas minha testemunha meu fiel

(Ἀντιπᾶς ο μαρτυς μου ο πιστός μου) Natildeo pode haver nenhuma duacutevida de que com essas palavras Antipas estaacute sendo descrito como algueacutem que morreu por Cristo49 Esses termos foram usados para descrever a execuccedilatildeo de Jesus em Apocalipse 15 E isso foi exatamente o que aconteceu com Antipas50 pois Joatildeo diz ldquoo qual foi morto entre voacutes onde Satanaacutes habitardquo A expressatildeo pode ser traduzida como ldquoo qual foi executado diante de vocecircs aiacute onde Satanaacutes habitardquo (ὃς ἀπεκτανθη παρʼ ὑμιν ὅπου ο Σατανᾶς κατοικει) Sem duacutevida sugere-se uma execuccedilatildeo puacuteblica51 forense52 semelhante agrave de Jesus Natildeo haacute registro do motivo ou mesmo do meacutetodo da execuccedilatildeo de Antipas mas pode se deduzir que ele se recusou a fazer aquilo que era defendido pelos nicolaiacutetas e baalamitas que eram admirados em Peacutergamo ou seja recusou-se a participar do culto ao imperador53 e deve ter feito isso de maneira irredutiacutevel Entatildeo foi executado como testemunha de Jesus

O notaacutevel exemplo de Antipas entretanto natildeo parece ter produzido muito efeito positivo nos demais cristatildeos de Peacutergamo os quais natildeo parecem valorizar o fato e pode ter produzido ateacute mesmo uma reaccedilatildeo contraacuteria Provavelmente temerosos de ter que enfrentar um destino tatildeo cruel quanto a execuccedilatildeo por traiccedilatildeo perante as autoridades os cristatildeos de Peacutergamo seguiram o caminho alternativo oferecido pelos falsos mestres

49 Natildeo parece haver razatildeo para a aparente duacutevida de Thompson nesse sentido Ver L L Thomp-son Ordinary Lives John and His First Readers In David L Barr Reading the Book of Revelation A Resource for Students Atlanta Society of Biblical Literature 2003 p 41

50 Nenhuma informaccedilatildeo adicional eacute dada sobre Antipas Provavelmente o nome seja a abreviaccedilatildeo de Antipater um nome comum tanto entre judeus quanto entre gregos A tradiccedilatildeo posterior descreveu Antipas sendo morto apoacutes o interrogatoacuterio pelo prefeito romano Ele foi colocado dentro da estaacutetua oca de um touro de bronze posto sobre o fogo e assado ateacute a morte (Ver Acta Sanc 23-5)

51 Aune traduz a expressatildeo como ldquoque foi publicamente executado onde Satanaacutes habitardquo David E Aune Revelation 1-5 vol 52A p 1178

52 Collins Persecution and Vengeance p 73353 Thompson natildeo vecirc motivos para conectar a morte de Antipas com a adoraccedilatildeo ao imperador Ele

argumenta que a referecircncia ao trono de Satanaacutes provavelmente se refere ao ldquogrande altar de Zeus em Peacutergamordquo ou talvez ldquoao culto de Ascleacutepio e ao centro meacutedico laacute existenterdquo (The Book of Revelation p 173) Poreacutem eacute mais provaacutevel que tivesse relaccedilatildeo com o culto ao imperador pois eacute difiacutecil pensar numa execuccedilatildeo nesses outros dois casos apenas Ou mesmo uma conjunccedilatildeo de fatores pela negaccedilatildeo de Antipas em participar de qualquer um desses cultos

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

24

O mesmo se deu com Tiatira e Sardes igrejas que natildeo recebem nenhum elogio da parte de Cristo mas aparecem como comprometidas com a visatildeo dos grupos condenados por Joatildeo Um desses grupos Joatildeo o compara a Bala-que rei dos moabitas e ao profeta Balaatildeo do Antigo Testamento (Nm 22-25) Balaque contratou Balaatildeo para amaldiccediloar o povo de Israel que marchava no deserto poreacutem o profeta se viu impedido de fazer isso por restriccedilatildeo divina Consequentemente orientou Balaque a armar ciladas contra os israelitas oferecendo mulheres a fim de seduzir os homens de Israel para que pecassem contra Deus (Nm 3116) Portanto duas praacuteticas estavam sendo incentivadas em Peacutergamo como um modo de provavelmente fugir das sanccedilotildees imperiais comer carnes sacrificadas aos iacutedolos (no mercado e nas festas)54 e talvez ateacute mesmo participar de orgias sexuais com as prostitutas cultuais que ficavam nos vaacuterios templos de Peacutergamo55 Existe alguma possibilidade de que esses falsos mestres fossem um tipo de ldquognoacutesticos primitivosrdquo56 que ensinavam uma espeacutecie de ldquoseparaccedilatildeordquo entre os aspectos carnais e espirituais da vida Assim talvez dissessem que participar das festas e orgias era uma atitude carnal que no entanto natildeo afetava o espiacuterito tranquilizando a consciecircncia dos crentes Os nicolaiacutetas que foram rejeitados em Eacutefeso foram aceitos em Peacutergamo A frase ldquotambeacutem tu tens os que da mesma forma sustentam a doutrina dos nicolaiacutetasrdquo estabelece uma similaridade entre as praacuteticas dos dois grupos57 No entanto o fato de Jesus mencionaacute-los aqui como um grupo separado pode levar agrave de-finiccedilatildeo da posiccedilatildeo especiacutefica dos nicolaiacutetas eles defendiam a participaccedilatildeo no culto ao imperador

A cidade de Tiatira era famosa na antiguidade por causa de seu comeacutercio de roupas e tinturas (At 1614)58 Era uma cidade na qual as mulheres de-sempenhavam funccedilotildees importantes Segundo o entendimento do Apocalipse certa mulher estava exercendo uma autoridade nefasta sobre a igreja Ela se autoproclamava ldquoprofetisardquo e ensinava os crentes a praticarem a prostituiccedilatildeo e a comerem coisas sacrificadas Joatildeo a chama de ldquoJezabelrdquo numa referecircncia agrave

54 Apesar do ensino paulino sobre comer tudo o que eacute vendido no mercado sem questionar a procedecircncia (1Co 1025) para os crentes de Peacutergamo isso era difiacutecil pois a procedecircncia das carnes era praticamente uma soacute o culto pagatildeo

55 Para uma anaacutelise da figura de Balaatildeo no Apocalipse ver Jan Willem van Henten ldquoBalaam in Revelation 214rdquo In The Prestige of the Pagan Prophet Balaam in Judaism Early Christianity and Islam George H van Kooten e Jacques van Ruiten (Orgs) Leiden Brill 2008 p 233-46

56 R H Charles A Critical and Exegetical Commentary on The Revelation of St John ndash The In-ternational Critical Commentary Edinburgh T amp T Clark 1920 1979 p 63 WHC Frend ldquoThe Gnostic Sects and the Roman Empirerdquo JEH 5 (1954) p 25-37

57 Beale sugere que ldquonicolaiacutetasrdquo (Νικολαϊτῶν) pudesse ser o tiacutetulo da seita dos seguidores de Balaatildeo pois o significado de Nicolau eacute ldquoaquele que conquista as pessoasrdquo enquanto que uma possiacutevel traduccedilatildeo para Balaatildeo (Βαλαάμ) seja ldquoaquele que consome as pessoasrdquo (Revelation p 251)

58 Ramsay The Letters to the Seven Churches of Asia p 325

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

25

mulher feniacutecia de Acabe rei de Israel que era profetiza de Baal e perseguiu o profeta Elias aleacutem de conduzir o povo agrave idolatria (1Rs 16) Talvez com isso Joatildeo estivesse identificando a esposa de alguma personalidade importante da igreja em Tiatira ou mesmo algueacutem importante na cidade como um todo59

Uma possiacutevel conjectura diz que essa mulher seguia o mesmo princiacutepio adotado em Peacutergamo poreacutem adaptado agrave situaccedilatildeo de Tiatira Para poderem participar ativamente do proacutespero comeacutercio da cidade as pessoas eram con-vidadas a tomar parte nas celebraccedilotildees puacuteblicas das empresas comerciais nas quais havia celebraccedilotildees cuacutelticas com alimentos oferecidos a iacutedolos60 A recusa em participar desses eventos poderia acarretar dificuldades em participar do comeacutercio imperial

Assim como a recompensa para os crentes fieacuteis de Peacutergamo seria muito maior do que os benefiacutecios puacuteblicos e civis advindos da participaccedilatildeo na ado-raccedilatildeo idolaacutetrica para os crentes de Tiatira que vencerem aquela tentaccedilatildeo o Senhor promete ldquoautoridade sobre as naccedilotildeesrdquo (ἐξουσίαν ἐπὶ τῶν ἐθνῶν) As duas palavras aparecem em Mateus 2818-19 no texto da chamada Grande Comissatildeo O texto natildeo estaacute fazendo referecircncia a um reino milenar futuro61 pois Jesus diz que jaacute recebeu autoridade sobre as naccedilotildees ou seja ele jaacute estaacute reinando sobre elas pois recebeu do Pai toda autoridade nos ceacuteus e na terra Portanto eacute possiacutevel que a recompensa dos crentes fieacuteis aqueles que estivessem dispostos a enfrentar o sofrimento e a morte esteja sendo aqui descrita como uma recompensa celeste desfrutando do reinado de Cristo sobre as naccedilotildees

Do mesmo modo os vencedores de Filadeacutelfia recebem a exortaccedilatildeo para permanecerem fieacuteis ldquopara que ningueacutem tome a tua coroardquo o que no caso natildeo parece ser uma ameaccedila de perder a salvaccedilatildeo mas uma garantia de receber a recompensa especial dos maacutertires Jesus igualmente os elogia porque guardaram ldquoa palavra da minha perseveranccedilardquo (τὸν λόγον τῆς ὑπομονῆς μου) Provavel-mente τὸν λόγον aqui significa ldquoordem ou comandordquo62 Eacute o senhor que ordena que seu povo sofra com paciecircncia Filadeacutelfia constitui junto com Esmirna as duas igrejas fieacuteis em Apocalipse Ambas estatildeo sendo acusadas por judeus falsos e ambas permanecem fieacuteis ao seu Senhor mesmo pagando o preccedilo

59 Charles Revelation p 70 Natildeo fica claro ateacute onde eacute possiacutevel estender a imaginaccedilatildeo ao pensar em Jezabel agindo em Tiatira A comparaccedilatildeo parece apropriada tanto para designar uma mulher gentiacutelica que foi influente na igreja ou que usou sua influecircncia para fazer a congregaccedilatildeo participar de atividades sacrificiais (Ver S Friesen Sarcasm in Revelation 2-3 p 134)

60 Ver L L Thompson The Book of Revelation 122-123 Ver tambeacutem o estudo de Theissen sobre o conflito em Corinto a respeito das comidas sacrificadas a iacutedolos (G Theissen The Social Setting of Pauline Christianity Philadelphia Fortress 1982 p 127-132)

61 Ladd Revelation p 43 Ver J F Walvoord The Revelation of Jesus Christ Chicago Moody Press 1966 p 77

62 Van Henten Martyrdom p 591 Ver nota 18

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

26

Aparentemente em Laodiceacuteia ficavam os crentes mais abastados entre todas as cidades Todas as expressotildees pejorativas que Joatildeo usa apontam para a inversatildeo de epiacutetetos de destaque na cidade de Laodiceia aos quais os morado-res se apegavam e dos quais se orgulhavam63 Eles pensavam que eram felizes mas eram infelizes e miseraacuteveis Pensavam que eram ricos mas eram pobres Pensavam que enxergavam bem por causa do famoso coliacuterio feito a partir do poacute friacutegio da cidade mas eram cegos Pensavam que se vestiam bem por causa das famosas confecccedilotildees e da latilde negra preciosa produzida na regiatildeo mas eram nus ou insuficientemente trajados como a palavra tambeacutem pode ser traduzida64 Ou seja pensavam que eram cidadatildeos romanos bem-vestidos nobres famosos com todos os cuidados meacutedicos mas Cristo os descreve como mendigos cegos e mal trajados O status que eles desfrutavam diante dos homens era exatamente o contraacuterio diante de Deus Humanamente eram ricos e saudaacuteveis espiritual-mente eram miseraacuteveis A exortaccedilatildeo de Cristo portanto era para que a igreja se tornasse ldquouma verdadeira testemunhardquo65 abrindo matildeo do conforto de uma religiatildeo submissa ao mundo para uma feacute viva e atuante mesmo que isso lhe custasse o ldquoouro de tolordquo do mundo pois assim experimentaria o ldquoverdadeiro ourordquo da feacute purificada

CONCLUSAtildeOJoatildeo vecirc a situaccedilatildeo da maior parte das igrejas como traacutegica justamente

porque boa parte dos cristatildeos natildeo parecia sequer entender a necessidade de testemunho perante o mundo Muitos deles estavam engajados em negoacutecios mundanos entrelaccedilados com idolatria outros estavam se entregando agraves dis-soluccedilotildees carnais e seguiam falsos mestres que tranquilizavam a consciecircncia deles Em contraste com essas posturas ele os chama para o testemunho autecircntico para a ldquoperseveranccedilardquo (ὑπομονή) ou seja para a disposiccedilatildeo de enfrentar perseguiccedilotildees e a proacutepria morte Ao contraacuterio de isso ser uma perda como muitos poderiam pensar a respeito do que aconteceu com Antipas Joatildeo mostra que a verdadeira recompensa aguarda aqueles que perseverarem ateacute o fim no testemunho

Assim percebemos que o contexto do primeiro seacuteculo guarda semelhanccedilas com vaacuterias eacutepocas que a igreja enfrenta inclusive a atual na qual existem focos de perseguiccedilatildeo em vaacuterias partes do mundo Ao mesmo tempo ser um cristatildeo fiel mesmo em paiacuteses livres pode trazer prejuiacutezos agrave pessoa por perseguiccedilotildees indiretas escaacuternio desprezo e dificuldades em ascender socialmente Contudo a mensagem do Apocalipse continua ecoando em todo ouvido verdadeiramente cristatildeo secirc fiel ateacute a morte

63 Swete Apocalypse p 61 Charles Revelation p 9664 Ladd Revelation p 5265 Beale Revelation p 306

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

27

ABSTRACTAt the end of the first century when John received the vision and recorded

it in the book of Revelation the churches in Asia did not face the worst period of persecution Even though there were occasional persecutions and some shadow of intensification of regular persecution was on the horizon many Christians as Roman citizens found themselves in relative peace and security enjoying privileges and benefits from the rich imperial trade in the region of Asia Minor The desire to remain enjoying certain benefits led many believers to follow the path of cultural accommodation proposed by eloquent false teachers of the time Against this behavior Revelation demonstrates that true believers need to follow the example of Christ who was faithful unto death and received the reward at the resurrection In this way if they are willing to live faithfully to Christ and face their own death because of it they will give true testimony to the world as well as participate in the reward of Christ

KEYWORDSSeven churches of Asia Revelation Martyrdom Witness Persecution

29

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO O POacuteS-MODERNISMO DA TEOLOGIA DA ESPERANCcedilA

Agrave TEOLOGIA DA NOVA ERA E SEUS REFLEXOS NO CAMPO EDUCACIONAL

Solano Portela

RESUMOEste artigo traccedila o desenvolvimento teoloacutegico do seacuteculo 20 dividindo-o

em duas partes a primeira mostra a transiccedilatildeo do liberalismo alematildeo consoli-dado do seacuteculo 19 agrave teologia modernacontemporacircnea A segunda parte trata da pavimentaccedilatildeo do caminho ao advento da teologia poacutes-moderna O autor demonstra que o tema subjacente de desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo de pontos fundamentais com um progressivo desvio dos direcionamentos biacuteblicos estaacute sempre presente na teologia modernacontemporacircnea Essa vertente pode ser vista especialmente em cinco escolas de pensamento teoloacutegico Teologia da Esperanccedila Teologia da Libertaccedilatildeo Teologia Feminista Teologia do Pro-cesso e Teologia da Nova Era Todas elas compartilham do pensamento poacutes--Moderno e diminuem a Biacuteblia como Palavra de Deus inerrante enquanto simultaneamente retroalimentam a Teologia Poacutes-Moderna lanccedilando duacutevidas sobre princiacutepios e valores eternos biacuteblicos e tradicionais As tendecircncias que aparecem nessas reflexotildees teoloacutegicas satildeo similares ao que se observa no cam-po da educaccedilatildeo e algumas delas impactam profundamente o processo cristatildeo de ensino-aprendizagem Com uma abordagem proacutepria agrave realidade o poacutes-

Graduado em Matemaacutetica Aplicada (BA Magna Cum Laude) pelo Shelton College (Cape May Nova Jersey) Mestre em Divindade (MDiv) pelo Biblical Theological Seminary (Hatfield Pennsylvania) Litterarum Humanarum Doctor (LHD) pelo Gordon College (Boston Massachusetts) Eacute professor-coordenador de Educaccedilatildeo Cristatilde no CPAJ e professor de Teologia Sistemaacutetica no Seminaacuterio Presbiteriano Rev Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo em Satildeo Paulo

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

30

-modernismo subverteu conceitos pedagoacutegicos chaves diminuiu o papel do professor e submergiu escolas em uma crise de autoridade Eacute feito um apelo para que um soacutelido alicerce biacuteblico venha a fundamentar qualquer filosofia de educaccedilatildeo escolar cristatilde

PALAVRAS-CHAVEEducaccedilatildeo cristatilde Construtivismo Desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo Piaget

Poacutes-modernismo Teologia poacutes-moderna Teologia contemporacircnea Libera-lismo teoloacutegico

INTRODUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO Eacute UMA FILOSOFIAO Dr John Feinberg (1946-) da Trinity Evangelical Divinity School

(Deerfield Illinois) em uma de suas palestras sobre teologia contemporacircnea1 indica que o termo poacutes-modernismo natildeo define uma filosofia ou teologia especiacutefica em si mas eacute um entendimento da vida que questiona os postula-dos da modernidade os quais considera como meras proposiccedilotildees dualistas simplistas Nesse sentido o poacutes-modernismo se faz presente em quase todas as proposiccedilotildees teoloacutegicas modernas e contemporacircneas Pelo menos todas as correntes de teologia que aqui seratildeo abordadas tecircm a sua contribuiccedilatildeo ao ou pontos de intersecccedilatildeo marcantes com o poacutes-modernismo tendo como carac-teriacutestica comum a criacutetica ao pensamento cartesiano ou a rejeiccedilatildeo da existecircncia de uma verdade absoluta O poacutes-modernismo portanto natildeo eacute uma escola de pensamento que apresenta as suas proacuteprias proposiccedilotildees mas uma persuasatildeo contemporacircnea que admite a coexistecircncia paciacutefica de muitas assertivas Nesse caldeiratildeo de pensamentos postulados pluralistas desconexos ou ateacute contraditoacuterios encontram o seu proacuteprio espaccedilo na arena filosoacutefico-teoloacutegica das uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo 20 estendendo-se ateacute este primeiro quarto do seacuteculo 21

O propoacutesito deste artigo eacute mostrar que existe uma conectividade e um tema sempre presente em cinco escolas de teologia modernacontemporacircnea Teologia da Esperanccedila Teologia da Libertaccedilatildeo Teologia Feminista Teologia do Processo e Teologia da Nova Era2 Todas essas entendemos floresceram de-

1 FEINBERG John Contemporary Theology II ndash Lecture 21 Institute of Theological Studies Grand Rapids Outreach Inc 1998 Palestras disponiacuteveis como miacutedia eletrocircnica gravada

2 Todas as citaccedilotildees de publicaccedilotildees ou livros em inglecircs neste artigo satildeo de traduccedilatildeo do autor Este artigo eacute baseado em pesquisas iniciadas em setembro de 2002 e continua como um projeto em andamento Citaccedilotildees de documentos postados na Internet (Web) satildeo precisas na ocasiatildeo em que os textos estavam postados Todos os esforccedilos foram empreendidos para acessar e atualizar os endereccedilos eletrocircnicos ateacute 6 de maio de 2021 mas uns poucos documentos podem ter sido deslocados para diferentes paacuteginas ou siacutetios desde o acesso original ou removidos inteiramente da Web por falta de manutenccedilatildeo ou por qualquer outra razatildeo natildeo detectaacutevel

31

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

baixo do guarda-chuva do poacutes-modernismo contribuiacuteram com ele e abraccedilaram a desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo como eixo norteador do ldquofazer teologiardquo As conclusotildees a que chegam refletem um sentimento de necessidade de apresentar a quebra do tradicional concretizando essa acircnsia em uma sanha demolidora de valores passados uma desconsideraccedilatildeo para com acircncoras metafiacutesicas tais como o entendimento das Escrituras como Palavra de Deus que conteacutem verdades proposicionais absolutas e confiaacuteveis Essa desconsideraccedilatildeo resulta em formulaccedilotildees teoloacutegicas fluidas nas quais a apreensatildeo humana eacute colocada como norteadora da compreensatildeo do transcendente Descartam-se princiacutepios que eram aceitos como alicerces de uma boa teologia e subjuga-se a Escritura ao contexto social acatando-se este como aacuterbitro e chave hermenecircutica de in-terpretaccedilatildeo Resumindo o poacutes-modernismo latente nessas correntes naturaliza a religiatildeo e extirpa o sobrenatural do relacionamento e comunicaccedilatildeo entre o Criador e suas criaturas

1 A ORIGEM SIacuteNTESE DO DESENVOLVIMENTO HISTOacuteRICO DE FORMULACcedilOtildeES TEOLOacuteGICAS DESDE A REFORMA DO SEacuteCULO 16

O pensamento teoloacutegico foi liberto da escravatura da tradiccedilatildeo medieval catoacutelica romana com suas adiccedilotildees humanas agrave mensagem e liturgia da igreja pela Reforma do Seacuteculo 16 Desde entatildeo um cerne de ortodoxia biacuteblica tem marcado a sua presenccedila ateacute os nossos dias Apesar dessa resiliecircncia da teologia reformada nesse ponto marcante de inflexatildeo na histoacuteria da igreja existe um registro contiacutenuo de desvios em sistemas teoloacutegicos propostos de um caminho estritamente direcionado pela Escritura para esquemas mais dilatados que aco-modem especulaccedilotildees humanas Estes surgiram com frequecircncia sob a forma de rebuscados trabalhos acadecircmicos e com a aparecircncia de volumosas pesqui-sas Entretanto na realidade refletiram correntes de pensamentos seculares e filosoacuteficos que inundavam as academias Uma tentativa recorrente de siacutentese pode ser observada com a cosmovisatildeo de um mundo secularizado buscando uma zona de conforto na qual pensadores e teoacutelogos formais pudessem acolher visotildees religiosas distorcidas e obter legitimidade para seus voos intelectuais de destinos incertos e seguranccedila duacutebia

Nesse sentido observamos no periacuteodo poacutes-Reforma do seacuteculo 16 a ascensatildeo do misticismo religioso no campo protestante seguido pelo raciona-lismo do liberalismo teoloacutegico alematildeo3 Estes deixaram suas marcas nas eras

3 Ainda que contraditoriamente grandes expoentes do liberalismo fossem miacutesticos em sua preacutedica e escritos pessoais como nos relembra Blackwell um estudioso de Friedrich Schleiermacher Ele registra que de um lado ldquoSchleiermacher natildeo tinha paciecircncia com conceitos abstratos quer fossem poliacuteticos filosoacuteficos ou teoloacutegicosrdquo que natildeo tivessem ldquorelaccedilatildeo direta com e afetassem a vida realrdquo Por outro lado

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

32

preacute-moderna e moderna enquanto em paralelo grandes desenvolvimentos intelectuais afloravam nas academias bem como o mundo experimentava o surgimento das induacutestrias e profundas reorganizaccedilotildees socioloacutegicas Isso ocorreu primeiramente na Europa e subsequentemente no chamado Novo Mundo

Essas duas correntes do seacuteculo 19 o misticismo exemplificado pelos Quakers Shakers4 e outros ldquoprotomovimentosrdquo miacutesticos5 que resultaram no pentecostalismo do seacuteculo 20 e o racionalismo alematildeo que adentrou de forma avassaladora grandes seminaacuterios de renome dos Estados Unidos6 dominaram o cenaacuterio teoloacutegico avant garde ateacute as primeiras deacutecadas do uacuteltimo seacuteculo Naquela ocasiatildeo uma reaccedilatildeo que se apresentou inicialmente como um res-gate da religiatildeo verdadeira e da teologia biacuteblica adentra a arena teoloacutegica ndash a neo-ortodoxia Entretanto no cocircmputo final a neo-ortodoxia eacute cooptada pelo subjetivismo do racionalismo alematildeo e se revela natildeo uma contestaccedilatildeo biacuteblica do liberalismo teoloacutegico mas um escape miacutestico agraves questotildees mais difiacuteceis como a veracidade dos milagres e a realidade da ressurreiccedilatildeo questotildees que satildeo empurradas a uma supra histoacuteria (Heilsgeschichte) que natildeo se relaciona objetivamente com a chamada ldquohistoacuteria brutardquo

Possivelmente poderiacuteamos classificar a primeira metade do seacuteculo 20 como um periacuteodo de transiccedilatildeo entre a teologia moderna e a contemporacircnea Referimo-nos agrave progressatildeo do pensamento de Georg Wilhelm Friedrich He-gel (1770-1831) passando por Soslashren Kierkegaard (1813-1855) Karl Barth

continua Blackwell o seu misticismo aflora como uma ldquoconscientizaccedilatildeo iacutentima e remanescente de que todas as coisas fazem parte de um todordquo e que ldquonossa origem uacuteltima permanece aleacutem do que eacute possiacutevel conhecerrdquo Muitas de suas expressotildees miacutesticas satildeo encontradas em cartas escritas em 1802 para Eleonore Grunow uma mulher casada com quem Schleiermacher tencionava se casar apoacutes o divoacutercio dela ndash o que nunca ocorreu BLACKWELL Albert ldquoSchleiermacherrsquos Mysticism A Letter to His Distant Belovedrdquo Blog Modalities 13 de marccedilo de 2015 Disponiacutevel em httpsalbertblackwellblogspotcom201503schleiermachers-mysticism-letter-to-hishtml Acesso em 6 maio 2021 Essa via dupla do racionalismo e do misticismo demonstra como os extremos se tocam pois em ambas as posiccedilotildees estaacute ausente a cen-tralidade da Escritura como chave para compreensatildeo de noacutes mesmos da Terra em que habitamos do Universo que nos cerca e do Deus que tudo criou

4 FERNANDES Rubeneide O L ldquoMovimento pentecostal Assembleia de Deus e o estabeleci-mento da educaccedilatildeo formalrdquo Dissertaccedilatildeo natildeo publicada Mestrado em Educaccedilatildeo Piracicaba UNIMEP p 31-32

5 Ver por exemplo MATOS Alderi S ldquoEdward Irving precursor do movimento carismaacutetico na igreja reformadardquo Fides Reformata I-2 (1996) Disponiacutevel em httpscpajmackenziebrwp-contentuploads2019021_Edward_ Irving_Precursor_do_Movimento_CarismC3A1tico_na_Igreja_Re-formada_Alderi_Souza_Matospdf Acesso em 6 maio 2021

6 BROWN Ira ldquoThe Higher Criticism Comes to America 1880-1900rdquo Journal of The Presbyte-rian Historical Society 38 (4) Philadelphia The Presbyterian Historical Society dez 1960 p 193-212 Disponiacutevel em jStor httpwwwjstororgstable23325229 Acesso em 6 maio 2021

33

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

(1886-1968) Paul Tillich (1886-1965) Rudolf Bultmann (1884-1976)7 e os filoacutesofos analiacuteticos8 encerrando-se com os teoacutelogos da ldquoMorte de Deusrdquo9

Este foi um periacuteodo marcado por um novo subjetivismo e por uma abor-dagem individualista no qual definiccedilotildees e expressotildees linguiacutesticas foram consi-deradas amorfas e reduzidas a praticamente serem sem sentido em si proacuteprias adaptaacuteveis agrave compreensatildeo e intenccedilatildeo individuais tanto dos proponentes como de seus ouvintes ou leitores

Semelhantemente enquanto esse periacuteodo de transiccedilatildeo constroacutei uma ponte entre o moderno e o contemporacircneo podemos afirmar que praticamente todas as proposiccedilotildees teoloacutegicas novas que surgiram no seacuteculo 20 a partir da deacutecada de 1960 poderiam ser classificadas como degraus para a ascensatildeo do periacuteodo e pensamento poacutes-moderno no qual como civilizaccedilatildeo estamos sub-mersos Visualizamos em cada expressatildeo dos pensamentos teoloacutegicos desde os ldquoTeoacutelogos da Morte de Deusrdquo elementos do poacutes-modernismo quer de maneira incipiente quer de forma bastante expliacutecita e madura ateacute que eles se juntam em um amalgamado que pode ser denominado Teologia Poacutes-Moderna

Concentrando nossa anaacutelise da teologia modernacontemporacircnea das uacuteltimas deacutecadas ndash desde a Teologia da Esperanccedila10 agrave Teologia Poacutes-Moderna encontramos alguns temas subjacentes que se fazem presentes em cada variaccedilatildeo ou ramo e esses natildeo dependem dos roacutetulos que os proponentes atribuem (ou recebem) em cada escola de pensamento

Por exemplo John Feinberg indica que uma caracteriacutestica presente nas formulaccedilotildees teoloacutegicas desse periacuteodo eacute ldquoa divinizaccedilatildeo do homem e a huma-nizaccedilatildeo de Deusrdquo11 Devemos acatar a pertinecircncia dessa anaacutelise pois nunca

7 Para a afinidade desses teoacutelogos com o pensamento de Hegel ver CREMER Douglas J ldquoPro-testant Theology in Early Weimar Germany Barth Tillich and Bultmannrdquo Journal of the History of Ideas 56 n 2 (1995) 289-307 Doi1023072709839 Acesso em 23 dez 2020

8 Tambeacutem conhecida como ldquofilosofia da linguagemrdquo procura expressar uma anaacutelise racional loacutegica e matemaacutetica do pensamento ndash levando a conclusotildees puramente naturalistas sobre as grandes questotildees do universo e da vida Como maiores expoentes podemos citar Gottlob Frege (1848-1925) Ludwig Wittgenstein (1889-1951) e Bertrand Russell (1872-1970) autor do famoso livro Porque Natildeo Sou Cristatildeo As raiacutezes no pensamento alematildeo satildeo evidentes em seus escritos ainda que a grande popu-larizaccedilatildeo da corrente tenha ocorrido nas academias dos Estados Unidos e da Inglaterra

9 Os ldquoTeoacutelogos da Morte de Deusrdquo reavivaram o conceito hegeliano de que ldquoDeus estaacute mor-tordquo ndash indicando que a ideia de Deus do mundo ocidental tinha que ser revista e substituiacuteda por uma transcendecircncia centrada na humanidade Os dois expoentes modernos mais conhecidos foram William Hamilton (1924-2012) e Thomas J J Altizer (1927-2018) Os dois foram coautores do livro Teologia Radical e a Morte de Deus e forneceram combustiacutevel aos movimentos alienados hedonistas sensuais e existenciais da deacutecada de 1970 como os Provos na Europa e a onda hippie que tomou conta das Ameacutericas nas deacutecadas 1960-1970

10 Um resumo dos pontos principais dessa vertente teoloacutegica seraacute apresentado adiante Ela surgiu no livro mais famoso do seu autor originalmente publicado na Alemanha em 1964 MOLTMANN Juumlrgen Teologia da esperanccedila Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005

11 FEINBERG Lecture 1

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

34

houve um periacuteodo como o dessas deacutecadas na histoacuteria mundial ou da igreja que tratou Deus como sujeito e natildeo soberano e as pessoas mais como regentes dos seus proacuteprios destinos do que como criaturas caiacutedas necessitadas de redenccedilatildeo

Submeto entretanto que existe outro tema que se faz igualmente presente nessas correntes teoloacutegicas recentes ndash a ideia de que eacute necessaacuterio desconstruir e reconstruir ou a ideia de que as atividades de desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo se constituem em tarefas necessaacuterias ao campo da teologia Nesse sentido o teoacutelogo deve desconstruir ideias conceitos metaacuteforas ideologias esquemas de pensamento e convicccedilotildees Por outro lado eacute necessaacuterio reconstruir ou cons-truir todos esses aspectos com base no sentimento de quais estruturas devem ser estabelecidas para trazer a sensaccedilatildeo empiacuterica de liberdade da opressatildeo (de onde quer que proceda) aos proponentes e aos seus seguidores objetivados Eacute essa temaacutetica da desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo que queremos prescrutar seguindo e explorando as suas consequecircncias e principalmente avaliando os reflexos no campo educacional cristatildeo

2 DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO DA TEOLOGIA DA ESPERANCcedilA Agrave TEOLOGIA DA NOVA ERA

Vamos examinar brevemente os conceitos de desconstruccedilatildeo e recons-truccedilatildeo nessas vertentes teoloacutegicas que preparam o caminho e reforccedilam os fundamentos do pensamento poacutes-moderno dentro da teologia e seus efeitos no campo educacional

21 Teologia da EsperanccedilaJuumlrgen Moltmann iniciou esse periacuteodo na teologia contemporacircnea com

a sua Teologia da Esperanccedila12 na qual a escatologia ndash ou a esperanccedila de um futuro que eacute possiacutevel e real ndash eacute o alicerce sobre o qual toda a interpretaccedilatildeo teoloacutegica do mundo e da vida deve ser construiacuteda Apesar do termo ldquodescon-truirrdquo natildeo aparecer com ecircnfase na obra de Moltmann sua abordagem teoloacutegica conceitualmente eacute exatamente isso reverter a ordem pela qual a teologia tem sido abordada que tradicionalmente comeccedila com a avaliaccedilatildeo dos dados sobre Deus na Escritura sua natureza e suas obras postulando que a escatologia eacute na realidade a fundaccedilatildeo da teologia Com a intenccedilatildeo de ldquofazer teologiardquo Molt-mann desconstruiu a estrutura teoloacutegica que tem sido utilizada haacute seacuteculos Natildeo deveria surpreender que John B Cobb um teoacutelogo moderno (do Processo) faz a seguinte afirmaccedilatildeo sobre a Teologia da Esperanccedila ldquoA abordagem de Molt-mann eacute praticamente revolucionaacuteria em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo cristatilde dominanterdquo13

12 MOLTMANN Teologia da esperanccedila13 COBB John ldquoNorth American Theology in the Twentieth Centuryrdquo ago 1991 Disponiacutevel

em httpwwwreligion-onlineorgcgi-binrelsearchddllshowarticleitem_id=42 Acesso em 23 mar 2003

35

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

Na sequecircncia Moltmann daacute andamento agrave construccedilatildeo de sua proacutepria teo-logia especificamente redefinindo escatologia esperanccedila e salvaccedilatildeo trazendo todos esses termos a um relacionamento corporativo com a vida aqui e agora Essa reconstruccedilatildeo inova menos do que pretende porque natildeo chega a se desli-gar completamente da Teologia Existencial Como Moltmann enfatiza o lado corporativo da religiatildeo e traz o foco para a vida no presente ndash como sendo essencialmente uma vida de esperanccedila futura ndash ele acabou por construir uma base adequada para as ideias da Teologia da Libertaccedilatildeo

22 Teologia da LibertaccedilatildeoEste ramo da teologia geralmente associado aos escritos de Gustavo

Gutierrez14 popularizou-se essencialmente na Ameacuterica Latina e em outros paiacuteses em desenvolvimento (anteriormente rotulados de subdesenvolvidos) A Teologia da Libertaccedilatildeo tambeacutem desconstroacutei os conceitos tradicionais do pensamento cristatildeo especialmente aqueles relacionados agraves accedilotildees que devem ser empreendidos em meio a uma sociedade que eacute considerada socialmente injusta Ela preconiza que concentrar a visatildeo no futuro gera aniquilaccedilatildeo e cega os olhos agraves injusticcedilas presentes A perspectiva da igreja deve ser reconstruiacuteda considerando a libertaccedilatildeo como a tarefa primaacuteria da teologia do cristianis-mo e da sociedade como um todo Essa libertaccedilatildeo ou salvaccedilatildeo eacute de todas as formas de opressatildeo mas eacute definida prioritariamente como libertaccedilatildeo de condiccedilotildees de pobreza de uma classe que se encontra sob a regecircncia de outra classe dominante ndash a classe opressora A classe oprimida deve ser salva tam-beacutem da opressatildeo econocircmica e poliacutetica Cobb registra a conexatildeo da Teologia da Libertaccedilatildeo com a Teologia da Esperanccedila quando afirma ldquoNa praacutetica a Teologia da Libertaccedilatildeo da Ameacuterica Latina segue um modelo semelhante ao de Moltmannrdquo15 Chamo atenccedilatildeo para terminologia utilizada por Cobb que mostra o conceito de desconstruccedilatildeoreconstruccedilatildeo impliacutecito em seus elogios proferidos na anaacutelise da Teologia da Esperanccedila Referindo-se a teoacutelogos da libertaccedilatildeo ele diz ldquoEles foram brilhantemente bem-sucedidos em construir um sistema teoloacutegico completo com base nessa [nova] hermenecircuticardquo16

Encontramos tambeacutem a Teologia da Libertaccedilatildeo providenciando uma zona de conforto para outras formas de teologias de ldquoclassesrdquo ou de ldquominoriasrdquo que se consideram ldquooprimidasrdquo por qualquer outro segmento da sociedade Este eacute o caso da Teologia Gay Robert Goss explicando e defendendo essa vertente ldquoteoloacutegicardquo deixa clara a conexatildeo ldquoA Teologia da Libertaccedilatildeo eacute provavel-mente o melhor termo para servir de guarda-chuva para o que estaacute acontecendo [no cenaacuterio teoloacutegico] Porque ela atinge a raiz da cultura os conservadores

14 GUTIERREZ Gustavo Teologia da libertaccedilatildeo 2 ed Satildeo Paulo Vozes 198515 COBB ldquoNorth American Theologyrdquo16 Ibid

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

36

tecircm problemas com ela como nos dias de Jesus Esses conservadores como os entendo estatildeo na realidade interessados na conservaccedilatildeo do status quo de relaccedilotildees de poderrdquo17 A ideia de desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo fica bem evi-dente na apresentaccedilatildeo do livro de Goss

O trabalho do Rev Goss eacute um de desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo Ele descons-troacutei o Cristo que se assenta entronizado e abenccediloa com decretos divinos os preconceitos e as relaccedilotildees de poder e encontra no meio de tudo isso o Jesus que questiona os relacionamentos de poder dos seus dias e que [ele proacuteprio] desconstroacutei agrave sua proacutepria maneira18

Um exemplo adicional desses ramos teoloacutegicos enxertados ou que bro-tam da Teologia da Libertaccedilatildeo eacute visto na ldquoTeologia Racialrdquo na qual tambeacutem encontramos os conceitos de desconstruirconstruir Fazendo referecircncia nesse sentido ao artigo de Maria-Cristina Ventura ldquoDesconstruccedilatildeo e Reconstruccedilatildeo Teoloacutegica na Luta contra o Racismordquo lemos o seguinte em sua introduccedilatildeo ldquoA desconstruccedilatildeo teoloacutegica que leva a uma reconstruccedilatildeo eacute essencial para um en-tendimento da teologia na luta contra o racismo O exerciacutecio de desconstruccedilatildeo implica em questionamento e na confrontaccedilatildeo da teologiardquo19 Mais recente-mente os pontos fundamentais da Teologia da Libertaccedilatildeo tecircm sido veiculados no meio protestante como Teologia Puacuteblica e Teologia da Missatildeo Integral (TMI)

23 Teologia FeministaNatildeo precisamos ir muito aleacutem do tiacutetulo do livro de Elisabeth Schuumlssler

Fiorenza para localizar o tema de ldquodesconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeordquo na Teologia Feminista Essa famosa porta-voz feminista tambeacutem constroacutei sobre a base fornecida pela Teologia da Libertaccedilatildeo para desenvolver um Gestalt teoloacutegico que busca libertar as mulheres de uma estrutura supostamente dominada pelo sexo masculino Ela escreveu ldquoEm Memoacuteria Dela Uma Reconstruccedilatildeo Teoloacute-gica Feminista das Origens Cristatildesrdquo20 Em outro livro Fiorenza indica que a hermenecircutica feminista de libertaccedilatildeo deve desconstruir tradiccedilotildees opressoras e identificar imagens e argumentos diferentes daqueles que satildeo identificados com o sexo masculino21

17 GOSS Robert Jesus Acted Up A Gay and Lesbian Christian Manifesto Nova York Harper amp Row 1993

18 Ibid19 VENTURA Maria-Cristina ldquoTheological Deconstruction and Reconstruction in the Fight against

Racismrdquo Disponiacutevel em httpwwwwcc-coeorgwccwhatjpcechoesechoes-17-06html Acesso em 6 maio 2021

20 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler In Memory of Her A Feminist Theological Reconstruction of Christian Origins New York Crossroads 1983

21 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Jesus Miriamrsquos Child Sophiarsquos Prophet Critical Issues in Feminist Christology New York Continuum Publishing Group 1995 p 33

37

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

Desconstruccedilatildeo eacute tambeacutem um tema baacutesico para a Teologia Feminista no entendimento de David Rutledge que escreveu ldquoLeitura Marginal Feminis-mo Desconstruccedilatildeo e a Biacutebliardquo22 De acordo com a compreensatildeo da Teologia Feminista deve-se desconstruir todas as metaacuteforas e linguagem opressoras que falseiam o entendimento da divindade e ajudam a perpetuar a opressatildeo das mulheres em toda parte Semelhantemente eacute necessaacuterio reconstruir estruturas teoloacutegicas centradas em um simbolismo e terminologia feministas que mais adequadamente refletem os cuidados e a nutriccedilatildeo que fluem da divindade dessa forma se promoveraacute a alforria e libertaccedilatildeo das mulheres e seraacute atribuiacutedo um papel mais justo para os homens

24 Teologia do ProcessoA Teologia do Processo contesta o ldquoTeiacutesmo Claacutessicordquo e se propotildee a

descrever mais adequadamente a divindade e o entendimento metafiacutesico da estrutura da realidade Para atingir esse objetivo necessita desconstruir a apreensatildeo transcendente de Deus e reconstruiacute-lo em torno de sua imanecircncia e de sua ldquopreensatildeordquo23 dos outros seres reais Ela se apresenta como sendo uma forma mais cientiacutefica de olhar a realidade e de abordar o pensamento teoloacutegico mas ao desconstruir informaccedilotildees disponiacuteveis sobre o Deus da Biacuteblia termina por reconstruiacute-lo como um deus totalmente passivo praticamente impotente que procura atrair e persuadir e pretende influenciar mas que nunca age posi-tivamente para estabelecer sua vontade e seu propoacutesito James Ashbrook um teoacutelogo do processo do Garrett Evangelical Theological Seminary mostra esse vieacutes desconstrucionista quando apresentando uma das caracteriacutesticas dessa linha de pensamento ndash convicccedilotildees ou crenccedilas que estatildeo sempre mutantes ou em processamento ndash descreve-se a si mesmo dessa maneira

Sou um ceacutetico miacutestico um crente descrente Participo daquilo que eu questiono mais especificamente construo a realidade de acordo com o paradigma de um Deus cheio de graccedila exemplificado nas tradiccedilotildees judaico-cristatildes (plurais) e que faz sentido agrave luz do que aprendemos nas neurociecircncias Sou influenciado por praacuteticas Zen medito e oro regularmente como parte de minha vida Tento desconstruir a teologia com a finalidade de reconstruiacute-la agrave luz da experiecircncia e em um mundo carregado de opressatildeo compartilho com outros como testemunho uma realidade iluminada pela justiccedila e pelo amor24

22 RUTLEDGE David Reading Marginally Feminism Deconstruction and the Bible Leiden New York Brill 1996

23 ldquoPreensatildeordquo (prehension) na terminologia da Teologia do Processo eacute um tipo de compreensatildeo sem o elemento cognitivo ou uma forma inconsciente de relacionamento e de compartilhamento das atividades da vida pela e com a divindade

24 ASHBROOK James ldquoOur Illusory Relation to God ndash A Neurotheological Approachrdquo (palestra) Texto da nota autobiograacutefica na programaccedilatildeo da workshop ldquoInstitute on Religion in an Age of Science

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

38

25 Teologia da Nova EraJohn Feinberg aponta que a Teologia da Nova Era natildeo surgiu como um

ramo que cresceu dos ciacuterculos acadecircmicos mas eacute uma importante linha de pensamento que deve ser considerada devido aos raacutepidos avanccedilos feitos na sociedade e pela popularidade observada em alguns segmentos da igreja cristatilde25 Ela tem produzido uma abundacircncia de escritos a maioria desses com caracteriacutesticas populares mas deles podemos aferir seus temas principais Em um relatoacuterio que esboccedila ldquoAs atividades da Nova Era na Igreja Episcopalrdquo observamos os avanccedilos que essa filosofia mais do que uma teologia tecircm feito naquela denominaccedilatildeo aleacutem de trazerem agrave tona os sempre presentes temas de desconstruccedilatildeoreconstruccedilatildeo O relatoacuterio registra as seguintes palavras do Rev Matthew Fox

O que eacute a redescoberta do Cristo coacutesmico se natildeo uma desconstruccedilatildeo da ldquocris-tologia do poderrdquo que estabeleceu o impeacuterio cristatildeo no Conciacutelio de Niceacuteia no quarto seacuteculo e uma reconexatildeo com a tradiccedilatildeo biacuteblica mais antiga de Cristo como a sabedoria coacutesmica presente em todos os seres26

Vemos esse posicionamento de desconstruccedilatildeo neste e em outros traba-lhos escritos de teoacutelogos da Nova Era de conceitos tradicionais do teiacutesmo e da histoacuteria da redenccedilatildeo ndash como sendo um caminho exclusivo apresentado pela feacute cristatilde ndash pois essa ldquoteologiardquo reconstroacutei a conexatildeo com a divindade como sendo algo que estaacute presente em todos nesta religiosidade inclusiva agora denominada de ldquoreligiatildeo coacutesmicardquo ou de ldquosabedoria coacutesmicardquo

Encerramos este segmento da nossa anaacutelise indicando que Groothuis quando relaciona os temas principais que caracterizam a teologia da Nova Era destaca este em primeiro lugar ldquoTudo eacute um Quaisquer diferenccedilas perceptiacute-veis satildeo apenas aparentes e natildeo reaisrdquo 27 Este eacute o resultado do conceito de reconstruccedilatildeo da Teologia da Nova Era e podemos ver a harmonia e sobrepo-siccedilatildeo com as ideias do Poacutes-Modernismo que enfatiza construccedilotildees subjetivas Considerando que tudo eacute o mesmo aponta Feinberg28 uma pedra pode natildeo ser uma pedra eacute apenas percebida como uma pedra e assim por diante Dessa maneira estaacute preparado o palco para o Poacutes-Modernismo

38th Annual Star Island Conferencerdquo (Portsmouth NH 2707 a 03081991) Disponiacutevel em wwwirasorgconferences abs1991pdf Acesso em 20 mar 2003

25 FEINBERG Lecture 1726 COHEN Elaine ldquoMatthew Fox Techno Cosmic Mass Heralds New Spiritualityrdquo In Conscious

Life julho 1999 p 11 Citado por PENN Lee (1999 2004) ldquoThe New Age Movement in the Episcopal Churchrdquo Disponiacutevel em httpswwwevangelizationstationcomhtm_htmlNew20Agenew_age_movement_in_the_epishtm Acesso em 6 maio 2021

27 GROOTHUIS Douglas Unmasking the New Age Downers Grove IL IVP 1986 p 1828 FEINBERG Lecture 17

39

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

3 DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO NA TEOLOGIA POacuteS-MODERNA

Se o tema de desconstruccedilatildeoreconstruccedilatildeo esteve presente em cada uma dessas cinco escolas de pensamento teoloacutegico eacute no poacutes-modernismo que en-contramos o seu aacutepice Daniel J Adams depois de apresentar e discutir trecircs caracteriacutesticas do poacutes-modernismo ndash 1) decliacutenio do Ocidente e do pensamento ocidental (dilema do secularismo x devoccedilatildeo pessoal) 2) questionamento das metanarrativas (verdades fundacionais autoritativas) e 3) disseminaccedilatildeo da informaccedilatildeo (o ldquomercadordquo intelectual) ndash relaciona a quarta da seguinte forma ldquoUma quarta caracteriacutestica da era poacutes-moderna eacute aquela que ficou conhecida como o processo de desconstruccedilatildeo Desconstruccedilatildeo eacute exatamente o que estaacute expresso no significado impliacutecito da palavra eacute desmembrar textos de maneira semelhante a tirar as camadas de uma cebola Eacute um processo intencionalrdquo29

Jacques Derrida o famoso filoacutesofo poacutes-moderno de origem argelina mas de nacionalidade francesa que tem tido um impacto substancial no pensamento filosoacutefico e poacutes-moderno escreveu

Por que se envolver em um processo de desconstruccedilatildeo em vez de deixar as coisas como estatildeo etc Nada aqui se processa sem uma medida de forccedilas em algum momento Desconstruccedilatildeo tenho insistido natildeo eacute algo neutro Eacute uma intervenccedilatildeo30

Adams anteriormente citado analisa o pensamento do poacutes-modernista Ernest Gellner que escreveu sobre razatildeo e religiatildeo31 afirmando

hellip desconstruccedilatildeo tem uma implicaccedilatildeo profunda para a teologia considerando que a ldquoverdade objetiva deve ser substituiacuteda pela verdade hermenecircuticardquo Isso significa que os textos sagrados como a Biacuteblia natildeo possuem um significado uacuteltimo nem satildeo textos autoritativos Na realidade a rede ou a teia de relacio-namentos fora do texto podem determinar tanto o significado do texto como a natureza de sua autoridade Um exemplo disso dentro da tradiccedilatildeo presbiteriana--reformada eacute a controveacutersia formada em torno da eacutetica sexual e as maneiras nas quais posiccedilotildees diferentes tecircm sido propostas apoiadas na interpretaccedilatildeo dos textos biacuteblicos Uma leitura tradicional do texto e uma desconstruccedilatildeo poacutes-moderna do texto resultam em interpretaccedilotildees com enormes diferenccedilas entre si32

29 ADAMS Daniel J ldquoToward a Theological Understanding of Postmodernismrdquo publicado ini-cialmente em Metanoia (Praga) primavera-veratildeo 1997 Disponiacutevel em httpwwwcrosscurrentsorgadamshtm Acesso em 6 maio 2021

30 Extraiacutedo de uma carta de Jacques Derrida a Jean-Louis Houdebine citado em DERRIDA Jacques Positions Trad Alan Bass Chicago University of Chicago Press 1981 p 93

31 GELLNER Ernest Postmodernism Reason and Religion London Routledge 1992 p 3532 ADAMS ldquoToward a Theological Understandingrdquo

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

40

Podemos observar consequentemente a contradiccedilatildeo que existe entre o pensamento e a teologia poacutes-moderna (com essa ecircnfase na desconstruccedilatildeo) e os absolutos do teiacutesmo claacutessico especialmente a noccedilatildeo da existecircncia da verda-de absoluta que pode ser percebida por seres racionais mesmo natildeo sendo de forma exaustiva mas pelo menos de forma parcial e ainda assim verdadeira Um artigo por Robert Goizueta professor de teologia do Boston College aborda essa questatildeo com clareza

A desconstruccedilatildeo poacutes-moderna do sujeito e a rejeiccedilatildeo de todas as chamadas me-tanarrativas levam agrave duacutevida sobre a proacutepria possibilidade de se fazer quaisquer declaraccedilotildees normativas Simplificando a verdade eacute frequentemente reduzida a uma questatildeo de um significado ambivalente ou utilitaacuterio a feacute eacute algo que tem significado ou tem utilidade para mim A feacute dos pobres tem significado ou utilidade para eles Ela os auxilia Ela os liberta33

Aleacutem disso essa identificaccedilatildeo do poacutes-modernismo com desconstruccedilatildeo eacute estabelecida e definida pelo pesquisador e historiador Robert Chandler que escreve ldquoO poacutes-modernismo ou a lsquodesconstruccedilatildeorsquo postula que nada eacute neutro ndash observaccedilatildeo linguagem preservaccedilatildeo de registros documentos narra-dores ou escritos Objetividade eacute um mito e valores absolutos natildeo existemrdquo34 Consequentemente o poacutes-modernismo eacute em sua proacutepria essecircncia contraacuterio agrave noccedilatildeo dualiacutestica que contrasta verdade com falsidade certo com errado e assim por diante Obviamente o cristatildeo natildeo eacute dualista no sentido de que existe um Deus regente do universo no qual ele crecirc que rege todas as coisas e natildeo forccedilas sempre opostas que regem impessoalmente os destinos das pessoas No entanto a Biacuteblia expressa que existem sim posiccedilotildees e situaccedilotildees contrastantes em vaacuterias aacutereas Eacute interessante observarmos como o poacutes-modernismo perturba ateacute o pensamento oriental dualista (e equivocado) ao extremo mas que reco-nhece alguns contrastes inevitaacuteveis da realidade que natildeo se encaixam na visatildeo amorfa do poacutes-modernismo Nesse sentido sem que tenhamos que concordar com tudo um partidaacuterio da filosofia oriental Balbinder Singh Bhogal ex--professor visitante da University of Derby (atualmente um escritor proliacutefico e membro do corpo docente da Hofstra University)35 expressa sua criacutetica ao poacutes-modernismo assim

33 GOIZUETTA Robert God First Loved Us Reflections on the Theological Grounds of Liberation Disponiacutevel em httpswwwlivedtheologyorgwp-contentuploads20150520120424PPR01-Roberto--S-Goizueta-God-First-Loved-Us-Reflections-on-the-Theological-Grounds-of-Liberationpdf p 8 Acesso em 6 maio 2021

34 CHANDLER Robert J Resenha de ldquoContested Eden California Before the Gold Rushrdquo GU-TIERREZ Ramon e ORSI Richard (Orgs) The Journal of San Diego History 44 n 4 (outono 1998) p 44 (4) Disponiacutevel em httpssandiegohistoryorgjournal1998octobereden Acesso em 6 maio 2021

35 Long Island NY Ver httpshofstraacademiaeduBalbinderSinghBhogal Acesso em 6 maio 2021

41

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

O pensamento poacutes-moderno desafia dualidades hieraacuterquicas e herdadas e revela uma nova forma de pensar que emerge desses dualismos como um processo natural de desconstruccedilatildeo-construccedilatildeo-desconstruccedilatildeo Esse pensamento obscuro esmaece os limites de um dualismo que existe agraves claras como o sagrado e o secular luz e trevas o bem e o mal certo e errado Deus e o homem o infinito e o finito o numenal e o fenomenal o espiacuterito e a mateacuteria deus-pai e matildee terra36

David Griffin na introduccedilatildeo ao seu trabalho de muacuteltiplos autores identi-fica um ramo do poacutes-modernismo que para no estaacutegio da desconstruccedilatildeo sendo assim harmocircnico com suas premissas ndash se o pluralismo e a diversidade eacute o que conta por que reconstruir Ele aponta para o pensamento desconstrutivo ou eliminador do poacutes-modernismo ldquoO poacutes-modernismo filosoacutefico eacute inspirado de diversas formas pelo pragmatismo e fisicalismo por Ludwig Wittgenstein Martin Heidegger e Jacques Derrida e outros pensadores franceses recentesrdquo37

No entanto no final das contas em um sistema onde a desconstruccedilatildeo reina descontroladamente segue-se a reconstruccedilatildeo de uma forma subjetiva sem padrotildees que foram igualmente desconstruiacutedos com o restante A recons-truccedilatildeo ocorreraacute na linguagem nas artes no pensamento teoloacutegico e religioso com cada pessoa construindo sua proacutepria imagem da realidade de acordo com a apreensatildeo subjetiva das realidades ndash o que quer que sejam estas Thomas Hopko presidente do St Vladimir Seminary escreveu pertinentemente sobre essa condiccedilatildeo na qual encontramos o mundo poacutes-moderno

Em uma sociedade moderna e secularizada a linguagem as estruturas os siacutembolos e rituais claacutessicos e o cristianismo biacuteblico permanecem enquanto os seus conteuacutedos e significados satildeo radicalmente alterados Na desconstruccedilatildeo poacutes-moderna da cosmovisatildeo moderna ndash por intermeacutedio de um existencialis-mo radical cultural e pessoal pela revoluccedilatildeo sexual pela busca incessante do miacutestico pela politizaccedilatildeo da teologia e da eacutetica e pela explosatildeo do hedonismo e avareza espiritual e material ndash a linguagem tradicional as estruturas os siacutembolos e rituais satildeo recriados ao ponto em que os seus conteuacutedos e significados originais natildeo mais existem mas satildeo substituiacutedos por uma completa nova reconstruccedilatildeo da realidade38

36 BHOGAL Balbinder Singh (1995) ldquoGlimpses of Postmodernism (Deconstruction) and Reli-gionrdquo Palestra proferida no School of Oriental and African Studies Post-Graduate Seminar nov 1995 Disponiacutevel em httpwwwmultifaithnetorgmfnopenaccessresearchonlineseminarbbglimpseshtm Acesso em 16 mar 2003

37 GRIFFIN David Ray BEARDSLEE William A HOLLAND Joe Varieties of Postmodern Theology Albany State of New York University Press 1989 p xii

38 HOPKO Thomas ldquoOrthodoxy in Pluralistic Post-Modern Societiesrdquo The Ecumenical Review 51 p 364-371 Disponiacutevel em httpsdoiorg101111j1758-66231999tb00404x Acesso em 6 maio 2021

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

42

Assim temos visto esse tema recorrente de desconstruccedilatildeoreconstruccedilatildeo nesse periacuteodo contemporacircneo de desenvolvimento teoloacutegico desde a Teologia da Esperanccedila em diante e a sua forte presenccedila no pensamento filosoacutefico e teoloacutegico poacutes-moderno Aonde isso levaraacute quando tratamos dessas influecircncias no campo da educaccedilatildeo

4 O QUE ACONTECE QUANDO NAtildeO HAacute NADA A DESCONSTRUIR

E se existir uma aacuterea da realidade onde natildeo haacute estrutura de pensamento para desconstruir Se ela existe entatildeo natildeo haacute que se falar sobre reconstruir algo que natildeo foi desconstruiacutedo A aacuterea de educaccedilatildeo mais especificamente a educaccedilatildeo das crianccedilas se apresenta para o enquadramento nesta categoria Natildeo me refiro aos processos metodoloacutegicos da educaccedilatildeo pois nesses certamente a mente poacutes-moderna encontraraacute amplo campo para desconstruccedilatildeo e reconstru-ccedilatildeo Faccedilo referecircncia agrave aacuterea cognitiva da crianccedila o que ocorre na sua mente nos primeiros estaacutegios de aprendizado em sua existecircncia como o conhecimento chega ateacute ela O que na realidade eacute conhecimento Eacute algo que eacute transmitido comunicado e ao qual ela eacute conduzida e levada a assimilar

Os trabalhos escritos nesta aacuterea tecircm mantido paridade com o pensamento contemporacircneo e com desenvolvimentos teoloacutegicos especialmente neste pe-riacuteodo poacutes-moderno onde se questiona a realidade de tudo (ou o conhecimento concreto) exceto as apreensotildees subjetivas na mente das pessoas Tratando da mente de crianccedilas admitem que natildeo haacute nada para desconstruir mas sim para construir No entanto nessa abordagem o conhecimento natildeo eacute e nem deve ser transmitido ndash de alguma forma indescritiacutevel esse conhecimento vai brotar ou ser construiacutedo autonomamente Tentativas de transmissatildeo a algueacutem de dados da realidade como em processos de ensino-aprendizagem tradicionais resultam tatildeo somente em distorccedilatildeo da realidade subjetiva dessa pessoa que deve ser facilitada tatildeo somente para caminhar por um processo de construccedilatildeo de sua proacutepria compreensatildeo do mundo e da vida E assim nasce o construtivismo

41 A ferramenta adequada do poacutes-modernismoO Construtivismo ainda que plantado na primeira metade do seacuteculo 20

tomou forma desenvolveu-se e popularizou-se na segunda metade daquele seacute-culo Cresceu portanto paralelamente e em sobreposiccedilatildeo ao poacutes-modernismo Podemos afirmar que o construtivismo se encaixa perfeitamente no subjeti-vismo de pensadores poacutes-modernos de tal forma a poder funcionar como a ferramenta educacional do poacutes-modernismo Dennis McCallum conhecido conferencista e autor sobre esta filosofia coloca a conexatildeo da seguinte maneira

O construtivismo eacute a teoria de aprendizagem principal subjacente agrave educaccedilatildeo poacutes-moderna De acordo com construtivistas o conhecimento natildeo eacute descoberto

43

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

como afirmam os modernistas Todo conhecimento eacute inventado ou ldquoconstruiacutedordquo na mente do aprendiz Natildeo poderia ser de outra maneira dizem os poacutes-moder-nistas porque as ideias que os professores ensinam e os alunos aprendem natildeo correspondem a qualquer realidade objetiva Satildeo tatildeo somente construccedilotildees hu-manas Conhecimento ideias e linguagem satildeo criados por pessoas natildeo porque sejam ldquoverdaderdquo mas porque tecircm utilidade39

Jaacute haacute algumas deacutecadas o construtivismo tem sido ldquovendidordquo como uma metodologia de ensino mas ele se apresenta na realidade como um sistema filosoacutefico do processo de ensino-aprendizagem chegando adicionalmente a postular teorias sobre a formaccedilatildeo de valores morais e do julgamento do certo e errado na concepccedilatildeo mental das crianccedilas Suas raiacutezes foram fincadas em solo europeu pelo pesquisador Jean Piaget (1896-1980) e suas conclusotildees adota-das amplamente por psicopedagogos A popularizaccedilatildeo na Ameacuterica Latina foi uma consequecircncia inevitaacutevel da influecircncia europeia na aacuterea educacional dessa regiatildeo especialmente no Brasil onde tornou-se o cerne majoritaacuterio do ensino nos cursos de pedagogia de universidades Professores cristatildeos assim treina-dos iludidos pela ideia de que estatildeo apenas aprendendo uma ldquometodologiardquo de vanguarda absorvem pontos cruciais que contradizem a revelaccedilatildeo biacuteblica Via de regra experimentam o sentimento de que ldquoalgo estaacute erradordquo mas tecircm dificuldade em fazer uma anaacutelise depuradora mais profunda que identifique as falhas metafiacutesicas epistemoloacutegicas e teoloacutegicas do construtivismo40

Nos Estados Unidos da Ameacuterica berccedilo de tantas escolas de pensamento na aacuterea educacional o construtivismo tem feito avanccedilos significativos Jaacute em 1999 a revista especializada do campo ldquoEducational Leadershiprdquo devotou um exemplar inteiro agrave ldquosala de aula construtivistardquo no qual vaacuterios artigos relatoacute-

39 MCCALLUM Dennis The Death of Truth What is wrong with Multiculturalism the Rejection of Reason and the New Postmodern Diversity Minneapolis Bethany House 1996 p 99

40 Natildeo eacute a intenccedilatildeo neste artigo fazer uma exposiccedilatildeo e refutaccedilatildeo detalhada do construtivismo O objetivo eacute demonstrar a ligaccedilatildeo do construtivismo com o poacutes-modernismo e os conceitos teoloacutegicos precedentes Sobre o construtivismo em todos os seus aspectos o autor jaacute publicou diversos ensaios e livros aos quais direciona os leitores interessados no aprofundamento e estudo do tema PORTELA NETO F S O que estatildeo ensinando aos nossos filhos Fides Reformata V-1 (2000) p 71-96 PORTELA NETO F S Pensamentos Preliminares Direcionados a uma Pedagogia Redentiva Fides Reformata XIII-2 (2008) p 125-154 PORTELA NETO F S Resgatando o Papel do Professor na Es-cola Confessional como Transmissor de Conhecimento e da Verdade Reflexotildees e Propostas Seminais Fides Reformata XXV-1 (2020) p 63-75 PORTELA NETO F S O que estatildeo ensinando aos nossos filhos uma avaliaccedilatildeo criacutetica da pedagogia contemporacircnea apresentando a resposta da educaccedilatildeo escolar cristatilde Satildeo Joseacute dos Campos Editora Fiel 2012 PORTELA NETO F S ldquoConstrutivismo no Cenaacuterio Brasileirordquo In Fundamentos Biacuteblicos e Filosoacuteficos da Educaccedilatildeo Seacuterie Perspectivas Cristatildes da Educaccedilatildeo Satildeo Paulo ACSI Brasil 2005 PORTELA NETO F S ldquoIssues Faced by Education in the 21st Centuryrdquo Fides Reformata XXVI-1 (2021) PORTELA NETO F S Visatildeo cristatilde sobre educaccedilatildeo escolar Campina Grande PB Visatildeo Cristatilde 2015

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

44

rios e ateacute os colunistas regulares concentraram os textos em uma exposiccedilatildeo elogiosa que destacava a excelecircncia do construtivismo41

Simplificadamente o ldquoconstrutivismo postula que o conhecimento eacute algo que cresce subjetiva e individualmenterdquo ldquoNesse sentido natildeo eacute algo que deve ser ministrado ou transmitido pelo professorrdquo O mestre diferente de antiga-mente deve ser um mero ldquoagente facilitador nesse processo de crescimentordquo cognitivo42

O relacionamento entre o poacutes-modernismo e o construtivismo eacute deixado claro por Dennis McCallum analisando o posicionamento dos poacutes-modernistas quanto ao papel dos professores e agrave questatildeo da verdade

De acordo com os poacutes-modernistas os educadores satildeo facilitadores que abrigam preconceitos e satildeo co-construidores do conhecimento Se toda realidade natildeo existe ldquolaacute forardquo mas somente na mente daqueles que a percebem entatildeo ningueacutem pode reclamar para si o papel de autoridade Todas as versotildees da verdade satildeo meramente criaccedilotildees humanas Educadores ndash quer sejam professores em salas de aula pesquisadores ou autores de livros didaacuteticos ndash natildeo satildeo objetivos nem autoridades legiacutetimas Em vez disso visualizam a educaccedilatildeo partindo de suas proacuteprias perspectivas construiacutedas e cheias de preconceitos Consequentemente natildeo possuem qualquer relacionamento ldquoprivilegiadordquo com a verdade43

42 Incompatibilidades com o conceito biacuteblico da educaccedilatildeoJaacute verificamos que a teologia contemporacircnea nos vaacuterios ramos principais

aqui tratados e o poacutes-modernismo convivem em perfeita e plena harmonia Esse relacionamento eacute possibilitado pela temaacutetica desconstruccedilatildeoreconstruccedilatildeo que costura todas essas correntes de pensamento Nesse solo feacutertil um enten-dimento construtivista no campo educacional se encaixa sem dissonacircncia Mas a preocupaccedilatildeo maior eacute com a educaccedilatildeo escolar cristatilde Muitas vezes o conceito pedagoacutegico de escolas e educadores procura amparo em teologias que teimam em se utilizar de terminologia biacuteblica para destruir as proacuteprias diretrizes das Escrituras Assim terminam confundindo estas escolas e educadores pela suposta ldquocristianizaccedilatildeordquo de conceitos totalmente antagocircnicos ao que a Palavra de Deus ensina sobre a natureza humana a assimilaccedilatildeo cognitiva e a necessi-dade de firmar a praacutetica pedagoacutegica em princiacutepios e valores eternos que dela emanam Tanto pelas premissas poacutes-modernistas como pela dos construtivistas nunca teriacuteamos condiccedilatildeo de saber se a verdade objetiva existe Qualquer dado pode significar uma seacuterie de ldquoverdadesrdquo diferentes dependendo das pessoas que tomam contato com esses dados McCallum elucida ldquoUma visatildeo plena-

41 Educational Leadership 57 n 3 (novembro de 1999)42 PORTELA NETO F S O que estatildeo ensinando aos nossos filhos Fides Reformata V-1 (2000)

p 7243 MCCALLUM The Death of Truth p 99

45

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

mente construtivista e pressuposiccedilotildees metafiacutesicas estaacuteticas satildeo mutuamente excludentesrdquo44

A feacute cristatilde eacute fundamentada e o processo de ensino-aprendizagem cristatildeo deveria ser ordenado na existecircncia de acircncoras metafiacutesicas estaacuteticas Natildeo so-mente Deus eacute transcendente (estaacute aleacutem da realidade fiacutesica) e eacute imutaacutevel mas ele nos lega realidades objetivas a partir de sua pessoa Deus eacute a fonte das coisas reais ele elucida a realidade (Deus imanente) e nele natildeo haacute sombra de mudanccedilas (Tg 117 e Ml 36) A verdade eacute personificada (Jo 146) em Cristo (Deus conosco) e eacute objetivamente relatada nas Escrituras (Jo 177) A ressur-reiccedilatildeo por exemplo eacute realidade objetiva relatada por testemunhas e natildeo um reflexo subjetivo do objeto com a mente ou uma ilusatildeo criada na mente de pessoas alucinadas (1 Co 15)

Em outra faceta o processo pedagoacutegico contemporacircneo tem enaltecido o conceito da educaccedilatildeo disruptiva como ldquouma das palavras-chave do seacuteculo 21rdquo na qual toda praacutetica deve ser questionada e todo paradigma tradicional descar-tado ou desconstruiacutedo ldquorompendo com o estabelecidordquo45 A educaccedilatildeo escolar cristatilde natildeo deve ser refrataacuteria a novas metodologias mas preza e constroacutei em cima de verdades estabelecidas Ela pode reverter transitoriamente o processo mas natildeo romper com ldquoo estabelecidordquo principalmente se este ldquoestabelecidordquo forem conceitos e princiacutepios biacuteblicos A Biacuteblia aponta para a importacircncia de sermos fieacuteis ao corpo de doutrinas (ensinamentos) previamente reveladas ou seja a manutenccedilatildeo da ldquoanalogia da feacuterdquo (Rm 126)

Semelhantemente a ideia contemporacircnea da sala de aula invertida (flipped classroom)46 deve ser utilizada com cuidado por educadores e escolas cristatildes Se falamos de momentos em que os alunos satildeo levados a reverter os papeis em algumas ocasiotildees ou intermitentemente vemos paralelo com as diretrizes de Jesus aos disciacutepulos para que fossem de dois em dois a colocar em praacutetica o que estavam aprendendo (Mc 67) Ou no caso da mulher samaritana que tendo sido ensinada (Jo 47-26) passa a ensinar (Jo 439) No entanto essa metodologia educacional poacutes-moderna postula mais uma vez a desconstru-ccedilatildeo completa das praacuteticas de ensino pois o momento do encontro presencial contempla tatildeo somente discussatildeo dos assuntos reduzindo o papel do professor a um dos pares na classe

44 Ibid45 Publicaccedilatildeo Institucional do Grupo Espanhol Iberdrola sem designaccedilatildeo de autor ldquoUma educaccedilatildeo

disruptiva para enfrentar os desafios do futurordquo Disponiacutevel em httpswwwiberdrolacomtalentoseducacao-disruptiva Acesso em 6 maio 2021

46 Meacutetodo de ensino atraveacutes do qual a loacutegica da organizaccedilatildeo de uma sala de aula eacute invertida por completo Ver CARVALHO Rafael ldquoComo funciona a sala de aula invertidardquo 18 de maio de 2018 Disponiacutevel em httpswwwedoolscomsala-de-aula-invertida Acesso em 6 maio 2021

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

46

CONCLUSAtildeOO pensamento e a teologia poacutes-moderna quando acoplados ao constru-

tivismo na esfera educacional com essa forccedila demolidora de desconstruccedilatildeoreconstruccedilatildeo e uma negaccedilatildeo latente da possibilidade de aquisiccedilatildeo do conhe-cimento do real contrasta com a cosmovisatildeo cristatilde seus princiacutepios e valores extraiacutedos da Biacuteblia Como cristatildeos natildeo devemos temer revisotildees de comporta-mentos procedimentos ou processos desde que as mudanccedilas sejam efetivadas de acordo com padrotildees esquecidos ou negligenciados Na realidade nessas situaccedilotildees devemos ateacute liderar as ldquodesconstruccedilotildeesrdquo A Reforma do Seacuteculo 16 fez exatamente isso Devemos estar sempre alerta para desconstruccedilotildees e recons-truccedilotildees que sejam um fim em si mesmas descartando a sabedoria do passado e os princiacutepios da Palavra de Deus A teologia da Reforma com sua ecircnfase nas Escrituras Sagradas como uacutenica fonte autoritativa e inerrante de conhecimento religioso metafiacutesico e epistemoloacutegico deve se posicionar no centro de todos os esforccedilos intelectuais e pedagoacutegicos de cristatildeos comprometidos com a verdade

ABSTRACTThis article traces the theological development of the 20th century dividing

it into two parts the first half showing the transition from consolidated 19th century liberalism to moderncontemporary theology and the second half the road paved to postmodern theology The author demonstrates that the underlying theme of deconstruction and reconstruction of major tenets with an increasing departure from biblical directives is always present in moderncontemporary theology This is shown especially in five schools of theological thought Theology of Hope Liberation Theology Feminist Theology Process Theology and New Age Theology All these share the postmodern thought and belittle the Bible as the inerrant Word of God At the same time they provide feedback to Postmodern Theology raising doubts about biblical and traditional eternal principles and values Trends that appear in these theological schools of thought are similar to those being experienced in the field of education some of which have profound impact on the Christian teaching-learning pro-cess With its subjective approach to reality postmodernism has subverted key pedagogical concepts has undermined the role of the teacher and has submerged schools in a crisis of authority An appeal is made to have a solid biblical foundation for any philosophy of Christian school education which should be grounded in sound theology

KEYWORDSChristian education Constructivism Contemporary theology Decon-

struction and reconstruction Piaget Postmodernism Postmodern theology Theological liberalism

47

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

ldquoCOR MEUM TIBI OFFERO DOMINE PROMPTE ET SINCERErdquo UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO

SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADAHeber Carlos de Campos Juacutenior

RESUMOEste artigo apresenta a espiritualidade reformada como uma aacuterea ainda

desconhecida em meios populares e acadecircmicos e carente de ser redescoberta O conceito de que essa natildeo eacute uma aacuterea forte entre os reformados somado aos referenciais vagos sobre praacuteticas devocionais tecircm levado muitos a procurar espiritualidades alternativas No intuito de resgatar o aspecto piedoso e de-vocional da tradiccedilatildeo reformada este artigo intenta apresentar uma introduccedilatildeo agrave teologia praacutetica de personagens como Joatildeo Calvino os puritanos ingleses o movimento reformado holandecircs Nadere Reformatie e Jonathan Edwards aleacutem de representantes contemporacircneos da piedade reformada Num segundo momento o artigo apresenta alguns distintivos dessa espiritualidade e conclui apresentando a necessidade de resgatar essa histoacuteria para o movimento refor-mado brasileiro

PALAVRAS-CHAVEEspiritualidade Teologia reformada Joatildeo Calvino Puritanos Nadere

Reformatie Jonathan Edwards

Doutor em Teologia Histoacuterica (PhD Calvin Theological Seminary) Mestre em Teologia His-toacuterica (ThM Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper) professor de Teologia Histoacuterica no CPAJ e de Teologia Sistemaacutetica no Seminaacuterio Rev Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

48

INTRODUCcedilAtildeO PROCURA-SE UMA ESPIRITUALIDADE REFORMADAEspiritualidade eacute uma palavra relativamente recente no vocabulaacuterio

teoloacutegico protestante O estudioso do assunto James Houston1 observou na deacutecada de 1980 que o interesse dos evangeacutelicos pela espiritualidade era novo e o termo ateacute entatildeo natildeo aparecia em dicionaacuterios biacuteblicos ou teoloacutegicos2 Isso natildeo significa que o assunto fosse novo pois no passado eram mais utilizados termos como ldquopiedaderdquo ldquodevoccedilatildeordquo ldquosantidaderdquo ldquoandar com Deusrdquo Ateacute poucas deacutecadas atraacutes espiritualidade era um termo mais associado ao ascetismo de religiosidades orientais ou ao misticismo do monasticismo medieval Alister McGrath observa que o termo moderno ldquoespiritualidaderdquo nasce no contexto catoacutelico do seacuteculo 17 mas recentemente ldquotem recebido grande aceitaccedilatildeo como a maneira preferida de referir-se aos aspectos da praacutetica devocional de uma religiatildeo especificamente as experiecircncias individuais interiores dos cristatildeosrdquo em oposiccedilatildeo agrave religiatildeo meramente intelectual e acadecircmica3

Definir o conceito de espiritualidade eacute desafiador por ser muito abran-gente (o todo da vida cristatilde)4 e por depender dos referenciais teoloacutegicos de cada um A verdade eacute que espiritualidade eacute um guarda-chuva muito amplo com direito a definiccedilotildees vagas ou perigosamente plurais Houston define espiritua-lidade como ldquoo estado de relacionamento profundo com Deusrdquo5 e McGrath define espiritualidade cristatilde como a ldquobusca de uma vida religiosa autecircntica e satisfatoacuteriardquo6 expressotildees que natildeo oferecem paracircmetros claros para a experiecircn-cia de vida cristatilde No entanto o proacuteprio McGrath mostra que a teologia do seacuteculo 20 dissociou o estudo teoloacutegico da espiritualidade criando uma cisatildeo natildeo saudaacutevel entre o conteuacutedo objetivo da feacute e o ato subjetivo da confianccedila7

A verdade eacute que essa dicotomia entre teologia e espiritualidade tem preju-dicado conceituar o que seria uma espiritualidade reformada Afinal ldquoreforma-dordquo tem sido compreendido como sinocircnimo de ldquolinha teoloacutegicardquo natildeo de praacutetica

1 James Houston membro da Sociedade dos Irmatildeos (Plymouth Brethren) sempre se interessou por educaccedilatildeo teoloacutegica voltada para a formaccedilatildeo espiritual dos evangeacutelicos e por isso fundou o Regent College com esse interesse em resgatar a espiritualidade cristatilde ao longo dos seacuteculos MCGRATH Alister J I Packer A Biography Grand Rapids Baker 1997 p 223-231

2 HOUSTON James M ldquoEspiritualidaderdquo In ELWELL Walter A (Org) Enciclopeacutedia Histoacuterico--Teoloacutegica da Igreja Cristatilde Trad Gordon Chown Satildeo Paulo Vida Nova 1992 vol 2 p 60

3 MCGRATH Alister E Uma introduccedilatildeo agrave espiritualidade cristatilde Trad William Lane Satildeo Paulo Vida 2008 p 21 25

4 Para um resumo das complexidades dessa definiccedilatildeo ver a discussatildeo do catoacutelico SHELDRAKE Philip Spirituality A Brief History 2ordf ed Malden MA Wiley-Blackwell 2013 p 3-9

5 HOUSTON ldquoEspiritualidaderdquo p 606 MCGRATH Uma introduccedilatildeo agrave espiritualidade cristatilde p 207 Ibid p 60-62

49

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

cristatilde Popularmente reformado eacute sinocircnimo de ldquocabeccedila granderdquo e ldquocoraccedilatildeo friordquo com pouca ecircnfase em avivamento8 Curiosamente vaacuterios evangeacutelicos simpaacuteticos agrave teologia reformada talvez conseguissem enumerar particularidades da ldquoespiritualidade catoacutelicardquo ou da ldquoespiritualidade pentecostalrdquo mas teriam dificuldade em arrolar os distintivos de uma ldquoespiritualidade reformadardquo Se essa constataccedilatildeo estaacute correta deve-se concluir que essa espiritualidade ou eacute inexistente enquanto tradiccedilatildeo (isto eacute apenas presente em alguns poucos indiviacuteduos) ou eacute desconhecida do puacuteblico

Philip Ryken discordaria de que ela seja inexistente pois ele define o cal-vinista verdadeiro como algueacutem cuja espiritualidade consiste em ter uma mente centrada em Deus um espiacuterito penitente um coraccedilatildeo grato uma vontade sub-missa ao Todo-Poderoso uma vida santa e um propoacutesito de glorificar o Senhor9 Essa eacute a sua tentativa de enumerar as caracteriacutesticas de uma espiritualidade reformada em resposta agravequeles que tem uma visatildeo quanto aos reformados de intransigecircncia em sua militacircncia teoloacutegica Eacute verdade que uma descoberta do calvinismo que se torna beacutelica e quase que exclusivamente cognitiva (ortodoxia sem devoccedilatildeo) natildeo tem ajudado pelo contraacuterio parece reforccedilar a imagem de que o calvinista natildeo eacute piedoso Todavia mesmo para os que discordam dessa visatildeo popular natildeo satildeo muitos que conseguiriam enumerar uma boa histoacuteria resumida da teologia praacutetica entre os reformados

Mesmo o meio acadecircmico natildeo tem facilidade em identificar quais seriam os contornos de uma espiritualidade reformada Supreendentemente por vezes ateacute questiona se de fato existe uma espiritualidade distinta dos reformados O acadecircmico presbiteriano Hughes Oliphant Old numa palestra proferida no iniacutecio da deacutecada de 199010 disse que muitos se surpreenderam quando uma grande coletacircnea sobre os claacutessicos da espiritualidade ocidental quase natildeo incluiu protestantes e os que foram colocados nem representavam bem a es-piritualidade protestante (por exemplo Jacob Boehme os Quakers William Law etc) Ele lamentou que essa lista natildeo tivesse incluiacutedo os salmos metrifi-cados de Clement Marot e Teodoro Beza as cartas de Joatildeo Calvino e Samuel Rutherford a Fiel Narrativa de Jonathan Edwards o diaacuterio de David Brainerd o comentaacuterio devocional de Matthew Henry e os escritos de Richard Baxter dentre outros claacutessicos reformados Isso levou muitos a perguntarem se de

8 Kenneth Stewart comprova que esse preconceito eacute um dos vaacuterios mitos entre os reformados jaacute que haacute uma longa lista de envolvimento de reformados com avivamentos Cf STEWART Kenneth Ten Myths about Calvinism Recovering the Breadth of the Reformed Tradition Downers Grove IL InterVarsity 2011 p 99-120

9 RYKEN Philip Graham ldquoO que eacute um calvinista de verdaderdquo In LUCAS Sean Michael et al (Orgs) Seacuterie Feacute Reformada Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2015 vol 1 p 10-29

10 OLD Hughes Oliphant ldquoWhat is Reformed Spirituality Played Over Again Lightlyrdquo In LEITH J H (Org) Calvin Studies VII John Calvin Studies Davidson NC 1994 p 61-68

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

50

fato existe tal coisa como uma ldquoespiritualidade reformadardquo11 Essa ausecircncia de uma histoacuteria bem contada sobre a piedade reformada levou a um conceito popular negativo sobre o calvinismo

Por conta desse vaacutecuo histoacuterico surgiu ateacute entre pessoas que pertencem a igrejas reformadas uma busca por espiritualidades alternativas Tem havido um movimento de resgate do que eacute antigo como se a modernidade tivesse sufocado a vida piedosa12 O prefaciador brasileiro da obra de Alister McGrath sobre espiritualidade escreve ldquoEacute tempo de deixarmos as teacutecnicas de marke-ting e administraccedilatildeo e voltarmo-nos ao testemunho dos santos e profetas que habitaram o deserto e os mosteiros especialmente entre os seacuteculos VI e XV e conhecer o Deus que estaacute mais interessado em nossos afetos do que em nossos feitos mais atento ao nosso caraacuteter do que aos nossos discursosrdquo13 Kenneth Stewart narra que existe uma onda de livros evangeacutelicos norte-americanos apontando para o monasticismo como o ideal de espiritualidade a ser resga-tado pelos evangeacutelicos No entanto ele mesmo avalia que tem havido uma apropriaccedilatildeo de praacuteticas contemplativas sem discernimento teoloacutegico14 Esse tipo de espiritualidade alternativa por vezes estaacute unido a interesses por certas doutrinas reformadas criando um pluralismo eclesiaacutestico bem diversificado em nossos dias

Essa apropriaccedilatildeo evangeacutelica miacutestica do legado romanista parece nova mas tem elementos bem antigos Michael Horton observa como a valorizaccedilatildeo do interior sobre o exterior do espiacuterito antes que a instituiccedilatildeo eacute tatildeo antigo quanto o gnosticismo cujas pressuposiccedilotildees platocircnicas natildeo foram todas rejeitadas pela igreja15 Na Idade Meacutedia o dualismo interior-exterior levou a vaacuterios movimen-tos miacutesticos de desprezo da igreja institucionalizada (pregaccedilatildeo sacramentos disciplina) em favor de disciplinas espirituais privadas Isso foi apropriado natildeo soacute por movimentos religiosos como os anabatistas entusiastas (ldquoDeus dentrordquo) mas ateacute de modo ainda mais influente nas filosofias iluministas ldquoSeja conce-bida em termos da razatildeo interior (Descartes) lsquoda lei moral interiorrsquo (Kant) ou do lsquosentimento piedosorsquo (Schleiermacher) a modernidade fez ouvidos moucos

11 OLD ldquoWhat is Reformed Spiritualityrdquo p 6112 Robert Webber foi um dos que defenderam a necessidade de um resgate da tradiccedilatildeo para promo-

ver uma mistura de antigo e poacutes-moderno em vaacuterias aacutereas da teologia inclusive na espiritualidade Cf WEBBER Robert Ancient-Future Faith Rethinking Evangelicalism for a Postmodern World Grand Rapids Baker 1999 p 117-138

13 Osmar Ludovico da Silva ldquoPrefaacutecio agrave ediccedilatildeo brasileirardquo In MCGRATH Uma introduccedilatildeo agrave espiritualidade cristatilde p 12

14 STEWART Kenneth J In Search of Ancient Roots The Christian Path and the Evangelical Identity Crisis Downers Grove IL InterVarsity 2017 p 173-186

15 HORTON Michael A Grande Comissatildeo O resgate da estrateacutegia divina para o discipulado Trad Odayr Olivetti Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2014 p 287

51

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

para toda e qualquer autoridade externardquo16 Isso se vecirc entre evangeacutelicos como o quaker Richard Foster o qual natildeo inclui nas disciplinas espirituais os meios de graccedila (pregaccedilatildeo e sacramentos) ordenados por Cristo enquanto trata como essenciais meacutetodos para a piedade pessoal que natildeo satildeo ordenados na Escritura (por exemplo simplicidade e celebraccedilatildeo)17 Se conectarmos o misticismo antigo com representantes atuais da espiritualidade individualista podemos concluir que o movimento emergente e o de desigrejados natildeo eacute nada poacutes-moderno mas totalmente moderno

A dicotomia entre teologia e espiritualidade explica a falta de criteacuterio com o qual muitos tem se apropriado de outras espiritualidades Richard Foster eacute um dos grandes mentores de espiritualidade no mundo evangeacutelico atual Ele eacute um exemplo dessa apropriaccedilatildeo indiscriminada da tradiccedilatildeo quando funda uma instituiccedilatildeo (Renovare) cujo objetivo eacute ldquouma visatildeo integral da espiritualidade cristatilderdquo O que se entende por ldquointegralrdquo eacute uma amaacutelgama de seis tradiccedilotildees de espiritualidade (contemplativa de santidade carismaacutetica de justiccedila social evangelical sacramental) num mesmo pacote uacutetil para fomentar a espiritua-lidade do cristatildeo18 Quando se tem esse tipo de referencial vago e plural fica mesmo difiacutecil conhecer o que seria uma espiritualidade reformada

Outro evangeacutelico que enfatiza o interior em detrimento do institucio-nal eacute Dallas Willard que diminui o ldquoevangelho do perdatildeordquo em prol de uma ldquotransformaccedilatildeo interior da almardquo e parafraseia a Grande Comissatildeo de Mateus 28 substituindo os meios de graccedila (Palavra e sacramento) por nossas ativida-des19 Numa entrevista ao perioacutedico Modern Reformation Willard enfatizou disciplinas espirituais como ldquosolitude e silecircnciordquo e uma ecircnfase muito maior na vida cristatilde individual do que coletiva e terminou o texto menosprezando a importacircncia dos meios de graccedila como a pregaccedilatildeo e os sacramentos20 Esse tipo de espiritualidade comum entre evangeacutelicos tem que nos preocupar em tempos atuais quando a igreja tem perdido referenciais fiacutesicos e congregacionais onde uma visatildeo virtual e passiva de culto tem proliferado

Diante desse cenaacuterio evangeacutelico pode-se deduzir erroneamente que natildeo tem havido vozes procurando ensinar acerca de espiritualidade a partir da tra-diccedilatildeo reformada Na verdade existe um esforccedilo contemporacircneo para resgatar

16 HORTON A Grande Comissatildeo p 28917 Ibid p 29018 FOSTER Richard Celebraccedilatildeo da disciplina o caminho do crescimento espiritual 2ordf ed Satildeo

Paulo Vida 2007 p 303-304 Cf FOSTER Richard J e GRIFFIN Emilie Celebrando as 12 disciplinas espirituais textos claacutessicos sobre as disciplinas interiores exteriores e comunitaacuterias Trad Elizabeth Gomes Satildeo Paulo Vida 2010

19 HORTON A Grande Comissatildeo p 290-29120 ldquoSpiritual Disciplines and Means of Grace Contrast or Continuum QampA with Dallas Willardrdquo

Modern Reformation vol 22 n 4 (jul-ago 2013) p 23-25

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

52

uma identidade reformada de piedade por parte de autores de teologia histoacuterica e praacutetica tanto do meio acadecircmico como pastores e pensadores com uma lente reformada Alguns deles se especializaram em escritos de formaccedilatildeo espiritual e devoccedilatildeo como Jerry Bridges21 Donald Whitney22 e Tom Schwanda23 Aleacutem destes podemos mencionar teoacutelogos que natildeo satildeo conhecidos por essa aacuterea da teologia mas que tem exercido enorme influecircncia sobre a percepccedilatildeo reformada de espiritualidade como eacute o caso de Francis Schaeffer24 John Piper25 Michael Haykin26 e Joel Beeke27 Eacute certo que outros nomes poderiam ser citados poreacutem estes satildeo suficientes para ilustrar a tentativa de resgate de parte da tradiccedilatildeo reformada ainda relativamente desconhecida

Ainda que jaacute tenhamos alguma literatura em portuguecircs a espiritualidade reformada parece ser uma descoberta que ainda precisa ser feita em nosso paiacutes O crescimento do interesse pela teologia reformada natildeo tem sido ampla-mente marcado pela descoberta de sua espiritualidade Como este eacute um artigo histoacuterico-teoloacutegico seu intento eacute fazer um resgate introdutoacuterio desse legado e mostrar que a espiritualidade reformada existe desde as origens do movimen-to Na primeira parte do artigo seratildeo apresentados alguns representantes da tradiccedilatildeo em seu interesse por promover devoccedilatildeo de forma solidamente teoloacute-gica Na segunda parte seratildeo destacadas algumas caracteriacutesticas tipicamente reformadas a fim de se concluir que sua espiritualidade eacute de fato resultado de sua visatildeo teoloacutegica

21 Jerry Bridges (1929-2016) sempre esteve associado a uma entidade paraeclesiaacutestica (Naviga-tors) poreacutem suas ecircnfases teoloacutegicas mais marcantes foram obras da tradiccedilatildeo reformada das quais vaacuterias jaacute foram traduzidas para o portuguecircs Para um resumo de suas origens e seu legado ver httpswwwthegospelcoalitionorgblogsjustin-taylorjerry-bridges-1929-2016 Acesso em 4 jun 2021

22 Cf WHITNEY Donald Disciplinas espirituais para a vida cristatilde Satildeo Paulo Batista Regular 2009 Para mais recursos de Don Whitney ver httpsbiblicalspiritualityorg Acesso em 4 jun 2021

23 Cf SCHWANDA Tom Soul Recreation The Contemplative-Mystical Piety of Puritanism Eugene OR Wipf amp Stock 2012

24 Cf SCHAEFFER Francis A Verdadeira espiritualidade 2ordf ed Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2018 EDGAR William Francis Schaeffer e a vida cristatilde a espiritualidade contracultural Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2018

25 John Piper eacute muito conhecido do puacuteblico brasileiro e natildeo se faz necessaacuterio mencionar os vaacuterios livros de sua autoria que jaacute foram traduzidos para o portuguecircs Todavia o destaque ao seu nome se daacute pelo fato de sua principal ecircnfase sempre girar em torno da vida cristatilde da piedade e do seu interesse por tantos personagens histoacutericos que marcaram a tradiccedilatildeo reformada especialmente Jonathan Edwards

26 Michael Haykin natildeo soacute eacute estudioso da patriacutestica e da histoacuteria da ala batista reformada mas tem escrito livros que mostram o lado devocional e praacutetico da espiritualidade reformada Cf HAYKIN Michael The God Who Draws Near An Introduction to Biblical Spirituality Webster NY Evangelical Press 2007 8 mulheres de feacute Satildeo Joseacute dos Campos Fiel 2017

27 BEEKE Joel Espiritualidade reformada uma teologia praacutetica para a devoccedilatildeo a Deus Trad Valter Graciano Martins Satildeo Joseacute dos Campos Fiel 2014 BEEKE Joel R e PEDERSON Randall J Paixatildeo pela pureza Satildeo Paulo PES 2011

53

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

1 REPRESENTANTES HISTOacuteRICOS DE UMA ESPIRITUALIDADE REFORMADA

Hughes Oliphant Old afirma que a Reforma do seacuteculo 16 reformou a es-piritualidade assim como o fez com a teologia Se por seacuteculos a espiritualidade havia sido enclausurada atraacutes das paredes dos mosteiros separada da sujeira das atividades cotidianas deste mundo a espiritualidade protestante articulou a vida cristatilde ldquocom a famiacutelia laacute fora nos campos na oficina na cozinha ou no comeacuterciordquo28 De fato essa eacute a santificaccedilatildeo da vida comum (cf Ef 518-69) Em contraste com o monasticismo medieval a piedade reformada entendia a reclusatildeo e meditaccedilatildeo moderaccedilatildeo e preocupaccedilatildeo com a eternidade mas seu ascetismo era apenas espiritual29 Arie de Reuver diz que enquanto o monas-ticismo fugia do mundo com janelas fechadas para uma espiritualidade de solidatildeo os reformados abriram suas janelas para o barulho da rua para uma espiritualidade de solidariedade30 Alguns exemplos da histoacuteria reformada se-ratildeo vistos de forma panoracircmica nesta seccedilatildeo alguns mais conhecidos e outros menos conhecidos apenas com o intuito de mostrar que essa tradiccedilatildeo tem uma longa histoacuteria de piedade

A pesquisa de autores apresentados no paraacutegrafo anterior revela que os representantes histoacutericos da espiritualidade reformada seratildeo apresentados na maneira como interagem com o restante da tradiccedilatildeo Isto eacute ao inveacutes de apre-sentar apenas a piedade desses teoacutelogos num vaacutecuo histoacuterico haveraacute maior preocupaccedilatildeo em destacar como eles lidaram com a devoccedilatildeo cristatilde ao seu redor e como se apropriaram da tradiccedilatildeo cristatilde de piedade de forma criteriosa segundo o filtro de suas convicccedilotildees teoloacutegicas Tal ecircnfase demonstraraacute primeiramente a catolicidade de nossa feacute e praacutetica provando que os reformados natildeo soacute liam os gigantes da patriacutestica e do medievo mas se apropriavam de vaacuterios aspectos dessas expressotildees histoacutericas do cristianismo Os reformados se apropriaram natildeo soacute da teologia de gigantes como Agostinho mas inclusive da espiritualidade de autores como Bernardo de Claraval e Tomaacutes agrave Kempis os dois pietistas medievais mais citados entre os reformados holandeses31 Em complemento agrave catolicidade da espiritualidade a ecircnfase desta seccedilatildeo mostraraacute em segundo lugar que a apropriaccedilatildeo da tradiccedilatildeo foi cautelosa e condizente com a feacute reformada Este eacute possivelmente o ponto mais importante desta seccedilatildeo

Arie de Reuver resume a diferenccedila entre o misticismo medieval e a espiri-tualidade dos reformadores agrave medida que interagiram com essa teologia miacutestica

28 OLD ldquoWhat is Reformed Spiritualityrdquo p 6129 DE REUVER Arie Sweet Communion Trajectories of Spirituality from the Middle Ages

through the Further Reformation Grand Rapids Baker 2007 p 10130 Ibid31 Cf DE REUVER Sweet Communion

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

54

A rejeiccedilatildeo do misticismo pelos reformadores envolveu somente certa forma dele Essa forma incluiacutea em primeiro lugar um misticismo que funcionava como uma uniatildeo experimental na qual a fronteira entre Deus e a humanidade era obliterada Ela incluiacutea em segundo lugar um misticismo que era prezado e praticado como uma condiccedilatildeo preacutevia meritoacuteria para a salvaccedilatildeo que ignorava a graccedila Ela incluiacutea em terceiro lugar um misticismo restrito a observacircncias monaacutesticas Em quarto lugar ela envolvia um misticismo que frustrava o equi-liacutebrio entre feacute e amor prejudicando a feacute32

Esses quatro pontos levantados na citaccedilatildeo acima ajudam a delimitar o que da espiritualidade medieval foi aceito pelos reformadores e o que foi descartado Eacute especialmente importante destacar o quarto e uacuteltimo ponto pois revela mais imitatio Christi do que unio Christi entre os miacutesticos medievais Os reformado-res iratildeo lutar por esse equiliacutebrio entre feacute e amor perdido na teologia medieval

O mesmo tipo de filtro da tradiccedilatildeo aparece na forma como os reformados holandeses Willem Teellinck (1579-1629) e Wilhelmus agrave Brakel (1635-1711) interagiram com o miacutestico medieval Tomaacutes agrave Kempis (c 1379-1471) Teellinck tem apreccedilo pela obra de Kempis A Imitaccedilatildeo de Cristo e a cita vaacuterias vezes em seus escritos embora reconheccedila imperfeiccedilotildees em sua espiritualidade Teellinck procura transpor a forma e o sabor de boa parte da literatura devocional preacute--Reforma para um contexto reformado Afinal muitas dessas obras contecircm trecircs erros a ilusatildeo da perfeiccedilatildeo justificaccedilatildeo em conjunto com as boas obras e desvalorizaccedilatildeo da Escritura33 Brakel tambeacutem considera A Imitaccedilatildeo de Cristo de Kempis um excelente tratado mas observa como Kempis teve pouco a dizer ldquosobre o Senhor Jesus como o resgate e a justiccedila dos pecadores ndash sobre como ele por uma feacute verdadeira deve ser usado para a justificaccedilatildeo e aproximaccedilatildeo de Deus praticando a verdadeira santidade como algo originado nele e em nossa uniatildeo com elerdquo34 O que o reformado Brakel quer dizer eacute que o escritor medieval apresentou alguns oacutetimos aspectos de vida cristatilde mas sem o funda-mento objetivo dessa espiritualidade isto eacute ele observa que haacute uma proposta de discipulado (inclui carregar a cruz humildade autoexame meditaccedilatildeo etc) sem estar calcado na obra objetiva de Cristo Nas palavras do estudioso Arie de Reuver o Cristo que eacute nosso substituto ficou na sombra do Cristo que nos chama a segui-lo35 Essa preocupaccedilatildeo eacute semelhante agrave de Michael Horton quando diz que o evangelicalismo moderno tem se preocupado mais com o que Cristo faria numa determinada situaccedilatildeo (ldquoEm seus passos o que faria Jesusrdquo) ao inveacutes do que Cristo fez por vocecirc isto eacute mais lei do que evangelho (espiritualidade

32 Ibid p 2233 Ibid p 112-11334 BRAKEL Wilhelmus agrave The Christianrsquos Reasonable Service Grand Rapids Reformation

Heritage Books 1992 vol 2 p 64135 DE REUVER Sweet Communion p 99

55

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

moralista)36 Esse eacute o tipo de discernimento do qual tanto carecem os evangeacute-licos que se simpatizam com aspectos da tradiccedilatildeo reformada

Tendo feito um panorama da forma como o movimento reformado lidou com a tradiccedilatildeo cristatilde de vida devocional veremos agora alguns representantes histoacutericos do movimento

11 Joatildeo CalvinoA frase latina que daacute tiacutetulo a este artigo (que pode ser traduzida por ldquoMeu

coraccedilatildeo te ofereccedilo Senhor de modo pronto e sincerordquo) eacute encontrada em selos de Genebra logo apoacutes a morte de Calvino e por vezes eacute atribuiacuteda a ele37 Independentemente da fonte exata da frase ela expressa a espiritualidade de um homem que se destaca por sua teologia doutrinaacuteria Eacute preciso resgatar a espiritualidade de quem eacute frequentemente considerado gigante apenas em sua teologia

Muito jaacute foi escrito sobre a espiritualidade de Joatildeo Calvino38 poreacutem alguns traccedilos gerais seratildeo suficientes para demonstrar a riqueza desse reformador no toacutepico da pietas (piedade) a palavra mais utilizada por ele para se referir ao nosso tema O contexto do monasticismo medieval e a resposta de Calvino seratildeo apresentados em primeiro lugar para depois realccedilar o trecho das Insti-tutas mais conhecido por sua ecircnfase em diferentes aspectos da devoccedilatildeo cristatilde

David Steinmetz39 analisa a criacutetica que Calvino faz da instituiccedilatildeo e da ideologia do monasticismo e a situa no contexto medieval de debates sobre o

36 Cf HORTON Michael Cristianismo sem Cristo o evangelho alternativo da igreja atual Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2010

37 Os selos utilizados por Calvino tinham a figura de matildeos segurando um coraccedilatildeo mas sem estarem acompanhados de palavras Para uma breve histoacuteria do selo de Calvino ver o artigo de Barbara Carvill ldquoThe Calvin Sealrdquo em httpscalvineduabouthistorycalvin-sealhtml Acesso em 4 jun 2021 Todavia temos uma frase parecida de Calvino numa carta que escreveu a Guilherme Farel quando relutantemente cedeu ao pedido do amigo para que retornasse a Genebra em 1541 ldquoOfereccedilo meu coraccedilatildeo apresentado como sacrifiacutecio ao Senhorrdquo CALVINO Joatildeo ldquoPara William Farelrdquo In Cartas de Joatildeo Calvino Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2009 p 49

38 Apenas a tiacutetulo de introduccedilatildeo bibliograacutefica ver as seguintes obras RICHARD Lucien Joseph The Spirituality of John Calvin Atlanta John Knox Press 1974 SIMPSON Henry William ldquoPietas in the Institutes of Calvinrdquo In VAN DER WALT Barend Johannes (Org) Our Reformational Tradition A Rich Heritage and Lasting Vocation Potchefstroom Potchefstroom University for Christian Higher Education 1984 p 179-191 BOWSMA William J ldquoThe Spirituality of John Calvinrdquo In RAITT Jill (Org) Christian Spirituality High Middles Ages and Reformation New York Crossroad 1987 p 318-333 GAMBLE Richard C ldquoCalvin and Sixteenth-Century Spirituality Comparison with the Anabaptistsrdquo Calvin Theological Journal vol 31 n 2 (1996) p 335-358 GLEASON Randall C John Calvin and John Owen on Mortification a comparative study on reformed spirituality New York Peter Lang 1995 BEEKE Espiritualidade reformada p 23-60 HORTON Michael Calvino e a vida cristatilde para glorificar a Deus e alegrar-se nele para sempre Trad Jader Santos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2017

39 STEINMETZ David C ldquoCalvin and the Monastic Idealrdquo In STEINMETZ David C Calvin in Context 2 ed Oxford Oxford University Press 2010 p 185-196

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

56

status da vida religiosa Tomaacutes de Aquino (1225-1274) enxerga os monges em um estado de perfeiccedilatildeo pois eles natildeo soacute cumprem os mandamentos biacuteblicos (obrigaccedilatildeo de todo cristatildeo) mas tambeacutem os conselhos evangeacutelicos (celibato e voto de pobreza) Portanto aqueles que fazem parte das ordens mendicantes estatildeo em vantagem na busca da santidade pois suas obras tecircm maior valor meritoacuterio Depois de sintetizar as criacuteticas medievais ao movimento monaacutestico por parte de Jean Gerson (1363-1429) e Johann Pupper von Goch (1400-1475) Steinmetz resume a criacutetica de Calvino de que o movimento eacute cismaacutetico pois cria uma dicotomia entre os monges e o resto da igreja quando de fato Cristo estabeleceu uma regra de vida com mandamentos e conselhos para todos os cristatildeos Calvino tambeacutem confronta o celibato como uma lei para todo cleacuteri-go concluindo que o voto monaacutestico pode ser dissolvido pois Deus natildeo nos prende a votos iliacutecitos40 Acima de tudo Calvino advogava a unidade cristatilde e o estado de perfeiccedilatildeo como sendo o estado de todo cristatildeo41

Eacute lamentaacutevel que as Institutas tenham ganhado um caraacuteter mais dogmaacutetico na histoacuteria e tenham sido negligenciadas como um livro catequeacutetico e portanto para a vida cristatilde comum Nela Calvino considera a piedade como a ldquoreverecircncia unida ao amor por Deusrdquo induzida pelo ldquoconhecimento de seus benefiacuteciosrdquo42 A raiz dessa piedade eacute a uniatildeo miacutestica com Cristo uma doutrina que permeia as suas obras e que permite que tenhamos ldquocomunhatildeordquo com Cristo e ldquopartici-paccedilatildeordquo nos seus benefiacutecios43 A doutrina da justificaccedilatildeo eacute o solo de onde brota a piedade e a santificaccedilatildeo eacute o contiacutenuo remodelar do Espiacuterito consagrando-nos a Deus Joel Beeke destaca as dimensotildees eclesioloacutegicas da piedade de Calvino quando fala da igreja da palavra dos sacramentos e do salteacuterio44 Quanto agraves dimensotildees praacuteticas de sua piedade Beeke destaca a importacircncia da oraccedilatildeo (o segundo capiacutetulo mais longo das Institutas) depois aborda o arrependimento e entatildeo dedica o restante do tempo agraves Institutas III6-1045

Esse trecho das Institutas eacute tatildeo significativo que desde 1550 ele foi pu-blicado separadamente vaacuterias vezes sob o tiacutetulo O Livreto Dourado da Vida Cristatilde uma espeacutecie de resumo da piedade calvinista Nesse trecho Calvino fala de abnegaccedilatildeo carregar a cruz e frugalidade na vida presente por ter em mente a vida futura Calvino introduz essa seccedilatildeo das Institutas dizendo que o seu propoacutesito eacute mostrar ao homem de Deus como ele pode direcionar a sua trajetoacuteria para uma vida ordeira e apresentar brevemente algumas regras para

40 STEINMETZ ldquoCalvin and the Monastic Idealrdquo p 192-19341 Cf CALVIN John The Institutes of the Christian Religion Philadelphia The Westminster

Press 1960 IVxiii42 CALVIN Institutes of the Christian Religion Iii143 BEEKE Espiritualidade reformada p 27-2944 Ibid p 33-4845 Ibid p 48-56

57

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

determinar as suas tarefas46 Essa instruccedilatildeo apresenta uma eacutetica que envolve tanto virtudes como regras pois fala do amor pela justiccedila que eacute infundido em nossos coraccedilotildees mas tambeacutem de uma regra que natildeo nos deixa desviar em nosso zelo pela justiccedila47 No capiacutetulo sobre abnegaccedilatildeo Calvino assevera que natildeo somos nossos mas vivemos e morremos para a gloacuteria de Deus48 explica o conceito de autonegaccedilatildeo conforme Tito 249 e a apresenta nas relaccedilotildees com o proacuteximo (marcadas por humildade espiacuterito de serviccedilo e amor sincero)50 e na relaccedilatildeo com Deus51 No capiacutetulo sobre carregar a cruz Calvino demonstra que a nossa cruz nutre esperanccedila nos treina em paciecircncia e obediecircncia e trata medicinalmente de nossa carne rebelde52 ao mesmo tempo que discorre sobre como suportar o sofrimento em distinccedilatildeo do espiacuterito estoico53 No capiacutetulo 9 do livro 3 Calvino fala de como a vida presente eacute motivo de gratidatildeo na medida que experimentamos a doccedilura da generosidade divina e almejamos sua plena revelaccedilatildeo54 Calvino ensina a desejar deixar esta vida somente na medida em que ela nos prende ao pecado e reprende severamente aqueles que se deixam vencer pelo medo da morte55 No uacuteltimo capiacutetulo dessa seccedilatildeo Calvino ensina como viver esta vida piedosamente atraveacutes do uso adequado das daacutedivas divi-nas do princiacutepio da frugalidade e da vocaccedilatildeo que Deus concedeu a cada um56

46 CALVIN Institutes of the Christian Religion IIIvi147 Ibid IIIvi248 Ibid IIIvii1 Joel Beeke comenta ldquoa abnegaccedilatildeo natildeo eacute centrada no ego como se dava com

frequecircncia no monasticismo medieval e sim centrada em Deus Nosso maior inimigo natildeo eacute o diabo nem o mundo e sim noacutes mesmosrdquo BEEKE Espiritualidade reformada p 53

49 CALVIN Institutes of the Christian Religion IIIvii350 Ibid IIIvii4-751 Ibid IIIvii8-10 Ronald Wallace julga que os toacutepicos de carregar a cruz e autonegaccedilatildeo estatildeo

claramente em continuidade com a obra de Tomaacutes agrave Kempis Todavia Wallace faz uma distinccedilatildeo entre o misticismo medieval e a piedade de Calvino ldquoEntretanto no ensino dos miacutesticos medievais o chamado para a negaccedilatildeo de si mesmo era frequentemente considerado uma obra de iniciativa humana merecendo recompensa e resposta de Deus Calvino todavia sempre considera nosso sacrifiacutecio de negaccedilatildeo de noacutes mesmos como possiacutevel apenas mediante a graccedila de Deus em Cristordquo WALLACE Ronald Calvino Genebra e a Reforma Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2003 p 160

52 CALVIN Institutes of the Christian Religion IIIviii3-5 Beeke comenta ldquoEnquanto a abne-gaccedilatildeo focaliza a conformidade interior com Cristo o levar a cruz se centra na externa semelhanccedila com Cristordquo BEEKE Espiritualidade Reformada p 54

53 CALVIN Institutes of the Christian Religion IIIviii9-1154 Ibid IIIix355 Ibid IIIix4-556 Ibid IIIx2 5-6 Beeke comenta ldquoCalvino natildeo era asceta ele desfrutava a boa literatura

o bom alimento e as belezas da natureza No entanto rejeitou todas as formas do excesso terreno O crente eacute chamado agrave moderaccedilatildeo de Cristo a qual inclui modeacutestia prudecircncia abstenccedilatildeo de ostentaccedilatildeo e o contentamento com nossa sorte pois eacute a esperanccedila da vida por vir que nos fornece o propoacutesito e o desfrute de nossa presente vidardquo BEEKE Espiritualidade reformada p 55-56

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

58

12 Os puritanos inglesesFalar resumidamente da piedade puritana das Ilhas Britacircnicas nos seacuteculos

16 e 17 eacute quase impossiacutevel jaacute que a literatura que aborda o movimento eacute quase toda voltada para a sua devoccedilatildeo multifacetada Ainda que os puritanos tenham se mostrado excelentes em sua teologia eacute possiacutevel argumentar que o movimento puritano eacute prioritariamente um movimento de espiritualidade reformada na medida em que seus adeptos visavam purificar a Igreja da Inglaterra de suas imperfeiccedilotildees ldquopapistasrdquo Richard Lovelace traccedila um panorama da literatura devocional inglesa no iniacutecio do seacuteculo 17 como uma criacutetica agrave tradiccedilatildeo catoacutelica romana em sua origem e esboccedila a anatomia da piedade puritana composta de marcas de uma verdadeira conversatildeo vida de santidade crescimento em piedade e percepccedilatildeo da astuacutecia de Satanaacutes os meios de graccedila o amor pelo proacuteximo e a comunhatildeo com Deus57 Um exemplo dessa literatura explorado por Lovelace eacute o claacutessico de Lewis Bayly (c 1575-1631) A Praacutetica da Piedade que se tornou uma referecircncia de literatura devocional jaacute no seacuteculo 17 sendo reimpresso em dezenas e dezenas de novas ediccedilotildees

Em nosso idioma a espiritualidade dos puritanos eacute bem explorada em livros de J I Packer58 Leland Ryken59 e Joel Beeke Packer por exemplo apre-senta um panorama dos escritos praacuteticos de puritanos ingleses como Richard Greenham William Perkins mas principalmente Richard Baxter e observa tal literatura como sendo popular no sentido de ser simples mas certamente natildeo no sentido de ser teologicamente inepta60 Packer observa cinco qualida-des nesses escritos eles revelam os puritanos como verdadeiros meacutedicos da alma como expositores da Escritura que dirigiam seu ensino agraves consciecircncias e aos afetos dos ouvintes como educadores da mente como inculcadores da verdade e como homens espirituais61 Em sua exposiccedilatildeo da espiritualidade de John Owen Packer explora natildeo somente a santificaccedilatildeo nas trecircs obras de Owen que falam de luta contra o pecado mas analisa principalmente a sua obra Co-munhatildeo com Deus Packer diz que nossa geraccedilatildeo tende a pensar na comunhatildeo com Deus de modo subjetivo nossa consciente experiecircncia com Deus mas os puritanos pensavam nessa comunhatildeo de modo objetivo na aproximaccedilatildeo divina a noacutes ldquoIsso livrou-os do perigo do falso misticismo que tem poluiacutedo

57 LOVELACE Richard C ldquoPuritan Spirituality The Search for a Rightly Reformed Churchrdquo In DUPREacute Louis e SALIERS Don E (Orgs) Christian Spirituality Post-Reformation and Modern New York Crossroad 1989 p 294-323

58 PACKER J I Entre os gigantes de Deus uma visatildeo puritana da vida cristatilde Satildeo Joseacute dos Campos Fiel 1996

59 RYKEN Leland Santos no mundo os puritanos como realmente eram 2 ed Satildeo Joseacute dos Campos Fiel 2013

60 PACKER Entre os gigantes de Deus p 6861 Ibid p 69-84

59

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

muito da suposta devoccedilatildeo em tempos recentesrdquo diz Packer O contexto e a causa da comunhatildeo ldquoeacute a eficaz comunhatildeo de Deus conosco transmitindo-nos vida a primeira coisa sempre deve ser concebida como uma consequecircncia ou mesmo um aspecto da uacuteltimardquo62

Embora por vezes seja alvo de caricatura ou criacutetica63 a espiritualidade dos puritanos eacute uma das grandes contribuiccedilotildees desse movimento agrave espiritualidade de nossos dias Haacute temas interessantiacutessimos como a questatildeo da consciecircncia e a seguranccedila da salvaccedilatildeo (casuiacutestica de William Perkins e William Ames)64 a guarda do dia do Senhor65 e a visatildeo que tinham de culto66 Todavia essa piedade puritana seraacute ilustrada apenas com o conceito que possuiacuteam da meditaccedilatildeo Joel Beeke fala sobre a negligenciada praacutetica da meditaccedilatildeo ressaltando diferentes temas e propoacutesitos meditar sobre Cristo para ter nosso coraccedilatildeo inflamado pelo seu amor meditar no pecado para odiaacute-lo meditar nas verdades de Deus para ser transformado por elas67 e meditar para alargar nossa feacute aumentar santas afeiccedilotildees e fomentar arrependimento e reforma de vida68 Os puritanos falavam de meditaccedilotildees ocasionais (como ser levado a meditar em Deus por causa de algo belo na natureza) e meditaccedilotildees deliberadas habituais a ocasional era alvo de cuidados para natildeo se tornar supersticiosa69 e a meditaccedilatildeo ordinaacuteria sobre a Palavra de Deus era cuidadosamente dissecada para que fosse uma praacutetica constante70 O puritano Thomas Brooks dizia que a meditaccedilatildeo eacute o estocircmago que digere as verdades espirituais o cristatildeo mais forte natildeo eacute o que lecirc mais mas o que medita mais71 Richard Baxter dizia que alguns fieacuteis tecircm anorexia espiritual (natildeo tem apetite por verdades biacuteblicas e nem as digerem) outros tem bulimia espiritual (tem apetite mas natildeo a digerem)72 Que aplicaccedilatildeo adequada para tempos em que algumas pessoas escolhem ouvir uma ldquomaratonardquo de sermotildees na web mas que natildeo sabem digerir

62 Ibid p 221 Packer termina esse capiacutetulo fazendo trecircs contrastes entre a espiritualidade de Owen e a atual (p 233-236) Para um panorama mais abrangente da teologia praacutetica de Owen ver BARRETT Matthew e HAYKIN Michael A G Owen on the Christian Life Living for the Glory of God in Christ Wheaton Crossway 2015

63 James Houston critica a espiritualidade puritana por natildeo ter a vida contemplativa do catolicismo romano a qual em sua opiniatildeo a teria enriquecido HOUSTON ldquoEspiritualidaderdquo p 66

64 Cf PACKER Entre os gigantes de Deus p 115-132 BEEKE Espiritualidade reformada p 229-261 381-402

65 PACKER Entre os gigantes de Deus p 253-26466 Ibid p 265-278 RYKEN Santos no mundo p 193-23267 BEEKE Espiritualidade reformada p 112-113 68 Ibid p 13769 Ibid p 11470 Ibid p 124-13071 Ibid p 13972 Ibid p 135

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

60

13 Nadere ReformatieUm movimento menos conhecido nosso eacute a versatildeo holandesa do purita-

nismo inglecircs a Nadere Reformatie (literalmente ldquoreforma posteriorrdquo ldquorefor-ma que foi mais adianterdquo) um movimento dos seacuteculos 17 e iniacutecio do 18 que demonstrou grande zelo pela piedade aliado agrave teologia reformada Joel Beeke afirma que o crescimento da membresia das igrejas reformadas na Holanda no seacuteculo 17 gerando grande nuacutemero de membros nominais somado agrave influecircncia do puritanismo inglecircs e outras fontes de piedade fez surgir uma geraccedilatildeo de acadecircmicos e pregadores que enfatizaram uma ldquoteologia experimentalrdquo des-tacando a primazia de uma resposta interior a Deus73 A Nadere Reformatie foi um movimento holandecircs que primou por uma ldquorevitalizaccedilatildeo interna da doutrina reformada e uma santificaccedilatildeo radical da vidardquo e junto com o purita-nismo anglo-saxocircnico e o pietismo alematildeo estava em busca da piedade74 O movimento holandecircs com representantes como Willem Teellinck Gisbertus Voetius Johannes Hoornbeeck Wilhelmus agrave Brakel e Herman Witsius entendia que o processo de reforma precisava avanccedilar para acircmbitos pessoais

Jaacute foi mencionado neste artigo como os reformados holandeses procu-raram articular uma espiritualidade catoacutelica Willem Teellinck (1579-1629) considerado o ldquopairdquo da Nadere Reformatie mostrou aspectos de espirituali-dade ao final de sua vida que satildeo semelhantes aos escritos de Bernardo de Claraval75 Sua apropriaccedilatildeo de Bernardo provavelmente via Tomaacutes agrave Kempis eacute um testemunho de sua catolicidade76 Seu principal livro sobre a santifica-ccedilatildeo The Path of True Godliness eacute um manual da vida cristatilde todo dividido em triacuteades no qual ele apresenta os desafios do reino das trevas para a vida espiritual e como o reino da graccedila promove piedade Ele fala no livro sobre os meios de atingir os verdadeiros propoacutesitos da vida (ordenanccedilas obras e promessas divinas) e sobre as motivaccedilotildees para a praacutetica da piedade77 Wilhel-mus agrave Brakel eacute outro que conecta interesses sistemaacuteticos com aplicabilidade pastoral em sua principal obra O Serviccedilo Razoaacutevel do Cristatildeo Brakel diz que os miacutesticos natildeo se apoiam na obra objetiva de Cristo para a sua espiritualidade (Cristo como o nosso resgate como a nossa justiccedila) todo verdadeiro piedoso soacute pode aproximar-se de Deus por meio de Cristo Todavia alguns miacutesticos (Quakers Quietistas Franccedilois de Feacutenelon) falam de negar a si mesmo amar

73 BEEKE Joel R ldquoThe Dutch Second Reformation (Nadere Reformatie)rdquo Calvin Theological Journal vol 28 n 2 (nov 1993) p 308-320

74 DE REUVER Sweet Communion p 1675 BEEKE Espiritualidade reformada p 411-41276 DE REUVER Sweet Communion p 16077 BEEKE Espiritualidade reformada p 421-425 Beeke tenta defendecirc-lo de certos legalismos

(p 425-427) mas parece que o decliacutenio religioso e moral que possivelmente marcava a Holanda de seus dias natildeo legitima tais legalismos

61

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

contemplar a Deus tudo sem fazer uso de Cristo78 Brakel diz que Deus soacute pode ser ldquoobjetordquo de nossa contemplaccedilatildeo se for Deus em Cristo pois toda a sua espiritualidade estaacute fundada em Cristo Esse fundamento ldquoprotege o seu misticismo de espiritualismordquo79

14 Jonathan EdwardsJonathan Edwards eacute conhecido por sua participaccedilatildeo em avivamentos e

um pouco de sua piedade jaacute foi retratada em livros traduzidos para o nosso idioma80 Dentre os escritos do proacuteprio Edwards poucos contribuem para uma visatildeo da espiritualidade reformada do seacuteculo 18 como A Vida de David Brainerd Contudo em geral o puacuteblico brasileiro desconhece os seus escritos pessoais (Diaacuterio Narrativa Pessoal) que retratam muitas experiecircncias de devoccedilatildeo a Deus George S Claghorn descreve seus escritos pessoais como um vislumbre autobiograacutefico da religiosidade de Edwards que cobrem

desde os seus primeiros embates espirituais e autodisciplina nas ldquoResoluccedilotildeesrdquo e no ldquoDiaacuteriordquo ateacute sua busca por uma companheira piedosa em ldquoSobre Sarah Pierrepontrdquo [que viria a ser sua esposa] chegando ao resumo retrospectivo de suas experiecircncias religiosas avivalistas em sua ldquoNarrativa Pessoalrdquo81

Nesta uacuteltima obra Edwards narra suas constantes caminhadas pela natureza para um tempo de contemplaccedilatildeo e de oraccedilatildeo no qual suas afeiccedilotildees eram mo-vidas a experimentar a doccedilura da majestade e da graccedila de Deus que por vezes o levavam a chorar em alta voz82

Charles Hambrick-Stowe pontua de forma perspicaz que nessa meditaccedilatildeo sobre a natureza um haacutebito que adquirira desde a sua juventude sempre tinha a Biacuteblia aberta diante de si pois Edwards negava que pudesse haver qualquer conhecimento de Deus agrave parte da revelaccedilatildeo biacuteblica83 Para Edwards a fonte da graccedila natildeo deveria ser buscada dentro de sua alma pois na proacutepria Narrati-va Pessoal ele afirma que suas mais doces alegrias natildeo surgiram de um bom estado de sua alma mas de uma visatildeo das coisas gloriosas do evangelho84

78 BRAKEL The Christianrsquos Reasonable Service vol 2 p 64279 DE REUVER Sweet Communion p 25880 Cf PIPER John A paixatildeo de Deus por sua gloacuteria vivendo a visatildeo de Jonathan Edwards Satildeo

Paulo Cultura Cristatilde 2008 LAWSON Steven J As firmes resoluccedilotildees de Jonathan Edwards Satildeo Joseacute dos Campos Fiel 2010

81 CLAGHORN George S (Org) The Works of Jonathan Edwards Online vol 16 p 74182 Cf Ibid p 790-80483 HAMBRICK-STOWE Charles E ldquoSpirituality and Devotionrdquo In SWEENEY Douglas A e

STIEVERMANN Jan (Orgs) The Oxford Handbook of Jonathan Edwards Oxford Oxford University Press 2021 p 357

84 Ibid p 355

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

62

O foco de suas meditaccedilotildees enquanto perambulava na natureza natildeo era Deus o Criador muito menos as aacutervores ou as nuvens mas a pessoa de Jesus Cristo85 Essa natureza bibliocecircntrica da piedade de Edwards era o ponto de conexatildeo entre sua vida devocional e sua vida intelectual entre seus escritos pessoais e seu ministeacuterio puacuteblico de escrita e pregaccedilatildeo fazendo com que sua piedade pessoal transbordasse para o seu ministeacuterio eclesiaacutestico86

Semelhante desconhecimento ocorre com o aspecto esteacutetico de sua religio-sidade Dentre as palavras mais usadas no seu corpo literaacuterio estatildeo ldquoexcelecircnciardquo e especialmente ldquobelezardquo a ponto de Dane Ortlund considerar a ldquobelezardquo como o fulcro da teologia edwardsiana87 A filosofia natural de Edwards estaacute repleta de alusotildees aos sentidos espirituais de elementos da natureza e enxergar a revelaccedilatildeo geral repleta de ldquosinaisrdquo do divino eacute a base de sua constante tipologia

2 DISTINTIVOS TEOLOacuteGICOS DE UMA ESPIRITUALIDADE REFORMADA

Ao apresentar caracteriacutesticas peculiares da espiritualidade reformada muitas outras ecircnfases ficaratildeo de fora Natildeo seratildeo trabalhadas a oraccedilatildeo ou a im-portacircncia dos cacircnticos e ateacute mesmo a leitura devocional das Escrituras ficaraacute de fora de um escrutiacutenio adequado A razatildeo de omitir essas e outras praacuteticas eacute para focalizar aspectos que satildeo mais proacuteprios da tradiccedilatildeo reformada e que natildeo aparecem tatildeo comumente em outras tradiccedilotildees cristatildes nem mesmo as evangeacuteli-cas Todavia como os reformados natildeo satildeo os uacutenicos a ensinar tais realidades trataremos de cada item abaixo em termos de ldquoecircnfasesrdquo pois os reformados as destacam de tal forma que se tornaram distintivas

21 Uma ecircnfase na graccedila gratuita e capacitadoraEm oposiccedilatildeo ao romanismo a espiritualidade reformada daacute ecircnfase agrave gra-

ccedila gratuita e capacitadora A maioria das propostas romanas de espiritualidade seguem uma teologia semipelagiana na qual a iniciativa eacute do homem em busca da graccedila (seguindo o famoso ditado medieval facientibus quod in se est Deus non denegat gratiam cuja versatildeo popular eacute ldquofaccedila a sua parte e eu o ajudareirdquo) e ateacute aqueles que natildeo satildeo semipelagianos falam em conquistar ou ldquoalcanccedilar uma graccedilardquo Em contraste com isso os reformados sempre enfatizaram o aspecto to-talmente gratuito da graccedila isto eacute ela natildeo eacute conquistada por nosso esforccedilo nem mesmo quando somos impulsionados pela graccedila interna ldquoEnquanto o monge ascende ao Deus de majestade atraveacutes da contemplaccedilatildeo especulaccedilatildeo e meacuterito no evangelho Deus desce a noacutes em humildade em nossa carne para nos resgatarrdquo88

85 Ibid p 35786 Ibid p 354 35687 ORTLUND Dane C Jonathan Edwards e a vida cristatilde Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2017 p 21-3688 HORTON Michael S ldquoThe Reformation amp Spiritual Formationrdquo Modern Reformation vol 22

n 4 (jul-ago 2013) p 29

63

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

Nelson Kloosterman destaca que certas definiccedilotildees catoacutelicas apresentam uma visatildeo teleoloacutegica de espiritualidade na qual ela se apresenta como o cami-nho para a santidade e uniatildeo com Deus Em contrapartida a visatildeo protestante e reformada de piedade procede da justificaccedilatildeo forense da justiccedila imputada de Cristo Sendo assim a ldquosantidade natildeo eacute simplesmente o objetivo mas prima-riamente o fundamento ou solo da verdadeira espiritualidade cristatilderdquo89 Esta eacute a visatildeo biacuteblica de santificaccedilatildeo apresentada nas epiacutestolas paulinas Indicativos fundamentam e motivam os imperativos nas epiacutestolas (Rm 121 Ef 41 Cl 31-11) Os indicativos nos definem enquanto os imperativos nos convocam Isso significa que a obra redentora do Deus trino eacute descrita primeiro para nos informar do que foi feito por noacutes a fim de buscarmos nos tornar aquilo que jaacute somos em Cristo

Essa graccedila natildeo soacute eacute o fundamento de nossa peregrinaccedilatildeo santificadora mas eacute o impulso dessa santificaccedilatildeo A tradiccedilatildeo reformada recente tem procurado resgatar o entendimento deixado pela Reforma de uma santificaccedilatildeo impulsio-nada pelo evangelho90 A obra de Cristo natildeo eacute necessaacuteria apenas para o iniacutecio da vida cristatilde (conversatildeo justificaccedilatildeo adoccedilatildeo) como se depois da conversatildeo entatildeo dependesse de nossa resposta ao amor de Cristo (santificaccedilatildeo) Esse tipo de dicotomia faz com que caiamos num cristianismo moralista A espiritualidade reformada em contrapartida destaca que a proacutepria forccedila motora da santifica-ccedilatildeo vem da obra consumada de Cristo (Rm 61-4 Tt 214 1 Pe 114-19) A Confissatildeo de Feacute de Westminster afirma que somos santificados pessoalmente ldquopela virtude da morte e ressurreiccedilatildeo de Cristordquo (131) Portanto a obra de Cristo natildeo eacute apenas o que acontece primeiro natildeo eacute apenas o que nos estimula agrave obediecircncia ela eacute a proacutepria habilitadora de nosso esforccedilo santificador

Ateacute a obra do Espiacuterito no iniacutecio de nossa vida cristatilde ndash conversatildeo justi-ficaccedilatildeo adoccedilatildeo ndash serve de motivaccedilatildeo para uma busca de santidade Michael Horton chama a atenccedilatildeo para a linguagem paulina em Romanos 6 a fim de dizer que natildeo temos que entregar nosso corpo agrave crucificaccedilatildeo para que o peca-do seja morto mas o velho homem jaacute ldquofoi crucificado com ele para que o corpo do pecado seja destruiacutedordquo (Rm 66) Ele natildeo ordena que natildeo deixemos o pecado nos dominar mas afirma que ldquoo pecado natildeo teraacute domiacutenio sobre voacutesrdquo (Rm 614) Portanto algo jaacute aconteceu conosco e devemos buscar a santidade (o ldquoainda natildeordquo de nossa redenccedilatildeo) calcados na obra jaacute realizada pelo Espiacuterito91

89 KLOOSTERMAN Nelson D ldquoStudying Spirituality in a Reformed Seminary A Calvinist Modelrdquo Mid-America Journal of Theology vol 6 n 2 (1990) p 127

90 Ver esse texto de Jerry Bridges httpswwwmonergismcomgospel-driven-sanctification Acesso em 4 jun 2021

91 HORTON Michael S ldquoThe Indicative and The Imperative A Reformed View of Sanctificationrdquo Disponiacutevel em httpswwwmonergismcomindicative-and-imperative-reformation-view-sanctification Acesso em 4 jun 2021

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

64

22 Uma ecircnfase nos meios de graccedila e na comunidade santificadora

Em oposiccedilatildeo ao evangelicalismo a espiritualidade reformada coloca uma ecircnfase nos meios de graccedila e na comunidade santificadora Enquanto o evangelicalismo eacute conhecido por enfatizar uma espiritualidade individual isto eacute a importacircncia da devoccedilatildeo privada (o momento a soacutes com Deus) a feacute refor-mada natildeo a negligencia mas destaca que grande parte de nossa santificaccedilatildeo acontece no acircmbito puacuteblico onde haacute troca de dons (Ef 411-16) Os meios de graccedila conforme articulados no culto puacuteblico satildeo chave para o crescimento espiritual Foi nos documentos de Westminster que se instituiu a importacircncia do culto domeacutestico de maneira formal como exemplo de zelo pela comunidade menor enquanto formadora de nossa devoccedilatildeo Antes do que conceitos vazios de subjetividade a feacute reformada defende uma espiritualidade da Palavra que se consegue mediante a pregaccedilatildeo puacuteblica a meditaccedilatildeo e o estudo pessoal92 Por isso Wilhelmus agrave Brakel enfatizava o amor pela verdade (Palavra) e a estima pela igreja93

Enquanto os evangeacutelicos tendem a enxergar a igreja como uma associaccedilatildeo voluntaacuteria de pessoas que alegam terem passado por uma mesma experiecircncia religiosa a eclesiologia reformada conforme expressa em suas confissotildees reforccedila a indispensabilidade da pregaccedilatildeo para gerar e nutrir vida cristatilde a necessidade dos meios de graccedila e a dos ofiacutecios autorizados por Cristo para proteger e nutrir a piedade cristatilde94 Calvino soube se apropriar da eclesiologia catoacutelica e chamar a igreja de ldquomatildee dos fieacuteisrdquo porque ele sabia que a igreja era o lugar ordinaacuterio no qual cristatildeos seriam gerados nutridos e protegidos95 Franccedilois Wendel descreve a eclesiologia de Calvino afirmando que a Igreja eacute necessaacuteria para a nossa ldquosantificaccedilatildeo coletivardquo e para promover o ldquoconsenso da feacuterdquo mediante a pregaccedilatildeo e o ensino Ainda que Deus esteja livre para usar outros meios ordinaacuterios aleacutem da pregaccedilatildeo da Palavra e dos sacramentos como ele os instituiu noacutes natildeo estamos livres desses meios de santificaccedilatildeo96

Michael Horton afirma que enquanto a piedade de muitos evangeacutelicos eacute quase exclusivamente privada e orientada por meacutetodos a piedade da Reforma eacute mais comunitaacuteria e pactual Enquanto os evangeacutelicos focalizam os meios de compromissos que os conduzem agrave graccedila os reformados pensam em meios de graccedila que produzem compromisso Ao inveacutes de sair do mundo em solidatildeo

92 OLD ldquoWhat is Reformed Spiritualityrdquo p 6393 Cf BRAKEL The Christianrsquos Reasonable Service vol 2 p 644-65394 KLOOSTERMAN ldquoStudying Spirituality in a Reformed Seminaryrdquo p 13295 CALVINO Institutas IV14 Cf Confissatildeo de Feacute de Westminster 25296 WENDEL Franccedilois Calvin Origins and Development of His Religious Thought Grand Rapids

Baker 2002 p 292-293 Cf CALVINO Institutas IV15

65

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

os reformados pensam mais numa piedade que nos leva para o mundo pois a piedade da Reforma eacute mais extrospectiva do que introspectiva97 Horton con-testa a espiritualidade evangeacutelica que eacute prioritariamente individual e privada onde o que salva eacute o que o indiviacuteduo faz com a Palavra natildeo o que a Palavra faz com o indiviacuteduo onde o batismo eacute o compromisso do fiel antes do que de Deus onde a ceia simplesmente oferece uma oportunidade para o indiviacuteduo refletir sobre a morte de Cristo e renovar o seu compromisso mas natildeo eacute a daacutediva de Cristo com todos os seus benefiacutecios98 Diante desse cenaacuterio Horton mostra no restante do artigo como a espiritualidade reformada eacute marcada pela vida comunitaacuteria com os meios de graccedila

23 Uma ecircnfase na uniatildeo com Cristo conjugando becircnccedilatildeos objetivas e subjetivas

Na espiritualidade reformada o objetivo e o subjetivo o externo e o interno satildeo ligados inseparavelmente por essa realidade Cristo eacute a fonte da santidade do cristatildeo Isso significa que a santidade dele passa a ser do fiel numa uniatildeo miacutestica que se tem com o Salvador A uniatildeo eacute comumente chamada de ldquomiacutesticardquo porque natildeo tem paralelo na realidade transcende todas as analogias terrenas mesmo as que satildeo utilizadas na Escritura (casamento edifiacutecio e fun-damento videira e ramos corpo e cabeccedila) Todavia a espiritualidade que dela procede natildeo eacute miacutestica no sentido de inexplicaacutevel irracional O ministeacuterio de Jesus sempre foi marcado por ensino por explicaccedilatildeo de vida cristatilde Jesus era um mestre por excelecircncia

Os reformados percebem que haacute aspecto objetivo da uniatildeo que acontece federativamente na eternidade e na histoacuteria e que garante as becircnccedilatildeos recebidas pelos cristatildeos o qual eacute distinto da uniatildeo miacutestica que se refere agrave experiecircncia subjetiva de sermos unidos a Cristo pelo Espiacuterito99 Anthony Hoekema diz que a doutrina da uniatildeo miacutestica ajuda a contrabalanccedilar o aspecto legal com o aspecto vital da redenccedilatildeo o Cristo por noacutes com o Cristo em noacutes100 Jaacute foi mencionada neste artigo a importacircncia da doutrina da uniatildeo com Cristo na teologia de Joatildeo Calvino algo atestado por vaacuterios escritos101 Todavia John Fesko vai aleacutem de

97 HORTON ldquoThe Reformation amp Spiritual Formationrdquo p 2898 Ibid p 3199 A A Hodge tambeacutem distingue a uniatildeo com Cristo em seu aspecto ldquofederalrdquo e em seu aspecto

ldquovital e espiritualrdquo HODGE Archibald A Outlines of Theology New York Hodder amp Stoughton 1878 p 482

100 HOEKEMA Anthony A Saved by Grace Grand Rapids Baker 1986 p 66-67 101 Como satildeo muitos os escritos que exploram Calvino acerca de uniatildeo com Cristo citaremos ape-

nas duas fontes TAMBURELLO Dennis E Union with Christ John Calvin and the Mysticism of St Bernard Louisville Westminster John Knox 1994 JOHNSON Marcus ldquoLuther and Calvin on Union with Christrdquo Fides et Historia 39 n 2 (VeratildeoOutono 2007) p 59-77

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

66

Calvino ao fazer um apanhado histoacuterico dos contornos da uniatildeo com Cristo que une justificaccedilatildeo e santificaccedilatildeo nos escritos de reformados como Henrique Bullinger Pedro Maacutertir Vermigli Jerocircnimo Zanchi William Perkins John Owen Richard Baxter Francisco Turretino e Herman Witsius102

Podemos resumir a uniatildeo em trecircs caracteriacutesticas com implicaccedilotildees para a nossa espiritualidade Em primeiro lugar eacute uma uniatildeo mediadora da uniatildeo com o Deus trino103 Como Cristo eacute o nosso mediador no relacionamento pactual com Deus por ela recebemos todos os benefiacutecios do pacto da graccedila de Deus ser o nosso Deus e noacutes sermos o seu povo tanto em sermos reconciliados com ele por obra do Deus trino como de conformidade com ele tornando-nos participantes da natureza divina agrave medida que somos transformados agrave sua ima-gem (2 Pe 13-4) A vitoacuteria de Cristo concedeu-nos o Espiacuterito o qual efetiva a nossa uniatildeo com Cristo Jesus disse que seriacuteamos habitados pelo Pai pelo Filho e pelo Espiacuterito (Jo 1416-20 23) Em segundo lugar eacute uma uniatildeo vital Somos ligados de forma orgacircnica a Cristo (analogias do corpo e da videira) de tal forma que a vida dele nos eacute comunicada Isto eacute aleacutem de Cristo ser o nosso representante ele tambeacutem eacute ldquoformadordquo em noacutes (Gl 419) nascemos de novo experimentamos uma vida de sofrimento humilhaccedilatildeo e enfim exaltaccedilatildeo tudo segundo a natureza humana de Jesus104 Somos tornados participantes de seu triunfo (Cl 220 31) Em terceiro lugar eacute uma uniatildeo reciacuteproca Se Cristo primeiramente nos une a ele por obra do Espiacuterito na regeneraccedilatildeo o crente responde em feacute unindo-se a Cristo e recebendo todos os benefiacutecios da sua vida (Jo 154-5 Gl 220 Ef 317)

24 Outras ecircnfases reformadasHaacute vaacuterios outros distintivos da tradiccedilatildeo reformada que natildeo satildeo tatildeo evi-

dentes em outras tradiccedilotildees da feacute cristatilde Em primeiro lugar a observacircncia do Dia do Senhor funciona como antecipaccedilatildeo da gloacuteria por vir Enquanto muitas discussotildees em torno desse assunto tecircm se detido em minuacutecias praacuteticas perde--se o propoacutesito de resgatar esse dia como deleitoso para a alma Em segundo lugar as obras de misericoacuterdia satildeo parte da espiritualidade reformada Inclusive essa eacute a razatildeo pela qual essa deveria ser uma das atividades do dia do Senhor como o proacuteprio Jesus o fez Em terceiro lugar a piedade reformada sempre enxergou a lei em um contexto de graccedila Enquanto Lutero enxergava a lei

102 Cf FESKO J V Beyond Calvin Union with Christ and Justification in Early Modern Reformed Theology (1517-1700) Gottingen Vandenhoeck amp Ruprecht 2012

103 A A Hodge escreve ldquoEssa uniatildeo eacute entre o cristatildeo e a pessoa do Deus-homem em seu ofiacutecio como Mediador Seu oacutergatildeo imediato eacute o Espiacuterito Santo que habita em noacutes e atraveacutes dele noacutes somos virtualmente unidos e comungamos com toda a Divindade sendo que ele eacute o Espiacuterito do Pai assim como do Filhordquo HODGE Outlines of Theology p 484

104 BERKHOF Louis Teologia sistemaacutetica Campinas Luz Para o Caminho 1990 p 452-453

67

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

primordialmente como uma antiacutetese ao evangelho Calvino iraacute observar que o uso pedagoacutegico da lei de ressaltar o pecado eacute ldquoacidentalrdquo (linguagem aristoteacute-lica para afirmar que natildeo eacute essencial) pois seu propoacutesito principal eacute servir de norma de conduta que o Deus benevolente nos deixou Em contraste com os legalismos catoacutelico-romanos e ateacute evangeacutelicos os puritanos conseguiram ver a lei de forma deleitosa no contexto do pacto da graccedila105

Em quarto lugar os reformados natildeo fazem dicotomia entre vida contem-plativa e vida ativa (Tomaacutes de Aquino) pois a cosmovisatildeo reformada santifica o trabalho com os conceitos de vocaccedilatildeo e mordomia Kloosterman destaca como o conceito de vocaccedilatildeo na Reforma permitiu que toda a criaccedilatildeo fosse usufruiacuteda e empregada sob a contiacutenua norma da Palavra de Deus106 Enquanto os luteranos introduziram o elemento de vocaccedilatildeo de forma inovadora foram os reformados que ampliaram o elemento holiacutestico de vida cristatilde com a aplica-ccedilatildeo da cosmovisatildeo Por isso Kloosterman contrasta o misticismo catoacutelico e ateacute a piedade evangeacutelica como muito voltada para o pecado orientada para dentro ou para o futuro e apresenta a espiritualidade reformada afirmando a vida em relacionamentos criacionais107 Isto eacute existe espiritualidade em obediecircncia ao triacuteplice mandato que nos foi dado na criaccedilatildeo mandato espi-ritual (relacionamento com Deus) mandato social (relacionamento com o proacuteximo) e mandato cultural (relacionamento com o restante da criaccedilatildeo) Tal integralidade que envolve os trecircs mandatos estaacute disponiacutevel a todos os fieacuteis e natildeo somente aos monges natildeo haacute espiritualidade especiacutefica do ldquoclerordquo como asseverava a doutrina romana

Estes satildeo apenas alguns raacutepidos traccedilos de aspectos ricos e com vasta literatura na histoacuteria do movimento reformado Tais distintivos servem apenas para ressaltar que existe uma espiritualidade proacutepria da teologia reformada e condizente com o seu legado doutrinaacuterio

CONCLUSAtildeO ldquoA IMPORTAcircNCIA DE RESGATAR UMA ESPIRITUALIDADE DA TRADICcedilAtildeO REFORMADArdquoAo concluir esse panorama de personagens e distintivos da espiritua-

lidade reformada especialmente em contraste com outras versotildees cristatildes de espiritualidade fica evidente que a teologia molda a piedade A espiritualidade natildeo acontece num vaacutecuo teoloacutegico Algueacutem pode natildeo estar ciente da teologia que alimenta sua espiritualidade mas como disse McGrath acertadamente ldquoA teologia tem profundo impacto sobre a espiritualidaderdquo108 Sendo assim eacute

105 Cf KEVAN Ernest The Grace of Law A Study of Puritan Theology London Carey Kingsgate 1965

106 KLOOSTERMAN ldquoStudying Spirituality in a Reformed Seminaryrdquo p 129107 Ibid p 130108 MCGRATH Uma introduccedilatildeo agrave espiritualidade cristatilde p 29

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

68

necessaacuterio que os reformados sejam mais conscientizados das implicaccedilotildees que a sua teologia traz para a vida cristatilde Eis a razatildeo de elaborarmos este breve histoacuterico da teologia reformada de espiritualidade Afinal piedade com teologia defeituosa eacute enganosa e sem proveito como Paulo ensinou aos colossenses (Cl 216-23) Portanto eacute necessaacuterio que os reformados se aprofundem no conhecimento dessa histoacuteria e como ela se adequa a uma praacutetica condizente

Enquanto os criacuteticos tendem a julgar que a teologia reformada eacute prio-ritariamente cognitiva e teoacuterica os reformados tecircm historicamente exaltado o aspecto afetivo e praacutetico da teologia O grande acadecircmico reformado do seacuteculo 17 Francisco Turretino explica que a despeito de seu elemento teoacuteri-co (contemplaccedilatildeo do Deus revelado conhecimento da verdade) a teologia eacute mormente praacutetica pois todo o seu conhecimento (crer) deve redundar em adoraccedilatildeo e obediecircncia (observar)109 Na filosofia reformada todo coraccedilatildeo eacute por natureza religioso e por isso produz algum tipo de devoccedilatildeo ou espiri-tualidade Todavia nem toda espiritualidade eacute virtuosa porque nem toda feacute eacute saudaacutevel Por exemplo uma vida de oraccedilatildeo para encher nosso ministeacuterio de poder perde de vista que a sauacutede de uma vida de oraccedilatildeo estaacute em nos esvaziar-mos de noacutes mesmos isto eacute a oraccedilatildeo natildeo busca poder para si mas expressa dependecircncia e fraqueza para que o poder de Deus opere em noacutes Portanto teologia molda espiritualidade

Talvez o leitor se pergunte ldquoOnde eacute que o estudo da espiritualidade de-veria se encaixar numa grade de formaccedilatildeo teoloacutegicardquo Kloosterman responde na eacutetica E ele fundamenta essa resposta dizendo que se alguns evangeacutelicos tendem a olhar para a espiritualidade como ldquoerupccedilotildees espontacircneasrdquo antes que ldquoexerciacutecios padronizadosrdquo eles seratildeo levados a estudar a piedade sob a nor-ma da Palavra de Deus Analisar tais exerciacutecios espirituais natildeo tira o ldquopoderrdquo que lhes eacute atribuiacutedo mas ajuda-nos a averiguar praacuteticas que satildeo biblicamente certas ou erradas Por isso a eacutetica constitui um bom espaccedilo para o ensino da espiritualidade110

Se essa sugestatildeo parecer estranha ao leitor pode ser que a estranheza se explique pela ignoracircncia da bela tradiccedilatildeo eacutetica reformada que ensina acerca de vida cristatilde mediante a exposiccedilatildeo dos Dez Mandamentos Esse natildeo soacute eacute o ensino da Escritura (Rm 138-10 Gl 513-15) mas tem amplo respaldo nos catecismos da tradiccedilatildeo reformada Poreacutem introduzir essa mateacuteria seria conteuacutedo para outro artigo

109 TURRETINI Franccedilois Compendio de teologia apologeacutetica Trad Valter Graciano Martins Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011 vol 1 p 61-65 (Ivii)

110 KLOOSTERMAN ldquoStudying Spirituality in a Reformed Seminaryrdquo p 135-136

69

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

ABSTRACTThis article presents Reformed Spirituality as a field still unknown in

popular and academic circles a part of the tradition that needs to be redis-covered The concept that this is not a strong area among the Reformed plus the elusive standards of devotional practices have led many to seek alternative spiritualities Wanting to rescue the devotional and pious aspect of the Reformed tradition this article introduces the practical theology of figures such as John Calvin the English Puritans the Dutch Reformed movement called Nadere Reformatie and Jonathan Edwards besides some contemporary representa-tives of Reformed piety Later on the article presents a few distinctives of such spirituality and concludes showing the need to rescue this story for the benefit of the Reformed movement in Brazil

KEYWORDSSpirituality Reformed Theology John Calvin Puritans Nadere Refor-

matie Jonathan Edwards

71

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO ndash UMA ANAacuteLISE DA QUESTAtildeO JURIacuteDICA NO CONTEXTO DA GRANDE COMISSAtildeO (MT 2818-20)

Paulo Eduardo Vieira da Veiga

RESUMOO contexto juriacutedico no qual foi dada a Grande Comissatildeo envolve os quatro

grandes temas das Escrituras criaccedilatildeo queda redenccedilatildeo e consumaccedilatildeo Quando colocado no Eacuteden Adatildeo recebeu a missatildeo de governar tudo o que Deus havia criado Ao pecar de algum modo essa autoridade foi usurpada por Satanaacutes Quando Cristo morreu e ressuscitou cumpriu assim o seu propoacutesito redentor e como o uacuteltimo Adatildeo recuperou e ampliou juridicamente a autoridade perdida pelo primeiro Dessa forma a Grande Comissatildeo em Mateus 2818-20 comeccedila natildeo no versiacuteculo 19 mas jaacute no versiacuteculo 18 quando o Senhor ressurreto com base nesta mesma autoridade ordena a seus disciacutepulos irem pelo mundo e fa-zerem disciacutepulos de todas as naccedilotildees Portanto o presente artigo visa analisar a palavra ἐξουσία (autoridade) mencionada no versiacuteculo 18 no contexto da teologia biacuteblica do Antigo e do Novo Testamentos refletir sobre a autorida-de perdida por Adatildeo e reconquistada por Cristo e avaliar como o triunfo e a exaltaccedilatildeo de Cristo satildeo a garantia de sucesso da missatildeo datildeo sentido ao ldquoiderdquo revestem a igreja com autoridade e impulsionam os disciacutepulos no cumprimento da Grande Comissatildeo apontando para o escaton1

O autor eacute bacharel em teologia pelo Seminaacuterio Presbiteriano do Sul e mestrando em Estudos Biacuteblico-Hermenecircuticos do Novo Testamento no Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper

1 Este artigo foi escrito inicialmente para atender agraves exigecircncias da disciplina ldquoPrincipados e Potestadesrdquo ministrada em 2020 pelo Prof Dr Leandro A de Lima no CPAJ como parte do curso de Mestrado em Estudos Biacuteblico-Hermenecircuticos Vaacuterias das ideias expostas no artigo especialmente a questatildeo juriacutedica da autoridade conquistada por Cristo refletem o ensino do referido professor ministrado durante a disciplina e tambeacutem em seus escritos em especial sua tese de doutorado de 2012 (LIMA

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

72

PALAVRAS-CHAVETeologia biacuteblica Novo Testamento Grande Comissatildeo Reino Evangelho

Autoridade Batalha juriacutedica

INTRODUCcedilAtildeOOs debates recentes entre os exegetas sobre o entendimento da Grande

Comissatildeo giram em torno do verbo πορευθέντες (ir) Alguns defendem que esse verbo deva ser traduzido como ldquoiderdquo no imperativo outros defendem que seja traduzido como ldquoindordquo no geruacutendio Ambas as anaacutelises exegeacuteticas trazem implicaccedilotildees missioloacutegicas importantes seja a ecircnfase no discipulado local seja nas missotildees transculturais e na plantaccedilatildeo de novas igrejas Eacute certo que tudo isso estaacute incluiacutedo na Grande Comissatildeo

David Hesselgrave ao analisar o texto de Mateus 2818-20 defende que existe um elemento baacutesico que eacute ldquofazei disciacutepulos de todas as naccedilotildeesrdquo Segundo ele a importacircncia do fazer disciacutepulos (μαθητεύσατε) eacute ressaltada pelo fato de este ser o uacutenico imperativo no texto da Grande Comissatildeo Ele ainda destaca que ldquofazei disciacutepulos de todas as naccedilotildeesrdquo requer que se tenha missionaacuterios em todas as naccedilotildees2 O professor Carl Bosma em suas pesquisas sobre as posiccedilotildees exegeacuteticas acerca de Mateus 2818-20 apresenta quatro atitudes em relaccedilatildeo a esses termos (1) forte ecircnfase no particiacutepio traduzido como imperativo (ldquoIderdquo) (2) maior ecircnfase em ldquofazer disciacutepulosrdquo (3) subordinaccedilatildeo plena do ldquoirrdquo ao ldquofazer disciacutepulosrdquo tornando-o quase irrelevante (4) ecircnfase igual nos dois conceitos Bosma defende a quarta posiccedilatildeo enfatizando que o ldquoirrdquo faz parte do mandamento de se fazer disciacutepulos Para ele tanto eacute importante o discipulado local (fazer disciacutepulos e ensinar) quanto as missotildees transculturais (ldquoindo)rdquo3 Jaacute o professor Chun Kwang Chung faz uma anaacutelise da mudanccedila recente na traduccedilatildeo do verbo πορευθέντες como ldquoindordquo em vez de ldquoiderdquo traduccedilatildeo esta que sempre foi adotada por diversas sociedades biacuteblicas Segundo ele traduzir πορευθέντες como ldquoindordquo gera implicaccedilotildees missioloacutegicas fundamentais no entendimento da Grande Comissatildeo pois tal interpretaccedilatildeo eacute defendida pelos proponentes do ministeacuterio de discipulado nas igrejas locais e pelo movimento de igrejas missionais Poreacutem ele defende que os tradutores estavam corretos ao traduzirem o particiacutepio πορευθέντες como imperativo ldquoiderdquo4

Leandro Antocircnio de ldquoApocalipse como literatura um estudo sobre a importacircncia da anaacutelise da arte literaacuteria em apocalipse 12-13rdquo Dissertaccedilatildeo (Doutorado em Letras) Satildeo Paulo Universidade Presbite-riana Mackenzie 2012) e seu livro A Grande Batalha Escatoloacutegica (Satildeo Paulo Editora Agathos 2016)

2 HESSELGRAVE David J A comunicaccedilatildeo transcultural do Evangelho Satildeo Paulo Vida Nova 1994 p 69

3 BOSMA Carl ldquoMissotildees e sintaxe grega em Mateus 2818-20rdquo Fides Reformata XIV-1 2009 p 9

4 CHUNG Chun Kwang ldquoIde ou Indo Igrejas Missionais e o uso do particiacutepio na Grande Comissatildeo de Mateus 2818-20rdquo Fides Reformata XXIV-2 2019 p 51

73

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

Toda essa discussatildeo teoloacutegica eacute saudaacutevel vaacutelida e uacutetil para o entendi-mento da missatildeo da igreja Sem duacutevida eacute preciso considerar esses aspectos Contudo parece-me que ao longo destes debates tem sido deixado de lado o contexto no qual estas palavras foram ditas pelo Senhor Jesus perdendo-se de vista a base a seguranccedila e a motivaccedilatildeo principal para a missatildeo que eacute o triunfo e a exaltaccedilatildeo do Cristo ressurreto que ascendeu aos ceacuteus e que garante sua presenccedila constante com seus disciacutepulos em missatildeo Ele tambeacutem garante que as portas do inferno natildeo prevaleceratildeo contra a sua igreja (Mt 1618) Porque Jesus conquistou todo poder e toda autoridade nos ceacuteus e terra ele tem o direito legal de exercecirc-los sobre todas as coisas Sua morte e ressurreiccedilatildeo deram-lhe o direito legal de restaurar a criaccedilatildeo a qual fora colocada debaixo do cativeiro do pecado e de salvar aqueles por quem ele morreu pois levou sobre si todos os pecados deles tambeacutem num sentido legal Logo focar ape-nas na traduccedilatildeo do verbo πορευθέντες deixa muita coisa de fora pois omite a base da argumentaccedilatildeo racional da Grande Comissatildeo5 Portanto analisar a promessa que impele a Grande Comissatildeo eacute fundamental para o cumprimento dessa tarefa dada agrave igreja

1 TODA A AUTORIDADE (πᾶσα ἐξουσία)A palavra ἐξουσία (autoridade poder) eacute amplamente usada no Novo Tes-

tamento Tendo em vista os evangelhos e o livro de Atos encontramos o termo ἐξουσία nove vezes em Mateus (729 89 96 8 101 2123 24 27 2818) No evangelho de Marcos a palavra tambeacutem aparece nove vezes Jaacute Lucas e Joatildeo a utilizam dezesseis vezes e oito vezes respectivamente6 Analisando a autoridade de Cristo no contexto do livro de Mateus percebemos que Jesus se apresenta como aquele que tem autoridade sobre a terra para perdoar pecados (Mt 96) Eacute dito que as multidotildees se maravilhavam de sua doutrina porque ele as ensinava como quem tem autoridade (Mt 729) e o proacuteprio Jesus ainda afirma que tudo lhe havia sido entregue pelo Pai (Mt 1127) Logo apoacutes ressuscitar Jesus se apresenta aos seus disciacutepulos como algueacutem que tem toda a autoridade nos ceacuteus e na terra (Mt 2818) Curiosamente sempre que Mateus faz uso do termo ἐξουσία (autoridade) ele o faz somente com referecircncia a Jesus Quando se trata de seres humanos a palavra utilizada por ele eacute δύναμις (poder)7 De acordo com Craig Keener ldquoa autoridade de Jesus inclui a autoridade de dizer aos seus subordinados para iremrdquo8 Sua autoridade eacute singular eacute a uacutenica que

5 HORTON Michael A Grande Comissatildeo Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2014 p 276 LEE k VILJOEN F P ldquoThe Ultimate Comission the key for the gospel according to Matthewrdquo

Acta Theologica University of the Free State South Africa vol 30 n 1 (jun 2010) p 64-83 7 LAWRENCE Louise Joy An ethnography of the Gospel of Matthew A critical assessment of

the use of the honour and shame model in New Testament studies Tuumlbingen Mohr Siebeck 2010 p 1178 KEENER Craig S The Gospel of Matthew A Socio-Rhetorical Commentary Grand Rapids

Eerdmans 2009 p 178

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

74

pode ser declarada como autoridade absoluta autoridade da verdade autoridade de Deus9 Eacute com base nessa autoridade que Jesus ordena aos seus disciacutepulos para que vatildeo ao mundo e faccedilam disciacutepulos de todas as naccedilotildees batizem-nos em nome do Pai do Filho e do Espiacuterito Santo e os ensinem a guardar todas as coisas que Jesus havia ordenado aos doze David Bauer ainda destaca que a autoridade de Jesus pode ser vista em seus ensinamentos milagres nas pessoas que respondem a ele em seus tiacutetulos e em sua posiccedilatildeo uacutenica como uma figura divina ou messiacircnica10

Eacute importante observar que Jesus profere essas palavras apoacutes a sua ressur-reiccedilatildeo Assim todas as restriccedilotildees vinculadas agrave sua encarnaccedilatildeo agora natildeo mais estatildeo ligadas agrave sua natureza humana pois ele natildeo eacute mais o homem de dores ferido de Deus e oprimido Agora tendo triunfado sobre o pecado e a morte ele recebe autoridade divina sobre ceacuteus e terra11 Logo a autoridade que foi dada a Cristo refere-se agrave autoridade que ele recebe enquanto Deushomem A palavra ἐξουσία poderia ser traduzida como um estado de controle sobre algo liberdade de escolha o direito de agir ou decidir capacidade de fazer algo poder absoluto legitimidade12 O Novo Testamento emprega duas palavras para se referir a ldquopoderrdquo satildeo os termos ἐξουσία e δύναμις sendo que ἐξουσία eacute um termo mais abrangente do que δύναμις pois se refere tanto agrave posiccedilatildeo quanto agrave funccedilatildeo Logo nada na criaccedilatildeo estaacute fora da autoridade de Cristo o que denota sua autoridade divina13 Eacute desta forma que ele emprega essa palavra no contexto da Grande Comissatildeo Contudo em que sentido Cristo recebe essa autoridade apenas apoacutes a sua morte e ressurreiccedilatildeo Sendo Deus ele jaacute natildeo possuiacutea toda essa autoridade mesmo antes disso

Para tornar isso claro precisamos analisar o aspecto legal desta autori-dade ou seja o direito e o poder que Cristo tem sobre todas as coisas derivado de sua posiccedilatildeo como o segundo Adatildeo como aquele que veio para reverter a Queda O Dr Leandro de Lima ao abordar o tema da primeira vinda de Cris-to a denomina a grande batalha escatoloacutegica na qual a libertaccedilatildeo do povo de Deus estava sendo conquistada visto que era uma batalha juriacutedica ou legal uma batalha por autoridade Assim ele destaca que ldquoa vinda de Cristo foi uma

9 DODD C H The Authority of the Bible London Fontana Books 1960 p 23210 BAUER David R The Structure of Matthewrsquos Gospel A Study in Literary Design Sheffield

Almond 1988 p 115-11711 MORRIS Leon The Gospel according to Matthew Grand Rapids Eerdmans 1992 p 745-74612 LENSKI R C H The Eisenach Gospel Selections An Exegetical-Homiletical Treatment

Columbus The Lutheran Book Concern 1928 p 57713 OSBORNE Grant R The Resurrection Narratives A Redactional Study Grand Rapids Baker

1984 p 90

75

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

declaraccedilatildeo de guerra contra os inimigos [] mas uma guerra por direito por legitimidaderdquo14

11 A autoridade usurpadaEssa guerra por legitimidade teve iniacutecio no Eacuteden Quando Deus colocou

Adatildeo e Eva no jardim e lhes deu a missatildeo de governar tudo o que ele havia criado (Gn 126-27) eles eram na linguagem de Gerard Van Groningen os vice-gerentes de Deus Bruce Waltke comentando Gecircnesis 126-27 destaca que ldquoo texto estaacute dizendo que exercer domiacutenio real sobre a terra como repre-sentante de Deus eacute o propoacutesito baacutesico para o qual Deus criou o homemrdquo15 Van Groningen lanccedila luz sobre a questatildeo

Deus tinha um propoacutesito predeterminado para a humanidade Ela deveria ter um papel superior uma influecircncia dominante e um serviccedilo responsaacutevel Homem e mulher deveriam ser governadores sobre a criaccedilatildeo natural deveriam ser os representantes reais dentro do reino coacutesmico16

Dessa forma o homem foi colocado como mordomo de Deus junto agrave criaccedilatildeo Todas as coisas foram postas sob sua autoridade Ele deveria gover-nar sobre o que havia sido criado exercendo assim suas prerrogativas reais desenvolvendo o cosmos e mantendo-o Ao conferir esta autoridade e domiacutenio ao homem o Senhor estava colocando a humanidade em um relacionamento singular com o cosmos17 O homem tinha essas prerrogativas por direito o qual lhe tinha sido concedido pelo proacuteprio Deus pois como escreve o salmista ldquoFizeste-o no entanto por um pouco menor do que Deus e de gloacuteria e de honra o coroaste Deste-lhe domiacutenio sobre as obras de tua matildeo e sob seus peacutes tudo lhe pusesterdquo (Sl 85-6) Obviamente que Deus natildeo concedeu sua deidade aos seres humanos mas os colocou na mais alta posiccedilatildeo real na criaccedilatildeo e os dotou com o privileacutegio e a responsabilidade de serem cotrabalhadores com ele nas tarefas reais a serem executadas na criaccedilatildeo18 A terra foi criada para o domiacutenio e governo humanos Tal domiacutenio era expressatildeo do reino de Deus e representava o governo divino19

14 LIMA Leandro A de A grande batalha escatoloacutegica Satildeo Paulo Editora Agathos 2016 p 715 WALTKE Bruce Comentaacuterios do Antigo Testamento Genesis Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019

p 7716 VAN GRONINGEN Gerard Criaccedilatildeo e consumaccedilatildeo o reino a alianccedila e o Mediador Satildeo

Paulo Cultura Cristatilde 2018 vol 1 p 7917 Ibid p 9018 Ibid p 85 19 DEMPSTER Stephen G Dominion and Dynasty A Biblical Theology of the Hebrew Bible

New Studies in Biblical Theology 15 Downers Grove Illinois IVP Academic 2006 p 62

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

76

Se Adatildeo e Eva tivessem cumprido devidamente o mandato recebido de Deus Satanaacutes natildeo teria nenhum direito e legalidade sobre o cosmos e nem sobre os vice-gerentes de Deus Pois embora Satanaacutes tivesse acesso ao Eacuteden pelo fato de ser um anjo e por sua posiccedilatildeo no cosmos ele natildeo era capaz de introduzir o mal e o pecado diretamente dentro do Eacuteden e do cosmos pois natildeo lhe foram concedidas as prerrogativas reais e o status que foram concedidos por Deus a Adatildeo e Eva20 Por isso ele buscava para si o controle do reino coacutesmico de Deus mas para atingir seu objetivo era preciso encontrar uma brecha ele precisava usurpar este direito que pertencia ao primeiro casal e a uacutenica maneira de fazecirc--lo era entrar no Eacuteden e ganhar controle e influecircncia sobre os vice-gerentes de Deus Em Gecircnesis 215 Deus toma o homem e o coloca no jardim do Eacuteden para o cultivar e o guardar Um aspecto interessante da atividade do homem eacute que o termo guardar incluiacutea guardar o jardim contra a usurpaccedilatildeo de Satanaacutes Adatildeo e Eva natildeo eram apenas os sacerdotes de Deus mas tambeacutem os guardiotildees do jardim Eles que deveriam expulsar a serpente acabaram sendo expulsos por ela21 Ao inveacutes de prontamente se opor denunciar e expulsar o tentador blasfemo eacute digno de nota o fato de Adatildeo ter ficado passivo enquanto via sua esposa receber um tutorial deste estranho mestre de teologia a serpente22 Sa-tanaacutes estava desafiando a autoridade de Deus ao compelir o homem a escolher entre dois mestres23 Era a autoridade de Deus versus o desafio do mundo sob o domiacutenio de Satanaacutes24 Dessa maneira ao darem ouvidos agrave voz da serpente Adatildeo e Eva estavam deixando a autoridade de Deus e de sua palavra para se colocarem debaixo da autoridade do diabo e de suas mentiras submetendo-se ao pecado e ao poder do mal ficando destinados agrave morte25

Ao enganar e seduzir o primeiro casal Satanaacutes foi bem-sucedido em seu plano de introduzir o mal e o pecado no mundo (Gn 31-13) levando-os a duvidar de Deus e desobedececirc-lo Adatildeo e Eva quebraram o seu relacionamento com Yahweh com o cosmos e um com o outro Agora eles eram os quebradores do pacto natildeo mais tinham o senso de serem governadores reais e vice-gerentes de Deus Eles abdicaram do trono que Deus lhes havia dado renderam-se a Satanaacutes completamente e pecaram contra o Criador26 Com isso Satanaacutes obteve

20 GRONINGEN Criaccedilatildeo e consumaccedilatildeo p 12521 WALTKE Comentaacuterios do Antigo Testamento p 10322 GOLDINGAY John Old Testament Theology Israelrsquos Gospel Downers Grove IL IVP Aca-

demic 2003 p 13123 KLINE M G Kingdom Prologue Genesis Foundations for a Covenantal Worldview Eugene

OR Wipf amp Stock 2006 p 12324 ARNOLD Bill T Encountering the Book of Genesis Grand Rapids Baker Books 1998 p 4125 Segundo Gordon Wenham ldquoa serpente simboliza o pecado a morte e o poder do malrdquo WENHAM

Gordon J Genesis 1-15 World Biblical Commentary Waco TX 1987 p 14826 GRONINGEN Criaccedilatildeo e consumaccedilatildeo p 127

77

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

o domiacutenio sobre os vice-gerentes pactuais de Deus e consequentemente ob-teve domiacutenio sobre o cosmos O pecado que passou a fazer parte da natureza humana caiacuteda deu poder a Satanaacutes e seus anjos para serem acusadores dos seres humanos e tambeacutem para os dominarem e possuiacuterem Foi o princiacutepio da legalidade Satanaacutes conseguiu estabelecer o seu reino seu trono e seu domiacutenio substitutos dentro do cosmos27 Poreacutem seu reino eacute parasita ou seja natildeo pode existir independentemente pois depende do reino coacutesmico de Deus Ele eacute um intruso maligno querendo entronizar-se como o mestre dos seres humanos e do reino coacutesmico sobre o qual eles haviam recebido o domiacutenio e o mandato de zelar cultivar e governar28

Por meio da desobediecircncia de Adatildeo e Eva Satanaacutes foi capacitado a im-plantar seu reino parasita dentro do cosmos Sua intenccedilatildeo eacute ter domiacutenio com-pleto o que nunca seraacute consumado Seu reino eacute de oposiccedilatildeo espiritual ao reino de Deus e a todo o cosmos O ataque de Satanaacutes foi totalmente planejado pois visava destruir toda estrutura que Deus havia criado no jardim O interesse do inimigo natildeo era simplesmente conseguir que o homem pecasse contra Deus muito mais do que isso ele queria invadir cada estrutura de autoridade cada siacutembolo de reino e governo que Deus havia instituiacutedo29 Ele queria subverter toda a estrutura da criaccedilatildeo e queria que Deus fosse humilhado Eacute aqui que temos o estabelecimento da antiacutetese da linha divisoacuteria do abismo e da oposi-ccedilatildeo entre o reino de Deus e o reino parasita de Satanaacutes Logo apoacutes a queda do primeiro casal o Senhor pronuncia uma maldiccedilatildeo contra a serpente e declara inimizade entre a semente de Satanaacutes e os seguidores de Yahweh (cf Gn 315) Van Groningen mais uma vez traz clareza agrave questatildeo

Eacute basicamente uma luta pelo coraccedilatildeo pelo serviccedilo real e os benefiacutecios re-sultantes destes Deus Yahweh requereu o direito de posse Satanaacutes tambeacutem Ter os coraccedilotildees a proacutepria pessoa de Adatildeo e Eva natildeo era somente tecirc-los como servos mas tambeacutem reivindicar o cosmos sobre o qual tinham sido colocados como vice-gerentes Desse modo reivindicar os vice-gerentes era reivindicar o seu domiacutenio Reivindicar os seres reais era reivindicar suas prerrogativas reais dentro do domiacutenio Ter domiacutenio espiritual era tambeacutem ter o domiacutenio coacutesmico todos os aspectos do reino coacutesmico estariam envolvidos na luta quando Deus Yahweh sustentasse por declaraccedilatildeo a oposiccedilatildeo ie a antiacutetese30

Com a entrada do pecado no mundo o homem a quem Deus havia criado com liberdade de escolha usa seu livre arbiacutetrio para rebeliatildeo Adatildeo e Eva quebram o Pacto que Deus havia feito com eles caem do seu estado de

27 Ibid28 Ibid p 12629 Ibid p 15730 Ibid p 156

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

78

inocecircncia e tornam-se pecadores traindo a Deus num ato de rebeldia pois foi uma traiccedilatildeo universal (coacutesmica) uma traiccedilatildeo contra o Rei do cosmos31 Sua natureza que antes era santa agora estaacute corrompida pelo mal e manchada pelo pecado Seus pensamentos consciecircncia vontade e emoccedilotildees satildeo atingidos pela corrupccedilatildeo e pervertidos eles satildeo despojados de sua justiccedila original E assim condenam todos os seus descendentes a nascerem em iniquidade culpados corrompidos e destinados agrave morte32 Agora toda a criaccedilatildeo eacute colocada debaixo do cativeiro do pecado Aqui os vice-gerentes de Deus entregam nas matildeos da serpente o domiacutenio que tinham recebido do Criador perdendo seu status real e a autoridade de dominar e sujeitar toda criaccedilatildeo33 Contudo como assinala Derek Kidner ldquograccedilas agrave misericoacuterdia a maldiccedilatildeo recai sobre os domiacutenios do homem natildeo sobre o homem propriamente ditordquo34 Pois embora Adatildeo tenha ouvido palavras como fadiga suor morte e poacute sendo associadas agrave sua expe-riecircncia humana como consequecircncia de sua rebeliatildeo contudo a maldiccedilatildeo recai sobre a terra que se torna maldita por causa do pecado e porque seu domiacutenio eacute entregue a Satanaacutes Ademais o objetivo da serpente de minar a autoridade de Deus entre o povo que ele mesmo criou natildeo seraacute alcanccedilado pois no final ela seraacute destruiacuteda pela semente da mulher (cf Gn 315)35

12 A autoridade recuperada e ampliadaA fim de que esta autoridade fosse recuperada ou reconquistada algo

precisava ser feito E ningueacutem menos que o Filho de Deus foi quem realizou tal obra por meio de sua vitoacuteria na batalha juriacutedica da cruz Ao retrocedermos para muito antes da crucificaccedilatildeo temos de considerar a conversa que o diabo tem com Jesus por ocasiatildeo da tentaccedilatildeo no deserto Em Lucas 45-6 Satanaacutes num momento mostra a Cristo todos os reinos do mundo e a gloacuteria deles A seguir declara que daraacute toda essa autoridade sobre os reinos a Cristo se ele prostrado o adorar o que Cristo se recusou a fazer Mas um fato importante nesse episoacutedio eacute que o diabo afirma que a autoridade sobre todos os reinos do mundo foi entregue a ele por isso ele pode concedecirc-la a quem quiser O curioso eacute que Jesus natildeo o desmente e nem o questiona sobre tal afirmaccedilatildeo Apesar de ser o pai da mentira o diabo parece estar falando a verdade quando afirmou que tinha toda aquela autoridade sobre as naccedilotildees e reinos Pois no Eacuteden por ocasiatildeo da queda do ser humano ele recebeu autoridade para enganar as naccedilotildees e mantecirc-las sob cegueira espiritual Eacute digno de nota que ao tentar a Cristo

31 SPROUL R C A verdade da cruz Satildeo Paulo Fiel 2019 p 35-36 32 CALVINO Joatildeo Salmos Vol 2 Satildeo Paulo Fiel 2011 p 418-419 33 CHUNG Chun Kwang Missatildeo primordial os fundamentos da missatildeo em Gecircnesis 1-11 Satildeo

Paulo Missioloacutegica 2019 p 7334 KIDNER Derek Genesis introduccedilatildeo e comentaacuterio Satildeo Paulo Vida Nova 1979 p 6735 LONGMAN III Tremper Como ler Genesis Satildeo Paulo Vida Nova 2009 p 137

79

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

no deserto ele natildeo sabia que natildeo teria mais esta autoridade por muito tempo Porque Cristo por meio de sua morte e ressurreiccedilatildeo cassaria este direito legal de Satanaacutes e tomaria dele as naccedilotildees36

Quando comparamos as passagens de Lucas 46 com Mateus 2818 podemos perceber uma forte semelhanccedila entre as palavras que Satanaacutes usou para oferecer a autoridade dos reinos deste mundo a Jesus e a afirmaccedilatildeo de Jesus sobre o Pai ter-lhe concedido toda autoridade nos ceacuteus e na terra Em Lucas 46 Satanaacutes declara ldquoΣοὶ δώσω τὴν ἐξουσίαν ταύτην ἅπασαν καὶ τὴν δόξαν αὐτῶν ὅτι ἐμοὶ παραδέδοταιrdquo (ldquoA ti darei toda esta autoridade e a gloacuteria deles porque a mim foi entreguerdquo) Em Mateus 2818 Jesus decla-ra ldquoἘδόθη μοι πᾶσα ἐξουσία ἐν οὐρανῷ καὶ ἐπὶ τῆς γῆςrdquo (ldquoFoi dada a mim toda autoridade no ceacuteu e sobre a terrardquo) Jesus proclama sua autoridade nos ceacuteus e na terra repetindo quase que cada palavra proferida pelo diabo37 Podemos perceber que a batalha juriacutedica travada por Cristo eacute determinada pela antiacutetese entre o reino dos ceacuteus e o domiacutenio de Satanaacutes A tentaccedilatildeo com respeito aos reinos deste mundo (cf Lc 45ss e Mt 48ss) revela em que consistia o conflito entre Jesus e Satanaacutes O priacutencipe deste mundo (o diabo) estava se opondo ao reino de Deus por saber que Jesus disputaria essa autoridade com ele em nome de Deus sendo que Cristo jamais poderia fazer uso arbitraacuterio da autoridade que lhe fora dada antes deveria conquistaacute-la natildeo da maneira proposta por Satanaacutes mas da maneira determinada por Deus38 Enquanto a autoridade de Satanaacutes foi algo usurpado pela legalidade deixada por Adatildeo a autoridade de Cristo por sua vez foi um direito conquistado e recebido das matildeos um Deus soberano Ele natildeo usurpou tal autoridade antes ela lhe foi dada por Deus como uma capacitaccedilatildeo para um encargo39 Jesus eacute digno da autoridade que recebeu (Apocalipse 5) O que Satanaacutes ofereceu a Jesus foi ldquotoda autoridaderdquo sobre os reinos deste mundo mas o que Deus lhe concedeu foi toda autoridade nos ceacuteus e na terra dando-lhe um nome acima de todo nome (Fp 29-10) Isso aponta para o se-nhorio coacutesmico de Cristo

Fica claro que refletir sobre a obra realizada por Cristo em sua morte ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo eacute imprescindiacutevel para compreendermos o aspecto juriacutedico que envolve o plano da redenccedilatildeo A obra de Cristo efetua por assim dizer uma total renovaccedilatildeo coacutesmica colocando todos os reinos deste mundo sob seu domiacutenio conquistando a salvaccedilatildeo natildeo soacute de almas mas de corpos e natildeo soacute de seres humanos mas de toda a criaccedilatildeo40 Eacute com base nisto que pode-

36 LIMA A grande batalha escatoloacutegica p 29-3037 Ibid p 2938 RIDDERBOS Herman A vinda do Reino de Deus Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019 p 6439 KLAIBER Walter ldquoThe Great Commission of Matthew 2816-20rdquo American Baptist Historical

Quarterly vol XXXVII n 2 p 108-122 40 HORTON A Grande Comissatildeo p 72-73

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

80

mos entender o protoevangelho em gecircnesis 315 ldquoPorei inimizade entre ti e a mulher entre a tua descendecircncia e o seu descendente Este te feriraacute a cabeccedila e tu lhe feriraacutes o calcanharrdquo Na maldiccedilatildeo sobre a serpente veio embutida uma semente de esperanccedila para a humanidade uma esperanccedila genealoacutegica41

Eacute neste contexto mais amplo da alianccedila da graccedila que teve seu iniacutecio com a promessa divina de um redentor em Gecircnesis 315 que a Grande Comissatildeo eacute dada Jesus eacute o descendente da mulher que ao morrer na cruz e ressuscitar feriu a cabeccedila de Satanaacutes Ele esmagou a cabeccedila da serpente e estaacute pondo prisioneiros em liberdade pois lhe foi dada toda a autoridade nos ceacuteus e na terra42 Esta autoridade foi reivindicada por ele algumas vezes nos evangelhos quando falava de si mesmo como o ldquoFilho do Homemrdquo Tal expressatildeo aparece em Daniel 713-14 e eacute uma das mais usadas por Jesus para referir-se a si proacute-prio para falar de sua majestade de sua autoridade para perdoar pecados do seu poder legislador sobre o dia de saacutebado e da gloacuteria de sua segunda vinda (cf Mt 96 128 1627 2430 2531) Mateus 2818 parece ser uma alusatildeo consciente a Daniel 71443

Podemos dizer que Jesus estaacute edificando a sua igreja sobre a sua palavra e uma dessas palavras ocorre no evangelho de Mateus 2818-20 exatamente o texto da Grande Comissatildeo Mateus 2818 eacute o equivalente real a Daniel 714 ldquoE foi-lhe dado o domiacutenio e a honra e o reino para que todos os povos naccedilotildees e liacutenguas o servissem o seu domiacutenio eacute um domiacutenio eterno que natildeo passa-raacute e o seu reino tal que natildeo seraacute destruiacutedordquo Jesus reivindica ser este Filho do Homem profetizado por Daniel44 Eacute com base em sua proacutepria identidade que ele entrega a Grande Comissatildeo aos seus disciacutepulos Portanto Cristo eacute o centro de toda proclamaccedilatildeo missionaacuteria45 ele eacute o personagem central da missatildeo sua pessoa eacute o centro da Escritura (Lc 2427 44) e eacute ele mesmo quem deve ser proclamado (Lc 2446-47) Os disciacutepulos devem proclamar o evangelho com base no direito de Cristo o qual veio a este mundo para impor o direito divino sobre Satanaacutes e assim libertar os cativos O evangelho iraacute prevalecer46 Cristo veraacute o fruto do penoso trabalho de sua alma e ficaraacute satisfeito pois agrave medida que o evangelho for sendo proclamado a todas as naccedilotildees o Senhor atrairaacute muitos pecadores a si e justificaacute-los-aacute (Is 5311)

41 DEMPSTER Dominion and Dynasty p 6842 LIMA A grande batalha escatoloacutegica p 8243 CARSON Donald A O comentaacuterio de Mateus Satildeo Paulo Shedd 2011 p 68744 KLAIBER ldquoThe Great Commissionrdquo p 108-12245 PIPER John Alegrem-se os povos a supremacia de Deus em missotildees Satildeo Paulo Cultura

Cristatilde 2001 p 23446 LIMA A grande batalha escatoloacutegica p 45

81

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

2 O PODER DO EVANGELHOToda menccedilatildeo ao evangelho feita neste artigo tem como base a seguinte

definiccedilatildeo ldquoO evangelho eacute a mensagem de Deus para a redenccedilatildeo de sua igreja Eacute o poder de Deus que se manifesta na transformaccedilatildeo de pessoas Eacute o proacuteprio Senhor Jesus quem ele eacute o que ele fez na cruz e na ressurreiccedilatildeordquo47 Posto isto o poder o triunfo e os efeitos do evangelho satildeo infinitamente maiores do que a maioria de noacutes imagina

Em Colossenses 214 Paulo faz uso de uma metaacutefora tirada do mundo juriacutedico ele fala de uma espeacutecie de certificado de diacutevida uma cobranccedila de nossa diacutevida legal Ao comentar este versiacuteculo James Dunn diz que o pano de fundo aqui por meio da expressatildeo ldquocontra noacutesrdquo confirma que o documento em questatildeo era de condenaccedilatildeo era um registro de nossas transgressotildees hostil a noacutes Dunn ainda argumenta que a redenccedilatildeo realizada na cruz sob estas imagens efetua o cancelamento ou apagamento dos registros de um livro A eliminaccedilatildeo dos registros confirma que nenhuma destas transgressotildees eacute mais mantida contra noacutes em outras palavras a metaacutefora eacute outra maneira de dizer que ldquoele perdoou todas as nossas transgressotildeesrdquo48 Paulo usa uma imagem viacutevida ao afirmar que Cristo ao ser crucificado removeu destruiu o registro de diacutevida que era contra noacutes A ideia eacute de a acusaccedilatildeo estar sendo destruiacuteda por meio da crucificaccedilatildeo como se a proacutepria acusaccedilatildeo estivesse sendo crucificada Nossas transgressotildees foram absorvidas na morte sacrifical de Cristo49 Em Colossenses 215 Paulo daacute ecircnfase ao triunfo do Senhor ressurreto sobre principados e potestades Se em Colossenses 214 a cruz eacute siacutembolo de destruiccedilatildeo no sentido de cancelar ou destruir o escrito de diacutevida agora em Colossenses 215 ela eacute transformada em uma imagem puacuteblica de triunfo50

A versatildeo Todayrsquos New International Version traduz a expressatildeo ldquodespojan-do principados e potestadesrdquo como ldquotendo desarmado os principados e potes-tadesrdquo Douglas Moo ao analisar exegeticamente esses versiacuteculos afirma que foi na cruz que Deus desarmou tirou as armas dos dominadores deste mundo mas que foi na ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo de Cristo que Deus exibiu publicamente a realidade do triunfo de Cristo sobre os principados e potestades Para Moo o apoacutestolo Paulo ao usar a sequecircncia dos versiacuteculos 14 e 15 parece sugerir uma ligaccedilatildeo entre o perdatildeo de nossos pecados e o desarmamento dos poderes

47 LIDOacuteRIO Ronaldo Revitalizaccedilatildeo de igrejas avaliando a vitalidade de igrejas locais Satildeo Paulo Vida Nova 2016 p 21

48 DUNN James D G The Epistles to the Colossians and to Philemon Grand Rapids Eerdmans 2016 p 164-166

49 Ibid50 Ibid

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

82

das trevas51 Mais uma vez podemos perceber o aspecto juriacutedico da obra de Cristo seu direito e senhorio sobre todas as coisas

Esta verdade tambeacutem eacute encontrada em Efeacutesios 120-21 quando Paulo afirma que Deus ressuscitou a Jesus dentre os mortos e o fez assentar acima de todo governo domiacutenio principado e potestade Ele ensina a mesma verdade em Romanos 13-4 ao afirmar que Jesus foi designado Filho de Deus com poder por meio da ressurreiccedilatildeo Eacute quando ele ascende aos ceacuteus para assentar-se agrave direita do Pai que ele proclama sua vitoacuteria sobre os seres espirituais malignos (1Pe 318-22)52

1Pedro 318-22 eacute outro texto que apresenta a vitoacuteria da Cristo na batalha juriacutedica do Calvaacuterio Aqui o apoacutestolo Pedro fala acerca da morte e ressurreiccedilatildeo de Cristo seu triunfo e a proclamaccedilatildeo de sua vitoacuteria sobre os principados e potestades No versiacuteculo 19 Pedro usa o verbo ἐκήρυξεν (proclamar) para dizer que Jesus apoacutes ressuscitar proclamou sua vitoacuteria aos anjos caiacutedos (espiacuteritos em prisatildeo) anunciou o seu triunfo sobre seus adversaacuterios O texto termina dando destaque ao fato de que Jesus Cristo apoacutes ter subido aos ceacuteus estaacute agrave matildeo direita de Deus estando-lhe sujeitos os anjos autoridades e potestades (322) Pedro objetiva deixar claro que natildeo haacute nada nos ceacuteus e na terra que tenha ficado fora do domiacutenio de Cristo O alvo de Cristo ao fazer uma proclamaccedilatildeo especiacutefica a esses anjos em prisatildeo foi mostrar que nem mesmo aqueles antigos anjos caiacutedos que estavam haacute tanto tempo aprisionados ficaram alheios ao senhorio de Jesus53 ldquoO Senhor ressuscitado eacute o evangelho vivordquo54 ndash isto quer dizer que o evangelho venceu triunfou A ecircnfase do texto estaacute na obra de Cristo na cruz e no que ele conquistou ou seja a morte e a ressurreiccedilatildeo de Cristo garantem a libertaccedilatildeo dos seres humanos dos poderes dos espiacuteritos malignos55 Cristo se manifestou para tirar os pecados e para destruir as obras do diabo (1Jo 35 8) aleacutem de conquistar o direito de restaurar toda a criaccedilatildeo libertando-a do cativeiro do pecado (Rm 821)

Apocalipse 59-10 eacute mais um texto que apresenta essa questatildeo juriacutedica da morte e ressurreiccedilatildeo de Cristo e de como ele tem o direito de exercer seu senhorio sobre todas as coisas e de salvar pessoas que procedem dos quatro cantos da Terra No versiacuteculo 9 Joatildeo declara que Jesus ἠγόρασας (comprou) para Deus pessoas que procedem de toda tribo povo liacutengua e naccedilatildeo Cristo comprou a libertaccedilatildeo do seu povo da maldiccedilatildeo e da penalidade do pecado Mais do que isso ele comprou pessoas elas lhe pertencem Por meio de sua

51 MOO Douglas J The Letters to the Colossians and Philemon Grand Rapids Eerdmans 2008 p 215

52 Ibid p 21553 LIMA A grande batalha escatoloacutegica p 11054 DALTON William Joseph Christrsquos Proclamation to the Spirits A Study of 1 Peter 318-46

Roma Editrice Pontificio Istituto Biblico 1989 p 9 55 Ibid

83

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

morte sacrificial Cristo comprou um povo para si O verbo ἠγόρασας eacute usado como uma metaacutefora comercial para a libertaccedilatildeo de um prisioneiro de guerra da escravidatildeo Desta forma sua morte foi um resgate um preccedilo pago pelo qual Deus comprou um povo O texto mostra que o preccedilo foi o sangue incorrup-tiacutevel de Cristo que garante natildeo soacute a liberdade do seu povo mas que tambeacutem o coloca em uma nova condiccedilatildeo espiritual Agora esse povo eacute escravo de Deus comprado para fazer sua vontade Eacute o povo de propriedade exclusiva de Deus A redenccedilatildeo efetuada confere uma nova condiccedilatildeo56

Cristo possui toda a autoridade no ceacuteu e na terra Com base em sua vitoacuteria na terra ele expulsou Satanaacutes do santuaacuterio do ceacuteu onde ele acusava os santos dia e noite (Apocalipse 12)57 Apoacutes prender ou amarrar o valente Cristo estaacute saqueando sua casa na terra tomando de volta o que por justiccedila lhe pertence (Mt 1229) Douglas Moo ao abordar a visatildeo claacutessica da expiaccedilatildeo mostra que haacute uma conexatildeo entre o poder que Satanaacutes e seus correligionaacuterios tinham sobre os seres humanos por causa do seu pecado Contudo Deus com a provisatildeo de Cristo pagou a diacutevida que os homens tinham com Satanaacutes O Pai ao enviar seu Filho agrave cruz resolveu de maneira final e definitiva o problema do pecado e removeu qualquer poder que os espiacuteritos malignos possam ter sobre os se-res humanos Moo ainda destaca que a vitoacuteria de Cristo celebrada e exibida na sua ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo precisa ser entendida pelos crentes como se fosse deles Logo a autoridade de Cristo sobre os principados e potestades foi manifestada e em Cristo os crentes compartilham dessa autoridade58 A obra realizada por Cristo em sua morte ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo pode ser bem definida nestas palavras de Horton

Nosso Senhor realizou algo na Histoacuteria ndash em sua vida morte ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo ndash que o qualifica para ser juiz e justificador dos iacutempios Jesus eacute tanto o Senhor da Alianccedila que comanda quanto o Servo da Alianccedila que cumpre toda a justiccedila e obteacutem para noacutes o perdatildeo o novo nascimento a ressurreiccedilatildeo e a renovaccedilatildeo de toda a criaccedilatildeo Como Deus ele eacute Senhor como ser humano ele ldquofoi designado Filho de Deus com poder segundo o espiacuterito de santidade pela ressurreiccedilatildeo dos mortos a saber Jesus Cristo nosso Senhorrdquo (Rm 14)59

56 OSBORNE Grant Comentaacuterio exegeacutetico Apocalipse Satildeo Paulo Vida Nova 2014 p 290-29157 Antes da morte e ressurreiccedilatildeo de Cristo ao que tudo indica Satanaacutes tinha livre acesso ao ceacuteu

onde atuava como uma espeacutecie de promotor de justiccedila acusando os seres humanos de suas transgressotildees da lei divina Ao morrer Cristo pagou todo o preccedilo do resgate do ser humano destronando o acusador que jaacute natildeo tem mais base para continuar acusando o povo de Deus Satanaacutes perdeu seu posto de acu-sador no ceacuteu sua cadeira ficou vazia ele natildeo tem mais legitimidade para agir como acusador no ceacuteu LIMA Leandro Antocircnio de ldquoApocalipse como literatura um estudo sobre a importacircncia da anaacutelise da arte literaacuteria em apocalipse 12-13rdquo Dissertaccedilatildeo (Doutorado em Letras) Satildeo Paulo Universidade Presbiteriana Mackenzie 2012 p 188-189

58 MOO The Letters to the Colossians and Philemon p 21659 HORTON A Grande Comissatildeo p 42

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

84

Walter Klaiber afirma que a ressurreiccedilatildeo de Jesus jaacute eacute sua exaltaccedilatildeo60 Este eacute um ponto importante em nossa discussatildeo pois ao ressuscitar Cristo triunfa sobre o pecado sobre a morte e sobre Satanaacutes e seus anjos Em Romanos 14 lemos ldquoe foi designado Filho de Deus com poder segundo o espiacuterito de santidade pela ressurreiccedilatildeo dos mortos a saber Jesus Cristo nosso Senhorrdquo Sobre este texto John Stott declara que ldquoa ressurreiccedilatildeo eacute o ponto decisivo na existecircncia do Filho de Deus Antes de ressuscitar ele era o Filho de Deus em fraqueza a humildade Por meio da ressurreiccedilatildeo torna-se o Filho de Deus em poderrdquo61 Eacute digno de nota que Jesus soacute entrega a Grande Comissatildeo aos seus disciacutepulos apoacutes ressuscitar ldquoA ressurreiccedilatildeo marca a vitoacuteria incontestaacutevel de Cristordquo62 Ele obteve toda autoridade nos ceacuteus e na terra por meio de sua humilhaccedilatildeo sofrimento e morte63 A ressurreiccedilatildeo de Cristo deu iniacutecio agrave nova criaccedilatildeo de Deus sendo os cristatildeos as primiacutecias desta nova criaccedilatildeo Eacute por isso que Paulo escrevendo aos coriacutentios afirma ldquoMas de fato Cristo ressuscitou dentre os mortos sendo ele as primiacutecias dos que dormemrdquo (1Co 1517-20) Sua ressurreiccedilatildeo eacute a garantia de redenccedilatildeo do seu povo mas tambeacutem de todo o cos-mos Ademais ldquofoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de mortos como de vivosrdquo (Rm 149) Jesus morreu natildeo apenas para salvar seu povo dos pecados deles mas para ter o controle absoluto da nova criaccedilatildeo64 Diante dele todo joelho tem de se dobrar e toda liacutengua con-fessar que ele eacute o Senhor (Fp 29-11) ldquoEle estaacute agora amplamente instalado e declarado como Juiz e somente ele pode receber os apelos para absolviccedilatildeordquo65 Desta maneira o conceito de salvaccedilatildeo implica render-se ao senhorio de Cristo pois Jesus foi designado Juiz de todos os povos graccedilas agrave sua ressurreiccedilatildeo e foi colocado por Deus como o centro de toda a obra salvadora de Deus66 As implicaccedilotildees missioloacutegicas do seu triunfo como Juiz universal satildeo a base para a Grande Comissatildeo ldquoA ordem dada por Jesus de pregar o arrependimento e o perdatildeo de pecados repousava sobre sua ressurreiccedilatildeo Esse eacute o conteuacutedo da comissatildeordquo67 Com base nisto o Senhor Jesus comissiona seus disciacutepulos a irem pelo mundo e pregarem o evangelho a toda criatura

60 KLAIBER ldquoThe Great Commissionrdquo p 108-12261 STOTT John R W A mensagem de Romanos Satildeo Paulo ABU Editora 2007 p 5162 LIMA A grande batalha escatoloacutegica p 90 63 RIDDERBOS A vinda do Reino de Deus p 9964 SILVA Norval Oliveira da A mensagem de salvaccedilatildeo num contexto animista A questatildeo indiacutegena

uma luta desigual Minas Gerais Editora Ultimato 2008 p 20065 PIPER Alegrem-se os povos p 150 66 Ibid p 142 e 15067 STETZER Ed Plantando igrejas missionais como plantar igrejas biacuteblicas saudaacuteveis e rele-

vantes agrave cultura Satildeo Paulo Vida Nova 2015 p 64

85

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

3 AS GARANTIAS DO EVANGELHOSobre a questatildeo levantada no iniacutecio a respeito da traduccedilatildeo do verbo

πορευθέντες o autor deste artigo concorda com a posiccedilatildeo do professor Bos-ma de que o ldquoirrdquo faz parte do mandamento de se fazer disciacutepulos pois tanto eacute importante o discipulado local (fazer disciacutepulos e ensinar) quanto as missotildees transculturais Ademais estaacute claro que o Ide tem forccedila imperativa Logo natildeo faz sentido criar uma tensatildeo entre discipulado e missotildees pois as duas coisas estatildeo incluiacutedas e interligadas na Grande Comissatildeo ambas estatildeo debaixo da autoridade de Cristo

A ordem para que o evangelho fosse proclamado entre todas as naccedilotildees foi dada por Cristo aos seus disciacutepulos logo apoacutes sua vitoacuteria na batalha juriacute-dica travada na cruz e consumada na ressurreiccedilatildeo O Pai concedeu-lhe toda a autoridade nos ceacuteus e na terra bem como o direito de exercer essa autoridade sobre principados e potestades e abriu as portas para que o evangelho fosse pregado a todas as naccedilotildees sem impedimento algum68 Eric Kayayan declara que ldquoa proclamaccedilatildeo do evangelho de Jesus Cristo eacute o cetro por meio do qual Deus deseja governar o mundo e sua autoridade divina eacute expressa para que todos se submetam a elardquo69 Jesus deteacutem o direito de controlar todas as coisas e de exigir obediecircncia70 Faz-se necessaacuterio destacar que todos os eventos associados agrave primeira vinda de Cristo desde sua encarnaccedilatildeo ateacute a coroaccedilatildeo satildeo decisi-vos para a expulsatildeo de Satanaacutes do ceacuteu e seu aprisionamento para cercear sua influecircncia enganadora entre as naccedilotildees (cf Ap 121-6) Agrave medida que a igreja cumpre a Grande Comissatildeo a verdade do evangelho vai tomando o lugar da mentira do diabo e Cristo atrai a si todos os eleitos dentre as naccedilotildees A igreja enquanto uma poderosa organizaccedilatildeo missionaacuteria que proclama o evangelho entre as naccedilotildees natildeo pode ser destruiacuteda pelo diabo71 Michael Horton eacute asser-tivo ao dizer que ldquoa Grande Comissatildeo comeccedila com um triunfante anuacutencio de que toda a autoridade nos ceacuteus e na terra pertence a Jesus Cristo O evangelho

68 De acordo com a interpretaccedilatildeo amilenista do texto de Apocalipse 121-6 por ocasiatildeo da primeira vinda de Cristo Satanaacutes foi aprisionado no sentido de natildeo poder enganar as naccedilotildees para impedi-las de aprender a verdade acerca de Deus Logo durante a era do evangelho ele natildeo pode congregar todos os inimigos de Cristo para atacarem conjuntamente a igreja E embora sua influecircncia natildeo seja eliminada ela eacute tatildeo restringida que ele eacute incapaz de impedir a disseminaccedilatildeo do evangelho entre as naccedilotildees do mundo Por causa do aprisionamento de Satanaacutes na atualidade as naccedilotildees natildeo podem conquistar a igreja mas a igreja estaacute conquistando as naccedilotildees HOEKEMA Anthony A A Biacuteblia e o futuro Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2012 p 243-245

69 KAYAYAN Eric ldquoChristrsquos Fourfold Declaration of Authorityrdquo Unio Cum Cristo Philadeplphia v 5 n 2 (out 2019) p 5-13

70 CARSON Donald A Os perigos da interpretaccedilatildeo da Biacuteblia Satildeo Paulo Vida Nova 2011 p 5271 HENDRIKSEN William Mais que vencedores os misteacuterios do Apocalipse desvendados com

profundidade e fidelidade Trad Wadislau Martins Gomes Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011 p 220-222

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

86

que traz salvaccedilatildeo tambeacutem orienta a igreja em sua missatildeordquo72 Dessa maneira a afirmaccedilatildeo de que toda a autoridade em todo o reino coacutesmico de Deus foi dada ao Cristo ressurreto eacute um preluacutedio apropriado para a ordem que se segue pois a posse de tal autoridade era um requisito para a emissatildeo efetiva de tal ordem73 ldquoPor causa de sua autoridade seus seguidores podem ir confiantes de que seu Senhor estaacute no controle soberano de tudo nos ceacuteus e na terrardquo74

Assim as duas declaraccedilotildees que estruturam as palavras de Jesus na Grande Comissatildeo podem ser consideradas como a ldquoGrande Garantiardquo A primeira eacute que Cristo tem toda a autoridade nos ceacuteus e na terra que eacute a capacitaccedilatildeo dada por Deus para um encargo A segunda declaraccedilatildeo eacute a garantia de sua presen-ccedila constante pois Cristo garante que seus disciacutepulos natildeo estaratildeo sozinhos ele estaraacute com eles enquanto cumprem sua missatildeo75 Na teologia biacuteblica do evangelho de Mateus Jesus eacute apresentado como o ldquoEmanuelrdquo que quer dizer ldquoDeus conoscordquo (cf Mt 123 e 2820) Eacute essa consciecircncia da presenccedila do Cristo ressurreto e glorificado entre os seus disciacutepulos que garante o cumprimento da missatildeo76 Logo podemos dizer que o evangelho antecede a missatildeo porque o sucesso na tarefa depende inteiramente daquilo que Cristo jaacute realizou em sua primeira vinda

Esta autoridade de Cristo natildeo eacute um poder (δύναμις) que um grande con-quistador pode reivindicar Mas refere-se agrave autoridade (ἐξουσία) que eacute sua por direito a qual lhe foi conferida por aquele que tem o direito de concedecirc-la77 Donald Carson ao comentar sobre a autoridade de Jesus neste texto diz que as esferas em que ele agora exerce autoridade absoluta foram ampliadas para incluir os ceacuteus e a terra ou seja o universo O pai estaacute desobrigado da autori-dade do Filho Jesus eacute aquele por meio de quem a autoridade do Pai eacute mediada Carson ainda comenta que esta eacute uma guinada na histoacuteria da redenccedilatildeo pois o reino do Messias manifesta-se com novo poder78 Ao ressuscitar Jesus vence a morte e conquista a salvaccedilatildeo de sua igreja Sua ressurreiccedilatildeo abastece o mandato missionaacuterio79 Por meio de sua ressurreiccedilatildeo Cristo estaacute introduzindo uma nova era e sua igreja tem a tarefa de testemunhar essa verdade por todo o mundo

72 HORTON A Grande Comissatildeo p 2373 MCGARVEY John William The New Testament Commentary Matthew and Mark Delight

AR Gospel Light Publishing Company 1875 p 25374 CARSON O comentaacuterio de Mateus p 68875 KLAIBER ldquoThe Great Commissionrdquo p 108-122 76 ZABATIERO Juacutelio Paulo Tavares LEONEL Joatildeo Biacuteblia literatura e linguagem Satildeo Paulo

Paulus 2011 p 9677 Dr Constablersquos Expository Bible Study Notes Disponiacutevel em httpsplanobiblechapelorg

tconnotespdfmatthewpdf Acesso em 12 fev 202178 CARSON Donald A O comentaacuterio de Mateus p 68779 STOTT John R W Ouccedila o Espiacuterito ouccedila o mundo Satildeo Paulo Editora ABU 1997 p 409

87

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

Apoacutes ressuscitar ele ordena que em seu nome seja pregado o arrependimento e a remissatildeo dos pecados em todas as naccedilotildees (Lc 2446-47) Ele conquistou o direito legal para que a missatildeo seja cumprida Todas as barreiras satacircnicas caiacuteram pois Cristo conquistou o direito sobre toda a criaccedilatildeo Portanto eacute com base nessa nova ordem das coisas que Jesus envia seus disciacutepulos para a mis-satildeo de evangelizar o mundo dando certeza de sua presenccedila vitoriosa como uma garantia de que o evangelho triunfaraacute80 Posto isto Deus eacute quem cria e sustenta a existecircncia e o crescimento de sua igreja por meio de sua Palavra Esta mesma Palavra deve ser proclamada ao mundo a fim de que o reino de Cristo se expanda ateacute aos confins da terra Como Horton diz ldquoA decisatildeo do Pai eacute irrevogaacutevel A missatildeo de Cristo jaacute foi realizada e o Espiacuterito teraacute igual ecircxito em seus labores Segue-se pois que a Grande Comissatildeo natildeo falharaacuterdquo81

Na anaacutelise de Walter Klaiber isso fica bastante claro

A Grande Comissatildeo nada mais eacute do que a consequecircncia da Grande Garantia Portanto vaacute porque eu Jesus tenho toda autoridade sobre as naccedilotildees em minhas matildeos A missatildeo da igreja natildeo eacute uma cruzada para subjugar as naccedilotildees para Cristo sua tarefa eacute introduzir as naccedilotildees na realidade do domiacutenio de Cristo82

Uma vez mais o professor Michael Horton traz sua contribuiccedilatildeo ao dizer que ldquoo mandato da Grande Comissatildeo eacute como a estrela-guia para reajustar o foco da nossa missatildeo como cristatildeos e como igrejas na vocaccedilatildeo central para este periacuteodo entre as duas vindas de Cristordquo83 Logo satildeo os indicativos do evan-gelho que impulsionam e direcionam a igreja em sua missatildeo de proclamaacute-lo

CONSIDERACcedilOtildeES FINAISA Grande Comissatildeo exigiu uma resposta por parte dos primeiros dis-

ciacutepulos Eles eram servos inadequados e hesitantes Natildeo obstante foram chamados para cumprir o propoacutesito divino ao continuarem a ensinar aquilo que Jesus iniciou84 Eles enfrentariam tempos difiacuteceis pois estavam sendo enviados a um mundo hostil a Deus e ao evangelho Jesus lhes disse que seriam perseguidos accediloitados presos e ateacute martirizados (cf Jo 1518ndash164) Mas o reino de Deus iria avanccedilar o evangelho triunfaria a despeito de todos os ataques do inimigo (cf At 1920) Por semelhante modo a Grande Co-missatildeo exige uma resposta de todos os verdadeiros disciacutepulos de todas as eacutepocas A resposta adequada que devemos dar a estas palavras de Cristo eacute

80 LIMA A grande batalha escatoloacutegica p 8281 HORTON A Grande Comissatildeo p 3682 KLAIBER ldquoThe Great Commissionrdquo83 HORTON A Grande Comissatildeo p 984 FRANCE R T The Gospel of Matthew Grand Rapids Eerdmans 2007 p 1109

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

88

a de unir-nos aos onze disciacutepulos em adoraccedilatildeo e obediecircncia ao Senhor dos ceacuteus e da terra a fim de cumprirmos nosso papel na proclamaccedilatildeo das boas novas de salvaccedilatildeo do reino de Deus a todas as naccedilotildees e deleitarmo-nos com a certeza de que mesmo diante de um mundo hostil a Deus e ao seu povo mesmo em face da perseguiccedilatildeo que este mundo possa nos oferecer natildeo temos de temer porque se a presenccedila fiacutesica de Jesus com seus disciacutepulos estava limitada a seu periacuteodo de vida terrena por sua vez a presenccedila espiritual do Senhor ressurreto natildeo tem semelhante limitaccedilatildeo pois Cristo garante que sempre estaraacute entre seu povo obediente Ele eacute o Deus conosco85

Ainda podemos dizer que a proacutepria analogia usada no Novo Testamento para descrever a tarefa a ser cumprida na Grande Comissatildeo eacute a de embaixado-res arautos oficiais que foram designados pelo chefe da naccedilatildeo para anunciar algo de grande importacircncia para o mundo em geral Por semelhante modo o termo ldquoevangelhordquo era usado para se referir agrave boa notiacutecia que um oficial era comissionado a anunciar na sede a saber que tinha havido vitoacuteria no campo de batalha86 ldquoO evangelho antecede a evangelizaccedilatildeordquo87 Eacute a boa nova daquilo que Deus fez em Cristo e por meio dele que libera e impulsiona a igreja a adentrar o mundo com o evangelho As boas novas do evangelho falam da vitoacuteria de Cristo mostram que as portas estatildeo abertas por todo o mundo pois as barreiras satacircnicas caiacuteram Agora o reino de Deus avanccedila pelo mundo in-teiro vai a todas as naccedilotildees ningueacutem pode deter o avanccedilo do evangelho ele vai por todo o mundo

Sem duacutevida a igreja eacute embaixadora de um reino indestrutiacutevel Cristo estaacute presente entre noacutes atraindo pecadores a si Ele estaacute edificando a sua igreja e as portas do inferno jamais prevaleceratildeo contra ela (Mt 1618) Eacute somente Jesus quem pode formar ou edificar a igreja porque a igreja eacute dele e natildeo nossa Somos conclamados a anunciar em todas as naccedilotildees o evangelho do reino o reino do Filho do Homem um reino inabalaacutevel o qual natildeo pode ser frustrado por nossa infidelidade justamente porque natildeo se trata de um reino que noacutes mesmos estamos edificando e sim um reino que estamos recebendo (Hb 1228) pois Jesus edifica sua igreja empregando meios estabelecidos por ele mesmo e garantindo sua presenccedila salviacutefica88

O evangelho natildeo pode ser contido A despeito de toda perseguiccedilatildeo nada o segura Ele eacute universal e alcanccedila todas as naccedilotildees Por isso antes de colocar o imperativo Jesus deu o maior dos estiacutemulos e o grande fundamento missio-naacuterio o seu triunfo A autoridade que Cristo conquistou por ocasiatildeo de sua ressurreiccedilatildeo eacute a uacutenica razatildeo pela qual os disciacutepulos satildeo convocados a irem pelo

85 Ibid86 HORTON A Grande Comissatildeo p 1587 Ibid p 2688 Ibid p 332

89

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

mundo e fazerem disciacutepulos dele89 O Mestre estava lhes mostrando que sua obra jaacute foi consumada e mesmo que eles ainda natildeo vissem os efeitos dela por completo ela foi realizada em sua primeira vinda de maneira que o reino de Deus agora cresce e nada pode contecirc-lo

A compreensatildeo dessa realidade cristoloacutegica exerce uma enorme diferenccedila em nossa motivaccedilatildeo confianccedila e esperanccedila para cumprimos nosso papel na Grande Comissatildeo A vitoacuteria foi conquistada por Cristo e noacutes como os seus arautos devemos apenas proclamaacute-la natildeo esquecendo obviamente de fazer disciacutepulos de todas as naccedilotildees batizaacute-los e ensinaacute-los em tudo aquilo que Cristo ordenou Quando a igreja cumpre a Grande Comissatildeo estaacute honrando e respei-tando o senhorio de Cristo pois ele tem o direito de exigir nossa obediecircncia

Portanto a missatildeo da igreja aponta para o escaton Quando o presente estado de coisas terminar e ceacuteus e terra forem renovados uma multidatildeo de redimidos estaraacute diante do trono adorando ao Cordeiro de Deus pois a Grande Comissatildeo foi cumprida ldquoE ouvi a toda a criatura que estaacute no ceacuteu e na terra e debaixo da terra e que estatildeo no mar e a todas as coisas que neles haacute dizer Ao que estaacute assentado sobre o trono e ao Cordeiro sejam dadas accedilotildees de graccedilas e honra e gloacuteria e poder para todo o sempre (Ap 513)90

ABSTRACTThe legal context in which the Great Commission was given involves the

four great themes of Scripture creation fall redemption and consummation When placed in Eden Adam was tasked with governing all that God had created When he sinned he gave this authority to Satan When Christ died and rose again he fulfilled his redemptive purpose and as the last Adam recovered and extended the authority lost by the first The Great Commission in Matthew 2818-20 begins not in verse 19 but already in verse 18 when the risen Lord based on this same authority commands his disciples to go out into the world and make disciples of all nations Therefore this article aims to analyze the word ldquoἐξουσίαrdquo (authority) especially in the context of the Gospel of Matthew in order to reflect on the authority lost by Adam and regained by Christ and to evaluate how the triumph and exaltation of Christ are the guarantee of the missionrsquos success how they give meaning to the ldquogordquo invest the church with authority and propel the disciples to the fulfillment of the Great Commission pointing to the eschaton

KEYWORDSBiblical theology New Testament Great Commission Kingdom Gospel

Authority Legal battle

89 KAYAYAN ldquoChristrsquos Fourfold Declaration of Authorityrdquo p 5-1390 PIPER Alegrem-se os povos p 13

91

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 91-101

IGREJAS E HISTOacuteRIA UM MODELO PARA INTERPRETAR A DIFERENCcedilA ENTRE O CATOLICISMO ROMANO

E O PROTESTANTISMOPaul Wells

RESUMOEste artigo1 aborda o conceito de tradiccedilatildeo a maneira pela qual um grupo

religioso apresenta no desenvolvimento da histoacuteria a relaccedilatildeo entre o mundo espiritual e o mundo histoacuterico material A tradiccedilatildeo situa o grupo em relaccedilatildeo agraves suas origens transmite crenccedilas e quando se trata de outro mundo evoca o ceacuteu e daacute esperanccedila No cristianismo existem duas maneiras de considerar e representar a relaccedilatildeo entre o mundo espiritual e o mundo material O catolicismo romano representa essa relaccedilatildeo como comparaacutevel agrave que existe entre um ato e a intenccedilatildeo por traacutes do ato O protestantismo considera tal relaccedilatildeo comparaacutevel agrave que existe entre uma palavra e seu sentido Para abordar o tema Igreja e histoacuteria o autor propotildee fazer uma comparaccedilatildeo entre essas duas posiccedilotildees em trecircs aacutereas a Igreja e os sacramentos a Escritura e a tradiccedilatildeo o Espiacuterito Santo e a vida cristatilde Ao concluir explica por que a posiccedilatildeo protestante expressa pela Reforma representa o cristianismo autecircntico e como essa posiccedilatildeo estaacute ameaccedilada no presente

PALAVRAS-CHAVECatolicismo Protestantismo Histoacuteria Igreja Tradiccedilatildeo Escritura

Professor de teologia sistemaacutetica na Faculdade Livre de Teologia Reformada de Aix-en-Provence no sul da Franccedila atual Faculdade de Teologia Joatildeo Calvino

1 O artigo foi publicado originalmente em La Revue Reformeacutee nordm 221 20031 Traduccedilatildeo Paulo Seacutergio Athayde Ribeiro

PAUL WELLS IGREJAS E HISTOacuteRIA

92

INTRODUCcedilAtildeOAs comunidades religiosas tecircm por funccedilatildeo apresentar uma mensagem

que ofereccedila a seus fieacuteis acesso ao mundo invisiacutevel Elas manifestam no mundo temporal o que eacute divino Elas existem para falar do mundo invisiacutevel e espiri-tual e tornaacute-lo presente na realidade material fiacutesica Igrejas de todos os tipos procuram ser a ponte entre o terreno e o que estaacute aleacutem

Se o mundo invisiacutevel eacute permanente o mundo terrestre evolui e se modi-fica progressivamente Tudo parece estar em constante movimento O mundo tem uma histoacuteria E nessa histoacuteria as igrejas que apresentam a mensagem do mundo invisiacutevel assumem feiccedilotildees distintas e encontram formas diferentes de apresentar essa mensagem A relaccedilatildeo entre os mundos espiritual e material eacute sempre o palco de desenvolvimentos destinados a exprimir como o homem pode alcanccedilar o outro mundo

Esses desenvolvimentos constituem o que podemos chamar de ldquotradi-ccedilatildeordquo o que foi recebido e transmitido agrave geraccedilatildeo seguinte e por ela de novo apropriado atraveacutes de novas formulaccedilotildees ou adaptaccedilotildees Uma tradiccedilatildeo viva cresce no curso da histoacuteria Suas justificaccedilotildees tornam-se mais completas as explicaccedilotildees da sua verdade e suas praacuteticas tornam-se mais profundas Cada agrupamento humano ndash famiacutelia igreja naccedilatildeo ou clube esportivo ndash tem suas tradiccedilotildees e ritos Eacute inevitaacutevel porque uma comunidade sem tradiccedilatildeo estaacute destinada a desaparecer

Agraves vezes alguns catoacutelicos romanos pensam que os protestantes natildeo tecircm tradiccedilotildees e que as recusam totalmente Eacute verdade que alguns protestantes deram essa impressatildeo quando disseram ldquoNoacutes natildeo temos tradiccedilotildees somos contra toda tradiccedilatildeo noacutes precisamos somente da Biacutebliardquo No entanto no Novo Testamento vemos que precisamos guardar a tradiccedilatildeo apostoacutelica como ldquoo bom depoacutesitordquo e pretender natildeo ter tradiccedilotildees torna-se uma atitude tradicional Tal ponto de vista resulta em sectarismos

A tradiccedilatildeo de um grupo religioso eacute entatildeo sua maneira de apresentar progressivamente no desenvolvimento da histoacuteria a relaccedilatildeo entre o mundo espiritual e o mundo histoacuterico material Assim a tradiccedilatildeo situa o grupo em relaccedilatildeo agraves suas origens transmite crenccedilas e quando se trata de outro mundo evoca o ceacuteu e daacute uma esperanccedila No cristianismo ndash se deixarmos de lado a Igreja Ortodoxa que quanto agrave tradiccedilatildeo tem uma visatildeo muito proacutexima do catolicismo romano ndash existem duas maneiras de considerar e de representar a relaccedilatildeo entre o mundo espiritual e o mundo material

O catolicismo romano representa a relaccedilatildeo entre o material e o espiri-tual como sendo comparaacutevel agrave relaccedilatildeo que existe entre um ato e a intenccedilatildeo por traacutes do ato Como um beijo ganha significado do amor que exprime o mundo material e tudo o que acontece ganham significado daquilo que representam e fazem conhecer ou seja de uma realidade espiritual que os

93

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 91-101

supera Assim para o catolicismo a histoacuteria e os desenvolvimentos histoacutericos das representaccedilotildees do espiritual satildeo muito importantes A religiatildeo catoacutelica acentuou como eacute o caso em Newman por exemplo a importacircncia dos de-senvolvimentos registrados a partir das origens A verdadeira realidade se encontra nos desenvolvimentos o original natildeo eacute a melhor representaccedilatildeo da coisa ela se torna mais expliacutecita nos desenvolvimentos Esta concepccedilatildeo acen-tua a importacircncia da continuidade da tradiccedilatildeo a marcha em direccedilatildeo a uma expressatildeo mais perfeita do espiritual e a importacircncia da Igreja em velar por esses desenvolvimentos histoacutericos

O protestantismo que representa uma ruptura no processo de desen-volvimento da Igreja no seacuteculo XVI considera a relaccedilatildeo entre o material e o espiritual comparaacutevel agrave relaccedilatildeo que haacute entre uma palavra e seu sentido A palavra eacute o meio pelo qual um sentido eacute apreendido o qual ultrapassa o seu caraacuteter simboacutelico A realidade do beijo eacute maior do que a palavra e a palavra remete ao que a transcende Assim para o protestantismo o importante estaacute nas origens A mensagem se reporta a qualquer coisa que eacute maior do que a palavra e que se exprime nessa palavra Eacute por essa razatildeo que o protestantismo eacute um retorno agraves fontes ao sentido original e acentua a centralidade da Palavra de Deus Jesus Cristo e as palavras apostoacutelicas inspiradas que fazem com que o conheccedilamos Eacute aqui que a relaccedilatildeo entre o mundo material e o mundo espiritual eacute estabelecida

Propomos fazer uma comparaccedilatildeo entre essas duas posiccedilotildees para apro-ximar a questatildeo ao nosso tema sobre Igreja e histoacuteria e isso em trecircs aacutereas

bull A Igreja e os sacramentosbull A Escritura e a tradiccedilatildeobull O Espiacuterito Santo e a vida cristatilde

Ao concluirmos diremos por que a posiccedilatildeo protestante expressa pela Reforma representa para noacutes o cristianismo autecircntico e como essa posiccedilatildeo atualmente estaacute ameaccedilada

1 A IGREJA E OS SACRAMENTOSNa Idade Meacutedia foi desenvolvida a ideia de que o papel da Igreja era

o de suplementar a ausecircncia de Cristo Por meio dela Cristo se comunica com o mundo Ela constitui uma extensatildeo histoacuterica sob forma diferente da encarnaccedilatildeo de Cristo A proacutepria Igreja torna-se um instrumento da revelaccedilatildeo e mesmo que natildeo tenha acesso ao texto sagrado o homem pode conhecer a Deus atraveacutes dela Essa opiniatildeo sobre o papel histoacuterico da Igreja Romana corrente na eacutepoca da Reforma e rejeitada pelos reformadores permaneceu intocada

PAUL WELLS IGREJAS E HISTOacuteRIA

94

11 A sacramentalidade da IgrejaAssim atualmente um teoacutelogo como Edward Schillebeeckx2 em seu

livro Cristo o Sacramento do Encontro com Deus pode chamar Cristo de ldquoo sacramento primordialrdquo e a Igreja de ldquoo sacramento do Cristo ressuscitadordquo Como tambeacutem nos textos do Vaticano II a Constituiccedilatildeo Lumen Gentium sobre a Igreja (sect7) mostra uma noccedilatildeo muito materialista do corpo de Cristo ldquoNesse Corpo a vida do Cristo eacute infundida nos crentes que satildeo unidos ao Cristo sofredor e glorificadordquo

O irmatildeo Daniel Bourgeois comenta ldquoNa perspectiva catoacutelica essa sacra-mentalidade natildeo se limita ao sistema de sinais que acompanham os atos funda-dores da alianccedila entre Deus e os homens o sistema de sinais que acompanha o povo de Deus natildeo eacute um sistema fechadordquo3 A Igreja e sua vida constituem ldquoum sistema de significaccedilatildeo vivo que se move rico de dinamismo e de uma capacidade inesgotaacutevel em perceber a verdade dos atos da alianccedilardquo Assim haacute uma reatualizaccedilatildeo constante na histoacuteria da Igreja e de seus membros e isso eacute fundamental O grande exemplo dessa operaccedilatildeo eacute a missa como representaccedilatildeo natildeo sangrenta do sacrifiacutecio da cruz No ex opere operato se efetua pelo proacuteprio ato o que nele eacute representado Assim por atos histoacutericos no mundo material o mundo espiritual se faz presente de maneira real e eficaz

A Igreja como sacramento da redenccedilatildeo eacute o meio pelo qual a uniatildeo entre Cristo e o homem se efetua Ela eacute tambeacutem o elo entre o eterno e o temporal em todos os atos que realiza ao longo da histoacuteria Neste sentido os integristas do Monsenhor Lefebvre4 natildeo estatildeo errados ao defender a missa em latim O rito age independentemente da compreensatildeo que dele se tenha conforme a intenccedilatildeo do ato

12 A histoacuteria da Igreja e o reino de DeusLumen Gentium afirma que a Igreja ldquoprovida de dons de seu fundador

recebe a missatildeo de anunciar o reino de Cristo e de Deus e de instauraacute-lo em todas as naccedilotildees formando o germe que daacute iniacutecio a esse reino sobre a terrardquo (sect5) Apesar do caraacuteter discreto dessa formulaccedilatildeo em relaccedilatildeo a outras afirma-ccedilotildees podemos notar sempre a ideia de que a Igreja que faz a ligaccedilatildeo entre este mundo e o mundo espiritual eacute o meio pelo qual o mundo futuro penetra no mundo material e estende progressivamente sua influecircncia Esta ideia que tem sua origem em Agostinho propotildee que o reino de Cristo sobre a terra jaacute

2 NR O teoacutelogo belga Edward Schillebeeckx nasceu em 1914 e faleceu em 20093 BOURGEOIS Daniel ldquoEnsaio de anaacutelise teoloacutegica do integrismo catoacutelicordquo La Revue Reformeacutee

n 174 (1992) p 414 NR Marcel Lefebvre (1905-1991) arcebispo francecircs e rigoroso defensor do movimento tradi-

cionalista catoacutelico destacou-se por sua resistecircncia a algumas decisotildees do Conciacutelio Vaticano II

95

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 91-101

estaacute presente e se manifesta na Igreja Antes da eacutepoca moderna a missatildeo do papa era organizar o reino de Deus sobre a terra e estender sua influecircncia so-bre toda a vida O agente dessa presenccedila era o clero Essa ideia secularizada resultou no marxismo no qual o partido reina sobre toda a vida atraveacutes de seus membros Essa atitude dominante explica em parte por que as naccedilotildees catoacutelicas ou ortodoxas foram os bastiotildees do marxismo-leninismo

A Igreja tem portanto a missatildeo histoacuterica de manifestar a obra redentora de Deus e de adaptar a realidade deste mundo ao outro mundo da mesma ma-neira como o materialismo dialeacutetico anunciou a futura nova humanidade Aqui encontramos a mesma estrutura responsaacutevel pela sacramentalidade da Igreja

13 A Igreja como testemunha da Palavra de DeusNo protestantismo temos uma configuraccedilatildeo totalmente diferente a qual

representa a relaccedilatildeo entre a palavra e seu sentido Haacute aqui uma concepccedilatildeo diferente da relaccedilatildeo entre o tempo e a eternidade Da mesma maneira que uma palavra eacute diferente da realidade que evoca e eacute autocircnoma em relaccedilatildeo a ela haacute para o protestantismo uma distinccedilatildeo radical entre o tempo e a eternidade Esta distinccedilatildeo natildeo eacute ultrapassada pela Igreja que continuaria a encarnaccedilatildeo mas unicamente por Cristo que desce do ceacuteu Cristo eacute a Palavra de Deus que traz a revelaccedilatildeo aos homens ldquoNestes uacuteltimos dias Deus nos falou pelo Filho pelo qual tambeacutem fez o universordquo (Hb 1) Essa revelaccedilatildeo que foi concluiacuteda nas palavras apostoacutelicas eacute a uacuteltima palavra de Deus aos homens

Natildeo mais estamos no periacuteodo da encarnaccedilatildeo e sofrimento de Cristo mas no da sua ressurreiccedilatildeo e reino celeste A Igreja natildeo daacute continuidade agrave encar-naccedilatildeo porque esta foi encerrada pela ressurreiccedilatildeo Considerar a Igreja como continuaccedilatildeo da encarnaccedilatildeo eacute natildeo respeitar o reloacutegio da histoacuteria da revelaccedilatildeo retardando-o a uma hora que jaacute passou Eacute por esta razatildeo tambeacutem que os pro-testantes com razatildeo rejeitaram a utilizaccedilatildeo do crucifixo

O protestantismo propotildee um retorno agraves origens pela fidelidade agrave Pala-vra de Deus A Igreja estaacute onde a Palavra de Deus eacute fielmente pregada Para Calvino a sucessatildeo apostoacutelica natildeo reside nas coisas e nos homens mas na doutrina Calvino recusou crer que a Igreja tenha poderes espirituais particu-lares transmitidos por seus ldquooficiaisrdquo A Igreja se submete agrave Escritura e recebe sua autoridade dela Ela eacute canonizada pela Escritura e natildeo o contraacuterio Assim a autoridade da Igreja tem sua origem na Palavra de Deus e por ela eacute limita-da Nenhuma nova doutrina eacute permitida e natildeo se admite nenhuma doutrina estranha agraves Escrituras A verdadeira Igreja eacute espiritual e celeste Ela inclui os eleitos os filhos de Deus por ele conhecidos e ela se manifesta e se congrega onde a Palavra eacute pregada Assim a Palavra que reuacutene os filhos de Deus daacute o verdadeiro sentido ao povo comprado pelo Cordeiro que foi imolado antes da fundaccedilatildeo do mundo

PAUL WELLS IGREJAS E HISTOacuteRIA

96

Eacute por isso que para o protestantismo os dois sacramentos satildeo ldquopalavras visiacuteveisrdquo que acompanham e explicam a palavra pregada A eficaacutecia do sacra-mento natildeo estaacute propriamente no ato mas na compreensatildeo que dele temos na uniatildeo com Cristo pela instrumentalidade do Espiacuterito Santo A palavra visiacutevel o siacutembolo remete a seu sentido fundamental a purificaccedilatildeo pela morte de Cris-to a comunhatildeo presente com o mesmo Cristo e a expectativa de seu retorno Portanto os sacramentos protestantes requerem inteligecircncia espiritual

Aleacutem disso para o protestantismo o reino de Deus se faz presente natildeo pela Igreja mas pela praacutetica da Palavra O reino tem um caraacuteter global mas que se distingue da influecircncia da Igreja sobre a sociedade e de seus ldquooficiaisrdquo sobre os leigos Cada cristatildeo eacute um sacerdote da nova alianccedila e sua missatildeo eacute servir a Deus em todos os aspectos da vida Ele obedece a Deus na famiacutelia e no mundo do comeacutercio tanto quanto na Igreja

A perspectiva tambeacutem eacute diferente Natildeo se trata do reino futuro que se manifestaraacute no mundo da eternidade no tempo O reino futuro eacute ldquoo novo ceacuteu e a nova terra onde habitaraacute a justiccedilardquo Esse reino eacute anunciado desde o momento em que a Palavra vivida pelo cristatildeo livra a antiga criaccedilatildeo da servidatildeo do pe-cado Este eacute o sentido da ceacutelebre palavra de Lutero ldquoSe eu soubesse que Cristo voltaria amanhatilde hoje eu plantaria uma aacutervorerdquo Plantar uma aacutervore natildeo tem nenhum reflexo sobre a vinda do reino futuro mas o anuncia na criaccedilatildeo atual

Para o protestante a vinda do reino natildeo tem nada a ver com o ldquosobrenatu-ralrdquo que invade e metamorfoseia a natureza mas com a justiccedila que suplanta o pecado Eacute a graccedila da justificaccedilatildeo anunciada na Palavra e para noacutes completada em Cristo que realiza essa libertaccedilatildeo

Nessa perspectiva o protestantismo tem interpretado a histoacuteria muito concretamente pelo esquema criaccedilatildeo queda e redenccedilatildeo Toda a vida religiosa social poliacutetica familiar e pessoal eacute criada por Deus submissa ao pecado mas resgatada pela Palavra de Deus A Igreja tem a funccedilatildeo de pocircr em evidecircncia esta situaccedilatildeo pela Palavra que anuncia

2 A ESCRITURA E A TRADICcedilAtildeOEacute bastante compreensiacutevel que o catolicismo romano com sua ecircnfase sobre

o papel central da Igreja como ponte na histoacuteria entre este mundo e o mundo futuro tenha concebido a ideia do desenvolvimento do dogma A continuida-de eacute assegurada pela autoridade da instituiccedilatildeo histoacuterica da Igreja A principal justificaccedilatildeo do desenvolvimento da tradiccedilatildeo ao lado da Escritura reside na convicccedilatildeo de que a Igreja eacute a continuaccedilatildeo da encarnaccedilatildeo sob a direccedilatildeo do Es-piacuterito Assim a Igreja regulamenta a feacute de seus membros pela Escritura mas tambeacutem pela tradiccedilatildeo que tambeacutem eacute a verdade A Igreja interpreta aumenta e completa a Biacuteblia por suas tradiccedilotildees

97

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 91-101

21 A autoridade da tradiccedilatildeoDessa maneira a Igreja desenvolveu ensinos que ultrapassam o que eacute

ensinado na Biacuteblia Antes de 1500 a tradiccedilatildeo que o padre Gabriel Moran chama ldquoconstitutivardquo em seu livro Escritura e Tradiccedilatildeo tornou-se autocircnoma por direito proacuteprio Essas tradiccedilotildees satildeo os ensinos recebidos pela Igreja e satildeo normativos para a feacute Entre eles podemos destacar o purgatoacuterio a transubs-tanciaccedilatildeo as doutrinas marianas o primado papal a oraccedilatildeo aos santos etc

Quanto agrave origem dessas tradiccedilotildees reconhecidas pela Igreja como pos-suindo autoridade diferentes proposiccedilotildees foram formuladas o papa porque ele representa Cristo para a Igreja os conciacutelios da Igreja ou a tradiccedilatildeo oral veiculada apoacutes a eacutepoca apostoacutelica Quanto agraves duas questotildees fundamentais ndash a da relaccedilatildeo entre a Biacuteblia e a tradiccedilatildeo e a de identificar qual das duas tem a primazia ndash a posiccedilatildeo de Roma natildeo variou muito atraveacutes dos seacuteculos O padre Yves Congar afirmou que a posiccedilatildeo romana reconhece a insuficiecircncia das Escrituras O padre Georges Tavard em seu livro Santa Escritura ou Santa Igreja diz o seguinte ldquoA Escritura e a Igreja se completam mutuamente A Escritura conserva o primado ontoloacutegico e a Igreja o primado histoacuterico porque eacute somente ao recebecirc-la que os homens tomam consciecircncia da Palavrardquo

Assim historicamente a Escritura e a tradiccedilatildeo vecircm da Igreja A Igreja transmite a Escritura de uma geraccedilatildeo a outra com um conhecimento mais profundo sobre o seu sentido A tradiccedilatildeo eacute essencialmente a interpretaccedilatildeo da Escritura agrave qual se acrescentam os ensinos que ultrapassam as afirmaccedilotildees claras do texto sagrado O Conciacutelio de Trento respondeu aos reformadores ao afirmar a autoridade da Escritura e da tradiccedilatildeo Congar comenta ldquoAo afirmar o valor normativo das tradiccedilotildees apostoacutelicas natildeo contidas nas Escrituras o Conciacutelio fez da tradiccedilatildeo um princiacutepio formal paralelo agraves Escrituras senatildeo autocircnomo em relaccedilatildeo a elasrdquo

Natildeo entraremos aqui na discussatildeo recente sobre a interpretaccedilatildeo dos textos de Trento Basta dizer que de fato muitos protestantes adotaram em princiacutepio a noccedilatildeo da insuficiecircncia da Escritura como mostram as discussotildees da Confe-recircncia de Feacute e Constituiccedilatildeo em Montreal sobre ldquoA tradiccedilatildeo e as tradiccedilotildeesrdquo Um consenso atual entre catoacutelicos modernistas e protestantes liberais afirmaria a seguinte posiccedilatildeo ldquoA Escritura eacute o primeiro elo da tradiccedilatildeo cristatilde Como toda tradiccedilatildeo humana ela eacute faliacutevel e insuficiente A Escritura e as tradiccedilotildees satildeo ambas suscetiacuteveis de errarrdquo Podemos chamar esta posiccedilatildeo de traditio sola

22 A posiccedilatildeo dos reformadoresOs reformadores natildeo comeccedilaram seu conflito com a Igreja Romana por

causa da tradiccedilatildeo Foi quando Eck disse a Lutero que sua doutrina da justi-ficaccedilatildeo estava de acordo com o Novo Testamento mas natildeo de acordo com a tradiccedilatildeo da Igreja que o problema da autoridade da tradiccedilatildeo surgiu Em 1518

PAUL WELLS IGREJAS E HISTOacuteRIA

98

em Leipzig Eck obrigou Lutero a admitir que nem os Pais nem o direito ca-nocircnico mas somente as Escrituras tecircm autoridade uacuteltima sobre a Igreja

Acusaram os reformadores de natildeo terem antecedentes histoacutericos de romper com tudo o que o Espiacuterito havia feito ao conduzir o povo de Deus Contra o argumento segundo o qual a Igreja Romana tinha o apoio dos Pais dos cinco primeiros seacuteculos Calvino respondeu que sua autoridade natildeo provinha de sua antiguidade nem de seu reconhecimento pela Igreja mas que derivava das Escrituras Calvino honrou Agostinho ao citaacute-lo perto de trecircs mil vezes na sua Instituiccedilatildeo Cristatilde mas igualmente o criticou por suas ideias quanto ao celibato ao purgatoacuterio agrave autoridade eclesiaacutestica e sua interpretaccedilatildeo alegoacuterica da Escritura Para Calvino os Pais da Igreja podem ser reconhecidos enquanto permanecerem fieacuteis agrave Escritura e sua autoridade estaacute sempre subordinada a esta Calvino se sentiu completamente agrave vontade ao recusar as tradiccedilotildees roma-nas natildeo biacuteblicas ndash suas cerimocircnias doutrinas sacramentos e ministeacuterios ndash por duas razotildees Primeiramente os Pais da Igreja constantemente afirmaram que a Igreja deve se submeter somente agrave Palavra escrita mas a Igreja romana foi sempre atraiacuteda para o lado contraacuterio Em segundo lugar os Pais cometeram erros e nessa aacuterea a Igreja os seguiu contra o ensinamento Biacuteblico Como Lutero Calvino tomou como princiacutepio de autoridade para a vida da Igreja tatildeo somente a Escritura

23 O princiacutepio de Sola Scriptura contra ldquoEscritura e tradiccedilatildeordquo A ruptura entre os protestantes e Roma diz respeito a esta questatildeo fun-

damental quem tem a autoridade final em mateacuteria de feacute e praacutetica A posiccedilatildeo de Calvino sobre isso se resume nos seguintes pontos

bull Quando lemos a Escritura ouvimos a proacutepria voz de Deus Nada de origem humana se mistura a isso Sem a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo Isaiacuteas ou Jeremias teriam dito palavras impuras e tolas Mas quando o Espiacuterito comeccedilou a usaacute-los como instrumentos seus laacutebios se tornaram puros e santos

bull Uma vez que Deus fala na Escritura e em nenhum outro lugar natildeo haacute outra fonte de onde possa vir sua Palavra

bull Em razatildeo de sua origem uacutenica as Escrituras tecircm a autoridade e a suficiecircncia da Palavra de Deus Elas contecircm tudo o que Deus quer falar aos homens

bull Elas tecircm a autoridade suprema sobre a vida do cristatildeobull Ao estudarmos a natureza ou a histoacuteria podemos aumentar nossos

conhecimentos sobre Deus unicamente porque primeiramente somos iluminados pela Palavra biacuteblica

99

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 91-101

Foi assim que a doutrina protestante claacutessica formulou a finalidade das Escrituras ldquoDepois de Deus mesmo ter falado diz Calvino ele natildeo deixou mais nada a ser dito por outrosrdquo A Palavra eacute o viacutenculo entre o tempo e a eternidade porque por ela noacutes ouvimos Deus falar em nossa linguagem humana Aqui vemos que a concepccedilatildeo protestante implica num viacutenculo atraveacutes da Palavra que veicula o sentido da realidade Essa perspectiva eacute criacutetica em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo segundo a qual os atos e as tradiccedilotildees da Igreja representam a intenccedilatildeo divina na salvaccedilatildeo

Por esta razatildeo tambeacutem Calvino rejeita o sistema catoacutelico no qual as aparecircncias exteriores satildeo uma usurpaccedilatildeo da autoridade de Cristo resultando numa Igreja falsa Consequentemente longe de ser um pecado separar-se de Roma eacute uma ocasiatildeo para reencontrar pela Palavra a verdadeira Igreja em suas origens

3 O ESPIacuteRITO SANTO E A VIDA CRISTAtildePara o catolicismo romano a histoacuteria representa uma sucessatildeo de atos que

realizam a intenccedilatildeo divina Este mundo estaacute em relaccedilatildeo orgacircnica com o mundo futuro Deus usa as realidades externas como instrumentos eficazes Eacute por essa razatildeo que o esquema natureza e graccedila eacute capital no pensamento catoacutelico em particular a partir da Idade Meacutedia A graccedila eacute o ato divino que vem completar a natureza e preparaacute-la para a sua transfiguraccedilatildeo final

31 Encarnaccedilatildeo e vida cristatilde no catolicismo romanoNesse sentido a encarnaccedilatildeo de Jesus Cristo apresenta uma forma nova

de humanidade que realiza a intenccedilatildeo da criaccedilatildeo A vinda de Jesus Cristo torna a humanidade completa A Igreja como continuaccedilatildeo da encarnaccedilatildeo eacute uma nova humanidade sob a direccedilatildeo especial do Espiacuterito Santo Isto cons-titui a principal justificaccedilatildeo para o desenvolvimento do dogma e da praacutetica da Igreja no decorrer da histoacuteria

As consequecircncias satildeo importantes para a vida cristatilde Na Igreja Romana a pessoa realiza progressivamente sua nova humanidade num processo em que o homem se prepara para o outro mundo ao receber a graccedila sobrenatural atraveacutes dos sacramentos Fora da Igreja natildeo haacute salvaccedilatildeo e a graccedila eacute recebida pela natildeo resistecircncia do indiviacuteduo Este processo de aperfeiccediloamento continua mesmo aleacutem-tuacutemulo no purgatoacuterio

32 O Espiacuterito Santo e a vida cristatilde no protestantismoNo protestantismo com seu modelo palavrasentido a encarnaccedilatildeo eacute a

revelaccedilatildeo da Palavra de Deus Longe de completar a humanidade esta reve-laccedilatildeo de Deus em carne eacute necessaacuteria porque a natureza estaacute caiacuteda e o homem eacute incapaz de agradar a Deus Deus se revela em Cristo que em particular se

PAUL WELLS IGREJAS E HISTOacuteRIA

100

revela na cruz como Salvador abolindo o pecado por seu sacrifiacutecio Por essa razatildeo o protestantismo destaca o ldquouma vez por todasrdquo da epiacutestola aos Hebreus

Ao rejeitar a hierarquia romana Lutero e Calvino demoliram a noccedilatildeo de uma Igreja sacramental Como a graccedila eacute recebida O Espiacuterito Santo fala ao crente de maneira direta pela Palavra de Deus O Evangelho diz que somos pecadores mas justificados pela justiccedila da cruz ndash ldquoCristo em nosso lugarrdquo ndash quando nele cremos Assim o Espiacuterito de Deus efetua o novo nascimento do indiviacuteduo que se torna unido a Cristo pela feacute e eacute feito nova criaccedilatildeo Eacute pela Palavra e pelo Espiacuterito que ele eacute convertido

O padre Tavard afirma que o calvinismo eacute uma pneumatologia Ele destacou um ponto importante Para Calvino a Igreja deve abandonar sua proacutepria sabedoria e se colocar sob a direccedilatildeo do Espiacuterito pelas Escrituras Os dois andam sempre juntos O Espiacuterito como Autor das Escrituras eacute seu uacutenico inteacuterprete e natildeo o magisteacuterio da Igreja Ele ilumina o entendimento do cristatildeo que recebe a oferta de salvaccedilatildeo e o faz reconhecer a verdade da Palavra de Deus O Espiacuterito natildeo se dissocia jamais da Palavra biacuteblica e natildeo a contradiz porque eacute a sua Palavra

O Espiacuterito age sobre a Igreja Pela Palavra ele vivifica os crentes e assim acrescenta ao corpo de Cristo aqueles que creem Eacute neste sentido afirma Cal-vino que devemos compreender a expressatildeo ldquofora da Igreja natildeo haacute salvaccedilatildeordquo Por sua Palavra o Espiacuterito reina tambeacutem sobre a Igreja e a conduz Para que uma Igreja seja autecircntica eacute preciso que ela viva da vida do Espiacuterito que vem somente pela Palavra Assim a Palavra e a Igreja satildeo unidas pelo poder do Espiacuterito A Igreja resulta entatildeo da obra da Palavra e do Espiacuterito Ela vem deles e eacute subalterna a eles A Palavra e o Espiacuterito satildeo divinos a Igreja visiacutevel eacute humana

CONCLUSAtildeOPor que sou protestante Porque creio que o pensamento protestante eacute

o que estaacute mais proacuteximo da revelaccedilatildeo biacuteblica em particular em seu ponto central Jesus Cristo eacute a Palavra-revelaccedilatildeo de Deus para a nossa salvaccedilatildeo sob uma forma limitada e rebaixada a carne humana A encarnaccedilatildeo representa o rebaixamento de Deus que se revela como servo ateacute agrave morte de cruz Deus o Filho sofreu a consequecircncia do nosso pecado Limitaccedilatildeo obediecircncia e serviccedilo satildeo as palavras de ordem na Igreja submissa agrave Palavra de Deus A Igreja eacute posta natildeo sob o signo da dominaccedilatildeo divina e da gloacuteria mas sob a cruz Para compreender a relaccedilatildeo do nosso mundo com o outro Deus nos chama a considerar o sacrifiacutecio o abandono mesmo de sua Palavra encarnada Este eacute o centro da histoacuteria e seu sentido Noacutes estamos nos extremos de uma sucessatildeo de atos divinos que realizam progressivamente o propoacutesito de Deus

Entretanto um perigo existe Hoje a crise provocada pela criacutetica racio-nalista agrave Escritura minou a feacute na Biacuteblia como Palavra de Deus A Escritura eacute

101

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 91-101

considerada como insuficiente porque eacute reconhecida apenas como um teste-munho humano sobre uma revelaccedilatildeo que a ultrapassa Quando isso acontece a Biacuteblia eacute submetida ao julgamento de uma autoridade superior a razatildeo os sentimentos as tradiccedilotildees histoacutericas ou o imediatismo de um encontro com Deus Entatildeo a Biacuteblia natildeo eacute mais a autoridade final para a Igreja ou para o cristatildeo ela eacute somente um dos fatos constitutivos da vida cristatilde

A questatildeo fundamental destacada pelos reformadores permanece sempre ldquoEacute biacuteblico Sim ou natildeordquo Tudo o que exigir uma resposta negativa deve ser descartado de nossa vida Dizer e repetir essa eacute a vocaccedilatildeo histoacuterica da Igreja5

ABSTRACTThis article deals with the concept of tradition the manner in which a

religious group presents in the course of history the relationship between the spiritual and the historical material world Tradition positions a group in regard to its origins transmits beliefs and as far as another world is concerned evokes heaven and brings hope In Christianity there are two ways of considering and representing the relationship between the spiritual and the material worlds Roman catholicism represents such relationship as comparable to one between an act and the intention behind it Protestantism considers this relationship as comparable to one between a word and its meaning In order to approach the theme Church and history the author proposes to make a comparison of these two positions in three areas Church and sacraments Scripture and tradition and the Holy Spirit and Christian life In conclusion he explains why the Protestant position expressed by the Reformation represents authentic Christianity and how such position is under threat in the present time

KEYWORDSCatholicism Protestantism History Church Tradition Scripture

5 Aleacutem dos autores catoacutelicos romanos a que fiz referecircncia aproveitei a anaacutelise de dois protestantes hoje esquecidos HEIM Karl Das Wesen des Evangelischen Christentums (1929) tiacutetulo em inglecircs Spirit and Truth (Lutterworth 1935) e QUICK Oliver C Catholic and Protestant Elements in Christianity (Longmans Green 1924)

103

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION THE PRIMACY OF BIBLICAL REVELATION

Isaias DrsquoOleo Ochoa

ABSTRACTIn his discussion of evolution Bavinck offers a modified theory of

development rooted not under a mechanistic and naturalistic worldview as Darwin does but under a ldquotheistic-friendlyrdquo framework This article argues that Bavinckrsquos discussion of evolution as a whole endorses a modified AristotelianThomistic framework in order to understand the theory of development and thus overcomes the challenges raised by Darwinrsquos naturalistic worldview to biblical revelation

KEYWORDSDarwinism Evolution Evolutionary worldview Theology-science dia-

logue Theory of development

INTRODUCTIONCurrent scholarship on Herman Bavinckrsquos view of the theory of evolution

has tended to be unified in affirming that despite his criticism of it Bavinck seems to provide some room for evolution On one hand from his discussion in Reformed Dogmatics (originally published in Dutch between 1895-1901) and other writings1 it may be concluded that Bavinck fights fiercely against

The author is a minister of Word and Sacrament in the Reformed Church of America He is currently pursuing a PhD degree at Calvin Theological Seminary with concentration in Philosophical Theology He received his Master of Theology degree at Calvin Seminary (2017) and his Master of Divinity at Western Theological Seminary (2015)

1 Cf Herman Bavinck Reformed Dogmatics II ed John Bolt trans John Vriend (Grand Rapids MI Baker Academic) 407-529 Bavinck ldquoCreation or Developmentrdquo trans Hendrik De Vries in The Methodist Review (1901) 849ndash74 Bavinck ldquoEvolutionrdquo in Essays on Religion Science and Society ed John Bolt (Grand Rapids MI Baker Academic 2008) 105-118

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

104

Darwinrsquos evolutionary project and seems to reject it completely One the other hand in those same discussions where he treats the topic one also observes that Bavinck seems to be willing to concede some kind of ldquoevolutionrdquo as well For those who believe that Bavinck retains the notion of biological develop-ment of natural creatures in the Darwinian sense in order to integrate it into his understanding of biblical revelation one issue emerges while Bavinck appropriates the concept of ldquodevelopmentrdquo from the theory of evolution he seems to use the term in an opposite sense from that of Darwinism Taking this into account it is the thesis of this paper that in his discussion of evolution Bavinck progressively endorses a modified AristotelianThomistic notion of development in order to overcome the challenges raised by Darwinrsquos method-ology and naturalistic worldview to biblical revelation

When Bavinck debated evolution he objected to a series of features of Darwinrsquos theory of development These objections include the theoryrsquos features of naturalism its mechanistic understanding of the world its atheistic world-view and its teleological characteristic of natural organisms Although there exists scholarship that discusses Bavinckrsquos approach to evolution however it largely overlooks how Bavinck understands the notion of development in his dialogue with the theory of evolution In this respect and in order to narrow this research I will focus exclusively on Rob P W Visser and Abraham C Flipsersquos works which develop the theme of evolution in greater detail2

Rob P W Visserrsquos study ldquoDutch Calvinists and Darwinism 1900-1960rdquo in Nature and Scripture in the Abrahamic Religions offers an historical analysis of the reception of Darwinrsquos theory of evolution among the Cal-vinists in the Netherlands Visserrsquos work emphasizes the role that Abraham Kuyper and Herman Bavinck played in the theological renewal at the be-ginning of the twentieth century in the Dutch community (VISSER 1998 p 312) Visser suggests that although Darwinrsquos theory of evolution was rapidly integrated into the Dutch university system by the last two decades of the nineteenth century the Dutch Calvinist response tended to be slow and negative (VISSER 1998 p 293) Both Kuyper and Bavinck emphasized the necessity of differentiating Darwinrsquos theory of evolution as a scientific theory from its metaphysics Visser claims (VISSER 1998 p 294) In his view unlike Kuyper Bavinck was more positive about the theory of evolution for two main reasons First he believed that evolution relays part of the truth

2 See Rob Visser ldquoDutch Calvinists and Darwinism 1900-1960rdquo Nature and Scripture in the Abrahamic Religions (Leiden Brill 2008) 293-316 Abraham C Flipse ldquoThe Origins of Creationism in the Netherlands The Evolution Debate among Twentieth-Century Dutch Neo Calvinistsrdquo Church History 81 n 1 (March 2012) 104ndash47 For background information read George Harinck ldquoTwin Sisters with a Changing Character How neo-Calvinists Dealt with the Modern Discrepancy between Bible and Natural Sciencesrdquo In Nature and Scripture in the Abrahamic Religions 1700-Present Leiden Brill 2008 317-370

105

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

about the natural world Second Bavinck believed that current species were not identical with those that God originally created In this respect Visser writes

Bavinck did not subscribe to Darwinrsquos explanation of evolutionary development Natural selection ruled out divine intervention and was for this reason unac-ceptable He defended the idea that evolution was a teleological and organic rather than a mechanical process which opened its existence to an intelligent cause lsquoDesign law goal and directionrsquo and not selection where the keywords to understand and explain organic evolution Bavinck like Kuyper regarded God as the ultimate cause of evolution Bavinck presented his combination of creation and evolution as a Christian alternative for Darwinrsquos theory (VISSER 1998 p 296)

Visser reads Bavinck as one who seems willing to accept the development of natural species but finds unacceptable Darwinrsquos proposal of natural selection because of its rejection of a teleological character3 It is such a reading that leads Visser to affirm that both Kuyper and Bavinck succeeded in integrating evolution and biblical revelation

Kuyper and Bavinck removed the controversial elements [of Darwinrsquos theory of evolution] notably natural selection and the descent of man Evolutionary change was the only aspect of the theory that they could acceptThey [introduced] organic mutability into divine providence which enabled them to incorporate their modified view of biological evolution in their theology (VISSER 1998 p 297)4

Furthermore it is noteworthy to mention the context in which such integration happens In this respect Visser writes

The response of Kuyper and Bavinck to Darwin occurred in the context of attempting to develop a new understanding of Scripture as revelation resulting from both divine and human action They referred to this new understanding as organic insertion It contrasted with the mechanical inspiration that became dominant in the seventeenth century In this Calvinist orthodoxy God was believed to have verbally dictated the text with no contribution by the human writer As a result God became the warrant for a text that was considered ob-jective and could be used in rational argument The Bible became a source of objective factual information about nature and history (VISSER 1998 p 298)5

3 Cf Harry R Boer ldquoEvolution and Herman Bavinckrdquo Reformed Journal 37 n 12 (December 1987) 3-4 p 3

4 See also Eduardo J Echeverria ldquoReview Essay The Philosophical Foundations of Bavinck and Dooyeweerdrdquo Journal of Markets amp Morality 14 n 2 (2011) 463-483 pp 465ndash67

5 For further discussion see also James Eglinton ldquoBavinckrsquos Organic Motif Questions Seeking Answersrdquo Calvin Theological Journal 45 (1) 20120 51-71

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

106

There are many layers to debate within Visserrsquos previous citation One issue is with the suggestion that Bavinckrsquos interest in exploring the theory of evolution is connected to his desire to redefine his understanding of Scripture as revelation But Visser joins together what Bavinck kept distinct In that regard Visser does not seem to describe Bavinck correctly

Despite his criticism of Darwinrsquos theory of evolution Bavinck seems to be attracted to this topic and engages seriously with it In 2011 Willem J de Wit published a collection of essays titled On the Way to the Living God A Cathartic Reading of Herman Bavinck and An Invitation to Overcome the Plausibility Crisis of Christianity6 When writing briefly about Bavinckrsquos worldview and evolution he asks ldquoWhy will [Bavinck] later feel so attracted by the theory of evolution that he does not reject it once and for all but comes back to it again and againrdquo (DE WIT 2011 p 15) De Witrsquos way of posing this question is itself debatable because it suggests a personal and subjective crisis within Bavinck However I think de Witrsquos question is important to approach

De Wit discusses the prominence of worldviews in Bavinckrsquos theological work He states

From Creation or Development (1901) to The Philosophy of Revelation (19081909) the antithesis between the two worldviews is not just a theme but probably the most important issue for Bavinck He identifies evolution as the key concept of the modern worldview and revelation as the key concept of the Christian worldview In his publications on morals science education family social relations etcetera he seeks to make clear how different views in these areas are related to a difference in worldview and reflects on these areas from the perspective of his Christian worldview (DE WIT 2011 pp 55-56)

The reason behind Bavinckrsquos interest in evolution has less to do with his obsession than with the reality of the modern spirit which trumpeted Darwinism In any case as de Wit suggests the topic of evolution is not of secondary value in Bavinckrsquos theological discussion Rather part of Bavinckrsquos interest is in studying carefully the Christian against the naturalistic worldview Without understanding properly such a significant aspect Bavinckrsquos writings can be easily misunderstood especially those containing dated information

Another historical study is Abraham Flipsersquos ldquoThe Origins of Creationism in the Netherlands The Evolution Debate among Twentieth-Century Dutch Neo-Calvinistsrdquo It was published in 2012 and complements Visserrsquos work Flipse explores the role of Calvinists and their interest ldquoto formulatehellip[a] coherent view of science society and culturerdquo (FLIPSE 2012 p 107) This

6 Willem J de Wit On the Way to the Living God A Cathartic Reading of Herman Bavinck and An Invitation to Overcome the Plausibility Crisis of Christianity (Amsterdam VU University Press 2011) 16-94

107

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

exploration sets up the framework for this paperrsquos discussion Flipse offers his readers another of the main reasons why Bavinck rejected the theory of evolution besides discussing Bavinckrsquos position on the possibility to rescue the theory itself of some crucial elements Flipse writes

The ldquomechanistic worldviewrdquo that according to Bavinck underlies the Dar-winistic view of evolution a priori excluded supernatural interventions and prescribed that everything lsquoshould be reduced to mechanical motionrsquo Therefore Darwinists claim that mankind has descended from animals and that life has emerged spontaneously from inorganic matter How could it have happened otherwise If the mechanistic or ldquomodernrdquo worldview were to be abandoned Bavinck believed a different worldview could produce a different theory This theory could contain elements of Darwinism and would still be in harmony with belief in creation (FLIPSE 2012 p 112)

Like Visser Flipse reads Bavinck as not totally opposed to the theory of evolu-tion This would allow in Flipsersquos understanding of Bavinck that some ele-ments of the theory of evolution could be reinterpreted into a new framework that may be consistent with biblical revelation This line of reasoning was based in part because of the emphasis of Bavinck and other Dutch neo-Calvinists on the infallible character of the Scriptures (FLIPSE 2012 p 113) That is human knowledge and Scripture ought to be unified Of interest to this paper is Flipsersquos accurate conclusion in his first section that one of the greatest contributions of Bavinck and Kuyper to the evolution debate was not merely a matter of responding to specific questions Rather one of the greatest con-tributions was their approach to science based on the analysis of worldviews and presuppositions (FLIPSE 2012 p 116)

To address this issue Part I of this paper recounts how Bavinck understood and criticized Darwinism in the second volume of Reformed Dogmatics focus-ing primarily on his discussion of human origins in sect279-83 Here Bavinck shows a sympathetic reading of Aristotle and his particular use of the term lsquoevolutionrsquo In this section it is demonstrated that a) Bavinckrsquos understand-ing of lsquoevolutionrsquo or lsquodevelopmentrsquo differs significantly from the interpretation of Darwin and modern evolutionary theory and b) Bavinck is open to the possibility of accepting some features of Darwinism to be compatible with Scripture but only in a very limited sense Part II draws upon Bavinckrsquos two essays ldquoCreation or Developmentrdquo and ldquoEvolutionrdquo This second part ana-lyzes how Bavinck responded to Darwinism while also holding a high view of biblical revelation By analyzing the first essay listed above I demonstrate that Bavinck reframes his discussion on evolution as a worldview issue By analyzing the second essay I demonstrate that Bavinck endorses a notion of evolution in a modified Aristotelian sense

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

108

1 DARWINISM IN BAVINCKrsquoS REFORMED DOGMATICSIn his Reformed Dogmatics Bavinck introduces the topic of creation

and lsquoevolutionrsquo in relation to Darwinism Although he seems to remain open to the possibility of any eventual appropriation of aspects that might not be in contradiction with biblical revelation such openness must be understood in a very limited sense In order to establish a distinction between the former theory of evolution which had a Christian-Aristotelian framework from the modern interpretation of evolution which clings to a materialistic and naturalistic frame-work Bavinck tries to detach the term lsquodevelopmentrsquo or lsquoevolutionrsquo from its association with Darwinism and the eighteen century non-teleological theories To achieve his purpose Bavinck proceeds to sympathetically read Aristotle and his understanding of lsquoevolutionrsquo and lsquodevelopmentrsquo and from such a position becomes critical of Darwinrsquos theory of evolution

11 Evolution is not a modern construct Bavinck argues that the notion of evolution was developed by the Greek

philosophers Among those he cites Aristotle is a significant reference7 For Bavinck Aristotle rightly ldquoattributed an organic and teleological characterrdquo to the notion of development the transition from potentiality into actuality (BAVINCK 2004 p 513)8 With such understanding Christianity and the notion of lsquoevolutionrsquo would not contradict each other In this respect Bavinck writes ldquoFrom the Christian position there is not the least objection to the notion of evolution or development as conceived by Aristotle on the contrary it is creation alone that makes such evolution possiblerdquo (BAVINCK 2004 p 513) One observes that Bavinck here offers a sympathetic reading of Aristotlersquos view on lsquoevolutionrsquo and seems to agree with him at least in general terms

More useful for this paperrsquos argument is Bavinckrsquos assertion that during the eighteenth century the notion of evolution departed from this Aristotelian notion of development into other philosophical positions ldquoBut in the eigh-teenth century evolution was torn from its basis in theism and creation and made serviceable to a pantheistic or materialistic systemrdquo (BAVINCK 2004 p 513) Bavinck correctly charges Rousseau Kant Goethe Hegel and others of promoting such departure However one difference Bavinck claims existed between the position of these philosophers listed earlier and the modern approach to evolution the notion of lsquoevolutionrsquo still held its organic and teleological

7 Among those Greek philosophers who discussed the topic of lsquodevelopment or evolutionrsquo Bavinck cites the natural philosophers (eg Anaximenes Heraclitus) and the Atomists Bavinck clari-fies that while Heraclitus presented his theory with a pantheistic view the Atomists used a materialistic framework instead

8 Herman Bavinck Reformed Dogmatics II ed John Bolt trans John Vriend Grand Rapids Mich Baker Academic 2004 407-529 p 513

109

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

character Bavinck argues that it was through French naturalists J B Pierre de Lamarck and E G Saint-Hilaire along with English biologist and philosopher Herbert Spencer among other scholars that this ldquo[Aristotelian] evolutionary theory was so refashioned that it led to the descent of humanity from animal ancestryrdquo (BAVINCK 2004 p 513)

Although in the previous sentence Bavinck does not explicitly include the term lsquoAristotelianrsquo he seems to refer to it Bavinck first rightly claims that the departure of the lsquotheistic-creationistrsquo evolutionary theory had started before Darwin and secondly that Darwinrsquos observations about humanity and animals were ldquoserviceable to a hypothesis that was already dominantrdquo (BAVINCK 2004 p 513) In sum the notion of lsquoevolutionrsquo for Bavinck must not be understood exclusively as a product of Darwinism or modern theories

Interlude how did Bavinck understand DarwinismWhen Bavinck discusses Darwinrsquos theory of evolution or Darwinism he

understands it as

the theory that the various species into which organic entities used to be divided possess no constant properties but are mutable that the higher organic beings have evolved from the lower and that man in particular has gradually evolved in the course of centuries from an extinct genus of ape that the organic in turn emerged from the inorganic and that evolution is therefore the way in which under the sway of purely mechanical and chemical laws the present world has come into being (BAVINCK 2004 p 514)

This concise definition allows us to better comprehend how Bavinck understood Darwinism Careful attention must be paid into the series of con-siderations Bavinck offers of Darwinrsquos theory of evolution naturersquos struggle for life natural and sexual selection certain properties passing to future gen-erations and perfection of the organism by and through mutations Bavinck argues that all these considerations constitute mere ldquoassumptions and interpreta-tionsrdquo (BAVINCK 2004 p 514) For him scholars particularly theologians philosophers and scientists rightly recognized Darwinrsquos theory as a flawed and even a contradictory system (BAVINCK 2004 p 514-15) Therersquos no doubt that Bavinck shares such assessments and agrees with them His posi-tion however is reflected more clearly when he offers his major criticism to the modern theory of evolution

One notable aspect that must be clarified is Bavinckrsquos distinction between Darwinism in the broader sense versus its restricted sense While the latter refers to the ldquoexplanation that Darwin with his theory of natural selection offered for the origin of speciesrdquo the former refers to ldquothe opinion that the higher or-ganism evolved from the lower organisms and that the human species therefore gradually evolved from animal ancestryrdquo (BAVINCK 2004 p 516) Bavinck

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

110

believes that the restricted sense of Darwinism was generally discarded and the broader sense still enjoyed a good reputation during his era as it had earlier (BAVINCK 2004 p 516) Even as Bavinck pays little attention to the restricted sense of Darwinrsquos theory in relation to the broader one it does not mean he accepts it or finds it compatible with biblical revelation On the contrary Bavinck seems to reject the theory of natural selection without further consideration

12 Darwinism is incompatible with science and revelationBavinck offers four major critiques to the modern theory of evolution The

first one is that the theory of descent has not clearly demonstrated the origin of life Bavinck argues that evolution makes matter movement and life eternal By doing so the modern evolutionary theory adds a metaphysical dimension to the notion of evolution (BAVINCK 2004 p 517)9 This situation may be problematic for an eventual integration with biblical revelation especially if the new added metaphysical dimension is in tension with what Scripture says regarding human protology

Second Bavinck argues that Darwinism has not successfully explained the development of organic life in contrast to the Genesis narrative which ndash by claiming that animals and plants have come forth from the earth by divine order since the beginning of creation ndash gives sense to evolution (BAVINCK 2004 p 517) By using the notion of diversity and dissimilarity Bavinck claims that Darwinism is unable to explain the development of organic life In Bavinckrsquos view this proves the failure of Darwinism Thus he writes ldquo[N]atural and sexual selection are insufficient to make possible such changes in the species and have accordingly already been significantly limited and modified by Dar-win himselfrdquo (BAVINCK 2004 p 518) In addition empirical observation or science Bavinck claims has not shown a gradual transition of species from one to another On the contrary they have demonstrated that ldquoall kinds of spe-cies existed side by side from the beginningrdquo (BAVINCK 2004 p 518)10 In a few words what Bavinck suggests here is that Darwinism if true science must necessarily bases its theories and conclusions only on demonstrable facts

In this respect Bavinck believes that ldquo[m]aterialism and Darwinism are both historically and logically the result of philosophy not of experimental science Darwin himself in any case states that many of the views he presented were highly speculativerdquo (BAVINCK 2004 p 518-19)11 With this assertion

9 See also footnote 19 on p 51710 Besides this Bavinck gives two other reasons in order to support his point the lack of abundant

transitional forms of species and the belief that acquired properties are not passed on through heredity Regarding the latter point nevertheless Bavinck acknowledges that scholarship is enormously divided

11 In this respect Bavinck adds ldquoAccording to Haeckel Darwin did not discover any new facts what he did was combine and utilize the facts in a unique way The profound kinship between humans and ani-

111

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

Bavinck claims that Darwin was basically offering a philosophical response to the problem of evolution By this he suggests that Darwinrsquos account of evolu-tion was not based on scientific facts but on mere philosophical speculation

The third aspect in which Bavinck criticizes Darwinism is regarding the serious issues this system encounters when it tries to explain human origin To support his criticism Bavinck argues that there does not truly exist any positive proof that demonstrates humans have indeed descended from animal ancestry Bavinck offers two arguments the actual difference between humans and animals has always existed as well as the assumption of some transitional species These arguments are closely related to Bavinckrsquos belief that Darwinism is highly speculative

The fourth criticism Bavinck makes is the failure of Darwinism to explain humanity from a mentalpsychic dimension One of the main problems Bavinck finds in that sense is that Darwin tries ldquoto derive all the mental phenomena [eg consciousness] to be found in humansrdquo from the analogy of animal phenomena (BAVINCK 2004 p 519) Unlike biblical revelation Bavinck believes natural science has limitations in addressing mental phenomena and answering ultimate questions

It becomes clear that with this general criticism of Darwinrsquos approach to science Bavinck proceeds to reject Darwinism The problem further com-plicates with the close connection of Darwinism and materialism Bavinck argues that Darwinism significantly relies on a materialistic framework Even worse it ldquopaves the way for the subversion of religion and morality and the destruction of our humannessrdquo (BAVINCK 2004 p 520) Besides its tension with empirical science Bavinck argues that the theory of descent is also in tension with biblical revelation by ldquoviolat[ing] the image of Godrdquo in humanity and ldquodegrad[ing] the human into an image of the orangutan and chimpanzeerdquo (BAVINCK 2004 p 520) From this one concludes that in Bavinckrsquos view the doctrine of the image of God and evolutionary thinking are simply incompatible

13 Biblical revelation has priority over scienceBavinck defends one single kind of science where biblical revelation has

priority over worldviews and natural science However one must be cautious in that regard Bavinckrsquos theology is anti-dualistic and strongly dichotomizing revelation against science would be an error What Bavinck seems to defend is that scientific data must be interpreted in light of biblical revelation and not vice versa In this respect Bavinck defends the position that Scripture is

mals comes through in the concept of lsquorational animalrsquo But in earlier times this fact was not yet combined with the monistic philosophy which says that from a pure potency which is nothing ndash like such things as atoms chaos or cells ndash everything can nevertheless evolverdquo BAVINCK 2004 pp 518-19 Noteworthy to observe is Bavinckrsquos reference to Aristotlersquos concept of potency and his monistic philosophy

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

112

the one that offers a real account of humanityrsquos origins and of the different languages cultures races and alike For him all these human dimensions point ldquoto a single act of God by which he intervened in the development of humanityrdquo (BAVINCK 2004 p 525) Bavinckrsquos commitment to finding in Scripture ultimate questions is prominent Despite the diversity of languages and human ideas he claims there is still unity and that against such unity Darwinism is unable to provide an objection (BAVINCK 2004 pp 525-26)

One can observe that Bavinck seems to be open to the possibility of ap-propriation of some evolutionary ideas In that regard current scholarship on Bavinck is correct Nonetheless one must also consider that Bavinck allows such an appropriation only if it does not enter conflict with biblical revelation For instance discussing the diversity of current organisms Bavinck concedes that perhaps Darwinism might be useful to clarify the truth He writes ldquoDar-winism indeed furnishes the conceptual means of explaining the possibility of a wide assortment of changes within a given species as a result of various climatic and lifestyle influences To that extent it renders excellent service to the defense of truthrdquo (BAVINCK 2004 p 526) As seen Bavinck considers that the notion of lsquobiological changersquo can be a tool for biblical revelation One must not assume nonetheless that such lsquochangersquo must be understood in the Darwinian sense as Visser and Flipse seem to have concluded The fact that Darwinism might have some elements of truth does not mean the entire system does

Furthermore in discussing the different views on the interpretation of paradise and the Garden of Eden in Genesis 2 Bavinck again gives priority to biblical revelation over any other system of interpretation and in this case science Bavinck for example boldly claims that there is nothing in science that ldquocompels us to abandon the stipulation of Holy Scripturerdquo in regard to the earthly paradise and the first human beings despite the fact that we do not know the original place where the first humans resided (BAVINCK 2004 p 528-29) For Bavinck biblical revelation must be trusted and we should believe that despite being unknown the first humans beings lived in a defined and particular place at the beginning of the creation of humanity This demon-strates that Bavinck is committed to understand the insight offered by science under the biblical framework and not vice versa It is important to mention that one should not confuse what biblical revelation establishes in Scripture with our particular reading or interpretation of such revelation

As appreciated in Part I with such critical assessment Bavinck seems not to provide a lot of room for the theory of evolution to be understood as compatible with Scripture Besides the areas where Darwinrsquos theory is openly incompatible with biblical revelation there are other incompatibility issues that

113

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

arise12 In light of Bavinckrsquos preliminary view Darwinism has transgressed its limits as a plausible theory to reinterpret lsquoevolutionrsquo Darwinism moved from interpreting scientific data objectively to the field of explaining ultimate questions If there is something to be appropriated from Darwinism such ele-ments must not contradict biblical revelation which has priority Therefore Bavinckrsquos openness regarding an eventual appropriation from the theory of evolution must be understood in a very limited sense

2 HOW DOES BAVINCK TRY TO INTEGRATE EVOLUTION AND BIBLICAL REVELATION

In his essays ldquoCreation or Developmentrdquo (1901) and ldquoEvolutionrdquo (1908) Bavinck examines in-depth Darwinism and evolutionary theory In both essays readers will be able to appreciate Bavinckrsquos argumentative progression and deeper engagement with evolution along with a thought-provoking response on what aspects Bavinck believes evolution might be or not be compatible with biblical revelation

21 In the essay ldquoCreation or DevelopmentrdquoIn his essay ldquoCreation or Developmentrdquo Bavinck presents to his readers

the issue of evolution as he previously did in his Reformed Dogmatics This time nonetheless Bavinck reframes his discussion on evolution as a world-view issue Bavinck discusses how the human being has tried to explain the world in terms that leave out God and spirituality and instead has focused on ldquodata of matter and forcerdquo13 For him eighteenth century philosophers such as Spinoza later Hegel and Feuerbach have all failed in the task of success-fully explaining the origin of the world It is within this challenging context Bavinck claims that Darwinrsquos theory of development appears and embraces a ldquonew worldview which undertakes to interpret [all things] without exception independent of Godrdquo (BAVINCK 1901 Intro Par1) Bavinck in this essay introduces Darwinism as a lsquotheory of developmentrsquo In doing so Bavinck acknowledges that Darwinism constitutes a theory that has tried to explain

12 The previous four critiques discussed in this section are not the only ones Bavinck made against Darwinism Bavinck also argues other aspects such as a) that evolution also contradicts the Scriptures in other aspects than humanity origin ldquo[T]he age the unity and the original abode of the human racerdquo are areas where evolution and biblical revelation also differs Par sect281 ldquoThe Age of Humanity in Bavinckrdquo BAVINCK 2004 p 520-22 b) that Darwinism is unable to successfully respond to questions about the origin of humanity and its age because in the large period of time that it assumes is difficult to point out a first human being Par sect282 ldquoThe Unity of the Human Racerdquo in BAVINCK 2004 p 525 c) that science including Darwinism has not said anything certain about the home of humanity except ldquoconjuncturesrdquo since it ldquoknows nothing about the origin and abode of the first humansrdquo Par sect283 ldquoThe Original Abode of Humanityrdquo in BAVINCK 2004 p 528

13 Herman Bavinck ldquoCreation or Developmentrdquo The Methodist Review (1901) transl Hendrik De Vries 849ndash74 Introduction Par 1

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

114

the issue of evolution although such attempt has failed This is an important fact for this paper in light of Bavinckrsquos assumed interest in appropriating and reframing key aspects of Darwinism and evolution which might not conflict with biblical revelation

211 Darwinism is not science but a worldviewOne observes that Bavinck is not interested in responding a list of ques-

tions regarding evolution and how it challenges Christianity Rather Bavinck departs from another point where he rejects the idea that Darwinism is a solid scientific theory In this respect Bavinck in his Reformed Dogmatics claims that Darwinism is mere speculation and a philosophical system He reinforces this position and argues Darwinism is also a worldview in the first section of ldquoCreation or Developmentrdquo

Bavinck clarifies his understanding of natural science as ldquoan insight into the essence of things and an understanding of the idea the logic and the uni-versal which is to be observed in thingsrdquo (BAVINCK 1901 Section I Par1) Such a notion sets the framework from which Bavinck evaluates lsquoevolutionrsquo and its relation to biblical revelation He proceeds to discuss some ultimate questions such as the origin of life and all things He asserts that Darwinismrsquos theory of evolution (the development theory) addresses the ultimate question about the source of things In this respect Bavinck states ldquo[Its answer is that] there is no origin and no beginning of things All what is always was though it be in other forms and always shall berdquo (BAVINCK 1901 Section I Par4)

The issue Bavinck finds here is the philosophical suggestion on the eter-nity of matter and substance Substance has become according to Bavinck the ldquoDeity of the newer worldviewrdquo (BAVINCK 1901 Section I Par6) Therefore development or evolution has ldquodisplace[d] Divine Providencerdquo by becoming an ldquoeternal lawrdquo (BAVINCK 1901 Section I Par7) Despite Bavinckrsquos as-sertion that this law has tried to explain the origin of the universe and how the earth has become a habitable place for organisms through a process of development Bavinckrsquos tone is one of irony in order to make his point that current development theory has indeed displaced providence This seems to be confirmed with the following paragraph where Bavinck describes the new state of affairs under the newer theory of development

This is the new and newest interpretation of the origin of things There is some-thing imposing something which takes hold of one mightily in this view There is contained in its unity of thought boldness of conception and sequence of principle It is readily understood that it charms many Yes when one does not believe in revelation which furnishes another interpretation of all creatures one is bound in a similar way to render the origin of things in some measure intel-ligible to himself They must have come from somewhere and have originated in some way The theory may still be incomplete and leave many phenomena in

115

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

the physical and psychical world unexplained nevertheless according to Straus Darwin is hailed as the greatest benefactor of the human race because he has opened the door through which a more fortunate posterity will be able to cast out the miracle for good An age which denies the supernatural and even shakes off all religion cannot do other all opposition notwithstanding than expect all salvation from the reason its own thinking and to see the solution of all the riddles of the world in development (BAVINCK 1901 Section I Par8)

After this criticism Bavinck continues further and states that the theory of development ldquois not a product of science but of imagination It is no science in any serious sense no science exact as it is claimed to be but a worldviewa philosophy as uncertain as any system of the philosophersrdquo (BAVINCK 1901 Section I Par9) Because idealism is entirely based on imagination such a worldview becomes contradictory when it addresses human origin Idealism has failed to provide convincing evidence in favor of humanity having an animal ancestry (BAVINCK 1901 Section I Par14) In sum one notes that for Bavinck Darwinismrsquos claims are based on philosophical assumptions and imagination rather than on actual facts

212 Darwinism misappropriates the notion of developmentIn the second section of his essay Bavinck focuses on the essence of things

For Bavinck in this new worldview all creatures are just one constituted by a single substance that changes indefinitely an idea that suggests there is no God and spiritual world (BAVINCK 1901 Section II Par2) This would make the creation a big ldquomachine which has construed itself which continuously holds itself in motion and which completely blind without reason and pur-pose eternally runs on and never downrdquo With such properties creation is no longer a ldquoliving animated organic unityrdquo but an ldquoeternal existence of one and the same sortrdquo (BAVINCK 1901 Section II Par2)

Bavinck goes on with his critical assessment and offers a series of philo-sophical characteristics of the modern theory of development the lack of an ontological difference between humanity and animals the negation of the human soul and other human dimensions the reductionist view of humanityrsquos spiritual dimension and the promotion of anthropocentrism

The implications of a system with such features are important In this new worldview and in contrast to biblical revelation ldquothere is no difference of good and evil of right and wrong of truth and falsehood Everything is good and beautiful and true in its time and place according to the individual faith and choicerdquo (BAVINCK 1901 Section II Par6) This leads Bavinck among other factors to argue that this development theory is a failure in being unable to ldquointerpret the richness and variety of creationrdquo Therefore evolutionists for Bavinck have misappropriated the concept of development by understanding

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

116

it under a mechanical framework and thus concealing the drawbacks of their system of thought (BAVINCK 1901 Section II Par10)

Due to this fact Bavinck argues that lsquodevelopmentrsquo itself is not against the notion of creation ldquobut is only possible upon its foundation and belong to its confessionrdquo (BAVINCK 1901 Section II Par10) To that end Bavinck clarifies what he means and writes

Development produces nothing of itself it is not the mother of being or of life it is only a form of motion which can only reveal what lies hidden inwardly in the germ But the so-called development theory has no knowledge of germs it knows nothing of disposition or capacity of fitness and susceptibility In its sys-tem there is no room for anything save atoms and complexes of atoms which are altogether passive in themselves and are collocated only and alone in a mechanical or chemical manner by circumstances from without This makes no mention of development in its real sense (BAVINCK 1901 Section II Par10)

Bavinck here seems to defend a concept of development In doing so he sug-gests that development understood from a creationist perspective could be retrieved This retrieval would be possible if it is conceded that ldquobeings by way of [a process of] organic growthrdquo can become ldquowhat in germ and principle they already arerdquo This can be so because development itself ldquorefers to thought plan law endrdquo and ldquohe who names development names Godrdquo (BAVINCK 1901 Section II Par10)

One may observe Bavinckrsquos reference to Aristotlersquos notion of potentiality and actuality In effect he indeed seems to adopt an AristotelianThomistic framework to understand development the transition between potentiality (what a being is in germ and principle) and actuality (what the being has become in accordance to what they already are) Understanding development in this way is what I think allows Bavinck to incorporate the notion of lsquodevelopmentrsquo in his theological thought while having a high view of biblical revelation This is demonstrated by Bavinckrsquos words when he states

So little does development stand over against creation that there is scarcely any choice left between creation with the richest development on one side and mechanical combination by the accident of a host of similar atoms on the other Development stands between origin and end under Godrsquos providence it leads from the first to the last and unfolds all the riches of being and of life to which God gave existence (BAVINCK 1901 Section II Par10)

Bavinckrsquos redefinition of lsquodevelopmentrsquo allows him to ldquoembrace not merely a few but all phenomenardquo of the Christian worldview This is because in the Christian worldview the world is ldquoan organic living whole [containing] not only matter and force but also spirit and consciousness reason and willrdquo For Bavinck Godrsquos creation (eg the world) is a unity which ldquoreveals itself in the

117

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

richness and most beautiful varietyrdquo (BAVINCK 1901 Section II Par11) Unlike Darwinism all organic life follows its own law and nature In this respect Bavinck claims

And although the creatures are thus distinguished they are not separated from each other Together they form one whole one organism one art product of which God himself is the artist and the master builder In him in his counsel in his will all created things find their origin and maintain their existence (BAVINCK 1901 Section II Par11)

Bavinck concludes his second section of his essay emphasizing that the newer worldview has no knowledge of biblical revelation Thus the difference be-tween evolution in Darwinist terms and evolution in AristotelianThomistic sense becomes clearer

213 Darwinism lacks an adequate teleologyIn the third section of his essay Bavinck addresses the teleological aspect

of the things He commences his essay claiming that by this third section he has shown the theory of development (Darwinism) fails again because of its ldquoinsufficiency and unsatisfactory characterrdquo (BAVINCK 1901 Section III Par2) Such lacking is teleological the theory does not provide space for universal history For Bavinck although evolutionists speak sometimes of purpose in their theory such purpose is futile and without warrant He writes

The system of the development theory offers no room for a plan or a purpose Nothing is dominant then save the compulsion of fate or the capriciousness of accident Everything is as it is without reason and without purpose The theory of evolution furnishes no answer whatever to the inquiry to what purpose everything serves On this question it remains silent (BAVINCK 1901 Section III Par2)

Bavinckrsquos critique here is about the lack of an adequate teleology that can explain the purpose of humanity yet not limited to it In a non-teleological system in which the spiritual dimension is lacking Bavinck suggests there is no purpose at all If the created order does not have purpose the importance of history is undermined In other words ldquo[H]istoryhellipis dominated just like the physical world and with equal necessity by mechanical forces and lawsrdquo (BAVINCK 1901 Section III Par3-4) Having this line of reasoning in mind Bavinck asserts that ldquothe development of humanity cannot be taken as end-lessly progressingrdquo The end would be chaos and destruction which ultimately would lead to the extinction of the created order where ldquodeath [will be] the end of the world as well as of the individual man and of the entire human racerdquo (BAVINCK 1901 Section III Par5) Therefore this theory of development lacks an adequate eschatological aspect in its worldview

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

118

As appreciated in this part unlike biblical revelation the evolutionary worldview denies the teleological aspect of humanity and the created order For this reason Bavinck writes the following critical assessment ldquo[C]om-plete bankruptcy moral and spiritual is the end of the modern worldviewrdquo (BAVINCK 1901 Section III Par12) Bavinck entirely discards Darwinrsquos interpretation of the theory of development By reframing it as worldview Bavinck demonstrates that Darwinism is not true science but an interpreta-tive system imposed on scientific data And as such Bavinck claims that this interpretative system is flawed This becomes clearer when Bavinck claims that the lsquotruersquo development theory is to be found only in biblical revelation where history has a teleological course shaped by Scripture and there is an ldquoexpectation of the futurerdquo (BAVINCK 1901 Section III Par13)

22 In the essay ldquoEvolutionrdquoIn his ldquoEvolutionrdquo essay Bavinck begins by warning his readers about

the unstable character of the term lsquoevolutionrsquo throughout history and thus the diversity of the termrsquos meanings Bavinck clarifies the term making a refer-ence to Leibniz who was the first one to use the Latin term ldquoevolutiordquo with the connotation of ldquobecoming of things in naturerdquo14 Such an aspect is of high weight for this paper because of the different ways Bavinck has used the term Alongside previous criticism the fact that Bavinck redefines evolution as lsquodevelopmentrsquo in an Aristotelian sense shows that he has indeed endorsed an AristotelianThomistic framework to understand evolution Bavinck has already justified the reasons of such redefinition and now he has taken a further step in the progression of his ideas at the intersection of evolution and biblical revelation

221 The Christian idea of development is based on Aristotlersquos notion of evolution

Bavinck had previously discussed that although the term lsquoevolutionrsquo was not used by Greek philosophers they did discuss the idea behind it The idea of being Bavinck tells us was known to the Greeks especially Heraclitus who rejected the notion of being in favor of only becoming (BAVINCK 2008 p 106) The balance between being and becoming was then a topic later phi-losophers discussed such as Empedocles Anaxagoras the Atomists Plato and Aristotle among others For Bavinck however it is Aristotle the first Greek philosopher to present a development theory Bavinck writes

14 Herman Bavinck ldquoEvolutionrdquo in Essays on Religion Science and Society ed John Bolt Grand Rapids Mich Baker Academic 2008 105-118 p 105

119

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

And one can rightly say that the last-named philosopher [Aristotle] was the first to devise a lsquosystem of developmentrsquo Aristotle conceived of that which is as the being that is developing in the phenomena True being does not consist in isolation above and beyond but it is within things However it does not im-mediately and initially fully exist there but it gradually comes into being by way of a process All becoming (happening moving) consists in the transition from potential to actualityhellip

Aristotle therefore does not explain what came to pass ndash as the Atomists do ndash from mechanical pleasure to impact but he borrows his idea of development from organic life For him becoming is an actualizing a realization of what is potentially and germinally present in the phenomena he explains the becoming from the being for him the genesis exists for the sake of the ousia With this thinking Aristotle is far ahead of the Atomists because he considers becoming not as determined entirely from the outside through accidental circumstances but as guided from the beginning in a certain direction The nature the char-acter the being the idea of something indicates the direction in which the development will take place Since evolution is thought to be organic it is also thoroughly teleological And since Aristotle applies this idea of development not only to particular things but also to the world in its entirely he discovers order and planning movement and upward mobility in the world of creatures (BAVINCK 2008 p 106)

Bavinck argues that Christianity developed Aristotlersquos notion of de-velopment although he does not mention any name The important aspect to highlight in this respect is Bavinckrsquos assertion that ldquoChristianity did not replace or dispute [the Aristotelian] idea of development but took it over and enriched itrdquo (BAVINCK 2008 p 106) The claim that ldquomatter also originated from and through the word and therefore was a part of divine thoughtrdquo was the first great contribution of Christianity to Aristotlersquos development project a project that in its original form Bavinck finds very dualistic In this respect Bavinck believes ldquonature is not a dark demonic mass but incarnate wordrdquo With this anti-dualistic line of reasoning Bavinck rightly concludes that the theory of development presented by Aristotle was ldquoimmeasurably enrichedrdquo (BAVINCK 2008 p 107)

The second way Christianity benefited Aristotlersquos system of develop-ment was that it provided a coherent history of humanity which starts from a particular point toward eternal life In that regard Bavinck writes ldquoChristianity presents a history of humanity a development that proceeds from a certain point and moves toward a specific goal progressing toward the absolute ideal toward true being toward eternal liferdquo (BAVINCK 2008 p 107) So far Bavinck has held that Christianity appropriated Aristotlersquos development system and has enriched it He calls this the ldquoChristian idea of developmentrdquo an idea which ldquomade its way into the newer philosophy [of the seventeenth

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

120

century]rdquo (BAVINCK 2008 p 107) Bavinckrsquos sympathetic reading and af-finity to Aristotelesrsquos notion of development seems to be something that cur-rent scholarship has slightly ignored There is no doubt that Bavinck clings to Aristotle Such fact has implications on what Bavinck may accept or reject from Darwinrsquos theory of evolution

222 Darwinism has departed from AristotleChristianityPreviously in his Reformed Dogmatics Bavinck affirmed that the eigh-

teenth-century philosophers left the theistic development system Here Bavinck writes ldquowith many the idea of development is detached from the theistic founda-tion of which it rests in Christianityrdquo (BAVINCK 2008 p 107) Earlier in this essay we learned that the system was Aristotlersquos development theory enriched by Christianity therefore it can be concluded that Bavinck seems to endorse a modified Aristotelian framework to understand the theory of evolution If this claim is true as has been argued throughout this paper it will not only help readers better understand Bavinckrsquos position but also clarify to what extend he provides room for evolution (in the modern use of the term) with his high view of biblical revelation

ldquoEvolution is organic and teleological and for that reason it has a pro-gressive characterrdquo Bavinck has argued (BAVINCK 2008 p 106) Now he reaffirms such a vision claiming the different changes that people observe in the created order constitute a ldquodevelopment from withinrdquo This means that such development has been conceived ldquoorganically and for that reason retains its teleological characterrdquo (BAVINCK 2008 p 107) This development is not merely accidental according to Bavinck When poets and philosophers speak of ldquounity in the developmentrdquo in their ldquosearchinghellip for gradual transitionsrdquo they refer to a ldquological ideal order in the progression [development] of crea-turesrdquo and not ldquoa physical descent [of humanity]rdquo (BAVINCK 2008 p 108) Bavinck clings to this among other aspects to claim that philosophers of the nineteenth century departed from such a notion of development and replaced it with ldquoa totally different ideahellip[yet] was not completely new for it had been proposed already in antiquity by Leucippus Democritus and Epicurus [reemerging] with Descartesrdquo (BAVINCK 2008 pp 108-9) Supported by French naturalists and appropriated by some philosophers ldquothe [new] idea of development displayed a character that was too philosophicrdquo (BAVINCK 2008 p 108) Once again Bavinck highlights the difference between the two kinds of theories of development ndash the Aristotelian theory of development and Darwinism

Important to notice here is Bavinckrsquos assertion that Darwin provided the scientific character that the new understanding of development needed in order to become a theory of evolution In this respect Bavinck writes

121

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

The modern idea of evolution existed already before Darwin just as socialist expectations had prophets already before Marx But Darwin endeavored to give this idea of evolution a solid foundation in the facts in the same way in which Marx according to the opinion of his followers changed utopian socialism into a scientific socialism And Darwin did not leave it at that Not only did he show us in an amazing mass of facts striking analogies that exist between organic creatures which had been categorized in species by [Carolus] Linnaeus and on which he constructed his theory of descent he also tried to explain this descent by this hypothesis of lsquonatural selectionrsquo which in the lsquostruggle for lifersquo assures the lsquosurvival of the fittestrsquo and thus assures the development also as progressAs a result evolution received a completely different meaning in the newer science than it had before (BAVINCK 2008 p 108-9)

Bavinck here is bold about his rejection of Darwinism and Darwinrsquos appropria-tion of the notion of development which was previously understood as ldquoan organic progressive teleological processrdquo that has the purpose of ldquoposit[ing] a logical idealistic order between creaturesrdquo (BAVINCK 2008 p 109) Although Bavinck does not indicate it he seems to make a reference to Aristotlersquos Great Chain of Being especially with his explanation of the purpose of the former theory of development

Rightly after his clarification about Darwinrsquos misappropriation Bavinck proceeds to offer a brief explanation of the claims made by the new theory of development (Cf BAVINCK 2008 p 109) Modern readers must not assume that the previous list is exhaustive in the aspects Bavinck rejects from Darwinism Such an integral perspective is only reached when taking into account at least his exposition in Reformed Dogmatics and his ldquoCreation or Developmentrdquo essay among other brief references Bavinck makes to evolution in other parts of his theological thought15

223 Failure of the Darwinist methodology Once Bavinck offers his brief list of the characteristics of the new theory

of development he moves on to discuss some methodological aspects of Dar-winrsquos theory of evolution Bavinck criticizes the lack of purpose or guidance in the new theory of development as well as its inability to ldquoprovide norms by which to measure progress or declinerdquo While evolutionists speak of ldquoa con-tinuing improvement of the human racerdquo such a naiumlve notion of improvement is used by some to manipulate people and their ldquoexpectations to the other side

15 In this respect Bavinck writes ldquoSo many and such weighty objections exist against this theory that it is impossible to consider it seriously as a solution to the problems of this world The short space available for this controversy permits only a few comments but these may already be sufficient to justify any counterargument that mechanical monism experiences in many circles both within and outside the realm of scholarshiprdquo (ldquoChristianity and Natural Sciencerdquo in Essays on Religion Science and Society ed John Bolt Grand Rapids Mich Baker Academic 2008 81-104 p 100)

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

122

of the graverdquo (BAVINCK 2008 p 109) Bavinck ironically writes ldquohellip[I]f a monkey can evolve gradually into a human being there is a good possibility than in the next life humans will gradually change into angels (BAVINCK 2008 p 110) He offers this example as a way of noticing the absurd ldquomechanical non-teleologicalrdquo characteristic of the new theories of development and descent

As Flipse notices Bavinck argues that the mechanical worldview is deficient It is not enough to claim that ldquothe world is a machinerdquo because believing such an idea requires a lot of faith from us ldquo[W]hen natural science limits itself to its own realm it does not have to concernrdquo about the ldquoorigin of thingsrdquo Bavinck asserts (BAVINCK 2008 p 110) The issue arises when the limits of science are transgressed into the metaphysical or philosophical realm ldquoThe mechanical idea which is fully justified in some areas of nature is then expanded into a mechanical worldview and proclaims the dogma of the eternity of the matterrdquo For Bavinck in the moment such a situation happens the scientist becomes a philosopher (BAVINCK 2008 p 110)

Bavinckrsquos point opens the door to evaluating Darwinism in light of its metaphysical claims It is not a surprise that Bavinck claims a ldquoperpetual motion machine is self-contradictionrdquo as a critique to Darwinismrsquos mechani-cal worldview a view that lacks mystery This goes in contradiction to ldquothe mystery of beingrdquo (BAVINCK 2008 p 110) Bavinck concedes however that the only mystery that this newer theory of development and its mechani-cal worldview has is about ldquothe origin of thingsrdquo (BAVINCK 2008 p 111) One should note that this concession does not necessarily mean that Bavinck would include such elements in an eventual Christian account of lsquoevolutionrsquo as Flipse seems to understand

Bavinck also argues that believing in the concept of a rational human being assumes that there is a difference between human beings and animals Such a difference is made evident not only in body structure but also in body organs and embryonic development (BAVINCK 2008 p 113) This claim is significant especially if one tries to contend that Bavinck seems to be open with some elements of the evolutionary theory Bavinckrsquos critique is clear the embrace of the theory of descent is a product of leaving the faith and ne-glecting scientific data (BAVINCK 2008 p 113) Therefore arguments from the theory of descent are not based on pure facts but on hypotheses As seen Bavinck does not criticize Darwinism only from the claims it makes but also for the methods it uses

For instance Bavinck becomes critical of the comparison method that Darwin uses for the theory of descent He argues that the theory of descent relies too much on comparison (eg comparative anatomy physiology and psychology) Darwinismrsquos method fails because despite all similarities be-tween man and animal humankind is separate from all creatures (BAVINCK 2008 p 114) Such differentiation is not merely physiologically but also of

123

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

the metaphysical dimension of man In this respect Bavinck relies on this fact to assert that other areas of study such as religion philosophy and psychology have important insights to provide when the theory of descent is assessed (BAVINCK 2008 p 115) As he has done in other parts Bavinck rejects the notion that there is a gradual transition which supports the theory of descent

In sum Bavinck rejects not only the content of Darwinism and how it has interpreted the theory of evolution but its own flawed methodology

224 Development can be accepted but only in the Aristotelian sense

After offering arguments to what extent evolution and biblical revelation may not contradict each other Bavinck argues that there is room for develop-ment in the ldquotrue sense of the wordrdquo but such development assumes ldquoplan and law direction and goalhellipbeginning and endrdquo (BAVINCK 2008 p 118) It is not a coincidence that Bavinckrsquos last sentences refer to Aristotle ldquo[He] already understood that becoming exists for the sake of being not the reverse There is becoming only if and because there is beingrdquo (BAVINCK 2008 p 118) Here Bavinck claims there is space for lsquodevelopmentrsquo in biblical revelation However he restricts such possibility significantly one should understand lsquodevelopmentrsquo in the real meaning or true sense of the term As it was shown previously in this paper Darwinist or non-teleological theories of evolution do not give such real meaning to the term but the lsquoChristian-Aristotelianrsquo framework does

CONCLUDING REMARKSBavinckrsquos engagement with the theory of evolution is noteworthy Unlike

his general criticism to Darwinism in his discussion of human origins in RD sect279-83 the essays studied here analyze the theory of evolution in a further in-depth fashion While in ldquoCreation or Developmentrdquo Bavinck approaches Darwinism as an interpretative system of scientific data in his essay ldquoEvolu-tionrdquo Bavinck reclaims the notion of lsquodevelopmentrsquo and lsquoevolutionrsquo under a modified Aristotelian-Christian account of lsquoevolutionrsquo It is a framework that seems to be compatible with Scripture but rejects Darwinism as a whole and not only a particular feature of it Current scholarship is partially right

What this paper departs from modern scholarship is that Bavinckrsquos notion of lsquodevelopmentrsquo is not merely a kind of Christianized Darwinism or theistic evolution It is true that Bavinck might allow certain changes in organisms but only within their kinds without any notion of metaphysical change improve-ment or retrogression such as the change of an organism of a kind evolving into another kind When Bavinck speaks of lsquodevelopmentrsquo his use of the term is strictly in accordance to the Aristotelian metaphysics being as becoming

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

124

Modern readers must take into consideration that this Aristotelian posi-tion has traditionally been understood as opposed to evolution in the modern sense Bavinck has modified the Aristotelian notion of development to allow certain changes in the material constitution of organisms but not in their es-sence With this understanding of lsquodevelopmentrsquo Bavinck indeed overcomes the challenges on the intersection of evolution and biblical revelation but does not leave much room to appropriate evolutionary thinking

RESUMOEm sua anaacutelise da evoluccedilatildeo Bavinck oferece uma teoria modificada de

desenvolvimento radicada natildeo em uma cosmovisatildeo mecanicista e naturalista como Darwin faz mas em uma estrutura ldquoamistosa ao teiacutesmordquo Este artigo sugere que a discussatildeo de Bavinck acerca da evoluccedilatildeo como um todo endossa uma estrutura modificada aristoteacutelica-tomista a fim de compreender a teoria do desenvolvimento e assim supera os desafios levantados pela cosmovisatildeo naturalista de Darwin para a revelaccedilatildeo biacuteblica

PALAVRAS-CHAVEDarwinismo Evoluccedilatildeo Cosmologia evolutiva Diaacutelogo teologia-ciecircncia

Teoria do desenvolvimento

125

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 125-129

RESENHA

Heber Carlos de Campos Juacutenior

ALLEN Michael SWAIN Scott R Catolicidade reformada a pro-messa da recuperaccedilatildeo para a teologia e a interpretaccedilatildeo biacuteblica Brasiacutelia DF Monergismo 2021 223 p

A Editora Monergismo nos presenteou com um livro que enriquece mui-tiacutessimo o cenaacuterio teoloacutegico brasileiro quanto agrave autoria e quanto ao tema Mi-chael Allen e Scott Swain satildeo pouco conhecidos do puacuteblico brasileiro embora capiacutetulos de sua autoria jaacute tenham sido publicados em nosso idioma (Teologia da Reforma org Matthew Barrett Thomas Nelson Brasil 2017) Ambos satildeo professores de teologia sistemaacutetica do Reformed Theological Seminary no campus da cidade de Orlando nos Estados Unidos Satildeo autores jovens mui proliacuteficos e extremamente haacutebeis no lidar com teologia contemporacircnea Neste uacuteltimo quesito quero dizer que eles satildeo teoacutelogos que interagem frequente e perspicazmente com autores recentes inclusive de outras tradiccedilotildees cristatildes Portanto ambos fazem teologia sistemaacutetica natildeo somente reproduzindo as vozes de autores do passado mas mediante um rico diaacutelogo criacutetico com dife-rentes linhas doutrinaacuterias modernas Uma variedade de fontes pode ser vista no livro que estamos resenhando prova de que os autores estatildeo encarnando um espiacuterito ldquocatoacutelicordquo

Isso me leva ao segundo aspecto no qual este livro enriquece o cenaacuterio protestante brasileiro o tema A catolicidade agrave qual o livro se refere natildeo eacute uma referecircncia agrave Igreja de Roma nem um aspecto meramente eclesioloacutegico (universalidade geograacutefica e antropoloacutegica da igreja) mas um resgate e incor-poraccedilatildeo da tradiccedilatildeo teoloacutegica cristatilde Cientes de que existem vaacuterios movimentos

Doutor em Teologia Histoacuterica (PhD Calvin Theological Seminary) Mestre em Teologia His-toacuterica (ThM Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper) professor de Teologia Histoacuterica no CPAJ e de Teologia Sistemaacutetica no Seminaacuterio Presbiteriano Rev Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo

CATOLICIDADE REFORMADA A PROMESSA DA RECUPERACcedilAtildeO PARA A TEOLOGIA

126

recentes que tecircm retornado agraves fontes antigas ndash desde catoacutelicos (Yves Congar e Henri de Lubac) passando por anglicanos (John Milbank e Graham Ward) protestantes de denominaccedilotildees liberais (Donald Bloesch e Thomas Oden) e ateacute evangeacutelicos (Robert Webber e D H Williams) ndash Allen e Swain se unem a essas tendecircncias recentes de renovaccedilatildeo teoloacutegica mediante a recuperaccedilatildeo de recursos da tradiccedilatildeo cristatilde (p 19-30) No entanto os autores natildeo estatildeo apenas seguindo a tendecircncia de nosso tempo mas estatildeo seguindo o modelo de refor-mados do passado como William Perkins em seu livro Reformed Catholicke (1597) a Ortodoxia Reformada do seacuteculo 17 e ateacute Philip Schaff no seacuteculo 19 (p 31 213) para os quais ldquoser reformado significa ir mais fundo na verdadeira catolicidaderdquo (p 18) Em outras palavras as diversas teologias de recuperaccedilatildeo da tradiccedilatildeo catoacutelica natildeo devem ser assimiladas num espiacuterito de colagem aceacute-fala de autores antigos mas devem alertar-nos para pensar numa apropriaccedilatildeo consistentemente protestante da tradiccedilatildeo (p 29-30) Os autores natildeo prometem uma metodologia completa para tal apropriaccedilatildeo mas lanccedilam um manifesto que precisa ser ouvido por protestantes que natildeo satildeo suficientemente catoacutelicos e por ecumecircnicos que natildeo satildeo suficientemente protestantes

Apoacutes a introduccedilatildeo o livro possui cinco capiacutetulos da pena dos autores e um posfaacutecio escrito por J Todd Billings o qual apresenta uma proposta de re-descoberta da tradiccedilatildeo para a renovaccedilatildeo da igreja (p 199-223) Este eacute professor no Western Theological Seminary de linha teologicamente mais aberta que o Reformed Todavia Billings faz coro com os autores do livro ao afirmar que a tradiccedilatildeo catoacutelico-reformada oferece uma alternativa agrave leitura individualista das Escrituras que muitos evangeacutelicos fazem buscando respostas no texto para confirmar a ldquorelevacircnciardquo de Jesus Em contraposiccedilatildeo a tal tendecircncia o propoacutesito de recuperar vozes do passado eacute para que elas revelem os pontos cegos de nossa eacutepoca e superemos as idolatrias ocultas do presente (p 211-213)

No primeiro capiacutetulo Allen e Swain afirmam que o ressourcement (lit ldquoretorno agraves fontesrdquo alusatildeo ao movimento catoacutelico romano do seacuteculo 20 deno-minado Nouvelle Theacuteologie) reformado natildeo eacute uma proposta tradicionalista mas um programa de natureza trinitaacuteria e cristoloacutegica que relaciona o Espiacuterito de Cristo e a mente renovada da igreja De acordo com 1Joatildeo 227 o ldquoEspiacuterito de Cristo ensina a igreja em veracidade tatildeo suficiente e pura que a igreja natildeo precisa buscar entendimento teoloacutegico em qualquer outra fonte ou princiacutepiordquo de tal forma que a igreja eacute o canteiro da teologia o uacutenico terreno criacional feacutertil no qual a instruccedilatildeo de Cristo promete ldquoflorescer em entendimento humano renovadordquo (p 37) Os autores acreditam que a tradiccedilatildeo eacute instituiccedilatildeo divina na qual buscamos progresso na busca por entendimento O fato de a tradiccedilatildeo poder errar natildeo desqualifica o seu status de instituiccedilatildeo divina Diferentemente do que George Lindbeck propocircs em seu livro The Nature of Doctrine a teologia natildeo eacute meramente um fenocircmeno lsquolinguiacutestico-culturalrsquo de construccedilatildeo credal a

127

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 125-129

teologia reformada de recuperaccedilatildeo acredita que ldquoa igreja recebe e transmite o ensino apostoacutelico como frutos do Espiacuteritordquo (p 46)

O restante do primeiro capiacutetulo eacute uma articulaccedilatildeo pneumatoloacutegica de como chegamos ao conhecimento da verdade O Espiacuterito estaacute por traacutes do ato da igreja de criar tradiccedilatildeo (p 53) O Espiacuterito natildeo a igreja eacute a fonte da verdade teoloacutegica e a tradiccedilatildeo eacute a postura da igreja de permanecer no ensino apostoacutelico ao longo do tempo (p 57) Enquanto a Escritura ldquoeacute a fonte divina-mente autoritativa e suficiente da teologiardquo ndash contra a teoria das duas fontes propagada pelo Vaticano II ndash a tradiccedilatildeo eacute ldquoa recepccedilatildeo da Escritura capacitada pelo Espiacuterito eacute o alvo divinamente designado da teologiardquo (p 60) A Escritura eacute o fundamento e a obra iluminadora do Espiacuterito renovando nossas mentes permite agrave igreja construir tradiccedilatildeo em cima da Escritura ldquoEmbora o depoacutesito apostoacutelico natildeo possa crescer o entendimento da igreja desse depoacutesito pode e de fato deve crescerrdquo (p 70)

Nos capiacutetulos 2 e 3 os autores articulam uma defesa do Sola Scriptura e sua relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo Sola Scriptura na Reforma nunca intentou ser ldquouma censura absoluta agrave tradiccedilatildeo ou uma negaccedilatildeo da autoridade eclesiaacutestica genuiacutenardquo (p 75) Pelo contraacuterio os autores acreditam que o compromisso com o Sola Scriptura na verdade aumenta nossa recepccedilatildeo da rica tradiccedilatildeo catoacutelica (p 77) Contrapondo-se a criacuteticos do princiacutepio de ldquoSomente a Escriturardquo tan-to do passado (Alexis de Tocqueville) como do presente (Brad Gregory e A N Williams) que alegam que tal princiacutepio significa ausecircncia da autoridade interpretativa da tradiccedilatildeo e abre a porta para todo tipo de pluralismo herme-necircutico nossos autores revelam que a leitura dos criacuteticos eacute equivocadamente ldquodonatistardquo (como se o princiacutepio fosse um purismo biacuteblico que fecha os olhos para a conduccedilatildeo providencial de uma igreja imperfeita) e ldquodeiacutestardquo (como se o processo de reflexatildeo teoloacutegica fosse uma atividade exclusivamente humana ou natural) Ateacute quando os reformados defenderam o ldquoprinciacutepio regulador de cultordquo ndash pelo qual se entende que todo elemento do culto deve ser autorizado pela Escritura ndash eles removeram certas praacuteticas romanas e introduziram novos padrotildees lituacutergicos que deveriam ser seguidos por geraccedilotildees vindouras (p 102) Isto eacute os reformados nunca deixaram de produzir tradiccedilatildeo mas sempre dirigida pela Escritura

Em seguida calcados em passagens como o Salmo 145 Atos 15 e as Epiacutestolas Pastorais aleacutem do escrito de Lutero sobre conciacutelios eclesiaacutesticos Allen e Swain concluem que somos mais biacuteblicos natildeo quando somos ldquobibli-cistasrdquo mas quando estamos envolvidos no processo de ldquoformar tradiccedilatildeordquo Somente a Escritura (Sola Scriptura) natildeo eacute sinocircnimo de a Escritura Sozinha (Solo Scriptura) ldquoum filho bastardo amamentado no seio do racionalismo e individualismo modernosrdquo assim como a perspicuidade da Escritura natildeo sig-nifica que qualquer investigador do texto sagrado provido dos devidos meios sempre o interpreta adequadamente como se o sacerdoacutecio universal signifi-

CATOLICIDADE REFORMADA A PROMESSA DA RECUPERACcedilAtildeO PARA A TEOLOGIA

128

casse que natildeo precisamos de mestres (p 123-124) De modo bem protestante eles encerram o capiacutetulo 3 dizendo que a igreja eacute criatura da Palavra que ela eacute nutrida ao ouvir a Palavra e que sua autoridade ministerial eacute delegada pela Palavra (p 125-134)

O quarto capiacutetulo trata do papel dos escritos confessionais na interpre-taccedilatildeo biacuteblica Allen e Swain satildeo organizadores de uma seacuterie de comentaacuterios de interpretaccedilatildeo teoloacutegica da Escritura (TampT Clark International Theological Commentary) e seguindo essa tendecircncia de interpretaccedilatildeo credalconfessional eles propotildeem uma ldquoleitura reguladardquo da Escritura com base em princiacutepios te-oloacutegicos e eclesioloacutegicos reformados (p 136-137) A leitura da Biacuteblia eacute uma empreitada comunitaacuteria e por isso o indiviacuteduo que faz dogmaacutetica o faz como ldquouma persona autoconscientemente eclesiaacutesticardquo (p 139) Inspirados pelo fa-moso escrito sobre a Escritura de William Whitaker os autores afirmam que a igreja ldquoguarda discerne proclama e interpretardquo a Palavra de Deus (p 142-144) O direito privado de investigaccedilatildeo eacute um privileacutegio de todos os fieacuteis mas natildeo deve ser confundido com o poder de interpretaccedilatildeo puacuteblica concedido a homens chamados e dotados para o ministeacuterio do ensino A devida distinccedilatildeo leva os autores a concluir ldquoA autoridade de ensino da igreja natildeo existe para excluir outros da interpretaccedilatildeo e compreensatildeo da Palavra de Deus Pelo contraacuterio a autoridade de ensino da igreja existe para comunicar (ie ldquotornar comunsrdquo) os tesouros da Palavra de Deus para todos do povo de Deus de forma que eles tambeacutem possam ter completa comunhatildeo (ie ldquodividir igualmenterdquo) nesses tesourosrdquo (p 151) A ldquoregra de feacuterdquo ou escritos confessionais nos habilitam a ler as vaacuterias partes da Escritura agrave luz do todo fazendo com que Sola Scriptura funcione conjuntamente com Tota Scriptura (p 156 162)

O quinto e uacuteltimo capiacutetulo se propotildee a fazer uma defesa da utilizaccedilatildeo da Escritura na forma de citaccedilatildeo de ldquotextos-provardquo (dicta probanda) uma praacutetica tatildeo maculada por criacuteticos modernos A acusaccedilatildeo contra essa praacutetica se baseia em trecircs erros ela desconsidera os contextos de textos especiacuteficos (por ex cita partes do texto sem atentar para o gecircnero literaacuterio) natildeo demonstra sensibilidade para com o horizonte hermenecircutico do inteacuterprete (por ex pretende resolver o debate sobre desarmamento ao fazer exegese das porccedilotildees relevantes da Escri-tura) interage com a histoacuteria eclesiaacutestica antes que com a histoacuteria biacuteblica (por ex encaixa textos em suas categorias de teologia sistemaacutetica para integrar a verdade em um sistema) Allen e Swain reconhecem que essas acusaccedilotildees tecircm elementos verdadeiros (p 175-180) Poreacutem a proacutepria Escritura pode ser acusada dos mesmos trecircs ldquoerrosrdquo e eles fornecem exemplos dos trecircs Tal alegaccedilatildeo natildeo serve para desqualificar a hermenecircutica que os autores do Novo Testamento fazem do Antigo ou dizer que eles tecircm passe livre para fazer o que quiserem com o texto primevo Natildeo Tudo o que os autores pretendem provar eacute isto ldquoNatildeo devemos confundir teacutecnicas de citaccedilatildeo (por exemplo textos-prova) com meacutetodo hermenecircutico seja ao considerarmos o uso da Escritura pela Escritura

129

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 125-129

ou o uso da Escritura pela teologiardquo (p 182) Por isso calcados nos exemplos de Tomaacutes de Aquino e Joatildeo Calvino eles terminam o capiacutetulo encorajando os teoacutelogos sistemaacuteticos a serem mais frequentes na exegese da Escritura e os teoacutelogos biacuteblicos a se familiarizarem com a histoacuteria da interpretaccedilatildeo biacuteblica e perceberem que eles proacuteprios tambeacutem se utilizam de categorias sinteacuteticas para trabalhar com o texto seletivamente quem sabe tais encorajamentos promovam maior simbiose entre exegese e dogmaacutetica (p 192-198)

Conforme dito no comeccedilo desta resenha a Editora Monergismo nos in-troduz a teoacutelogos reformados da nova geraccedilatildeo que demonstram grande lastro de pesquisa e interaccedilatildeo perspicaz com diversas fontes aleacutem de apresentar um tema muito importante para o evangelicalismo individualista que possui ten-taacuteculos inclusive no movimento reformado brasileiro Temos muito a aprender sobre a maneira como os reformados do passado e do presente interagem com a tradiccedilatildeo cristatilde de forma criteriosa Catolicidade eacute um tema que requer mais reflexatildeo em nosso meio para desmitificarmos uma compreensatildeo estreita de Sola Scriptura respondermos adequadamente agrave acusaccedilatildeo romana de que a doutrina protestante da Escritura abriu as portas para o individualismo de pensamento que culminou em pluralismos e apontarmos um caminho melhor de uso da tradiccedilatildeo e da Escritura tanto para teoacutelogos biacuteblicos como sistemaacuteticos

Haacute pouquiacutessimos momentos em que discordo de detalhes propostos pelos autores Eles dizem que a investigaccedilatildeo teoloacutegica moderna se exauriu na forma de investigaccedilatildeo teoloacutegica e carece de renovaccedilatildeo mediante o resgate de fontes (p 19) Eu natildeo diria que a investigaccedilatildeo se exauriu mas diria que a teologia moderna expressou a soberba progressista proacutepria do Iluminismo e se esqueceu da importacircncia do aprendizado com a comunidade cristatilde atraveacutes dos seacuteculos Outro exemplo de discordacircncia acontece quando eles impotildeem a John Owen categorias ndash de ldquoautoridaderdquo e ldquounccedilatildeordquo ndash que natildeo estatildeo na obra do puritano (v 68) Embora natildeo seja errado criarmos categorias para explicar o pensamento de autores do passado creio que as categorias utilizadas por Allen e Swain natildeo satildeo as mais precisas jaacute que autoridade e unccedilatildeo satildeo termos que possuem certo grau de sobreposiccedilatildeo

Mesmo com essas observaccedilotildees criacuteticas tangenciais minha avaliaccedilatildeo em nada desmerece a contribuiccedilatildeo tatildeo necessaacuteria que esses teoacutelogos trazem para a tradiccedilatildeo reformada contemporacircnea como um todo e mais especificamente ao cenaacuterio teoloacutegico protestante no Brasil Fariacuteamos bem em ouvir esse manifesto e buscar fontes passadas de nossa tradiccedilatildeo para estimular continuidade credal que promove comunhatildeo intergeracional Aleacutem de seu conteuacutedo precioso a Editora Monergismo fez um excelente trabalho editorial (traduccedilatildeo formataccedilatildeo) e produziu uma capa muito mais bonita que a original

131

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 131-135

RESENHAWendell Gonzaga da Paixatildeo

EDGAR W Francis Schaeffer e a vida cristatilde a espiritualidade con-tracultural Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2018 224 pp

William Edgar eacute professor de apologeacutetica no Westminster Theological Seminary em Filadeacutelfia Obteve o bacharelado em muacutesica da Harvard Uni-versity em 1966 o grau de M Div do Westminster Theological Seminary em 1969 e o PhD em teologia da Universiteacute de Genegraveve na Suiacuteccedila em 19931 Teve um privileacutegio que poucos tiveram pois conviveu e trabalhou com Francis Schaeffer no LrsquoAbri Fellowship e estudou com Cornelius Van Til no Westminster Theological Seminary Ateacute onde pude pesquisar aleacutem desse livro que estamos resenhando William Edgar tem ainda os seguintes mate-riais traduzidos para o portuguecircs o livro Razotildees do Coraccedilatildeo2 e trecircs ensaios publicados em 20113 e 20174

O livro Francis Schaeffer e a Vida Cristatilde A Espiritualidade Contra-cultural encontra-se dividido de uma maneira um pouco incomum Apoacutes o

O autor eacute bacharel em Teologia pelo Seminaacuterio Presbiteriano do Norte e poacutes-graduado em Teologia Pastoral tambeacutem pelo SPN Estaacute cursando o Mestrado em Teologia com ecircnfase em Teologia Filosoacutefica no CPAJ Conclui neste ano o curso de licenciatura em Filosofia pela UNICAP

1 Disponiacutevel em httpsfacultywtsedufacultyedgar Acesso em 6 ago 20202 EDGAR William Razotildees do coraccedilatildeo reconquistando a persuasatildeo Cristatilde Brasiacutelia Ministeacuterios

Refuacutegio 1996 3 EDGAR William ldquoA luz de Schleiermacher na restauraccedilatildeo da Franccedila os precedentes de Samuel

Vincent e Merle DrsquoAubigneacuterdquo In LILLBACK Peter A (Org) O calvinismo na praacutetica uma introduccedilatildeo agrave heranccedila reformada e presbiteriana Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011 p 217-234

4 EDGAR William ldquoAs artes e a tradiccedilatildeo reformadardquo In HALL David W PADGETT Marvin (Orgs) Calvino e a cultura Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2017 p 58-84 Idem ldquoDois guerreiros cristatildeos uma comparaccedilatildeo entre Cornelius Van Til e Francis Schaefferrdquo In ARAUacuteJO NETO Felipe Sabino de (Org) Coram Deo a vida perante Deus ensaios em honra a Wadislau Gomes Brasiacutelia Monergismo 2017 p 801-832

FRANCIS SCHAEFFER E A VIDA CRISTAtilde A ESPIRITUALIDADE CONTRACULTURAL

132

primeiro capiacutetulo os demais estatildeo inseridos dentro de trecircs partes A primeira parte tem por tiacutetulo ldquoO homem e seu tempordquo e conteacutem os capiacutetulos dois e trecircs A segunda tem por tiacutetulo ldquoVerdadeira espiritualidaderdquo e conteacutem os capiacutetulos quatro a seis A terceira tem por tiacutetulo ldquoConfiando em Deus para tudo na vidardquo e vai dos capiacutetulos sete ao dez O livro ainda conteacutem um posfaacutecio

Diferentemente de outras biografias de Schaeffer este livro tem como diferencial dois aspectos importantes Em primeiro lugar ele explora com certo niacutevel de profundidade algo diferenciado do LrsquoAbri ndash ldquoa sua mais importante razatildeo de ser ou seja a espiritualidade cristatilderdquo (p 14) Em segundo lugar ainda muito jovem Willian Edgar conheceu Schaeffer Nas suas proacuteprias palavras ldquoVisto que tive o privileacutegio de testemunhar pessoalmente muitos dos temas e personalidades relacionadas com Francis Schaeffer e LrsquoAbri comecei e terminei a narrativa com alguns fatos que envolvem a minha proacutepria narra-tivardquo (p 14) Isso jaacute torna o livro bastante envolvente e com uma narrativa bastante peculiar

O primeiro capiacutetulo tem por tiacutetulo ldquoUma introduccedilatildeo pessoal a Francis Schaefferrdquo Aqui William Edgar nos apresenta como de maneira comovente conheceu Schaeffer em LrsquoAbri William Edgar chegou ao LrsquoAbri com 19 anos e como um descrente poreacutem diz que ldquoem menos de 24 horas depois da minha chegada em LrsquoAbri minha vida tinha virado de cabeccedila para baixo completa-menterdquo (p 24) Posteriormente Schaeffer se tornou natildeo soacute um mentor mas um amigo

O segundo capiacutetulo tem por tiacutetulo ldquoA jornada para o LrsquoAbrirdquo Aqui William Edgar mostra fatos importantes na vida de Francis Schaeffer que incluem o seu nascimento (p 42-43) conversatildeo (p 43-44) formaccedilatildeo superior (p 44-49) casamento (p 45) nascimentos das filhas ainda nos Estados Unidos (p 49 50 51) pastorado e ida para Suiacuteccedila momento de crise nascimento do filho (p 58) e finalmente como se deu a expulsatildeo dos Schaeffers do cantatildeo de Valais (p 60)

O terceiro capiacutetulo tem por tiacutetulo ldquoLrsquoAbri e aleacutemrdquo Nele William Edgar narra a histoacuteria desde a chegada dos Schaeffers em Hueacutemoz (p 65) e tambeacutem apresenta a contribuiccedilatildeo de Schaeffer para a criaccedilatildeo de um jargatildeo teoloacutegico proacuteprio (p 70-71) Por fim faz uma bela apresentaccedilatildeo dos vaacuterios livros escritos por Schaeffer

O quarto capiacutetulo tem por tiacutetulo ldquoFundamentosrdquo Nesse capiacutetulo nos satildeo apresentados ldquoos pontos de vista de Francis Schaeffer sobre a vida cristatilderdquo (p 87) O objetivo de William Edgar eacute tratar de forma panoracircmica temas que satildeo muito caros ao pensamento de Schaeffer tais como ldquoFundamentos do Evangelhordquo (p 89) ldquoA autoridade da Verdaderdquo (p 91) a ldquoEspiritualidade da cosmovisatildeordquo (p 94) e por fim ldquoOs contornos da realidaderdquo Essa parte merece ser lida com bastante apreccedilo principalmente por aqueles que insistem em apre-sentar uma apologeacutetica agressiva Schaeffer valorizava tanto a ortodoxia como

133

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 131-135

a ortopraxia No dizer de William Edgar Schaeffer iraacute ldquoenfatizar a necessidade de doutrina soacutelida juntamente com a praacutetica soacutelida A primeira lsquorealidadersquo eacute a satilde doutrina O segundo lsquoconteuacutedorsquo eacute respostas honestas a perguntas honestasrdquo (p 101) Em outras palavras o cristatildeo deveraacute demonstrar uma ldquoespiritualidade verdadeirardquo e a ldquobeleza das relaccedilotildees humanasrdquo

O quinto capiacutetulo tem por tiacutetulo ldquoLiberdade na vida cristatilderdquo Este capiacutetulo tem como alvo analisar a primeira parte do livro Verdadeira Espiritualidade William Edgar apresenta a contribuiccedilatildeo de Schaeffer na anaacutelise que nos permite detectar se estamos cobiccedilando Segundo ele Schaeffer apresenta dois testes O primeiro faz referecircncia a Deus no tocante ao contentamento que temos nele Pois ldquose eu amo a Deus o suficiente para estar contente entatildeo eu estou sendo adequadamente espiritualrdquo (p 105) O segundo teste por sua vez tem uma relaccedilatildeo com o meu proacuteximo ldquoseraacute que eu amo o meu proacuteximo o suficiente para natildeo o invejarrdquo (p 106) Nesse capiacutetulo ainda satildeo elencados temas sobre a vida cristatilde no que se refere ao aspecto passivo e ativo

O sexto capiacutetulo tem por tiacutetulo ldquoAplicaccedilotildeesrdquo O seu principal objetivo eacute analisar a segunda parte do livro Verdadeira Espiritualidade Aqui eacute apresentado um ponto de controveacutersia pois ldquoSchaeffer coloca o mundo do pensamento no centro da vida cristatilderdquo (p 119) William Edgar discorda do seu mentor e diz que ldquocertamente a ideia biacuteblica do coraccedilatildeo eacute mais rica do que a mente e seus pensamentos (embora ela inclua a mente)rdquo (p 119) Satildeo abordados outros temas mas sem discordacircncia entre o autor e Schaeffer

O seacutetimo capiacutetulo tem por tema ldquoOraccedilatildeo e Orientaccedilatildeordquo William Edgar oferece uma apresentaccedilatildeo rica em detalhes sobre a abordagem de Schaeffer acerca da oraccedilatildeo ldquoEmbora Francis Schaeffer natildeo tenha deixado um legado de extensos escritos sobre o tema oraccedilatildeo ele pregou pelo menos um conjun-to bastante completo de mensagens sobre o assuntordquo (p 137) Sobre o tema orientaccedilatildeo William Edgar afirma que se no tema oraccedilatildeo Schaeffer natildeo nos deixou um legado extenso muito menos deixou sobre o tema orientaccedilatildeo Algo interessante eacute que ldquoEdith foi mais proliacutefica do que Fran na abordagem da orientaccedilatildeordquo (p 142)

ldquoUma das oraccedilotildees constantes de Edith era que o Senhor deixasse claro o que ela devia fazer em uma determinada situaccedilatildeo ndash em outras palavras que o Senhor a guiasserdquo (p 142) William Edgar demonstra por meio do caso da poliomielite do filho do casal como se dava na praacutetica essa busca da orientaccedilatildeo do Senhor

O capiacutetulo oito tem por tema ldquoAfliccedilatildeordquo Novamente Edith se destaca na abordagem do assunto pois foi ela ldquoquem mais escreveu extensivamente sobre sofrimento enquanto o material de Fran reflete de passagem ou o aborda mais filosoficamente e em grande profundidade quando trata do problema do malrdquo (p 147)

FRANCIS SCHAEFFER E A VIDA CRISTAtilde A ESPIRITUALIDADE CONTRACULTURAL

134

ldquoO livro Affliction5 de Edith representa o auge de seus pontos de vista sobre o sofrimentordquo (p 147) William Edgar tambeacutem mostra que concernente ao problema do mal Schaeffer tem uma abordagem proacutexima daquela de Van Til ldquoDe uma maneira sugestiva de Cornelius Van Til Schaeffer afirma que existem realmente apenas duas explicaccedilotildees possiacuteveis para o problema do malrdquo (p 151) ou seja uma causa metafiacutesica e outra eacutetica

O capiacutetulo nove tem por tema ldquoVida na igrejardquo Nesse capiacutetulo aparecem dois assuntos controversos na apresentaccedilatildeo que Wiliam Edgar faz dos escritos de Schaeffer O primeiro assunto controverso tem a ver com a seguinte de-claraccedilatildeo do personagem registrada por Edgar ldquoO mundo atual tem o direito de julgar se nossa feacute cristatilde eacute autecircntica Pode julgar com base em nosso amor muacutetuordquo (p 161) Cornelius Van Til vai discordar veementemente de Francis Schaeffer acerca dessa declaraccedilatildeo6 O segundo ponto controvertido eacute sobre pedir perdatildeo Schaeffer diz que ldquonatildeo precisamos esperar a outra pessoa dar o primeiro passo Devemos ter um espiacuterito de perdatildeo de qualquer maneirardquo (p 162) William Edgar aceita tal posiccedilatildeo embora reconheccedila que essa abor-dagem natildeo eacute aceita por todos os teoacutelogos reformados7 No fim do capiacutetulo satildeo apresentadas oito ldquonormas estruturais que governam a igreja visiacutevel (p 173 174) Por fim embora William Edgar jaacute tenha falado sobre a igreja fundada por Schaeffer (p 59 60) agora vai aprofundar o surgimento e como se daacute a vivecircncia na International Presbyterian Church (p 175)

Finalmente chegamos ao uacuteltimo capiacutetulo O capiacutetulo dez tem por tiacutetulo ldquoEngajando o mundordquo Nele encontramos uma espeacutecie de panorama dos temas que Schaeffer trabalhou em diversas obras Contudo novamente queremos destacar algo que William Edgar diz sobre Schaeffer Segundo ele Schaeffer ldquoconcorda que os filoacutesofos natildeo cristatildeos desde os gregos ateacute pouco antes da modernidade tinham trecircs coisas em comum o racionalismo o respeito pela racionalidade e o otimismordquo (p 191)8 Aqui Schaeffer parece ser um tanto ingecircnuo em acreditar que os filoacutesofos do passado foram bem-sucedidos na apresentaccedilatildeo de um campo de conhecimento unificado Por isso que ldquoVan Til

5 Esse livro foi lanccedilado em 2019 pela Editora Monergismo SCHAEFFER Edith Afliccedilatildeo um olhar compassivo sobre a realidade da dor e do sofrimento Brasiacutelia Monergismo 2019 344 p

6 VAN TIL Cornelius The apologetic methodology of Francis Schaeffer Westminster Theological Seminary 1974 p 48s

7 Jay Adams discorda desse ponto de vista de Schaeffer e de William Edgar Ver ADAMS Jay De perdoado a perdoador aprendendo a perdoar uns aos outros da forma de Deus Brasiacutelia Monergismo 2015 220 p

8 Para mais informaccedilotildees sobre como Schaeffer aborda o assunto ver SCHAEFFER F Como viveremos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2003 p 96s

135

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 131-135

o acusa de natildeo reconhecer a dialeacutetica perpeacutetua do pensamento racionalistairracionalista em cada eacutepocardquo (p 191)9

Finalizamos afirmando que William Edgar fez um beliacutessimo trabalho oferecendo-nos grande riqueza de detalhes uma vez que foi testemunha ocu-lar de muitas coisas que aqui estatildeo registradas A traduccedilatildeo de Neuza Batista da Silva foi muito eficiente natildeo nos deixando em duacutevida sobre o sentido das frases O livro tambeacutem possui uma diagramaccedilatildeo bem-feita proporcionado uma leitura apraziacutevel

A Editora Cultura Cristatilde estaacute de parabeacutens pelo excelente trabalho Que-remos recomendaacute-lo para todo estudante interessado em apologeacutetica e anaacutelise cultural Certamente faratildeo bem em lecirc-lo Essa obra tambeacutem seraacute de grande ajuda para os iniciantes nos estudos acerca da vida de Francis Schaeffer Contudo ateacute mesmo os mais experientes poderatildeo se beneficiar da riqueza de detalhes oferecida pelo autor A ediccedilatildeo eacute apresentada sob o selo ldquoSeacuterie Teoacutelogos e a Vida Cristatilderdquo que jaacute conta com outros volumes em portuguecircs

9 Para mais informaccedilotildees ver VAN TIL Cornelius The apologetic methodology of Francis Schaeffer Westminster Theological Seminary 1974 p 39ss

137

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 137-141

RESENHANorval da Silva

HORSLEY Richard A Jesus e o impeacuterio o Reino de Deus e a nova desordem mundial Satildeo Paulo Paulus 2014 177 p

Atualmente haacute muitas perspectivas quando se tenta fazer uma anaacutelise de quem foi Jesus e de suas ecircnfases e propoacutesitos No livro Jesus e o Impeacuterio O Reino de Deus e a Nova Desordem Mundial da editora Paulus Richard Horsley faz uso dos estudos socioloacutegicos como paracircmetro de anaacutelise da vida e dos ensinos de Jesus

Horsley eacute conhecido por sua abordagem social das Escrituras Ele foi professor de artes liberais e religiatildeo na Universidade de Massachusetts em Boston ateacute sua aposentadoria em 2007 Aleacutem do livro ora resenhado eacute tambeacutem autor de Jesus e a Espiral da Violencia da mesma editora

O livro Jesus e o Impeacuterio estaacute dividido em cinco capiacutetulos Poreacutem o leitor natildeo deve saltar a introduccedilatildeo Laacute jaacute podemos perceber a linha adotada pelo autor e sua intenccedilatildeo qual seja desconstruir a ideia tradicional que se tem do Jesus histoacuterico Do iniacutecio ao fim sua hermenecircutica eacute conduzida pelo pensamento ideoloacutegico de que Jesus foi um libertador agrave moda dos libertado-res campesinos cansados de pagar impostos aos tiranos que arrebanhou um grupo de camponeses e produziu uma revoluccedilatildeo para reverter a ordem social

De certa forma Horsley atribui aos americanos a leitura tradicional de um Jesus completamente religioso e que natildeo se envolve nas questotildees poliacuteti-cas e sociais A identidade ambiacutegua dos Estados Unidos poreacutem foi sacudida apoacutes o evento de 11 de setembro e segundo o autor jaacute natildeo se pode mais ldquoficar com essas representaccedilotildees domesticadas de Jesusrdquo (p 9) Para ele a naccedilatildeo judaica como um todo reagiu agrave ocupaccedilatildeo romana e seria muito difiacutecil

Mestre em exegese biacuteblica e linguiacutestica pelo Dallas Theological Seminary Tradutor do Novo Testamento para uma liacutengua indiacutegena pela Agecircncia Presbiteriana de Missotildees Transculturais (APMT) Aluno do STM-NT no CPAJ

JESUS E O IMPEacuteRIO O REINO DE DEUS E A NOVA DESORDEM MUNDIAL

138

imaginar um Jesus alheio agraves accedilotildees do seu proacuteprio povo Segundo o autor haacute quatro pressupostos que contribuem para uma anaacutelise do Jesus despolitizado (1) O pressuposto ocidental de que a religiatildeo estaacute separada da poliacutetica e da economia (2) A religiatildeo eacute uma esfera separada e pertence ao indiviacuteduo (3) A orientaccedilatildeo cientiacutefica dos acadecircmicos (4) Inteacuterpretes eliminaram falas de Jesus considerando inautecircntico tudo o que parecesse embaraccediloso Ele entatildeo conclui que esses pressupostos satildeo equivocados e revelam uma cosmovisatildeo ocidental e moderna longe da realidade cultural e histoacuterica do Oriente Meacutedio Esses pressupostos satildeo poreacutem indefensaacuteveis quando se trata da pesquisa e reconstruccedilatildeo histoacutericas (p 10) O autor defende a necessidade de que se olhe para Jesus a partir do contexto social poliacutetico e econocircmico da eacutepoca Ele afirma que ldquose queremos compreender o Jesus histoacuterico num contexto histoacuterico mais completo e adequado precisamos sem duacutevida conceber uma abordagem mais abrangente e relacionalrdquo (p 15-16)

Ao afirmar ldquoBaseados num levantamento dos vaacuterios movimentos de resistecircncia entre os galileus e os judeus podemos comeccedilar a suspeitar que Jesus natildeo era uma figura absolutamente rarardquo (p 16) o autor prepara o terreno para o que seraacute de fato a sua visatildeo e metodologia Para saber quem Jesus era natildeo devemos olhar para Jesus propriamente mas para o contexto em que ele viveu E aqui se encontra o primeiro perigo pois Horsley comete o mesmo equiacutevoco em que acusa os outros de terem caiacutedo ou seja deixar que o contexto em si determine o sentido das coisas A loacutegica eacute mais ou menos a seguinte se Jesus viveu em uma palestina ocupada onde a rebeliatildeo e insurgecircncia contra o impeacuterio eram as marcas do povo judeu especialmente dos galileus ele deve ter agido da mesma forma Ele deve ter sido um guerrilheiro e revolucionaacuterio Com esse pressuposto agrave matildeo tudo o que Jesus disser teraacute que passar pelo filtro desse pensamento Assim o contexto eacute absoluto e o texto apenas um pretexto para o que se quer entender

O capiacutetulo 1 trata do surgimento e expansatildeo do Impeacuterio Romano Eacute uma anaacutelise de como a pequena vila fundada por Rocircmulo e Remo se tornou um grande impeacuterio derrotando impeacuterios anteriores Na visatildeo do autor o que moti-vou o impeacuterio natildeo foi apenas o domiacutenio militar e poliacutetico em si mas a questatildeo econocircmica ou seja dominar os outros para se beneficiar economicamente Assim surgiu o populismo democraacutetico (p 23) uma nova forma de imperia-lismo Essa nova ordem mundial que favorecia os romanos trazia desordem e miseacuteria para os povos dominados (p 24) A conquista sempre implicava em devastaccedilatildeo do interior queima de aldeias pilhagem de cidades morticiacutenio e escravidatildeo da populaccedilatildeo Para manter os povos dominados cativos os impe-rialistas usavam o terrorismo e a barbaacuterie com execuccedilotildees puacuteblicas de qualquer um que se levantasse contra o impeacuterio

O capiacutetulo 2 eacute uma anaacutelise das constantes revoltas perpetradas pelos gali-leus e judeus contra o imperialismo romano Segundo o autor esses dois povos

139

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 137-141

se destacavam entre os subjugados por sua rebeldia Houve quatro revoltas principais A primeira quando Herodes foi designado rei pelo impeacuterio em 40 aC Muitos natildeo o aceitaram e lanccedilavam ataques de guerrilha que duraram trecircs anos A segunda foi em 4 dC no final do governo de Herodes Durante a Paacutescoa ecoaram protestos em Jerusaleacutem que produziram revoltas na zona rural e demais regiotildees da Palestina A terceira foi a revolta generalizada de 66 d C Na ocasiatildeo a populaccedilatildeo atacou sumos sacerdotes e suas mansotildees Essas accedilotildees culminaram com a destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem e do templo em 70 dC Por fim mesmo apoacutes a destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem revoltas e insurreiccedilotildees continuaram pelas matildeos de Simatildeo bar Kokhba sessenta anos mais tarde (132-135 dC)

No capiacutetulo 3 o autor chega de fato agrave sua tese principal se considerarmos o contexto em que o Jesus histoacuterico viveu traccedilaremos um quadro bem diferente de quem ele eacute e do que ensinou O autor inicia o capiacutetulo fazendo uma criacutetica aos estudos tradicionais do Jesus histoacuterico por buscarem analisar Jesus com base apenas em seus ditos uma vez que os ditos satildeo fragmentos artificiais que natildeo podem se constituir em unidades de comunicaccedilatildeo (p 64) Ele tem razatildeo ao afirmar que precisamos do contexto em que os ditos foram proferidos para entendermos a real significaccedilatildeo do que foi dito O restante do capiacutetulo eacute uma apresentaccedilatildeo de aspectos desse contexto histoacuterico que satildeo relevantes ao processo interpretativo do Jesus histoacuterico nos evangelhos Por exemplo havia divisotildees de classes De um lado a elite composta por governantes romanos e sacerdotes do outro o povo Outro exemplo seriam as formas sociais de vida moradia em aldeias e cidades vida comunitaacuteria e agraacuteria etc O autor conclui que considerando a natureza da comunicaccedilatildeo e analisando os evangelhos com base nessa natureza devemos imaginar o texto como enriquecido de sentido contextual pleno e objetivo para comunidades especiacuteficas de fala hebraica Para ele por exemplo o Evangelho de Marcos foi escrito para demonstrar aos cristatildeos como Jesus estabeleceu o Reino de Deus e se insurgiu contra o Impeacuterio Romano ao propor a renovaccedilatildeo de Israel (p 85)

O capiacutetulo 4 eacute o desenvolvimento da tese mencionada Segundo o autor ao anunciar a renovaccedilatildeo de Israel Jesus pronuncia a sentenccedila sobre o impeacute-rio e sobre a lideranccedila religiosa de Israel Aqui algumas de suas afirmaccedilotildees satildeo exageradas e sua hermenecircutica duvidosa Ao analisar por exemplo a expressatildeo ldquofilhos do Reinordquo ele considera como uma referecircncia aos liacutederes judaicos o que me parece ser uma interpretaccedilatildeo conveniente uma vez que uma melhor opccedilatildeo contextual seria considerar como referecircncia agrave naccedilatildeo de Israel de forma geral ou pelo menos agravequeles que rejeitavam Jesus como Messias independentemente de serem parte da lideranccedila religiosa ou natildeo Segundo ele Mateus e Lucas de fato usam a expressatildeo para se referir agrave naccedilatildeo como um todo mas isso se deu somente apoacutes a destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem A fonte original usada por Mateus e Lucas o hipoteacutetico documento Q natildeo trazia essa perspectiva Natildeo creio que haja duacutevida da parte de qualquer estudioso de que

JESUS E O IMPEacuteRIO O REINO DE DEUS E A NOVA DESORDEM MUNDIAL

140

Jesus se contrapocircs aos liacutederes de Israel Os textos demonstram isso Mas daiacute a afirmar que denunciar essa lideranccedila e promover uma revoluccedilatildeo social dos pobres era o propoacutesito final de Jesus haacute uma longa distacircncia

Ainda outro caso curioso eacute sua anaacutelise da resposta de Jesus agrave pergunta se era liacutecito pagar imposto a Ceacutesar Segundo o autor todo mundo que ouviu a resposta de Jesus entendeu que sua resposta era ldquonatildeo natildeo se deve pagar imposto a Ceacutesarrdquo Ora segundo o proacuteprio autor os fariseus eram os que defendiam essa tese Entatildeo se a resposta de Jesus confirmava a tese dos fariseus por que cargas drsquoaacutegua esse segmento fez oposiccedilatildeo tatildeo ferrenha a Jesus O natural seria interpretar que eles considerariam Jesus um aliado Mais estranha ainda eacute a sua intepretaccedilatildeo de que os exorcismos praticados por Jesus eram uma forma de derrotar o Impeacuterio Romano (ver p 108)

Outra intepretaccedilatildeo natildeo menos estranha eacute a sua anaacutelise do episoacutedio dos democircnios que entraram nos porcos e consequentemente se precipitaram no mar em Marcos 5 Para ele como o nome dos democircnios era ldquolegiatildeordquo isso significava a derrota dos soldados romanos por Jesus E mais que as pessoas que presenciaram o fato se lembrariam do episoacutedio do Mar Vermelho quando os exeacutercitos de Faraoacute submergiram sob o poder de Deus Muito estranha essa anaacutelise para dizer o miacutenimo

O quinto e uacuteltimo capiacutetulo trata do conceito de alianccedila e o ideal de vida em comunidade e cooperaccedilatildeo Segundo o autor a populaccedilatildeo estava oprimida sobrecarregada de diacutevidas e as formas sociais fundamentais da famiacutelia e da sociedade se desintegravam Ele insiste que as possessotildees demoniacuteacas eram representaccedilotildees da opressatildeo romana e que ao expulsar esses democircnios Jesus estava expulsando os romanos e suas ldquolegiotildeesrdquo da terra de Israel Para ele cada histoacuteria de cura natildeo era uma cura individual mas cura social das comunidades subsequentes (p 120) O povo precisava ser renovado E para essa renovaccedilatildeo segundo o autor a cooperaccedilatildeo comunitaacuteria era a chave Por fim essa renovaccedilatildeo comunitaacuteria passa obrigatoriamente pela resoluccedilatildeo de conflitos econocircmicos e sociais da comunidade Aqui o leitor perceberaacute uma linguagem muito se-melhante agrave dos proponentes da Teologia da Libertaccedilatildeo Em momento algum o autor aborda a necessidade do povo de Israel como sendo espiritual Para ele o problema do povo natildeo eacute com Deus e sim com as estruturas opressoras Pecado se haacute eacute pecado em esfera totalmente social e foi para isso que Jesus veio para libertar o povo simples da opressatildeo para fazer uma revoluccedilatildeo social Isso fica evidente quando ele afirma que a promessa de Jesus ldquoe no futuro a vida eternardquo eacute uma observaccedilatildeo sem importacircncia (ver p 135)

Uma observaccedilatildeo necessaacuteria a se fazer eacute quanto agrave hermenecircutica do autor e seus pressupostos Como para ele os aspectos sociais e econocircmicos satildeo os problemas reais da naccedilatildeo de Israel toda a leitura que ele faz dos evangelhos natildeo apenas eacute influenciada por esses pressupostos mas determinada por eles Ele se tornou prisioneiro de sua cosmovisatildeo O texto natildeo o desafia corrige

141

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 137-141

ou questiona como deveria fazer em um processo hermenecircutico normal Eacute fato que todos noacutes nos aproximamos do texto com pressupostos Poreacutem ateacute que ponto esses pressupostos determinam o sentido intentado pelo autor eacute algo com que precisamos ter cuidado

ExcElecircncia E PiEdadE a SErviccedilo do rEino dE dEuS

CENTRO PRESBITERIANO DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO ANDREW JUMPERVenha estudar conosco

Cursos modulares corpo docente poacutes-graduado convecircnio com instituiccedilotildees internacionais bi-blioteca teoloacutegica com mais de 40000 volumes acervo bibliograacutefico atualizado e informatizado

Educaccedilatildeo agrave distacircncia (Ead)Cursos anuais totalmente online que visam agrave instruccedilatildeo e ao aperfeiccediloamento biacuteblico-teoloacutegico de pastores e crentes que possuam graduaccedilatildeo em qualquer aacuterea Satildeo eles Estudos em Teologia Sistemaacutetica Estudos em Teologia Biacuteblica Estudos em Teologia Aplicada e Estudos em Missotildees

REvitalizaccedilatildeo E Multiplicaccedilatildeo dE igREjas (RMi)O RMI objetiva capacitar pastores e liacutederes na conduccedilatildeo do processo de restauraccedilatildeo do mi-nisteacuterio pastoral da oraccedilatildeo e da expansatildeo da igreja por meio de missotildees usando ferramentas biacuteblico-teoloacutegicas e de outras aacutereas das ciecircncias

EspEcializaccedilatildeo EM Educaccedilatildeo cRistatilde (EEc)O programa de especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Cristatilde eacute destinado a pais pastores professores e demais interessados em educaccedilatildeo eclesiaacutestica ou escolar Seu principal objetivo eacute promover uma reflexatildeo a respeito da dimensatildeo pedagoacutegica a partir dos pressupostos cristatildeos e oferecer ferramentas para o exerciacutecio intencional e planejado da atividade educacional a partir desses pressupostos

Ma lEadERship in chRistian Education (MaE)Este programa eacute um mestrado semipresencial biliacutengue (portuguecircsinglecircs) ministrado em par-ceria com o Gordon College (Boston EUA) Eacute dirigido agrave educaccedilatildeo escolar cristatilde com ecircnfase em lideranccedila compreendendo a gestatildeo escolar e suas bases conceituais Uacutetil para a lideranccedila e gestatildeo de Departamentos de Educaccedilatildeo Cristatilde em igrejas bem como para seminaacuterios institutos biacuteblicos e outras instituiccedilotildees teoloacutegicas

MEstRado EM divindadE (Magister Divinitatis ndash Mdiv)Trata-se do mestrado eclesiaacutestico do CPAJ Eacute anaacutelogo aos jaacute tradicionais mestrados profissio-nalizantes diferindo entretanto do Master of Divinity norte-americano apenas no fato de que natildeo constitui e nem pretende oferecer a formaccedilatildeo baacutesica para o ministeacuterio pastoral Oferece uma visatildeo geral das grandes aacutereas do conhecimento teoloacutegico Natildeo eacute submetido agrave avaliaccedilatildeo e natildeo possui credenciamento da CAPES

MEstRado EM tEologia (sacrae theologiae Magister ndash stM)Esse mestrado acadecircmico difere do Magister Divinitatis por sua ecircnfase na pesquisa e sua har-monizaccedilatildeo com os mestrados acadecircmicos em teologia oferecidos em universidades e escolas de teologia internacionais Eacute oferecido para aqueles que possuem o MDiv ou graduaccedilatildeo em Teologia e mestrado em qualquer aacuterea Natildeo eacute submetido agrave avaliaccedilatildeo e natildeo possui credenciamento da CAPES

doutoRado EM MinisteacuteRio (dMin)Curso oferecido em parceria com o Reformed Theological Seminary (RTS) de Jackson Mis-sissippi O programa possui o reconhecimento da JETIPB e da Association of Theological Schools (ATS) nos Estados Unidos O corpo docente inclui acadecircmicos brasileiros americanos e de outras nacionalidades com soacutelida formaccedilatildeo em suas respectivas aacutereas

Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper Rua Maria Borba 4044 ndash Vila Buarque ndash Satildeo Paulo ndash SP ndash Brasil ndash CEP 01221-040

Telefone +55 (11) 2114-86448759 ndash atendimentocpajmackenziebr cpajmackenziebr ndash httpswwwfacebookcomcppaj

Editoraccedilatildeo eletrocircnicaLibro Comunicaccedilatildeo

This periodical is indexed in the ATLA Religion Database published by the American Theological Library Association 250 S Wacker Dr 16th Flr Chicago IL 60606 USA

e-mail atlaatlacom wwwatlacomFides Reformata tambeacutem estaacute incluiacuteda nas seguintes bases indexadoras

CLASE (wwwdgbibliounammxclasehtml) Latindex (www latindexunammx) Francis (wwwinistfrbbdphp) Ulrichrsquos International Periodicals Directory

(wwwulrichswebcomulrichsweb) e Fuente Academica da EBSCO (wwwepnetcomthisTopicphpmarketID=1amptopicID=71)

Editores GeraisDaniel Santos Juacutenior

Dario de Araujo Cardoso

Editor de resenhasFilipe Costa Fontes

RedatorAlderi Souza de Matos

EditoraccedilatildeoLibro Comunicaccedilatildeo

CapaRubens Lima

Fides reformata ndash v 1 n 1 (1996) ndash Satildeo Paulo Editora Mackenzie 1996 ndash

Semestral ISSN 1517-5863

1 Teologia 2 Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper

CDD 2912

INSTITUTO PRESBITERIANO MACKENZIEDiretor-Presidente Milton Flaacutevio Moura

CENTRO PRESBITERIANO DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO ANDREW JUMPERDiretor Mauro Fernando Meister

Volume XXVI Volume XXVI middotmiddot Nuacutemero 1 Nuacutemero 1 middotmiddot 2021 2021

Igreja Presbiteriana do BrasilJunta de Educaccedilatildeo Teoloacutegica

Instituto Presbiteriano Mackenzie

CONSELHO EDITORIALAugustus Nicodemus Lopes

Davi Charles GomesHeber Carlos de Campos

Heber Carlos de Campos JuacuteniorJedeiacuteas de Almeida Duarte

Joatildeo Paulo Thomaz de AquinoMauro Fernando MeisterValdeci da Silva Santos

A revista Fides Reformata eacute uma publicaccedilatildeo semestral doCentro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper

Os pontos de vista expressos nesta revista refletem os juiacutezos pessoais dos autores natildeo representando necessariamente a posiccedilatildeo do Conselho Editorial Os direitos de publicaccedilatildeo

desta revista satildeo do Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper

Permite-se reproduccedilatildeo desde que citada a fonte e o autor

Pede-se permutaWe request exchange On demande lrsquoeacutechange Wir erbitten Austausch

Se solicita canje Si chiede lo scambio

ENDERECcedilO PARA CORRESPONDEcircNCIARevista Fides Reformata

Rua Maria Borba 4044 ndash Vila BuarqueSatildeo Paulo ndash SP ndash 01221-040

Tel (11) 2114-8644E-mail atendimentocpajmackenziebr

ENDERECcedilO PARA PERMUTAInstituto Presbiteriano Mackenzie

Rua da Consolaccedilatildeo 896Preacutedio 2 ndash Biblioteca CentralSatildeo Paulo ndash SP ndash 01302-907

Tel (11) 2114-8302E-mail bibliopermackenziecombr

EDITORIAL

Eacute com satisfaccedilatildeo que apresentamos aos nossos leitores o volume XXVI no 1 da revista Fides Reformata dando continuidade a mais de duas deacutecadas de contribuiccedilatildeo ininterrupta agrave pesquisa teoloacutegica na Ameacuterica Latina Nos uacuteltimos anos a publicaccedilatildeo de artigos em inglecircs tem ampliado a contribuiccedilatildeo de Fides tambeacutem no cenaacuterio mundial Conheccedila todo esse acervo em formato eletrocircnico no site oficial do Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper e em bancos de dados como ATLA Serials e Fuente Academica

Nesta ediccedilatildeo o primeiro artigo de autoria do Dr Leandro de Lima ldquoO chamado para o martiacuterio em Apocalipse as sete igrejas da Aacutesiardquo nos desafia a refletir sobre o niacutevel de perseguiccedilatildeo que os leitores originais do livro de Apo-calipse enfrentavam em seus dias Segundo o autor a situaccedilatildeo ainda natildeo era extrema mas os cristatildeos jaacute comeccedilavam a demonstrar sinais de acomodaccedilatildeo agrave cultura vigente para tentar manter os benefiacutecios da paz Dessa forma o livro de Apocalipse cumpre seu papel de confrontar tal acomodaccedilatildeo

No segundo artigo pelo professor Solano Portela ldquoDesconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo o poacutes-modernismo da teologia da esperanccedila agrave teologia da nova era e seus reflexos no campo educacionalrdquo o autor demonstra que o tema subjacente de desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo de pontos fundamentais com um progressivo desvio dos direcionamentos biacuteblicos estaacute sempre presente na teologia modernacontemporacircnea Segundo ele as tendecircncias que aparecem nessas reflexotildees teoloacutegicas satildeo similares ao que se observa no campo da edu-caccedilatildeo e algumas delas impactam profundamente o processo cristatildeo de ensino--aprendizagem O desafio feito pelo autor eacute para que um soacutelido alicerce biacuteblico venha a fundamentar qualquer filosofia de educaccedilatildeo escolar cristatilde

O terceiro artigo pelo professor Heber Carlos de Campos Juacutenior ldquolsquoCor meum tibi offero Domine prompte et sincerersquo um ensaio introdutoacuterio sobre espiritualidade reformadardquo apresenta a espiritualidade reformada como uma aacuterea ainda desconhecida em meios populares e acadecircmicos e carente de ser redescoberta No intuito de resgatar o aspecto piedoso e devocional da tradiccedilatildeo reformada seu artigo apresenta uma introduccedilatildeo agrave teologia praacutetica de perso-nagens como Joatildeo Calvino os puritanos ingleses o movimento reformado holandecircs ldquoNadere Reformatierdquo e Jonathan Edwards aleacutem de representantes contemporacircneos da piedade reformada

O quarto artigo por Paulo Eduardo Vieira da Veiga ldquoAs implicaccedilotildees missioloacutegicas do triunfo de Cristo uma anaacutelise da questatildeo juriacutedica no contexto da Grande Comissatildeo (Mt 2818-20)rdquo analisa o termo ἐξουσία (autoridade) mencionado no versiacuteculo 18 no contexto da teologia biacuteblica do Antigo e do Novo Testamentos reflete sobre a autoridade perdida por Adatildeo e reconquis-tada por Cristo e avalia como o triunfo e a exaltaccedilatildeo de Cristo satildeo a garantia de sucesso da missatildeo

No quinto artigo ldquoIgrejas e histoacuteria um modelo para interpretar a di-ferenccedila entre o catolicismo romano e o protestantismordquo Paul Wells aborda o conceito de tradiccedilatildeo a maneira pela qual um grupo religioso apresenta no desenvolvimento da histoacuteria a relaccedilatildeo entre o mundo espiritual e o mundo histoacuterico material Para abordar o tema igreja e histoacuteria o autor propotildee fazer uma comparaccedilatildeo entre essas duas posiccedilotildees em trecircs aacutereas a Igreja e os sacra-mentos a Escritura e a tradiccedilatildeo o Espiacuterito Santo e a vida cristatilde

O sexto artigo de Isaias DrsquoOleo Ochoa ldquoOn how Herman Bavinck res-ponds to the theory of evolution The primacy of biblical revelationrdquo (Sobre o modo como Herman Bavinck responde agrave teoria da evoluccedilatildeo a primazia da revelaccedilatildeo biacuteblica) oferece uma teoria de desenvolvimento modificada a qual estaacute fundamentada natildeo em uma cosmovisatildeo mecanicista e naturalista como vemos em Darwin mas em uma estrutura ldquoteiacutesta-amigaacutevelrdquo Nesse artigo o autor argumenta que a discussatildeo de Bavinck sobre evoluccedilatildeo em termos gerais endossa uma estrutura aristoteacutelicatomista modificada a fim de entender a teoria de desenvolvimento e assim superar os desafios suscitados pela cosmovisatildeo naturalista de Darwin agrave revelaccedilatildeo biacuteblica

A seccedilatildeo de resenhas traz avaliaccedilotildees de obras relevantes para o contexto atual da igreja Catolicidade Reformada A Promessa da Recuperaccedilatildeo para a Teologia e a Interpretaccedilatildeo Biacuteblica de Michael Allen e Scott R Swain resenha-da por Heber Carlos de Campos Juacutenior Francis Schaeffer e a Vida Cristatilde A Espiritualidade Contracultural de W Edgar resenhada por Wendell Gonzaga da Paixatildeo e Jesus e o Impeacuterio O Reino de Deus e a Nova Desordem Mundial de Richard A Horsley resenhada por Norval da Silva

Mantendo o compromisso da revista em proporcionar e incentivar uma reflexatildeo teoloacutegica reformada entrego aos leitores mais esta ediccedilatildeo de Fides Reformata desejoso de que estes artigos despertem mais uma vez o interesse por pesquisas que visam contribuir para a edificaccedilatildeo do povo de Deus servindo sua igreja ao redor do mundo

Boa leitura

Dr Daniel SantosEditor

SUMAacuteRIO

ARTIGOS

O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIALeandro A de Lima 9

DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO O POacuteS-MODERNISMO DA TEOLOGIA DA ESPERANCcedilA Agrave TEOLOGIA DA NOVA ERA E SEUS REFLEXOS NO CAMPO EDUCACIONALSolano Portela 29

ldquoCOR MEUM TIBI OFFERO DOMINE PROMPTE ET SINCERErdquo UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADAHeber Carlos de Campos Juacutenior 47

AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO ndash UMA ANAacuteLISE DA QUESTAtildeO JURIacuteDICA NO CONTEXTO DA GRANDE COMISSAtildeO (MT 2818-20)Paulo Eduardo Vieira da Veiga 71

IGREJAS E HISTOacuteRIA UM MODELO PARA INTERPRETAR A DIFERENCcedilA ENTRE O CATOLICISMO ROMANO E O PROTESTANTISMOPaul Wells 91

ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION THE PRIMACY OF BIBLICAL REVELATIONIsaias DrsquoOleo Ochoa 103

RESENHAS

CATOLICIDADE REFORMADA A PROMESSA DA RECUPERACcedilAtildeO PARA A TEOLOGIA E A INTERPRETACcedilAtildeO BIacuteBLICA (MICHAEL ALLEN SCOTT R SWAIN)Heber Carlos de Campos Juacutenior 125

FRANCIS SCHAEFFER E A VIDA CRISTAtilde A ESPIRITUALIDADE CONTRACULTURAL (W EDGAR)Wendell Gonzaga da Paixatildeo 131

JESUS E O IMPEacuteRIO O REINO DE DEUS E A NOVA DESORDEM MUNDIAL (RICHARD A HORSLEY)Norval da Silva 137

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

9

O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

Leandro A de Lima

RESUMONo final do primeiro seacuteculo quando Joatildeo recebeu a visatildeo e a registrou

no livro do Apocalipse as igrejas da Aacutesia natildeo enfrentavam o pior periacuteodo de perseguiccedilatildeo Muito embora existissem perseguiccedilotildees pontuais e alguma som-bra de intensificaccedilatildeo de perseguiccedilatildeo se apresentasse no horizonte boa parte dos cristatildeos vivia em relativa paz e seguranccedila desfrutando de privileacutegios e benefiacutecios vindos do rico comeacutercio imperial que permeava a regiatildeo da Aacutesia Menor e de seu status como cidadatildeos romanos O desejo de permanecer des-frutando de certos benefiacutecios levou muitos crentes a seguirem o caminho de acomodaccedilatildeo cultural proposto por falsos mestres eloquentes da eacutepoca Contra essa disposiccedilatildeo o Apocalipse demonstra que os crentes verdadeiros precisam seguir o exemplo de Cristo que foi fiel ateacute a morte e recebeu a recompensa na ressurreiccedilatildeo Desse modo se estiverem dispostos a viverem fieacuteis a Cristo e enfrentarem a proacutepria morte por causa disso daratildeo o verdadeiro testemunho ao mundo bem como participaratildeo da recompensa de Cristo

PALAVRAS-CHAVESete igrejas da Aacutesia Apocalipse Martiacuterio Testemunho Perseguiccedilatildeo

INTRODUCcedilAtildeOGeralmente o livro do Apocalipse eacute considerado um tratado que objetiva

trazer consolo agrave igreja que experimenta perseguiccedilatildeo e sofrimento Muitos cren-

O autor eacute ministro presbiteriano e professor de Novo Testamento no Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper Tem doutorado em Literatura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e atualmente cursa outro doutorado em Novo Testamento pela Universidade de Kampen na Holanda

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

10

tes acreditam que nos dias em que Joatildeo recebeu o Apocalipse e o registrou a igreja enfrentava grande e incessante perseguiccedilatildeo e que em parte por causa disso era uma igreja extremamente fiel disposta a viver e morrer por Cristo No entanto haacute fortes razotildees no proacuteprio livro do Apocalipse para entender que essas duas expectativas estatildeo erradas e natildeo descrevem a realidade dos fatos daqueles dias no final do primeiro seacuteculo O livro parece ter sido escrito como uma exortaccedilatildeo para alguns grupos de cristatildeos que estavam experimentando relativo fracasso em seu testemunho perante o mundo1 O objetivo do livro foi mostrar para aqueles crentes o ponto exato em que estavam falhando e chamaacute-los ao arrependimento e agrave mudanccedila de atitude

Eacute nossa convicccedilatildeo de que esse entendimento eacute importante natildeo apenas para compreender melhor o livro do Apocalipse como um todo mas tam-beacutem para ldquoaproximarrdquo leitores modernos do livro O livro natildeo descreve uma ldquoigreja dos sonhosrdquo em termos de fidelidade ou como se costuma dizer uma ldquoigreja fiel porque era perseguidardquo Isso nos mostra que em todos os tempos precisamos da exortaccedilatildeo de Deus para que sejamos fieacuteis ateacute agrave morte seja em tempos de intensa perseguiccedilatildeo ou de relativa paz e seguranccedila

1 MARTIacuteRIO EM APOCALIPSEA noccedilatildeo comum de que o livro de Apocalipse descreve uma eacutepoca histoacute-

rica de intensa e incessante perseguiccedilatildeo2 tem sido questionada por muitos estu-diosos3 A percepccedilatildeo da ameaccedila de perseguiccedilatildeo causada por eventos pontuais4

1 Eacute nossa convicccedilatildeo de que a chave hermenecircutica para entender o pano de fundo histoacuterico do Apocalipse estaacute nas cartas agraves sete igrejas Ver Elizabeth Schuumlssler-Fiorenza Priester fur Gott Studien zum Herrschafts-und Priestermotiv in der Apokalypse NtAbhNF 7 (Munster Aschendorff 1972) p 155-166

2 Ver Elisabeth Schuumlssler-Fiorenza The Book of Revelation Justice and Judgment (2nd ed Minneapolis Fortress 1998) p 187-99 A autora defende que existia perseguiccedilatildeo mesmo que natildeo haja evidecircncia para provar isso

3 Principalmente por Leonard L Thompson The Book of Revelation Apocalypse and Empire New York Oxford University Press 1990 p 95-115 Segundo Thompson duas visotildees contrastantes de Domiciano podem ser encontradas nas fontes antigas a oficial que o descreve como um tirano e outras que o descrevem como um bom imperador Thompson prefere a segunda e por isso natildeo vecirc justificativa para perseguiccedilotildees generalizadas no final do primeiro seacuteculo Adela Yarbro Collins por outro lado sustenta que havia perseguiccedilotildees Ver ldquoPersecution and vengeance in the Book of Revelationrdquo In Apocalypticism in the Mediterranean World and the Near East p 729-749 Tuumlbingen JCB Mohr (Paul Siebeck) 1983 ver tambeacutem Adela Yarbro Collins Crisis and Catharsis The Power of the Apocalypse Philadelphia Westminster 1984 p 84-110 Yarbro Collins destaca a importacircncia de distinguir entre uma crise real e uma crise percebida (p 32)

4 Beale define o ldquoclimardquo do periacuteodo com as seguintes palavras ldquoA evidecircncia interna do livro aponta para uma situaccedilatildeo de relativa paz e perseguiccedilatildeo seletiva com uma expectativa iminente de intensificaccedilatildeo da perseguiccedilatildeo em uma escala cada vez mais programaacuteticardquo (G K Beale The Book of Revelation A Commentary on the Greek Text New International Greek Testament Commentary Grand Rapids MI Carlisle Cumbria Eerdmans Paternoster Press 1999 p 12)

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

11

(Ap 210 213) mais do que perseguiccedilatildeo contiacutenua parece descrever melhor o periacuteodo do final do primeiro seacuteculo na regiatildeo da Aacutesia Menor5 Isso entretanto natildeo diminui o impacto que os casos especiacuteficos de perseguiccedilatildeo produziam so-bre as igrejas daquela regiatildeo Na verdade a caracteriacutestica quase randocircmica da perseguiccedilatildeo parece ter produzido em muitos dos disciacutepulos das sete igrejas da Aacutesia a esperanccedila de poder escapar dela E o meio escolhido para isso em muitos casos parece ter sido a subserviecircncia disfarccedilada (ou natildeo) aos padrotildees idolaacutetricos romanos6 Contra esse cenaacuterio7 Joatildeo apregoou a bem-aventuranccedila da morte testemunhal8

Apocalipse menciona vaacuterias vezes a palavra ldquovitoacuteriardquo ou ldquovencerrdquo e descreve os vencedores em cada epiacuteteto das sete cartas Mas ao contraacuterio do que isso representava nas batalhas romanas o vencedor em Apocalipse natildeo eacute aquele que permanece vivo mas aquele que morre como Cristo que eacute o Cordeiro vencedor (Ap 55-6) Kowalski estaacute certo ao afirmar que ldquoo obje-tivo principal da metaacutefora do Cordeiro eacute encorajar o povo de Deus que estaacute passando por sofrimento e afliccedilatildeo dando-lhe a chance de se identificar com Cristo especialmente em seu sofrimento luta e ressurreiccedilatildeordquo9 De fato aleacutem de exaltar a nobreza e a dignidade da testemunha que fielmente recusa-se a ceder agraves exigecircncias idolaacutetricas e morre por Cristo Joatildeo igualmente destaca de maneira contiacutenua a recompensa desses mortos O simples fato de Joatildeo mencionar tantas vezes a expressatildeo ldquomortosrdquo ao longo do livro evidencia que

5 Nosso pressuposto eacute que o Apocalipse foi escrito pelo apoacutestolo Joatildeo por volta do ano 95 dC durante o reinado de Domiciano Sobre perseguiccedilatildeo ver Alan S Bandy ldquoPersecution and the purpose of Revelation with reference to Roman jurisprudencerdquo Bulletin for Biblical Research 23 n 3 (2013) 377-398 O autor argumenta convincentemente pelo caminho da jurisprudecircncia romana que tanto a ameaccedila quanto a perseguiccedilatildeo eram reais Para uma defesa de que Domiciano era um grande perseguidor ver WHC Frend Martyrdom and Persecution in the Early Church Oxford Basil Blackwell 1965 p 2211-2218

6 Price estabelece que no tempo de Domiciano havia uma expectativa em meio agrave populaccedilatildeo de expressotildees puacuteblicas de lealdade ao imperador cada vez mais fortes atraveacutes do culto imperial Essa pressatildeo era por parte dos proacuteprios cidadatildeos da Aacutesia Menor e era especialmente devotada nos momentos em que o imperador visitava as cidades ou nas datas nataliacutecias Frequentemente se associava a cultos locais e agraves aspiraccedilotildees das guildas comerciais da eacutepoca (S R F Price Rituals and Power The Roman Imperial Cult in Asia Minor Cambridge University Press 1984 p 78-222)

7 Ver a anaacutelise de Friesen onde ele conclui que os estudos em Apocalipse deveriam focar menos em supostos excessos de perseguiccedilatildeo sob Nero ou Domiciano e mais no caraacuteter normativo das atividades do culto imperial (Steven J Friesen Imperial Cults and the Apocalypse of John Reading Revelation in the Ruins Oxford University Press 2001 p 135-151)

8 Beale entende que ldquoo principal objetivo retoacuterico do argumento literaacuterio do Apocalipse de Joatildeo eacute exortar o povo de Deus a permanecer fiel ao chamado para seguir o exemplo paradoxal do Cordeiro e natildeo se comprometer tudo com o objetivo de herdar a salvaccedilatildeo finalrdquo (G K Beale The Book of Revelation p 171)

9 B Kowalski Martyrdom and Resurrection in The Revelation to John Andrews University Seminary Studies 411 (2003) p 55

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

12

o autor estaacute preocupado em explicar a situaccedilatildeo deles (Ap 15 69-11 1118 1413 1824 205 12-13) O livro encoraja os crentes a perseverarem ateacute o fim significando prioritariamente a necessidade de morrer por Cristo a fim de receber a grande recompensa de sua fidelidade (Ap 210 1211)

No entanto essas menccedilotildees expliacutecitas e diretas podem ser apenas a ponta do iceberg Haacute no nosso entendimento uma intrincada e desenvolvida teologia em favor do martiacuterio ao longo de todo o livro a qual se relaciona diretamente com o martiacuterio de Jesus Sweet lista quatro aspectos da relaccedilatildeo entre o martiacute-rio de Jesus e o martiacuterio de seus seguidores conforme o livro de Apocalipse estabelece

(a) O sofrimento dos cristatildeos eacute o resultado do testemunho que natildeo eacute apenas o testemunho acerca de Jesus mas o testemunho de Jesus que eles mantecircm

(b) Mantido fielmente este testemunho traz sofrimento para eles como trouxe para ele do mundo que provoca e atormenta

(c) Natildeo consiste no sofrimento mas em falar pelo Deus verdadeiro em palavra e comportamento contra a idolatria e imoralidade do mundo

(d) Em uacuteltima anaacutelise eacute vitorioso natildeo pelo efeito moral do sofrimento em que incorre mas pela vindicaccedilatildeo de Deus que destroacutei a oposiccedilatildeo10

A vitoacuteria sobre a morte aparece como a grande vindicaccedilatildeo dos maacutertires em Apocalipse A morte eacute um inimigo personificado no livro (68) Ela aparece como o grande adversaacuterio que Cristo jaacute conquistou exatamente por ter morrido (118) O uacuteltimo ato julgador de Cristo no final do livro eacute banir a morte para o lago de fogo (2014 214) Uma vez que essa morte ainda natildeo foi banida a igreja se vecirc diante dela tendo que enfrentaacute-la Do mesmo modo que Cristo obteve a vitoacuteria sobre esse inimigo tambeacutem para a igreja o melhor modo de vencer a morte eacute paradoxalmente morrer Assim o chamado ao martiacuterio eacute na verdade em Apocalipse natildeo a exaltaccedilatildeo de um momento miacutestico de sofri-mento (como muitas vezes parece ser na literatura posterior de martiacuterio) mas a certeza da verdadeira vitoacuteria Os crentes derrotam a morte quando morrem como Cristo morreu Tornam-se testemunhas vitoriosas perante o mundo e herdam o mundo vindouro

Desde o estudo de Trites eacute comum pensar que os termos maacutertir martiacuterio (μαρτυς μαρτυρία) e seus cognatos11 em Apocalipse natildeo tenham o significado semacircntico plenamente assumido de ldquomorte testemunhalrdquo que veio a ser am-

10 J P M Sweet Maintaining the Testimony of Jesus The Suffering of Christians in the Revelation of John In Suffering and Martyrdom in the New Testament William Horbory and Brian McNeil (Eds) Cambridge University Press 1981 p 101

11 Esses termos possuem grande peso semacircntico nos escritos atribuiacutedos a Joatildeo no Novo Testamento O conceito ocorre normalmente no iniacutecio e no final dos escritos Jo 17 e 1935 2124 1Jo 12 e 59 Ap 12 e 2220 (Ver A Pohl Die Offenbarung des Johanes Wuppertal Teil 1969 Ap 12)

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

13

plamente desenvolvido e generalizado no segundo seacuteculo a partir do Martiacuterio de Policarpo Trites estabelece cinco estaacutegios para a mudanccedila e consolidaccedilatildeo semacircntica do termo maacutertir (μαρτυς) Primeiro tinha apenas o sentido de teste-munho perante um tribunal sem implicaccedilatildeo de morte Em segundo lugar foi aplicado a algueacutem que testemunhou diante de um tribunal e foi morto como consequecircncia Em terceiro lugar a morte se tornou parte do testemunho Em quarto lugar a palavra μαρτυς assumiu o caraacuteter teacutecnico de morte Por uacuteltimo a noccedilatildeo de testemunho desapareceu do termo ficando exclusivamente a ideia de morte ou martiacuterio12 A conclusatildeo de Trites eacute que

O estudo do uso de μαρτυρία no Apocalipse leva agrave conclusatildeo de que a palavra ainda natildeo atingiu o estaacutegio em que sua definiccedilatildeo de dicionaacuterio eacute ldquomartiacuteriordquo Onde as ideias martiroloacutegicas estatildeo presentes elas devem ser deduzidas do contexto e natildeo de uma mudanccedila semacircntica no significado da palavra13

Assim para Trites a terminologia em Apocalipse estaacute ainda no terceiro estaacutegio movendo-se na direccedilatildeo do quarto e do quinto estaacutegios O estudo se-macircntico de Trites eacute uacutetil para nossa discussatildeo pois parece evidente que haacute uma evoluccedilatildeo terminoloacutegica poreacutem natildeo eacute possiacutevel localizar o conceito de martiacuterio em Apocalipse precisamente no terceiro estaacutegio justamente porque embora o termo natildeo signifique semanticamente ldquomorte testemunhalrdquo o conceito estaacute firmemente associado a isso pois a morte eacute praticamente uma consequecircncia necessaacuteria do testemunho A teologia martiroloacutegica do livro de Apocalipse se ancora no termo ldquotestemunhardquo Deste modo a definiccedilatildeo de Dragas precisa ser adicionada ldquoEacute preciso lembrar tambeacutem no entanto que no Apocalipse μαρτυς se refere agravequeles que testemunham atraveacutes da morte e que tanto An-tipas quanto o proacuteprio Jesus satildeo portanto as verdadeiras testemunhasrdquo14 De fato ldquoembora o vocabulaacuterio sobre testemunho no Apocalipse de um modo geral provavelmente natildeo se refira ao martiacuterio neste caso o termo μαρτυς estaacute relacionado com uma morte violentardquo15 Entendemos portanto que embora Apocalipse ainda natildeo use semanticamente o termo μαρτυς como substituto de morte testemunhal o livro foi grandemente responsaacutevel por essa identificaccedilatildeo posterior pois associou fortemente os sentidos Segundo a definiccedilatildeo de Van Henten ldquoum maacutertir eacute uma pessoa que se encontra em situaccedilatildeo extremamente hostil e prefere uma morte violenta a cumprir uma exigecircncia de autoridades

12 A A Trites ldquoμαρτυς and Martyrdom in the Apocalypse A Semantic Studyrdquo Novum Testamentum 15 (1973) p 72-73

13 Ibid p 7714 G Dragas ldquoMartyrdom and orthodoxy in the New Testament era the theme of martyria as

witness to the truthrdquo The Greek Orthodox Theological Review 30 n 3 (September 1985) p 29215 P H R van Houwelingen The Book of Revelation Full of Expectation Saacuterospataki Fuumlzetek

1 (2011) p 16

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

14

estrangeirasrdquo16 O conceito portanto nos parece presente no livro de Apoca-lipse fortemente associado ao uso do termo μαρτυς e seus cognatos

Existe uma noccedilatildeo bem estabelecida da importacircncia e do valor de uma morte testemunhal anterior ao Apocalipse17 E ao usar esse conceito associado ao termo μαρτυς o Apocalipse moldou fortemente o sentido nessa direccedilatildeo18 O termo martiacuterio em Apocalipse tem a conotaccedilatildeo de um testemunho a sustentaccedilatildeo de uma verdade que natildeo se abaixa diante das exigecircncias mundanas mas que persevera em fidelidade ateacute a morte Uma testemunha verdadeira soacute pode ser algueacutem que estaacute disposto a ir ateacute o fim nesse testemunho mesmo que even-tualmente ele natildeo seja morto violentamente Para definir o mais precisamente possiacutevel a discussatildeo entendemos que o testemunho em Apocalipse natildeo exige necessariamente uma morte violenta da testemunha mas exige a disposiccedilatildeo para tal morte

2 A PALAVRA DO TESTEMUNHOO Apocalipse expressa a ideia de que o comportamento esperado de

um verdadeiro cristatildeo eacute algo que entra em conflito direto com as condiccedilotildees exigecircncias e padrotildees de comportamento impostos pela sociedade romana da qual os cristatildeos das sete igrejas da Aacutesia faziam parte Ou seja de acordo com o Apocalipse se um cristatildeo realmente vivesse como devia viver em relaccedilatildeo a Deus isso de fato poderia levaacute-lo a sofrer consequecircncias como a perda de direitos comerciais aleacutem de ter que enfrentar processos judiciais complicados e perigosos pois ser acusado de falta de lealdade ao imperador romano era algo muito grave naqueles dias Aparentemente natildeo era todo dia que algum cristatildeo era levado perante as autoridades romanas por causa da sua feacute e isso mostra que por um lado a perseguiccedilatildeo natildeo era maciccedila mas por outro lado que provavelmente a maioria dos cristatildeos natildeo estivesse vivendo como um cristatildeo devia viver Roma natildeo os via como ameaccedila aos seus padrotildees sociais religiosos e culturais

16 Ver J W van Henten amp F Avemarie Martyrdom and Noble Death ndash Selected Texts from Graeco--Roman Jewish and Christian Antiquity London amp New York Routledge 2002 p 3-4

17 Como ficou estabelecido na tese de Van Henten que analisou o conceito de martiacuterio como herdado do judaiacutesmo especialmente de 2 e 4 Macabeus Van Henten estabelece que ldquoa figura do maacutertir eacute mais antiga que o Cristianismo e tem raiacutezes judaicasrdquo (J W van Henten The Maccabean Martyrs as Saviours of the Jewish people A Study of 2 and 4 Maccabees Leiden Brill 1997 p 7) A origem provavelmente estaacute nas histoacuterias contadas em Daniel 3 e 6 onde Daniel e seus trecircs amigos enfrentam a condenaccedilatildeo agrave morte diante das autoridades estrangeiras pelo motivo de se recusarem a descumprir ordens de seu Deus

18 Provavelmente eacute possiacutevel ver isso em livros canocircnicos anteriores ao Apocalipse como no livro de Atos onde os apoacutestolos e disciacutepulos satildeo chamados a serem μου μαρτυρες (At 18) O primeiro disciacute-pulo de Cristo a ser morto Estevatildeo eacute chamado de μαρτυρός σου Paulo ao ser comissionado tambeacutem recebe a designaccedilatildeo de testemunha (At 2616)

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

15

A mensagem central do livro pode ser entendida como um chamado divino para que os crentes das igrejas assumam a responsabilidade de serem testemunhas de Jesus diante da sociedade idoacutelatra Os cristatildeos nas sete igrejas precisavam seguir o exemplo de Cristo o qual sofreu perante as autoridades romanas na Judeia em razatildeo de ter permanecido fiel a Deus Jesus pagou o preccedilo da fidelidade atraveacutes de sua morte mas recebeu a recompensa disso em sua ressurreiccedilatildeo Portanto na visatildeo de Joatildeo os cristatildeos precisam entender o que significa ser uma testemunha de Jesus ou seja qual eacute o conteuacutedo desse testemunho quais satildeo os desafios e consequecircncias imediatas dessa atitude e finalmente quais satildeo as recompensas O Apocalipse foi escrito primordialmente para trazer esse conhecimento aos cristatildeos Eacute um chamado para uma atitude de mudanccedila e consagraccedilatildeo

Haacute uma frase que aparece diversas vezes no livro e que resume bem o significado desse chamado ou convocaccedilatildeo ldquopor causa da Palavra de Deus e do testemunho de Jesusrdquo Essas palavras de fato quase parecem um brado de guerra e resumem o senso de heroiacutesmo e fidelidade esperado dos verdadeiros cristatildeos conforme estabelecido no livro do Apocalipse Essas duas expressotildees aparecem com algumas variaccedilotildees seis vezes no livro atribuiacutedas a certas pes-soas que por causa delas enfrentam seacuterias dificuldades inclusive perseguiccedilotildees prisotildees e morte mas tambeacutem triunfam esplendidamente E ainda aparecem uma seacutetima vez de maneira resumida Listamos abaixo todas as sete vezes em que a frase pode ser vista (com pequenas modificaccedilotildees)19

Apocalipse 11-2 ndash Revelaccedilatildeo de Jesus Cristo que Deus lhe deu para mostrar aos seus servos as coisas que em breve devem acontecer e que ele enviando por intermeacutedio do seu anjo notificou ao seu servo Joatildeo o qual atestou a palavra de Deus e o testemunho de Jesus Cristo quanto a tudo o que viu

Apocalipse 19 ndash Eu Joatildeo irmatildeo vosso e companheiro na tribulaccedilatildeo no reino e na perseveranccedila em Jesus achei-me na ilha chamada Patmos por causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus

Apocalipse 69 ndash Quando ele abriu o quinto selo vi debaixo do altar as almas daqueles que tinham sido mortos por causa da palavra de Deus e por causa do testemunho que sustentavam

Apocalipse 1217s ndash Irou-se o dragatildeo contra a mulher e foi pelejar com os res-tantes da sua descendecircncia os que guardam os mandamentos de Deus e tem o testemunho de Jesus e se pocircs em peacute sobre a areia do mar20

19 As modificaccedilotildees na frase em suas apariccedilotildees parecem intencionais e fazem parte do estilo de Joatildeo que poderia ser denominado de ldquoparalelismo progressivordquo

20 Em Apocalipse 1217 haacute uma mudanccedila interessante nos termos com ldquopalavrardquo sendo substituiacuteda por ldquomandamentosrdquo

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

16

Apocalipse 1412 ndash Aqui estaacute a perseveranccedila dos santos os que guardam os mandamentos de Deus e a feacute em Jesus21

Apocalipse 204 ndash Vi tambeacutem tronos e nestes sentaram-se aqueles aos quais foi dada autoridade de julgar Vi ainda as almas dos decapitados por causa do testemunho de Jesus bem como por causa da palavra de Deus tantos quantos natildeo adoraram a besta nem tampouco a sua imagem e natildeo receberam a marca na fronte e na matildeo e viveram e reinaram com Cristo durante mil anos

Aleacutem dessas seis ocorrecircncias em Apocalipse 1211 haacute uma abreviaccedilatildeo que parece ser intencional para essa dupla declaraccedilatildeo palavramandamentos e testemunhofidelidade A expressatildeo eacute traduzida como ldquopalavra do testemunhordquo e eacute a causa da vitoacuteria dos crentes sobre o dragatildeo Ou seja eacute a disposiccedilatildeo deles de morrer por Cristo que garante sua vitoacuteria ldquoEles pois o venceram por causa do sangue do Cordeiro e por causa da palavra do testemunho que deram e mesmo em face da morte natildeo amaram a proacutepria vidardquo

Essa ldquopalavra do testemunhordquo eacute o ato de um cristatildeo verdadeiro em defen-der a verdade de Deus diante do mundo em viver de acordo com ela mesmo sabendo que isso acarretaraacute perseguiccedilotildees perdas sofrimentos e em uacuteltimo caso a proacutepria morte

Aleacutem disso nota-se que os termos correlatos ldquotestemunhardquo ldquotestemunhordquo ou o verbo ldquotestemunharrdquo tambeacutem aparecem em outros lugares do livro Em grego esses termos podem ser transliterados como ldquomaacutertirrdquo ldquomartiacuteriordquo ldquomar-tirizarrdquo (μαρτυς μαρτυρία μαρτυρειν) O termo testemunho como algo que deve ser sustentado e que causa a proacutepria morte daqueles que o datildeo aparece como a tarefa que eacute dada agraves duas testemunhas em Apocalipse 117 ldquoQuando tiverem entatildeo concluiacutedo o testemunho que devem dar a besta que surge do abismo pelejaraacute contra elas e as venceraacute e mataraacuterdquo Percebemos que as duas testemunhas satildeo mortas pela besta que sobe do abismo Em Apocalipse 204 a causa da morte das almas foi justamente ldquonatildeo adorar a bestardquo

O termo μαρτυρία ldquotestemunhordquo aleacutem das ocorrecircncias mencionadas acima tambeacutem aparece em Apocalipse 15 onde o proacuteprio Jesus eacute descrito como ldquoa testemunha fielrdquo (ο μαρτυς ο πιστός) Essa expressatildeo provavelmente indica sua morte na cruz (tambeacutem em Apocalipse 314) Por causa disso em Apocalipse 213 Antipas que foi morto em Peacutergamo eacute chamado pelo proacuteprio Cristo de ldquominha testemunha fielrdquo (μαρτυς μου ο πιστός μου)

O tabernaacuteculo celestial eacute denominado em Apocalipse 155 como o santuaacuterio do tabernaacuteculo do testemunho Essa expressatildeo provavelmente aponta para os maacutertires reunidos no ceacuteu que satildeo vingados pelos flagelos que comeccedilam

21 Em Apocalipse 1412 ldquopalavrardquo eacute substituiacuteda por ldquomandamentosrdquo e ldquotestemunhordquo por ldquofideli-daderdquo ou ldquofeacuterdquo

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

17

a ser derramados depois Em Apocalipse 176 a grande prostituta eacute descrita como becircbada com o sangue das testemunhas de Jesus Aleacutem disso a expressatildeo ldquotestemunho de Jesusrdquo aparece duas vezes em 1910 com uma relaccedilatildeo direta com 229 onde tambeacutem aparece a expressatildeo para guardar as palavras do livro

Finalmente nos uacuteltimos seis versiacuteculos do livro haacute trecircs usos do termo ldquotestemunhordquo em sua forma verbal Em 2216 Jesus relembra o envio do anjo para mostrar a Joatildeo a visatildeo (descrita primeiro em 11) ldquoEu Jesus enviei o meu anjo para vos testificar estas coisas agraves igrejasrdquo Em 2218 o termo testemunho eacute usado como um aviso contra acreacutescimos ou subtraccedilotildees sobre o conteuacutedo do livro Em 2220 Jesus se autodenomina ldquoaquele que daacute testemunhordquo e anuncia seu retorno em breve

Por isso o chamado ao testemunho eacute a grande mensagem do livro e eacute o aspecto central que queremos demonstrar neste artigo Apocalipse eacute um cha-mado ao verdadeiro testemunho Infelizmente as sete igrejas da Aacutesia estavam falhando em dar esse testemunho naqueles dias e do mesmo modo a igreja atual tambeacutem pode estar falhando

3 O CHAMADO AO MARTIacuteRIO NAS SETE CARTASOs cristatildeos das sete cidades imperiais natildeo eram oriundos apenas das clas-

ses mais baixas da populaccedilatildeo muitos eram comerciantes ricos e bem-sucedidos (Ap 317)22 Eles ajudavam a abastecer o comeacutercio imperial com bens e serviccedilos Muitos eram comerciantes navais (Ap 189-19)23 Para natildeo perderem privileacute-gios nesse sentido evitavam entrar em confronto com as autoridades romanas e com a populaccedilatildeo em geral Para esses cristatildeos o Apocalipse foi endereccedilado como um alerta contra o perigo de se acomodar ao status quo dominante e participar do culto imperial24 Eacute provaacutevel que como diz Collins muitos dos leitores para quem Joatildeo escreveu o Apocalipse nem sequer percebiam a crise que os cercava25 Estavam de tal modo envolvidos com a vida romana que nem

22 Ver o estudo de Wayne Meeks sobre a origem social dos crentes a partir das cartas paulinas Ele conclui que os crentes vinham menos dos extremos das classes sociais romanas altas e baixas sendo na sua maioria artesatildeos e pequenos comerciantes (WA Meeks The First Urban Christians The Social World of the Apostle Paul New Haven Yale University Press 1983 p 73 Ver tambeacutem A J Malherbe Social Aspects of Early Christianity Baton Rouge LA Louisiana State University Press 1977 p 29-32) Ver ainda o resumo sobre o status social dos cristatildeos em L L Thompson The Book of Revelation p 128-129

23 Ver nesse sentido a bem fundamentada tese de J Nelson Kraybill Imperial Cult and Commer-ce in Johnrsquos Apocalypse Journal for the Study of the New Testament Supplement Series 132 Shefield Academic Press 1996 Sobre a relaccedilatildeo entre economia e religiatildeo ver tambeacutem Leonard L Thompson The Book of Revelation p 171-197 R M Royalty The Streets of Heaven The Ideology of Wealth in the Apocalypse of John Macon GA Mercer University Press 1998

24 Price faz uma anaacutelise dos motivos pelos quais as pessoas da Aacutesia Menor participavam do culto imperial Ver Rituals and Power p 234-48

25 Adela Yarbro Collins Crisis and Catharsis The Power of the Apocalypse Philadelphia West-minster 1984 p 77 A autora entende que o culto imperial natildeo era um problema para a maioria das

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

18

percebiam os riscos de idolatria agrave sua volta Poreacutem apoacutes lerem o Apocalipse teriam que tomar uma decisatildeo26

As igrejas estavam sofrendo basicamente por dois motivos problemas internos e externos Externamente como dissemos havia um clima de ameaccedila de perseguiccedilotildees e tambeacutem algumas perseguiccedilotildees pontuais por parte das au-toridades do Impeacuterio Apocalipse daacute a entender que muitos cristatildeos estavam sentindo a ameaccedila de serem cerceados em seus direitos civis mesmo como cidadatildeos romanos com perda de funccedilotildees cargos e bens E alguns temiam sofrer sanccedilotildees ainda maiores como prisatildeo escravidatildeo e morte Como jaacute dis-semos ser cristatildeo no primeiro seacuteculo costumava envolver um certo risco de perder coisas a liberdade ou a proacutepria vida O proacuteprio Joatildeo apoacutestolo de Cristo se encontrava preso como grande evidecircncia do preccedilo a ser pago27 Ao que parece muitos cristatildeos natildeo estavam dispostos a pagar esse preccedilo e tentavam encontrar maneiras de fugir agraves puniccedilotildees sem necessariamente abandonar a feacute cristatilde Isso provavelmente gerava o segundo grave problema que a maioria das igrejas enfrentava a abertura para os falsos ensinos e a imoralidade Aleacutem dos pecados tradicionais como desuniatildeo brigas fornicaccedilatildeo etc um tipo de impureza doutrinaacuteria e moral parecia estar muito ligado agrave questatildeo da ameaccedila de perseguiccedilatildeo e ao desejo de escapar dela Informaccedilotildees histoacutericas mostram que o culto imperial permeava todos os aspectos da vida das cidades e vilas da Aacutesia Menor de maneira que era impossiacutevel uma pessoa aspirar a uma melhor condiccedilatildeo social e econocircmica sem participar em algum grau do culto romano28 Cidadatildeos tanto das classes altas quanto das baixas eram convocados a oferecer sacrifiacutecios ao imperador em vaacuterias ocasiotildees e nas cidades principais como Eacutefeso fundos puacuteblicos eram distribuiacutedos para que os cidadatildeos pudessem pagar pelos sacrifiacutecios de modo que natildeo participar desses eventos era considerado deslealdade e falta de patriotismo incorrendo nas penalidades legais29

igrejas ou seja muitos crentes da regiatildeo natildeo pensavam que eram proibidos de participar por causa de sua convicccedilatildeo cristatilde Kraybill sustenta que ldquoas comunidades cristatildes da Aacutesia Menor provavelmente ex-perimentaram mais desejo interno de se conformar agrave sociedade pagatilde do que pressatildeo externa no caminho da perseguiccedilatildeordquo (Imperial Cult p 196)

26 J P M Sweet diz ldquoA parte apocaliacuteptica natildeo eacute tanto um ataque ao mundo para encorajar a Igreja mas um ataque agrave Igreja que estaacute abraccedilando o mundo ndash para seu proacuteprio perigo mortal e na traiccedilatildeo de seu verdadeiro papel de convencer o mundo por seu testemunho para a salvaccedilatildeo do mundordquo (Mantaining the testimony of Jesus in Suffering and Martyrdom in the New Testament Eds William Horbory and Brian McNeil Cambridge University Press 1981 p 102-103)

27 Apesar de Thompson sugerir que Joatildeo pudesse ter ido a Patmos para pregar o Evangelho (Apo-calyse and Empire p 172-173) a maior parte dos inteacuterpretes inclusive os pais da igreja entende que ele havia sido aprisionado De fato os termos θλίψει e ὑπομονῇ que ele usa para descrever sua estada em Patmos sugerem prisatildeo mais do que apenas pregaccedilatildeo

28 Ver Price Rituals and Power p 101-132 Friesen Imperial Cults and the Apocalypse of John p 135-151

29 Ver Beale Revelation p 240-241 Price Rituals and Power p 78-121

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

19

Os falsos mestres ensinavam maneiras de as pessoas escaparem das perseguiccedilotildees pelo caminho da infidelidade A menccedilatildeo aos nicolaiacutetas30 aos seguidores de um tipo moderno de ldquoBalaatildeordquo e uma moderna ldquoJezabelrdquo que aparecem em quase todas as cartas satildeo indicaccedilotildees nesse sentido Suas doutri-nas claramente liberavam as pessoas do compromisso de santidade por isso tambeacutem logicamente as livravam das sanccedilotildees puacuteblicas

Eacutefeso em princiacutepio parece um exceccedilatildeo nesse sentido A igreja recebe um inesperado elogio quando Cristo diz ldquoTens contudo a teu favor que odeias as obras dos nicolaiacutetas as quais eu tambeacutem odeiordquo (26) A cidade era a metroacutepole da Aacutesia Menor31 Certamente continha a igreja mais importante daquela regiatildeo32 Os efeacutesios ao menos no comeccedilo recusaram seguir o caminho alternativo indicado pelos falsos apoacutestolos aquele que os liberava de ldquosofrer provas por causa do nome de Jesusrdquo ao contraacuterio mostraram ldquolabor e perseve-ranccedilardquo (κόπον καὶ τὴν ὑπομονήν) Eles seguiram o caminho do sofrimento da perda de direitos perante as autoridades mas natildeo da perda da fidelidade diante de Deus Mas ao que parece a situaccedilatildeo mudou depois de um tempo pois o Senhor acusa a igreja ldquoTenho poreacutem contra ti que abandonaste o teu primei-ro amorrdquo Provavelmente isso significava uma falta de zelo no testemunho puacuteblico do Evangelho33 O chamado ao arrependimento por certo significava um chamado viril ao testemunho para voltar a suportar fielmente as provas por causa de Cristo Portanto Eacutefeso natildeo deu espaccedilo aos falsos pregadores mas no final natildeo se saiu melhor do que as outras igrejas fracassando no testemunho perante o mundo por medo das consequecircncias

Esmirna era uma igreja fiel Ela recebe elogios e forte admoestaccedilatildeo de Cristo a permanecer fiel a continuar imitando a Cristo o que a coloca como igreja padratildeo no livro Para ela Cristo se reapresenta nos termos jaacute ouvidos no capiacutetulo 1 o ldquoprimeiro e uacuteltimo que esteve morto e tornou a viverrdquo O Cristo que experimentou o sofrimento e a morte se identifica com a igreja sofredora

30 Natildeo parece haver razatildeo para a ligaccedilatildeo feita por Irineu entre os nicolaiacutetas e o proseacutelito Nicolau mencionado em Atos 65 (Adv Haereses 1263 3111) Outros pais da igreja como Hipoacutelito (Hae-reses 724) disseram que se tratava de uma seita gnoacutestica que praticava imoralidade Segundo Beale ldquoos nicolaiacutetas ensinavam que algum grau de participaccedilatildeo na cultura idoacutelatra de Eacutefeso era permissiacutevelrdquo (Revelation 233) Thompson diz que eram forasteiros que tentavam se estabelecer na igreja de Eacutefeso (Apocalypse and Empire p 12) Fiorenza afirma que os nicolaiacutetas ldquoexpressam sua liberdade em um comportamento libertinordquo (Apocalyptic and Gnosis p 570)

31 Efeacuteso se tornou proeminente no tempo de Domiciano com a instalaccedilatildeo do culto provincial ao imperador (S J Friesen Twice Neokoros Ephesus Asia and the Cult of the Flavian Imperial Family Leiden Brill 1993 p 41-49)

32 G E Ladd A Commentary on the Revelation of John Grand Rapids Eerdmans 1972 p 30 Foi o lugar em que Paulo pastoreou e antes de ir embora advertiu contra os falsos mestres e falsos ensinos que poderiam vir apoacutes a sua partida (At 2028-31)

33 Beale Revelation p 230

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

20

de Esmirna com as palavras ldquoconheccedilo a tua tribulaccedilatildeordquo O estado paradoxal ldquopobreza (material) versus riqueza (espiritual)rdquo tambeacutem foi algo experimentado por Cristo E as blasfecircmias dos ldquofalsos judeusrdquo que parecem ter agido como acusadores perante as autoridades romanas tambeacutem estatildeo evocadas aqui A falta de explicaccedilotildees adicionais para a expressatildeo ldquosinagoga de Satanaacutesrdquo quanto agrave sinagoga judaica existente em Esmirna nos impede de ter certeza acerca da iden-tidade desses ldquofalsosrdquo judeus34 Poreacutem levando em consideraccedilatildeo que Satanaacutes eacute chamado de ldquogrande acusadorrdquo em Apocalipse 1210 parece justificar a ideia de que provavelmente se deva agrave atitude acusatoacuteria adotada pelos judeus contra os cristatildeos perante as autoridades romanas35 Essa parece ser a maior ameaccedila de perseguiccedilatildeo contemplada no livro de Apocalipse Os judeus de Esmirna natildeo queriam conceder aos cristatildeos o mesmo privileacutegio de praticar sua religiatildeo fora da Judeia e provavelmente acusavam os cristatildeos perante as autoridades de-monstrando que eles natildeo eram judeus e assim incitavam as autoridades contra os cristatildeos36 Por essa atitude sem misericoacuterdia aqueles judeus se revelavam como ldquofalsos judeusrdquo pois apesar do sangue e da descendecircncia judaica natildeo agiam como filhos de Deus e sim como ldquofilhos do diabordquo (Jo 844)37 Para essa igreja tatildeo identificada com ldquoa testemunha fielrdquo (Ap 15 ndash ο μαρτυς ο πιστός) o Senhor Jesus diz ldquoNatildeo temas as coisas que tens de sofrerrdquo Esse parece ser o grande incentivo do Apocalipse para uma disposiccedilatildeo ao martiacuterio Do mesmo modo como Cristo tocou Joatildeo quando este estava ldquocomo mortordquo e lhe disse ldquonatildeo temas eu sou o primeiro e o uacuteltimo e tenho as chaves da morte e do Hadesrdquo (Ap 117-18) agora ele conforta a igreja de Esmirna Certamente no sofrimento e morte estaacute a promessa da recompensa daquele que pode abrir

34 Van Henten observa que ldquoagrave exceccedilatildeo das referecircncias a Satanaacutes e ao diabo (29-10) o decreto permanece um tanto vago sobre quem eacute responsaacutevel pelo sofrimento dos fieacuteis em Esmirnardquo (Martyrdom p 590) Ver tambeacutem a discussatildeo na nota 14 da mesma paacutegina sobre autores que assumem posiccedilotildees diferentes sobre a identidade desses judeus

35 Friesen entende que Joatildeo fez uso de ironia e sarcasmo nesse ponto como uma forma de ldquovi-lificaccedilatildeordquo (termo de A Y Collins ldquoVilification and Self-Definition in the Book of Revelationrdquo HTR 79 (1986) 308ndash20) Steve Friesen Sarcasm in Revelation 2ndash3 Churches Christians True Jews and Satanic Synagogues In David L Barr The Reality of Apocalypse Rhetoric and Politics in the Book of Revelation Number 39 Leiden Boston Brill 2006 127-144

36 Segundo informaccedilotildees histoacutericas ateacute a segunda metade do primeiro seacuteculo os cristatildeos desfru-tavam de certa liberdade de culto debaixo do guarda-chuva do judaiacutesmo pois as autoridades romanas natildeo distinguiam o cristianismo do judaiacutesmo Os judeus desfrutavam de certa toleracircncia por parte dos romanos natildeo eram obrigados a sacrificar a Ceacutesar como deus mas apenas como governante Apoacutes o tempo de Nero novas religiotildees natildeo foram permitidas em Roma entatildeo os judeus tentaram mostrar aos romanos que o cristianismo natildeo era o judaiacutesmo Ver Beale Revelation p 240

37 No Martiacuterio de Policarpo existe uma descriccedilatildeo interessante nesse sentido quando o prococircnsul proclama diante da multidatildeo no estaacutedio que Policarpo eacute um cristatildeo Entatildeo a multidatildeo composta de gentios e judeus que habitavam em Esmirna testemunhara contra Policarpo dizendo que ele pregava contra os deuses e ensinava a natildeo oferecer sacrifiacutecios Por causa disso Policarpo foi condenado agrave morte (MPoly 121-2)

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

21

o Hades O Cristo que padeceu a morte nas matildeos dos romanos por causa da acusaccedilatildeo dos judeus anima sua igreja a passar pela mesma situaccedilatildeo pois ldquoeles sofreram por isso nas matildeos dos judeus os quais assim se mostraram servos de Satanaacutes (29 39)rdquo38 Que sejam portanto imitadores de Cristo Devem imitaacute-lo na maneira como satildeo acusados pelos judeus na maneira como satildeo julgados e condenados mas tambeacutem na maneira como Cristo triunfou

Ele anuncia prisatildeo prova e tribulaccedilatildeo de dez dias39 para a igreja Isso significava que a acusaccedilatildeo dos judeus perante as autoridades levaria agrave prisatildeo de alguns irmatildeos da igreja de Esmirna40 Provavelmente exista aqui uma inter-textualidade com o tempo de teste de Daniel e seus trecircs amigos em Babilocircnia que solicitaram dez dias ao rei para provar que comendo soacute legumes sem participar das iguarias da mesa do rei poderiam se manter mais saudaacuteveis do que os outros (Dn 112-15)41 Se essa interpretaccedilatildeo estaacute correta Joatildeo estava dizendo aos crentes de Esmirna que eles natildeo podiam se beneficiar das vanta-gens da cidadania romana uma vez que isso os obrigava a participar dos cultos idolaacutetricos A consequecircncia entretanto para essa recusa seria sofrimento certo e provavelmente morte

Do mesmo modo que Cristo que se apresentou como aquele que este-ve morto mas tornou a viver ou seja a ldquotestemunha fiel e o primogecircnito dos mortosrdquo a igreja tambeacutem eacute chamada a permanecer ldquofiel ateacute a morterdquo (πιστὸς ἄχρι θανατου) pois do mesmo modo experimentaraacute a gloriosa recompensa de receber ldquoa coroa da vidardquo (τὸν στέφανον τῆς ζωῆς) Isso soacute pode portanto ser uma referecircncia agrave ressurreiccedilatildeo42 Poreacutem a proacutexima declaraccedilatildeo parece esclarecer detalhadamente a que isso se refere ldquoO vencedor de nenhum modo sofreraacute dano da segunda morterdquo (Ap 211) Ou seja quem permanecer fiel ldquoateacute a morterdquo (ἄχρι θανατου) o que daacute a ideia natildeo de um periacuteodo de tempo ateacute a morte mas de uma fidelidade que pode resultar em morte43 natildeo sofreraacute a destruiccedilatildeo da

38 J P M Sweet Mantaining the testimony of Jesus p 10639 O tempo da tribulaccedilatildeo como sendo de ldquodez diasrdquo provavelmente natildeo seja uma referecircncia a

um periacuteodo literal antes aponta para o aspecto perverso e maligno dessa detenccedilatildeo O nuacutemero dez em Apocalipse estaacute associado agraves forccedilas malignas (Ap 916 123 131)

40 As autoridades romanas podiam lanccedilar pessoas em prisatildeo para manter a ordem puacuteblica mesmo antes de serem condenadas (At 1623-24) O aprisionamento permitia aos oficiais realizar a acusaccedilatildeo e pressionar o acusado ateacute obter uma confissatildeo como aparece na carta de Pliacutenio o Moccedilo (Ep 10963-4) As pessoas eram mantidas na prisatildeo indefinidamente ateacute que que a sentenccedila fosse imposta a qual podia ser multa banimento ou morte Ver Craig R Koester Revelation A New Translation with Introduction and Commentary org John J Collins vol 38A Anchor Yale Bible New Haven London Yale University Press 2014 p 276 Esse ato era chamado de procedimento cognitio

41 Beale Revelation p 24242 Ver B Kowalski Martyrdom and Resurrection p 5843 A construccedilatildeo significa ldquonatildeo fiel ateacute a hora da morte mas fiel ateacute uma medida que suportaraacute a

morte por amor de Cristo Eacute um termo intensivo natildeo extensivordquo (Marvin Richardson Vincent Word

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

22

ldquosegunda morterdquo O proacuteximo lugar no Apocalipse onde a expressatildeo ldquosegunda morterdquo aparece eacute justamente 206 onde se diz que os participantes da ldquoprimeira ressurreiccedilatildeordquo estatildeo livres da segunda morte Nesse mesmo texto eacute declarado que as almas dos decapitados reinam com Cristo durante os mil anos Portan-to eacute possiacutevel concluir preliminarmente que ldquoa coroa da vidardquo prometida aos vencedores em Esmirna era participar da primeira ressurreiccedilatildeo Tal aconteceria se os crentes se mantivessem fieacuteis ateacute o ponto de morrerem por causa disso Entatildeo semelhantemente a Cristo tambeacutem viveriam novamente A coroa da vida portanto parece ser uma recompensa especial para os mortos fieacuteis uma distinccedilatildeo de participar diretamente do reinado de Cristo (204) passando pe-las portas do Hades diretamente para o ceacuteu Em resumo vale a pena ser uma testemunhamaacutertir de Cristo

A ameaccedila da morte que ainda era uma sombra futura para os crentes de Esmirna aparece como um fato consumado ao menos para uma pessoa em Peacutergamo A igreja ficava numa cidade imperial uma antiga cidade fortaleza conquistada por Roma e transformada num importante centro de adoraccedilatildeo ao imperador romano44 Peacutergamo era um centro do culto a Ascleacutepio uma divin-dade representada por uma serpente poreacutem isso natildeo parece estar agrave altura do desafio pretendido pela expressatildeo ldquotrono de Satanaacutesrdquo Eacute mais seguro identificar a expressatildeo como uma alusatildeo ao forte paganismo de Peacutergamo simbolizado no grande altar que provavelmente dominava a acroacutepole onde ficava o centro de adoraccedilatildeo ao Ceacutesar45

A menccedilatildeo agrave morte de um cristatildeo daquela igreja se reveste de grande significado Aparentemente eacute a uacutenica pessoa que recebe um nome proacuteprio em Apocalipse aleacutem do proacuteprio Joatildeo46 Eacute possiacutevel concordar com Kraybill que ldquoo fato de Antipas ser o uacutenico maacutertir mencionado no Apocalipse sugere que a perseguiccedilatildeo letal era possiacutevel mas ainda natildeo era comum para os cristatildeos na Aacutesia Menorrdquo47 Isso reforccedila a ideia de que o martiacuterio era uma possibilidade um tanto remota para os cristatildeos das sete igrejas48 De fato talvez por ser remota

studies in the New Testament New York Charles Scribnerrsquos Sons 1887 2445) A referecircncia natildeo eacute ldquoateacuterdquo mas ldquomesmo querdquo (Henry Alford The Greek Testament Boston Lee and Shepard 1872 4567)

44 W Ramsay The Letters to the Seven Churches of Asia London Hodder amp Stoughton 1904ss45 H B Swete Apocalypse of St John the Greek Text Grand Rapids Eerdmans 1951 p 34-35

Aune lista ao menos oito possibilidades de interpretar a expressatildeo ldquotrono de Satanaacutesrdquo (D E Aune Re-velation Word Biblical Commentary Dallas Word 1998 52A 182-183)

46 Considerando que Jezabel mencionada na carta agrave igreja de Tiatira natildeo seja realmente um nome proacuteprio

47 Imperial Cult p 3448 Eacute preciso reconhecer que claramente o episoacutedio de Antipas fazia parte do passado (Paul B

Duff The Synagogue of Satan Crisis Mongering and the Apocalypse of John In David L Barr The Reality of Apocalypse p 161) Poreacutem aparentemente um passado recente (M Gilbertson God and History in the Book of Revelation New Testament Studies in Dialogue with Pannenberg and Moltmann Cambridge University Press 2003 p 110)

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

23

era uma possibilidade que natildeo os preocupasse cotidianamente Se eles natildeo se indispusessem de algum modo diretamente contra Roma provavelmente natildeo sofreriam grandes consequecircncias No entanto essa tepidez eacute condenada no Apocalipse A posiccedilatildeo de Antipas eacute destacada Se Esmirna eacute o grande exem-plo de igreja Antipas eacute o grande exemplo de cristatildeo que o livro quer destacar Natildeo eacute apenas a menccedilatildeo ao nome mas principalmente os termos aplicados a ele por Cristo que chamam a atenccedilatildeo Antipas minha testemunha meu fiel

(Ἀντιπᾶς ο μαρτυς μου ο πιστός μου) Natildeo pode haver nenhuma duacutevida de que com essas palavras Antipas estaacute sendo descrito como algueacutem que morreu por Cristo49 Esses termos foram usados para descrever a execuccedilatildeo de Jesus em Apocalipse 15 E isso foi exatamente o que aconteceu com Antipas50 pois Joatildeo diz ldquoo qual foi morto entre voacutes onde Satanaacutes habitardquo A expressatildeo pode ser traduzida como ldquoo qual foi executado diante de vocecircs aiacute onde Satanaacutes habitardquo (ὃς ἀπεκτανθη παρʼ ὑμιν ὅπου ο Σατανᾶς κατοικει) Sem duacutevida sugere-se uma execuccedilatildeo puacuteblica51 forense52 semelhante agrave de Jesus Natildeo haacute registro do motivo ou mesmo do meacutetodo da execuccedilatildeo de Antipas mas pode se deduzir que ele se recusou a fazer aquilo que era defendido pelos nicolaiacutetas e baalamitas que eram admirados em Peacutergamo ou seja recusou-se a participar do culto ao imperador53 e deve ter feito isso de maneira irredutiacutevel Entatildeo foi executado como testemunha de Jesus

O notaacutevel exemplo de Antipas entretanto natildeo parece ter produzido muito efeito positivo nos demais cristatildeos de Peacutergamo os quais natildeo parecem valorizar o fato e pode ter produzido ateacute mesmo uma reaccedilatildeo contraacuteria Provavelmente temerosos de ter que enfrentar um destino tatildeo cruel quanto a execuccedilatildeo por traiccedilatildeo perante as autoridades os cristatildeos de Peacutergamo seguiram o caminho alternativo oferecido pelos falsos mestres

49 Natildeo parece haver razatildeo para a aparente duacutevida de Thompson nesse sentido Ver L L Thomp-son Ordinary Lives John and His First Readers In David L Barr Reading the Book of Revelation A Resource for Students Atlanta Society of Biblical Literature 2003 p 41

50 Nenhuma informaccedilatildeo adicional eacute dada sobre Antipas Provavelmente o nome seja a abreviaccedilatildeo de Antipater um nome comum tanto entre judeus quanto entre gregos A tradiccedilatildeo posterior descreveu Antipas sendo morto apoacutes o interrogatoacuterio pelo prefeito romano Ele foi colocado dentro da estaacutetua oca de um touro de bronze posto sobre o fogo e assado ateacute a morte (Ver Acta Sanc 23-5)

51 Aune traduz a expressatildeo como ldquoque foi publicamente executado onde Satanaacutes habitardquo David E Aune Revelation 1-5 vol 52A p 1178

52 Collins Persecution and Vengeance p 73353 Thompson natildeo vecirc motivos para conectar a morte de Antipas com a adoraccedilatildeo ao imperador Ele

argumenta que a referecircncia ao trono de Satanaacutes provavelmente se refere ao ldquogrande altar de Zeus em Peacutergamordquo ou talvez ldquoao culto de Ascleacutepio e ao centro meacutedico laacute existenterdquo (The Book of Revelation p 173) Poreacutem eacute mais provaacutevel que tivesse relaccedilatildeo com o culto ao imperador pois eacute difiacutecil pensar numa execuccedilatildeo nesses outros dois casos apenas Ou mesmo uma conjunccedilatildeo de fatores pela negaccedilatildeo de Antipas em participar de qualquer um desses cultos

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

24

O mesmo se deu com Tiatira e Sardes igrejas que natildeo recebem nenhum elogio da parte de Cristo mas aparecem como comprometidas com a visatildeo dos grupos condenados por Joatildeo Um desses grupos Joatildeo o compara a Bala-que rei dos moabitas e ao profeta Balaatildeo do Antigo Testamento (Nm 22-25) Balaque contratou Balaatildeo para amaldiccediloar o povo de Israel que marchava no deserto poreacutem o profeta se viu impedido de fazer isso por restriccedilatildeo divina Consequentemente orientou Balaque a armar ciladas contra os israelitas oferecendo mulheres a fim de seduzir os homens de Israel para que pecassem contra Deus (Nm 3116) Portanto duas praacuteticas estavam sendo incentivadas em Peacutergamo como um modo de provavelmente fugir das sanccedilotildees imperiais comer carnes sacrificadas aos iacutedolos (no mercado e nas festas)54 e talvez ateacute mesmo participar de orgias sexuais com as prostitutas cultuais que ficavam nos vaacuterios templos de Peacutergamo55 Existe alguma possibilidade de que esses falsos mestres fossem um tipo de ldquognoacutesticos primitivosrdquo56 que ensinavam uma espeacutecie de ldquoseparaccedilatildeordquo entre os aspectos carnais e espirituais da vida Assim talvez dissessem que participar das festas e orgias era uma atitude carnal que no entanto natildeo afetava o espiacuterito tranquilizando a consciecircncia dos crentes Os nicolaiacutetas que foram rejeitados em Eacutefeso foram aceitos em Peacutergamo A frase ldquotambeacutem tu tens os que da mesma forma sustentam a doutrina dos nicolaiacutetasrdquo estabelece uma similaridade entre as praacuteticas dos dois grupos57 No entanto o fato de Jesus mencionaacute-los aqui como um grupo separado pode levar agrave de-finiccedilatildeo da posiccedilatildeo especiacutefica dos nicolaiacutetas eles defendiam a participaccedilatildeo no culto ao imperador

A cidade de Tiatira era famosa na antiguidade por causa de seu comeacutercio de roupas e tinturas (At 1614)58 Era uma cidade na qual as mulheres de-sempenhavam funccedilotildees importantes Segundo o entendimento do Apocalipse certa mulher estava exercendo uma autoridade nefasta sobre a igreja Ela se autoproclamava ldquoprofetisardquo e ensinava os crentes a praticarem a prostituiccedilatildeo e a comerem coisas sacrificadas Joatildeo a chama de ldquoJezabelrdquo numa referecircncia agrave

54 Apesar do ensino paulino sobre comer tudo o que eacute vendido no mercado sem questionar a procedecircncia (1Co 1025) para os crentes de Peacutergamo isso era difiacutecil pois a procedecircncia das carnes era praticamente uma soacute o culto pagatildeo

55 Para uma anaacutelise da figura de Balaatildeo no Apocalipse ver Jan Willem van Henten ldquoBalaam in Revelation 214rdquo In The Prestige of the Pagan Prophet Balaam in Judaism Early Christianity and Islam George H van Kooten e Jacques van Ruiten (Orgs) Leiden Brill 2008 p 233-46

56 R H Charles A Critical and Exegetical Commentary on The Revelation of St John ndash The In-ternational Critical Commentary Edinburgh T amp T Clark 1920 1979 p 63 WHC Frend ldquoThe Gnostic Sects and the Roman Empirerdquo JEH 5 (1954) p 25-37

57 Beale sugere que ldquonicolaiacutetasrdquo (Νικολαϊτῶν) pudesse ser o tiacutetulo da seita dos seguidores de Balaatildeo pois o significado de Nicolau eacute ldquoaquele que conquista as pessoasrdquo enquanto que uma possiacutevel traduccedilatildeo para Balaatildeo (Βαλαάμ) seja ldquoaquele que consome as pessoasrdquo (Revelation p 251)

58 Ramsay The Letters to the Seven Churches of Asia p 325

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

25

mulher feniacutecia de Acabe rei de Israel que era profetiza de Baal e perseguiu o profeta Elias aleacutem de conduzir o povo agrave idolatria (1Rs 16) Talvez com isso Joatildeo estivesse identificando a esposa de alguma personalidade importante da igreja em Tiatira ou mesmo algueacutem importante na cidade como um todo59

Uma possiacutevel conjectura diz que essa mulher seguia o mesmo princiacutepio adotado em Peacutergamo poreacutem adaptado agrave situaccedilatildeo de Tiatira Para poderem participar ativamente do proacutespero comeacutercio da cidade as pessoas eram con-vidadas a tomar parte nas celebraccedilotildees puacuteblicas das empresas comerciais nas quais havia celebraccedilotildees cuacutelticas com alimentos oferecidos a iacutedolos60 A recusa em participar desses eventos poderia acarretar dificuldades em participar do comeacutercio imperial

Assim como a recompensa para os crentes fieacuteis de Peacutergamo seria muito maior do que os benefiacutecios puacuteblicos e civis advindos da participaccedilatildeo na ado-raccedilatildeo idolaacutetrica para os crentes de Tiatira que vencerem aquela tentaccedilatildeo o Senhor promete ldquoautoridade sobre as naccedilotildeesrdquo (ἐξουσίαν ἐπὶ τῶν ἐθνῶν) As duas palavras aparecem em Mateus 2818-19 no texto da chamada Grande Comissatildeo O texto natildeo estaacute fazendo referecircncia a um reino milenar futuro61 pois Jesus diz que jaacute recebeu autoridade sobre as naccedilotildees ou seja ele jaacute estaacute reinando sobre elas pois recebeu do Pai toda autoridade nos ceacuteus e na terra Portanto eacute possiacutevel que a recompensa dos crentes fieacuteis aqueles que estivessem dispostos a enfrentar o sofrimento e a morte esteja sendo aqui descrita como uma recompensa celeste desfrutando do reinado de Cristo sobre as naccedilotildees

Do mesmo modo os vencedores de Filadeacutelfia recebem a exortaccedilatildeo para permanecerem fieacuteis ldquopara que ningueacutem tome a tua coroardquo o que no caso natildeo parece ser uma ameaccedila de perder a salvaccedilatildeo mas uma garantia de receber a recompensa especial dos maacutertires Jesus igualmente os elogia porque guardaram ldquoa palavra da minha perseveranccedilardquo (τὸν λόγον τῆς ὑπομονῆς μου) Provavel-mente τὸν λόγον aqui significa ldquoordem ou comandordquo62 Eacute o senhor que ordena que seu povo sofra com paciecircncia Filadeacutelfia constitui junto com Esmirna as duas igrejas fieacuteis em Apocalipse Ambas estatildeo sendo acusadas por judeus falsos e ambas permanecem fieacuteis ao seu Senhor mesmo pagando o preccedilo

59 Charles Revelation p 70 Natildeo fica claro ateacute onde eacute possiacutevel estender a imaginaccedilatildeo ao pensar em Jezabel agindo em Tiatira A comparaccedilatildeo parece apropriada tanto para designar uma mulher gentiacutelica que foi influente na igreja ou que usou sua influecircncia para fazer a congregaccedilatildeo participar de atividades sacrificiais (Ver S Friesen Sarcasm in Revelation 2-3 p 134)

60 Ver L L Thompson The Book of Revelation 122-123 Ver tambeacutem o estudo de Theissen sobre o conflito em Corinto a respeito das comidas sacrificadas a iacutedolos (G Theissen The Social Setting of Pauline Christianity Philadelphia Fortress 1982 p 127-132)

61 Ladd Revelation p 43 Ver J F Walvoord The Revelation of Jesus Christ Chicago Moody Press 1966 p 77

62 Van Henten Martyrdom p 591 Ver nota 18

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

26

Aparentemente em Laodiceacuteia ficavam os crentes mais abastados entre todas as cidades Todas as expressotildees pejorativas que Joatildeo usa apontam para a inversatildeo de epiacutetetos de destaque na cidade de Laodiceia aos quais os morado-res se apegavam e dos quais se orgulhavam63 Eles pensavam que eram felizes mas eram infelizes e miseraacuteveis Pensavam que eram ricos mas eram pobres Pensavam que enxergavam bem por causa do famoso coliacuterio feito a partir do poacute friacutegio da cidade mas eram cegos Pensavam que se vestiam bem por causa das famosas confecccedilotildees e da latilde negra preciosa produzida na regiatildeo mas eram nus ou insuficientemente trajados como a palavra tambeacutem pode ser traduzida64 Ou seja pensavam que eram cidadatildeos romanos bem-vestidos nobres famosos com todos os cuidados meacutedicos mas Cristo os descreve como mendigos cegos e mal trajados O status que eles desfrutavam diante dos homens era exatamente o contraacuterio diante de Deus Humanamente eram ricos e saudaacuteveis espiritual-mente eram miseraacuteveis A exortaccedilatildeo de Cristo portanto era para que a igreja se tornasse ldquouma verdadeira testemunhardquo65 abrindo matildeo do conforto de uma religiatildeo submissa ao mundo para uma feacute viva e atuante mesmo que isso lhe custasse o ldquoouro de tolordquo do mundo pois assim experimentaria o ldquoverdadeiro ourordquo da feacute purificada

CONCLUSAtildeOJoatildeo vecirc a situaccedilatildeo da maior parte das igrejas como traacutegica justamente

porque boa parte dos cristatildeos natildeo parecia sequer entender a necessidade de testemunho perante o mundo Muitos deles estavam engajados em negoacutecios mundanos entrelaccedilados com idolatria outros estavam se entregando agraves dis-soluccedilotildees carnais e seguiam falsos mestres que tranquilizavam a consciecircncia deles Em contraste com essas posturas ele os chama para o testemunho autecircntico para a ldquoperseveranccedilardquo (ὑπομονή) ou seja para a disposiccedilatildeo de enfrentar perseguiccedilotildees e a proacutepria morte Ao contraacuterio de isso ser uma perda como muitos poderiam pensar a respeito do que aconteceu com Antipas Joatildeo mostra que a verdadeira recompensa aguarda aqueles que perseverarem ateacute o fim no testemunho

Assim percebemos que o contexto do primeiro seacuteculo guarda semelhanccedilas com vaacuterias eacutepocas que a igreja enfrenta inclusive a atual na qual existem focos de perseguiccedilatildeo em vaacuterias partes do mundo Ao mesmo tempo ser um cristatildeo fiel mesmo em paiacuteses livres pode trazer prejuiacutezos agrave pessoa por perseguiccedilotildees indiretas escaacuternio desprezo e dificuldades em ascender socialmente Contudo a mensagem do Apocalipse continua ecoando em todo ouvido verdadeiramente cristatildeo secirc fiel ateacute a morte

63 Swete Apocalypse p 61 Charles Revelation p 9664 Ladd Revelation p 5265 Beale Revelation p 306

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

27

ABSTRACTAt the end of the first century when John received the vision and recorded

it in the book of Revelation the churches in Asia did not face the worst period of persecution Even though there were occasional persecutions and some shadow of intensification of regular persecution was on the horizon many Christians as Roman citizens found themselves in relative peace and security enjoying privileges and benefits from the rich imperial trade in the region of Asia Minor The desire to remain enjoying certain benefits led many believers to follow the path of cultural accommodation proposed by eloquent false teachers of the time Against this behavior Revelation demonstrates that true believers need to follow the example of Christ who was faithful unto death and received the reward at the resurrection In this way if they are willing to live faithfully to Christ and face their own death because of it they will give true testimony to the world as well as participate in the reward of Christ

KEYWORDSSeven churches of Asia Revelation Martyrdom Witness Persecution

29

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO O POacuteS-MODERNISMO DA TEOLOGIA DA ESPERANCcedilA

Agrave TEOLOGIA DA NOVA ERA E SEUS REFLEXOS NO CAMPO EDUCACIONAL

Solano Portela

RESUMOEste artigo traccedila o desenvolvimento teoloacutegico do seacuteculo 20 dividindo-o

em duas partes a primeira mostra a transiccedilatildeo do liberalismo alematildeo consoli-dado do seacuteculo 19 agrave teologia modernacontemporacircnea A segunda parte trata da pavimentaccedilatildeo do caminho ao advento da teologia poacutes-moderna O autor demonstra que o tema subjacente de desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo de pontos fundamentais com um progressivo desvio dos direcionamentos biacuteblicos estaacute sempre presente na teologia modernacontemporacircnea Essa vertente pode ser vista especialmente em cinco escolas de pensamento teoloacutegico Teologia da Esperanccedila Teologia da Libertaccedilatildeo Teologia Feminista Teologia do Pro-cesso e Teologia da Nova Era Todas elas compartilham do pensamento poacutes--Moderno e diminuem a Biacuteblia como Palavra de Deus inerrante enquanto simultaneamente retroalimentam a Teologia Poacutes-Moderna lanccedilando duacutevidas sobre princiacutepios e valores eternos biacuteblicos e tradicionais As tendecircncias que aparecem nessas reflexotildees teoloacutegicas satildeo similares ao que se observa no cam-po da educaccedilatildeo e algumas delas impactam profundamente o processo cristatildeo de ensino-aprendizagem Com uma abordagem proacutepria agrave realidade o poacutes-

Graduado em Matemaacutetica Aplicada (BA Magna Cum Laude) pelo Shelton College (Cape May Nova Jersey) Mestre em Divindade (MDiv) pelo Biblical Theological Seminary (Hatfield Pennsylvania) Litterarum Humanarum Doctor (LHD) pelo Gordon College (Boston Massachusetts) Eacute professor-coordenador de Educaccedilatildeo Cristatilde no CPAJ e professor de Teologia Sistemaacutetica no Seminaacuterio Presbiteriano Rev Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo em Satildeo Paulo

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

30

-modernismo subverteu conceitos pedagoacutegicos chaves diminuiu o papel do professor e submergiu escolas em uma crise de autoridade Eacute feito um apelo para que um soacutelido alicerce biacuteblico venha a fundamentar qualquer filosofia de educaccedilatildeo escolar cristatilde

PALAVRAS-CHAVEEducaccedilatildeo cristatilde Construtivismo Desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo Piaget

Poacutes-modernismo Teologia poacutes-moderna Teologia contemporacircnea Libera-lismo teoloacutegico

INTRODUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO Eacute UMA FILOSOFIAO Dr John Feinberg (1946-) da Trinity Evangelical Divinity School

(Deerfield Illinois) em uma de suas palestras sobre teologia contemporacircnea1 indica que o termo poacutes-modernismo natildeo define uma filosofia ou teologia especiacutefica em si mas eacute um entendimento da vida que questiona os postula-dos da modernidade os quais considera como meras proposiccedilotildees dualistas simplistas Nesse sentido o poacutes-modernismo se faz presente em quase todas as proposiccedilotildees teoloacutegicas modernas e contemporacircneas Pelo menos todas as correntes de teologia que aqui seratildeo abordadas tecircm a sua contribuiccedilatildeo ao ou pontos de intersecccedilatildeo marcantes com o poacutes-modernismo tendo como carac-teriacutestica comum a criacutetica ao pensamento cartesiano ou a rejeiccedilatildeo da existecircncia de uma verdade absoluta O poacutes-modernismo portanto natildeo eacute uma escola de pensamento que apresenta as suas proacuteprias proposiccedilotildees mas uma persuasatildeo contemporacircnea que admite a coexistecircncia paciacutefica de muitas assertivas Nesse caldeiratildeo de pensamentos postulados pluralistas desconexos ou ateacute contraditoacuterios encontram o seu proacuteprio espaccedilo na arena filosoacutefico-teoloacutegica das uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo 20 estendendo-se ateacute este primeiro quarto do seacuteculo 21

O propoacutesito deste artigo eacute mostrar que existe uma conectividade e um tema sempre presente em cinco escolas de teologia modernacontemporacircnea Teologia da Esperanccedila Teologia da Libertaccedilatildeo Teologia Feminista Teologia do Processo e Teologia da Nova Era2 Todas essas entendemos floresceram de-

1 FEINBERG John Contemporary Theology II ndash Lecture 21 Institute of Theological Studies Grand Rapids Outreach Inc 1998 Palestras disponiacuteveis como miacutedia eletrocircnica gravada

2 Todas as citaccedilotildees de publicaccedilotildees ou livros em inglecircs neste artigo satildeo de traduccedilatildeo do autor Este artigo eacute baseado em pesquisas iniciadas em setembro de 2002 e continua como um projeto em andamento Citaccedilotildees de documentos postados na Internet (Web) satildeo precisas na ocasiatildeo em que os textos estavam postados Todos os esforccedilos foram empreendidos para acessar e atualizar os endereccedilos eletrocircnicos ateacute 6 de maio de 2021 mas uns poucos documentos podem ter sido deslocados para diferentes paacuteginas ou siacutetios desde o acesso original ou removidos inteiramente da Web por falta de manutenccedilatildeo ou por qualquer outra razatildeo natildeo detectaacutevel

31

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

baixo do guarda-chuva do poacutes-modernismo contribuiacuteram com ele e abraccedilaram a desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo como eixo norteador do ldquofazer teologiardquo As conclusotildees a que chegam refletem um sentimento de necessidade de apresentar a quebra do tradicional concretizando essa acircnsia em uma sanha demolidora de valores passados uma desconsideraccedilatildeo para com acircncoras metafiacutesicas tais como o entendimento das Escrituras como Palavra de Deus que conteacutem verdades proposicionais absolutas e confiaacuteveis Essa desconsideraccedilatildeo resulta em formulaccedilotildees teoloacutegicas fluidas nas quais a apreensatildeo humana eacute colocada como norteadora da compreensatildeo do transcendente Descartam-se princiacutepios que eram aceitos como alicerces de uma boa teologia e subjuga-se a Escritura ao contexto social acatando-se este como aacuterbitro e chave hermenecircutica de in-terpretaccedilatildeo Resumindo o poacutes-modernismo latente nessas correntes naturaliza a religiatildeo e extirpa o sobrenatural do relacionamento e comunicaccedilatildeo entre o Criador e suas criaturas

1 A ORIGEM SIacuteNTESE DO DESENVOLVIMENTO HISTOacuteRICO DE FORMULACcedilOtildeES TEOLOacuteGICAS DESDE A REFORMA DO SEacuteCULO 16

O pensamento teoloacutegico foi liberto da escravatura da tradiccedilatildeo medieval catoacutelica romana com suas adiccedilotildees humanas agrave mensagem e liturgia da igreja pela Reforma do Seacuteculo 16 Desde entatildeo um cerne de ortodoxia biacuteblica tem marcado a sua presenccedila ateacute os nossos dias Apesar dessa resiliecircncia da teologia reformada nesse ponto marcante de inflexatildeo na histoacuteria da igreja existe um registro contiacutenuo de desvios em sistemas teoloacutegicos propostos de um caminho estritamente direcionado pela Escritura para esquemas mais dilatados que aco-modem especulaccedilotildees humanas Estes surgiram com frequecircncia sob a forma de rebuscados trabalhos acadecircmicos e com a aparecircncia de volumosas pesqui-sas Entretanto na realidade refletiram correntes de pensamentos seculares e filosoacuteficos que inundavam as academias Uma tentativa recorrente de siacutentese pode ser observada com a cosmovisatildeo de um mundo secularizado buscando uma zona de conforto na qual pensadores e teoacutelogos formais pudessem acolher visotildees religiosas distorcidas e obter legitimidade para seus voos intelectuais de destinos incertos e seguranccedila duacutebia

Nesse sentido observamos no periacuteodo poacutes-Reforma do seacuteculo 16 a ascensatildeo do misticismo religioso no campo protestante seguido pelo raciona-lismo do liberalismo teoloacutegico alematildeo3 Estes deixaram suas marcas nas eras

3 Ainda que contraditoriamente grandes expoentes do liberalismo fossem miacutesticos em sua preacutedica e escritos pessoais como nos relembra Blackwell um estudioso de Friedrich Schleiermacher Ele registra que de um lado ldquoSchleiermacher natildeo tinha paciecircncia com conceitos abstratos quer fossem poliacuteticos filosoacuteficos ou teoloacutegicosrdquo que natildeo tivessem ldquorelaccedilatildeo direta com e afetassem a vida realrdquo Por outro lado

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

32

preacute-moderna e moderna enquanto em paralelo grandes desenvolvimentos intelectuais afloravam nas academias bem como o mundo experimentava o surgimento das induacutestrias e profundas reorganizaccedilotildees socioloacutegicas Isso ocorreu primeiramente na Europa e subsequentemente no chamado Novo Mundo

Essas duas correntes do seacuteculo 19 o misticismo exemplificado pelos Quakers Shakers4 e outros ldquoprotomovimentosrdquo miacutesticos5 que resultaram no pentecostalismo do seacuteculo 20 e o racionalismo alematildeo que adentrou de forma avassaladora grandes seminaacuterios de renome dos Estados Unidos6 dominaram o cenaacuterio teoloacutegico avant garde ateacute as primeiras deacutecadas do uacuteltimo seacuteculo Naquela ocasiatildeo uma reaccedilatildeo que se apresentou inicialmente como um res-gate da religiatildeo verdadeira e da teologia biacuteblica adentra a arena teoloacutegica ndash a neo-ortodoxia Entretanto no cocircmputo final a neo-ortodoxia eacute cooptada pelo subjetivismo do racionalismo alematildeo e se revela natildeo uma contestaccedilatildeo biacuteblica do liberalismo teoloacutegico mas um escape miacutestico agraves questotildees mais difiacuteceis como a veracidade dos milagres e a realidade da ressurreiccedilatildeo questotildees que satildeo empurradas a uma supra histoacuteria (Heilsgeschichte) que natildeo se relaciona objetivamente com a chamada ldquohistoacuteria brutardquo

Possivelmente poderiacuteamos classificar a primeira metade do seacuteculo 20 como um periacuteodo de transiccedilatildeo entre a teologia moderna e a contemporacircnea Referimo-nos agrave progressatildeo do pensamento de Georg Wilhelm Friedrich He-gel (1770-1831) passando por Soslashren Kierkegaard (1813-1855) Karl Barth

continua Blackwell o seu misticismo aflora como uma ldquoconscientizaccedilatildeo iacutentima e remanescente de que todas as coisas fazem parte de um todordquo e que ldquonossa origem uacuteltima permanece aleacutem do que eacute possiacutevel conhecerrdquo Muitas de suas expressotildees miacutesticas satildeo encontradas em cartas escritas em 1802 para Eleonore Grunow uma mulher casada com quem Schleiermacher tencionava se casar apoacutes o divoacutercio dela ndash o que nunca ocorreu BLACKWELL Albert ldquoSchleiermacherrsquos Mysticism A Letter to His Distant Belovedrdquo Blog Modalities 13 de marccedilo de 2015 Disponiacutevel em httpsalbertblackwellblogspotcom201503schleiermachers-mysticism-letter-to-hishtml Acesso em 6 maio 2021 Essa via dupla do racionalismo e do misticismo demonstra como os extremos se tocam pois em ambas as posiccedilotildees estaacute ausente a cen-tralidade da Escritura como chave para compreensatildeo de noacutes mesmos da Terra em que habitamos do Universo que nos cerca e do Deus que tudo criou

4 FERNANDES Rubeneide O L ldquoMovimento pentecostal Assembleia de Deus e o estabeleci-mento da educaccedilatildeo formalrdquo Dissertaccedilatildeo natildeo publicada Mestrado em Educaccedilatildeo Piracicaba UNIMEP p 31-32

5 Ver por exemplo MATOS Alderi S ldquoEdward Irving precursor do movimento carismaacutetico na igreja reformadardquo Fides Reformata I-2 (1996) Disponiacutevel em httpscpajmackenziebrwp-contentuploads2019021_Edward_ Irving_Precursor_do_Movimento_CarismC3A1tico_na_Igreja_Re-formada_Alderi_Souza_Matospdf Acesso em 6 maio 2021

6 BROWN Ira ldquoThe Higher Criticism Comes to America 1880-1900rdquo Journal of The Presbyte-rian Historical Society 38 (4) Philadelphia The Presbyterian Historical Society dez 1960 p 193-212 Disponiacutevel em jStor httpwwwjstororgstable23325229 Acesso em 6 maio 2021

33

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

(1886-1968) Paul Tillich (1886-1965) Rudolf Bultmann (1884-1976)7 e os filoacutesofos analiacuteticos8 encerrando-se com os teoacutelogos da ldquoMorte de Deusrdquo9

Este foi um periacuteodo marcado por um novo subjetivismo e por uma abor-dagem individualista no qual definiccedilotildees e expressotildees linguiacutesticas foram consi-deradas amorfas e reduzidas a praticamente serem sem sentido em si proacuteprias adaptaacuteveis agrave compreensatildeo e intenccedilatildeo individuais tanto dos proponentes como de seus ouvintes ou leitores

Semelhantemente enquanto esse periacuteodo de transiccedilatildeo constroacutei uma ponte entre o moderno e o contemporacircneo podemos afirmar que praticamente todas as proposiccedilotildees teoloacutegicas novas que surgiram no seacuteculo 20 a partir da deacutecada de 1960 poderiam ser classificadas como degraus para a ascensatildeo do periacuteodo e pensamento poacutes-moderno no qual como civilizaccedilatildeo estamos sub-mersos Visualizamos em cada expressatildeo dos pensamentos teoloacutegicos desde os ldquoTeoacutelogos da Morte de Deusrdquo elementos do poacutes-modernismo quer de maneira incipiente quer de forma bastante expliacutecita e madura ateacute que eles se juntam em um amalgamado que pode ser denominado Teologia Poacutes-Moderna

Concentrando nossa anaacutelise da teologia modernacontemporacircnea das uacuteltimas deacutecadas ndash desde a Teologia da Esperanccedila10 agrave Teologia Poacutes-Moderna encontramos alguns temas subjacentes que se fazem presentes em cada variaccedilatildeo ou ramo e esses natildeo dependem dos roacutetulos que os proponentes atribuem (ou recebem) em cada escola de pensamento

Por exemplo John Feinberg indica que uma caracteriacutestica presente nas formulaccedilotildees teoloacutegicas desse periacuteodo eacute ldquoa divinizaccedilatildeo do homem e a huma-nizaccedilatildeo de Deusrdquo11 Devemos acatar a pertinecircncia dessa anaacutelise pois nunca

7 Para a afinidade desses teoacutelogos com o pensamento de Hegel ver CREMER Douglas J ldquoPro-testant Theology in Early Weimar Germany Barth Tillich and Bultmannrdquo Journal of the History of Ideas 56 n 2 (1995) 289-307 Doi1023072709839 Acesso em 23 dez 2020

8 Tambeacutem conhecida como ldquofilosofia da linguagemrdquo procura expressar uma anaacutelise racional loacutegica e matemaacutetica do pensamento ndash levando a conclusotildees puramente naturalistas sobre as grandes questotildees do universo e da vida Como maiores expoentes podemos citar Gottlob Frege (1848-1925) Ludwig Wittgenstein (1889-1951) e Bertrand Russell (1872-1970) autor do famoso livro Porque Natildeo Sou Cristatildeo As raiacutezes no pensamento alematildeo satildeo evidentes em seus escritos ainda que a grande popu-larizaccedilatildeo da corrente tenha ocorrido nas academias dos Estados Unidos e da Inglaterra

9 Os ldquoTeoacutelogos da Morte de Deusrdquo reavivaram o conceito hegeliano de que ldquoDeus estaacute mor-tordquo ndash indicando que a ideia de Deus do mundo ocidental tinha que ser revista e substituiacuteda por uma transcendecircncia centrada na humanidade Os dois expoentes modernos mais conhecidos foram William Hamilton (1924-2012) e Thomas J J Altizer (1927-2018) Os dois foram coautores do livro Teologia Radical e a Morte de Deus e forneceram combustiacutevel aos movimentos alienados hedonistas sensuais e existenciais da deacutecada de 1970 como os Provos na Europa e a onda hippie que tomou conta das Ameacutericas nas deacutecadas 1960-1970

10 Um resumo dos pontos principais dessa vertente teoloacutegica seraacute apresentado adiante Ela surgiu no livro mais famoso do seu autor originalmente publicado na Alemanha em 1964 MOLTMANN Juumlrgen Teologia da esperanccedila Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005

11 FEINBERG Lecture 1

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

34

houve um periacuteodo como o dessas deacutecadas na histoacuteria mundial ou da igreja que tratou Deus como sujeito e natildeo soberano e as pessoas mais como regentes dos seus proacuteprios destinos do que como criaturas caiacutedas necessitadas de redenccedilatildeo

Submeto entretanto que existe outro tema que se faz igualmente presente nessas correntes teoloacutegicas recentes ndash a ideia de que eacute necessaacuterio desconstruir e reconstruir ou a ideia de que as atividades de desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo se constituem em tarefas necessaacuterias ao campo da teologia Nesse sentido o teoacutelogo deve desconstruir ideias conceitos metaacuteforas ideologias esquemas de pensamento e convicccedilotildees Por outro lado eacute necessaacuterio reconstruir ou cons-truir todos esses aspectos com base no sentimento de quais estruturas devem ser estabelecidas para trazer a sensaccedilatildeo empiacuterica de liberdade da opressatildeo (de onde quer que proceda) aos proponentes e aos seus seguidores objetivados Eacute essa temaacutetica da desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo que queremos prescrutar seguindo e explorando as suas consequecircncias e principalmente avaliando os reflexos no campo educacional cristatildeo

2 DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO DA TEOLOGIA DA ESPERANCcedilA Agrave TEOLOGIA DA NOVA ERA

Vamos examinar brevemente os conceitos de desconstruccedilatildeo e recons-truccedilatildeo nessas vertentes teoloacutegicas que preparam o caminho e reforccedilam os fundamentos do pensamento poacutes-moderno dentro da teologia e seus efeitos no campo educacional

21 Teologia da EsperanccedilaJuumlrgen Moltmann iniciou esse periacuteodo na teologia contemporacircnea com

a sua Teologia da Esperanccedila12 na qual a escatologia ndash ou a esperanccedila de um futuro que eacute possiacutevel e real ndash eacute o alicerce sobre o qual toda a interpretaccedilatildeo teoloacutegica do mundo e da vida deve ser construiacuteda Apesar do termo ldquodescon-truirrdquo natildeo aparecer com ecircnfase na obra de Moltmann sua abordagem teoloacutegica conceitualmente eacute exatamente isso reverter a ordem pela qual a teologia tem sido abordada que tradicionalmente comeccedila com a avaliaccedilatildeo dos dados sobre Deus na Escritura sua natureza e suas obras postulando que a escatologia eacute na realidade a fundaccedilatildeo da teologia Com a intenccedilatildeo de ldquofazer teologiardquo Molt-mann desconstruiu a estrutura teoloacutegica que tem sido utilizada haacute seacuteculos Natildeo deveria surpreender que John B Cobb um teoacutelogo moderno (do Processo) faz a seguinte afirmaccedilatildeo sobre a Teologia da Esperanccedila ldquoA abordagem de Molt-mann eacute praticamente revolucionaacuteria em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo cristatilde dominanterdquo13

12 MOLTMANN Teologia da esperanccedila13 COBB John ldquoNorth American Theology in the Twentieth Centuryrdquo ago 1991 Disponiacutevel

em httpwwwreligion-onlineorgcgi-binrelsearchddllshowarticleitem_id=42 Acesso em 23 mar 2003

35

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

Na sequecircncia Moltmann daacute andamento agrave construccedilatildeo de sua proacutepria teo-logia especificamente redefinindo escatologia esperanccedila e salvaccedilatildeo trazendo todos esses termos a um relacionamento corporativo com a vida aqui e agora Essa reconstruccedilatildeo inova menos do que pretende porque natildeo chega a se desli-gar completamente da Teologia Existencial Como Moltmann enfatiza o lado corporativo da religiatildeo e traz o foco para a vida no presente ndash como sendo essencialmente uma vida de esperanccedila futura ndash ele acabou por construir uma base adequada para as ideias da Teologia da Libertaccedilatildeo

22 Teologia da LibertaccedilatildeoEste ramo da teologia geralmente associado aos escritos de Gustavo

Gutierrez14 popularizou-se essencialmente na Ameacuterica Latina e em outros paiacuteses em desenvolvimento (anteriormente rotulados de subdesenvolvidos) A Teologia da Libertaccedilatildeo tambeacutem desconstroacutei os conceitos tradicionais do pensamento cristatildeo especialmente aqueles relacionados agraves accedilotildees que devem ser empreendidos em meio a uma sociedade que eacute considerada socialmente injusta Ela preconiza que concentrar a visatildeo no futuro gera aniquilaccedilatildeo e cega os olhos agraves injusticcedilas presentes A perspectiva da igreja deve ser reconstruiacuteda considerando a libertaccedilatildeo como a tarefa primaacuteria da teologia do cristianis-mo e da sociedade como um todo Essa libertaccedilatildeo ou salvaccedilatildeo eacute de todas as formas de opressatildeo mas eacute definida prioritariamente como libertaccedilatildeo de condiccedilotildees de pobreza de uma classe que se encontra sob a regecircncia de outra classe dominante ndash a classe opressora A classe oprimida deve ser salva tam-beacutem da opressatildeo econocircmica e poliacutetica Cobb registra a conexatildeo da Teologia da Libertaccedilatildeo com a Teologia da Esperanccedila quando afirma ldquoNa praacutetica a Teologia da Libertaccedilatildeo da Ameacuterica Latina segue um modelo semelhante ao de Moltmannrdquo15 Chamo atenccedilatildeo para terminologia utilizada por Cobb que mostra o conceito de desconstruccedilatildeoreconstruccedilatildeo impliacutecito em seus elogios proferidos na anaacutelise da Teologia da Esperanccedila Referindo-se a teoacutelogos da libertaccedilatildeo ele diz ldquoEles foram brilhantemente bem-sucedidos em construir um sistema teoloacutegico completo com base nessa [nova] hermenecircuticardquo16

Encontramos tambeacutem a Teologia da Libertaccedilatildeo providenciando uma zona de conforto para outras formas de teologias de ldquoclassesrdquo ou de ldquominoriasrdquo que se consideram ldquooprimidasrdquo por qualquer outro segmento da sociedade Este eacute o caso da Teologia Gay Robert Goss explicando e defendendo essa vertente ldquoteoloacutegicardquo deixa clara a conexatildeo ldquoA Teologia da Libertaccedilatildeo eacute provavel-mente o melhor termo para servir de guarda-chuva para o que estaacute acontecendo [no cenaacuterio teoloacutegico] Porque ela atinge a raiz da cultura os conservadores

14 GUTIERREZ Gustavo Teologia da libertaccedilatildeo 2 ed Satildeo Paulo Vozes 198515 COBB ldquoNorth American Theologyrdquo16 Ibid

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

36

tecircm problemas com ela como nos dias de Jesus Esses conservadores como os entendo estatildeo na realidade interessados na conservaccedilatildeo do status quo de relaccedilotildees de poderrdquo17 A ideia de desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo fica bem evi-dente na apresentaccedilatildeo do livro de Goss

O trabalho do Rev Goss eacute um de desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo Ele descons-troacutei o Cristo que se assenta entronizado e abenccediloa com decretos divinos os preconceitos e as relaccedilotildees de poder e encontra no meio de tudo isso o Jesus que questiona os relacionamentos de poder dos seus dias e que [ele proacuteprio] desconstroacutei agrave sua proacutepria maneira18

Um exemplo adicional desses ramos teoloacutegicos enxertados ou que bro-tam da Teologia da Libertaccedilatildeo eacute visto na ldquoTeologia Racialrdquo na qual tambeacutem encontramos os conceitos de desconstruirconstruir Fazendo referecircncia nesse sentido ao artigo de Maria-Cristina Ventura ldquoDesconstruccedilatildeo e Reconstruccedilatildeo Teoloacutegica na Luta contra o Racismordquo lemos o seguinte em sua introduccedilatildeo ldquoA desconstruccedilatildeo teoloacutegica que leva a uma reconstruccedilatildeo eacute essencial para um en-tendimento da teologia na luta contra o racismo O exerciacutecio de desconstruccedilatildeo implica em questionamento e na confrontaccedilatildeo da teologiardquo19 Mais recente-mente os pontos fundamentais da Teologia da Libertaccedilatildeo tecircm sido veiculados no meio protestante como Teologia Puacuteblica e Teologia da Missatildeo Integral (TMI)

23 Teologia FeministaNatildeo precisamos ir muito aleacutem do tiacutetulo do livro de Elisabeth Schuumlssler

Fiorenza para localizar o tema de ldquodesconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeordquo na Teologia Feminista Essa famosa porta-voz feminista tambeacutem constroacutei sobre a base fornecida pela Teologia da Libertaccedilatildeo para desenvolver um Gestalt teoloacutegico que busca libertar as mulheres de uma estrutura supostamente dominada pelo sexo masculino Ela escreveu ldquoEm Memoacuteria Dela Uma Reconstruccedilatildeo Teoloacute-gica Feminista das Origens Cristatildesrdquo20 Em outro livro Fiorenza indica que a hermenecircutica feminista de libertaccedilatildeo deve desconstruir tradiccedilotildees opressoras e identificar imagens e argumentos diferentes daqueles que satildeo identificados com o sexo masculino21

17 GOSS Robert Jesus Acted Up A Gay and Lesbian Christian Manifesto Nova York Harper amp Row 1993

18 Ibid19 VENTURA Maria-Cristina ldquoTheological Deconstruction and Reconstruction in the Fight against

Racismrdquo Disponiacutevel em httpwwwwcc-coeorgwccwhatjpcechoesechoes-17-06html Acesso em 6 maio 2021

20 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler In Memory of Her A Feminist Theological Reconstruction of Christian Origins New York Crossroads 1983

21 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Jesus Miriamrsquos Child Sophiarsquos Prophet Critical Issues in Feminist Christology New York Continuum Publishing Group 1995 p 33

37

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

Desconstruccedilatildeo eacute tambeacutem um tema baacutesico para a Teologia Feminista no entendimento de David Rutledge que escreveu ldquoLeitura Marginal Feminis-mo Desconstruccedilatildeo e a Biacutebliardquo22 De acordo com a compreensatildeo da Teologia Feminista deve-se desconstruir todas as metaacuteforas e linguagem opressoras que falseiam o entendimento da divindade e ajudam a perpetuar a opressatildeo das mulheres em toda parte Semelhantemente eacute necessaacuterio reconstruir estruturas teoloacutegicas centradas em um simbolismo e terminologia feministas que mais adequadamente refletem os cuidados e a nutriccedilatildeo que fluem da divindade dessa forma se promoveraacute a alforria e libertaccedilatildeo das mulheres e seraacute atribuiacutedo um papel mais justo para os homens

24 Teologia do ProcessoA Teologia do Processo contesta o ldquoTeiacutesmo Claacutessicordquo e se propotildee a

descrever mais adequadamente a divindade e o entendimento metafiacutesico da estrutura da realidade Para atingir esse objetivo necessita desconstruir a apreensatildeo transcendente de Deus e reconstruiacute-lo em torno de sua imanecircncia e de sua ldquopreensatildeordquo23 dos outros seres reais Ela se apresenta como sendo uma forma mais cientiacutefica de olhar a realidade e de abordar o pensamento teoloacutegico mas ao desconstruir informaccedilotildees disponiacuteveis sobre o Deus da Biacuteblia termina por reconstruiacute-lo como um deus totalmente passivo praticamente impotente que procura atrair e persuadir e pretende influenciar mas que nunca age posi-tivamente para estabelecer sua vontade e seu propoacutesito James Ashbrook um teoacutelogo do processo do Garrett Evangelical Theological Seminary mostra esse vieacutes desconstrucionista quando apresentando uma das caracteriacutesticas dessa linha de pensamento ndash convicccedilotildees ou crenccedilas que estatildeo sempre mutantes ou em processamento ndash descreve-se a si mesmo dessa maneira

Sou um ceacutetico miacutestico um crente descrente Participo daquilo que eu questiono mais especificamente construo a realidade de acordo com o paradigma de um Deus cheio de graccedila exemplificado nas tradiccedilotildees judaico-cristatildes (plurais) e que faz sentido agrave luz do que aprendemos nas neurociecircncias Sou influenciado por praacuteticas Zen medito e oro regularmente como parte de minha vida Tento desconstruir a teologia com a finalidade de reconstruiacute-la agrave luz da experiecircncia e em um mundo carregado de opressatildeo compartilho com outros como testemunho uma realidade iluminada pela justiccedila e pelo amor24

22 RUTLEDGE David Reading Marginally Feminism Deconstruction and the Bible Leiden New York Brill 1996

23 ldquoPreensatildeordquo (prehension) na terminologia da Teologia do Processo eacute um tipo de compreensatildeo sem o elemento cognitivo ou uma forma inconsciente de relacionamento e de compartilhamento das atividades da vida pela e com a divindade

24 ASHBROOK James ldquoOur Illusory Relation to God ndash A Neurotheological Approachrdquo (palestra) Texto da nota autobiograacutefica na programaccedilatildeo da workshop ldquoInstitute on Religion in an Age of Science

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

38

25 Teologia da Nova EraJohn Feinberg aponta que a Teologia da Nova Era natildeo surgiu como um

ramo que cresceu dos ciacuterculos acadecircmicos mas eacute uma importante linha de pensamento que deve ser considerada devido aos raacutepidos avanccedilos feitos na sociedade e pela popularidade observada em alguns segmentos da igreja cristatilde25 Ela tem produzido uma abundacircncia de escritos a maioria desses com caracteriacutesticas populares mas deles podemos aferir seus temas principais Em um relatoacuterio que esboccedila ldquoAs atividades da Nova Era na Igreja Episcopalrdquo observamos os avanccedilos que essa filosofia mais do que uma teologia tecircm feito naquela denominaccedilatildeo aleacutem de trazerem agrave tona os sempre presentes temas de desconstruccedilatildeoreconstruccedilatildeo O relatoacuterio registra as seguintes palavras do Rev Matthew Fox

O que eacute a redescoberta do Cristo coacutesmico se natildeo uma desconstruccedilatildeo da ldquocris-tologia do poderrdquo que estabeleceu o impeacuterio cristatildeo no Conciacutelio de Niceacuteia no quarto seacuteculo e uma reconexatildeo com a tradiccedilatildeo biacuteblica mais antiga de Cristo como a sabedoria coacutesmica presente em todos os seres26

Vemos esse posicionamento de desconstruccedilatildeo neste e em outros traba-lhos escritos de teoacutelogos da Nova Era de conceitos tradicionais do teiacutesmo e da histoacuteria da redenccedilatildeo ndash como sendo um caminho exclusivo apresentado pela feacute cristatilde ndash pois essa ldquoteologiardquo reconstroacutei a conexatildeo com a divindade como sendo algo que estaacute presente em todos nesta religiosidade inclusiva agora denominada de ldquoreligiatildeo coacutesmicardquo ou de ldquosabedoria coacutesmicardquo

Encerramos este segmento da nossa anaacutelise indicando que Groothuis quando relaciona os temas principais que caracterizam a teologia da Nova Era destaca este em primeiro lugar ldquoTudo eacute um Quaisquer diferenccedilas perceptiacute-veis satildeo apenas aparentes e natildeo reaisrdquo 27 Este eacute o resultado do conceito de reconstruccedilatildeo da Teologia da Nova Era e podemos ver a harmonia e sobrepo-siccedilatildeo com as ideias do Poacutes-Modernismo que enfatiza construccedilotildees subjetivas Considerando que tudo eacute o mesmo aponta Feinberg28 uma pedra pode natildeo ser uma pedra eacute apenas percebida como uma pedra e assim por diante Dessa maneira estaacute preparado o palco para o Poacutes-Modernismo

38th Annual Star Island Conferencerdquo (Portsmouth NH 2707 a 03081991) Disponiacutevel em wwwirasorgconferences abs1991pdf Acesso em 20 mar 2003

25 FEINBERG Lecture 1726 COHEN Elaine ldquoMatthew Fox Techno Cosmic Mass Heralds New Spiritualityrdquo In Conscious

Life julho 1999 p 11 Citado por PENN Lee (1999 2004) ldquoThe New Age Movement in the Episcopal Churchrdquo Disponiacutevel em httpswwwevangelizationstationcomhtm_htmlNew20Agenew_age_movement_in_the_epishtm Acesso em 6 maio 2021

27 GROOTHUIS Douglas Unmasking the New Age Downers Grove IL IVP 1986 p 1828 FEINBERG Lecture 17

39

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

3 DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO NA TEOLOGIA POacuteS-MODERNA

Se o tema de desconstruccedilatildeoreconstruccedilatildeo esteve presente em cada uma dessas cinco escolas de pensamento teoloacutegico eacute no poacutes-modernismo que en-contramos o seu aacutepice Daniel J Adams depois de apresentar e discutir trecircs caracteriacutesticas do poacutes-modernismo ndash 1) decliacutenio do Ocidente e do pensamento ocidental (dilema do secularismo x devoccedilatildeo pessoal) 2) questionamento das metanarrativas (verdades fundacionais autoritativas) e 3) disseminaccedilatildeo da informaccedilatildeo (o ldquomercadordquo intelectual) ndash relaciona a quarta da seguinte forma ldquoUma quarta caracteriacutestica da era poacutes-moderna eacute aquela que ficou conhecida como o processo de desconstruccedilatildeo Desconstruccedilatildeo eacute exatamente o que estaacute expresso no significado impliacutecito da palavra eacute desmembrar textos de maneira semelhante a tirar as camadas de uma cebola Eacute um processo intencionalrdquo29

Jacques Derrida o famoso filoacutesofo poacutes-moderno de origem argelina mas de nacionalidade francesa que tem tido um impacto substancial no pensamento filosoacutefico e poacutes-moderno escreveu

Por que se envolver em um processo de desconstruccedilatildeo em vez de deixar as coisas como estatildeo etc Nada aqui se processa sem uma medida de forccedilas em algum momento Desconstruccedilatildeo tenho insistido natildeo eacute algo neutro Eacute uma intervenccedilatildeo30

Adams anteriormente citado analisa o pensamento do poacutes-modernista Ernest Gellner que escreveu sobre razatildeo e religiatildeo31 afirmando

hellip desconstruccedilatildeo tem uma implicaccedilatildeo profunda para a teologia considerando que a ldquoverdade objetiva deve ser substituiacuteda pela verdade hermenecircuticardquo Isso significa que os textos sagrados como a Biacuteblia natildeo possuem um significado uacuteltimo nem satildeo textos autoritativos Na realidade a rede ou a teia de relacio-namentos fora do texto podem determinar tanto o significado do texto como a natureza de sua autoridade Um exemplo disso dentro da tradiccedilatildeo presbiteriana--reformada eacute a controveacutersia formada em torno da eacutetica sexual e as maneiras nas quais posiccedilotildees diferentes tecircm sido propostas apoiadas na interpretaccedilatildeo dos textos biacuteblicos Uma leitura tradicional do texto e uma desconstruccedilatildeo poacutes-moderna do texto resultam em interpretaccedilotildees com enormes diferenccedilas entre si32

29 ADAMS Daniel J ldquoToward a Theological Understanding of Postmodernismrdquo publicado ini-cialmente em Metanoia (Praga) primavera-veratildeo 1997 Disponiacutevel em httpwwwcrosscurrentsorgadamshtm Acesso em 6 maio 2021

30 Extraiacutedo de uma carta de Jacques Derrida a Jean-Louis Houdebine citado em DERRIDA Jacques Positions Trad Alan Bass Chicago University of Chicago Press 1981 p 93

31 GELLNER Ernest Postmodernism Reason and Religion London Routledge 1992 p 3532 ADAMS ldquoToward a Theological Understandingrdquo

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

40

Podemos observar consequentemente a contradiccedilatildeo que existe entre o pensamento e a teologia poacutes-moderna (com essa ecircnfase na desconstruccedilatildeo) e os absolutos do teiacutesmo claacutessico especialmente a noccedilatildeo da existecircncia da verda-de absoluta que pode ser percebida por seres racionais mesmo natildeo sendo de forma exaustiva mas pelo menos de forma parcial e ainda assim verdadeira Um artigo por Robert Goizueta professor de teologia do Boston College aborda essa questatildeo com clareza

A desconstruccedilatildeo poacutes-moderna do sujeito e a rejeiccedilatildeo de todas as chamadas me-tanarrativas levam agrave duacutevida sobre a proacutepria possibilidade de se fazer quaisquer declaraccedilotildees normativas Simplificando a verdade eacute frequentemente reduzida a uma questatildeo de um significado ambivalente ou utilitaacuterio a feacute eacute algo que tem significado ou tem utilidade para mim A feacute dos pobres tem significado ou utilidade para eles Ela os auxilia Ela os liberta33

Aleacutem disso essa identificaccedilatildeo do poacutes-modernismo com desconstruccedilatildeo eacute estabelecida e definida pelo pesquisador e historiador Robert Chandler que escreve ldquoO poacutes-modernismo ou a lsquodesconstruccedilatildeorsquo postula que nada eacute neutro ndash observaccedilatildeo linguagem preservaccedilatildeo de registros documentos narra-dores ou escritos Objetividade eacute um mito e valores absolutos natildeo existemrdquo34 Consequentemente o poacutes-modernismo eacute em sua proacutepria essecircncia contraacuterio agrave noccedilatildeo dualiacutestica que contrasta verdade com falsidade certo com errado e assim por diante Obviamente o cristatildeo natildeo eacute dualista no sentido de que existe um Deus regente do universo no qual ele crecirc que rege todas as coisas e natildeo forccedilas sempre opostas que regem impessoalmente os destinos das pessoas No entanto a Biacuteblia expressa que existem sim posiccedilotildees e situaccedilotildees contrastantes em vaacuterias aacutereas Eacute interessante observarmos como o poacutes-modernismo perturba ateacute o pensamento oriental dualista (e equivocado) ao extremo mas que reco-nhece alguns contrastes inevitaacuteveis da realidade que natildeo se encaixam na visatildeo amorfa do poacutes-modernismo Nesse sentido sem que tenhamos que concordar com tudo um partidaacuterio da filosofia oriental Balbinder Singh Bhogal ex--professor visitante da University of Derby (atualmente um escritor proliacutefico e membro do corpo docente da Hofstra University)35 expressa sua criacutetica ao poacutes-modernismo assim

33 GOIZUETTA Robert God First Loved Us Reflections on the Theological Grounds of Liberation Disponiacutevel em httpswwwlivedtheologyorgwp-contentuploads20150520120424PPR01-Roberto--S-Goizueta-God-First-Loved-Us-Reflections-on-the-Theological-Grounds-of-Liberationpdf p 8 Acesso em 6 maio 2021

34 CHANDLER Robert J Resenha de ldquoContested Eden California Before the Gold Rushrdquo GU-TIERREZ Ramon e ORSI Richard (Orgs) The Journal of San Diego History 44 n 4 (outono 1998) p 44 (4) Disponiacutevel em httpssandiegohistoryorgjournal1998octobereden Acesso em 6 maio 2021

35 Long Island NY Ver httpshofstraacademiaeduBalbinderSinghBhogal Acesso em 6 maio 2021

41

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

O pensamento poacutes-moderno desafia dualidades hieraacuterquicas e herdadas e revela uma nova forma de pensar que emerge desses dualismos como um processo natural de desconstruccedilatildeo-construccedilatildeo-desconstruccedilatildeo Esse pensamento obscuro esmaece os limites de um dualismo que existe agraves claras como o sagrado e o secular luz e trevas o bem e o mal certo e errado Deus e o homem o infinito e o finito o numenal e o fenomenal o espiacuterito e a mateacuteria deus-pai e matildee terra36

David Griffin na introduccedilatildeo ao seu trabalho de muacuteltiplos autores identi-fica um ramo do poacutes-modernismo que para no estaacutegio da desconstruccedilatildeo sendo assim harmocircnico com suas premissas ndash se o pluralismo e a diversidade eacute o que conta por que reconstruir Ele aponta para o pensamento desconstrutivo ou eliminador do poacutes-modernismo ldquoO poacutes-modernismo filosoacutefico eacute inspirado de diversas formas pelo pragmatismo e fisicalismo por Ludwig Wittgenstein Martin Heidegger e Jacques Derrida e outros pensadores franceses recentesrdquo37

No entanto no final das contas em um sistema onde a desconstruccedilatildeo reina descontroladamente segue-se a reconstruccedilatildeo de uma forma subjetiva sem padrotildees que foram igualmente desconstruiacutedos com o restante A recons-truccedilatildeo ocorreraacute na linguagem nas artes no pensamento teoloacutegico e religioso com cada pessoa construindo sua proacutepria imagem da realidade de acordo com a apreensatildeo subjetiva das realidades ndash o que quer que sejam estas Thomas Hopko presidente do St Vladimir Seminary escreveu pertinentemente sobre essa condiccedilatildeo na qual encontramos o mundo poacutes-moderno

Em uma sociedade moderna e secularizada a linguagem as estruturas os siacutembolos e rituais claacutessicos e o cristianismo biacuteblico permanecem enquanto os seus conteuacutedos e significados satildeo radicalmente alterados Na desconstruccedilatildeo poacutes-moderna da cosmovisatildeo moderna ndash por intermeacutedio de um existencialis-mo radical cultural e pessoal pela revoluccedilatildeo sexual pela busca incessante do miacutestico pela politizaccedilatildeo da teologia e da eacutetica e pela explosatildeo do hedonismo e avareza espiritual e material ndash a linguagem tradicional as estruturas os siacutembolos e rituais satildeo recriados ao ponto em que os seus conteuacutedos e significados originais natildeo mais existem mas satildeo substituiacutedos por uma completa nova reconstruccedilatildeo da realidade38

36 BHOGAL Balbinder Singh (1995) ldquoGlimpses of Postmodernism (Deconstruction) and Reli-gionrdquo Palestra proferida no School of Oriental and African Studies Post-Graduate Seminar nov 1995 Disponiacutevel em httpwwwmultifaithnetorgmfnopenaccessresearchonlineseminarbbglimpseshtm Acesso em 16 mar 2003

37 GRIFFIN David Ray BEARDSLEE William A HOLLAND Joe Varieties of Postmodern Theology Albany State of New York University Press 1989 p xii

38 HOPKO Thomas ldquoOrthodoxy in Pluralistic Post-Modern Societiesrdquo The Ecumenical Review 51 p 364-371 Disponiacutevel em httpsdoiorg101111j1758-66231999tb00404x Acesso em 6 maio 2021

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

42

Assim temos visto esse tema recorrente de desconstruccedilatildeoreconstruccedilatildeo nesse periacuteodo contemporacircneo de desenvolvimento teoloacutegico desde a Teologia da Esperanccedila em diante e a sua forte presenccedila no pensamento filosoacutefico e teoloacutegico poacutes-moderno Aonde isso levaraacute quando tratamos dessas influecircncias no campo da educaccedilatildeo

4 O QUE ACONTECE QUANDO NAtildeO HAacute NADA A DESCONSTRUIR

E se existir uma aacuterea da realidade onde natildeo haacute estrutura de pensamento para desconstruir Se ela existe entatildeo natildeo haacute que se falar sobre reconstruir algo que natildeo foi desconstruiacutedo A aacuterea de educaccedilatildeo mais especificamente a educaccedilatildeo das crianccedilas se apresenta para o enquadramento nesta categoria Natildeo me refiro aos processos metodoloacutegicos da educaccedilatildeo pois nesses certamente a mente poacutes-moderna encontraraacute amplo campo para desconstruccedilatildeo e reconstru-ccedilatildeo Faccedilo referecircncia agrave aacuterea cognitiva da crianccedila o que ocorre na sua mente nos primeiros estaacutegios de aprendizado em sua existecircncia como o conhecimento chega ateacute ela O que na realidade eacute conhecimento Eacute algo que eacute transmitido comunicado e ao qual ela eacute conduzida e levada a assimilar

Os trabalhos escritos nesta aacuterea tecircm mantido paridade com o pensamento contemporacircneo e com desenvolvimentos teoloacutegicos especialmente neste pe-riacuteodo poacutes-moderno onde se questiona a realidade de tudo (ou o conhecimento concreto) exceto as apreensotildees subjetivas na mente das pessoas Tratando da mente de crianccedilas admitem que natildeo haacute nada para desconstruir mas sim para construir No entanto nessa abordagem o conhecimento natildeo eacute e nem deve ser transmitido ndash de alguma forma indescritiacutevel esse conhecimento vai brotar ou ser construiacutedo autonomamente Tentativas de transmissatildeo a algueacutem de dados da realidade como em processos de ensino-aprendizagem tradicionais resultam tatildeo somente em distorccedilatildeo da realidade subjetiva dessa pessoa que deve ser facilitada tatildeo somente para caminhar por um processo de construccedilatildeo de sua proacutepria compreensatildeo do mundo e da vida E assim nasce o construtivismo

41 A ferramenta adequada do poacutes-modernismoO Construtivismo ainda que plantado na primeira metade do seacuteculo 20

tomou forma desenvolveu-se e popularizou-se na segunda metade daquele seacute-culo Cresceu portanto paralelamente e em sobreposiccedilatildeo ao poacutes-modernismo Podemos afirmar que o construtivismo se encaixa perfeitamente no subjeti-vismo de pensadores poacutes-modernos de tal forma a poder funcionar como a ferramenta educacional do poacutes-modernismo Dennis McCallum conhecido conferencista e autor sobre esta filosofia coloca a conexatildeo da seguinte maneira

O construtivismo eacute a teoria de aprendizagem principal subjacente agrave educaccedilatildeo poacutes-moderna De acordo com construtivistas o conhecimento natildeo eacute descoberto

43

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

como afirmam os modernistas Todo conhecimento eacute inventado ou ldquoconstruiacutedordquo na mente do aprendiz Natildeo poderia ser de outra maneira dizem os poacutes-moder-nistas porque as ideias que os professores ensinam e os alunos aprendem natildeo correspondem a qualquer realidade objetiva Satildeo tatildeo somente construccedilotildees hu-manas Conhecimento ideias e linguagem satildeo criados por pessoas natildeo porque sejam ldquoverdaderdquo mas porque tecircm utilidade39

Jaacute haacute algumas deacutecadas o construtivismo tem sido ldquovendidordquo como uma metodologia de ensino mas ele se apresenta na realidade como um sistema filosoacutefico do processo de ensino-aprendizagem chegando adicionalmente a postular teorias sobre a formaccedilatildeo de valores morais e do julgamento do certo e errado na concepccedilatildeo mental das crianccedilas Suas raiacutezes foram fincadas em solo europeu pelo pesquisador Jean Piaget (1896-1980) e suas conclusotildees adota-das amplamente por psicopedagogos A popularizaccedilatildeo na Ameacuterica Latina foi uma consequecircncia inevitaacutevel da influecircncia europeia na aacuterea educacional dessa regiatildeo especialmente no Brasil onde tornou-se o cerne majoritaacuterio do ensino nos cursos de pedagogia de universidades Professores cristatildeos assim treina-dos iludidos pela ideia de que estatildeo apenas aprendendo uma ldquometodologiardquo de vanguarda absorvem pontos cruciais que contradizem a revelaccedilatildeo biacuteblica Via de regra experimentam o sentimento de que ldquoalgo estaacute erradordquo mas tecircm dificuldade em fazer uma anaacutelise depuradora mais profunda que identifique as falhas metafiacutesicas epistemoloacutegicas e teoloacutegicas do construtivismo40

Nos Estados Unidos da Ameacuterica berccedilo de tantas escolas de pensamento na aacuterea educacional o construtivismo tem feito avanccedilos significativos Jaacute em 1999 a revista especializada do campo ldquoEducational Leadershiprdquo devotou um exemplar inteiro agrave ldquosala de aula construtivistardquo no qual vaacuterios artigos relatoacute-

39 MCCALLUM Dennis The Death of Truth What is wrong with Multiculturalism the Rejection of Reason and the New Postmodern Diversity Minneapolis Bethany House 1996 p 99

40 Natildeo eacute a intenccedilatildeo neste artigo fazer uma exposiccedilatildeo e refutaccedilatildeo detalhada do construtivismo O objetivo eacute demonstrar a ligaccedilatildeo do construtivismo com o poacutes-modernismo e os conceitos teoloacutegicos precedentes Sobre o construtivismo em todos os seus aspectos o autor jaacute publicou diversos ensaios e livros aos quais direciona os leitores interessados no aprofundamento e estudo do tema PORTELA NETO F S O que estatildeo ensinando aos nossos filhos Fides Reformata V-1 (2000) p 71-96 PORTELA NETO F S Pensamentos Preliminares Direcionados a uma Pedagogia Redentiva Fides Reformata XIII-2 (2008) p 125-154 PORTELA NETO F S Resgatando o Papel do Professor na Es-cola Confessional como Transmissor de Conhecimento e da Verdade Reflexotildees e Propostas Seminais Fides Reformata XXV-1 (2020) p 63-75 PORTELA NETO F S O que estatildeo ensinando aos nossos filhos uma avaliaccedilatildeo criacutetica da pedagogia contemporacircnea apresentando a resposta da educaccedilatildeo escolar cristatilde Satildeo Joseacute dos Campos Editora Fiel 2012 PORTELA NETO F S ldquoConstrutivismo no Cenaacuterio Brasileirordquo In Fundamentos Biacuteblicos e Filosoacuteficos da Educaccedilatildeo Seacuterie Perspectivas Cristatildes da Educaccedilatildeo Satildeo Paulo ACSI Brasil 2005 PORTELA NETO F S ldquoIssues Faced by Education in the 21st Centuryrdquo Fides Reformata XXVI-1 (2021) PORTELA NETO F S Visatildeo cristatilde sobre educaccedilatildeo escolar Campina Grande PB Visatildeo Cristatilde 2015

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

44

rios e ateacute os colunistas regulares concentraram os textos em uma exposiccedilatildeo elogiosa que destacava a excelecircncia do construtivismo41

Simplificadamente o ldquoconstrutivismo postula que o conhecimento eacute algo que cresce subjetiva e individualmenterdquo ldquoNesse sentido natildeo eacute algo que deve ser ministrado ou transmitido pelo professorrdquo O mestre diferente de antiga-mente deve ser um mero ldquoagente facilitador nesse processo de crescimentordquo cognitivo42

O relacionamento entre o poacutes-modernismo e o construtivismo eacute deixado claro por Dennis McCallum analisando o posicionamento dos poacutes-modernistas quanto ao papel dos professores e agrave questatildeo da verdade

De acordo com os poacutes-modernistas os educadores satildeo facilitadores que abrigam preconceitos e satildeo co-construidores do conhecimento Se toda realidade natildeo existe ldquolaacute forardquo mas somente na mente daqueles que a percebem entatildeo ningueacutem pode reclamar para si o papel de autoridade Todas as versotildees da verdade satildeo meramente criaccedilotildees humanas Educadores ndash quer sejam professores em salas de aula pesquisadores ou autores de livros didaacuteticos ndash natildeo satildeo objetivos nem autoridades legiacutetimas Em vez disso visualizam a educaccedilatildeo partindo de suas proacuteprias perspectivas construiacutedas e cheias de preconceitos Consequentemente natildeo possuem qualquer relacionamento ldquoprivilegiadordquo com a verdade43

42 Incompatibilidades com o conceito biacuteblico da educaccedilatildeoJaacute verificamos que a teologia contemporacircnea nos vaacuterios ramos principais

aqui tratados e o poacutes-modernismo convivem em perfeita e plena harmonia Esse relacionamento eacute possibilitado pela temaacutetica desconstruccedilatildeoreconstruccedilatildeo que costura todas essas correntes de pensamento Nesse solo feacutertil um enten-dimento construtivista no campo educacional se encaixa sem dissonacircncia Mas a preocupaccedilatildeo maior eacute com a educaccedilatildeo escolar cristatilde Muitas vezes o conceito pedagoacutegico de escolas e educadores procura amparo em teologias que teimam em se utilizar de terminologia biacuteblica para destruir as proacuteprias diretrizes das Escrituras Assim terminam confundindo estas escolas e educadores pela suposta ldquocristianizaccedilatildeordquo de conceitos totalmente antagocircnicos ao que a Palavra de Deus ensina sobre a natureza humana a assimilaccedilatildeo cognitiva e a necessi-dade de firmar a praacutetica pedagoacutegica em princiacutepios e valores eternos que dela emanam Tanto pelas premissas poacutes-modernistas como pela dos construtivistas nunca teriacuteamos condiccedilatildeo de saber se a verdade objetiva existe Qualquer dado pode significar uma seacuterie de ldquoverdadesrdquo diferentes dependendo das pessoas que tomam contato com esses dados McCallum elucida ldquoUma visatildeo plena-

41 Educational Leadership 57 n 3 (novembro de 1999)42 PORTELA NETO F S O que estatildeo ensinando aos nossos filhos Fides Reformata V-1 (2000)

p 7243 MCCALLUM The Death of Truth p 99

45

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

mente construtivista e pressuposiccedilotildees metafiacutesicas estaacuteticas satildeo mutuamente excludentesrdquo44

A feacute cristatilde eacute fundamentada e o processo de ensino-aprendizagem cristatildeo deveria ser ordenado na existecircncia de acircncoras metafiacutesicas estaacuteticas Natildeo so-mente Deus eacute transcendente (estaacute aleacutem da realidade fiacutesica) e eacute imutaacutevel mas ele nos lega realidades objetivas a partir de sua pessoa Deus eacute a fonte das coisas reais ele elucida a realidade (Deus imanente) e nele natildeo haacute sombra de mudanccedilas (Tg 117 e Ml 36) A verdade eacute personificada (Jo 146) em Cristo (Deus conosco) e eacute objetivamente relatada nas Escrituras (Jo 177) A ressur-reiccedilatildeo por exemplo eacute realidade objetiva relatada por testemunhas e natildeo um reflexo subjetivo do objeto com a mente ou uma ilusatildeo criada na mente de pessoas alucinadas (1 Co 15)

Em outra faceta o processo pedagoacutegico contemporacircneo tem enaltecido o conceito da educaccedilatildeo disruptiva como ldquouma das palavras-chave do seacuteculo 21rdquo na qual toda praacutetica deve ser questionada e todo paradigma tradicional descar-tado ou desconstruiacutedo ldquorompendo com o estabelecidordquo45 A educaccedilatildeo escolar cristatilde natildeo deve ser refrataacuteria a novas metodologias mas preza e constroacutei em cima de verdades estabelecidas Ela pode reverter transitoriamente o processo mas natildeo romper com ldquoo estabelecidordquo principalmente se este ldquoestabelecidordquo forem conceitos e princiacutepios biacuteblicos A Biacuteblia aponta para a importacircncia de sermos fieacuteis ao corpo de doutrinas (ensinamentos) previamente reveladas ou seja a manutenccedilatildeo da ldquoanalogia da feacuterdquo (Rm 126)

Semelhantemente a ideia contemporacircnea da sala de aula invertida (flipped classroom)46 deve ser utilizada com cuidado por educadores e escolas cristatildes Se falamos de momentos em que os alunos satildeo levados a reverter os papeis em algumas ocasiotildees ou intermitentemente vemos paralelo com as diretrizes de Jesus aos disciacutepulos para que fossem de dois em dois a colocar em praacutetica o que estavam aprendendo (Mc 67) Ou no caso da mulher samaritana que tendo sido ensinada (Jo 47-26) passa a ensinar (Jo 439) No entanto essa metodologia educacional poacutes-moderna postula mais uma vez a desconstru-ccedilatildeo completa das praacuteticas de ensino pois o momento do encontro presencial contempla tatildeo somente discussatildeo dos assuntos reduzindo o papel do professor a um dos pares na classe

44 Ibid45 Publicaccedilatildeo Institucional do Grupo Espanhol Iberdrola sem designaccedilatildeo de autor ldquoUma educaccedilatildeo

disruptiva para enfrentar os desafios do futurordquo Disponiacutevel em httpswwwiberdrolacomtalentoseducacao-disruptiva Acesso em 6 maio 2021

46 Meacutetodo de ensino atraveacutes do qual a loacutegica da organizaccedilatildeo de uma sala de aula eacute invertida por completo Ver CARVALHO Rafael ldquoComo funciona a sala de aula invertidardquo 18 de maio de 2018 Disponiacutevel em httpswwwedoolscomsala-de-aula-invertida Acesso em 6 maio 2021

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

46

CONCLUSAtildeOO pensamento e a teologia poacutes-moderna quando acoplados ao constru-

tivismo na esfera educacional com essa forccedila demolidora de desconstruccedilatildeoreconstruccedilatildeo e uma negaccedilatildeo latente da possibilidade de aquisiccedilatildeo do conhe-cimento do real contrasta com a cosmovisatildeo cristatilde seus princiacutepios e valores extraiacutedos da Biacuteblia Como cristatildeos natildeo devemos temer revisotildees de comporta-mentos procedimentos ou processos desde que as mudanccedilas sejam efetivadas de acordo com padrotildees esquecidos ou negligenciados Na realidade nessas situaccedilotildees devemos ateacute liderar as ldquodesconstruccedilotildeesrdquo A Reforma do Seacuteculo 16 fez exatamente isso Devemos estar sempre alerta para desconstruccedilotildees e recons-truccedilotildees que sejam um fim em si mesmas descartando a sabedoria do passado e os princiacutepios da Palavra de Deus A teologia da Reforma com sua ecircnfase nas Escrituras Sagradas como uacutenica fonte autoritativa e inerrante de conhecimento religioso metafiacutesico e epistemoloacutegico deve se posicionar no centro de todos os esforccedilos intelectuais e pedagoacutegicos de cristatildeos comprometidos com a verdade

ABSTRACTThis article traces the theological development of the 20th century dividing

it into two parts the first half showing the transition from consolidated 19th century liberalism to moderncontemporary theology and the second half the road paved to postmodern theology The author demonstrates that the underlying theme of deconstruction and reconstruction of major tenets with an increasing departure from biblical directives is always present in moderncontemporary theology This is shown especially in five schools of theological thought Theology of Hope Liberation Theology Feminist Theology Process Theology and New Age Theology All these share the postmodern thought and belittle the Bible as the inerrant Word of God At the same time they provide feedback to Postmodern Theology raising doubts about biblical and traditional eternal principles and values Trends that appear in these theological schools of thought are similar to those being experienced in the field of education some of which have profound impact on the Christian teaching-learning pro-cess With its subjective approach to reality postmodernism has subverted key pedagogical concepts has undermined the role of the teacher and has submerged schools in a crisis of authority An appeal is made to have a solid biblical foundation for any philosophy of Christian school education which should be grounded in sound theology

KEYWORDSChristian education Constructivism Contemporary theology Decon-

struction and reconstruction Piaget Postmodernism Postmodern theology Theological liberalism

47

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

ldquoCOR MEUM TIBI OFFERO DOMINE PROMPTE ET SINCERErdquo UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO

SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADAHeber Carlos de Campos Juacutenior

RESUMOEste artigo apresenta a espiritualidade reformada como uma aacuterea ainda

desconhecida em meios populares e acadecircmicos e carente de ser redescoberta O conceito de que essa natildeo eacute uma aacuterea forte entre os reformados somado aos referenciais vagos sobre praacuteticas devocionais tecircm levado muitos a procurar espiritualidades alternativas No intuito de resgatar o aspecto piedoso e de-vocional da tradiccedilatildeo reformada este artigo intenta apresentar uma introduccedilatildeo agrave teologia praacutetica de personagens como Joatildeo Calvino os puritanos ingleses o movimento reformado holandecircs Nadere Reformatie e Jonathan Edwards aleacutem de representantes contemporacircneos da piedade reformada Num segundo momento o artigo apresenta alguns distintivos dessa espiritualidade e conclui apresentando a necessidade de resgatar essa histoacuteria para o movimento refor-mado brasileiro

PALAVRAS-CHAVEEspiritualidade Teologia reformada Joatildeo Calvino Puritanos Nadere

Reformatie Jonathan Edwards

Doutor em Teologia Histoacuterica (PhD Calvin Theological Seminary) Mestre em Teologia His-toacuterica (ThM Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper) professor de Teologia Histoacuterica no CPAJ e de Teologia Sistemaacutetica no Seminaacuterio Rev Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

48

INTRODUCcedilAtildeO PROCURA-SE UMA ESPIRITUALIDADE REFORMADAEspiritualidade eacute uma palavra relativamente recente no vocabulaacuterio

teoloacutegico protestante O estudioso do assunto James Houston1 observou na deacutecada de 1980 que o interesse dos evangeacutelicos pela espiritualidade era novo e o termo ateacute entatildeo natildeo aparecia em dicionaacuterios biacuteblicos ou teoloacutegicos2 Isso natildeo significa que o assunto fosse novo pois no passado eram mais utilizados termos como ldquopiedaderdquo ldquodevoccedilatildeordquo ldquosantidaderdquo ldquoandar com Deusrdquo Ateacute poucas deacutecadas atraacutes espiritualidade era um termo mais associado ao ascetismo de religiosidades orientais ou ao misticismo do monasticismo medieval Alister McGrath observa que o termo moderno ldquoespiritualidaderdquo nasce no contexto catoacutelico do seacuteculo 17 mas recentemente ldquotem recebido grande aceitaccedilatildeo como a maneira preferida de referir-se aos aspectos da praacutetica devocional de uma religiatildeo especificamente as experiecircncias individuais interiores dos cristatildeosrdquo em oposiccedilatildeo agrave religiatildeo meramente intelectual e acadecircmica3

Definir o conceito de espiritualidade eacute desafiador por ser muito abran-gente (o todo da vida cristatilde)4 e por depender dos referenciais teoloacutegicos de cada um A verdade eacute que espiritualidade eacute um guarda-chuva muito amplo com direito a definiccedilotildees vagas ou perigosamente plurais Houston define espiritua-lidade como ldquoo estado de relacionamento profundo com Deusrdquo5 e McGrath define espiritualidade cristatilde como a ldquobusca de uma vida religiosa autecircntica e satisfatoacuteriardquo6 expressotildees que natildeo oferecem paracircmetros claros para a experiecircn-cia de vida cristatilde No entanto o proacuteprio McGrath mostra que a teologia do seacuteculo 20 dissociou o estudo teoloacutegico da espiritualidade criando uma cisatildeo natildeo saudaacutevel entre o conteuacutedo objetivo da feacute e o ato subjetivo da confianccedila7

A verdade eacute que essa dicotomia entre teologia e espiritualidade tem preju-dicado conceituar o que seria uma espiritualidade reformada Afinal ldquoreforma-dordquo tem sido compreendido como sinocircnimo de ldquolinha teoloacutegicardquo natildeo de praacutetica

1 James Houston membro da Sociedade dos Irmatildeos (Plymouth Brethren) sempre se interessou por educaccedilatildeo teoloacutegica voltada para a formaccedilatildeo espiritual dos evangeacutelicos e por isso fundou o Regent College com esse interesse em resgatar a espiritualidade cristatilde ao longo dos seacuteculos MCGRATH Alister J I Packer A Biography Grand Rapids Baker 1997 p 223-231

2 HOUSTON James M ldquoEspiritualidaderdquo In ELWELL Walter A (Org) Enciclopeacutedia Histoacuterico--Teoloacutegica da Igreja Cristatilde Trad Gordon Chown Satildeo Paulo Vida Nova 1992 vol 2 p 60

3 MCGRATH Alister E Uma introduccedilatildeo agrave espiritualidade cristatilde Trad William Lane Satildeo Paulo Vida 2008 p 21 25

4 Para um resumo das complexidades dessa definiccedilatildeo ver a discussatildeo do catoacutelico SHELDRAKE Philip Spirituality A Brief History 2ordf ed Malden MA Wiley-Blackwell 2013 p 3-9

5 HOUSTON ldquoEspiritualidaderdquo p 606 MCGRATH Uma introduccedilatildeo agrave espiritualidade cristatilde p 207 Ibid p 60-62

49

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

cristatilde Popularmente reformado eacute sinocircnimo de ldquocabeccedila granderdquo e ldquocoraccedilatildeo friordquo com pouca ecircnfase em avivamento8 Curiosamente vaacuterios evangeacutelicos simpaacuteticos agrave teologia reformada talvez conseguissem enumerar particularidades da ldquoespiritualidade catoacutelicardquo ou da ldquoespiritualidade pentecostalrdquo mas teriam dificuldade em arrolar os distintivos de uma ldquoespiritualidade reformadardquo Se essa constataccedilatildeo estaacute correta deve-se concluir que essa espiritualidade ou eacute inexistente enquanto tradiccedilatildeo (isto eacute apenas presente em alguns poucos indiviacuteduos) ou eacute desconhecida do puacuteblico

Philip Ryken discordaria de que ela seja inexistente pois ele define o cal-vinista verdadeiro como algueacutem cuja espiritualidade consiste em ter uma mente centrada em Deus um espiacuterito penitente um coraccedilatildeo grato uma vontade sub-missa ao Todo-Poderoso uma vida santa e um propoacutesito de glorificar o Senhor9 Essa eacute a sua tentativa de enumerar as caracteriacutesticas de uma espiritualidade reformada em resposta agravequeles que tem uma visatildeo quanto aos reformados de intransigecircncia em sua militacircncia teoloacutegica Eacute verdade que uma descoberta do calvinismo que se torna beacutelica e quase que exclusivamente cognitiva (ortodoxia sem devoccedilatildeo) natildeo tem ajudado pelo contraacuterio parece reforccedilar a imagem de que o calvinista natildeo eacute piedoso Todavia mesmo para os que discordam dessa visatildeo popular natildeo satildeo muitos que conseguiriam enumerar uma boa histoacuteria resumida da teologia praacutetica entre os reformados

Mesmo o meio acadecircmico natildeo tem facilidade em identificar quais seriam os contornos de uma espiritualidade reformada Supreendentemente por vezes ateacute questiona se de fato existe uma espiritualidade distinta dos reformados O acadecircmico presbiteriano Hughes Oliphant Old numa palestra proferida no iniacutecio da deacutecada de 199010 disse que muitos se surpreenderam quando uma grande coletacircnea sobre os claacutessicos da espiritualidade ocidental quase natildeo incluiu protestantes e os que foram colocados nem representavam bem a es-piritualidade protestante (por exemplo Jacob Boehme os Quakers William Law etc) Ele lamentou que essa lista natildeo tivesse incluiacutedo os salmos metrifi-cados de Clement Marot e Teodoro Beza as cartas de Joatildeo Calvino e Samuel Rutherford a Fiel Narrativa de Jonathan Edwards o diaacuterio de David Brainerd o comentaacuterio devocional de Matthew Henry e os escritos de Richard Baxter dentre outros claacutessicos reformados Isso levou muitos a perguntarem se de

8 Kenneth Stewart comprova que esse preconceito eacute um dos vaacuterios mitos entre os reformados jaacute que haacute uma longa lista de envolvimento de reformados com avivamentos Cf STEWART Kenneth Ten Myths about Calvinism Recovering the Breadth of the Reformed Tradition Downers Grove IL InterVarsity 2011 p 99-120

9 RYKEN Philip Graham ldquoO que eacute um calvinista de verdaderdquo In LUCAS Sean Michael et al (Orgs) Seacuterie Feacute Reformada Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2015 vol 1 p 10-29

10 OLD Hughes Oliphant ldquoWhat is Reformed Spirituality Played Over Again Lightlyrdquo In LEITH J H (Org) Calvin Studies VII John Calvin Studies Davidson NC 1994 p 61-68

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

50

fato existe tal coisa como uma ldquoespiritualidade reformadardquo11 Essa ausecircncia de uma histoacuteria bem contada sobre a piedade reformada levou a um conceito popular negativo sobre o calvinismo

Por conta desse vaacutecuo histoacuterico surgiu ateacute entre pessoas que pertencem a igrejas reformadas uma busca por espiritualidades alternativas Tem havido um movimento de resgate do que eacute antigo como se a modernidade tivesse sufocado a vida piedosa12 O prefaciador brasileiro da obra de Alister McGrath sobre espiritualidade escreve ldquoEacute tempo de deixarmos as teacutecnicas de marke-ting e administraccedilatildeo e voltarmo-nos ao testemunho dos santos e profetas que habitaram o deserto e os mosteiros especialmente entre os seacuteculos VI e XV e conhecer o Deus que estaacute mais interessado em nossos afetos do que em nossos feitos mais atento ao nosso caraacuteter do que aos nossos discursosrdquo13 Kenneth Stewart narra que existe uma onda de livros evangeacutelicos norte-americanos apontando para o monasticismo como o ideal de espiritualidade a ser resga-tado pelos evangeacutelicos No entanto ele mesmo avalia que tem havido uma apropriaccedilatildeo de praacuteticas contemplativas sem discernimento teoloacutegico14 Esse tipo de espiritualidade alternativa por vezes estaacute unido a interesses por certas doutrinas reformadas criando um pluralismo eclesiaacutestico bem diversificado em nossos dias

Essa apropriaccedilatildeo evangeacutelica miacutestica do legado romanista parece nova mas tem elementos bem antigos Michael Horton observa como a valorizaccedilatildeo do interior sobre o exterior do espiacuterito antes que a instituiccedilatildeo eacute tatildeo antigo quanto o gnosticismo cujas pressuposiccedilotildees platocircnicas natildeo foram todas rejeitadas pela igreja15 Na Idade Meacutedia o dualismo interior-exterior levou a vaacuterios movimen-tos miacutesticos de desprezo da igreja institucionalizada (pregaccedilatildeo sacramentos disciplina) em favor de disciplinas espirituais privadas Isso foi apropriado natildeo soacute por movimentos religiosos como os anabatistas entusiastas (ldquoDeus dentrordquo) mas ateacute de modo ainda mais influente nas filosofias iluministas ldquoSeja conce-bida em termos da razatildeo interior (Descartes) lsquoda lei moral interiorrsquo (Kant) ou do lsquosentimento piedosorsquo (Schleiermacher) a modernidade fez ouvidos moucos

11 OLD ldquoWhat is Reformed Spiritualityrdquo p 6112 Robert Webber foi um dos que defenderam a necessidade de um resgate da tradiccedilatildeo para promo-

ver uma mistura de antigo e poacutes-moderno em vaacuterias aacutereas da teologia inclusive na espiritualidade Cf WEBBER Robert Ancient-Future Faith Rethinking Evangelicalism for a Postmodern World Grand Rapids Baker 1999 p 117-138

13 Osmar Ludovico da Silva ldquoPrefaacutecio agrave ediccedilatildeo brasileirardquo In MCGRATH Uma introduccedilatildeo agrave espiritualidade cristatilde p 12

14 STEWART Kenneth J In Search of Ancient Roots The Christian Path and the Evangelical Identity Crisis Downers Grove IL InterVarsity 2017 p 173-186

15 HORTON Michael A Grande Comissatildeo O resgate da estrateacutegia divina para o discipulado Trad Odayr Olivetti Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2014 p 287

51

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

para toda e qualquer autoridade externardquo16 Isso se vecirc entre evangeacutelicos como o quaker Richard Foster o qual natildeo inclui nas disciplinas espirituais os meios de graccedila (pregaccedilatildeo e sacramentos) ordenados por Cristo enquanto trata como essenciais meacutetodos para a piedade pessoal que natildeo satildeo ordenados na Escritura (por exemplo simplicidade e celebraccedilatildeo)17 Se conectarmos o misticismo antigo com representantes atuais da espiritualidade individualista podemos concluir que o movimento emergente e o de desigrejados natildeo eacute nada poacutes-moderno mas totalmente moderno

A dicotomia entre teologia e espiritualidade explica a falta de criteacuterio com o qual muitos tem se apropriado de outras espiritualidades Richard Foster eacute um dos grandes mentores de espiritualidade no mundo evangeacutelico atual Ele eacute um exemplo dessa apropriaccedilatildeo indiscriminada da tradiccedilatildeo quando funda uma instituiccedilatildeo (Renovare) cujo objetivo eacute ldquouma visatildeo integral da espiritualidade cristatilderdquo O que se entende por ldquointegralrdquo eacute uma amaacutelgama de seis tradiccedilotildees de espiritualidade (contemplativa de santidade carismaacutetica de justiccedila social evangelical sacramental) num mesmo pacote uacutetil para fomentar a espiritua-lidade do cristatildeo18 Quando se tem esse tipo de referencial vago e plural fica mesmo difiacutecil conhecer o que seria uma espiritualidade reformada

Outro evangeacutelico que enfatiza o interior em detrimento do institucio-nal eacute Dallas Willard que diminui o ldquoevangelho do perdatildeordquo em prol de uma ldquotransformaccedilatildeo interior da almardquo e parafraseia a Grande Comissatildeo de Mateus 28 substituindo os meios de graccedila (Palavra e sacramento) por nossas ativida-des19 Numa entrevista ao perioacutedico Modern Reformation Willard enfatizou disciplinas espirituais como ldquosolitude e silecircnciordquo e uma ecircnfase muito maior na vida cristatilde individual do que coletiva e terminou o texto menosprezando a importacircncia dos meios de graccedila como a pregaccedilatildeo e os sacramentos20 Esse tipo de espiritualidade comum entre evangeacutelicos tem que nos preocupar em tempos atuais quando a igreja tem perdido referenciais fiacutesicos e congregacionais onde uma visatildeo virtual e passiva de culto tem proliferado

Diante desse cenaacuterio evangeacutelico pode-se deduzir erroneamente que natildeo tem havido vozes procurando ensinar acerca de espiritualidade a partir da tra-diccedilatildeo reformada Na verdade existe um esforccedilo contemporacircneo para resgatar

16 HORTON A Grande Comissatildeo p 28917 Ibid p 29018 FOSTER Richard Celebraccedilatildeo da disciplina o caminho do crescimento espiritual 2ordf ed Satildeo

Paulo Vida 2007 p 303-304 Cf FOSTER Richard J e GRIFFIN Emilie Celebrando as 12 disciplinas espirituais textos claacutessicos sobre as disciplinas interiores exteriores e comunitaacuterias Trad Elizabeth Gomes Satildeo Paulo Vida 2010

19 HORTON A Grande Comissatildeo p 290-29120 ldquoSpiritual Disciplines and Means of Grace Contrast or Continuum QampA with Dallas Willardrdquo

Modern Reformation vol 22 n 4 (jul-ago 2013) p 23-25

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

52

uma identidade reformada de piedade por parte de autores de teologia histoacuterica e praacutetica tanto do meio acadecircmico como pastores e pensadores com uma lente reformada Alguns deles se especializaram em escritos de formaccedilatildeo espiritual e devoccedilatildeo como Jerry Bridges21 Donald Whitney22 e Tom Schwanda23 Aleacutem destes podemos mencionar teoacutelogos que natildeo satildeo conhecidos por essa aacuterea da teologia mas que tem exercido enorme influecircncia sobre a percepccedilatildeo reformada de espiritualidade como eacute o caso de Francis Schaeffer24 John Piper25 Michael Haykin26 e Joel Beeke27 Eacute certo que outros nomes poderiam ser citados poreacutem estes satildeo suficientes para ilustrar a tentativa de resgate de parte da tradiccedilatildeo reformada ainda relativamente desconhecida

Ainda que jaacute tenhamos alguma literatura em portuguecircs a espiritualidade reformada parece ser uma descoberta que ainda precisa ser feita em nosso paiacutes O crescimento do interesse pela teologia reformada natildeo tem sido ampla-mente marcado pela descoberta de sua espiritualidade Como este eacute um artigo histoacuterico-teoloacutegico seu intento eacute fazer um resgate introdutoacuterio desse legado e mostrar que a espiritualidade reformada existe desde as origens do movimen-to Na primeira parte do artigo seratildeo apresentados alguns representantes da tradiccedilatildeo em seu interesse por promover devoccedilatildeo de forma solidamente teoloacute-gica Na segunda parte seratildeo destacadas algumas caracteriacutesticas tipicamente reformadas a fim de se concluir que sua espiritualidade eacute de fato resultado de sua visatildeo teoloacutegica

21 Jerry Bridges (1929-2016) sempre esteve associado a uma entidade paraeclesiaacutestica (Naviga-tors) poreacutem suas ecircnfases teoloacutegicas mais marcantes foram obras da tradiccedilatildeo reformada das quais vaacuterias jaacute foram traduzidas para o portuguecircs Para um resumo de suas origens e seu legado ver httpswwwthegospelcoalitionorgblogsjustin-taylorjerry-bridges-1929-2016 Acesso em 4 jun 2021

22 Cf WHITNEY Donald Disciplinas espirituais para a vida cristatilde Satildeo Paulo Batista Regular 2009 Para mais recursos de Don Whitney ver httpsbiblicalspiritualityorg Acesso em 4 jun 2021

23 Cf SCHWANDA Tom Soul Recreation The Contemplative-Mystical Piety of Puritanism Eugene OR Wipf amp Stock 2012

24 Cf SCHAEFFER Francis A Verdadeira espiritualidade 2ordf ed Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2018 EDGAR William Francis Schaeffer e a vida cristatilde a espiritualidade contracultural Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2018

25 John Piper eacute muito conhecido do puacuteblico brasileiro e natildeo se faz necessaacuterio mencionar os vaacuterios livros de sua autoria que jaacute foram traduzidos para o portuguecircs Todavia o destaque ao seu nome se daacute pelo fato de sua principal ecircnfase sempre girar em torno da vida cristatilde da piedade e do seu interesse por tantos personagens histoacutericos que marcaram a tradiccedilatildeo reformada especialmente Jonathan Edwards

26 Michael Haykin natildeo soacute eacute estudioso da patriacutestica e da histoacuteria da ala batista reformada mas tem escrito livros que mostram o lado devocional e praacutetico da espiritualidade reformada Cf HAYKIN Michael The God Who Draws Near An Introduction to Biblical Spirituality Webster NY Evangelical Press 2007 8 mulheres de feacute Satildeo Joseacute dos Campos Fiel 2017

27 BEEKE Joel Espiritualidade reformada uma teologia praacutetica para a devoccedilatildeo a Deus Trad Valter Graciano Martins Satildeo Joseacute dos Campos Fiel 2014 BEEKE Joel R e PEDERSON Randall J Paixatildeo pela pureza Satildeo Paulo PES 2011

53

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

1 REPRESENTANTES HISTOacuteRICOS DE UMA ESPIRITUALIDADE REFORMADA

Hughes Oliphant Old afirma que a Reforma do seacuteculo 16 reformou a es-piritualidade assim como o fez com a teologia Se por seacuteculos a espiritualidade havia sido enclausurada atraacutes das paredes dos mosteiros separada da sujeira das atividades cotidianas deste mundo a espiritualidade protestante articulou a vida cristatilde ldquocom a famiacutelia laacute fora nos campos na oficina na cozinha ou no comeacuterciordquo28 De fato essa eacute a santificaccedilatildeo da vida comum (cf Ef 518-69) Em contraste com o monasticismo medieval a piedade reformada entendia a reclusatildeo e meditaccedilatildeo moderaccedilatildeo e preocupaccedilatildeo com a eternidade mas seu ascetismo era apenas espiritual29 Arie de Reuver diz que enquanto o monas-ticismo fugia do mundo com janelas fechadas para uma espiritualidade de solidatildeo os reformados abriram suas janelas para o barulho da rua para uma espiritualidade de solidariedade30 Alguns exemplos da histoacuteria reformada se-ratildeo vistos de forma panoracircmica nesta seccedilatildeo alguns mais conhecidos e outros menos conhecidos apenas com o intuito de mostrar que essa tradiccedilatildeo tem uma longa histoacuteria de piedade

A pesquisa de autores apresentados no paraacutegrafo anterior revela que os representantes histoacutericos da espiritualidade reformada seratildeo apresentados na maneira como interagem com o restante da tradiccedilatildeo Isto eacute ao inveacutes de apre-sentar apenas a piedade desses teoacutelogos num vaacutecuo histoacuterico haveraacute maior preocupaccedilatildeo em destacar como eles lidaram com a devoccedilatildeo cristatilde ao seu redor e como se apropriaram da tradiccedilatildeo cristatilde de piedade de forma criteriosa segundo o filtro de suas convicccedilotildees teoloacutegicas Tal ecircnfase demonstraraacute primeiramente a catolicidade de nossa feacute e praacutetica provando que os reformados natildeo soacute liam os gigantes da patriacutestica e do medievo mas se apropriavam de vaacuterios aspectos dessas expressotildees histoacutericas do cristianismo Os reformados se apropriaram natildeo soacute da teologia de gigantes como Agostinho mas inclusive da espiritualidade de autores como Bernardo de Claraval e Tomaacutes agrave Kempis os dois pietistas medievais mais citados entre os reformados holandeses31 Em complemento agrave catolicidade da espiritualidade a ecircnfase desta seccedilatildeo mostraraacute em segundo lugar que a apropriaccedilatildeo da tradiccedilatildeo foi cautelosa e condizente com a feacute reformada Este eacute possivelmente o ponto mais importante desta seccedilatildeo

Arie de Reuver resume a diferenccedila entre o misticismo medieval e a espiri-tualidade dos reformadores agrave medida que interagiram com essa teologia miacutestica

28 OLD ldquoWhat is Reformed Spiritualityrdquo p 6129 DE REUVER Arie Sweet Communion Trajectories of Spirituality from the Middle Ages

through the Further Reformation Grand Rapids Baker 2007 p 10130 Ibid31 Cf DE REUVER Sweet Communion

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

54

A rejeiccedilatildeo do misticismo pelos reformadores envolveu somente certa forma dele Essa forma incluiacutea em primeiro lugar um misticismo que funcionava como uma uniatildeo experimental na qual a fronteira entre Deus e a humanidade era obliterada Ela incluiacutea em segundo lugar um misticismo que era prezado e praticado como uma condiccedilatildeo preacutevia meritoacuteria para a salvaccedilatildeo que ignorava a graccedila Ela incluiacutea em terceiro lugar um misticismo restrito a observacircncias monaacutesticas Em quarto lugar ela envolvia um misticismo que frustrava o equi-liacutebrio entre feacute e amor prejudicando a feacute32

Esses quatro pontos levantados na citaccedilatildeo acima ajudam a delimitar o que da espiritualidade medieval foi aceito pelos reformadores e o que foi descartado Eacute especialmente importante destacar o quarto e uacuteltimo ponto pois revela mais imitatio Christi do que unio Christi entre os miacutesticos medievais Os reformado-res iratildeo lutar por esse equiliacutebrio entre feacute e amor perdido na teologia medieval

O mesmo tipo de filtro da tradiccedilatildeo aparece na forma como os reformados holandeses Willem Teellinck (1579-1629) e Wilhelmus agrave Brakel (1635-1711) interagiram com o miacutestico medieval Tomaacutes agrave Kempis (c 1379-1471) Teellinck tem apreccedilo pela obra de Kempis A Imitaccedilatildeo de Cristo e a cita vaacuterias vezes em seus escritos embora reconheccedila imperfeiccedilotildees em sua espiritualidade Teellinck procura transpor a forma e o sabor de boa parte da literatura devocional preacute--Reforma para um contexto reformado Afinal muitas dessas obras contecircm trecircs erros a ilusatildeo da perfeiccedilatildeo justificaccedilatildeo em conjunto com as boas obras e desvalorizaccedilatildeo da Escritura33 Brakel tambeacutem considera A Imitaccedilatildeo de Cristo de Kempis um excelente tratado mas observa como Kempis teve pouco a dizer ldquosobre o Senhor Jesus como o resgate e a justiccedila dos pecadores ndash sobre como ele por uma feacute verdadeira deve ser usado para a justificaccedilatildeo e aproximaccedilatildeo de Deus praticando a verdadeira santidade como algo originado nele e em nossa uniatildeo com elerdquo34 O que o reformado Brakel quer dizer eacute que o escritor medieval apresentou alguns oacutetimos aspectos de vida cristatilde mas sem o funda-mento objetivo dessa espiritualidade isto eacute ele observa que haacute uma proposta de discipulado (inclui carregar a cruz humildade autoexame meditaccedilatildeo etc) sem estar calcado na obra objetiva de Cristo Nas palavras do estudioso Arie de Reuver o Cristo que eacute nosso substituto ficou na sombra do Cristo que nos chama a segui-lo35 Essa preocupaccedilatildeo eacute semelhante agrave de Michael Horton quando diz que o evangelicalismo moderno tem se preocupado mais com o que Cristo faria numa determinada situaccedilatildeo (ldquoEm seus passos o que faria Jesusrdquo) ao inveacutes do que Cristo fez por vocecirc isto eacute mais lei do que evangelho (espiritualidade

32 Ibid p 2233 Ibid p 112-11334 BRAKEL Wilhelmus agrave The Christianrsquos Reasonable Service Grand Rapids Reformation

Heritage Books 1992 vol 2 p 64135 DE REUVER Sweet Communion p 99

55

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

moralista)36 Esse eacute o tipo de discernimento do qual tanto carecem os evangeacute-licos que se simpatizam com aspectos da tradiccedilatildeo reformada

Tendo feito um panorama da forma como o movimento reformado lidou com a tradiccedilatildeo cristatilde de vida devocional veremos agora alguns representantes histoacutericos do movimento

11 Joatildeo CalvinoA frase latina que daacute tiacutetulo a este artigo (que pode ser traduzida por ldquoMeu

coraccedilatildeo te ofereccedilo Senhor de modo pronto e sincerordquo) eacute encontrada em selos de Genebra logo apoacutes a morte de Calvino e por vezes eacute atribuiacuteda a ele37 Independentemente da fonte exata da frase ela expressa a espiritualidade de um homem que se destaca por sua teologia doutrinaacuteria Eacute preciso resgatar a espiritualidade de quem eacute frequentemente considerado gigante apenas em sua teologia

Muito jaacute foi escrito sobre a espiritualidade de Joatildeo Calvino38 poreacutem alguns traccedilos gerais seratildeo suficientes para demonstrar a riqueza desse reformador no toacutepico da pietas (piedade) a palavra mais utilizada por ele para se referir ao nosso tema O contexto do monasticismo medieval e a resposta de Calvino seratildeo apresentados em primeiro lugar para depois realccedilar o trecho das Insti-tutas mais conhecido por sua ecircnfase em diferentes aspectos da devoccedilatildeo cristatilde

David Steinmetz39 analisa a criacutetica que Calvino faz da instituiccedilatildeo e da ideologia do monasticismo e a situa no contexto medieval de debates sobre o

36 Cf HORTON Michael Cristianismo sem Cristo o evangelho alternativo da igreja atual Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2010

37 Os selos utilizados por Calvino tinham a figura de matildeos segurando um coraccedilatildeo mas sem estarem acompanhados de palavras Para uma breve histoacuteria do selo de Calvino ver o artigo de Barbara Carvill ldquoThe Calvin Sealrdquo em httpscalvineduabouthistorycalvin-sealhtml Acesso em 4 jun 2021 Todavia temos uma frase parecida de Calvino numa carta que escreveu a Guilherme Farel quando relutantemente cedeu ao pedido do amigo para que retornasse a Genebra em 1541 ldquoOfereccedilo meu coraccedilatildeo apresentado como sacrifiacutecio ao Senhorrdquo CALVINO Joatildeo ldquoPara William Farelrdquo In Cartas de Joatildeo Calvino Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2009 p 49

38 Apenas a tiacutetulo de introduccedilatildeo bibliograacutefica ver as seguintes obras RICHARD Lucien Joseph The Spirituality of John Calvin Atlanta John Knox Press 1974 SIMPSON Henry William ldquoPietas in the Institutes of Calvinrdquo In VAN DER WALT Barend Johannes (Org) Our Reformational Tradition A Rich Heritage and Lasting Vocation Potchefstroom Potchefstroom University for Christian Higher Education 1984 p 179-191 BOWSMA William J ldquoThe Spirituality of John Calvinrdquo In RAITT Jill (Org) Christian Spirituality High Middles Ages and Reformation New York Crossroad 1987 p 318-333 GAMBLE Richard C ldquoCalvin and Sixteenth-Century Spirituality Comparison with the Anabaptistsrdquo Calvin Theological Journal vol 31 n 2 (1996) p 335-358 GLEASON Randall C John Calvin and John Owen on Mortification a comparative study on reformed spirituality New York Peter Lang 1995 BEEKE Espiritualidade reformada p 23-60 HORTON Michael Calvino e a vida cristatilde para glorificar a Deus e alegrar-se nele para sempre Trad Jader Santos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2017

39 STEINMETZ David C ldquoCalvin and the Monastic Idealrdquo In STEINMETZ David C Calvin in Context 2 ed Oxford Oxford University Press 2010 p 185-196

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

56

status da vida religiosa Tomaacutes de Aquino (1225-1274) enxerga os monges em um estado de perfeiccedilatildeo pois eles natildeo soacute cumprem os mandamentos biacuteblicos (obrigaccedilatildeo de todo cristatildeo) mas tambeacutem os conselhos evangeacutelicos (celibato e voto de pobreza) Portanto aqueles que fazem parte das ordens mendicantes estatildeo em vantagem na busca da santidade pois suas obras tecircm maior valor meritoacuterio Depois de sintetizar as criacuteticas medievais ao movimento monaacutestico por parte de Jean Gerson (1363-1429) e Johann Pupper von Goch (1400-1475) Steinmetz resume a criacutetica de Calvino de que o movimento eacute cismaacutetico pois cria uma dicotomia entre os monges e o resto da igreja quando de fato Cristo estabeleceu uma regra de vida com mandamentos e conselhos para todos os cristatildeos Calvino tambeacutem confronta o celibato como uma lei para todo cleacuteri-go concluindo que o voto monaacutestico pode ser dissolvido pois Deus natildeo nos prende a votos iliacutecitos40 Acima de tudo Calvino advogava a unidade cristatilde e o estado de perfeiccedilatildeo como sendo o estado de todo cristatildeo41

Eacute lamentaacutevel que as Institutas tenham ganhado um caraacuteter mais dogmaacutetico na histoacuteria e tenham sido negligenciadas como um livro catequeacutetico e portanto para a vida cristatilde comum Nela Calvino considera a piedade como a ldquoreverecircncia unida ao amor por Deusrdquo induzida pelo ldquoconhecimento de seus benefiacuteciosrdquo42 A raiz dessa piedade eacute a uniatildeo miacutestica com Cristo uma doutrina que permeia as suas obras e que permite que tenhamos ldquocomunhatildeordquo com Cristo e ldquopartici-paccedilatildeordquo nos seus benefiacutecios43 A doutrina da justificaccedilatildeo eacute o solo de onde brota a piedade e a santificaccedilatildeo eacute o contiacutenuo remodelar do Espiacuterito consagrando-nos a Deus Joel Beeke destaca as dimensotildees eclesioloacutegicas da piedade de Calvino quando fala da igreja da palavra dos sacramentos e do salteacuterio44 Quanto agraves dimensotildees praacuteticas de sua piedade Beeke destaca a importacircncia da oraccedilatildeo (o segundo capiacutetulo mais longo das Institutas) depois aborda o arrependimento e entatildeo dedica o restante do tempo agraves Institutas III6-1045

Esse trecho das Institutas eacute tatildeo significativo que desde 1550 ele foi pu-blicado separadamente vaacuterias vezes sob o tiacutetulo O Livreto Dourado da Vida Cristatilde uma espeacutecie de resumo da piedade calvinista Nesse trecho Calvino fala de abnegaccedilatildeo carregar a cruz e frugalidade na vida presente por ter em mente a vida futura Calvino introduz essa seccedilatildeo das Institutas dizendo que o seu propoacutesito eacute mostrar ao homem de Deus como ele pode direcionar a sua trajetoacuteria para uma vida ordeira e apresentar brevemente algumas regras para

40 STEINMETZ ldquoCalvin and the Monastic Idealrdquo p 192-19341 Cf CALVIN John The Institutes of the Christian Religion Philadelphia The Westminster

Press 1960 IVxiii42 CALVIN Institutes of the Christian Religion Iii143 BEEKE Espiritualidade reformada p 27-2944 Ibid p 33-4845 Ibid p 48-56

57

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

determinar as suas tarefas46 Essa instruccedilatildeo apresenta uma eacutetica que envolve tanto virtudes como regras pois fala do amor pela justiccedila que eacute infundido em nossos coraccedilotildees mas tambeacutem de uma regra que natildeo nos deixa desviar em nosso zelo pela justiccedila47 No capiacutetulo sobre abnegaccedilatildeo Calvino assevera que natildeo somos nossos mas vivemos e morremos para a gloacuteria de Deus48 explica o conceito de autonegaccedilatildeo conforme Tito 249 e a apresenta nas relaccedilotildees com o proacuteximo (marcadas por humildade espiacuterito de serviccedilo e amor sincero)50 e na relaccedilatildeo com Deus51 No capiacutetulo sobre carregar a cruz Calvino demonstra que a nossa cruz nutre esperanccedila nos treina em paciecircncia e obediecircncia e trata medicinalmente de nossa carne rebelde52 ao mesmo tempo que discorre sobre como suportar o sofrimento em distinccedilatildeo do espiacuterito estoico53 No capiacutetulo 9 do livro 3 Calvino fala de como a vida presente eacute motivo de gratidatildeo na medida que experimentamos a doccedilura da generosidade divina e almejamos sua plena revelaccedilatildeo54 Calvino ensina a desejar deixar esta vida somente na medida em que ela nos prende ao pecado e reprende severamente aqueles que se deixam vencer pelo medo da morte55 No uacuteltimo capiacutetulo dessa seccedilatildeo Calvino ensina como viver esta vida piedosamente atraveacutes do uso adequado das daacutedivas divi-nas do princiacutepio da frugalidade e da vocaccedilatildeo que Deus concedeu a cada um56

46 CALVIN Institutes of the Christian Religion IIIvi147 Ibid IIIvi248 Ibid IIIvii1 Joel Beeke comenta ldquoa abnegaccedilatildeo natildeo eacute centrada no ego como se dava com

frequecircncia no monasticismo medieval e sim centrada em Deus Nosso maior inimigo natildeo eacute o diabo nem o mundo e sim noacutes mesmosrdquo BEEKE Espiritualidade reformada p 53

49 CALVIN Institutes of the Christian Religion IIIvii350 Ibid IIIvii4-751 Ibid IIIvii8-10 Ronald Wallace julga que os toacutepicos de carregar a cruz e autonegaccedilatildeo estatildeo

claramente em continuidade com a obra de Tomaacutes agrave Kempis Todavia Wallace faz uma distinccedilatildeo entre o misticismo medieval e a piedade de Calvino ldquoEntretanto no ensino dos miacutesticos medievais o chamado para a negaccedilatildeo de si mesmo era frequentemente considerado uma obra de iniciativa humana merecendo recompensa e resposta de Deus Calvino todavia sempre considera nosso sacrifiacutecio de negaccedilatildeo de noacutes mesmos como possiacutevel apenas mediante a graccedila de Deus em Cristordquo WALLACE Ronald Calvino Genebra e a Reforma Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2003 p 160

52 CALVIN Institutes of the Christian Religion IIIviii3-5 Beeke comenta ldquoEnquanto a abne-gaccedilatildeo focaliza a conformidade interior com Cristo o levar a cruz se centra na externa semelhanccedila com Cristordquo BEEKE Espiritualidade Reformada p 54

53 CALVIN Institutes of the Christian Religion IIIviii9-1154 Ibid IIIix355 Ibid IIIix4-556 Ibid IIIx2 5-6 Beeke comenta ldquoCalvino natildeo era asceta ele desfrutava a boa literatura

o bom alimento e as belezas da natureza No entanto rejeitou todas as formas do excesso terreno O crente eacute chamado agrave moderaccedilatildeo de Cristo a qual inclui modeacutestia prudecircncia abstenccedilatildeo de ostentaccedilatildeo e o contentamento com nossa sorte pois eacute a esperanccedila da vida por vir que nos fornece o propoacutesito e o desfrute de nossa presente vidardquo BEEKE Espiritualidade reformada p 55-56

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

58

12 Os puritanos inglesesFalar resumidamente da piedade puritana das Ilhas Britacircnicas nos seacuteculos

16 e 17 eacute quase impossiacutevel jaacute que a literatura que aborda o movimento eacute quase toda voltada para a sua devoccedilatildeo multifacetada Ainda que os puritanos tenham se mostrado excelentes em sua teologia eacute possiacutevel argumentar que o movimento puritano eacute prioritariamente um movimento de espiritualidade reformada na medida em que seus adeptos visavam purificar a Igreja da Inglaterra de suas imperfeiccedilotildees ldquopapistasrdquo Richard Lovelace traccedila um panorama da literatura devocional inglesa no iniacutecio do seacuteculo 17 como uma criacutetica agrave tradiccedilatildeo catoacutelica romana em sua origem e esboccedila a anatomia da piedade puritana composta de marcas de uma verdadeira conversatildeo vida de santidade crescimento em piedade e percepccedilatildeo da astuacutecia de Satanaacutes os meios de graccedila o amor pelo proacuteximo e a comunhatildeo com Deus57 Um exemplo dessa literatura explorado por Lovelace eacute o claacutessico de Lewis Bayly (c 1575-1631) A Praacutetica da Piedade que se tornou uma referecircncia de literatura devocional jaacute no seacuteculo 17 sendo reimpresso em dezenas e dezenas de novas ediccedilotildees

Em nosso idioma a espiritualidade dos puritanos eacute bem explorada em livros de J I Packer58 Leland Ryken59 e Joel Beeke Packer por exemplo apre-senta um panorama dos escritos praacuteticos de puritanos ingleses como Richard Greenham William Perkins mas principalmente Richard Baxter e observa tal literatura como sendo popular no sentido de ser simples mas certamente natildeo no sentido de ser teologicamente inepta60 Packer observa cinco qualida-des nesses escritos eles revelam os puritanos como verdadeiros meacutedicos da alma como expositores da Escritura que dirigiam seu ensino agraves consciecircncias e aos afetos dos ouvintes como educadores da mente como inculcadores da verdade e como homens espirituais61 Em sua exposiccedilatildeo da espiritualidade de John Owen Packer explora natildeo somente a santificaccedilatildeo nas trecircs obras de Owen que falam de luta contra o pecado mas analisa principalmente a sua obra Co-munhatildeo com Deus Packer diz que nossa geraccedilatildeo tende a pensar na comunhatildeo com Deus de modo subjetivo nossa consciente experiecircncia com Deus mas os puritanos pensavam nessa comunhatildeo de modo objetivo na aproximaccedilatildeo divina a noacutes ldquoIsso livrou-os do perigo do falso misticismo que tem poluiacutedo

57 LOVELACE Richard C ldquoPuritan Spirituality The Search for a Rightly Reformed Churchrdquo In DUPREacute Louis e SALIERS Don E (Orgs) Christian Spirituality Post-Reformation and Modern New York Crossroad 1989 p 294-323

58 PACKER J I Entre os gigantes de Deus uma visatildeo puritana da vida cristatilde Satildeo Joseacute dos Campos Fiel 1996

59 RYKEN Leland Santos no mundo os puritanos como realmente eram 2 ed Satildeo Joseacute dos Campos Fiel 2013

60 PACKER Entre os gigantes de Deus p 6861 Ibid p 69-84

59

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

muito da suposta devoccedilatildeo em tempos recentesrdquo diz Packer O contexto e a causa da comunhatildeo ldquoeacute a eficaz comunhatildeo de Deus conosco transmitindo-nos vida a primeira coisa sempre deve ser concebida como uma consequecircncia ou mesmo um aspecto da uacuteltimardquo62

Embora por vezes seja alvo de caricatura ou criacutetica63 a espiritualidade dos puritanos eacute uma das grandes contribuiccedilotildees desse movimento agrave espiritualidade de nossos dias Haacute temas interessantiacutessimos como a questatildeo da consciecircncia e a seguranccedila da salvaccedilatildeo (casuiacutestica de William Perkins e William Ames)64 a guarda do dia do Senhor65 e a visatildeo que tinham de culto66 Todavia essa piedade puritana seraacute ilustrada apenas com o conceito que possuiacuteam da meditaccedilatildeo Joel Beeke fala sobre a negligenciada praacutetica da meditaccedilatildeo ressaltando diferentes temas e propoacutesitos meditar sobre Cristo para ter nosso coraccedilatildeo inflamado pelo seu amor meditar no pecado para odiaacute-lo meditar nas verdades de Deus para ser transformado por elas67 e meditar para alargar nossa feacute aumentar santas afeiccedilotildees e fomentar arrependimento e reforma de vida68 Os puritanos falavam de meditaccedilotildees ocasionais (como ser levado a meditar em Deus por causa de algo belo na natureza) e meditaccedilotildees deliberadas habituais a ocasional era alvo de cuidados para natildeo se tornar supersticiosa69 e a meditaccedilatildeo ordinaacuteria sobre a Palavra de Deus era cuidadosamente dissecada para que fosse uma praacutetica constante70 O puritano Thomas Brooks dizia que a meditaccedilatildeo eacute o estocircmago que digere as verdades espirituais o cristatildeo mais forte natildeo eacute o que lecirc mais mas o que medita mais71 Richard Baxter dizia que alguns fieacuteis tecircm anorexia espiritual (natildeo tem apetite por verdades biacuteblicas e nem as digerem) outros tem bulimia espiritual (tem apetite mas natildeo a digerem)72 Que aplicaccedilatildeo adequada para tempos em que algumas pessoas escolhem ouvir uma ldquomaratonardquo de sermotildees na web mas que natildeo sabem digerir

62 Ibid p 221 Packer termina esse capiacutetulo fazendo trecircs contrastes entre a espiritualidade de Owen e a atual (p 233-236) Para um panorama mais abrangente da teologia praacutetica de Owen ver BARRETT Matthew e HAYKIN Michael A G Owen on the Christian Life Living for the Glory of God in Christ Wheaton Crossway 2015

63 James Houston critica a espiritualidade puritana por natildeo ter a vida contemplativa do catolicismo romano a qual em sua opiniatildeo a teria enriquecido HOUSTON ldquoEspiritualidaderdquo p 66

64 Cf PACKER Entre os gigantes de Deus p 115-132 BEEKE Espiritualidade reformada p 229-261 381-402

65 PACKER Entre os gigantes de Deus p 253-26466 Ibid p 265-278 RYKEN Santos no mundo p 193-23267 BEEKE Espiritualidade reformada p 112-113 68 Ibid p 13769 Ibid p 11470 Ibid p 124-13071 Ibid p 13972 Ibid p 135

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

60

13 Nadere ReformatieUm movimento menos conhecido nosso eacute a versatildeo holandesa do purita-

nismo inglecircs a Nadere Reformatie (literalmente ldquoreforma posteriorrdquo ldquorefor-ma que foi mais adianterdquo) um movimento dos seacuteculos 17 e iniacutecio do 18 que demonstrou grande zelo pela piedade aliado agrave teologia reformada Joel Beeke afirma que o crescimento da membresia das igrejas reformadas na Holanda no seacuteculo 17 gerando grande nuacutemero de membros nominais somado agrave influecircncia do puritanismo inglecircs e outras fontes de piedade fez surgir uma geraccedilatildeo de acadecircmicos e pregadores que enfatizaram uma ldquoteologia experimentalrdquo des-tacando a primazia de uma resposta interior a Deus73 A Nadere Reformatie foi um movimento holandecircs que primou por uma ldquorevitalizaccedilatildeo interna da doutrina reformada e uma santificaccedilatildeo radical da vidardquo e junto com o purita-nismo anglo-saxocircnico e o pietismo alematildeo estava em busca da piedade74 O movimento holandecircs com representantes como Willem Teellinck Gisbertus Voetius Johannes Hoornbeeck Wilhelmus agrave Brakel e Herman Witsius entendia que o processo de reforma precisava avanccedilar para acircmbitos pessoais

Jaacute foi mencionado neste artigo como os reformados holandeses procu-raram articular uma espiritualidade catoacutelica Willem Teellinck (1579-1629) considerado o ldquopairdquo da Nadere Reformatie mostrou aspectos de espirituali-dade ao final de sua vida que satildeo semelhantes aos escritos de Bernardo de Claraval75 Sua apropriaccedilatildeo de Bernardo provavelmente via Tomaacutes agrave Kempis eacute um testemunho de sua catolicidade76 Seu principal livro sobre a santifica-ccedilatildeo The Path of True Godliness eacute um manual da vida cristatilde todo dividido em triacuteades no qual ele apresenta os desafios do reino das trevas para a vida espiritual e como o reino da graccedila promove piedade Ele fala no livro sobre os meios de atingir os verdadeiros propoacutesitos da vida (ordenanccedilas obras e promessas divinas) e sobre as motivaccedilotildees para a praacutetica da piedade77 Wilhel-mus agrave Brakel eacute outro que conecta interesses sistemaacuteticos com aplicabilidade pastoral em sua principal obra O Serviccedilo Razoaacutevel do Cristatildeo Brakel diz que os miacutesticos natildeo se apoiam na obra objetiva de Cristo para a sua espiritualidade (Cristo como o nosso resgate como a nossa justiccedila) todo verdadeiro piedoso soacute pode aproximar-se de Deus por meio de Cristo Todavia alguns miacutesticos (Quakers Quietistas Franccedilois de Feacutenelon) falam de negar a si mesmo amar

73 BEEKE Joel R ldquoThe Dutch Second Reformation (Nadere Reformatie)rdquo Calvin Theological Journal vol 28 n 2 (nov 1993) p 308-320

74 DE REUVER Sweet Communion p 1675 BEEKE Espiritualidade reformada p 411-41276 DE REUVER Sweet Communion p 16077 BEEKE Espiritualidade reformada p 421-425 Beeke tenta defendecirc-lo de certos legalismos

(p 425-427) mas parece que o decliacutenio religioso e moral que possivelmente marcava a Holanda de seus dias natildeo legitima tais legalismos

61

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

contemplar a Deus tudo sem fazer uso de Cristo78 Brakel diz que Deus soacute pode ser ldquoobjetordquo de nossa contemplaccedilatildeo se for Deus em Cristo pois toda a sua espiritualidade estaacute fundada em Cristo Esse fundamento ldquoprotege o seu misticismo de espiritualismordquo79

14 Jonathan EdwardsJonathan Edwards eacute conhecido por sua participaccedilatildeo em avivamentos e

um pouco de sua piedade jaacute foi retratada em livros traduzidos para o nosso idioma80 Dentre os escritos do proacuteprio Edwards poucos contribuem para uma visatildeo da espiritualidade reformada do seacuteculo 18 como A Vida de David Brainerd Contudo em geral o puacuteblico brasileiro desconhece os seus escritos pessoais (Diaacuterio Narrativa Pessoal) que retratam muitas experiecircncias de devoccedilatildeo a Deus George S Claghorn descreve seus escritos pessoais como um vislumbre autobiograacutefico da religiosidade de Edwards que cobrem

desde os seus primeiros embates espirituais e autodisciplina nas ldquoResoluccedilotildeesrdquo e no ldquoDiaacuteriordquo ateacute sua busca por uma companheira piedosa em ldquoSobre Sarah Pierrepontrdquo [que viria a ser sua esposa] chegando ao resumo retrospectivo de suas experiecircncias religiosas avivalistas em sua ldquoNarrativa Pessoalrdquo81

Nesta uacuteltima obra Edwards narra suas constantes caminhadas pela natureza para um tempo de contemplaccedilatildeo e de oraccedilatildeo no qual suas afeiccedilotildees eram mo-vidas a experimentar a doccedilura da majestade e da graccedila de Deus que por vezes o levavam a chorar em alta voz82

Charles Hambrick-Stowe pontua de forma perspicaz que nessa meditaccedilatildeo sobre a natureza um haacutebito que adquirira desde a sua juventude sempre tinha a Biacuteblia aberta diante de si pois Edwards negava que pudesse haver qualquer conhecimento de Deus agrave parte da revelaccedilatildeo biacuteblica83 Para Edwards a fonte da graccedila natildeo deveria ser buscada dentro de sua alma pois na proacutepria Narrati-va Pessoal ele afirma que suas mais doces alegrias natildeo surgiram de um bom estado de sua alma mas de uma visatildeo das coisas gloriosas do evangelho84

78 BRAKEL The Christianrsquos Reasonable Service vol 2 p 64279 DE REUVER Sweet Communion p 25880 Cf PIPER John A paixatildeo de Deus por sua gloacuteria vivendo a visatildeo de Jonathan Edwards Satildeo

Paulo Cultura Cristatilde 2008 LAWSON Steven J As firmes resoluccedilotildees de Jonathan Edwards Satildeo Joseacute dos Campos Fiel 2010

81 CLAGHORN George S (Org) The Works of Jonathan Edwards Online vol 16 p 74182 Cf Ibid p 790-80483 HAMBRICK-STOWE Charles E ldquoSpirituality and Devotionrdquo In SWEENEY Douglas A e

STIEVERMANN Jan (Orgs) The Oxford Handbook of Jonathan Edwards Oxford Oxford University Press 2021 p 357

84 Ibid p 355

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

62

O foco de suas meditaccedilotildees enquanto perambulava na natureza natildeo era Deus o Criador muito menos as aacutervores ou as nuvens mas a pessoa de Jesus Cristo85 Essa natureza bibliocecircntrica da piedade de Edwards era o ponto de conexatildeo entre sua vida devocional e sua vida intelectual entre seus escritos pessoais e seu ministeacuterio puacuteblico de escrita e pregaccedilatildeo fazendo com que sua piedade pessoal transbordasse para o seu ministeacuterio eclesiaacutestico86

Semelhante desconhecimento ocorre com o aspecto esteacutetico de sua religio-sidade Dentre as palavras mais usadas no seu corpo literaacuterio estatildeo ldquoexcelecircnciardquo e especialmente ldquobelezardquo a ponto de Dane Ortlund considerar a ldquobelezardquo como o fulcro da teologia edwardsiana87 A filosofia natural de Edwards estaacute repleta de alusotildees aos sentidos espirituais de elementos da natureza e enxergar a revelaccedilatildeo geral repleta de ldquosinaisrdquo do divino eacute a base de sua constante tipologia

2 DISTINTIVOS TEOLOacuteGICOS DE UMA ESPIRITUALIDADE REFORMADA

Ao apresentar caracteriacutesticas peculiares da espiritualidade reformada muitas outras ecircnfases ficaratildeo de fora Natildeo seratildeo trabalhadas a oraccedilatildeo ou a im-portacircncia dos cacircnticos e ateacute mesmo a leitura devocional das Escrituras ficaraacute de fora de um escrutiacutenio adequado A razatildeo de omitir essas e outras praacuteticas eacute para focalizar aspectos que satildeo mais proacuteprios da tradiccedilatildeo reformada e que natildeo aparecem tatildeo comumente em outras tradiccedilotildees cristatildes nem mesmo as evangeacuteli-cas Todavia como os reformados natildeo satildeo os uacutenicos a ensinar tais realidades trataremos de cada item abaixo em termos de ldquoecircnfasesrdquo pois os reformados as destacam de tal forma que se tornaram distintivas

21 Uma ecircnfase na graccedila gratuita e capacitadoraEm oposiccedilatildeo ao romanismo a espiritualidade reformada daacute ecircnfase agrave gra-

ccedila gratuita e capacitadora A maioria das propostas romanas de espiritualidade seguem uma teologia semipelagiana na qual a iniciativa eacute do homem em busca da graccedila (seguindo o famoso ditado medieval facientibus quod in se est Deus non denegat gratiam cuja versatildeo popular eacute ldquofaccedila a sua parte e eu o ajudareirdquo) e ateacute aqueles que natildeo satildeo semipelagianos falam em conquistar ou ldquoalcanccedilar uma graccedilardquo Em contraste com isso os reformados sempre enfatizaram o aspecto to-talmente gratuito da graccedila isto eacute ela natildeo eacute conquistada por nosso esforccedilo nem mesmo quando somos impulsionados pela graccedila interna ldquoEnquanto o monge ascende ao Deus de majestade atraveacutes da contemplaccedilatildeo especulaccedilatildeo e meacuterito no evangelho Deus desce a noacutes em humildade em nossa carne para nos resgatarrdquo88

85 Ibid p 35786 Ibid p 354 35687 ORTLUND Dane C Jonathan Edwards e a vida cristatilde Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2017 p 21-3688 HORTON Michael S ldquoThe Reformation amp Spiritual Formationrdquo Modern Reformation vol 22

n 4 (jul-ago 2013) p 29

63

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

Nelson Kloosterman destaca que certas definiccedilotildees catoacutelicas apresentam uma visatildeo teleoloacutegica de espiritualidade na qual ela se apresenta como o cami-nho para a santidade e uniatildeo com Deus Em contrapartida a visatildeo protestante e reformada de piedade procede da justificaccedilatildeo forense da justiccedila imputada de Cristo Sendo assim a ldquosantidade natildeo eacute simplesmente o objetivo mas prima-riamente o fundamento ou solo da verdadeira espiritualidade cristatilderdquo89 Esta eacute a visatildeo biacuteblica de santificaccedilatildeo apresentada nas epiacutestolas paulinas Indicativos fundamentam e motivam os imperativos nas epiacutestolas (Rm 121 Ef 41 Cl 31-11) Os indicativos nos definem enquanto os imperativos nos convocam Isso significa que a obra redentora do Deus trino eacute descrita primeiro para nos informar do que foi feito por noacutes a fim de buscarmos nos tornar aquilo que jaacute somos em Cristo

Essa graccedila natildeo soacute eacute o fundamento de nossa peregrinaccedilatildeo santificadora mas eacute o impulso dessa santificaccedilatildeo A tradiccedilatildeo reformada recente tem procurado resgatar o entendimento deixado pela Reforma de uma santificaccedilatildeo impulsio-nada pelo evangelho90 A obra de Cristo natildeo eacute necessaacuteria apenas para o iniacutecio da vida cristatilde (conversatildeo justificaccedilatildeo adoccedilatildeo) como se depois da conversatildeo entatildeo dependesse de nossa resposta ao amor de Cristo (santificaccedilatildeo) Esse tipo de dicotomia faz com que caiamos num cristianismo moralista A espiritualidade reformada em contrapartida destaca que a proacutepria forccedila motora da santifica-ccedilatildeo vem da obra consumada de Cristo (Rm 61-4 Tt 214 1 Pe 114-19) A Confissatildeo de Feacute de Westminster afirma que somos santificados pessoalmente ldquopela virtude da morte e ressurreiccedilatildeo de Cristordquo (131) Portanto a obra de Cristo natildeo eacute apenas o que acontece primeiro natildeo eacute apenas o que nos estimula agrave obediecircncia ela eacute a proacutepria habilitadora de nosso esforccedilo santificador

Ateacute a obra do Espiacuterito no iniacutecio de nossa vida cristatilde ndash conversatildeo justi-ficaccedilatildeo adoccedilatildeo ndash serve de motivaccedilatildeo para uma busca de santidade Michael Horton chama a atenccedilatildeo para a linguagem paulina em Romanos 6 a fim de dizer que natildeo temos que entregar nosso corpo agrave crucificaccedilatildeo para que o peca-do seja morto mas o velho homem jaacute ldquofoi crucificado com ele para que o corpo do pecado seja destruiacutedordquo (Rm 66) Ele natildeo ordena que natildeo deixemos o pecado nos dominar mas afirma que ldquoo pecado natildeo teraacute domiacutenio sobre voacutesrdquo (Rm 614) Portanto algo jaacute aconteceu conosco e devemos buscar a santidade (o ldquoainda natildeordquo de nossa redenccedilatildeo) calcados na obra jaacute realizada pelo Espiacuterito91

89 KLOOSTERMAN Nelson D ldquoStudying Spirituality in a Reformed Seminary A Calvinist Modelrdquo Mid-America Journal of Theology vol 6 n 2 (1990) p 127

90 Ver esse texto de Jerry Bridges httpswwwmonergismcomgospel-driven-sanctification Acesso em 4 jun 2021

91 HORTON Michael S ldquoThe Indicative and The Imperative A Reformed View of Sanctificationrdquo Disponiacutevel em httpswwwmonergismcomindicative-and-imperative-reformation-view-sanctification Acesso em 4 jun 2021

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

64

22 Uma ecircnfase nos meios de graccedila e na comunidade santificadora

Em oposiccedilatildeo ao evangelicalismo a espiritualidade reformada coloca uma ecircnfase nos meios de graccedila e na comunidade santificadora Enquanto o evangelicalismo eacute conhecido por enfatizar uma espiritualidade individual isto eacute a importacircncia da devoccedilatildeo privada (o momento a soacutes com Deus) a feacute refor-mada natildeo a negligencia mas destaca que grande parte de nossa santificaccedilatildeo acontece no acircmbito puacuteblico onde haacute troca de dons (Ef 411-16) Os meios de graccedila conforme articulados no culto puacuteblico satildeo chave para o crescimento espiritual Foi nos documentos de Westminster que se instituiu a importacircncia do culto domeacutestico de maneira formal como exemplo de zelo pela comunidade menor enquanto formadora de nossa devoccedilatildeo Antes do que conceitos vazios de subjetividade a feacute reformada defende uma espiritualidade da Palavra que se consegue mediante a pregaccedilatildeo puacuteblica a meditaccedilatildeo e o estudo pessoal92 Por isso Wilhelmus agrave Brakel enfatizava o amor pela verdade (Palavra) e a estima pela igreja93

Enquanto os evangeacutelicos tendem a enxergar a igreja como uma associaccedilatildeo voluntaacuteria de pessoas que alegam terem passado por uma mesma experiecircncia religiosa a eclesiologia reformada conforme expressa em suas confissotildees reforccedila a indispensabilidade da pregaccedilatildeo para gerar e nutrir vida cristatilde a necessidade dos meios de graccedila e a dos ofiacutecios autorizados por Cristo para proteger e nutrir a piedade cristatilde94 Calvino soube se apropriar da eclesiologia catoacutelica e chamar a igreja de ldquomatildee dos fieacuteisrdquo porque ele sabia que a igreja era o lugar ordinaacuterio no qual cristatildeos seriam gerados nutridos e protegidos95 Franccedilois Wendel descreve a eclesiologia de Calvino afirmando que a Igreja eacute necessaacuteria para a nossa ldquosantificaccedilatildeo coletivardquo e para promover o ldquoconsenso da feacuterdquo mediante a pregaccedilatildeo e o ensino Ainda que Deus esteja livre para usar outros meios ordinaacuterios aleacutem da pregaccedilatildeo da Palavra e dos sacramentos como ele os instituiu noacutes natildeo estamos livres desses meios de santificaccedilatildeo96

Michael Horton afirma que enquanto a piedade de muitos evangeacutelicos eacute quase exclusivamente privada e orientada por meacutetodos a piedade da Reforma eacute mais comunitaacuteria e pactual Enquanto os evangeacutelicos focalizam os meios de compromissos que os conduzem agrave graccedila os reformados pensam em meios de graccedila que produzem compromisso Ao inveacutes de sair do mundo em solidatildeo

92 OLD ldquoWhat is Reformed Spiritualityrdquo p 6393 Cf BRAKEL The Christianrsquos Reasonable Service vol 2 p 644-65394 KLOOSTERMAN ldquoStudying Spirituality in a Reformed Seminaryrdquo p 13295 CALVINO Institutas IV14 Cf Confissatildeo de Feacute de Westminster 25296 WENDEL Franccedilois Calvin Origins and Development of His Religious Thought Grand Rapids

Baker 2002 p 292-293 Cf CALVINO Institutas IV15

65

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

os reformados pensam mais numa piedade que nos leva para o mundo pois a piedade da Reforma eacute mais extrospectiva do que introspectiva97 Horton con-testa a espiritualidade evangeacutelica que eacute prioritariamente individual e privada onde o que salva eacute o que o indiviacuteduo faz com a Palavra natildeo o que a Palavra faz com o indiviacuteduo onde o batismo eacute o compromisso do fiel antes do que de Deus onde a ceia simplesmente oferece uma oportunidade para o indiviacuteduo refletir sobre a morte de Cristo e renovar o seu compromisso mas natildeo eacute a daacutediva de Cristo com todos os seus benefiacutecios98 Diante desse cenaacuterio Horton mostra no restante do artigo como a espiritualidade reformada eacute marcada pela vida comunitaacuteria com os meios de graccedila

23 Uma ecircnfase na uniatildeo com Cristo conjugando becircnccedilatildeos objetivas e subjetivas

Na espiritualidade reformada o objetivo e o subjetivo o externo e o interno satildeo ligados inseparavelmente por essa realidade Cristo eacute a fonte da santidade do cristatildeo Isso significa que a santidade dele passa a ser do fiel numa uniatildeo miacutestica que se tem com o Salvador A uniatildeo eacute comumente chamada de ldquomiacutesticardquo porque natildeo tem paralelo na realidade transcende todas as analogias terrenas mesmo as que satildeo utilizadas na Escritura (casamento edifiacutecio e fun-damento videira e ramos corpo e cabeccedila) Todavia a espiritualidade que dela procede natildeo eacute miacutestica no sentido de inexplicaacutevel irracional O ministeacuterio de Jesus sempre foi marcado por ensino por explicaccedilatildeo de vida cristatilde Jesus era um mestre por excelecircncia

Os reformados percebem que haacute aspecto objetivo da uniatildeo que acontece federativamente na eternidade e na histoacuteria e que garante as becircnccedilatildeos recebidas pelos cristatildeos o qual eacute distinto da uniatildeo miacutestica que se refere agrave experiecircncia subjetiva de sermos unidos a Cristo pelo Espiacuterito99 Anthony Hoekema diz que a doutrina da uniatildeo miacutestica ajuda a contrabalanccedilar o aspecto legal com o aspecto vital da redenccedilatildeo o Cristo por noacutes com o Cristo em noacutes100 Jaacute foi mencionada neste artigo a importacircncia da doutrina da uniatildeo com Cristo na teologia de Joatildeo Calvino algo atestado por vaacuterios escritos101 Todavia John Fesko vai aleacutem de

97 HORTON ldquoThe Reformation amp Spiritual Formationrdquo p 2898 Ibid p 3199 A A Hodge tambeacutem distingue a uniatildeo com Cristo em seu aspecto ldquofederalrdquo e em seu aspecto

ldquovital e espiritualrdquo HODGE Archibald A Outlines of Theology New York Hodder amp Stoughton 1878 p 482

100 HOEKEMA Anthony A Saved by Grace Grand Rapids Baker 1986 p 66-67 101 Como satildeo muitos os escritos que exploram Calvino acerca de uniatildeo com Cristo citaremos ape-

nas duas fontes TAMBURELLO Dennis E Union with Christ John Calvin and the Mysticism of St Bernard Louisville Westminster John Knox 1994 JOHNSON Marcus ldquoLuther and Calvin on Union with Christrdquo Fides et Historia 39 n 2 (VeratildeoOutono 2007) p 59-77

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

66

Calvino ao fazer um apanhado histoacuterico dos contornos da uniatildeo com Cristo que une justificaccedilatildeo e santificaccedilatildeo nos escritos de reformados como Henrique Bullinger Pedro Maacutertir Vermigli Jerocircnimo Zanchi William Perkins John Owen Richard Baxter Francisco Turretino e Herman Witsius102

Podemos resumir a uniatildeo em trecircs caracteriacutesticas com implicaccedilotildees para a nossa espiritualidade Em primeiro lugar eacute uma uniatildeo mediadora da uniatildeo com o Deus trino103 Como Cristo eacute o nosso mediador no relacionamento pactual com Deus por ela recebemos todos os benefiacutecios do pacto da graccedila de Deus ser o nosso Deus e noacutes sermos o seu povo tanto em sermos reconciliados com ele por obra do Deus trino como de conformidade com ele tornando-nos participantes da natureza divina agrave medida que somos transformados agrave sua ima-gem (2 Pe 13-4) A vitoacuteria de Cristo concedeu-nos o Espiacuterito o qual efetiva a nossa uniatildeo com Cristo Jesus disse que seriacuteamos habitados pelo Pai pelo Filho e pelo Espiacuterito (Jo 1416-20 23) Em segundo lugar eacute uma uniatildeo vital Somos ligados de forma orgacircnica a Cristo (analogias do corpo e da videira) de tal forma que a vida dele nos eacute comunicada Isto eacute aleacutem de Cristo ser o nosso representante ele tambeacutem eacute ldquoformadordquo em noacutes (Gl 419) nascemos de novo experimentamos uma vida de sofrimento humilhaccedilatildeo e enfim exaltaccedilatildeo tudo segundo a natureza humana de Jesus104 Somos tornados participantes de seu triunfo (Cl 220 31) Em terceiro lugar eacute uma uniatildeo reciacuteproca Se Cristo primeiramente nos une a ele por obra do Espiacuterito na regeneraccedilatildeo o crente responde em feacute unindo-se a Cristo e recebendo todos os benefiacutecios da sua vida (Jo 154-5 Gl 220 Ef 317)

24 Outras ecircnfases reformadasHaacute vaacuterios outros distintivos da tradiccedilatildeo reformada que natildeo satildeo tatildeo evi-

dentes em outras tradiccedilotildees da feacute cristatilde Em primeiro lugar a observacircncia do Dia do Senhor funciona como antecipaccedilatildeo da gloacuteria por vir Enquanto muitas discussotildees em torno desse assunto tecircm se detido em minuacutecias praacuteticas perde--se o propoacutesito de resgatar esse dia como deleitoso para a alma Em segundo lugar as obras de misericoacuterdia satildeo parte da espiritualidade reformada Inclusive essa eacute a razatildeo pela qual essa deveria ser uma das atividades do dia do Senhor como o proacuteprio Jesus o fez Em terceiro lugar a piedade reformada sempre enxergou a lei em um contexto de graccedila Enquanto Lutero enxergava a lei

102 Cf FESKO J V Beyond Calvin Union with Christ and Justification in Early Modern Reformed Theology (1517-1700) Gottingen Vandenhoeck amp Ruprecht 2012

103 A A Hodge escreve ldquoEssa uniatildeo eacute entre o cristatildeo e a pessoa do Deus-homem em seu ofiacutecio como Mediador Seu oacutergatildeo imediato eacute o Espiacuterito Santo que habita em noacutes e atraveacutes dele noacutes somos virtualmente unidos e comungamos com toda a Divindade sendo que ele eacute o Espiacuterito do Pai assim como do Filhordquo HODGE Outlines of Theology p 484

104 BERKHOF Louis Teologia sistemaacutetica Campinas Luz Para o Caminho 1990 p 452-453

67

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

primordialmente como uma antiacutetese ao evangelho Calvino iraacute observar que o uso pedagoacutegico da lei de ressaltar o pecado eacute ldquoacidentalrdquo (linguagem aristoteacute-lica para afirmar que natildeo eacute essencial) pois seu propoacutesito principal eacute servir de norma de conduta que o Deus benevolente nos deixou Em contraste com os legalismos catoacutelico-romanos e ateacute evangeacutelicos os puritanos conseguiram ver a lei de forma deleitosa no contexto do pacto da graccedila105

Em quarto lugar os reformados natildeo fazem dicotomia entre vida contem-plativa e vida ativa (Tomaacutes de Aquino) pois a cosmovisatildeo reformada santifica o trabalho com os conceitos de vocaccedilatildeo e mordomia Kloosterman destaca como o conceito de vocaccedilatildeo na Reforma permitiu que toda a criaccedilatildeo fosse usufruiacuteda e empregada sob a contiacutenua norma da Palavra de Deus106 Enquanto os luteranos introduziram o elemento de vocaccedilatildeo de forma inovadora foram os reformados que ampliaram o elemento holiacutestico de vida cristatilde com a aplica-ccedilatildeo da cosmovisatildeo Por isso Kloosterman contrasta o misticismo catoacutelico e ateacute a piedade evangeacutelica como muito voltada para o pecado orientada para dentro ou para o futuro e apresenta a espiritualidade reformada afirmando a vida em relacionamentos criacionais107 Isto eacute existe espiritualidade em obediecircncia ao triacuteplice mandato que nos foi dado na criaccedilatildeo mandato espi-ritual (relacionamento com Deus) mandato social (relacionamento com o proacuteximo) e mandato cultural (relacionamento com o restante da criaccedilatildeo) Tal integralidade que envolve os trecircs mandatos estaacute disponiacutevel a todos os fieacuteis e natildeo somente aos monges natildeo haacute espiritualidade especiacutefica do ldquoclerordquo como asseverava a doutrina romana

Estes satildeo apenas alguns raacutepidos traccedilos de aspectos ricos e com vasta literatura na histoacuteria do movimento reformado Tais distintivos servem apenas para ressaltar que existe uma espiritualidade proacutepria da teologia reformada e condizente com o seu legado doutrinaacuterio

CONCLUSAtildeO ldquoA IMPORTAcircNCIA DE RESGATAR UMA ESPIRITUALIDADE DA TRADICcedilAtildeO REFORMADArdquoAo concluir esse panorama de personagens e distintivos da espiritua-

lidade reformada especialmente em contraste com outras versotildees cristatildes de espiritualidade fica evidente que a teologia molda a piedade A espiritualidade natildeo acontece num vaacutecuo teoloacutegico Algueacutem pode natildeo estar ciente da teologia que alimenta sua espiritualidade mas como disse McGrath acertadamente ldquoA teologia tem profundo impacto sobre a espiritualidaderdquo108 Sendo assim eacute

105 Cf KEVAN Ernest The Grace of Law A Study of Puritan Theology London Carey Kingsgate 1965

106 KLOOSTERMAN ldquoStudying Spirituality in a Reformed Seminaryrdquo p 129107 Ibid p 130108 MCGRATH Uma introduccedilatildeo agrave espiritualidade cristatilde p 29

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

68

necessaacuterio que os reformados sejam mais conscientizados das implicaccedilotildees que a sua teologia traz para a vida cristatilde Eis a razatildeo de elaborarmos este breve histoacuterico da teologia reformada de espiritualidade Afinal piedade com teologia defeituosa eacute enganosa e sem proveito como Paulo ensinou aos colossenses (Cl 216-23) Portanto eacute necessaacuterio que os reformados se aprofundem no conhecimento dessa histoacuteria e como ela se adequa a uma praacutetica condizente

Enquanto os criacuteticos tendem a julgar que a teologia reformada eacute prio-ritariamente cognitiva e teoacuterica os reformados tecircm historicamente exaltado o aspecto afetivo e praacutetico da teologia O grande acadecircmico reformado do seacuteculo 17 Francisco Turretino explica que a despeito de seu elemento teoacuteri-co (contemplaccedilatildeo do Deus revelado conhecimento da verdade) a teologia eacute mormente praacutetica pois todo o seu conhecimento (crer) deve redundar em adoraccedilatildeo e obediecircncia (observar)109 Na filosofia reformada todo coraccedilatildeo eacute por natureza religioso e por isso produz algum tipo de devoccedilatildeo ou espiri-tualidade Todavia nem toda espiritualidade eacute virtuosa porque nem toda feacute eacute saudaacutevel Por exemplo uma vida de oraccedilatildeo para encher nosso ministeacuterio de poder perde de vista que a sauacutede de uma vida de oraccedilatildeo estaacute em nos esvaziar-mos de noacutes mesmos isto eacute a oraccedilatildeo natildeo busca poder para si mas expressa dependecircncia e fraqueza para que o poder de Deus opere em noacutes Portanto teologia molda espiritualidade

Talvez o leitor se pergunte ldquoOnde eacute que o estudo da espiritualidade de-veria se encaixar numa grade de formaccedilatildeo teoloacutegicardquo Kloosterman responde na eacutetica E ele fundamenta essa resposta dizendo que se alguns evangeacutelicos tendem a olhar para a espiritualidade como ldquoerupccedilotildees espontacircneasrdquo antes que ldquoexerciacutecios padronizadosrdquo eles seratildeo levados a estudar a piedade sob a nor-ma da Palavra de Deus Analisar tais exerciacutecios espirituais natildeo tira o ldquopoderrdquo que lhes eacute atribuiacutedo mas ajuda-nos a averiguar praacuteticas que satildeo biblicamente certas ou erradas Por isso a eacutetica constitui um bom espaccedilo para o ensino da espiritualidade110

Se essa sugestatildeo parecer estranha ao leitor pode ser que a estranheza se explique pela ignoracircncia da bela tradiccedilatildeo eacutetica reformada que ensina acerca de vida cristatilde mediante a exposiccedilatildeo dos Dez Mandamentos Esse natildeo soacute eacute o ensino da Escritura (Rm 138-10 Gl 513-15) mas tem amplo respaldo nos catecismos da tradiccedilatildeo reformada Poreacutem introduzir essa mateacuteria seria conteuacutedo para outro artigo

109 TURRETINI Franccedilois Compendio de teologia apologeacutetica Trad Valter Graciano Martins Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011 vol 1 p 61-65 (Ivii)

110 KLOOSTERMAN ldquoStudying Spirituality in a Reformed Seminaryrdquo p 135-136

69

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

ABSTRACTThis article presents Reformed Spirituality as a field still unknown in

popular and academic circles a part of the tradition that needs to be redis-covered The concept that this is not a strong area among the Reformed plus the elusive standards of devotional practices have led many to seek alternative spiritualities Wanting to rescue the devotional and pious aspect of the Reformed tradition this article introduces the practical theology of figures such as John Calvin the English Puritans the Dutch Reformed movement called Nadere Reformatie and Jonathan Edwards besides some contemporary representa-tives of Reformed piety Later on the article presents a few distinctives of such spirituality and concludes showing the need to rescue this story for the benefit of the Reformed movement in Brazil

KEYWORDSSpirituality Reformed Theology John Calvin Puritans Nadere Refor-

matie Jonathan Edwards

71

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO ndash UMA ANAacuteLISE DA QUESTAtildeO JURIacuteDICA NO CONTEXTO DA GRANDE COMISSAtildeO (MT 2818-20)

Paulo Eduardo Vieira da Veiga

RESUMOO contexto juriacutedico no qual foi dada a Grande Comissatildeo envolve os quatro

grandes temas das Escrituras criaccedilatildeo queda redenccedilatildeo e consumaccedilatildeo Quando colocado no Eacuteden Adatildeo recebeu a missatildeo de governar tudo o que Deus havia criado Ao pecar de algum modo essa autoridade foi usurpada por Satanaacutes Quando Cristo morreu e ressuscitou cumpriu assim o seu propoacutesito redentor e como o uacuteltimo Adatildeo recuperou e ampliou juridicamente a autoridade perdida pelo primeiro Dessa forma a Grande Comissatildeo em Mateus 2818-20 comeccedila natildeo no versiacuteculo 19 mas jaacute no versiacuteculo 18 quando o Senhor ressurreto com base nesta mesma autoridade ordena a seus disciacutepulos irem pelo mundo e fa-zerem disciacutepulos de todas as naccedilotildees Portanto o presente artigo visa analisar a palavra ἐξουσία (autoridade) mencionada no versiacuteculo 18 no contexto da teologia biacuteblica do Antigo e do Novo Testamentos refletir sobre a autorida-de perdida por Adatildeo e reconquistada por Cristo e avaliar como o triunfo e a exaltaccedilatildeo de Cristo satildeo a garantia de sucesso da missatildeo datildeo sentido ao ldquoiderdquo revestem a igreja com autoridade e impulsionam os disciacutepulos no cumprimento da Grande Comissatildeo apontando para o escaton1

O autor eacute bacharel em teologia pelo Seminaacuterio Presbiteriano do Sul e mestrando em Estudos Biacuteblico-Hermenecircuticos do Novo Testamento no Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper

1 Este artigo foi escrito inicialmente para atender agraves exigecircncias da disciplina ldquoPrincipados e Potestadesrdquo ministrada em 2020 pelo Prof Dr Leandro A de Lima no CPAJ como parte do curso de Mestrado em Estudos Biacuteblico-Hermenecircuticos Vaacuterias das ideias expostas no artigo especialmente a questatildeo juriacutedica da autoridade conquistada por Cristo refletem o ensino do referido professor ministrado durante a disciplina e tambeacutem em seus escritos em especial sua tese de doutorado de 2012 (LIMA

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

72

PALAVRAS-CHAVETeologia biacuteblica Novo Testamento Grande Comissatildeo Reino Evangelho

Autoridade Batalha juriacutedica

INTRODUCcedilAtildeOOs debates recentes entre os exegetas sobre o entendimento da Grande

Comissatildeo giram em torno do verbo πορευθέντες (ir) Alguns defendem que esse verbo deva ser traduzido como ldquoiderdquo no imperativo outros defendem que seja traduzido como ldquoindordquo no geruacutendio Ambas as anaacutelises exegeacuteticas trazem implicaccedilotildees missioloacutegicas importantes seja a ecircnfase no discipulado local seja nas missotildees transculturais e na plantaccedilatildeo de novas igrejas Eacute certo que tudo isso estaacute incluiacutedo na Grande Comissatildeo

David Hesselgrave ao analisar o texto de Mateus 2818-20 defende que existe um elemento baacutesico que eacute ldquofazei disciacutepulos de todas as naccedilotildeesrdquo Segundo ele a importacircncia do fazer disciacutepulos (μαθητεύσατε) eacute ressaltada pelo fato de este ser o uacutenico imperativo no texto da Grande Comissatildeo Ele ainda destaca que ldquofazei disciacutepulos de todas as naccedilotildeesrdquo requer que se tenha missionaacuterios em todas as naccedilotildees2 O professor Carl Bosma em suas pesquisas sobre as posiccedilotildees exegeacuteticas acerca de Mateus 2818-20 apresenta quatro atitudes em relaccedilatildeo a esses termos (1) forte ecircnfase no particiacutepio traduzido como imperativo (ldquoIderdquo) (2) maior ecircnfase em ldquofazer disciacutepulosrdquo (3) subordinaccedilatildeo plena do ldquoirrdquo ao ldquofazer disciacutepulosrdquo tornando-o quase irrelevante (4) ecircnfase igual nos dois conceitos Bosma defende a quarta posiccedilatildeo enfatizando que o ldquoirrdquo faz parte do mandamento de se fazer disciacutepulos Para ele tanto eacute importante o discipulado local (fazer disciacutepulos e ensinar) quanto as missotildees transculturais (ldquoindo)rdquo3 Jaacute o professor Chun Kwang Chung faz uma anaacutelise da mudanccedila recente na traduccedilatildeo do verbo πορευθέντες como ldquoindordquo em vez de ldquoiderdquo traduccedilatildeo esta que sempre foi adotada por diversas sociedades biacuteblicas Segundo ele traduzir πορευθέντες como ldquoindordquo gera implicaccedilotildees missioloacutegicas fundamentais no entendimento da Grande Comissatildeo pois tal interpretaccedilatildeo eacute defendida pelos proponentes do ministeacuterio de discipulado nas igrejas locais e pelo movimento de igrejas missionais Poreacutem ele defende que os tradutores estavam corretos ao traduzirem o particiacutepio πορευθέντες como imperativo ldquoiderdquo4

Leandro Antocircnio de ldquoApocalipse como literatura um estudo sobre a importacircncia da anaacutelise da arte literaacuteria em apocalipse 12-13rdquo Dissertaccedilatildeo (Doutorado em Letras) Satildeo Paulo Universidade Presbite-riana Mackenzie 2012) e seu livro A Grande Batalha Escatoloacutegica (Satildeo Paulo Editora Agathos 2016)

2 HESSELGRAVE David J A comunicaccedilatildeo transcultural do Evangelho Satildeo Paulo Vida Nova 1994 p 69

3 BOSMA Carl ldquoMissotildees e sintaxe grega em Mateus 2818-20rdquo Fides Reformata XIV-1 2009 p 9

4 CHUNG Chun Kwang ldquoIde ou Indo Igrejas Missionais e o uso do particiacutepio na Grande Comissatildeo de Mateus 2818-20rdquo Fides Reformata XXIV-2 2019 p 51

73

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

Toda essa discussatildeo teoloacutegica eacute saudaacutevel vaacutelida e uacutetil para o entendi-mento da missatildeo da igreja Sem duacutevida eacute preciso considerar esses aspectos Contudo parece-me que ao longo destes debates tem sido deixado de lado o contexto no qual estas palavras foram ditas pelo Senhor Jesus perdendo-se de vista a base a seguranccedila e a motivaccedilatildeo principal para a missatildeo que eacute o triunfo e a exaltaccedilatildeo do Cristo ressurreto que ascendeu aos ceacuteus e que garante sua presenccedila constante com seus disciacutepulos em missatildeo Ele tambeacutem garante que as portas do inferno natildeo prevaleceratildeo contra a sua igreja (Mt 1618) Porque Jesus conquistou todo poder e toda autoridade nos ceacuteus e terra ele tem o direito legal de exercecirc-los sobre todas as coisas Sua morte e ressurreiccedilatildeo deram-lhe o direito legal de restaurar a criaccedilatildeo a qual fora colocada debaixo do cativeiro do pecado e de salvar aqueles por quem ele morreu pois levou sobre si todos os pecados deles tambeacutem num sentido legal Logo focar ape-nas na traduccedilatildeo do verbo πορευθέντες deixa muita coisa de fora pois omite a base da argumentaccedilatildeo racional da Grande Comissatildeo5 Portanto analisar a promessa que impele a Grande Comissatildeo eacute fundamental para o cumprimento dessa tarefa dada agrave igreja

1 TODA A AUTORIDADE (πᾶσα ἐξουσία)A palavra ἐξουσία (autoridade poder) eacute amplamente usada no Novo Tes-

tamento Tendo em vista os evangelhos e o livro de Atos encontramos o termo ἐξουσία nove vezes em Mateus (729 89 96 8 101 2123 24 27 2818) No evangelho de Marcos a palavra tambeacutem aparece nove vezes Jaacute Lucas e Joatildeo a utilizam dezesseis vezes e oito vezes respectivamente6 Analisando a autoridade de Cristo no contexto do livro de Mateus percebemos que Jesus se apresenta como aquele que tem autoridade sobre a terra para perdoar pecados (Mt 96) Eacute dito que as multidotildees se maravilhavam de sua doutrina porque ele as ensinava como quem tem autoridade (Mt 729) e o proacuteprio Jesus ainda afirma que tudo lhe havia sido entregue pelo Pai (Mt 1127) Logo apoacutes ressuscitar Jesus se apresenta aos seus disciacutepulos como algueacutem que tem toda a autoridade nos ceacuteus e na terra (Mt 2818) Curiosamente sempre que Mateus faz uso do termo ἐξουσία (autoridade) ele o faz somente com referecircncia a Jesus Quando se trata de seres humanos a palavra utilizada por ele eacute δύναμις (poder)7 De acordo com Craig Keener ldquoa autoridade de Jesus inclui a autoridade de dizer aos seus subordinados para iremrdquo8 Sua autoridade eacute singular eacute a uacutenica que

5 HORTON Michael A Grande Comissatildeo Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2014 p 276 LEE k VILJOEN F P ldquoThe Ultimate Comission the key for the gospel according to Matthewrdquo

Acta Theologica University of the Free State South Africa vol 30 n 1 (jun 2010) p 64-83 7 LAWRENCE Louise Joy An ethnography of the Gospel of Matthew A critical assessment of

the use of the honour and shame model in New Testament studies Tuumlbingen Mohr Siebeck 2010 p 1178 KEENER Craig S The Gospel of Matthew A Socio-Rhetorical Commentary Grand Rapids

Eerdmans 2009 p 178

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

74

pode ser declarada como autoridade absoluta autoridade da verdade autoridade de Deus9 Eacute com base nessa autoridade que Jesus ordena aos seus disciacutepulos para que vatildeo ao mundo e faccedilam disciacutepulos de todas as naccedilotildees batizem-nos em nome do Pai do Filho e do Espiacuterito Santo e os ensinem a guardar todas as coisas que Jesus havia ordenado aos doze David Bauer ainda destaca que a autoridade de Jesus pode ser vista em seus ensinamentos milagres nas pessoas que respondem a ele em seus tiacutetulos e em sua posiccedilatildeo uacutenica como uma figura divina ou messiacircnica10

Eacute importante observar que Jesus profere essas palavras apoacutes a sua ressur-reiccedilatildeo Assim todas as restriccedilotildees vinculadas agrave sua encarnaccedilatildeo agora natildeo mais estatildeo ligadas agrave sua natureza humana pois ele natildeo eacute mais o homem de dores ferido de Deus e oprimido Agora tendo triunfado sobre o pecado e a morte ele recebe autoridade divina sobre ceacuteus e terra11 Logo a autoridade que foi dada a Cristo refere-se agrave autoridade que ele recebe enquanto Deushomem A palavra ἐξουσία poderia ser traduzida como um estado de controle sobre algo liberdade de escolha o direito de agir ou decidir capacidade de fazer algo poder absoluto legitimidade12 O Novo Testamento emprega duas palavras para se referir a ldquopoderrdquo satildeo os termos ἐξουσία e δύναμις sendo que ἐξουσία eacute um termo mais abrangente do que δύναμις pois se refere tanto agrave posiccedilatildeo quanto agrave funccedilatildeo Logo nada na criaccedilatildeo estaacute fora da autoridade de Cristo o que denota sua autoridade divina13 Eacute desta forma que ele emprega essa palavra no contexto da Grande Comissatildeo Contudo em que sentido Cristo recebe essa autoridade apenas apoacutes a sua morte e ressurreiccedilatildeo Sendo Deus ele jaacute natildeo possuiacutea toda essa autoridade mesmo antes disso

Para tornar isso claro precisamos analisar o aspecto legal desta autori-dade ou seja o direito e o poder que Cristo tem sobre todas as coisas derivado de sua posiccedilatildeo como o segundo Adatildeo como aquele que veio para reverter a Queda O Dr Leandro de Lima ao abordar o tema da primeira vinda de Cris-to a denomina a grande batalha escatoloacutegica na qual a libertaccedilatildeo do povo de Deus estava sendo conquistada visto que era uma batalha juriacutedica ou legal uma batalha por autoridade Assim ele destaca que ldquoa vinda de Cristo foi uma

9 DODD C H The Authority of the Bible London Fontana Books 1960 p 23210 BAUER David R The Structure of Matthewrsquos Gospel A Study in Literary Design Sheffield

Almond 1988 p 115-11711 MORRIS Leon The Gospel according to Matthew Grand Rapids Eerdmans 1992 p 745-74612 LENSKI R C H The Eisenach Gospel Selections An Exegetical-Homiletical Treatment

Columbus The Lutheran Book Concern 1928 p 57713 OSBORNE Grant R The Resurrection Narratives A Redactional Study Grand Rapids Baker

1984 p 90

75

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

declaraccedilatildeo de guerra contra os inimigos [] mas uma guerra por direito por legitimidaderdquo14

11 A autoridade usurpadaEssa guerra por legitimidade teve iniacutecio no Eacuteden Quando Deus colocou

Adatildeo e Eva no jardim e lhes deu a missatildeo de governar tudo o que ele havia criado (Gn 126-27) eles eram na linguagem de Gerard Van Groningen os vice-gerentes de Deus Bruce Waltke comentando Gecircnesis 126-27 destaca que ldquoo texto estaacute dizendo que exercer domiacutenio real sobre a terra como repre-sentante de Deus eacute o propoacutesito baacutesico para o qual Deus criou o homemrdquo15 Van Groningen lanccedila luz sobre a questatildeo

Deus tinha um propoacutesito predeterminado para a humanidade Ela deveria ter um papel superior uma influecircncia dominante e um serviccedilo responsaacutevel Homem e mulher deveriam ser governadores sobre a criaccedilatildeo natural deveriam ser os representantes reais dentro do reino coacutesmico16

Dessa forma o homem foi colocado como mordomo de Deus junto agrave criaccedilatildeo Todas as coisas foram postas sob sua autoridade Ele deveria gover-nar sobre o que havia sido criado exercendo assim suas prerrogativas reais desenvolvendo o cosmos e mantendo-o Ao conferir esta autoridade e domiacutenio ao homem o Senhor estava colocando a humanidade em um relacionamento singular com o cosmos17 O homem tinha essas prerrogativas por direito o qual lhe tinha sido concedido pelo proacuteprio Deus pois como escreve o salmista ldquoFizeste-o no entanto por um pouco menor do que Deus e de gloacuteria e de honra o coroaste Deste-lhe domiacutenio sobre as obras de tua matildeo e sob seus peacutes tudo lhe pusesterdquo (Sl 85-6) Obviamente que Deus natildeo concedeu sua deidade aos seres humanos mas os colocou na mais alta posiccedilatildeo real na criaccedilatildeo e os dotou com o privileacutegio e a responsabilidade de serem cotrabalhadores com ele nas tarefas reais a serem executadas na criaccedilatildeo18 A terra foi criada para o domiacutenio e governo humanos Tal domiacutenio era expressatildeo do reino de Deus e representava o governo divino19

14 LIMA Leandro A de A grande batalha escatoloacutegica Satildeo Paulo Editora Agathos 2016 p 715 WALTKE Bruce Comentaacuterios do Antigo Testamento Genesis Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019

p 7716 VAN GRONINGEN Gerard Criaccedilatildeo e consumaccedilatildeo o reino a alianccedila e o Mediador Satildeo

Paulo Cultura Cristatilde 2018 vol 1 p 7917 Ibid p 9018 Ibid p 85 19 DEMPSTER Stephen G Dominion and Dynasty A Biblical Theology of the Hebrew Bible

New Studies in Biblical Theology 15 Downers Grove Illinois IVP Academic 2006 p 62

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

76

Se Adatildeo e Eva tivessem cumprido devidamente o mandato recebido de Deus Satanaacutes natildeo teria nenhum direito e legalidade sobre o cosmos e nem sobre os vice-gerentes de Deus Pois embora Satanaacutes tivesse acesso ao Eacuteden pelo fato de ser um anjo e por sua posiccedilatildeo no cosmos ele natildeo era capaz de introduzir o mal e o pecado diretamente dentro do Eacuteden e do cosmos pois natildeo lhe foram concedidas as prerrogativas reais e o status que foram concedidos por Deus a Adatildeo e Eva20 Por isso ele buscava para si o controle do reino coacutesmico de Deus mas para atingir seu objetivo era preciso encontrar uma brecha ele precisava usurpar este direito que pertencia ao primeiro casal e a uacutenica maneira de fazecirc--lo era entrar no Eacuteden e ganhar controle e influecircncia sobre os vice-gerentes de Deus Em Gecircnesis 215 Deus toma o homem e o coloca no jardim do Eacuteden para o cultivar e o guardar Um aspecto interessante da atividade do homem eacute que o termo guardar incluiacutea guardar o jardim contra a usurpaccedilatildeo de Satanaacutes Adatildeo e Eva natildeo eram apenas os sacerdotes de Deus mas tambeacutem os guardiotildees do jardim Eles que deveriam expulsar a serpente acabaram sendo expulsos por ela21 Ao inveacutes de prontamente se opor denunciar e expulsar o tentador blasfemo eacute digno de nota o fato de Adatildeo ter ficado passivo enquanto via sua esposa receber um tutorial deste estranho mestre de teologia a serpente22 Sa-tanaacutes estava desafiando a autoridade de Deus ao compelir o homem a escolher entre dois mestres23 Era a autoridade de Deus versus o desafio do mundo sob o domiacutenio de Satanaacutes24 Dessa maneira ao darem ouvidos agrave voz da serpente Adatildeo e Eva estavam deixando a autoridade de Deus e de sua palavra para se colocarem debaixo da autoridade do diabo e de suas mentiras submetendo-se ao pecado e ao poder do mal ficando destinados agrave morte25

Ao enganar e seduzir o primeiro casal Satanaacutes foi bem-sucedido em seu plano de introduzir o mal e o pecado no mundo (Gn 31-13) levando-os a duvidar de Deus e desobedececirc-lo Adatildeo e Eva quebraram o seu relacionamento com Yahweh com o cosmos e um com o outro Agora eles eram os quebradores do pacto natildeo mais tinham o senso de serem governadores reais e vice-gerentes de Deus Eles abdicaram do trono que Deus lhes havia dado renderam-se a Satanaacutes completamente e pecaram contra o Criador26 Com isso Satanaacutes obteve

20 GRONINGEN Criaccedilatildeo e consumaccedilatildeo p 12521 WALTKE Comentaacuterios do Antigo Testamento p 10322 GOLDINGAY John Old Testament Theology Israelrsquos Gospel Downers Grove IL IVP Aca-

demic 2003 p 13123 KLINE M G Kingdom Prologue Genesis Foundations for a Covenantal Worldview Eugene

OR Wipf amp Stock 2006 p 12324 ARNOLD Bill T Encountering the Book of Genesis Grand Rapids Baker Books 1998 p 4125 Segundo Gordon Wenham ldquoa serpente simboliza o pecado a morte e o poder do malrdquo WENHAM

Gordon J Genesis 1-15 World Biblical Commentary Waco TX 1987 p 14826 GRONINGEN Criaccedilatildeo e consumaccedilatildeo p 127

77

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

o domiacutenio sobre os vice-gerentes pactuais de Deus e consequentemente ob-teve domiacutenio sobre o cosmos O pecado que passou a fazer parte da natureza humana caiacuteda deu poder a Satanaacutes e seus anjos para serem acusadores dos seres humanos e tambeacutem para os dominarem e possuiacuterem Foi o princiacutepio da legalidade Satanaacutes conseguiu estabelecer o seu reino seu trono e seu domiacutenio substitutos dentro do cosmos27 Poreacutem seu reino eacute parasita ou seja natildeo pode existir independentemente pois depende do reino coacutesmico de Deus Ele eacute um intruso maligno querendo entronizar-se como o mestre dos seres humanos e do reino coacutesmico sobre o qual eles haviam recebido o domiacutenio e o mandato de zelar cultivar e governar28

Por meio da desobediecircncia de Adatildeo e Eva Satanaacutes foi capacitado a im-plantar seu reino parasita dentro do cosmos Sua intenccedilatildeo eacute ter domiacutenio com-pleto o que nunca seraacute consumado Seu reino eacute de oposiccedilatildeo espiritual ao reino de Deus e a todo o cosmos O ataque de Satanaacutes foi totalmente planejado pois visava destruir toda estrutura que Deus havia criado no jardim O interesse do inimigo natildeo era simplesmente conseguir que o homem pecasse contra Deus muito mais do que isso ele queria invadir cada estrutura de autoridade cada siacutembolo de reino e governo que Deus havia instituiacutedo29 Ele queria subverter toda a estrutura da criaccedilatildeo e queria que Deus fosse humilhado Eacute aqui que temos o estabelecimento da antiacutetese da linha divisoacuteria do abismo e da oposi-ccedilatildeo entre o reino de Deus e o reino parasita de Satanaacutes Logo apoacutes a queda do primeiro casal o Senhor pronuncia uma maldiccedilatildeo contra a serpente e declara inimizade entre a semente de Satanaacutes e os seguidores de Yahweh (cf Gn 315) Van Groningen mais uma vez traz clareza agrave questatildeo

Eacute basicamente uma luta pelo coraccedilatildeo pelo serviccedilo real e os benefiacutecios re-sultantes destes Deus Yahweh requereu o direito de posse Satanaacutes tambeacutem Ter os coraccedilotildees a proacutepria pessoa de Adatildeo e Eva natildeo era somente tecirc-los como servos mas tambeacutem reivindicar o cosmos sobre o qual tinham sido colocados como vice-gerentes Desse modo reivindicar os vice-gerentes era reivindicar o seu domiacutenio Reivindicar os seres reais era reivindicar suas prerrogativas reais dentro do domiacutenio Ter domiacutenio espiritual era tambeacutem ter o domiacutenio coacutesmico todos os aspectos do reino coacutesmico estariam envolvidos na luta quando Deus Yahweh sustentasse por declaraccedilatildeo a oposiccedilatildeo ie a antiacutetese30

Com a entrada do pecado no mundo o homem a quem Deus havia criado com liberdade de escolha usa seu livre arbiacutetrio para rebeliatildeo Adatildeo e Eva quebram o Pacto que Deus havia feito com eles caem do seu estado de

27 Ibid28 Ibid p 12629 Ibid p 15730 Ibid p 156

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

78

inocecircncia e tornam-se pecadores traindo a Deus num ato de rebeldia pois foi uma traiccedilatildeo universal (coacutesmica) uma traiccedilatildeo contra o Rei do cosmos31 Sua natureza que antes era santa agora estaacute corrompida pelo mal e manchada pelo pecado Seus pensamentos consciecircncia vontade e emoccedilotildees satildeo atingidos pela corrupccedilatildeo e pervertidos eles satildeo despojados de sua justiccedila original E assim condenam todos os seus descendentes a nascerem em iniquidade culpados corrompidos e destinados agrave morte32 Agora toda a criaccedilatildeo eacute colocada debaixo do cativeiro do pecado Aqui os vice-gerentes de Deus entregam nas matildeos da serpente o domiacutenio que tinham recebido do Criador perdendo seu status real e a autoridade de dominar e sujeitar toda criaccedilatildeo33 Contudo como assinala Derek Kidner ldquograccedilas agrave misericoacuterdia a maldiccedilatildeo recai sobre os domiacutenios do homem natildeo sobre o homem propriamente ditordquo34 Pois embora Adatildeo tenha ouvido palavras como fadiga suor morte e poacute sendo associadas agrave sua expe-riecircncia humana como consequecircncia de sua rebeliatildeo contudo a maldiccedilatildeo recai sobre a terra que se torna maldita por causa do pecado e porque seu domiacutenio eacute entregue a Satanaacutes Ademais o objetivo da serpente de minar a autoridade de Deus entre o povo que ele mesmo criou natildeo seraacute alcanccedilado pois no final ela seraacute destruiacuteda pela semente da mulher (cf Gn 315)35

12 A autoridade recuperada e ampliadaA fim de que esta autoridade fosse recuperada ou reconquistada algo

precisava ser feito E ningueacutem menos que o Filho de Deus foi quem realizou tal obra por meio de sua vitoacuteria na batalha juriacutedica da cruz Ao retrocedermos para muito antes da crucificaccedilatildeo temos de considerar a conversa que o diabo tem com Jesus por ocasiatildeo da tentaccedilatildeo no deserto Em Lucas 45-6 Satanaacutes num momento mostra a Cristo todos os reinos do mundo e a gloacuteria deles A seguir declara que daraacute toda essa autoridade sobre os reinos a Cristo se ele prostrado o adorar o que Cristo se recusou a fazer Mas um fato importante nesse episoacutedio eacute que o diabo afirma que a autoridade sobre todos os reinos do mundo foi entregue a ele por isso ele pode concedecirc-la a quem quiser O curioso eacute que Jesus natildeo o desmente e nem o questiona sobre tal afirmaccedilatildeo Apesar de ser o pai da mentira o diabo parece estar falando a verdade quando afirmou que tinha toda aquela autoridade sobre as naccedilotildees e reinos Pois no Eacuteden por ocasiatildeo da queda do ser humano ele recebeu autoridade para enganar as naccedilotildees e mantecirc-las sob cegueira espiritual Eacute digno de nota que ao tentar a Cristo

31 SPROUL R C A verdade da cruz Satildeo Paulo Fiel 2019 p 35-36 32 CALVINO Joatildeo Salmos Vol 2 Satildeo Paulo Fiel 2011 p 418-419 33 CHUNG Chun Kwang Missatildeo primordial os fundamentos da missatildeo em Gecircnesis 1-11 Satildeo

Paulo Missioloacutegica 2019 p 7334 KIDNER Derek Genesis introduccedilatildeo e comentaacuterio Satildeo Paulo Vida Nova 1979 p 6735 LONGMAN III Tremper Como ler Genesis Satildeo Paulo Vida Nova 2009 p 137

79

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

no deserto ele natildeo sabia que natildeo teria mais esta autoridade por muito tempo Porque Cristo por meio de sua morte e ressurreiccedilatildeo cassaria este direito legal de Satanaacutes e tomaria dele as naccedilotildees36

Quando comparamos as passagens de Lucas 46 com Mateus 2818 podemos perceber uma forte semelhanccedila entre as palavras que Satanaacutes usou para oferecer a autoridade dos reinos deste mundo a Jesus e a afirmaccedilatildeo de Jesus sobre o Pai ter-lhe concedido toda autoridade nos ceacuteus e na terra Em Lucas 46 Satanaacutes declara ldquoΣοὶ δώσω τὴν ἐξουσίαν ταύτην ἅπασαν καὶ τὴν δόξαν αὐτῶν ὅτι ἐμοὶ παραδέδοταιrdquo (ldquoA ti darei toda esta autoridade e a gloacuteria deles porque a mim foi entreguerdquo) Em Mateus 2818 Jesus decla-ra ldquoἘδόθη μοι πᾶσα ἐξουσία ἐν οὐρανῷ καὶ ἐπὶ τῆς γῆςrdquo (ldquoFoi dada a mim toda autoridade no ceacuteu e sobre a terrardquo) Jesus proclama sua autoridade nos ceacuteus e na terra repetindo quase que cada palavra proferida pelo diabo37 Podemos perceber que a batalha juriacutedica travada por Cristo eacute determinada pela antiacutetese entre o reino dos ceacuteus e o domiacutenio de Satanaacutes A tentaccedilatildeo com respeito aos reinos deste mundo (cf Lc 45ss e Mt 48ss) revela em que consistia o conflito entre Jesus e Satanaacutes O priacutencipe deste mundo (o diabo) estava se opondo ao reino de Deus por saber que Jesus disputaria essa autoridade com ele em nome de Deus sendo que Cristo jamais poderia fazer uso arbitraacuterio da autoridade que lhe fora dada antes deveria conquistaacute-la natildeo da maneira proposta por Satanaacutes mas da maneira determinada por Deus38 Enquanto a autoridade de Satanaacutes foi algo usurpado pela legalidade deixada por Adatildeo a autoridade de Cristo por sua vez foi um direito conquistado e recebido das matildeos um Deus soberano Ele natildeo usurpou tal autoridade antes ela lhe foi dada por Deus como uma capacitaccedilatildeo para um encargo39 Jesus eacute digno da autoridade que recebeu (Apocalipse 5) O que Satanaacutes ofereceu a Jesus foi ldquotoda autoridaderdquo sobre os reinos deste mundo mas o que Deus lhe concedeu foi toda autoridade nos ceacuteus e na terra dando-lhe um nome acima de todo nome (Fp 29-10) Isso aponta para o se-nhorio coacutesmico de Cristo

Fica claro que refletir sobre a obra realizada por Cristo em sua morte ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo eacute imprescindiacutevel para compreendermos o aspecto juriacutedico que envolve o plano da redenccedilatildeo A obra de Cristo efetua por assim dizer uma total renovaccedilatildeo coacutesmica colocando todos os reinos deste mundo sob seu domiacutenio conquistando a salvaccedilatildeo natildeo soacute de almas mas de corpos e natildeo soacute de seres humanos mas de toda a criaccedilatildeo40 Eacute com base nisto que pode-

36 LIMA A grande batalha escatoloacutegica p 29-3037 Ibid p 2938 RIDDERBOS Herman A vinda do Reino de Deus Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019 p 6439 KLAIBER Walter ldquoThe Great Commission of Matthew 2816-20rdquo American Baptist Historical

Quarterly vol XXXVII n 2 p 108-122 40 HORTON A Grande Comissatildeo p 72-73

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

80

mos entender o protoevangelho em gecircnesis 315 ldquoPorei inimizade entre ti e a mulher entre a tua descendecircncia e o seu descendente Este te feriraacute a cabeccedila e tu lhe feriraacutes o calcanharrdquo Na maldiccedilatildeo sobre a serpente veio embutida uma semente de esperanccedila para a humanidade uma esperanccedila genealoacutegica41

Eacute neste contexto mais amplo da alianccedila da graccedila que teve seu iniacutecio com a promessa divina de um redentor em Gecircnesis 315 que a Grande Comissatildeo eacute dada Jesus eacute o descendente da mulher que ao morrer na cruz e ressuscitar feriu a cabeccedila de Satanaacutes Ele esmagou a cabeccedila da serpente e estaacute pondo prisioneiros em liberdade pois lhe foi dada toda a autoridade nos ceacuteus e na terra42 Esta autoridade foi reivindicada por ele algumas vezes nos evangelhos quando falava de si mesmo como o ldquoFilho do Homemrdquo Tal expressatildeo aparece em Daniel 713-14 e eacute uma das mais usadas por Jesus para referir-se a si proacute-prio para falar de sua majestade de sua autoridade para perdoar pecados do seu poder legislador sobre o dia de saacutebado e da gloacuteria de sua segunda vinda (cf Mt 96 128 1627 2430 2531) Mateus 2818 parece ser uma alusatildeo consciente a Daniel 71443

Podemos dizer que Jesus estaacute edificando a sua igreja sobre a sua palavra e uma dessas palavras ocorre no evangelho de Mateus 2818-20 exatamente o texto da Grande Comissatildeo Mateus 2818 eacute o equivalente real a Daniel 714 ldquoE foi-lhe dado o domiacutenio e a honra e o reino para que todos os povos naccedilotildees e liacutenguas o servissem o seu domiacutenio eacute um domiacutenio eterno que natildeo passa-raacute e o seu reino tal que natildeo seraacute destruiacutedordquo Jesus reivindica ser este Filho do Homem profetizado por Daniel44 Eacute com base em sua proacutepria identidade que ele entrega a Grande Comissatildeo aos seus disciacutepulos Portanto Cristo eacute o centro de toda proclamaccedilatildeo missionaacuteria45 ele eacute o personagem central da missatildeo sua pessoa eacute o centro da Escritura (Lc 2427 44) e eacute ele mesmo quem deve ser proclamado (Lc 2446-47) Os disciacutepulos devem proclamar o evangelho com base no direito de Cristo o qual veio a este mundo para impor o direito divino sobre Satanaacutes e assim libertar os cativos O evangelho iraacute prevalecer46 Cristo veraacute o fruto do penoso trabalho de sua alma e ficaraacute satisfeito pois agrave medida que o evangelho for sendo proclamado a todas as naccedilotildees o Senhor atrairaacute muitos pecadores a si e justificaacute-los-aacute (Is 5311)

41 DEMPSTER Dominion and Dynasty p 6842 LIMA A grande batalha escatoloacutegica p 8243 CARSON Donald A O comentaacuterio de Mateus Satildeo Paulo Shedd 2011 p 68744 KLAIBER ldquoThe Great Commissionrdquo p 108-12245 PIPER John Alegrem-se os povos a supremacia de Deus em missotildees Satildeo Paulo Cultura

Cristatilde 2001 p 23446 LIMA A grande batalha escatoloacutegica p 45

81

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

2 O PODER DO EVANGELHOToda menccedilatildeo ao evangelho feita neste artigo tem como base a seguinte

definiccedilatildeo ldquoO evangelho eacute a mensagem de Deus para a redenccedilatildeo de sua igreja Eacute o poder de Deus que se manifesta na transformaccedilatildeo de pessoas Eacute o proacuteprio Senhor Jesus quem ele eacute o que ele fez na cruz e na ressurreiccedilatildeordquo47 Posto isto o poder o triunfo e os efeitos do evangelho satildeo infinitamente maiores do que a maioria de noacutes imagina

Em Colossenses 214 Paulo faz uso de uma metaacutefora tirada do mundo juriacutedico ele fala de uma espeacutecie de certificado de diacutevida uma cobranccedila de nossa diacutevida legal Ao comentar este versiacuteculo James Dunn diz que o pano de fundo aqui por meio da expressatildeo ldquocontra noacutesrdquo confirma que o documento em questatildeo era de condenaccedilatildeo era um registro de nossas transgressotildees hostil a noacutes Dunn ainda argumenta que a redenccedilatildeo realizada na cruz sob estas imagens efetua o cancelamento ou apagamento dos registros de um livro A eliminaccedilatildeo dos registros confirma que nenhuma destas transgressotildees eacute mais mantida contra noacutes em outras palavras a metaacutefora eacute outra maneira de dizer que ldquoele perdoou todas as nossas transgressotildeesrdquo48 Paulo usa uma imagem viacutevida ao afirmar que Cristo ao ser crucificado removeu destruiu o registro de diacutevida que era contra noacutes A ideia eacute de a acusaccedilatildeo estar sendo destruiacuteda por meio da crucificaccedilatildeo como se a proacutepria acusaccedilatildeo estivesse sendo crucificada Nossas transgressotildees foram absorvidas na morte sacrifical de Cristo49 Em Colossenses 215 Paulo daacute ecircnfase ao triunfo do Senhor ressurreto sobre principados e potestades Se em Colossenses 214 a cruz eacute siacutembolo de destruiccedilatildeo no sentido de cancelar ou destruir o escrito de diacutevida agora em Colossenses 215 ela eacute transformada em uma imagem puacuteblica de triunfo50

A versatildeo Todayrsquos New International Version traduz a expressatildeo ldquodespojan-do principados e potestadesrdquo como ldquotendo desarmado os principados e potes-tadesrdquo Douglas Moo ao analisar exegeticamente esses versiacuteculos afirma que foi na cruz que Deus desarmou tirou as armas dos dominadores deste mundo mas que foi na ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo de Cristo que Deus exibiu publicamente a realidade do triunfo de Cristo sobre os principados e potestades Para Moo o apoacutestolo Paulo ao usar a sequecircncia dos versiacuteculos 14 e 15 parece sugerir uma ligaccedilatildeo entre o perdatildeo de nossos pecados e o desarmamento dos poderes

47 LIDOacuteRIO Ronaldo Revitalizaccedilatildeo de igrejas avaliando a vitalidade de igrejas locais Satildeo Paulo Vida Nova 2016 p 21

48 DUNN James D G The Epistles to the Colossians and to Philemon Grand Rapids Eerdmans 2016 p 164-166

49 Ibid50 Ibid

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

82

das trevas51 Mais uma vez podemos perceber o aspecto juriacutedico da obra de Cristo seu direito e senhorio sobre todas as coisas

Esta verdade tambeacutem eacute encontrada em Efeacutesios 120-21 quando Paulo afirma que Deus ressuscitou a Jesus dentre os mortos e o fez assentar acima de todo governo domiacutenio principado e potestade Ele ensina a mesma verdade em Romanos 13-4 ao afirmar que Jesus foi designado Filho de Deus com poder por meio da ressurreiccedilatildeo Eacute quando ele ascende aos ceacuteus para assentar-se agrave direita do Pai que ele proclama sua vitoacuteria sobre os seres espirituais malignos (1Pe 318-22)52

1Pedro 318-22 eacute outro texto que apresenta a vitoacuteria da Cristo na batalha juriacutedica do Calvaacuterio Aqui o apoacutestolo Pedro fala acerca da morte e ressurreiccedilatildeo de Cristo seu triunfo e a proclamaccedilatildeo de sua vitoacuteria sobre os principados e potestades No versiacuteculo 19 Pedro usa o verbo ἐκήρυξεν (proclamar) para dizer que Jesus apoacutes ressuscitar proclamou sua vitoacuteria aos anjos caiacutedos (espiacuteritos em prisatildeo) anunciou o seu triunfo sobre seus adversaacuterios O texto termina dando destaque ao fato de que Jesus Cristo apoacutes ter subido aos ceacuteus estaacute agrave matildeo direita de Deus estando-lhe sujeitos os anjos autoridades e potestades (322) Pedro objetiva deixar claro que natildeo haacute nada nos ceacuteus e na terra que tenha ficado fora do domiacutenio de Cristo O alvo de Cristo ao fazer uma proclamaccedilatildeo especiacutefica a esses anjos em prisatildeo foi mostrar que nem mesmo aqueles antigos anjos caiacutedos que estavam haacute tanto tempo aprisionados ficaram alheios ao senhorio de Jesus53 ldquoO Senhor ressuscitado eacute o evangelho vivordquo54 ndash isto quer dizer que o evangelho venceu triunfou A ecircnfase do texto estaacute na obra de Cristo na cruz e no que ele conquistou ou seja a morte e a ressurreiccedilatildeo de Cristo garantem a libertaccedilatildeo dos seres humanos dos poderes dos espiacuteritos malignos55 Cristo se manifestou para tirar os pecados e para destruir as obras do diabo (1Jo 35 8) aleacutem de conquistar o direito de restaurar toda a criaccedilatildeo libertando-a do cativeiro do pecado (Rm 821)

Apocalipse 59-10 eacute mais um texto que apresenta essa questatildeo juriacutedica da morte e ressurreiccedilatildeo de Cristo e de como ele tem o direito de exercer seu senhorio sobre todas as coisas e de salvar pessoas que procedem dos quatro cantos da Terra No versiacuteculo 9 Joatildeo declara que Jesus ἠγόρασας (comprou) para Deus pessoas que procedem de toda tribo povo liacutengua e naccedilatildeo Cristo comprou a libertaccedilatildeo do seu povo da maldiccedilatildeo e da penalidade do pecado Mais do que isso ele comprou pessoas elas lhe pertencem Por meio de sua

51 MOO Douglas J The Letters to the Colossians and Philemon Grand Rapids Eerdmans 2008 p 215

52 Ibid p 21553 LIMA A grande batalha escatoloacutegica p 11054 DALTON William Joseph Christrsquos Proclamation to the Spirits A Study of 1 Peter 318-46

Roma Editrice Pontificio Istituto Biblico 1989 p 9 55 Ibid

83

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

morte sacrificial Cristo comprou um povo para si O verbo ἠγόρασας eacute usado como uma metaacutefora comercial para a libertaccedilatildeo de um prisioneiro de guerra da escravidatildeo Desta forma sua morte foi um resgate um preccedilo pago pelo qual Deus comprou um povo O texto mostra que o preccedilo foi o sangue incorrup-tiacutevel de Cristo que garante natildeo soacute a liberdade do seu povo mas que tambeacutem o coloca em uma nova condiccedilatildeo espiritual Agora esse povo eacute escravo de Deus comprado para fazer sua vontade Eacute o povo de propriedade exclusiva de Deus A redenccedilatildeo efetuada confere uma nova condiccedilatildeo56

Cristo possui toda a autoridade no ceacuteu e na terra Com base em sua vitoacuteria na terra ele expulsou Satanaacutes do santuaacuterio do ceacuteu onde ele acusava os santos dia e noite (Apocalipse 12)57 Apoacutes prender ou amarrar o valente Cristo estaacute saqueando sua casa na terra tomando de volta o que por justiccedila lhe pertence (Mt 1229) Douglas Moo ao abordar a visatildeo claacutessica da expiaccedilatildeo mostra que haacute uma conexatildeo entre o poder que Satanaacutes e seus correligionaacuterios tinham sobre os seres humanos por causa do seu pecado Contudo Deus com a provisatildeo de Cristo pagou a diacutevida que os homens tinham com Satanaacutes O Pai ao enviar seu Filho agrave cruz resolveu de maneira final e definitiva o problema do pecado e removeu qualquer poder que os espiacuteritos malignos possam ter sobre os se-res humanos Moo ainda destaca que a vitoacuteria de Cristo celebrada e exibida na sua ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo precisa ser entendida pelos crentes como se fosse deles Logo a autoridade de Cristo sobre os principados e potestades foi manifestada e em Cristo os crentes compartilham dessa autoridade58 A obra realizada por Cristo em sua morte ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo pode ser bem definida nestas palavras de Horton

Nosso Senhor realizou algo na Histoacuteria ndash em sua vida morte ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo ndash que o qualifica para ser juiz e justificador dos iacutempios Jesus eacute tanto o Senhor da Alianccedila que comanda quanto o Servo da Alianccedila que cumpre toda a justiccedila e obteacutem para noacutes o perdatildeo o novo nascimento a ressurreiccedilatildeo e a renovaccedilatildeo de toda a criaccedilatildeo Como Deus ele eacute Senhor como ser humano ele ldquofoi designado Filho de Deus com poder segundo o espiacuterito de santidade pela ressurreiccedilatildeo dos mortos a saber Jesus Cristo nosso Senhorrdquo (Rm 14)59

56 OSBORNE Grant Comentaacuterio exegeacutetico Apocalipse Satildeo Paulo Vida Nova 2014 p 290-29157 Antes da morte e ressurreiccedilatildeo de Cristo ao que tudo indica Satanaacutes tinha livre acesso ao ceacuteu

onde atuava como uma espeacutecie de promotor de justiccedila acusando os seres humanos de suas transgressotildees da lei divina Ao morrer Cristo pagou todo o preccedilo do resgate do ser humano destronando o acusador que jaacute natildeo tem mais base para continuar acusando o povo de Deus Satanaacutes perdeu seu posto de acu-sador no ceacuteu sua cadeira ficou vazia ele natildeo tem mais legitimidade para agir como acusador no ceacuteu LIMA Leandro Antocircnio de ldquoApocalipse como literatura um estudo sobre a importacircncia da anaacutelise da arte literaacuteria em apocalipse 12-13rdquo Dissertaccedilatildeo (Doutorado em Letras) Satildeo Paulo Universidade Presbiteriana Mackenzie 2012 p 188-189

58 MOO The Letters to the Colossians and Philemon p 21659 HORTON A Grande Comissatildeo p 42

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

84

Walter Klaiber afirma que a ressurreiccedilatildeo de Jesus jaacute eacute sua exaltaccedilatildeo60 Este eacute um ponto importante em nossa discussatildeo pois ao ressuscitar Cristo triunfa sobre o pecado sobre a morte e sobre Satanaacutes e seus anjos Em Romanos 14 lemos ldquoe foi designado Filho de Deus com poder segundo o espiacuterito de santidade pela ressurreiccedilatildeo dos mortos a saber Jesus Cristo nosso Senhorrdquo Sobre este texto John Stott declara que ldquoa ressurreiccedilatildeo eacute o ponto decisivo na existecircncia do Filho de Deus Antes de ressuscitar ele era o Filho de Deus em fraqueza a humildade Por meio da ressurreiccedilatildeo torna-se o Filho de Deus em poderrdquo61 Eacute digno de nota que Jesus soacute entrega a Grande Comissatildeo aos seus disciacutepulos apoacutes ressuscitar ldquoA ressurreiccedilatildeo marca a vitoacuteria incontestaacutevel de Cristordquo62 Ele obteve toda autoridade nos ceacuteus e na terra por meio de sua humilhaccedilatildeo sofrimento e morte63 A ressurreiccedilatildeo de Cristo deu iniacutecio agrave nova criaccedilatildeo de Deus sendo os cristatildeos as primiacutecias desta nova criaccedilatildeo Eacute por isso que Paulo escrevendo aos coriacutentios afirma ldquoMas de fato Cristo ressuscitou dentre os mortos sendo ele as primiacutecias dos que dormemrdquo (1Co 1517-20) Sua ressurreiccedilatildeo eacute a garantia de redenccedilatildeo do seu povo mas tambeacutem de todo o cos-mos Ademais ldquofoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de mortos como de vivosrdquo (Rm 149) Jesus morreu natildeo apenas para salvar seu povo dos pecados deles mas para ter o controle absoluto da nova criaccedilatildeo64 Diante dele todo joelho tem de se dobrar e toda liacutengua con-fessar que ele eacute o Senhor (Fp 29-11) ldquoEle estaacute agora amplamente instalado e declarado como Juiz e somente ele pode receber os apelos para absolviccedilatildeordquo65 Desta maneira o conceito de salvaccedilatildeo implica render-se ao senhorio de Cristo pois Jesus foi designado Juiz de todos os povos graccedilas agrave sua ressurreiccedilatildeo e foi colocado por Deus como o centro de toda a obra salvadora de Deus66 As implicaccedilotildees missioloacutegicas do seu triunfo como Juiz universal satildeo a base para a Grande Comissatildeo ldquoA ordem dada por Jesus de pregar o arrependimento e o perdatildeo de pecados repousava sobre sua ressurreiccedilatildeo Esse eacute o conteuacutedo da comissatildeordquo67 Com base nisto o Senhor Jesus comissiona seus disciacutepulos a irem pelo mundo e pregarem o evangelho a toda criatura

60 KLAIBER ldquoThe Great Commissionrdquo p 108-12261 STOTT John R W A mensagem de Romanos Satildeo Paulo ABU Editora 2007 p 5162 LIMA A grande batalha escatoloacutegica p 90 63 RIDDERBOS A vinda do Reino de Deus p 9964 SILVA Norval Oliveira da A mensagem de salvaccedilatildeo num contexto animista A questatildeo indiacutegena

uma luta desigual Minas Gerais Editora Ultimato 2008 p 20065 PIPER Alegrem-se os povos p 150 66 Ibid p 142 e 15067 STETZER Ed Plantando igrejas missionais como plantar igrejas biacuteblicas saudaacuteveis e rele-

vantes agrave cultura Satildeo Paulo Vida Nova 2015 p 64

85

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

3 AS GARANTIAS DO EVANGELHOSobre a questatildeo levantada no iniacutecio a respeito da traduccedilatildeo do verbo

πορευθέντες o autor deste artigo concorda com a posiccedilatildeo do professor Bos-ma de que o ldquoirrdquo faz parte do mandamento de se fazer disciacutepulos pois tanto eacute importante o discipulado local (fazer disciacutepulos e ensinar) quanto as missotildees transculturais Ademais estaacute claro que o Ide tem forccedila imperativa Logo natildeo faz sentido criar uma tensatildeo entre discipulado e missotildees pois as duas coisas estatildeo incluiacutedas e interligadas na Grande Comissatildeo ambas estatildeo debaixo da autoridade de Cristo

A ordem para que o evangelho fosse proclamado entre todas as naccedilotildees foi dada por Cristo aos seus disciacutepulos logo apoacutes sua vitoacuteria na batalha juriacute-dica travada na cruz e consumada na ressurreiccedilatildeo O Pai concedeu-lhe toda a autoridade nos ceacuteus e na terra bem como o direito de exercer essa autoridade sobre principados e potestades e abriu as portas para que o evangelho fosse pregado a todas as naccedilotildees sem impedimento algum68 Eric Kayayan declara que ldquoa proclamaccedilatildeo do evangelho de Jesus Cristo eacute o cetro por meio do qual Deus deseja governar o mundo e sua autoridade divina eacute expressa para que todos se submetam a elardquo69 Jesus deteacutem o direito de controlar todas as coisas e de exigir obediecircncia70 Faz-se necessaacuterio destacar que todos os eventos associados agrave primeira vinda de Cristo desde sua encarnaccedilatildeo ateacute a coroaccedilatildeo satildeo decisi-vos para a expulsatildeo de Satanaacutes do ceacuteu e seu aprisionamento para cercear sua influecircncia enganadora entre as naccedilotildees (cf Ap 121-6) Agrave medida que a igreja cumpre a Grande Comissatildeo a verdade do evangelho vai tomando o lugar da mentira do diabo e Cristo atrai a si todos os eleitos dentre as naccedilotildees A igreja enquanto uma poderosa organizaccedilatildeo missionaacuteria que proclama o evangelho entre as naccedilotildees natildeo pode ser destruiacuteda pelo diabo71 Michael Horton eacute asser-tivo ao dizer que ldquoa Grande Comissatildeo comeccedila com um triunfante anuacutencio de que toda a autoridade nos ceacuteus e na terra pertence a Jesus Cristo O evangelho

68 De acordo com a interpretaccedilatildeo amilenista do texto de Apocalipse 121-6 por ocasiatildeo da primeira vinda de Cristo Satanaacutes foi aprisionado no sentido de natildeo poder enganar as naccedilotildees para impedi-las de aprender a verdade acerca de Deus Logo durante a era do evangelho ele natildeo pode congregar todos os inimigos de Cristo para atacarem conjuntamente a igreja E embora sua influecircncia natildeo seja eliminada ela eacute tatildeo restringida que ele eacute incapaz de impedir a disseminaccedilatildeo do evangelho entre as naccedilotildees do mundo Por causa do aprisionamento de Satanaacutes na atualidade as naccedilotildees natildeo podem conquistar a igreja mas a igreja estaacute conquistando as naccedilotildees HOEKEMA Anthony A A Biacuteblia e o futuro Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2012 p 243-245

69 KAYAYAN Eric ldquoChristrsquos Fourfold Declaration of Authorityrdquo Unio Cum Cristo Philadeplphia v 5 n 2 (out 2019) p 5-13

70 CARSON Donald A Os perigos da interpretaccedilatildeo da Biacuteblia Satildeo Paulo Vida Nova 2011 p 5271 HENDRIKSEN William Mais que vencedores os misteacuterios do Apocalipse desvendados com

profundidade e fidelidade Trad Wadislau Martins Gomes Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011 p 220-222

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

86

que traz salvaccedilatildeo tambeacutem orienta a igreja em sua missatildeordquo72 Dessa maneira a afirmaccedilatildeo de que toda a autoridade em todo o reino coacutesmico de Deus foi dada ao Cristo ressurreto eacute um preluacutedio apropriado para a ordem que se segue pois a posse de tal autoridade era um requisito para a emissatildeo efetiva de tal ordem73 ldquoPor causa de sua autoridade seus seguidores podem ir confiantes de que seu Senhor estaacute no controle soberano de tudo nos ceacuteus e na terrardquo74

Assim as duas declaraccedilotildees que estruturam as palavras de Jesus na Grande Comissatildeo podem ser consideradas como a ldquoGrande Garantiardquo A primeira eacute que Cristo tem toda a autoridade nos ceacuteus e na terra que eacute a capacitaccedilatildeo dada por Deus para um encargo A segunda declaraccedilatildeo eacute a garantia de sua presen-ccedila constante pois Cristo garante que seus disciacutepulos natildeo estaratildeo sozinhos ele estaraacute com eles enquanto cumprem sua missatildeo75 Na teologia biacuteblica do evangelho de Mateus Jesus eacute apresentado como o ldquoEmanuelrdquo que quer dizer ldquoDeus conoscordquo (cf Mt 123 e 2820) Eacute essa consciecircncia da presenccedila do Cristo ressurreto e glorificado entre os seus disciacutepulos que garante o cumprimento da missatildeo76 Logo podemos dizer que o evangelho antecede a missatildeo porque o sucesso na tarefa depende inteiramente daquilo que Cristo jaacute realizou em sua primeira vinda

Esta autoridade de Cristo natildeo eacute um poder (δύναμις) que um grande con-quistador pode reivindicar Mas refere-se agrave autoridade (ἐξουσία) que eacute sua por direito a qual lhe foi conferida por aquele que tem o direito de concedecirc-la77 Donald Carson ao comentar sobre a autoridade de Jesus neste texto diz que as esferas em que ele agora exerce autoridade absoluta foram ampliadas para incluir os ceacuteus e a terra ou seja o universo O pai estaacute desobrigado da autori-dade do Filho Jesus eacute aquele por meio de quem a autoridade do Pai eacute mediada Carson ainda comenta que esta eacute uma guinada na histoacuteria da redenccedilatildeo pois o reino do Messias manifesta-se com novo poder78 Ao ressuscitar Jesus vence a morte e conquista a salvaccedilatildeo de sua igreja Sua ressurreiccedilatildeo abastece o mandato missionaacuterio79 Por meio de sua ressurreiccedilatildeo Cristo estaacute introduzindo uma nova era e sua igreja tem a tarefa de testemunhar essa verdade por todo o mundo

72 HORTON A Grande Comissatildeo p 2373 MCGARVEY John William The New Testament Commentary Matthew and Mark Delight

AR Gospel Light Publishing Company 1875 p 25374 CARSON O comentaacuterio de Mateus p 68875 KLAIBER ldquoThe Great Commissionrdquo p 108-122 76 ZABATIERO Juacutelio Paulo Tavares LEONEL Joatildeo Biacuteblia literatura e linguagem Satildeo Paulo

Paulus 2011 p 9677 Dr Constablersquos Expository Bible Study Notes Disponiacutevel em httpsplanobiblechapelorg

tconnotespdfmatthewpdf Acesso em 12 fev 202178 CARSON Donald A O comentaacuterio de Mateus p 68779 STOTT John R W Ouccedila o Espiacuterito ouccedila o mundo Satildeo Paulo Editora ABU 1997 p 409

87

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

Apoacutes ressuscitar ele ordena que em seu nome seja pregado o arrependimento e a remissatildeo dos pecados em todas as naccedilotildees (Lc 2446-47) Ele conquistou o direito legal para que a missatildeo seja cumprida Todas as barreiras satacircnicas caiacuteram pois Cristo conquistou o direito sobre toda a criaccedilatildeo Portanto eacute com base nessa nova ordem das coisas que Jesus envia seus disciacutepulos para a mis-satildeo de evangelizar o mundo dando certeza de sua presenccedila vitoriosa como uma garantia de que o evangelho triunfaraacute80 Posto isto Deus eacute quem cria e sustenta a existecircncia e o crescimento de sua igreja por meio de sua Palavra Esta mesma Palavra deve ser proclamada ao mundo a fim de que o reino de Cristo se expanda ateacute aos confins da terra Como Horton diz ldquoA decisatildeo do Pai eacute irrevogaacutevel A missatildeo de Cristo jaacute foi realizada e o Espiacuterito teraacute igual ecircxito em seus labores Segue-se pois que a Grande Comissatildeo natildeo falharaacuterdquo81

Na anaacutelise de Walter Klaiber isso fica bastante claro

A Grande Comissatildeo nada mais eacute do que a consequecircncia da Grande Garantia Portanto vaacute porque eu Jesus tenho toda autoridade sobre as naccedilotildees em minhas matildeos A missatildeo da igreja natildeo eacute uma cruzada para subjugar as naccedilotildees para Cristo sua tarefa eacute introduzir as naccedilotildees na realidade do domiacutenio de Cristo82

Uma vez mais o professor Michael Horton traz sua contribuiccedilatildeo ao dizer que ldquoo mandato da Grande Comissatildeo eacute como a estrela-guia para reajustar o foco da nossa missatildeo como cristatildeos e como igrejas na vocaccedilatildeo central para este periacuteodo entre as duas vindas de Cristordquo83 Logo satildeo os indicativos do evan-gelho que impulsionam e direcionam a igreja em sua missatildeo de proclamaacute-lo

CONSIDERACcedilOtildeES FINAISA Grande Comissatildeo exigiu uma resposta por parte dos primeiros dis-

ciacutepulos Eles eram servos inadequados e hesitantes Natildeo obstante foram chamados para cumprir o propoacutesito divino ao continuarem a ensinar aquilo que Jesus iniciou84 Eles enfrentariam tempos difiacuteceis pois estavam sendo enviados a um mundo hostil a Deus e ao evangelho Jesus lhes disse que seriam perseguidos accediloitados presos e ateacute martirizados (cf Jo 1518ndash164) Mas o reino de Deus iria avanccedilar o evangelho triunfaria a despeito de todos os ataques do inimigo (cf At 1920) Por semelhante modo a Grande Co-missatildeo exige uma resposta de todos os verdadeiros disciacutepulos de todas as eacutepocas A resposta adequada que devemos dar a estas palavras de Cristo eacute

80 LIMA A grande batalha escatoloacutegica p 8281 HORTON A Grande Comissatildeo p 3682 KLAIBER ldquoThe Great Commissionrdquo83 HORTON A Grande Comissatildeo p 984 FRANCE R T The Gospel of Matthew Grand Rapids Eerdmans 2007 p 1109

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

88

a de unir-nos aos onze disciacutepulos em adoraccedilatildeo e obediecircncia ao Senhor dos ceacuteus e da terra a fim de cumprirmos nosso papel na proclamaccedilatildeo das boas novas de salvaccedilatildeo do reino de Deus a todas as naccedilotildees e deleitarmo-nos com a certeza de que mesmo diante de um mundo hostil a Deus e ao seu povo mesmo em face da perseguiccedilatildeo que este mundo possa nos oferecer natildeo temos de temer porque se a presenccedila fiacutesica de Jesus com seus disciacutepulos estava limitada a seu periacuteodo de vida terrena por sua vez a presenccedila espiritual do Senhor ressurreto natildeo tem semelhante limitaccedilatildeo pois Cristo garante que sempre estaraacute entre seu povo obediente Ele eacute o Deus conosco85

Ainda podemos dizer que a proacutepria analogia usada no Novo Testamento para descrever a tarefa a ser cumprida na Grande Comissatildeo eacute a de embaixado-res arautos oficiais que foram designados pelo chefe da naccedilatildeo para anunciar algo de grande importacircncia para o mundo em geral Por semelhante modo o termo ldquoevangelhordquo era usado para se referir agrave boa notiacutecia que um oficial era comissionado a anunciar na sede a saber que tinha havido vitoacuteria no campo de batalha86 ldquoO evangelho antecede a evangelizaccedilatildeordquo87 Eacute a boa nova daquilo que Deus fez em Cristo e por meio dele que libera e impulsiona a igreja a adentrar o mundo com o evangelho As boas novas do evangelho falam da vitoacuteria de Cristo mostram que as portas estatildeo abertas por todo o mundo pois as barreiras satacircnicas caiacuteram Agora o reino de Deus avanccedila pelo mundo in-teiro vai a todas as naccedilotildees ningueacutem pode deter o avanccedilo do evangelho ele vai por todo o mundo

Sem duacutevida a igreja eacute embaixadora de um reino indestrutiacutevel Cristo estaacute presente entre noacutes atraindo pecadores a si Ele estaacute edificando a sua igreja e as portas do inferno jamais prevaleceratildeo contra ela (Mt 1618) Eacute somente Jesus quem pode formar ou edificar a igreja porque a igreja eacute dele e natildeo nossa Somos conclamados a anunciar em todas as naccedilotildees o evangelho do reino o reino do Filho do Homem um reino inabalaacutevel o qual natildeo pode ser frustrado por nossa infidelidade justamente porque natildeo se trata de um reino que noacutes mesmos estamos edificando e sim um reino que estamos recebendo (Hb 1228) pois Jesus edifica sua igreja empregando meios estabelecidos por ele mesmo e garantindo sua presenccedila salviacutefica88

O evangelho natildeo pode ser contido A despeito de toda perseguiccedilatildeo nada o segura Ele eacute universal e alcanccedila todas as naccedilotildees Por isso antes de colocar o imperativo Jesus deu o maior dos estiacutemulos e o grande fundamento missio-naacuterio o seu triunfo A autoridade que Cristo conquistou por ocasiatildeo de sua ressurreiccedilatildeo eacute a uacutenica razatildeo pela qual os disciacutepulos satildeo convocados a irem pelo

85 Ibid86 HORTON A Grande Comissatildeo p 1587 Ibid p 2688 Ibid p 332

89

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

mundo e fazerem disciacutepulos dele89 O Mestre estava lhes mostrando que sua obra jaacute foi consumada e mesmo que eles ainda natildeo vissem os efeitos dela por completo ela foi realizada em sua primeira vinda de maneira que o reino de Deus agora cresce e nada pode contecirc-lo

A compreensatildeo dessa realidade cristoloacutegica exerce uma enorme diferenccedila em nossa motivaccedilatildeo confianccedila e esperanccedila para cumprimos nosso papel na Grande Comissatildeo A vitoacuteria foi conquistada por Cristo e noacutes como os seus arautos devemos apenas proclamaacute-la natildeo esquecendo obviamente de fazer disciacutepulos de todas as naccedilotildees batizaacute-los e ensinaacute-los em tudo aquilo que Cristo ordenou Quando a igreja cumpre a Grande Comissatildeo estaacute honrando e respei-tando o senhorio de Cristo pois ele tem o direito de exigir nossa obediecircncia

Portanto a missatildeo da igreja aponta para o escaton Quando o presente estado de coisas terminar e ceacuteus e terra forem renovados uma multidatildeo de redimidos estaraacute diante do trono adorando ao Cordeiro de Deus pois a Grande Comissatildeo foi cumprida ldquoE ouvi a toda a criatura que estaacute no ceacuteu e na terra e debaixo da terra e que estatildeo no mar e a todas as coisas que neles haacute dizer Ao que estaacute assentado sobre o trono e ao Cordeiro sejam dadas accedilotildees de graccedilas e honra e gloacuteria e poder para todo o sempre (Ap 513)90

ABSTRACTThe legal context in which the Great Commission was given involves the

four great themes of Scripture creation fall redemption and consummation When placed in Eden Adam was tasked with governing all that God had created When he sinned he gave this authority to Satan When Christ died and rose again he fulfilled his redemptive purpose and as the last Adam recovered and extended the authority lost by the first The Great Commission in Matthew 2818-20 begins not in verse 19 but already in verse 18 when the risen Lord based on this same authority commands his disciples to go out into the world and make disciples of all nations Therefore this article aims to analyze the word ldquoἐξουσίαrdquo (authority) especially in the context of the Gospel of Matthew in order to reflect on the authority lost by Adam and regained by Christ and to evaluate how the triumph and exaltation of Christ are the guarantee of the missionrsquos success how they give meaning to the ldquogordquo invest the church with authority and propel the disciples to the fulfillment of the Great Commission pointing to the eschaton

KEYWORDSBiblical theology New Testament Great Commission Kingdom Gospel

Authority Legal battle

89 KAYAYAN ldquoChristrsquos Fourfold Declaration of Authorityrdquo p 5-1390 PIPER Alegrem-se os povos p 13

91

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 91-101

IGREJAS E HISTOacuteRIA UM MODELO PARA INTERPRETAR A DIFERENCcedilA ENTRE O CATOLICISMO ROMANO

E O PROTESTANTISMOPaul Wells

RESUMOEste artigo1 aborda o conceito de tradiccedilatildeo a maneira pela qual um grupo

religioso apresenta no desenvolvimento da histoacuteria a relaccedilatildeo entre o mundo espiritual e o mundo histoacuterico material A tradiccedilatildeo situa o grupo em relaccedilatildeo agraves suas origens transmite crenccedilas e quando se trata de outro mundo evoca o ceacuteu e daacute esperanccedila No cristianismo existem duas maneiras de considerar e representar a relaccedilatildeo entre o mundo espiritual e o mundo material O catolicismo romano representa essa relaccedilatildeo como comparaacutevel agrave que existe entre um ato e a intenccedilatildeo por traacutes do ato O protestantismo considera tal relaccedilatildeo comparaacutevel agrave que existe entre uma palavra e seu sentido Para abordar o tema Igreja e histoacuteria o autor propotildee fazer uma comparaccedilatildeo entre essas duas posiccedilotildees em trecircs aacutereas a Igreja e os sacramentos a Escritura e a tradiccedilatildeo o Espiacuterito Santo e a vida cristatilde Ao concluir explica por que a posiccedilatildeo protestante expressa pela Reforma representa o cristianismo autecircntico e como essa posiccedilatildeo estaacute ameaccedilada no presente

PALAVRAS-CHAVECatolicismo Protestantismo Histoacuteria Igreja Tradiccedilatildeo Escritura

Professor de teologia sistemaacutetica na Faculdade Livre de Teologia Reformada de Aix-en-Provence no sul da Franccedila atual Faculdade de Teologia Joatildeo Calvino

1 O artigo foi publicado originalmente em La Revue Reformeacutee nordm 221 20031 Traduccedilatildeo Paulo Seacutergio Athayde Ribeiro

PAUL WELLS IGREJAS E HISTOacuteRIA

92

INTRODUCcedilAtildeOAs comunidades religiosas tecircm por funccedilatildeo apresentar uma mensagem

que ofereccedila a seus fieacuteis acesso ao mundo invisiacutevel Elas manifestam no mundo temporal o que eacute divino Elas existem para falar do mundo invisiacutevel e espiri-tual e tornaacute-lo presente na realidade material fiacutesica Igrejas de todos os tipos procuram ser a ponte entre o terreno e o que estaacute aleacutem

Se o mundo invisiacutevel eacute permanente o mundo terrestre evolui e se modi-fica progressivamente Tudo parece estar em constante movimento O mundo tem uma histoacuteria E nessa histoacuteria as igrejas que apresentam a mensagem do mundo invisiacutevel assumem feiccedilotildees distintas e encontram formas diferentes de apresentar essa mensagem A relaccedilatildeo entre os mundos espiritual e material eacute sempre o palco de desenvolvimentos destinados a exprimir como o homem pode alcanccedilar o outro mundo

Esses desenvolvimentos constituem o que podemos chamar de ldquotradi-ccedilatildeordquo o que foi recebido e transmitido agrave geraccedilatildeo seguinte e por ela de novo apropriado atraveacutes de novas formulaccedilotildees ou adaptaccedilotildees Uma tradiccedilatildeo viva cresce no curso da histoacuteria Suas justificaccedilotildees tornam-se mais completas as explicaccedilotildees da sua verdade e suas praacuteticas tornam-se mais profundas Cada agrupamento humano ndash famiacutelia igreja naccedilatildeo ou clube esportivo ndash tem suas tradiccedilotildees e ritos Eacute inevitaacutevel porque uma comunidade sem tradiccedilatildeo estaacute destinada a desaparecer

Agraves vezes alguns catoacutelicos romanos pensam que os protestantes natildeo tecircm tradiccedilotildees e que as recusam totalmente Eacute verdade que alguns protestantes deram essa impressatildeo quando disseram ldquoNoacutes natildeo temos tradiccedilotildees somos contra toda tradiccedilatildeo noacutes precisamos somente da Biacutebliardquo No entanto no Novo Testamento vemos que precisamos guardar a tradiccedilatildeo apostoacutelica como ldquoo bom depoacutesitordquo e pretender natildeo ter tradiccedilotildees torna-se uma atitude tradicional Tal ponto de vista resulta em sectarismos

A tradiccedilatildeo de um grupo religioso eacute entatildeo sua maneira de apresentar progressivamente no desenvolvimento da histoacuteria a relaccedilatildeo entre o mundo espiritual e o mundo histoacuterico material Assim a tradiccedilatildeo situa o grupo em relaccedilatildeo agraves suas origens transmite crenccedilas e quando se trata de outro mundo evoca o ceacuteu e daacute uma esperanccedila No cristianismo ndash se deixarmos de lado a Igreja Ortodoxa que quanto agrave tradiccedilatildeo tem uma visatildeo muito proacutexima do catolicismo romano ndash existem duas maneiras de considerar e de representar a relaccedilatildeo entre o mundo espiritual e o mundo material

O catolicismo romano representa a relaccedilatildeo entre o material e o espiri-tual como sendo comparaacutevel agrave relaccedilatildeo que existe entre um ato e a intenccedilatildeo por traacutes do ato Como um beijo ganha significado do amor que exprime o mundo material e tudo o que acontece ganham significado daquilo que representam e fazem conhecer ou seja de uma realidade espiritual que os

93

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 91-101

supera Assim para o catolicismo a histoacuteria e os desenvolvimentos histoacutericos das representaccedilotildees do espiritual satildeo muito importantes A religiatildeo catoacutelica acentuou como eacute o caso em Newman por exemplo a importacircncia dos de-senvolvimentos registrados a partir das origens A verdadeira realidade se encontra nos desenvolvimentos o original natildeo eacute a melhor representaccedilatildeo da coisa ela se torna mais expliacutecita nos desenvolvimentos Esta concepccedilatildeo acen-tua a importacircncia da continuidade da tradiccedilatildeo a marcha em direccedilatildeo a uma expressatildeo mais perfeita do espiritual e a importacircncia da Igreja em velar por esses desenvolvimentos histoacutericos

O protestantismo que representa uma ruptura no processo de desen-volvimento da Igreja no seacuteculo XVI considera a relaccedilatildeo entre o material e o espiritual comparaacutevel agrave relaccedilatildeo que haacute entre uma palavra e seu sentido A palavra eacute o meio pelo qual um sentido eacute apreendido o qual ultrapassa o seu caraacuteter simboacutelico A realidade do beijo eacute maior do que a palavra e a palavra remete ao que a transcende Assim para o protestantismo o importante estaacute nas origens A mensagem se reporta a qualquer coisa que eacute maior do que a palavra e que se exprime nessa palavra Eacute por essa razatildeo que o protestantismo eacute um retorno agraves fontes ao sentido original e acentua a centralidade da Palavra de Deus Jesus Cristo e as palavras apostoacutelicas inspiradas que fazem com que o conheccedilamos Eacute aqui que a relaccedilatildeo entre o mundo material e o mundo espiritual eacute estabelecida

Propomos fazer uma comparaccedilatildeo entre essas duas posiccedilotildees para apro-ximar a questatildeo ao nosso tema sobre Igreja e histoacuteria e isso em trecircs aacutereas

bull A Igreja e os sacramentosbull A Escritura e a tradiccedilatildeobull O Espiacuterito Santo e a vida cristatilde

Ao concluirmos diremos por que a posiccedilatildeo protestante expressa pela Reforma representa para noacutes o cristianismo autecircntico e como essa posiccedilatildeo atualmente estaacute ameaccedilada

1 A IGREJA E OS SACRAMENTOSNa Idade Meacutedia foi desenvolvida a ideia de que o papel da Igreja era

o de suplementar a ausecircncia de Cristo Por meio dela Cristo se comunica com o mundo Ela constitui uma extensatildeo histoacuterica sob forma diferente da encarnaccedilatildeo de Cristo A proacutepria Igreja torna-se um instrumento da revelaccedilatildeo e mesmo que natildeo tenha acesso ao texto sagrado o homem pode conhecer a Deus atraveacutes dela Essa opiniatildeo sobre o papel histoacuterico da Igreja Romana corrente na eacutepoca da Reforma e rejeitada pelos reformadores permaneceu intocada

PAUL WELLS IGREJAS E HISTOacuteRIA

94

11 A sacramentalidade da IgrejaAssim atualmente um teoacutelogo como Edward Schillebeeckx2 em seu

livro Cristo o Sacramento do Encontro com Deus pode chamar Cristo de ldquoo sacramento primordialrdquo e a Igreja de ldquoo sacramento do Cristo ressuscitadordquo Como tambeacutem nos textos do Vaticano II a Constituiccedilatildeo Lumen Gentium sobre a Igreja (sect7) mostra uma noccedilatildeo muito materialista do corpo de Cristo ldquoNesse Corpo a vida do Cristo eacute infundida nos crentes que satildeo unidos ao Cristo sofredor e glorificadordquo

O irmatildeo Daniel Bourgeois comenta ldquoNa perspectiva catoacutelica essa sacra-mentalidade natildeo se limita ao sistema de sinais que acompanham os atos funda-dores da alianccedila entre Deus e os homens o sistema de sinais que acompanha o povo de Deus natildeo eacute um sistema fechadordquo3 A Igreja e sua vida constituem ldquoum sistema de significaccedilatildeo vivo que se move rico de dinamismo e de uma capacidade inesgotaacutevel em perceber a verdade dos atos da alianccedilardquo Assim haacute uma reatualizaccedilatildeo constante na histoacuteria da Igreja e de seus membros e isso eacute fundamental O grande exemplo dessa operaccedilatildeo eacute a missa como representaccedilatildeo natildeo sangrenta do sacrifiacutecio da cruz No ex opere operato se efetua pelo proacuteprio ato o que nele eacute representado Assim por atos histoacutericos no mundo material o mundo espiritual se faz presente de maneira real e eficaz

A Igreja como sacramento da redenccedilatildeo eacute o meio pelo qual a uniatildeo entre Cristo e o homem se efetua Ela eacute tambeacutem o elo entre o eterno e o temporal em todos os atos que realiza ao longo da histoacuteria Neste sentido os integristas do Monsenhor Lefebvre4 natildeo estatildeo errados ao defender a missa em latim O rito age independentemente da compreensatildeo que dele se tenha conforme a intenccedilatildeo do ato

12 A histoacuteria da Igreja e o reino de DeusLumen Gentium afirma que a Igreja ldquoprovida de dons de seu fundador

recebe a missatildeo de anunciar o reino de Cristo e de Deus e de instauraacute-lo em todas as naccedilotildees formando o germe que daacute iniacutecio a esse reino sobre a terrardquo (sect5) Apesar do caraacuteter discreto dessa formulaccedilatildeo em relaccedilatildeo a outras afirma-ccedilotildees podemos notar sempre a ideia de que a Igreja que faz a ligaccedilatildeo entre este mundo e o mundo espiritual eacute o meio pelo qual o mundo futuro penetra no mundo material e estende progressivamente sua influecircncia Esta ideia que tem sua origem em Agostinho propotildee que o reino de Cristo sobre a terra jaacute

2 NR O teoacutelogo belga Edward Schillebeeckx nasceu em 1914 e faleceu em 20093 BOURGEOIS Daniel ldquoEnsaio de anaacutelise teoloacutegica do integrismo catoacutelicordquo La Revue Reformeacutee

n 174 (1992) p 414 NR Marcel Lefebvre (1905-1991) arcebispo francecircs e rigoroso defensor do movimento tradi-

cionalista catoacutelico destacou-se por sua resistecircncia a algumas decisotildees do Conciacutelio Vaticano II

95

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 91-101

estaacute presente e se manifesta na Igreja Antes da eacutepoca moderna a missatildeo do papa era organizar o reino de Deus sobre a terra e estender sua influecircncia so-bre toda a vida O agente dessa presenccedila era o clero Essa ideia secularizada resultou no marxismo no qual o partido reina sobre toda a vida atraveacutes de seus membros Essa atitude dominante explica em parte por que as naccedilotildees catoacutelicas ou ortodoxas foram os bastiotildees do marxismo-leninismo

A Igreja tem portanto a missatildeo histoacuterica de manifestar a obra redentora de Deus e de adaptar a realidade deste mundo ao outro mundo da mesma ma-neira como o materialismo dialeacutetico anunciou a futura nova humanidade Aqui encontramos a mesma estrutura responsaacutevel pela sacramentalidade da Igreja

13 A Igreja como testemunha da Palavra de DeusNo protestantismo temos uma configuraccedilatildeo totalmente diferente a qual

representa a relaccedilatildeo entre a palavra e seu sentido Haacute aqui uma concepccedilatildeo diferente da relaccedilatildeo entre o tempo e a eternidade Da mesma maneira que uma palavra eacute diferente da realidade que evoca e eacute autocircnoma em relaccedilatildeo a ela haacute para o protestantismo uma distinccedilatildeo radical entre o tempo e a eternidade Esta distinccedilatildeo natildeo eacute ultrapassada pela Igreja que continuaria a encarnaccedilatildeo mas unicamente por Cristo que desce do ceacuteu Cristo eacute a Palavra de Deus que traz a revelaccedilatildeo aos homens ldquoNestes uacuteltimos dias Deus nos falou pelo Filho pelo qual tambeacutem fez o universordquo (Hb 1) Essa revelaccedilatildeo que foi concluiacuteda nas palavras apostoacutelicas eacute a uacuteltima palavra de Deus aos homens

Natildeo mais estamos no periacuteodo da encarnaccedilatildeo e sofrimento de Cristo mas no da sua ressurreiccedilatildeo e reino celeste A Igreja natildeo daacute continuidade agrave encar-naccedilatildeo porque esta foi encerrada pela ressurreiccedilatildeo Considerar a Igreja como continuaccedilatildeo da encarnaccedilatildeo eacute natildeo respeitar o reloacutegio da histoacuteria da revelaccedilatildeo retardando-o a uma hora que jaacute passou Eacute por esta razatildeo tambeacutem que os pro-testantes com razatildeo rejeitaram a utilizaccedilatildeo do crucifixo

O protestantismo propotildee um retorno agraves origens pela fidelidade agrave Pala-vra de Deus A Igreja estaacute onde a Palavra de Deus eacute fielmente pregada Para Calvino a sucessatildeo apostoacutelica natildeo reside nas coisas e nos homens mas na doutrina Calvino recusou crer que a Igreja tenha poderes espirituais particu-lares transmitidos por seus ldquooficiaisrdquo A Igreja se submete agrave Escritura e recebe sua autoridade dela Ela eacute canonizada pela Escritura e natildeo o contraacuterio Assim a autoridade da Igreja tem sua origem na Palavra de Deus e por ela eacute limita-da Nenhuma nova doutrina eacute permitida e natildeo se admite nenhuma doutrina estranha agraves Escrituras A verdadeira Igreja eacute espiritual e celeste Ela inclui os eleitos os filhos de Deus por ele conhecidos e ela se manifesta e se congrega onde a Palavra eacute pregada Assim a Palavra que reuacutene os filhos de Deus daacute o verdadeiro sentido ao povo comprado pelo Cordeiro que foi imolado antes da fundaccedilatildeo do mundo

PAUL WELLS IGREJAS E HISTOacuteRIA

96

Eacute por isso que para o protestantismo os dois sacramentos satildeo ldquopalavras visiacuteveisrdquo que acompanham e explicam a palavra pregada A eficaacutecia do sacra-mento natildeo estaacute propriamente no ato mas na compreensatildeo que dele temos na uniatildeo com Cristo pela instrumentalidade do Espiacuterito Santo A palavra visiacutevel o siacutembolo remete a seu sentido fundamental a purificaccedilatildeo pela morte de Cris-to a comunhatildeo presente com o mesmo Cristo e a expectativa de seu retorno Portanto os sacramentos protestantes requerem inteligecircncia espiritual

Aleacutem disso para o protestantismo o reino de Deus se faz presente natildeo pela Igreja mas pela praacutetica da Palavra O reino tem um caraacuteter global mas que se distingue da influecircncia da Igreja sobre a sociedade e de seus ldquooficiaisrdquo sobre os leigos Cada cristatildeo eacute um sacerdote da nova alianccedila e sua missatildeo eacute servir a Deus em todos os aspectos da vida Ele obedece a Deus na famiacutelia e no mundo do comeacutercio tanto quanto na Igreja

A perspectiva tambeacutem eacute diferente Natildeo se trata do reino futuro que se manifestaraacute no mundo da eternidade no tempo O reino futuro eacute ldquoo novo ceacuteu e a nova terra onde habitaraacute a justiccedilardquo Esse reino eacute anunciado desde o momento em que a Palavra vivida pelo cristatildeo livra a antiga criaccedilatildeo da servidatildeo do pe-cado Este eacute o sentido da ceacutelebre palavra de Lutero ldquoSe eu soubesse que Cristo voltaria amanhatilde hoje eu plantaria uma aacutervorerdquo Plantar uma aacutervore natildeo tem nenhum reflexo sobre a vinda do reino futuro mas o anuncia na criaccedilatildeo atual

Para o protestante a vinda do reino natildeo tem nada a ver com o ldquosobrenatu-ralrdquo que invade e metamorfoseia a natureza mas com a justiccedila que suplanta o pecado Eacute a graccedila da justificaccedilatildeo anunciada na Palavra e para noacutes completada em Cristo que realiza essa libertaccedilatildeo

Nessa perspectiva o protestantismo tem interpretado a histoacuteria muito concretamente pelo esquema criaccedilatildeo queda e redenccedilatildeo Toda a vida religiosa social poliacutetica familiar e pessoal eacute criada por Deus submissa ao pecado mas resgatada pela Palavra de Deus A Igreja tem a funccedilatildeo de pocircr em evidecircncia esta situaccedilatildeo pela Palavra que anuncia

2 A ESCRITURA E A TRADICcedilAtildeOEacute bastante compreensiacutevel que o catolicismo romano com sua ecircnfase sobre

o papel central da Igreja como ponte na histoacuteria entre este mundo e o mundo futuro tenha concebido a ideia do desenvolvimento do dogma A continuida-de eacute assegurada pela autoridade da instituiccedilatildeo histoacuterica da Igreja A principal justificaccedilatildeo do desenvolvimento da tradiccedilatildeo ao lado da Escritura reside na convicccedilatildeo de que a Igreja eacute a continuaccedilatildeo da encarnaccedilatildeo sob a direccedilatildeo do Es-piacuterito Assim a Igreja regulamenta a feacute de seus membros pela Escritura mas tambeacutem pela tradiccedilatildeo que tambeacutem eacute a verdade A Igreja interpreta aumenta e completa a Biacuteblia por suas tradiccedilotildees

97

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 91-101

21 A autoridade da tradiccedilatildeoDessa maneira a Igreja desenvolveu ensinos que ultrapassam o que eacute

ensinado na Biacuteblia Antes de 1500 a tradiccedilatildeo que o padre Gabriel Moran chama ldquoconstitutivardquo em seu livro Escritura e Tradiccedilatildeo tornou-se autocircnoma por direito proacuteprio Essas tradiccedilotildees satildeo os ensinos recebidos pela Igreja e satildeo normativos para a feacute Entre eles podemos destacar o purgatoacuterio a transubs-tanciaccedilatildeo as doutrinas marianas o primado papal a oraccedilatildeo aos santos etc

Quanto agrave origem dessas tradiccedilotildees reconhecidas pela Igreja como pos-suindo autoridade diferentes proposiccedilotildees foram formuladas o papa porque ele representa Cristo para a Igreja os conciacutelios da Igreja ou a tradiccedilatildeo oral veiculada apoacutes a eacutepoca apostoacutelica Quanto agraves duas questotildees fundamentais ndash a da relaccedilatildeo entre a Biacuteblia e a tradiccedilatildeo e a de identificar qual das duas tem a primazia ndash a posiccedilatildeo de Roma natildeo variou muito atraveacutes dos seacuteculos O padre Yves Congar afirmou que a posiccedilatildeo romana reconhece a insuficiecircncia das Escrituras O padre Georges Tavard em seu livro Santa Escritura ou Santa Igreja diz o seguinte ldquoA Escritura e a Igreja se completam mutuamente A Escritura conserva o primado ontoloacutegico e a Igreja o primado histoacuterico porque eacute somente ao recebecirc-la que os homens tomam consciecircncia da Palavrardquo

Assim historicamente a Escritura e a tradiccedilatildeo vecircm da Igreja A Igreja transmite a Escritura de uma geraccedilatildeo a outra com um conhecimento mais profundo sobre o seu sentido A tradiccedilatildeo eacute essencialmente a interpretaccedilatildeo da Escritura agrave qual se acrescentam os ensinos que ultrapassam as afirmaccedilotildees claras do texto sagrado O Conciacutelio de Trento respondeu aos reformadores ao afirmar a autoridade da Escritura e da tradiccedilatildeo Congar comenta ldquoAo afirmar o valor normativo das tradiccedilotildees apostoacutelicas natildeo contidas nas Escrituras o Conciacutelio fez da tradiccedilatildeo um princiacutepio formal paralelo agraves Escrituras senatildeo autocircnomo em relaccedilatildeo a elasrdquo

Natildeo entraremos aqui na discussatildeo recente sobre a interpretaccedilatildeo dos textos de Trento Basta dizer que de fato muitos protestantes adotaram em princiacutepio a noccedilatildeo da insuficiecircncia da Escritura como mostram as discussotildees da Confe-recircncia de Feacute e Constituiccedilatildeo em Montreal sobre ldquoA tradiccedilatildeo e as tradiccedilotildeesrdquo Um consenso atual entre catoacutelicos modernistas e protestantes liberais afirmaria a seguinte posiccedilatildeo ldquoA Escritura eacute o primeiro elo da tradiccedilatildeo cristatilde Como toda tradiccedilatildeo humana ela eacute faliacutevel e insuficiente A Escritura e as tradiccedilotildees satildeo ambas suscetiacuteveis de errarrdquo Podemos chamar esta posiccedilatildeo de traditio sola

22 A posiccedilatildeo dos reformadoresOs reformadores natildeo comeccedilaram seu conflito com a Igreja Romana por

causa da tradiccedilatildeo Foi quando Eck disse a Lutero que sua doutrina da justi-ficaccedilatildeo estava de acordo com o Novo Testamento mas natildeo de acordo com a tradiccedilatildeo da Igreja que o problema da autoridade da tradiccedilatildeo surgiu Em 1518

PAUL WELLS IGREJAS E HISTOacuteRIA

98

em Leipzig Eck obrigou Lutero a admitir que nem os Pais nem o direito ca-nocircnico mas somente as Escrituras tecircm autoridade uacuteltima sobre a Igreja

Acusaram os reformadores de natildeo terem antecedentes histoacutericos de romper com tudo o que o Espiacuterito havia feito ao conduzir o povo de Deus Contra o argumento segundo o qual a Igreja Romana tinha o apoio dos Pais dos cinco primeiros seacuteculos Calvino respondeu que sua autoridade natildeo provinha de sua antiguidade nem de seu reconhecimento pela Igreja mas que derivava das Escrituras Calvino honrou Agostinho ao citaacute-lo perto de trecircs mil vezes na sua Instituiccedilatildeo Cristatilde mas igualmente o criticou por suas ideias quanto ao celibato ao purgatoacuterio agrave autoridade eclesiaacutestica e sua interpretaccedilatildeo alegoacuterica da Escritura Para Calvino os Pais da Igreja podem ser reconhecidos enquanto permanecerem fieacuteis agrave Escritura e sua autoridade estaacute sempre subordinada a esta Calvino se sentiu completamente agrave vontade ao recusar as tradiccedilotildees roma-nas natildeo biacuteblicas ndash suas cerimocircnias doutrinas sacramentos e ministeacuterios ndash por duas razotildees Primeiramente os Pais da Igreja constantemente afirmaram que a Igreja deve se submeter somente agrave Palavra escrita mas a Igreja romana foi sempre atraiacuteda para o lado contraacuterio Em segundo lugar os Pais cometeram erros e nessa aacuterea a Igreja os seguiu contra o ensinamento Biacuteblico Como Lutero Calvino tomou como princiacutepio de autoridade para a vida da Igreja tatildeo somente a Escritura

23 O princiacutepio de Sola Scriptura contra ldquoEscritura e tradiccedilatildeordquo A ruptura entre os protestantes e Roma diz respeito a esta questatildeo fun-

damental quem tem a autoridade final em mateacuteria de feacute e praacutetica A posiccedilatildeo de Calvino sobre isso se resume nos seguintes pontos

bull Quando lemos a Escritura ouvimos a proacutepria voz de Deus Nada de origem humana se mistura a isso Sem a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo Isaiacuteas ou Jeremias teriam dito palavras impuras e tolas Mas quando o Espiacuterito comeccedilou a usaacute-los como instrumentos seus laacutebios se tornaram puros e santos

bull Uma vez que Deus fala na Escritura e em nenhum outro lugar natildeo haacute outra fonte de onde possa vir sua Palavra

bull Em razatildeo de sua origem uacutenica as Escrituras tecircm a autoridade e a suficiecircncia da Palavra de Deus Elas contecircm tudo o que Deus quer falar aos homens

bull Elas tecircm a autoridade suprema sobre a vida do cristatildeobull Ao estudarmos a natureza ou a histoacuteria podemos aumentar nossos

conhecimentos sobre Deus unicamente porque primeiramente somos iluminados pela Palavra biacuteblica

99

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 91-101

Foi assim que a doutrina protestante claacutessica formulou a finalidade das Escrituras ldquoDepois de Deus mesmo ter falado diz Calvino ele natildeo deixou mais nada a ser dito por outrosrdquo A Palavra eacute o viacutenculo entre o tempo e a eternidade porque por ela noacutes ouvimos Deus falar em nossa linguagem humana Aqui vemos que a concepccedilatildeo protestante implica num viacutenculo atraveacutes da Palavra que veicula o sentido da realidade Essa perspectiva eacute criacutetica em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo segundo a qual os atos e as tradiccedilotildees da Igreja representam a intenccedilatildeo divina na salvaccedilatildeo

Por esta razatildeo tambeacutem Calvino rejeita o sistema catoacutelico no qual as aparecircncias exteriores satildeo uma usurpaccedilatildeo da autoridade de Cristo resultando numa Igreja falsa Consequentemente longe de ser um pecado separar-se de Roma eacute uma ocasiatildeo para reencontrar pela Palavra a verdadeira Igreja em suas origens

3 O ESPIacuteRITO SANTO E A VIDA CRISTAtildePara o catolicismo romano a histoacuteria representa uma sucessatildeo de atos que

realizam a intenccedilatildeo divina Este mundo estaacute em relaccedilatildeo orgacircnica com o mundo futuro Deus usa as realidades externas como instrumentos eficazes Eacute por essa razatildeo que o esquema natureza e graccedila eacute capital no pensamento catoacutelico em particular a partir da Idade Meacutedia A graccedila eacute o ato divino que vem completar a natureza e preparaacute-la para a sua transfiguraccedilatildeo final

31 Encarnaccedilatildeo e vida cristatilde no catolicismo romanoNesse sentido a encarnaccedilatildeo de Jesus Cristo apresenta uma forma nova

de humanidade que realiza a intenccedilatildeo da criaccedilatildeo A vinda de Jesus Cristo torna a humanidade completa A Igreja como continuaccedilatildeo da encarnaccedilatildeo eacute uma nova humanidade sob a direccedilatildeo especial do Espiacuterito Santo Isto cons-titui a principal justificaccedilatildeo para o desenvolvimento do dogma e da praacutetica da Igreja no decorrer da histoacuteria

As consequecircncias satildeo importantes para a vida cristatilde Na Igreja Romana a pessoa realiza progressivamente sua nova humanidade num processo em que o homem se prepara para o outro mundo ao receber a graccedila sobrenatural atraveacutes dos sacramentos Fora da Igreja natildeo haacute salvaccedilatildeo e a graccedila eacute recebida pela natildeo resistecircncia do indiviacuteduo Este processo de aperfeiccediloamento continua mesmo aleacutem-tuacutemulo no purgatoacuterio

32 O Espiacuterito Santo e a vida cristatilde no protestantismoNo protestantismo com seu modelo palavrasentido a encarnaccedilatildeo eacute a

revelaccedilatildeo da Palavra de Deus Longe de completar a humanidade esta reve-laccedilatildeo de Deus em carne eacute necessaacuteria porque a natureza estaacute caiacuteda e o homem eacute incapaz de agradar a Deus Deus se revela em Cristo que em particular se

PAUL WELLS IGREJAS E HISTOacuteRIA

100

revela na cruz como Salvador abolindo o pecado por seu sacrifiacutecio Por essa razatildeo o protestantismo destaca o ldquouma vez por todasrdquo da epiacutestola aos Hebreus

Ao rejeitar a hierarquia romana Lutero e Calvino demoliram a noccedilatildeo de uma Igreja sacramental Como a graccedila eacute recebida O Espiacuterito Santo fala ao crente de maneira direta pela Palavra de Deus O Evangelho diz que somos pecadores mas justificados pela justiccedila da cruz ndash ldquoCristo em nosso lugarrdquo ndash quando nele cremos Assim o Espiacuterito de Deus efetua o novo nascimento do indiviacuteduo que se torna unido a Cristo pela feacute e eacute feito nova criaccedilatildeo Eacute pela Palavra e pelo Espiacuterito que ele eacute convertido

O padre Tavard afirma que o calvinismo eacute uma pneumatologia Ele destacou um ponto importante Para Calvino a Igreja deve abandonar sua proacutepria sabedoria e se colocar sob a direccedilatildeo do Espiacuterito pelas Escrituras Os dois andam sempre juntos O Espiacuterito como Autor das Escrituras eacute seu uacutenico inteacuterprete e natildeo o magisteacuterio da Igreja Ele ilumina o entendimento do cristatildeo que recebe a oferta de salvaccedilatildeo e o faz reconhecer a verdade da Palavra de Deus O Espiacuterito natildeo se dissocia jamais da Palavra biacuteblica e natildeo a contradiz porque eacute a sua Palavra

O Espiacuterito age sobre a Igreja Pela Palavra ele vivifica os crentes e assim acrescenta ao corpo de Cristo aqueles que creem Eacute neste sentido afirma Cal-vino que devemos compreender a expressatildeo ldquofora da Igreja natildeo haacute salvaccedilatildeordquo Por sua Palavra o Espiacuterito reina tambeacutem sobre a Igreja e a conduz Para que uma Igreja seja autecircntica eacute preciso que ela viva da vida do Espiacuterito que vem somente pela Palavra Assim a Palavra e a Igreja satildeo unidas pelo poder do Espiacuterito A Igreja resulta entatildeo da obra da Palavra e do Espiacuterito Ela vem deles e eacute subalterna a eles A Palavra e o Espiacuterito satildeo divinos a Igreja visiacutevel eacute humana

CONCLUSAtildeOPor que sou protestante Porque creio que o pensamento protestante eacute

o que estaacute mais proacuteximo da revelaccedilatildeo biacuteblica em particular em seu ponto central Jesus Cristo eacute a Palavra-revelaccedilatildeo de Deus para a nossa salvaccedilatildeo sob uma forma limitada e rebaixada a carne humana A encarnaccedilatildeo representa o rebaixamento de Deus que se revela como servo ateacute agrave morte de cruz Deus o Filho sofreu a consequecircncia do nosso pecado Limitaccedilatildeo obediecircncia e serviccedilo satildeo as palavras de ordem na Igreja submissa agrave Palavra de Deus A Igreja eacute posta natildeo sob o signo da dominaccedilatildeo divina e da gloacuteria mas sob a cruz Para compreender a relaccedilatildeo do nosso mundo com o outro Deus nos chama a considerar o sacrifiacutecio o abandono mesmo de sua Palavra encarnada Este eacute o centro da histoacuteria e seu sentido Noacutes estamos nos extremos de uma sucessatildeo de atos divinos que realizam progressivamente o propoacutesito de Deus

Entretanto um perigo existe Hoje a crise provocada pela criacutetica racio-nalista agrave Escritura minou a feacute na Biacuteblia como Palavra de Deus A Escritura eacute

101

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 91-101

considerada como insuficiente porque eacute reconhecida apenas como um teste-munho humano sobre uma revelaccedilatildeo que a ultrapassa Quando isso acontece a Biacuteblia eacute submetida ao julgamento de uma autoridade superior a razatildeo os sentimentos as tradiccedilotildees histoacutericas ou o imediatismo de um encontro com Deus Entatildeo a Biacuteblia natildeo eacute mais a autoridade final para a Igreja ou para o cristatildeo ela eacute somente um dos fatos constitutivos da vida cristatilde

A questatildeo fundamental destacada pelos reformadores permanece sempre ldquoEacute biacuteblico Sim ou natildeordquo Tudo o que exigir uma resposta negativa deve ser descartado de nossa vida Dizer e repetir essa eacute a vocaccedilatildeo histoacuterica da Igreja5

ABSTRACTThis article deals with the concept of tradition the manner in which a

religious group presents in the course of history the relationship between the spiritual and the historical material world Tradition positions a group in regard to its origins transmits beliefs and as far as another world is concerned evokes heaven and brings hope In Christianity there are two ways of considering and representing the relationship between the spiritual and the material worlds Roman catholicism represents such relationship as comparable to one between an act and the intention behind it Protestantism considers this relationship as comparable to one between a word and its meaning In order to approach the theme Church and history the author proposes to make a comparison of these two positions in three areas Church and sacraments Scripture and tradition and the Holy Spirit and Christian life In conclusion he explains why the Protestant position expressed by the Reformation represents authentic Christianity and how such position is under threat in the present time

KEYWORDSCatholicism Protestantism History Church Tradition Scripture

5 Aleacutem dos autores catoacutelicos romanos a que fiz referecircncia aproveitei a anaacutelise de dois protestantes hoje esquecidos HEIM Karl Das Wesen des Evangelischen Christentums (1929) tiacutetulo em inglecircs Spirit and Truth (Lutterworth 1935) e QUICK Oliver C Catholic and Protestant Elements in Christianity (Longmans Green 1924)

103

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION THE PRIMACY OF BIBLICAL REVELATION

Isaias DrsquoOleo Ochoa

ABSTRACTIn his discussion of evolution Bavinck offers a modified theory of

development rooted not under a mechanistic and naturalistic worldview as Darwin does but under a ldquotheistic-friendlyrdquo framework This article argues that Bavinckrsquos discussion of evolution as a whole endorses a modified AristotelianThomistic framework in order to understand the theory of development and thus overcomes the challenges raised by Darwinrsquos naturalistic worldview to biblical revelation

KEYWORDSDarwinism Evolution Evolutionary worldview Theology-science dia-

logue Theory of development

INTRODUCTIONCurrent scholarship on Herman Bavinckrsquos view of the theory of evolution

has tended to be unified in affirming that despite his criticism of it Bavinck seems to provide some room for evolution On one hand from his discussion in Reformed Dogmatics (originally published in Dutch between 1895-1901) and other writings1 it may be concluded that Bavinck fights fiercely against

The author is a minister of Word and Sacrament in the Reformed Church of America He is currently pursuing a PhD degree at Calvin Theological Seminary with concentration in Philosophical Theology He received his Master of Theology degree at Calvin Seminary (2017) and his Master of Divinity at Western Theological Seminary (2015)

1 Cf Herman Bavinck Reformed Dogmatics II ed John Bolt trans John Vriend (Grand Rapids MI Baker Academic) 407-529 Bavinck ldquoCreation or Developmentrdquo trans Hendrik De Vries in The Methodist Review (1901) 849ndash74 Bavinck ldquoEvolutionrdquo in Essays on Religion Science and Society ed John Bolt (Grand Rapids MI Baker Academic 2008) 105-118

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

104

Darwinrsquos evolutionary project and seems to reject it completely One the other hand in those same discussions where he treats the topic one also observes that Bavinck seems to be willing to concede some kind of ldquoevolutionrdquo as well For those who believe that Bavinck retains the notion of biological develop-ment of natural creatures in the Darwinian sense in order to integrate it into his understanding of biblical revelation one issue emerges while Bavinck appropriates the concept of ldquodevelopmentrdquo from the theory of evolution he seems to use the term in an opposite sense from that of Darwinism Taking this into account it is the thesis of this paper that in his discussion of evolution Bavinck progressively endorses a modified AristotelianThomistic notion of development in order to overcome the challenges raised by Darwinrsquos method-ology and naturalistic worldview to biblical revelation

When Bavinck debated evolution he objected to a series of features of Darwinrsquos theory of development These objections include the theoryrsquos features of naturalism its mechanistic understanding of the world its atheistic world-view and its teleological characteristic of natural organisms Although there exists scholarship that discusses Bavinckrsquos approach to evolution however it largely overlooks how Bavinck understands the notion of development in his dialogue with the theory of evolution In this respect and in order to narrow this research I will focus exclusively on Rob P W Visser and Abraham C Flipsersquos works which develop the theme of evolution in greater detail2

Rob P W Visserrsquos study ldquoDutch Calvinists and Darwinism 1900-1960rdquo in Nature and Scripture in the Abrahamic Religions offers an historical analysis of the reception of Darwinrsquos theory of evolution among the Cal-vinists in the Netherlands Visserrsquos work emphasizes the role that Abraham Kuyper and Herman Bavinck played in the theological renewal at the be-ginning of the twentieth century in the Dutch community (VISSER 1998 p 312) Visser suggests that although Darwinrsquos theory of evolution was rapidly integrated into the Dutch university system by the last two decades of the nineteenth century the Dutch Calvinist response tended to be slow and negative (VISSER 1998 p 293) Both Kuyper and Bavinck emphasized the necessity of differentiating Darwinrsquos theory of evolution as a scientific theory from its metaphysics Visser claims (VISSER 1998 p 294) In his view unlike Kuyper Bavinck was more positive about the theory of evolution for two main reasons First he believed that evolution relays part of the truth

2 See Rob Visser ldquoDutch Calvinists and Darwinism 1900-1960rdquo Nature and Scripture in the Abrahamic Religions (Leiden Brill 2008) 293-316 Abraham C Flipse ldquoThe Origins of Creationism in the Netherlands The Evolution Debate among Twentieth-Century Dutch Neo Calvinistsrdquo Church History 81 n 1 (March 2012) 104ndash47 For background information read George Harinck ldquoTwin Sisters with a Changing Character How neo-Calvinists Dealt with the Modern Discrepancy between Bible and Natural Sciencesrdquo In Nature and Scripture in the Abrahamic Religions 1700-Present Leiden Brill 2008 317-370

105

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

about the natural world Second Bavinck believed that current species were not identical with those that God originally created In this respect Visser writes

Bavinck did not subscribe to Darwinrsquos explanation of evolutionary development Natural selection ruled out divine intervention and was for this reason unac-ceptable He defended the idea that evolution was a teleological and organic rather than a mechanical process which opened its existence to an intelligent cause lsquoDesign law goal and directionrsquo and not selection where the keywords to understand and explain organic evolution Bavinck like Kuyper regarded God as the ultimate cause of evolution Bavinck presented his combination of creation and evolution as a Christian alternative for Darwinrsquos theory (VISSER 1998 p 296)

Visser reads Bavinck as one who seems willing to accept the development of natural species but finds unacceptable Darwinrsquos proposal of natural selection because of its rejection of a teleological character3 It is such a reading that leads Visser to affirm that both Kuyper and Bavinck succeeded in integrating evolution and biblical revelation

Kuyper and Bavinck removed the controversial elements [of Darwinrsquos theory of evolution] notably natural selection and the descent of man Evolutionary change was the only aspect of the theory that they could acceptThey [introduced] organic mutability into divine providence which enabled them to incorporate their modified view of biological evolution in their theology (VISSER 1998 p 297)4

Furthermore it is noteworthy to mention the context in which such integration happens In this respect Visser writes

The response of Kuyper and Bavinck to Darwin occurred in the context of attempting to develop a new understanding of Scripture as revelation resulting from both divine and human action They referred to this new understanding as organic insertion It contrasted with the mechanical inspiration that became dominant in the seventeenth century In this Calvinist orthodoxy God was believed to have verbally dictated the text with no contribution by the human writer As a result God became the warrant for a text that was considered ob-jective and could be used in rational argument The Bible became a source of objective factual information about nature and history (VISSER 1998 p 298)5

3 Cf Harry R Boer ldquoEvolution and Herman Bavinckrdquo Reformed Journal 37 n 12 (December 1987) 3-4 p 3

4 See also Eduardo J Echeverria ldquoReview Essay The Philosophical Foundations of Bavinck and Dooyeweerdrdquo Journal of Markets amp Morality 14 n 2 (2011) 463-483 pp 465ndash67

5 For further discussion see also James Eglinton ldquoBavinckrsquos Organic Motif Questions Seeking Answersrdquo Calvin Theological Journal 45 (1) 20120 51-71

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

106

There are many layers to debate within Visserrsquos previous citation One issue is with the suggestion that Bavinckrsquos interest in exploring the theory of evolution is connected to his desire to redefine his understanding of Scripture as revelation But Visser joins together what Bavinck kept distinct In that regard Visser does not seem to describe Bavinck correctly

Despite his criticism of Darwinrsquos theory of evolution Bavinck seems to be attracted to this topic and engages seriously with it In 2011 Willem J de Wit published a collection of essays titled On the Way to the Living God A Cathartic Reading of Herman Bavinck and An Invitation to Overcome the Plausibility Crisis of Christianity6 When writing briefly about Bavinckrsquos worldview and evolution he asks ldquoWhy will [Bavinck] later feel so attracted by the theory of evolution that he does not reject it once and for all but comes back to it again and againrdquo (DE WIT 2011 p 15) De Witrsquos way of posing this question is itself debatable because it suggests a personal and subjective crisis within Bavinck However I think de Witrsquos question is important to approach

De Wit discusses the prominence of worldviews in Bavinckrsquos theological work He states

From Creation or Development (1901) to The Philosophy of Revelation (19081909) the antithesis between the two worldviews is not just a theme but probably the most important issue for Bavinck He identifies evolution as the key concept of the modern worldview and revelation as the key concept of the Christian worldview In his publications on morals science education family social relations etcetera he seeks to make clear how different views in these areas are related to a difference in worldview and reflects on these areas from the perspective of his Christian worldview (DE WIT 2011 pp 55-56)

The reason behind Bavinckrsquos interest in evolution has less to do with his obsession than with the reality of the modern spirit which trumpeted Darwinism In any case as de Wit suggests the topic of evolution is not of secondary value in Bavinckrsquos theological discussion Rather part of Bavinckrsquos interest is in studying carefully the Christian against the naturalistic worldview Without understanding properly such a significant aspect Bavinckrsquos writings can be easily misunderstood especially those containing dated information

Another historical study is Abraham Flipsersquos ldquoThe Origins of Creationism in the Netherlands The Evolution Debate among Twentieth-Century Dutch Neo-Calvinistsrdquo It was published in 2012 and complements Visserrsquos work Flipse explores the role of Calvinists and their interest ldquoto formulatehellip[a] coherent view of science society and culturerdquo (FLIPSE 2012 p 107) This

6 Willem J de Wit On the Way to the Living God A Cathartic Reading of Herman Bavinck and An Invitation to Overcome the Plausibility Crisis of Christianity (Amsterdam VU University Press 2011) 16-94

107

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

exploration sets up the framework for this paperrsquos discussion Flipse offers his readers another of the main reasons why Bavinck rejected the theory of evolution besides discussing Bavinckrsquos position on the possibility to rescue the theory itself of some crucial elements Flipse writes

The ldquomechanistic worldviewrdquo that according to Bavinck underlies the Dar-winistic view of evolution a priori excluded supernatural interventions and prescribed that everything lsquoshould be reduced to mechanical motionrsquo Therefore Darwinists claim that mankind has descended from animals and that life has emerged spontaneously from inorganic matter How could it have happened otherwise If the mechanistic or ldquomodernrdquo worldview were to be abandoned Bavinck believed a different worldview could produce a different theory This theory could contain elements of Darwinism and would still be in harmony with belief in creation (FLIPSE 2012 p 112)

Like Visser Flipse reads Bavinck as not totally opposed to the theory of evolu-tion This would allow in Flipsersquos understanding of Bavinck that some ele-ments of the theory of evolution could be reinterpreted into a new framework that may be consistent with biblical revelation This line of reasoning was based in part because of the emphasis of Bavinck and other Dutch neo-Calvinists on the infallible character of the Scriptures (FLIPSE 2012 p 113) That is human knowledge and Scripture ought to be unified Of interest to this paper is Flipsersquos accurate conclusion in his first section that one of the greatest contributions of Bavinck and Kuyper to the evolution debate was not merely a matter of responding to specific questions Rather one of the greatest con-tributions was their approach to science based on the analysis of worldviews and presuppositions (FLIPSE 2012 p 116)

To address this issue Part I of this paper recounts how Bavinck understood and criticized Darwinism in the second volume of Reformed Dogmatics focus-ing primarily on his discussion of human origins in sect279-83 Here Bavinck shows a sympathetic reading of Aristotle and his particular use of the term lsquoevolutionrsquo In this section it is demonstrated that a) Bavinckrsquos understand-ing of lsquoevolutionrsquo or lsquodevelopmentrsquo differs significantly from the interpretation of Darwin and modern evolutionary theory and b) Bavinck is open to the possibility of accepting some features of Darwinism to be compatible with Scripture but only in a very limited sense Part II draws upon Bavinckrsquos two essays ldquoCreation or Developmentrdquo and ldquoEvolutionrdquo This second part ana-lyzes how Bavinck responded to Darwinism while also holding a high view of biblical revelation By analyzing the first essay listed above I demonstrate that Bavinck reframes his discussion on evolution as a worldview issue By analyzing the second essay I demonstrate that Bavinck endorses a notion of evolution in a modified Aristotelian sense

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

108

1 DARWINISM IN BAVINCKrsquoS REFORMED DOGMATICSIn his Reformed Dogmatics Bavinck introduces the topic of creation

and lsquoevolutionrsquo in relation to Darwinism Although he seems to remain open to the possibility of any eventual appropriation of aspects that might not be in contradiction with biblical revelation such openness must be understood in a very limited sense In order to establish a distinction between the former theory of evolution which had a Christian-Aristotelian framework from the modern interpretation of evolution which clings to a materialistic and naturalistic frame-work Bavinck tries to detach the term lsquodevelopmentrsquo or lsquoevolutionrsquo from its association with Darwinism and the eighteen century non-teleological theories To achieve his purpose Bavinck proceeds to sympathetically read Aristotle and his understanding of lsquoevolutionrsquo and lsquodevelopmentrsquo and from such a position becomes critical of Darwinrsquos theory of evolution

11 Evolution is not a modern construct Bavinck argues that the notion of evolution was developed by the Greek

philosophers Among those he cites Aristotle is a significant reference7 For Bavinck Aristotle rightly ldquoattributed an organic and teleological characterrdquo to the notion of development the transition from potentiality into actuality (BAVINCK 2004 p 513)8 With such understanding Christianity and the notion of lsquoevolutionrsquo would not contradict each other In this respect Bavinck writes ldquoFrom the Christian position there is not the least objection to the notion of evolution or development as conceived by Aristotle on the contrary it is creation alone that makes such evolution possiblerdquo (BAVINCK 2004 p 513) One observes that Bavinck here offers a sympathetic reading of Aristotlersquos view on lsquoevolutionrsquo and seems to agree with him at least in general terms

More useful for this paperrsquos argument is Bavinckrsquos assertion that during the eighteenth century the notion of evolution departed from this Aristotelian notion of development into other philosophical positions ldquoBut in the eigh-teenth century evolution was torn from its basis in theism and creation and made serviceable to a pantheistic or materialistic systemrdquo (BAVINCK 2004 p 513) Bavinck correctly charges Rousseau Kant Goethe Hegel and others of promoting such departure However one difference Bavinck claims existed between the position of these philosophers listed earlier and the modern approach to evolution the notion of lsquoevolutionrsquo still held its organic and teleological

7 Among those Greek philosophers who discussed the topic of lsquodevelopment or evolutionrsquo Bavinck cites the natural philosophers (eg Anaximenes Heraclitus) and the Atomists Bavinck clari-fies that while Heraclitus presented his theory with a pantheistic view the Atomists used a materialistic framework instead

8 Herman Bavinck Reformed Dogmatics II ed John Bolt trans John Vriend Grand Rapids Mich Baker Academic 2004 407-529 p 513

109

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

character Bavinck argues that it was through French naturalists J B Pierre de Lamarck and E G Saint-Hilaire along with English biologist and philosopher Herbert Spencer among other scholars that this ldquo[Aristotelian] evolutionary theory was so refashioned that it led to the descent of humanity from animal ancestryrdquo (BAVINCK 2004 p 513)

Although in the previous sentence Bavinck does not explicitly include the term lsquoAristotelianrsquo he seems to refer to it Bavinck first rightly claims that the departure of the lsquotheistic-creationistrsquo evolutionary theory had started before Darwin and secondly that Darwinrsquos observations about humanity and animals were ldquoserviceable to a hypothesis that was already dominantrdquo (BAVINCK 2004 p 513) In sum the notion of lsquoevolutionrsquo for Bavinck must not be understood exclusively as a product of Darwinism or modern theories

Interlude how did Bavinck understand DarwinismWhen Bavinck discusses Darwinrsquos theory of evolution or Darwinism he

understands it as

the theory that the various species into which organic entities used to be divided possess no constant properties but are mutable that the higher organic beings have evolved from the lower and that man in particular has gradually evolved in the course of centuries from an extinct genus of ape that the organic in turn emerged from the inorganic and that evolution is therefore the way in which under the sway of purely mechanical and chemical laws the present world has come into being (BAVINCK 2004 p 514)

This concise definition allows us to better comprehend how Bavinck understood Darwinism Careful attention must be paid into the series of con-siderations Bavinck offers of Darwinrsquos theory of evolution naturersquos struggle for life natural and sexual selection certain properties passing to future gen-erations and perfection of the organism by and through mutations Bavinck argues that all these considerations constitute mere ldquoassumptions and interpreta-tionsrdquo (BAVINCK 2004 p 514) For him scholars particularly theologians philosophers and scientists rightly recognized Darwinrsquos theory as a flawed and even a contradictory system (BAVINCK 2004 p 514-15) Therersquos no doubt that Bavinck shares such assessments and agrees with them His posi-tion however is reflected more clearly when he offers his major criticism to the modern theory of evolution

One notable aspect that must be clarified is Bavinckrsquos distinction between Darwinism in the broader sense versus its restricted sense While the latter refers to the ldquoexplanation that Darwin with his theory of natural selection offered for the origin of speciesrdquo the former refers to ldquothe opinion that the higher or-ganism evolved from the lower organisms and that the human species therefore gradually evolved from animal ancestryrdquo (BAVINCK 2004 p 516) Bavinck

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

110

believes that the restricted sense of Darwinism was generally discarded and the broader sense still enjoyed a good reputation during his era as it had earlier (BAVINCK 2004 p 516) Even as Bavinck pays little attention to the restricted sense of Darwinrsquos theory in relation to the broader one it does not mean he accepts it or finds it compatible with biblical revelation On the contrary Bavinck seems to reject the theory of natural selection without further consideration

12 Darwinism is incompatible with science and revelationBavinck offers four major critiques to the modern theory of evolution The

first one is that the theory of descent has not clearly demonstrated the origin of life Bavinck argues that evolution makes matter movement and life eternal By doing so the modern evolutionary theory adds a metaphysical dimension to the notion of evolution (BAVINCK 2004 p 517)9 This situation may be problematic for an eventual integration with biblical revelation especially if the new added metaphysical dimension is in tension with what Scripture says regarding human protology

Second Bavinck argues that Darwinism has not successfully explained the development of organic life in contrast to the Genesis narrative which ndash by claiming that animals and plants have come forth from the earth by divine order since the beginning of creation ndash gives sense to evolution (BAVINCK 2004 p 517) By using the notion of diversity and dissimilarity Bavinck claims that Darwinism is unable to explain the development of organic life In Bavinckrsquos view this proves the failure of Darwinism Thus he writes ldquo[N]atural and sexual selection are insufficient to make possible such changes in the species and have accordingly already been significantly limited and modified by Dar-win himselfrdquo (BAVINCK 2004 p 518) In addition empirical observation or science Bavinck claims has not shown a gradual transition of species from one to another On the contrary they have demonstrated that ldquoall kinds of spe-cies existed side by side from the beginningrdquo (BAVINCK 2004 p 518)10 In a few words what Bavinck suggests here is that Darwinism if true science must necessarily bases its theories and conclusions only on demonstrable facts

In this respect Bavinck believes that ldquo[m]aterialism and Darwinism are both historically and logically the result of philosophy not of experimental science Darwin himself in any case states that many of the views he presented were highly speculativerdquo (BAVINCK 2004 p 518-19)11 With this assertion

9 See also footnote 19 on p 51710 Besides this Bavinck gives two other reasons in order to support his point the lack of abundant

transitional forms of species and the belief that acquired properties are not passed on through heredity Regarding the latter point nevertheless Bavinck acknowledges that scholarship is enormously divided

11 In this respect Bavinck adds ldquoAccording to Haeckel Darwin did not discover any new facts what he did was combine and utilize the facts in a unique way The profound kinship between humans and ani-

111

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

Bavinck claims that Darwin was basically offering a philosophical response to the problem of evolution By this he suggests that Darwinrsquos account of evolu-tion was not based on scientific facts but on mere philosophical speculation

The third aspect in which Bavinck criticizes Darwinism is regarding the serious issues this system encounters when it tries to explain human origin To support his criticism Bavinck argues that there does not truly exist any positive proof that demonstrates humans have indeed descended from animal ancestry Bavinck offers two arguments the actual difference between humans and animals has always existed as well as the assumption of some transitional species These arguments are closely related to Bavinckrsquos belief that Darwinism is highly speculative

The fourth criticism Bavinck makes is the failure of Darwinism to explain humanity from a mentalpsychic dimension One of the main problems Bavinck finds in that sense is that Darwin tries ldquoto derive all the mental phenomena [eg consciousness] to be found in humansrdquo from the analogy of animal phenomena (BAVINCK 2004 p 519) Unlike biblical revelation Bavinck believes natural science has limitations in addressing mental phenomena and answering ultimate questions

It becomes clear that with this general criticism of Darwinrsquos approach to science Bavinck proceeds to reject Darwinism The problem further com-plicates with the close connection of Darwinism and materialism Bavinck argues that Darwinism significantly relies on a materialistic framework Even worse it ldquopaves the way for the subversion of religion and morality and the destruction of our humannessrdquo (BAVINCK 2004 p 520) Besides its tension with empirical science Bavinck argues that the theory of descent is also in tension with biblical revelation by ldquoviolat[ing] the image of Godrdquo in humanity and ldquodegrad[ing] the human into an image of the orangutan and chimpanzeerdquo (BAVINCK 2004 p 520) From this one concludes that in Bavinckrsquos view the doctrine of the image of God and evolutionary thinking are simply incompatible

13 Biblical revelation has priority over scienceBavinck defends one single kind of science where biblical revelation has

priority over worldviews and natural science However one must be cautious in that regard Bavinckrsquos theology is anti-dualistic and strongly dichotomizing revelation against science would be an error What Bavinck seems to defend is that scientific data must be interpreted in light of biblical revelation and not vice versa In this respect Bavinck defends the position that Scripture is

mals comes through in the concept of lsquorational animalrsquo But in earlier times this fact was not yet combined with the monistic philosophy which says that from a pure potency which is nothing ndash like such things as atoms chaos or cells ndash everything can nevertheless evolverdquo BAVINCK 2004 pp 518-19 Noteworthy to observe is Bavinckrsquos reference to Aristotlersquos concept of potency and his monistic philosophy

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

112

the one that offers a real account of humanityrsquos origins and of the different languages cultures races and alike For him all these human dimensions point ldquoto a single act of God by which he intervened in the development of humanityrdquo (BAVINCK 2004 p 525) Bavinckrsquos commitment to finding in Scripture ultimate questions is prominent Despite the diversity of languages and human ideas he claims there is still unity and that against such unity Darwinism is unable to provide an objection (BAVINCK 2004 pp 525-26)

One can observe that Bavinck seems to be open to the possibility of ap-propriation of some evolutionary ideas In that regard current scholarship on Bavinck is correct Nonetheless one must also consider that Bavinck allows such an appropriation only if it does not enter conflict with biblical revelation For instance discussing the diversity of current organisms Bavinck concedes that perhaps Darwinism might be useful to clarify the truth He writes ldquoDar-winism indeed furnishes the conceptual means of explaining the possibility of a wide assortment of changes within a given species as a result of various climatic and lifestyle influences To that extent it renders excellent service to the defense of truthrdquo (BAVINCK 2004 p 526) As seen Bavinck considers that the notion of lsquobiological changersquo can be a tool for biblical revelation One must not assume nonetheless that such lsquochangersquo must be understood in the Darwinian sense as Visser and Flipse seem to have concluded The fact that Darwinism might have some elements of truth does not mean the entire system does

Furthermore in discussing the different views on the interpretation of paradise and the Garden of Eden in Genesis 2 Bavinck again gives priority to biblical revelation over any other system of interpretation and in this case science Bavinck for example boldly claims that there is nothing in science that ldquocompels us to abandon the stipulation of Holy Scripturerdquo in regard to the earthly paradise and the first human beings despite the fact that we do not know the original place where the first humans resided (BAVINCK 2004 p 528-29) For Bavinck biblical revelation must be trusted and we should believe that despite being unknown the first humans beings lived in a defined and particular place at the beginning of the creation of humanity This demon-strates that Bavinck is committed to understand the insight offered by science under the biblical framework and not vice versa It is important to mention that one should not confuse what biblical revelation establishes in Scripture with our particular reading or interpretation of such revelation

As appreciated in Part I with such critical assessment Bavinck seems not to provide a lot of room for the theory of evolution to be understood as compatible with Scripture Besides the areas where Darwinrsquos theory is openly incompatible with biblical revelation there are other incompatibility issues that

113

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

arise12 In light of Bavinckrsquos preliminary view Darwinism has transgressed its limits as a plausible theory to reinterpret lsquoevolutionrsquo Darwinism moved from interpreting scientific data objectively to the field of explaining ultimate questions If there is something to be appropriated from Darwinism such ele-ments must not contradict biblical revelation which has priority Therefore Bavinckrsquos openness regarding an eventual appropriation from the theory of evolution must be understood in a very limited sense

2 HOW DOES BAVINCK TRY TO INTEGRATE EVOLUTION AND BIBLICAL REVELATION

In his essays ldquoCreation or Developmentrdquo (1901) and ldquoEvolutionrdquo (1908) Bavinck examines in-depth Darwinism and evolutionary theory In both essays readers will be able to appreciate Bavinckrsquos argumentative progression and deeper engagement with evolution along with a thought-provoking response on what aspects Bavinck believes evolution might be or not be compatible with biblical revelation

21 In the essay ldquoCreation or DevelopmentrdquoIn his essay ldquoCreation or Developmentrdquo Bavinck presents to his readers

the issue of evolution as he previously did in his Reformed Dogmatics This time nonetheless Bavinck reframes his discussion on evolution as a world-view issue Bavinck discusses how the human being has tried to explain the world in terms that leave out God and spirituality and instead has focused on ldquodata of matter and forcerdquo13 For him eighteenth century philosophers such as Spinoza later Hegel and Feuerbach have all failed in the task of success-fully explaining the origin of the world It is within this challenging context Bavinck claims that Darwinrsquos theory of development appears and embraces a ldquonew worldview which undertakes to interpret [all things] without exception independent of Godrdquo (BAVINCK 1901 Intro Par1) Bavinck in this essay introduces Darwinism as a lsquotheory of developmentrsquo In doing so Bavinck acknowledges that Darwinism constitutes a theory that has tried to explain

12 The previous four critiques discussed in this section are not the only ones Bavinck made against Darwinism Bavinck also argues other aspects such as a) that evolution also contradicts the Scriptures in other aspects than humanity origin ldquo[T]he age the unity and the original abode of the human racerdquo are areas where evolution and biblical revelation also differs Par sect281 ldquoThe Age of Humanity in Bavinckrdquo BAVINCK 2004 p 520-22 b) that Darwinism is unable to successfully respond to questions about the origin of humanity and its age because in the large period of time that it assumes is difficult to point out a first human being Par sect282 ldquoThe Unity of the Human Racerdquo in BAVINCK 2004 p 525 c) that science including Darwinism has not said anything certain about the home of humanity except ldquoconjuncturesrdquo since it ldquoknows nothing about the origin and abode of the first humansrdquo Par sect283 ldquoThe Original Abode of Humanityrdquo in BAVINCK 2004 p 528

13 Herman Bavinck ldquoCreation or Developmentrdquo The Methodist Review (1901) transl Hendrik De Vries 849ndash74 Introduction Par 1

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

114

the issue of evolution although such attempt has failed This is an important fact for this paper in light of Bavinckrsquos assumed interest in appropriating and reframing key aspects of Darwinism and evolution which might not conflict with biblical revelation

211 Darwinism is not science but a worldviewOne observes that Bavinck is not interested in responding a list of ques-

tions regarding evolution and how it challenges Christianity Rather Bavinck departs from another point where he rejects the idea that Darwinism is a solid scientific theory In this respect Bavinck in his Reformed Dogmatics claims that Darwinism is mere speculation and a philosophical system He reinforces this position and argues Darwinism is also a worldview in the first section of ldquoCreation or Developmentrdquo

Bavinck clarifies his understanding of natural science as ldquoan insight into the essence of things and an understanding of the idea the logic and the uni-versal which is to be observed in thingsrdquo (BAVINCK 1901 Section I Par1) Such a notion sets the framework from which Bavinck evaluates lsquoevolutionrsquo and its relation to biblical revelation He proceeds to discuss some ultimate questions such as the origin of life and all things He asserts that Darwinismrsquos theory of evolution (the development theory) addresses the ultimate question about the source of things In this respect Bavinck states ldquo[Its answer is that] there is no origin and no beginning of things All what is always was though it be in other forms and always shall berdquo (BAVINCK 1901 Section I Par4)

The issue Bavinck finds here is the philosophical suggestion on the eter-nity of matter and substance Substance has become according to Bavinck the ldquoDeity of the newer worldviewrdquo (BAVINCK 1901 Section I Par6) Therefore development or evolution has ldquodisplace[d] Divine Providencerdquo by becoming an ldquoeternal lawrdquo (BAVINCK 1901 Section I Par7) Despite Bavinckrsquos as-sertion that this law has tried to explain the origin of the universe and how the earth has become a habitable place for organisms through a process of development Bavinckrsquos tone is one of irony in order to make his point that current development theory has indeed displaced providence This seems to be confirmed with the following paragraph where Bavinck describes the new state of affairs under the newer theory of development

This is the new and newest interpretation of the origin of things There is some-thing imposing something which takes hold of one mightily in this view There is contained in its unity of thought boldness of conception and sequence of principle It is readily understood that it charms many Yes when one does not believe in revelation which furnishes another interpretation of all creatures one is bound in a similar way to render the origin of things in some measure intel-ligible to himself They must have come from somewhere and have originated in some way The theory may still be incomplete and leave many phenomena in

115

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

the physical and psychical world unexplained nevertheless according to Straus Darwin is hailed as the greatest benefactor of the human race because he has opened the door through which a more fortunate posterity will be able to cast out the miracle for good An age which denies the supernatural and even shakes off all religion cannot do other all opposition notwithstanding than expect all salvation from the reason its own thinking and to see the solution of all the riddles of the world in development (BAVINCK 1901 Section I Par8)

After this criticism Bavinck continues further and states that the theory of development ldquois not a product of science but of imagination It is no science in any serious sense no science exact as it is claimed to be but a worldviewa philosophy as uncertain as any system of the philosophersrdquo (BAVINCK 1901 Section I Par9) Because idealism is entirely based on imagination such a worldview becomes contradictory when it addresses human origin Idealism has failed to provide convincing evidence in favor of humanity having an animal ancestry (BAVINCK 1901 Section I Par14) In sum one notes that for Bavinck Darwinismrsquos claims are based on philosophical assumptions and imagination rather than on actual facts

212 Darwinism misappropriates the notion of developmentIn the second section of his essay Bavinck focuses on the essence of things

For Bavinck in this new worldview all creatures are just one constituted by a single substance that changes indefinitely an idea that suggests there is no God and spiritual world (BAVINCK 1901 Section II Par2) This would make the creation a big ldquomachine which has construed itself which continuously holds itself in motion and which completely blind without reason and pur-pose eternally runs on and never downrdquo With such properties creation is no longer a ldquoliving animated organic unityrdquo but an ldquoeternal existence of one and the same sortrdquo (BAVINCK 1901 Section II Par2)

Bavinck goes on with his critical assessment and offers a series of philo-sophical characteristics of the modern theory of development the lack of an ontological difference between humanity and animals the negation of the human soul and other human dimensions the reductionist view of humanityrsquos spiritual dimension and the promotion of anthropocentrism

The implications of a system with such features are important In this new worldview and in contrast to biblical revelation ldquothere is no difference of good and evil of right and wrong of truth and falsehood Everything is good and beautiful and true in its time and place according to the individual faith and choicerdquo (BAVINCK 1901 Section II Par6) This leads Bavinck among other factors to argue that this development theory is a failure in being unable to ldquointerpret the richness and variety of creationrdquo Therefore evolutionists for Bavinck have misappropriated the concept of development by understanding

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

116

it under a mechanical framework and thus concealing the drawbacks of their system of thought (BAVINCK 1901 Section II Par10)

Due to this fact Bavinck argues that lsquodevelopmentrsquo itself is not against the notion of creation ldquobut is only possible upon its foundation and belong to its confessionrdquo (BAVINCK 1901 Section II Par10) To that end Bavinck clarifies what he means and writes

Development produces nothing of itself it is not the mother of being or of life it is only a form of motion which can only reveal what lies hidden inwardly in the germ But the so-called development theory has no knowledge of germs it knows nothing of disposition or capacity of fitness and susceptibility In its sys-tem there is no room for anything save atoms and complexes of atoms which are altogether passive in themselves and are collocated only and alone in a mechanical or chemical manner by circumstances from without This makes no mention of development in its real sense (BAVINCK 1901 Section II Par10)

Bavinck here seems to defend a concept of development In doing so he sug-gests that development understood from a creationist perspective could be retrieved This retrieval would be possible if it is conceded that ldquobeings by way of [a process of] organic growthrdquo can become ldquowhat in germ and principle they already arerdquo This can be so because development itself ldquorefers to thought plan law endrdquo and ldquohe who names development names Godrdquo (BAVINCK 1901 Section II Par10)

One may observe Bavinckrsquos reference to Aristotlersquos notion of potentiality and actuality In effect he indeed seems to adopt an AristotelianThomistic framework to understand development the transition between potentiality (what a being is in germ and principle) and actuality (what the being has become in accordance to what they already are) Understanding development in this way is what I think allows Bavinck to incorporate the notion of lsquodevelopmentrsquo in his theological thought while having a high view of biblical revelation This is demonstrated by Bavinckrsquos words when he states

So little does development stand over against creation that there is scarcely any choice left between creation with the richest development on one side and mechanical combination by the accident of a host of similar atoms on the other Development stands between origin and end under Godrsquos providence it leads from the first to the last and unfolds all the riches of being and of life to which God gave existence (BAVINCK 1901 Section II Par10)

Bavinckrsquos redefinition of lsquodevelopmentrsquo allows him to ldquoembrace not merely a few but all phenomenardquo of the Christian worldview This is because in the Christian worldview the world is ldquoan organic living whole [containing] not only matter and force but also spirit and consciousness reason and willrdquo For Bavinck Godrsquos creation (eg the world) is a unity which ldquoreveals itself in the

117

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

richness and most beautiful varietyrdquo (BAVINCK 1901 Section II Par11) Unlike Darwinism all organic life follows its own law and nature In this respect Bavinck claims

And although the creatures are thus distinguished they are not separated from each other Together they form one whole one organism one art product of which God himself is the artist and the master builder In him in his counsel in his will all created things find their origin and maintain their existence (BAVINCK 1901 Section II Par11)

Bavinck concludes his second section of his essay emphasizing that the newer worldview has no knowledge of biblical revelation Thus the difference be-tween evolution in Darwinist terms and evolution in AristotelianThomistic sense becomes clearer

213 Darwinism lacks an adequate teleologyIn the third section of his essay Bavinck addresses the teleological aspect

of the things He commences his essay claiming that by this third section he has shown the theory of development (Darwinism) fails again because of its ldquoinsufficiency and unsatisfactory characterrdquo (BAVINCK 1901 Section III Par2) Such lacking is teleological the theory does not provide space for universal history For Bavinck although evolutionists speak sometimes of purpose in their theory such purpose is futile and without warrant He writes

The system of the development theory offers no room for a plan or a purpose Nothing is dominant then save the compulsion of fate or the capriciousness of accident Everything is as it is without reason and without purpose The theory of evolution furnishes no answer whatever to the inquiry to what purpose everything serves On this question it remains silent (BAVINCK 1901 Section III Par2)

Bavinckrsquos critique here is about the lack of an adequate teleology that can explain the purpose of humanity yet not limited to it In a non-teleological system in which the spiritual dimension is lacking Bavinck suggests there is no purpose at all If the created order does not have purpose the importance of history is undermined In other words ldquo[H]istoryhellipis dominated just like the physical world and with equal necessity by mechanical forces and lawsrdquo (BAVINCK 1901 Section III Par3-4) Having this line of reasoning in mind Bavinck asserts that ldquothe development of humanity cannot be taken as end-lessly progressingrdquo The end would be chaos and destruction which ultimately would lead to the extinction of the created order where ldquodeath [will be] the end of the world as well as of the individual man and of the entire human racerdquo (BAVINCK 1901 Section III Par5) Therefore this theory of development lacks an adequate eschatological aspect in its worldview

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

118

As appreciated in this part unlike biblical revelation the evolutionary worldview denies the teleological aspect of humanity and the created order For this reason Bavinck writes the following critical assessment ldquo[C]om-plete bankruptcy moral and spiritual is the end of the modern worldviewrdquo (BAVINCK 1901 Section III Par12) Bavinck entirely discards Darwinrsquos interpretation of the theory of development By reframing it as worldview Bavinck demonstrates that Darwinism is not true science but an interpreta-tive system imposed on scientific data And as such Bavinck claims that this interpretative system is flawed This becomes clearer when Bavinck claims that the lsquotruersquo development theory is to be found only in biblical revelation where history has a teleological course shaped by Scripture and there is an ldquoexpectation of the futurerdquo (BAVINCK 1901 Section III Par13)

22 In the essay ldquoEvolutionrdquoIn his ldquoEvolutionrdquo essay Bavinck begins by warning his readers about

the unstable character of the term lsquoevolutionrsquo throughout history and thus the diversity of the termrsquos meanings Bavinck clarifies the term making a refer-ence to Leibniz who was the first one to use the Latin term ldquoevolutiordquo with the connotation of ldquobecoming of things in naturerdquo14 Such an aspect is of high weight for this paper because of the different ways Bavinck has used the term Alongside previous criticism the fact that Bavinck redefines evolution as lsquodevelopmentrsquo in an Aristotelian sense shows that he has indeed endorsed an AristotelianThomistic framework to understand evolution Bavinck has already justified the reasons of such redefinition and now he has taken a further step in the progression of his ideas at the intersection of evolution and biblical revelation

221 The Christian idea of development is based on Aristotlersquos notion of evolution

Bavinck had previously discussed that although the term lsquoevolutionrsquo was not used by Greek philosophers they did discuss the idea behind it The idea of being Bavinck tells us was known to the Greeks especially Heraclitus who rejected the notion of being in favor of only becoming (BAVINCK 2008 p 106) The balance between being and becoming was then a topic later phi-losophers discussed such as Empedocles Anaxagoras the Atomists Plato and Aristotle among others For Bavinck however it is Aristotle the first Greek philosopher to present a development theory Bavinck writes

14 Herman Bavinck ldquoEvolutionrdquo in Essays on Religion Science and Society ed John Bolt Grand Rapids Mich Baker Academic 2008 105-118 p 105

119

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

And one can rightly say that the last-named philosopher [Aristotle] was the first to devise a lsquosystem of developmentrsquo Aristotle conceived of that which is as the being that is developing in the phenomena True being does not consist in isolation above and beyond but it is within things However it does not im-mediately and initially fully exist there but it gradually comes into being by way of a process All becoming (happening moving) consists in the transition from potential to actualityhellip

Aristotle therefore does not explain what came to pass ndash as the Atomists do ndash from mechanical pleasure to impact but he borrows his idea of development from organic life For him becoming is an actualizing a realization of what is potentially and germinally present in the phenomena he explains the becoming from the being for him the genesis exists for the sake of the ousia With this thinking Aristotle is far ahead of the Atomists because he considers becoming not as determined entirely from the outside through accidental circumstances but as guided from the beginning in a certain direction The nature the char-acter the being the idea of something indicates the direction in which the development will take place Since evolution is thought to be organic it is also thoroughly teleological And since Aristotle applies this idea of development not only to particular things but also to the world in its entirely he discovers order and planning movement and upward mobility in the world of creatures (BAVINCK 2008 p 106)

Bavinck argues that Christianity developed Aristotlersquos notion of de-velopment although he does not mention any name The important aspect to highlight in this respect is Bavinckrsquos assertion that ldquoChristianity did not replace or dispute [the Aristotelian] idea of development but took it over and enriched itrdquo (BAVINCK 2008 p 106) The claim that ldquomatter also originated from and through the word and therefore was a part of divine thoughtrdquo was the first great contribution of Christianity to Aristotlersquos development project a project that in its original form Bavinck finds very dualistic In this respect Bavinck believes ldquonature is not a dark demonic mass but incarnate wordrdquo With this anti-dualistic line of reasoning Bavinck rightly concludes that the theory of development presented by Aristotle was ldquoimmeasurably enrichedrdquo (BAVINCK 2008 p 107)

The second way Christianity benefited Aristotlersquos system of develop-ment was that it provided a coherent history of humanity which starts from a particular point toward eternal life In that regard Bavinck writes ldquoChristianity presents a history of humanity a development that proceeds from a certain point and moves toward a specific goal progressing toward the absolute ideal toward true being toward eternal liferdquo (BAVINCK 2008 p 107) So far Bavinck has held that Christianity appropriated Aristotlersquos development system and has enriched it He calls this the ldquoChristian idea of developmentrdquo an idea which ldquomade its way into the newer philosophy [of the seventeenth

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

120

century]rdquo (BAVINCK 2008 p 107) Bavinckrsquos sympathetic reading and af-finity to Aristotelesrsquos notion of development seems to be something that cur-rent scholarship has slightly ignored There is no doubt that Bavinck clings to Aristotle Such fact has implications on what Bavinck may accept or reject from Darwinrsquos theory of evolution

222 Darwinism has departed from AristotleChristianityPreviously in his Reformed Dogmatics Bavinck affirmed that the eigh-

teenth-century philosophers left the theistic development system Here Bavinck writes ldquowith many the idea of development is detached from the theistic founda-tion of which it rests in Christianityrdquo (BAVINCK 2008 p 107) Earlier in this essay we learned that the system was Aristotlersquos development theory enriched by Christianity therefore it can be concluded that Bavinck seems to endorse a modified Aristotelian framework to understand the theory of evolution If this claim is true as has been argued throughout this paper it will not only help readers better understand Bavinckrsquos position but also clarify to what extend he provides room for evolution (in the modern use of the term) with his high view of biblical revelation

ldquoEvolution is organic and teleological and for that reason it has a pro-gressive characterrdquo Bavinck has argued (BAVINCK 2008 p 106) Now he reaffirms such a vision claiming the different changes that people observe in the created order constitute a ldquodevelopment from withinrdquo This means that such development has been conceived ldquoorganically and for that reason retains its teleological characterrdquo (BAVINCK 2008 p 107) This development is not merely accidental according to Bavinck When poets and philosophers speak of ldquounity in the developmentrdquo in their ldquosearchinghellip for gradual transitionsrdquo they refer to a ldquological ideal order in the progression [development] of crea-turesrdquo and not ldquoa physical descent [of humanity]rdquo (BAVINCK 2008 p 108) Bavinck clings to this among other aspects to claim that philosophers of the nineteenth century departed from such a notion of development and replaced it with ldquoa totally different ideahellip[yet] was not completely new for it had been proposed already in antiquity by Leucippus Democritus and Epicurus [reemerging] with Descartesrdquo (BAVINCK 2008 pp 108-9) Supported by French naturalists and appropriated by some philosophers ldquothe [new] idea of development displayed a character that was too philosophicrdquo (BAVINCK 2008 p 108) Once again Bavinck highlights the difference between the two kinds of theories of development ndash the Aristotelian theory of development and Darwinism

Important to notice here is Bavinckrsquos assertion that Darwin provided the scientific character that the new understanding of development needed in order to become a theory of evolution In this respect Bavinck writes

121

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

The modern idea of evolution existed already before Darwin just as socialist expectations had prophets already before Marx But Darwin endeavored to give this idea of evolution a solid foundation in the facts in the same way in which Marx according to the opinion of his followers changed utopian socialism into a scientific socialism And Darwin did not leave it at that Not only did he show us in an amazing mass of facts striking analogies that exist between organic creatures which had been categorized in species by [Carolus] Linnaeus and on which he constructed his theory of descent he also tried to explain this descent by this hypothesis of lsquonatural selectionrsquo which in the lsquostruggle for lifersquo assures the lsquosurvival of the fittestrsquo and thus assures the development also as progressAs a result evolution received a completely different meaning in the newer science than it had before (BAVINCK 2008 p 108-9)

Bavinck here is bold about his rejection of Darwinism and Darwinrsquos appropria-tion of the notion of development which was previously understood as ldquoan organic progressive teleological processrdquo that has the purpose of ldquoposit[ing] a logical idealistic order between creaturesrdquo (BAVINCK 2008 p 109) Although Bavinck does not indicate it he seems to make a reference to Aristotlersquos Great Chain of Being especially with his explanation of the purpose of the former theory of development

Rightly after his clarification about Darwinrsquos misappropriation Bavinck proceeds to offer a brief explanation of the claims made by the new theory of development (Cf BAVINCK 2008 p 109) Modern readers must not assume that the previous list is exhaustive in the aspects Bavinck rejects from Darwinism Such an integral perspective is only reached when taking into account at least his exposition in Reformed Dogmatics and his ldquoCreation or Developmentrdquo essay among other brief references Bavinck makes to evolution in other parts of his theological thought15

223 Failure of the Darwinist methodology Once Bavinck offers his brief list of the characteristics of the new theory

of development he moves on to discuss some methodological aspects of Dar-winrsquos theory of evolution Bavinck criticizes the lack of purpose or guidance in the new theory of development as well as its inability to ldquoprovide norms by which to measure progress or declinerdquo While evolutionists speak of ldquoa con-tinuing improvement of the human racerdquo such a naiumlve notion of improvement is used by some to manipulate people and their ldquoexpectations to the other side

15 In this respect Bavinck writes ldquoSo many and such weighty objections exist against this theory that it is impossible to consider it seriously as a solution to the problems of this world The short space available for this controversy permits only a few comments but these may already be sufficient to justify any counterargument that mechanical monism experiences in many circles both within and outside the realm of scholarshiprdquo (ldquoChristianity and Natural Sciencerdquo in Essays on Religion Science and Society ed John Bolt Grand Rapids Mich Baker Academic 2008 81-104 p 100)

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

122

of the graverdquo (BAVINCK 2008 p 109) Bavinck ironically writes ldquohellip[I]f a monkey can evolve gradually into a human being there is a good possibility than in the next life humans will gradually change into angels (BAVINCK 2008 p 110) He offers this example as a way of noticing the absurd ldquomechanical non-teleologicalrdquo characteristic of the new theories of development and descent

As Flipse notices Bavinck argues that the mechanical worldview is deficient It is not enough to claim that ldquothe world is a machinerdquo because believing such an idea requires a lot of faith from us ldquo[W]hen natural science limits itself to its own realm it does not have to concernrdquo about the ldquoorigin of thingsrdquo Bavinck asserts (BAVINCK 2008 p 110) The issue arises when the limits of science are transgressed into the metaphysical or philosophical realm ldquoThe mechanical idea which is fully justified in some areas of nature is then expanded into a mechanical worldview and proclaims the dogma of the eternity of the matterrdquo For Bavinck in the moment such a situation happens the scientist becomes a philosopher (BAVINCK 2008 p 110)

Bavinckrsquos point opens the door to evaluating Darwinism in light of its metaphysical claims It is not a surprise that Bavinck claims a ldquoperpetual motion machine is self-contradictionrdquo as a critique to Darwinismrsquos mechani-cal worldview a view that lacks mystery This goes in contradiction to ldquothe mystery of beingrdquo (BAVINCK 2008 p 110) Bavinck concedes however that the only mystery that this newer theory of development and its mechani-cal worldview has is about ldquothe origin of thingsrdquo (BAVINCK 2008 p 111) One should note that this concession does not necessarily mean that Bavinck would include such elements in an eventual Christian account of lsquoevolutionrsquo as Flipse seems to understand

Bavinck also argues that believing in the concept of a rational human being assumes that there is a difference between human beings and animals Such a difference is made evident not only in body structure but also in body organs and embryonic development (BAVINCK 2008 p 113) This claim is significant especially if one tries to contend that Bavinck seems to be open with some elements of the evolutionary theory Bavinckrsquos critique is clear the embrace of the theory of descent is a product of leaving the faith and ne-glecting scientific data (BAVINCK 2008 p 113) Therefore arguments from the theory of descent are not based on pure facts but on hypotheses As seen Bavinck does not criticize Darwinism only from the claims it makes but also for the methods it uses

For instance Bavinck becomes critical of the comparison method that Darwin uses for the theory of descent He argues that the theory of descent relies too much on comparison (eg comparative anatomy physiology and psychology) Darwinismrsquos method fails because despite all similarities be-tween man and animal humankind is separate from all creatures (BAVINCK 2008 p 114) Such differentiation is not merely physiologically but also of

123

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

the metaphysical dimension of man In this respect Bavinck relies on this fact to assert that other areas of study such as religion philosophy and psychology have important insights to provide when the theory of descent is assessed (BAVINCK 2008 p 115) As he has done in other parts Bavinck rejects the notion that there is a gradual transition which supports the theory of descent

In sum Bavinck rejects not only the content of Darwinism and how it has interpreted the theory of evolution but its own flawed methodology

224 Development can be accepted but only in the Aristotelian sense

After offering arguments to what extent evolution and biblical revelation may not contradict each other Bavinck argues that there is room for develop-ment in the ldquotrue sense of the wordrdquo but such development assumes ldquoplan and law direction and goalhellipbeginning and endrdquo (BAVINCK 2008 p 118) It is not a coincidence that Bavinckrsquos last sentences refer to Aristotle ldquo[He] already understood that becoming exists for the sake of being not the reverse There is becoming only if and because there is beingrdquo (BAVINCK 2008 p 118) Here Bavinck claims there is space for lsquodevelopmentrsquo in biblical revelation However he restricts such possibility significantly one should understand lsquodevelopmentrsquo in the real meaning or true sense of the term As it was shown previously in this paper Darwinist or non-teleological theories of evolution do not give such real meaning to the term but the lsquoChristian-Aristotelianrsquo framework does

CONCLUDING REMARKSBavinckrsquos engagement with the theory of evolution is noteworthy Unlike

his general criticism to Darwinism in his discussion of human origins in RD sect279-83 the essays studied here analyze the theory of evolution in a further in-depth fashion While in ldquoCreation or Developmentrdquo Bavinck approaches Darwinism as an interpretative system of scientific data in his essay ldquoEvolu-tionrdquo Bavinck reclaims the notion of lsquodevelopmentrsquo and lsquoevolutionrsquo under a modified Aristotelian-Christian account of lsquoevolutionrsquo It is a framework that seems to be compatible with Scripture but rejects Darwinism as a whole and not only a particular feature of it Current scholarship is partially right

What this paper departs from modern scholarship is that Bavinckrsquos notion of lsquodevelopmentrsquo is not merely a kind of Christianized Darwinism or theistic evolution It is true that Bavinck might allow certain changes in organisms but only within their kinds without any notion of metaphysical change improve-ment or retrogression such as the change of an organism of a kind evolving into another kind When Bavinck speaks of lsquodevelopmentrsquo his use of the term is strictly in accordance to the Aristotelian metaphysics being as becoming

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

124

Modern readers must take into consideration that this Aristotelian posi-tion has traditionally been understood as opposed to evolution in the modern sense Bavinck has modified the Aristotelian notion of development to allow certain changes in the material constitution of organisms but not in their es-sence With this understanding of lsquodevelopmentrsquo Bavinck indeed overcomes the challenges on the intersection of evolution and biblical revelation but does not leave much room to appropriate evolutionary thinking

RESUMOEm sua anaacutelise da evoluccedilatildeo Bavinck oferece uma teoria modificada de

desenvolvimento radicada natildeo em uma cosmovisatildeo mecanicista e naturalista como Darwin faz mas em uma estrutura ldquoamistosa ao teiacutesmordquo Este artigo sugere que a discussatildeo de Bavinck acerca da evoluccedilatildeo como um todo endossa uma estrutura modificada aristoteacutelica-tomista a fim de compreender a teoria do desenvolvimento e assim supera os desafios levantados pela cosmovisatildeo naturalista de Darwin para a revelaccedilatildeo biacuteblica

PALAVRAS-CHAVEDarwinismo Evoluccedilatildeo Cosmologia evolutiva Diaacutelogo teologia-ciecircncia

Teoria do desenvolvimento

125

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 125-129

RESENHA

Heber Carlos de Campos Juacutenior

ALLEN Michael SWAIN Scott R Catolicidade reformada a pro-messa da recuperaccedilatildeo para a teologia e a interpretaccedilatildeo biacuteblica Brasiacutelia DF Monergismo 2021 223 p

A Editora Monergismo nos presenteou com um livro que enriquece mui-tiacutessimo o cenaacuterio teoloacutegico brasileiro quanto agrave autoria e quanto ao tema Mi-chael Allen e Scott Swain satildeo pouco conhecidos do puacuteblico brasileiro embora capiacutetulos de sua autoria jaacute tenham sido publicados em nosso idioma (Teologia da Reforma org Matthew Barrett Thomas Nelson Brasil 2017) Ambos satildeo professores de teologia sistemaacutetica do Reformed Theological Seminary no campus da cidade de Orlando nos Estados Unidos Satildeo autores jovens mui proliacuteficos e extremamente haacutebeis no lidar com teologia contemporacircnea Neste uacuteltimo quesito quero dizer que eles satildeo teoacutelogos que interagem frequente e perspicazmente com autores recentes inclusive de outras tradiccedilotildees cristatildes Portanto ambos fazem teologia sistemaacutetica natildeo somente reproduzindo as vozes de autores do passado mas mediante um rico diaacutelogo criacutetico com dife-rentes linhas doutrinaacuterias modernas Uma variedade de fontes pode ser vista no livro que estamos resenhando prova de que os autores estatildeo encarnando um espiacuterito ldquocatoacutelicordquo

Isso me leva ao segundo aspecto no qual este livro enriquece o cenaacuterio protestante brasileiro o tema A catolicidade agrave qual o livro se refere natildeo eacute uma referecircncia agrave Igreja de Roma nem um aspecto meramente eclesioloacutegico (universalidade geograacutefica e antropoloacutegica da igreja) mas um resgate e incor-poraccedilatildeo da tradiccedilatildeo teoloacutegica cristatilde Cientes de que existem vaacuterios movimentos

Doutor em Teologia Histoacuterica (PhD Calvin Theological Seminary) Mestre em Teologia His-toacuterica (ThM Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper) professor de Teologia Histoacuterica no CPAJ e de Teologia Sistemaacutetica no Seminaacuterio Presbiteriano Rev Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo

CATOLICIDADE REFORMADA A PROMESSA DA RECUPERACcedilAtildeO PARA A TEOLOGIA

126

recentes que tecircm retornado agraves fontes antigas ndash desde catoacutelicos (Yves Congar e Henri de Lubac) passando por anglicanos (John Milbank e Graham Ward) protestantes de denominaccedilotildees liberais (Donald Bloesch e Thomas Oden) e ateacute evangeacutelicos (Robert Webber e D H Williams) ndash Allen e Swain se unem a essas tendecircncias recentes de renovaccedilatildeo teoloacutegica mediante a recuperaccedilatildeo de recursos da tradiccedilatildeo cristatilde (p 19-30) No entanto os autores natildeo estatildeo apenas seguindo a tendecircncia de nosso tempo mas estatildeo seguindo o modelo de refor-mados do passado como William Perkins em seu livro Reformed Catholicke (1597) a Ortodoxia Reformada do seacuteculo 17 e ateacute Philip Schaff no seacuteculo 19 (p 31 213) para os quais ldquoser reformado significa ir mais fundo na verdadeira catolicidaderdquo (p 18) Em outras palavras as diversas teologias de recuperaccedilatildeo da tradiccedilatildeo catoacutelica natildeo devem ser assimiladas num espiacuterito de colagem aceacute-fala de autores antigos mas devem alertar-nos para pensar numa apropriaccedilatildeo consistentemente protestante da tradiccedilatildeo (p 29-30) Os autores natildeo prometem uma metodologia completa para tal apropriaccedilatildeo mas lanccedilam um manifesto que precisa ser ouvido por protestantes que natildeo satildeo suficientemente catoacutelicos e por ecumecircnicos que natildeo satildeo suficientemente protestantes

Apoacutes a introduccedilatildeo o livro possui cinco capiacutetulos da pena dos autores e um posfaacutecio escrito por J Todd Billings o qual apresenta uma proposta de re-descoberta da tradiccedilatildeo para a renovaccedilatildeo da igreja (p 199-223) Este eacute professor no Western Theological Seminary de linha teologicamente mais aberta que o Reformed Todavia Billings faz coro com os autores do livro ao afirmar que a tradiccedilatildeo catoacutelico-reformada oferece uma alternativa agrave leitura individualista das Escrituras que muitos evangeacutelicos fazem buscando respostas no texto para confirmar a ldquorelevacircnciardquo de Jesus Em contraposiccedilatildeo a tal tendecircncia o propoacutesito de recuperar vozes do passado eacute para que elas revelem os pontos cegos de nossa eacutepoca e superemos as idolatrias ocultas do presente (p 211-213)

No primeiro capiacutetulo Allen e Swain afirmam que o ressourcement (lit ldquoretorno agraves fontesrdquo alusatildeo ao movimento catoacutelico romano do seacuteculo 20 deno-minado Nouvelle Theacuteologie) reformado natildeo eacute uma proposta tradicionalista mas um programa de natureza trinitaacuteria e cristoloacutegica que relaciona o Espiacuterito de Cristo e a mente renovada da igreja De acordo com 1Joatildeo 227 o ldquoEspiacuterito de Cristo ensina a igreja em veracidade tatildeo suficiente e pura que a igreja natildeo precisa buscar entendimento teoloacutegico em qualquer outra fonte ou princiacutepiordquo de tal forma que a igreja eacute o canteiro da teologia o uacutenico terreno criacional feacutertil no qual a instruccedilatildeo de Cristo promete ldquoflorescer em entendimento humano renovadordquo (p 37) Os autores acreditam que a tradiccedilatildeo eacute instituiccedilatildeo divina na qual buscamos progresso na busca por entendimento O fato de a tradiccedilatildeo poder errar natildeo desqualifica o seu status de instituiccedilatildeo divina Diferentemente do que George Lindbeck propocircs em seu livro The Nature of Doctrine a teologia natildeo eacute meramente um fenocircmeno lsquolinguiacutestico-culturalrsquo de construccedilatildeo credal a

127

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 125-129

teologia reformada de recuperaccedilatildeo acredita que ldquoa igreja recebe e transmite o ensino apostoacutelico como frutos do Espiacuteritordquo (p 46)

O restante do primeiro capiacutetulo eacute uma articulaccedilatildeo pneumatoloacutegica de como chegamos ao conhecimento da verdade O Espiacuterito estaacute por traacutes do ato da igreja de criar tradiccedilatildeo (p 53) O Espiacuterito natildeo a igreja eacute a fonte da verdade teoloacutegica e a tradiccedilatildeo eacute a postura da igreja de permanecer no ensino apostoacutelico ao longo do tempo (p 57) Enquanto a Escritura ldquoeacute a fonte divina-mente autoritativa e suficiente da teologiardquo ndash contra a teoria das duas fontes propagada pelo Vaticano II ndash a tradiccedilatildeo eacute ldquoa recepccedilatildeo da Escritura capacitada pelo Espiacuterito eacute o alvo divinamente designado da teologiardquo (p 60) A Escritura eacute o fundamento e a obra iluminadora do Espiacuterito renovando nossas mentes permite agrave igreja construir tradiccedilatildeo em cima da Escritura ldquoEmbora o depoacutesito apostoacutelico natildeo possa crescer o entendimento da igreja desse depoacutesito pode e de fato deve crescerrdquo (p 70)

Nos capiacutetulos 2 e 3 os autores articulam uma defesa do Sola Scriptura e sua relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo Sola Scriptura na Reforma nunca intentou ser ldquouma censura absoluta agrave tradiccedilatildeo ou uma negaccedilatildeo da autoridade eclesiaacutestica genuiacutenardquo (p 75) Pelo contraacuterio os autores acreditam que o compromisso com o Sola Scriptura na verdade aumenta nossa recepccedilatildeo da rica tradiccedilatildeo catoacutelica (p 77) Contrapondo-se a criacuteticos do princiacutepio de ldquoSomente a Escriturardquo tan-to do passado (Alexis de Tocqueville) como do presente (Brad Gregory e A N Williams) que alegam que tal princiacutepio significa ausecircncia da autoridade interpretativa da tradiccedilatildeo e abre a porta para todo tipo de pluralismo herme-necircutico nossos autores revelam que a leitura dos criacuteticos eacute equivocadamente ldquodonatistardquo (como se o princiacutepio fosse um purismo biacuteblico que fecha os olhos para a conduccedilatildeo providencial de uma igreja imperfeita) e ldquodeiacutestardquo (como se o processo de reflexatildeo teoloacutegica fosse uma atividade exclusivamente humana ou natural) Ateacute quando os reformados defenderam o ldquoprinciacutepio regulador de cultordquo ndash pelo qual se entende que todo elemento do culto deve ser autorizado pela Escritura ndash eles removeram certas praacuteticas romanas e introduziram novos padrotildees lituacutergicos que deveriam ser seguidos por geraccedilotildees vindouras (p 102) Isto eacute os reformados nunca deixaram de produzir tradiccedilatildeo mas sempre dirigida pela Escritura

Em seguida calcados em passagens como o Salmo 145 Atos 15 e as Epiacutestolas Pastorais aleacutem do escrito de Lutero sobre conciacutelios eclesiaacutesticos Allen e Swain concluem que somos mais biacuteblicos natildeo quando somos ldquobibli-cistasrdquo mas quando estamos envolvidos no processo de ldquoformar tradiccedilatildeordquo Somente a Escritura (Sola Scriptura) natildeo eacute sinocircnimo de a Escritura Sozinha (Solo Scriptura) ldquoum filho bastardo amamentado no seio do racionalismo e individualismo modernosrdquo assim como a perspicuidade da Escritura natildeo sig-nifica que qualquer investigador do texto sagrado provido dos devidos meios sempre o interpreta adequadamente como se o sacerdoacutecio universal signifi-

CATOLICIDADE REFORMADA A PROMESSA DA RECUPERACcedilAtildeO PARA A TEOLOGIA

128

casse que natildeo precisamos de mestres (p 123-124) De modo bem protestante eles encerram o capiacutetulo 3 dizendo que a igreja eacute criatura da Palavra que ela eacute nutrida ao ouvir a Palavra e que sua autoridade ministerial eacute delegada pela Palavra (p 125-134)

O quarto capiacutetulo trata do papel dos escritos confessionais na interpre-taccedilatildeo biacuteblica Allen e Swain satildeo organizadores de uma seacuterie de comentaacuterios de interpretaccedilatildeo teoloacutegica da Escritura (TampT Clark International Theological Commentary) e seguindo essa tendecircncia de interpretaccedilatildeo credalconfessional eles propotildeem uma ldquoleitura reguladardquo da Escritura com base em princiacutepios te-oloacutegicos e eclesioloacutegicos reformados (p 136-137) A leitura da Biacuteblia eacute uma empreitada comunitaacuteria e por isso o indiviacuteduo que faz dogmaacutetica o faz como ldquouma persona autoconscientemente eclesiaacutesticardquo (p 139) Inspirados pelo fa-moso escrito sobre a Escritura de William Whitaker os autores afirmam que a igreja ldquoguarda discerne proclama e interpretardquo a Palavra de Deus (p 142-144) O direito privado de investigaccedilatildeo eacute um privileacutegio de todos os fieacuteis mas natildeo deve ser confundido com o poder de interpretaccedilatildeo puacuteblica concedido a homens chamados e dotados para o ministeacuterio do ensino A devida distinccedilatildeo leva os autores a concluir ldquoA autoridade de ensino da igreja natildeo existe para excluir outros da interpretaccedilatildeo e compreensatildeo da Palavra de Deus Pelo contraacuterio a autoridade de ensino da igreja existe para comunicar (ie ldquotornar comunsrdquo) os tesouros da Palavra de Deus para todos do povo de Deus de forma que eles tambeacutem possam ter completa comunhatildeo (ie ldquodividir igualmenterdquo) nesses tesourosrdquo (p 151) A ldquoregra de feacuterdquo ou escritos confessionais nos habilitam a ler as vaacuterias partes da Escritura agrave luz do todo fazendo com que Sola Scriptura funcione conjuntamente com Tota Scriptura (p 156 162)

O quinto e uacuteltimo capiacutetulo se propotildee a fazer uma defesa da utilizaccedilatildeo da Escritura na forma de citaccedilatildeo de ldquotextos-provardquo (dicta probanda) uma praacutetica tatildeo maculada por criacuteticos modernos A acusaccedilatildeo contra essa praacutetica se baseia em trecircs erros ela desconsidera os contextos de textos especiacuteficos (por ex cita partes do texto sem atentar para o gecircnero literaacuterio) natildeo demonstra sensibilidade para com o horizonte hermenecircutico do inteacuterprete (por ex pretende resolver o debate sobre desarmamento ao fazer exegese das porccedilotildees relevantes da Escri-tura) interage com a histoacuteria eclesiaacutestica antes que com a histoacuteria biacuteblica (por ex encaixa textos em suas categorias de teologia sistemaacutetica para integrar a verdade em um sistema) Allen e Swain reconhecem que essas acusaccedilotildees tecircm elementos verdadeiros (p 175-180) Poreacutem a proacutepria Escritura pode ser acusada dos mesmos trecircs ldquoerrosrdquo e eles fornecem exemplos dos trecircs Tal alegaccedilatildeo natildeo serve para desqualificar a hermenecircutica que os autores do Novo Testamento fazem do Antigo ou dizer que eles tecircm passe livre para fazer o que quiserem com o texto primevo Natildeo Tudo o que os autores pretendem provar eacute isto ldquoNatildeo devemos confundir teacutecnicas de citaccedilatildeo (por exemplo textos-prova) com meacutetodo hermenecircutico seja ao considerarmos o uso da Escritura pela Escritura

129

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 125-129

ou o uso da Escritura pela teologiardquo (p 182) Por isso calcados nos exemplos de Tomaacutes de Aquino e Joatildeo Calvino eles terminam o capiacutetulo encorajando os teoacutelogos sistemaacuteticos a serem mais frequentes na exegese da Escritura e os teoacutelogos biacuteblicos a se familiarizarem com a histoacuteria da interpretaccedilatildeo biacuteblica e perceberem que eles proacuteprios tambeacutem se utilizam de categorias sinteacuteticas para trabalhar com o texto seletivamente quem sabe tais encorajamentos promovam maior simbiose entre exegese e dogmaacutetica (p 192-198)

Conforme dito no comeccedilo desta resenha a Editora Monergismo nos in-troduz a teoacutelogos reformados da nova geraccedilatildeo que demonstram grande lastro de pesquisa e interaccedilatildeo perspicaz com diversas fontes aleacutem de apresentar um tema muito importante para o evangelicalismo individualista que possui ten-taacuteculos inclusive no movimento reformado brasileiro Temos muito a aprender sobre a maneira como os reformados do passado e do presente interagem com a tradiccedilatildeo cristatilde de forma criteriosa Catolicidade eacute um tema que requer mais reflexatildeo em nosso meio para desmitificarmos uma compreensatildeo estreita de Sola Scriptura respondermos adequadamente agrave acusaccedilatildeo romana de que a doutrina protestante da Escritura abriu as portas para o individualismo de pensamento que culminou em pluralismos e apontarmos um caminho melhor de uso da tradiccedilatildeo e da Escritura tanto para teoacutelogos biacuteblicos como sistemaacuteticos

Haacute pouquiacutessimos momentos em que discordo de detalhes propostos pelos autores Eles dizem que a investigaccedilatildeo teoloacutegica moderna se exauriu na forma de investigaccedilatildeo teoloacutegica e carece de renovaccedilatildeo mediante o resgate de fontes (p 19) Eu natildeo diria que a investigaccedilatildeo se exauriu mas diria que a teologia moderna expressou a soberba progressista proacutepria do Iluminismo e se esqueceu da importacircncia do aprendizado com a comunidade cristatilde atraveacutes dos seacuteculos Outro exemplo de discordacircncia acontece quando eles impotildeem a John Owen categorias ndash de ldquoautoridaderdquo e ldquounccedilatildeordquo ndash que natildeo estatildeo na obra do puritano (v 68) Embora natildeo seja errado criarmos categorias para explicar o pensamento de autores do passado creio que as categorias utilizadas por Allen e Swain natildeo satildeo as mais precisas jaacute que autoridade e unccedilatildeo satildeo termos que possuem certo grau de sobreposiccedilatildeo

Mesmo com essas observaccedilotildees criacuteticas tangenciais minha avaliaccedilatildeo em nada desmerece a contribuiccedilatildeo tatildeo necessaacuteria que esses teoacutelogos trazem para a tradiccedilatildeo reformada contemporacircnea como um todo e mais especificamente ao cenaacuterio teoloacutegico protestante no Brasil Fariacuteamos bem em ouvir esse manifesto e buscar fontes passadas de nossa tradiccedilatildeo para estimular continuidade credal que promove comunhatildeo intergeracional Aleacutem de seu conteuacutedo precioso a Editora Monergismo fez um excelente trabalho editorial (traduccedilatildeo formataccedilatildeo) e produziu uma capa muito mais bonita que a original

131

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 131-135

RESENHAWendell Gonzaga da Paixatildeo

EDGAR W Francis Schaeffer e a vida cristatilde a espiritualidade con-tracultural Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2018 224 pp

William Edgar eacute professor de apologeacutetica no Westminster Theological Seminary em Filadeacutelfia Obteve o bacharelado em muacutesica da Harvard Uni-versity em 1966 o grau de M Div do Westminster Theological Seminary em 1969 e o PhD em teologia da Universiteacute de Genegraveve na Suiacuteccedila em 19931 Teve um privileacutegio que poucos tiveram pois conviveu e trabalhou com Francis Schaeffer no LrsquoAbri Fellowship e estudou com Cornelius Van Til no Westminster Theological Seminary Ateacute onde pude pesquisar aleacutem desse livro que estamos resenhando William Edgar tem ainda os seguintes mate-riais traduzidos para o portuguecircs o livro Razotildees do Coraccedilatildeo2 e trecircs ensaios publicados em 20113 e 20174

O livro Francis Schaeffer e a Vida Cristatilde A Espiritualidade Contra-cultural encontra-se dividido de uma maneira um pouco incomum Apoacutes o

O autor eacute bacharel em Teologia pelo Seminaacuterio Presbiteriano do Norte e poacutes-graduado em Teologia Pastoral tambeacutem pelo SPN Estaacute cursando o Mestrado em Teologia com ecircnfase em Teologia Filosoacutefica no CPAJ Conclui neste ano o curso de licenciatura em Filosofia pela UNICAP

1 Disponiacutevel em httpsfacultywtsedufacultyedgar Acesso em 6 ago 20202 EDGAR William Razotildees do coraccedilatildeo reconquistando a persuasatildeo Cristatilde Brasiacutelia Ministeacuterios

Refuacutegio 1996 3 EDGAR William ldquoA luz de Schleiermacher na restauraccedilatildeo da Franccedila os precedentes de Samuel

Vincent e Merle DrsquoAubigneacuterdquo In LILLBACK Peter A (Org) O calvinismo na praacutetica uma introduccedilatildeo agrave heranccedila reformada e presbiteriana Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011 p 217-234

4 EDGAR William ldquoAs artes e a tradiccedilatildeo reformadardquo In HALL David W PADGETT Marvin (Orgs) Calvino e a cultura Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2017 p 58-84 Idem ldquoDois guerreiros cristatildeos uma comparaccedilatildeo entre Cornelius Van Til e Francis Schaefferrdquo In ARAUacuteJO NETO Felipe Sabino de (Org) Coram Deo a vida perante Deus ensaios em honra a Wadislau Gomes Brasiacutelia Monergismo 2017 p 801-832

FRANCIS SCHAEFFER E A VIDA CRISTAtilde A ESPIRITUALIDADE CONTRACULTURAL

132

primeiro capiacutetulo os demais estatildeo inseridos dentro de trecircs partes A primeira parte tem por tiacutetulo ldquoO homem e seu tempordquo e conteacutem os capiacutetulos dois e trecircs A segunda tem por tiacutetulo ldquoVerdadeira espiritualidaderdquo e conteacutem os capiacutetulos quatro a seis A terceira tem por tiacutetulo ldquoConfiando em Deus para tudo na vidardquo e vai dos capiacutetulos sete ao dez O livro ainda conteacutem um posfaacutecio

Diferentemente de outras biografias de Schaeffer este livro tem como diferencial dois aspectos importantes Em primeiro lugar ele explora com certo niacutevel de profundidade algo diferenciado do LrsquoAbri ndash ldquoa sua mais importante razatildeo de ser ou seja a espiritualidade cristatilderdquo (p 14) Em segundo lugar ainda muito jovem Willian Edgar conheceu Schaeffer Nas suas proacuteprias palavras ldquoVisto que tive o privileacutegio de testemunhar pessoalmente muitos dos temas e personalidades relacionadas com Francis Schaeffer e LrsquoAbri comecei e terminei a narrativa com alguns fatos que envolvem a minha proacutepria narra-tivardquo (p 14) Isso jaacute torna o livro bastante envolvente e com uma narrativa bastante peculiar

O primeiro capiacutetulo tem por tiacutetulo ldquoUma introduccedilatildeo pessoal a Francis Schaefferrdquo Aqui William Edgar nos apresenta como de maneira comovente conheceu Schaeffer em LrsquoAbri William Edgar chegou ao LrsquoAbri com 19 anos e como um descrente poreacutem diz que ldquoem menos de 24 horas depois da minha chegada em LrsquoAbri minha vida tinha virado de cabeccedila para baixo completa-menterdquo (p 24) Posteriormente Schaeffer se tornou natildeo soacute um mentor mas um amigo

O segundo capiacutetulo tem por tiacutetulo ldquoA jornada para o LrsquoAbrirdquo Aqui William Edgar mostra fatos importantes na vida de Francis Schaeffer que incluem o seu nascimento (p 42-43) conversatildeo (p 43-44) formaccedilatildeo superior (p 44-49) casamento (p 45) nascimentos das filhas ainda nos Estados Unidos (p 49 50 51) pastorado e ida para Suiacuteccedila momento de crise nascimento do filho (p 58) e finalmente como se deu a expulsatildeo dos Schaeffers do cantatildeo de Valais (p 60)

O terceiro capiacutetulo tem por tiacutetulo ldquoLrsquoAbri e aleacutemrdquo Nele William Edgar narra a histoacuteria desde a chegada dos Schaeffers em Hueacutemoz (p 65) e tambeacutem apresenta a contribuiccedilatildeo de Schaeffer para a criaccedilatildeo de um jargatildeo teoloacutegico proacuteprio (p 70-71) Por fim faz uma bela apresentaccedilatildeo dos vaacuterios livros escritos por Schaeffer

O quarto capiacutetulo tem por tiacutetulo ldquoFundamentosrdquo Nesse capiacutetulo nos satildeo apresentados ldquoos pontos de vista de Francis Schaeffer sobre a vida cristatilderdquo (p 87) O objetivo de William Edgar eacute tratar de forma panoracircmica temas que satildeo muito caros ao pensamento de Schaeffer tais como ldquoFundamentos do Evangelhordquo (p 89) ldquoA autoridade da Verdaderdquo (p 91) a ldquoEspiritualidade da cosmovisatildeordquo (p 94) e por fim ldquoOs contornos da realidaderdquo Essa parte merece ser lida com bastante apreccedilo principalmente por aqueles que insistem em apre-sentar uma apologeacutetica agressiva Schaeffer valorizava tanto a ortodoxia como

133

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 131-135

a ortopraxia No dizer de William Edgar Schaeffer iraacute ldquoenfatizar a necessidade de doutrina soacutelida juntamente com a praacutetica soacutelida A primeira lsquorealidadersquo eacute a satilde doutrina O segundo lsquoconteuacutedorsquo eacute respostas honestas a perguntas honestasrdquo (p 101) Em outras palavras o cristatildeo deveraacute demonstrar uma ldquoespiritualidade verdadeirardquo e a ldquobeleza das relaccedilotildees humanasrdquo

O quinto capiacutetulo tem por tiacutetulo ldquoLiberdade na vida cristatilderdquo Este capiacutetulo tem como alvo analisar a primeira parte do livro Verdadeira Espiritualidade William Edgar apresenta a contribuiccedilatildeo de Schaeffer na anaacutelise que nos permite detectar se estamos cobiccedilando Segundo ele Schaeffer apresenta dois testes O primeiro faz referecircncia a Deus no tocante ao contentamento que temos nele Pois ldquose eu amo a Deus o suficiente para estar contente entatildeo eu estou sendo adequadamente espiritualrdquo (p 105) O segundo teste por sua vez tem uma relaccedilatildeo com o meu proacuteximo ldquoseraacute que eu amo o meu proacuteximo o suficiente para natildeo o invejarrdquo (p 106) Nesse capiacutetulo ainda satildeo elencados temas sobre a vida cristatilde no que se refere ao aspecto passivo e ativo

O sexto capiacutetulo tem por tiacutetulo ldquoAplicaccedilotildeesrdquo O seu principal objetivo eacute analisar a segunda parte do livro Verdadeira Espiritualidade Aqui eacute apresentado um ponto de controveacutersia pois ldquoSchaeffer coloca o mundo do pensamento no centro da vida cristatilderdquo (p 119) William Edgar discorda do seu mentor e diz que ldquocertamente a ideia biacuteblica do coraccedilatildeo eacute mais rica do que a mente e seus pensamentos (embora ela inclua a mente)rdquo (p 119) Satildeo abordados outros temas mas sem discordacircncia entre o autor e Schaeffer

O seacutetimo capiacutetulo tem por tema ldquoOraccedilatildeo e Orientaccedilatildeordquo William Edgar oferece uma apresentaccedilatildeo rica em detalhes sobre a abordagem de Schaeffer acerca da oraccedilatildeo ldquoEmbora Francis Schaeffer natildeo tenha deixado um legado de extensos escritos sobre o tema oraccedilatildeo ele pregou pelo menos um conjun-to bastante completo de mensagens sobre o assuntordquo (p 137) Sobre o tema orientaccedilatildeo William Edgar afirma que se no tema oraccedilatildeo Schaeffer natildeo nos deixou um legado extenso muito menos deixou sobre o tema orientaccedilatildeo Algo interessante eacute que ldquoEdith foi mais proliacutefica do que Fran na abordagem da orientaccedilatildeordquo (p 142)

ldquoUma das oraccedilotildees constantes de Edith era que o Senhor deixasse claro o que ela devia fazer em uma determinada situaccedilatildeo ndash em outras palavras que o Senhor a guiasserdquo (p 142) William Edgar demonstra por meio do caso da poliomielite do filho do casal como se dava na praacutetica essa busca da orientaccedilatildeo do Senhor

O capiacutetulo oito tem por tema ldquoAfliccedilatildeordquo Novamente Edith se destaca na abordagem do assunto pois foi ela ldquoquem mais escreveu extensivamente sobre sofrimento enquanto o material de Fran reflete de passagem ou o aborda mais filosoficamente e em grande profundidade quando trata do problema do malrdquo (p 147)

FRANCIS SCHAEFFER E A VIDA CRISTAtilde A ESPIRITUALIDADE CONTRACULTURAL

134

ldquoO livro Affliction5 de Edith representa o auge de seus pontos de vista sobre o sofrimentordquo (p 147) William Edgar tambeacutem mostra que concernente ao problema do mal Schaeffer tem uma abordagem proacutexima daquela de Van Til ldquoDe uma maneira sugestiva de Cornelius Van Til Schaeffer afirma que existem realmente apenas duas explicaccedilotildees possiacuteveis para o problema do malrdquo (p 151) ou seja uma causa metafiacutesica e outra eacutetica

O capiacutetulo nove tem por tema ldquoVida na igrejardquo Nesse capiacutetulo aparecem dois assuntos controversos na apresentaccedilatildeo que Wiliam Edgar faz dos escritos de Schaeffer O primeiro assunto controverso tem a ver com a seguinte de-claraccedilatildeo do personagem registrada por Edgar ldquoO mundo atual tem o direito de julgar se nossa feacute cristatilde eacute autecircntica Pode julgar com base em nosso amor muacutetuordquo (p 161) Cornelius Van Til vai discordar veementemente de Francis Schaeffer acerca dessa declaraccedilatildeo6 O segundo ponto controvertido eacute sobre pedir perdatildeo Schaeffer diz que ldquonatildeo precisamos esperar a outra pessoa dar o primeiro passo Devemos ter um espiacuterito de perdatildeo de qualquer maneirardquo (p 162) William Edgar aceita tal posiccedilatildeo embora reconheccedila que essa abor-dagem natildeo eacute aceita por todos os teoacutelogos reformados7 No fim do capiacutetulo satildeo apresentadas oito ldquonormas estruturais que governam a igreja visiacutevel (p 173 174) Por fim embora William Edgar jaacute tenha falado sobre a igreja fundada por Schaeffer (p 59 60) agora vai aprofundar o surgimento e como se daacute a vivecircncia na International Presbyterian Church (p 175)

Finalmente chegamos ao uacuteltimo capiacutetulo O capiacutetulo dez tem por tiacutetulo ldquoEngajando o mundordquo Nele encontramos uma espeacutecie de panorama dos temas que Schaeffer trabalhou em diversas obras Contudo novamente queremos destacar algo que William Edgar diz sobre Schaeffer Segundo ele Schaeffer ldquoconcorda que os filoacutesofos natildeo cristatildeos desde os gregos ateacute pouco antes da modernidade tinham trecircs coisas em comum o racionalismo o respeito pela racionalidade e o otimismordquo (p 191)8 Aqui Schaeffer parece ser um tanto ingecircnuo em acreditar que os filoacutesofos do passado foram bem-sucedidos na apresentaccedilatildeo de um campo de conhecimento unificado Por isso que ldquoVan Til

5 Esse livro foi lanccedilado em 2019 pela Editora Monergismo SCHAEFFER Edith Afliccedilatildeo um olhar compassivo sobre a realidade da dor e do sofrimento Brasiacutelia Monergismo 2019 344 p

6 VAN TIL Cornelius The apologetic methodology of Francis Schaeffer Westminster Theological Seminary 1974 p 48s

7 Jay Adams discorda desse ponto de vista de Schaeffer e de William Edgar Ver ADAMS Jay De perdoado a perdoador aprendendo a perdoar uns aos outros da forma de Deus Brasiacutelia Monergismo 2015 220 p

8 Para mais informaccedilotildees sobre como Schaeffer aborda o assunto ver SCHAEFFER F Como viveremos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2003 p 96s

135

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 131-135

o acusa de natildeo reconhecer a dialeacutetica perpeacutetua do pensamento racionalistairracionalista em cada eacutepocardquo (p 191)9

Finalizamos afirmando que William Edgar fez um beliacutessimo trabalho oferecendo-nos grande riqueza de detalhes uma vez que foi testemunha ocu-lar de muitas coisas que aqui estatildeo registradas A traduccedilatildeo de Neuza Batista da Silva foi muito eficiente natildeo nos deixando em duacutevida sobre o sentido das frases O livro tambeacutem possui uma diagramaccedilatildeo bem-feita proporcionado uma leitura apraziacutevel

A Editora Cultura Cristatilde estaacute de parabeacutens pelo excelente trabalho Que-remos recomendaacute-lo para todo estudante interessado em apologeacutetica e anaacutelise cultural Certamente faratildeo bem em lecirc-lo Essa obra tambeacutem seraacute de grande ajuda para os iniciantes nos estudos acerca da vida de Francis Schaeffer Contudo ateacute mesmo os mais experientes poderatildeo se beneficiar da riqueza de detalhes oferecida pelo autor A ediccedilatildeo eacute apresentada sob o selo ldquoSeacuterie Teoacutelogos e a Vida Cristatilderdquo que jaacute conta com outros volumes em portuguecircs

9 Para mais informaccedilotildees ver VAN TIL Cornelius The apologetic methodology of Francis Schaeffer Westminster Theological Seminary 1974 p 39ss

137

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 137-141

RESENHANorval da Silva

HORSLEY Richard A Jesus e o impeacuterio o Reino de Deus e a nova desordem mundial Satildeo Paulo Paulus 2014 177 p

Atualmente haacute muitas perspectivas quando se tenta fazer uma anaacutelise de quem foi Jesus e de suas ecircnfases e propoacutesitos No livro Jesus e o Impeacuterio O Reino de Deus e a Nova Desordem Mundial da editora Paulus Richard Horsley faz uso dos estudos socioloacutegicos como paracircmetro de anaacutelise da vida e dos ensinos de Jesus

Horsley eacute conhecido por sua abordagem social das Escrituras Ele foi professor de artes liberais e religiatildeo na Universidade de Massachusetts em Boston ateacute sua aposentadoria em 2007 Aleacutem do livro ora resenhado eacute tambeacutem autor de Jesus e a Espiral da Violencia da mesma editora

O livro Jesus e o Impeacuterio estaacute dividido em cinco capiacutetulos Poreacutem o leitor natildeo deve saltar a introduccedilatildeo Laacute jaacute podemos perceber a linha adotada pelo autor e sua intenccedilatildeo qual seja desconstruir a ideia tradicional que se tem do Jesus histoacuterico Do iniacutecio ao fim sua hermenecircutica eacute conduzida pelo pensamento ideoloacutegico de que Jesus foi um libertador agrave moda dos libertado-res campesinos cansados de pagar impostos aos tiranos que arrebanhou um grupo de camponeses e produziu uma revoluccedilatildeo para reverter a ordem social

De certa forma Horsley atribui aos americanos a leitura tradicional de um Jesus completamente religioso e que natildeo se envolve nas questotildees poliacuteti-cas e sociais A identidade ambiacutegua dos Estados Unidos poreacutem foi sacudida apoacutes o evento de 11 de setembro e segundo o autor jaacute natildeo se pode mais ldquoficar com essas representaccedilotildees domesticadas de Jesusrdquo (p 9) Para ele a naccedilatildeo judaica como um todo reagiu agrave ocupaccedilatildeo romana e seria muito difiacutecil

Mestre em exegese biacuteblica e linguiacutestica pelo Dallas Theological Seminary Tradutor do Novo Testamento para uma liacutengua indiacutegena pela Agecircncia Presbiteriana de Missotildees Transculturais (APMT) Aluno do STM-NT no CPAJ

JESUS E O IMPEacuteRIO O REINO DE DEUS E A NOVA DESORDEM MUNDIAL

138

imaginar um Jesus alheio agraves accedilotildees do seu proacuteprio povo Segundo o autor haacute quatro pressupostos que contribuem para uma anaacutelise do Jesus despolitizado (1) O pressuposto ocidental de que a religiatildeo estaacute separada da poliacutetica e da economia (2) A religiatildeo eacute uma esfera separada e pertence ao indiviacuteduo (3) A orientaccedilatildeo cientiacutefica dos acadecircmicos (4) Inteacuterpretes eliminaram falas de Jesus considerando inautecircntico tudo o que parecesse embaraccediloso Ele entatildeo conclui que esses pressupostos satildeo equivocados e revelam uma cosmovisatildeo ocidental e moderna longe da realidade cultural e histoacuterica do Oriente Meacutedio Esses pressupostos satildeo poreacutem indefensaacuteveis quando se trata da pesquisa e reconstruccedilatildeo histoacutericas (p 10) O autor defende a necessidade de que se olhe para Jesus a partir do contexto social poliacutetico e econocircmico da eacutepoca Ele afirma que ldquose queremos compreender o Jesus histoacuterico num contexto histoacuterico mais completo e adequado precisamos sem duacutevida conceber uma abordagem mais abrangente e relacionalrdquo (p 15-16)

Ao afirmar ldquoBaseados num levantamento dos vaacuterios movimentos de resistecircncia entre os galileus e os judeus podemos comeccedilar a suspeitar que Jesus natildeo era uma figura absolutamente rarardquo (p 16) o autor prepara o terreno para o que seraacute de fato a sua visatildeo e metodologia Para saber quem Jesus era natildeo devemos olhar para Jesus propriamente mas para o contexto em que ele viveu E aqui se encontra o primeiro perigo pois Horsley comete o mesmo equiacutevoco em que acusa os outros de terem caiacutedo ou seja deixar que o contexto em si determine o sentido das coisas A loacutegica eacute mais ou menos a seguinte se Jesus viveu em uma palestina ocupada onde a rebeliatildeo e insurgecircncia contra o impeacuterio eram as marcas do povo judeu especialmente dos galileus ele deve ter agido da mesma forma Ele deve ter sido um guerrilheiro e revolucionaacuterio Com esse pressuposto agrave matildeo tudo o que Jesus disser teraacute que passar pelo filtro desse pensamento Assim o contexto eacute absoluto e o texto apenas um pretexto para o que se quer entender

O capiacutetulo 1 trata do surgimento e expansatildeo do Impeacuterio Romano Eacute uma anaacutelise de como a pequena vila fundada por Rocircmulo e Remo se tornou um grande impeacuterio derrotando impeacuterios anteriores Na visatildeo do autor o que moti-vou o impeacuterio natildeo foi apenas o domiacutenio militar e poliacutetico em si mas a questatildeo econocircmica ou seja dominar os outros para se beneficiar economicamente Assim surgiu o populismo democraacutetico (p 23) uma nova forma de imperia-lismo Essa nova ordem mundial que favorecia os romanos trazia desordem e miseacuteria para os povos dominados (p 24) A conquista sempre implicava em devastaccedilatildeo do interior queima de aldeias pilhagem de cidades morticiacutenio e escravidatildeo da populaccedilatildeo Para manter os povos dominados cativos os impe-rialistas usavam o terrorismo e a barbaacuterie com execuccedilotildees puacuteblicas de qualquer um que se levantasse contra o impeacuterio

O capiacutetulo 2 eacute uma anaacutelise das constantes revoltas perpetradas pelos gali-leus e judeus contra o imperialismo romano Segundo o autor esses dois povos

139

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 137-141

se destacavam entre os subjugados por sua rebeldia Houve quatro revoltas principais A primeira quando Herodes foi designado rei pelo impeacuterio em 40 aC Muitos natildeo o aceitaram e lanccedilavam ataques de guerrilha que duraram trecircs anos A segunda foi em 4 dC no final do governo de Herodes Durante a Paacutescoa ecoaram protestos em Jerusaleacutem que produziram revoltas na zona rural e demais regiotildees da Palestina A terceira foi a revolta generalizada de 66 d C Na ocasiatildeo a populaccedilatildeo atacou sumos sacerdotes e suas mansotildees Essas accedilotildees culminaram com a destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem e do templo em 70 dC Por fim mesmo apoacutes a destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem revoltas e insurreiccedilotildees continuaram pelas matildeos de Simatildeo bar Kokhba sessenta anos mais tarde (132-135 dC)

No capiacutetulo 3 o autor chega de fato agrave sua tese principal se considerarmos o contexto em que o Jesus histoacuterico viveu traccedilaremos um quadro bem diferente de quem ele eacute e do que ensinou O autor inicia o capiacutetulo fazendo uma criacutetica aos estudos tradicionais do Jesus histoacuterico por buscarem analisar Jesus com base apenas em seus ditos uma vez que os ditos satildeo fragmentos artificiais que natildeo podem se constituir em unidades de comunicaccedilatildeo (p 64) Ele tem razatildeo ao afirmar que precisamos do contexto em que os ditos foram proferidos para entendermos a real significaccedilatildeo do que foi dito O restante do capiacutetulo eacute uma apresentaccedilatildeo de aspectos desse contexto histoacuterico que satildeo relevantes ao processo interpretativo do Jesus histoacuterico nos evangelhos Por exemplo havia divisotildees de classes De um lado a elite composta por governantes romanos e sacerdotes do outro o povo Outro exemplo seriam as formas sociais de vida moradia em aldeias e cidades vida comunitaacuteria e agraacuteria etc O autor conclui que considerando a natureza da comunicaccedilatildeo e analisando os evangelhos com base nessa natureza devemos imaginar o texto como enriquecido de sentido contextual pleno e objetivo para comunidades especiacuteficas de fala hebraica Para ele por exemplo o Evangelho de Marcos foi escrito para demonstrar aos cristatildeos como Jesus estabeleceu o Reino de Deus e se insurgiu contra o Impeacuterio Romano ao propor a renovaccedilatildeo de Israel (p 85)

O capiacutetulo 4 eacute o desenvolvimento da tese mencionada Segundo o autor ao anunciar a renovaccedilatildeo de Israel Jesus pronuncia a sentenccedila sobre o impeacute-rio e sobre a lideranccedila religiosa de Israel Aqui algumas de suas afirmaccedilotildees satildeo exageradas e sua hermenecircutica duvidosa Ao analisar por exemplo a expressatildeo ldquofilhos do Reinordquo ele considera como uma referecircncia aos liacutederes judaicos o que me parece ser uma interpretaccedilatildeo conveniente uma vez que uma melhor opccedilatildeo contextual seria considerar como referecircncia agrave naccedilatildeo de Israel de forma geral ou pelo menos agravequeles que rejeitavam Jesus como Messias independentemente de serem parte da lideranccedila religiosa ou natildeo Segundo ele Mateus e Lucas de fato usam a expressatildeo para se referir agrave naccedilatildeo como um todo mas isso se deu somente apoacutes a destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem A fonte original usada por Mateus e Lucas o hipoteacutetico documento Q natildeo trazia essa perspectiva Natildeo creio que haja duacutevida da parte de qualquer estudioso de que

JESUS E O IMPEacuteRIO O REINO DE DEUS E A NOVA DESORDEM MUNDIAL

140

Jesus se contrapocircs aos liacutederes de Israel Os textos demonstram isso Mas daiacute a afirmar que denunciar essa lideranccedila e promover uma revoluccedilatildeo social dos pobres era o propoacutesito final de Jesus haacute uma longa distacircncia

Ainda outro caso curioso eacute sua anaacutelise da resposta de Jesus agrave pergunta se era liacutecito pagar imposto a Ceacutesar Segundo o autor todo mundo que ouviu a resposta de Jesus entendeu que sua resposta era ldquonatildeo natildeo se deve pagar imposto a Ceacutesarrdquo Ora segundo o proacuteprio autor os fariseus eram os que defendiam essa tese Entatildeo se a resposta de Jesus confirmava a tese dos fariseus por que cargas drsquoaacutegua esse segmento fez oposiccedilatildeo tatildeo ferrenha a Jesus O natural seria interpretar que eles considerariam Jesus um aliado Mais estranha ainda eacute a sua intepretaccedilatildeo de que os exorcismos praticados por Jesus eram uma forma de derrotar o Impeacuterio Romano (ver p 108)

Outra intepretaccedilatildeo natildeo menos estranha eacute a sua anaacutelise do episoacutedio dos democircnios que entraram nos porcos e consequentemente se precipitaram no mar em Marcos 5 Para ele como o nome dos democircnios era ldquolegiatildeordquo isso significava a derrota dos soldados romanos por Jesus E mais que as pessoas que presenciaram o fato se lembrariam do episoacutedio do Mar Vermelho quando os exeacutercitos de Faraoacute submergiram sob o poder de Deus Muito estranha essa anaacutelise para dizer o miacutenimo

O quinto e uacuteltimo capiacutetulo trata do conceito de alianccedila e o ideal de vida em comunidade e cooperaccedilatildeo Segundo o autor a populaccedilatildeo estava oprimida sobrecarregada de diacutevidas e as formas sociais fundamentais da famiacutelia e da sociedade se desintegravam Ele insiste que as possessotildees demoniacuteacas eram representaccedilotildees da opressatildeo romana e que ao expulsar esses democircnios Jesus estava expulsando os romanos e suas ldquolegiotildeesrdquo da terra de Israel Para ele cada histoacuteria de cura natildeo era uma cura individual mas cura social das comunidades subsequentes (p 120) O povo precisava ser renovado E para essa renovaccedilatildeo segundo o autor a cooperaccedilatildeo comunitaacuteria era a chave Por fim essa renovaccedilatildeo comunitaacuteria passa obrigatoriamente pela resoluccedilatildeo de conflitos econocircmicos e sociais da comunidade Aqui o leitor perceberaacute uma linguagem muito se-melhante agrave dos proponentes da Teologia da Libertaccedilatildeo Em momento algum o autor aborda a necessidade do povo de Israel como sendo espiritual Para ele o problema do povo natildeo eacute com Deus e sim com as estruturas opressoras Pecado se haacute eacute pecado em esfera totalmente social e foi para isso que Jesus veio para libertar o povo simples da opressatildeo para fazer uma revoluccedilatildeo social Isso fica evidente quando ele afirma que a promessa de Jesus ldquoe no futuro a vida eternardquo eacute uma observaccedilatildeo sem importacircncia (ver p 135)

Uma observaccedilatildeo necessaacuteria a se fazer eacute quanto agrave hermenecircutica do autor e seus pressupostos Como para ele os aspectos sociais e econocircmicos satildeo os problemas reais da naccedilatildeo de Israel toda a leitura que ele faz dos evangelhos natildeo apenas eacute influenciada por esses pressupostos mas determinada por eles Ele se tornou prisioneiro de sua cosmovisatildeo O texto natildeo o desafia corrige

141

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 137-141

ou questiona como deveria fazer em um processo hermenecircutico normal Eacute fato que todos noacutes nos aproximamos do texto com pressupostos Poreacutem ateacute que ponto esses pressupostos determinam o sentido intentado pelo autor eacute algo com que precisamos ter cuidado

ExcElecircncia E PiEdadE a SErviccedilo do rEino dE dEuS

CENTRO PRESBITERIANO DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO ANDREW JUMPERVenha estudar conosco

Cursos modulares corpo docente poacutes-graduado convecircnio com instituiccedilotildees internacionais bi-blioteca teoloacutegica com mais de 40000 volumes acervo bibliograacutefico atualizado e informatizado

Educaccedilatildeo agrave distacircncia (Ead)Cursos anuais totalmente online que visam agrave instruccedilatildeo e ao aperfeiccediloamento biacuteblico-teoloacutegico de pastores e crentes que possuam graduaccedilatildeo em qualquer aacuterea Satildeo eles Estudos em Teologia Sistemaacutetica Estudos em Teologia Biacuteblica Estudos em Teologia Aplicada e Estudos em Missotildees

REvitalizaccedilatildeo E Multiplicaccedilatildeo dE igREjas (RMi)O RMI objetiva capacitar pastores e liacutederes na conduccedilatildeo do processo de restauraccedilatildeo do mi-nisteacuterio pastoral da oraccedilatildeo e da expansatildeo da igreja por meio de missotildees usando ferramentas biacuteblico-teoloacutegicas e de outras aacutereas das ciecircncias

EspEcializaccedilatildeo EM Educaccedilatildeo cRistatilde (EEc)O programa de especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Cristatilde eacute destinado a pais pastores professores e demais interessados em educaccedilatildeo eclesiaacutestica ou escolar Seu principal objetivo eacute promover uma reflexatildeo a respeito da dimensatildeo pedagoacutegica a partir dos pressupostos cristatildeos e oferecer ferramentas para o exerciacutecio intencional e planejado da atividade educacional a partir desses pressupostos

Ma lEadERship in chRistian Education (MaE)Este programa eacute um mestrado semipresencial biliacutengue (portuguecircsinglecircs) ministrado em par-ceria com o Gordon College (Boston EUA) Eacute dirigido agrave educaccedilatildeo escolar cristatilde com ecircnfase em lideranccedila compreendendo a gestatildeo escolar e suas bases conceituais Uacutetil para a lideranccedila e gestatildeo de Departamentos de Educaccedilatildeo Cristatilde em igrejas bem como para seminaacuterios institutos biacuteblicos e outras instituiccedilotildees teoloacutegicas

MEstRado EM divindadE (Magister Divinitatis ndash Mdiv)Trata-se do mestrado eclesiaacutestico do CPAJ Eacute anaacutelogo aos jaacute tradicionais mestrados profissio-nalizantes diferindo entretanto do Master of Divinity norte-americano apenas no fato de que natildeo constitui e nem pretende oferecer a formaccedilatildeo baacutesica para o ministeacuterio pastoral Oferece uma visatildeo geral das grandes aacutereas do conhecimento teoloacutegico Natildeo eacute submetido agrave avaliaccedilatildeo e natildeo possui credenciamento da CAPES

MEstRado EM tEologia (sacrae theologiae Magister ndash stM)Esse mestrado acadecircmico difere do Magister Divinitatis por sua ecircnfase na pesquisa e sua har-monizaccedilatildeo com os mestrados acadecircmicos em teologia oferecidos em universidades e escolas de teologia internacionais Eacute oferecido para aqueles que possuem o MDiv ou graduaccedilatildeo em Teologia e mestrado em qualquer aacuterea Natildeo eacute submetido agrave avaliaccedilatildeo e natildeo possui credenciamento da CAPES

doutoRado EM MinisteacuteRio (dMin)Curso oferecido em parceria com o Reformed Theological Seminary (RTS) de Jackson Mis-sissippi O programa possui o reconhecimento da JETIPB e da Association of Theological Schools (ATS) nos Estados Unidos O corpo docente inclui acadecircmicos brasileiros americanos e de outras nacionalidades com soacutelida formaccedilatildeo em suas respectivas aacutereas

Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper Rua Maria Borba 4044 ndash Vila Buarque ndash Satildeo Paulo ndash SP ndash Brasil ndash CEP 01221-040

Telefone +55 (11) 2114-86448759 ndash atendimentocpajmackenziebr cpajmackenziebr ndash httpswwwfacebookcomcppaj

Editoraccedilatildeo eletrocircnicaLibro Comunicaccedilatildeo

Volume XXVI Volume XXVI middotmiddot Nuacutemero 1 Nuacutemero 1 middotmiddot 2021 2021

Igreja Presbiteriana do BrasilJunta de Educaccedilatildeo Teoloacutegica

Instituto Presbiteriano Mackenzie

CONSELHO EDITORIALAugustus Nicodemus Lopes

Davi Charles GomesHeber Carlos de Campos

Heber Carlos de Campos JuacuteniorJedeiacuteas de Almeida Duarte

Joatildeo Paulo Thomaz de AquinoMauro Fernando MeisterValdeci da Silva Santos

A revista Fides Reformata eacute uma publicaccedilatildeo semestral doCentro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper

Os pontos de vista expressos nesta revista refletem os juiacutezos pessoais dos autores natildeo representando necessariamente a posiccedilatildeo do Conselho Editorial Os direitos de publicaccedilatildeo

desta revista satildeo do Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper

Permite-se reproduccedilatildeo desde que citada a fonte e o autor

Pede-se permutaWe request exchange On demande lrsquoeacutechange Wir erbitten Austausch

Se solicita canje Si chiede lo scambio

ENDERECcedilO PARA CORRESPONDEcircNCIARevista Fides Reformata

Rua Maria Borba 4044 ndash Vila BuarqueSatildeo Paulo ndash SP ndash 01221-040

Tel (11) 2114-8644E-mail atendimentocpajmackenziebr

ENDERECcedilO PARA PERMUTAInstituto Presbiteriano Mackenzie

Rua da Consolaccedilatildeo 896Preacutedio 2 ndash Biblioteca CentralSatildeo Paulo ndash SP ndash 01302-907

Tel (11) 2114-8302E-mail bibliopermackenziecombr

EDITORIAL

Eacute com satisfaccedilatildeo que apresentamos aos nossos leitores o volume XXVI no 1 da revista Fides Reformata dando continuidade a mais de duas deacutecadas de contribuiccedilatildeo ininterrupta agrave pesquisa teoloacutegica na Ameacuterica Latina Nos uacuteltimos anos a publicaccedilatildeo de artigos em inglecircs tem ampliado a contribuiccedilatildeo de Fides tambeacutem no cenaacuterio mundial Conheccedila todo esse acervo em formato eletrocircnico no site oficial do Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper e em bancos de dados como ATLA Serials e Fuente Academica

Nesta ediccedilatildeo o primeiro artigo de autoria do Dr Leandro de Lima ldquoO chamado para o martiacuterio em Apocalipse as sete igrejas da Aacutesiardquo nos desafia a refletir sobre o niacutevel de perseguiccedilatildeo que os leitores originais do livro de Apo-calipse enfrentavam em seus dias Segundo o autor a situaccedilatildeo ainda natildeo era extrema mas os cristatildeos jaacute comeccedilavam a demonstrar sinais de acomodaccedilatildeo agrave cultura vigente para tentar manter os benefiacutecios da paz Dessa forma o livro de Apocalipse cumpre seu papel de confrontar tal acomodaccedilatildeo

No segundo artigo pelo professor Solano Portela ldquoDesconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo o poacutes-modernismo da teologia da esperanccedila agrave teologia da nova era e seus reflexos no campo educacionalrdquo o autor demonstra que o tema subjacente de desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo de pontos fundamentais com um progressivo desvio dos direcionamentos biacuteblicos estaacute sempre presente na teologia modernacontemporacircnea Segundo ele as tendecircncias que aparecem nessas reflexotildees teoloacutegicas satildeo similares ao que se observa no campo da edu-caccedilatildeo e algumas delas impactam profundamente o processo cristatildeo de ensino--aprendizagem O desafio feito pelo autor eacute para que um soacutelido alicerce biacuteblico venha a fundamentar qualquer filosofia de educaccedilatildeo escolar cristatilde

O terceiro artigo pelo professor Heber Carlos de Campos Juacutenior ldquolsquoCor meum tibi offero Domine prompte et sincerersquo um ensaio introdutoacuterio sobre espiritualidade reformadardquo apresenta a espiritualidade reformada como uma aacuterea ainda desconhecida em meios populares e acadecircmicos e carente de ser redescoberta No intuito de resgatar o aspecto piedoso e devocional da tradiccedilatildeo reformada seu artigo apresenta uma introduccedilatildeo agrave teologia praacutetica de perso-nagens como Joatildeo Calvino os puritanos ingleses o movimento reformado holandecircs ldquoNadere Reformatierdquo e Jonathan Edwards aleacutem de representantes contemporacircneos da piedade reformada

O quarto artigo por Paulo Eduardo Vieira da Veiga ldquoAs implicaccedilotildees missioloacutegicas do triunfo de Cristo uma anaacutelise da questatildeo juriacutedica no contexto da Grande Comissatildeo (Mt 2818-20)rdquo analisa o termo ἐξουσία (autoridade) mencionado no versiacuteculo 18 no contexto da teologia biacuteblica do Antigo e do Novo Testamentos reflete sobre a autoridade perdida por Adatildeo e reconquis-tada por Cristo e avalia como o triunfo e a exaltaccedilatildeo de Cristo satildeo a garantia de sucesso da missatildeo

No quinto artigo ldquoIgrejas e histoacuteria um modelo para interpretar a di-ferenccedila entre o catolicismo romano e o protestantismordquo Paul Wells aborda o conceito de tradiccedilatildeo a maneira pela qual um grupo religioso apresenta no desenvolvimento da histoacuteria a relaccedilatildeo entre o mundo espiritual e o mundo histoacuterico material Para abordar o tema igreja e histoacuteria o autor propotildee fazer uma comparaccedilatildeo entre essas duas posiccedilotildees em trecircs aacutereas a Igreja e os sacra-mentos a Escritura e a tradiccedilatildeo o Espiacuterito Santo e a vida cristatilde

O sexto artigo de Isaias DrsquoOleo Ochoa ldquoOn how Herman Bavinck res-ponds to the theory of evolution The primacy of biblical revelationrdquo (Sobre o modo como Herman Bavinck responde agrave teoria da evoluccedilatildeo a primazia da revelaccedilatildeo biacuteblica) oferece uma teoria de desenvolvimento modificada a qual estaacute fundamentada natildeo em uma cosmovisatildeo mecanicista e naturalista como vemos em Darwin mas em uma estrutura ldquoteiacutesta-amigaacutevelrdquo Nesse artigo o autor argumenta que a discussatildeo de Bavinck sobre evoluccedilatildeo em termos gerais endossa uma estrutura aristoteacutelicatomista modificada a fim de entender a teoria de desenvolvimento e assim superar os desafios suscitados pela cosmovisatildeo naturalista de Darwin agrave revelaccedilatildeo biacuteblica

A seccedilatildeo de resenhas traz avaliaccedilotildees de obras relevantes para o contexto atual da igreja Catolicidade Reformada A Promessa da Recuperaccedilatildeo para a Teologia e a Interpretaccedilatildeo Biacuteblica de Michael Allen e Scott R Swain resenha-da por Heber Carlos de Campos Juacutenior Francis Schaeffer e a Vida Cristatilde A Espiritualidade Contracultural de W Edgar resenhada por Wendell Gonzaga da Paixatildeo e Jesus e o Impeacuterio O Reino de Deus e a Nova Desordem Mundial de Richard A Horsley resenhada por Norval da Silva

Mantendo o compromisso da revista em proporcionar e incentivar uma reflexatildeo teoloacutegica reformada entrego aos leitores mais esta ediccedilatildeo de Fides Reformata desejoso de que estes artigos despertem mais uma vez o interesse por pesquisas que visam contribuir para a edificaccedilatildeo do povo de Deus servindo sua igreja ao redor do mundo

Boa leitura

Dr Daniel SantosEditor

SUMAacuteRIO

ARTIGOS

O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIALeandro A de Lima 9

DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO O POacuteS-MODERNISMO DA TEOLOGIA DA ESPERANCcedilA Agrave TEOLOGIA DA NOVA ERA E SEUS REFLEXOS NO CAMPO EDUCACIONALSolano Portela 29

ldquoCOR MEUM TIBI OFFERO DOMINE PROMPTE ET SINCERErdquo UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADAHeber Carlos de Campos Juacutenior 47

AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO ndash UMA ANAacuteLISE DA QUESTAtildeO JURIacuteDICA NO CONTEXTO DA GRANDE COMISSAtildeO (MT 2818-20)Paulo Eduardo Vieira da Veiga 71

IGREJAS E HISTOacuteRIA UM MODELO PARA INTERPRETAR A DIFERENCcedilA ENTRE O CATOLICISMO ROMANO E O PROTESTANTISMOPaul Wells 91

ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION THE PRIMACY OF BIBLICAL REVELATIONIsaias DrsquoOleo Ochoa 103

RESENHAS

CATOLICIDADE REFORMADA A PROMESSA DA RECUPERACcedilAtildeO PARA A TEOLOGIA E A INTERPRETACcedilAtildeO BIacuteBLICA (MICHAEL ALLEN SCOTT R SWAIN)Heber Carlos de Campos Juacutenior 125

FRANCIS SCHAEFFER E A VIDA CRISTAtilde A ESPIRITUALIDADE CONTRACULTURAL (W EDGAR)Wendell Gonzaga da Paixatildeo 131

JESUS E O IMPEacuteRIO O REINO DE DEUS E A NOVA DESORDEM MUNDIAL (RICHARD A HORSLEY)Norval da Silva 137

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

9

O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

Leandro A de Lima

RESUMONo final do primeiro seacuteculo quando Joatildeo recebeu a visatildeo e a registrou

no livro do Apocalipse as igrejas da Aacutesia natildeo enfrentavam o pior periacuteodo de perseguiccedilatildeo Muito embora existissem perseguiccedilotildees pontuais e alguma som-bra de intensificaccedilatildeo de perseguiccedilatildeo se apresentasse no horizonte boa parte dos cristatildeos vivia em relativa paz e seguranccedila desfrutando de privileacutegios e benefiacutecios vindos do rico comeacutercio imperial que permeava a regiatildeo da Aacutesia Menor e de seu status como cidadatildeos romanos O desejo de permanecer des-frutando de certos benefiacutecios levou muitos crentes a seguirem o caminho de acomodaccedilatildeo cultural proposto por falsos mestres eloquentes da eacutepoca Contra essa disposiccedilatildeo o Apocalipse demonstra que os crentes verdadeiros precisam seguir o exemplo de Cristo que foi fiel ateacute a morte e recebeu a recompensa na ressurreiccedilatildeo Desse modo se estiverem dispostos a viverem fieacuteis a Cristo e enfrentarem a proacutepria morte por causa disso daratildeo o verdadeiro testemunho ao mundo bem como participaratildeo da recompensa de Cristo

PALAVRAS-CHAVESete igrejas da Aacutesia Apocalipse Martiacuterio Testemunho Perseguiccedilatildeo

INTRODUCcedilAtildeOGeralmente o livro do Apocalipse eacute considerado um tratado que objetiva

trazer consolo agrave igreja que experimenta perseguiccedilatildeo e sofrimento Muitos cren-

O autor eacute ministro presbiteriano e professor de Novo Testamento no Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper Tem doutorado em Literatura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e atualmente cursa outro doutorado em Novo Testamento pela Universidade de Kampen na Holanda

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

10

tes acreditam que nos dias em que Joatildeo recebeu o Apocalipse e o registrou a igreja enfrentava grande e incessante perseguiccedilatildeo e que em parte por causa disso era uma igreja extremamente fiel disposta a viver e morrer por Cristo No entanto haacute fortes razotildees no proacuteprio livro do Apocalipse para entender que essas duas expectativas estatildeo erradas e natildeo descrevem a realidade dos fatos daqueles dias no final do primeiro seacuteculo O livro parece ter sido escrito como uma exortaccedilatildeo para alguns grupos de cristatildeos que estavam experimentando relativo fracasso em seu testemunho perante o mundo1 O objetivo do livro foi mostrar para aqueles crentes o ponto exato em que estavam falhando e chamaacute-los ao arrependimento e agrave mudanccedila de atitude

Eacute nossa convicccedilatildeo de que esse entendimento eacute importante natildeo apenas para compreender melhor o livro do Apocalipse como um todo mas tam-beacutem para ldquoaproximarrdquo leitores modernos do livro O livro natildeo descreve uma ldquoigreja dos sonhosrdquo em termos de fidelidade ou como se costuma dizer uma ldquoigreja fiel porque era perseguidardquo Isso nos mostra que em todos os tempos precisamos da exortaccedilatildeo de Deus para que sejamos fieacuteis ateacute agrave morte seja em tempos de intensa perseguiccedilatildeo ou de relativa paz e seguranccedila

1 MARTIacuteRIO EM APOCALIPSEA noccedilatildeo comum de que o livro de Apocalipse descreve uma eacutepoca histoacute-

rica de intensa e incessante perseguiccedilatildeo2 tem sido questionada por muitos estu-diosos3 A percepccedilatildeo da ameaccedila de perseguiccedilatildeo causada por eventos pontuais4

1 Eacute nossa convicccedilatildeo de que a chave hermenecircutica para entender o pano de fundo histoacuterico do Apocalipse estaacute nas cartas agraves sete igrejas Ver Elizabeth Schuumlssler-Fiorenza Priester fur Gott Studien zum Herrschafts-und Priestermotiv in der Apokalypse NtAbhNF 7 (Munster Aschendorff 1972) p 155-166

2 Ver Elisabeth Schuumlssler-Fiorenza The Book of Revelation Justice and Judgment (2nd ed Minneapolis Fortress 1998) p 187-99 A autora defende que existia perseguiccedilatildeo mesmo que natildeo haja evidecircncia para provar isso

3 Principalmente por Leonard L Thompson The Book of Revelation Apocalypse and Empire New York Oxford University Press 1990 p 95-115 Segundo Thompson duas visotildees contrastantes de Domiciano podem ser encontradas nas fontes antigas a oficial que o descreve como um tirano e outras que o descrevem como um bom imperador Thompson prefere a segunda e por isso natildeo vecirc justificativa para perseguiccedilotildees generalizadas no final do primeiro seacuteculo Adela Yarbro Collins por outro lado sustenta que havia perseguiccedilotildees Ver ldquoPersecution and vengeance in the Book of Revelationrdquo In Apocalypticism in the Mediterranean World and the Near East p 729-749 Tuumlbingen JCB Mohr (Paul Siebeck) 1983 ver tambeacutem Adela Yarbro Collins Crisis and Catharsis The Power of the Apocalypse Philadelphia Westminster 1984 p 84-110 Yarbro Collins destaca a importacircncia de distinguir entre uma crise real e uma crise percebida (p 32)

4 Beale define o ldquoclimardquo do periacuteodo com as seguintes palavras ldquoA evidecircncia interna do livro aponta para uma situaccedilatildeo de relativa paz e perseguiccedilatildeo seletiva com uma expectativa iminente de intensificaccedilatildeo da perseguiccedilatildeo em uma escala cada vez mais programaacuteticardquo (G K Beale The Book of Revelation A Commentary on the Greek Text New International Greek Testament Commentary Grand Rapids MI Carlisle Cumbria Eerdmans Paternoster Press 1999 p 12)

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

11

(Ap 210 213) mais do que perseguiccedilatildeo contiacutenua parece descrever melhor o periacuteodo do final do primeiro seacuteculo na regiatildeo da Aacutesia Menor5 Isso entretanto natildeo diminui o impacto que os casos especiacuteficos de perseguiccedilatildeo produziam so-bre as igrejas daquela regiatildeo Na verdade a caracteriacutestica quase randocircmica da perseguiccedilatildeo parece ter produzido em muitos dos disciacutepulos das sete igrejas da Aacutesia a esperanccedila de poder escapar dela E o meio escolhido para isso em muitos casos parece ter sido a subserviecircncia disfarccedilada (ou natildeo) aos padrotildees idolaacutetricos romanos6 Contra esse cenaacuterio7 Joatildeo apregoou a bem-aventuranccedila da morte testemunhal8

Apocalipse menciona vaacuterias vezes a palavra ldquovitoacuteriardquo ou ldquovencerrdquo e descreve os vencedores em cada epiacuteteto das sete cartas Mas ao contraacuterio do que isso representava nas batalhas romanas o vencedor em Apocalipse natildeo eacute aquele que permanece vivo mas aquele que morre como Cristo que eacute o Cordeiro vencedor (Ap 55-6) Kowalski estaacute certo ao afirmar que ldquoo obje-tivo principal da metaacutefora do Cordeiro eacute encorajar o povo de Deus que estaacute passando por sofrimento e afliccedilatildeo dando-lhe a chance de se identificar com Cristo especialmente em seu sofrimento luta e ressurreiccedilatildeordquo9 De fato aleacutem de exaltar a nobreza e a dignidade da testemunha que fielmente recusa-se a ceder agraves exigecircncias idolaacutetricas e morre por Cristo Joatildeo igualmente destaca de maneira contiacutenua a recompensa desses mortos O simples fato de Joatildeo mencionar tantas vezes a expressatildeo ldquomortosrdquo ao longo do livro evidencia que

5 Nosso pressuposto eacute que o Apocalipse foi escrito pelo apoacutestolo Joatildeo por volta do ano 95 dC durante o reinado de Domiciano Sobre perseguiccedilatildeo ver Alan S Bandy ldquoPersecution and the purpose of Revelation with reference to Roman jurisprudencerdquo Bulletin for Biblical Research 23 n 3 (2013) 377-398 O autor argumenta convincentemente pelo caminho da jurisprudecircncia romana que tanto a ameaccedila quanto a perseguiccedilatildeo eram reais Para uma defesa de que Domiciano era um grande perseguidor ver WHC Frend Martyrdom and Persecution in the Early Church Oxford Basil Blackwell 1965 p 2211-2218

6 Price estabelece que no tempo de Domiciano havia uma expectativa em meio agrave populaccedilatildeo de expressotildees puacuteblicas de lealdade ao imperador cada vez mais fortes atraveacutes do culto imperial Essa pressatildeo era por parte dos proacuteprios cidadatildeos da Aacutesia Menor e era especialmente devotada nos momentos em que o imperador visitava as cidades ou nas datas nataliacutecias Frequentemente se associava a cultos locais e agraves aspiraccedilotildees das guildas comerciais da eacutepoca (S R F Price Rituals and Power The Roman Imperial Cult in Asia Minor Cambridge University Press 1984 p 78-222)

7 Ver a anaacutelise de Friesen onde ele conclui que os estudos em Apocalipse deveriam focar menos em supostos excessos de perseguiccedilatildeo sob Nero ou Domiciano e mais no caraacuteter normativo das atividades do culto imperial (Steven J Friesen Imperial Cults and the Apocalypse of John Reading Revelation in the Ruins Oxford University Press 2001 p 135-151)

8 Beale entende que ldquoo principal objetivo retoacuterico do argumento literaacuterio do Apocalipse de Joatildeo eacute exortar o povo de Deus a permanecer fiel ao chamado para seguir o exemplo paradoxal do Cordeiro e natildeo se comprometer tudo com o objetivo de herdar a salvaccedilatildeo finalrdquo (G K Beale The Book of Revelation p 171)

9 B Kowalski Martyrdom and Resurrection in The Revelation to John Andrews University Seminary Studies 411 (2003) p 55

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

12

o autor estaacute preocupado em explicar a situaccedilatildeo deles (Ap 15 69-11 1118 1413 1824 205 12-13) O livro encoraja os crentes a perseverarem ateacute o fim significando prioritariamente a necessidade de morrer por Cristo a fim de receber a grande recompensa de sua fidelidade (Ap 210 1211)

No entanto essas menccedilotildees expliacutecitas e diretas podem ser apenas a ponta do iceberg Haacute no nosso entendimento uma intrincada e desenvolvida teologia em favor do martiacuterio ao longo de todo o livro a qual se relaciona diretamente com o martiacuterio de Jesus Sweet lista quatro aspectos da relaccedilatildeo entre o martiacute-rio de Jesus e o martiacuterio de seus seguidores conforme o livro de Apocalipse estabelece

(a) O sofrimento dos cristatildeos eacute o resultado do testemunho que natildeo eacute apenas o testemunho acerca de Jesus mas o testemunho de Jesus que eles mantecircm

(b) Mantido fielmente este testemunho traz sofrimento para eles como trouxe para ele do mundo que provoca e atormenta

(c) Natildeo consiste no sofrimento mas em falar pelo Deus verdadeiro em palavra e comportamento contra a idolatria e imoralidade do mundo

(d) Em uacuteltima anaacutelise eacute vitorioso natildeo pelo efeito moral do sofrimento em que incorre mas pela vindicaccedilatildeo de Deus que destroacutei a oposiccedilatildeo10

A vitoacuteria sobre a morte aparece como a grande vindicaccedilatildeo dos maacutertires em Apocalipse A morte eacute um inimigo personificado no livro (68) Ela aparece como o grande adversaacuterio que Cristo jaacute conquistou exatamente por ter morrido (118) O uacuteltimo ato julgador de Cristo no final do livro eacute banir a morte para o lago de fogo (2014 214) Uma vez que essa morte ainda natildeo foi banida a igreja se vecirc diante dela tendo que enfrentaacute-la Do mesmo modo que Cristo obteve a vitoacuteria sobre esse inimigo tambeacutem para a igreja o melhor modo de vencer a morte eacute paradoxalmente morrer Assim o chamado ao martiacuterio eacute na verdade em Apocalipse natildeo a exaltaccedilatildeo de um momento miacutestico de sofri-mento (como muitas vezes parece ser na literatura posterior de martiacuterio) mas a certeza da verdadeira vitoacuteria Os crentes derrotam a morte quando morrem como Cristo morreu Tornam-se testemunhas vitoriosas perante o mundo e herdam o mundo vindouro

Desde o estudo de Trites eacute comum pensar que os termos maacutertir martiacuterio (μαρτυς μαρτυρία) e seus cognatos11 em Apocalipse natildeo tenham o significado semacircntico plenamente assumido de ldquomorte testemunhalrdquo que veio a ser am-

10 J P M Sweet Maintaining the Testimony of Jesus The Suffering of Christians in the Revelation of John In Suffering and Martyrdom in the New Testament William Horbory and Brian McNeil (Eds) Cambridge University Press 1981 p 101

11 Esses termos possuem grande peso semacircntico nos escritos atribuiacutedos a Joatildeo no Novo Testamento O conceito ocorre normalmente no iniacutecio e no final dos escritos Jo 17 e 1935 2124 1Jo 12 e 59 Ap 12 e 2220 (Ver A Pohl Die Offenbarung des Johanes Wuppertal Teil 1969 Ap 12)

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

13

plamente desenvolvido e generalizado no segundo seacuteculo a partir do Martiacuterio de Policarpo Trites estabelece cinco estaacutegios para a mudanccedila e consolidaccedilatildeo semacircntica do termo maacutertir (μαρτυς) Primeiro tinha apenas o sentido de teste-munho perante um tribunal sem implicaccedilatildeo de morte Em segundo lugar foi aplicado a algueacutem que testemunhou diante de um tribunal e foi morto como consequecircncia Em terceiro lugar a morte se tornou parte do testemunho Em quarto lugar a palavra μαρτυς assumiu o caraacuteter teacutecnico de morte Por uacuteltimo a noccedilatildeo de testemunho desapareceu do termo ficando exclusivamente a ideia de morte ou martiacuterio12 A conclusatildeo de Trites eacute que

O estudo do uso de μαρτυρία no Apocalipse leva agrave conclusatildeo de que a palavra ainda natildeo atingiu o estaacutegio em que sua definiccedilatildeo de dicionaacuterio eacute ldquomartiacuteriordquo Onde as ideias martiroloacutegicas estatildeo presentes elas devem ser deduzidas do contexto e natildeo de uma mudanccedila semacircntica no significado da palavra13

Assim para Trites a terminologia em Apocalipse estaacute ainda no terceiro estaacutegio movendo-se na direccedilatildeo do quarto e do quinto estaacutegios O estudo se-macircntico de Trites eacute uacutetil para nossa discussatildeo pois parece evidente que haacute uma evoluccedilatildeo terminoloacutegica poreacutem natildeo eacute possiacutevel localizar o conceito de martiacuterio em Apocalipse precisamente no terceiro estaacutegio justamente porque embora o termo natildeo signifique semanticamente ldquomorte testemunhalrdquo o conceito estaacute firmemente associado a isso pois a morte eacute praticamente uma consequecircncia necessaacuteria do testemunho A teologia martiroloacutegica do livro de Apocalipse se ancora no termo ldquotestemunhardquo Deste modo a definiccedilatildeo de Dragas precisa ser adicionada ldquoEacute preciso lembrar tambeacutem no entanto que no Apocalipse μαρτυς se refere agravequeles que testemunham atraveacutes da morte e que tanto An-tipas quanto o proacuteprio Jesus satildeo portanto as verdadeiras testemunhasrdquo14 De fato ldquoembora o vocabulaacuterio sobre testemunho no Apocalipse de um modo geral provavelmente natildeo se refira ao martiacuterio neste caso o termo μαρτυς estaacute relacionado com uma morte violentardquo15 Entendemos portanto que embora Apocalipse ainda natildeo use semanticamente o termo μαρτυς como substituto de morte testemunhal o livro foi grandemente responsaacutevel por essa identificaccedilatildeo posterior pois associou fortemente os sentidos Segundo a definiccedilatildeo de Van Henten ldquoum maacutertir eacute uma pessoa que se encontra em situaccedilatildeo extremamente hostil e prefere uma morte violenta a cumprir uma exigecircncia de autoridades

12 A A Trites ldquoμαρτυς and Martyrdom in the Apocalypse A Semantic Studyrdquo Novum Testamentum 15 (1973) p 72-73

13 Ibid p 7714 G Dragas ldquoMartyrdom and orthodoxy in the New Testament era the theme of martyria as

witness to the truthrdquo The Greek Orthodox Theological Review 30 n 3 (September 1985) p 29215 P H R van Houwelingen The Book of Revelation Full of Expectation Saacuterospataki Fuumlzetek

1 (2011) p 16

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

14

estrangeirasrdquo16 O conceito portanto nos parece presente no livro de Apoca-lipse fortemente associado ao uso do termo μαρτυς e seus cognatos

Existe uma noccedilatildeo bem estabelecida da importacircncia e do valor de uma morte testemunhal anterior ao Apocalipse17 E ao usar esse conceito associado ao termo μαρτυς o Apocalipse moldou fortemente o sentido nessa direccedilatildeo18 O termo martiacuterio em Apocalipse tem a conotaccedilatildeo de um testemunho a sustentaccedilatildeo de uma verdade que natildeo se abaixa diante das exigecircncias mundanas mas que persevera em fidelidade ateacute a morte Uma testemunha verdadeira soacute pode ser algueacutem que estaacute disposto a ir ateacute o fim nesse testemunho mesmo que even-tualmente ele natildeo seja morto violentamente Para definir o mais precisamente possiacutevel a discussatildeo entendemos que o testemunho em Apocalipse natildeo exige necessariamente uma morte violenta da testemunha mas exige a disposiccedilatildeo para tal morte

2 A PALAVRA DO TESTEMUNHOO Apocalipse expressa a ideia de que o comportamento esperado de

um verdadeiro cristatildeo eacute algo que entra em conflito direto com as condiccedilotildees exigecircncias e padrotildees de comportamento impostos pela sociedade romana da qual os cristatildeos das sete igrejas da Aacutesia faziam parte Ou seja de acordo com o Apocalipse se um cristatildeo realmente vivesse como devia viver em relaccedilatildeo a Deus isso de fato poderia levaacute-lo a sofrer consequecircncias como a perda de direitos comerciais aleacutem de ter que enfrentar processos judiciais complicados e perigosos pois ser acusado de falta de lealdade ao imperador romano era algo muito grave naqueles dias Aparentemente natildeo era todo dia que algum cristatildeo era levado perante as autoridades romanas por causa da sua feacute e isso mostra que por um lado a perseguiccedilatildeo natildeo era maciccedila mas por outro lado que provavelmente a maioria dos cristatildeos natildeo estivesse vivendo como um cristatildeo devia viver Roma natildeo os via como ameaccedila aos seus padrotildees sociais religiosos e culturais

16 Ver J W van Henten amp F Avemarie Martyrdom and Noble Death ndash Selected Texts from Graeco--Roman Jewish and Christian Antiquity London amp New York Routledge 2002 p 3-4

17 Como ficou estabelecido na tese de Van Henten que analisou o conceito de martiacuterio como herdado do judaiacutesmo especialmente de 2 e 4 Macabeus Van Henten estabelece que ldquoa figura do maacutertir eacute mais antiga que o Cristianismo e tem raiacutezes judaicasrdquo (J W van Henten The Maccabean Martyrs as Saviours of the Jewish people A Study of 2 and 4 Maccabees Leiden Brill 1997 p 7) A origem provavelmente estaacute nas histoacuterias contadas em Daniel 3 e 6 onde Daniel e seus trecircs amigos enfrentam a condenaccedilatildeo agrave morte diante das autoridades estrangeiras pelo motivo de se recusarem a descumprir ordens de seu Deus

18 Provavelmente eacute possiacutevel ver isso em livros canocircnicos anteriores ao Apocalipse como no livro de Atos onde os apoacutestolos e disciacutepulos satildeo chamados a serem μου μαρτυρες (At 18) O primeiro disciacute-pulo de Cristo a ser morto Estevatildeo eacute chamado de μαρτυρός σου Paulo ao ser comissionado tambeacutem recebe a designaccedilatildeo de testemunha (At 2616)

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

15

A mensagem central do livro pode ser entendida como um chamado divino para que os crentes das igrejas assumam a responsabilidade de serem testemunhas de Jesus diante da sociedade idoacutelatra Os cristatildeos nas sete igrejas precisavam seguir o exemplo de Cristo o qual sofreu perante as autoridades romanas na Judeia em razatildeo de ter permanecido fiel a Deus Jesus pagou o preccedilo da fidelidade atraveacutes de sua morte mas recebeu a recompensa disso em sua ressurreiccedilatildeo Portanto na visatildeo de Joatildeo os cristatildeos precisam entender o que significa ser uma testemunha de Jesus ou seja qual eacute o conteuacutedo desse testemunho quais satildeo os desafios e consequecircncias imediatas dessa atitude e finalmente quais satildeo as recompensas O Apocalipse foi escrito primordialmente para trazer esse conhecimento aos cristatildeos Eacute um chamado para uma atitude de mudanccedila e consagraccedilatildeo

Haacute uma frase que aparece diversas vezes no livro e que resume bem o significado desse chamado ou convocaccedilatildeo ldquopor causa da Palavra de Deus e do testemunho de Jesusrdquo Essas palavras de fato quase parecem um brado de guerra e resumem o senso de heroiacutesmo e fidelidade esperado dos verdadeiros cristatildeos conforme estabelecido no livro do Apocalipse Essas duas expressotildees aparecem com algumas variaccedilotildees seis vezes no livro atribuiacutedas a certas pes-soas que por causa delas enfrentam seacuterias dificuldades inclusive perseguiccedilotildees prisotildees e morte mas tambeacutem triunfam esplendidamente E ainda aparecem uma seacutetima vez de maneira resumida Listamos abaixo todas as sete vezes em que a frase pode ser vista (com pequenas modificaccedilotildees)19

Apocalipse 11-2 ndash Revelaccedilatildeo de Jesus Cristo que Deus lhe deu para mostrar aos seus servos as coisas que em breve devem acontecer e que ele enviando por intermeacutedio do seu anjo notificou ao seu servo Joatildeo o qual atestou a palavra de Deus e o testemunho de Jesus Cristo quanto a tudo o que viu

Apocalipse 19 ndash Eu Joatildeo irmatildeo vosso e companheiro na tribulaccedilatildeo no reino e na perseveranccedila em Jesus achei-me na ilha chamada Patmos por causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus

Apocalipse 69 ndash Quando ele abriu o quinto selo vi debaixo do altar as almas daqueles que tinham sido mortos por causa da palavra de Deus e por causa do testemunho que sustentavam

Apocalipse 1217s ndash Irou-se o dragatildeo contra a mulher e foi pelejar com os res-tantes da sua descendecircncia os que guardam os mandamentos de Deus e tem o testemunho de Jesus e se pocircs em peacute sobre a areia do mar20

19 As modificaccedilotildees na frase em suas apariccedilotildees parecem intencionais e fazem parte do estilo de Joatildeo que poderia ser denominado de ldquoparalelismo progressivordquo

20 Em Apocalipse 1217 haacute uma mudanccedila interessante nos termos com ldquopalavrardquo sendo substituiacuteda por ldquomandamentosrdquo

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

16

Apocalipse 1412 ndash Aqui estaacute a perseveranccedila dos santos os que guardam os mandamentos de Deus e a feacute em Jesus21

Apocalipse 204 ndash Vi tambeacutem tronos e nestes sentaram-se aqueles aos quais foi dada autoridade de julgar Vi ainda as almas dos decapitados por causa do testemunho de Jesus bem como por causa da palavra de Deus tantos quantos natildeo adoraram a besta nem tampouco a sua imagem e natildeo receberam a marca na fronte e na matildeo e viveram e reinaram com Cristo durante mil anos

Aleacutem dessas seis ocorrecircncias em Apocalipse 1211 haacute uma abreviaccedilatildeo que parece ser intencional para essa dupla declaraccedilatildeo palavramandamentos e testemunhofidelidade A expressatildeo eacute traduzida como ldquopalavra do testemunhordquo e eacute a causa da vitoacuteria dos crentes sobre o dragatildeo Ou seja eacute a disposiccedilatildeo deles de morrer por Cristo que garante sua vitoacuteria ldquoEles pois o venceram por causa do sangue do Cordeiro e por causa da palavra do testemunho que deram e mesmo em face da morte natildeo amaram a proacutepria vidardquo

Essa ldquopalavra do testemunhordquo eacute o ato de um cristatildeo verdadeiro em defen-der a verdade de Deus diante do mundo em viver de acordo com ela mesmo sabendo que isso acarretaraacute perseguiccedilotildees perdas sofrimentos e em uacuteltimo caso a proacutepria morte

Aleacutem disso nota-se que os termos correlatos ldquotestemunhardquo ldquotestemunhordquo ou o verbo ldquotestemunharrdquo tambeacutem aparecem em outros lugares do livro Em grego esses termos podem ser transliterados como ldquomaacutertirrdquo ldquomartiacuteriordquo ldquomar-tirizarrdquo (μαρτυς μαρτυρία μαρτυρειν) O termo testemunho como algo que deve ser sustentado e que causa a proacutepria morte daqueles que o datildeo aparece como a tarefa que eacute dada agraves duas testemunhas em Apocalipse 117 ldquoQuando tiverem entatildeo concluiacutedo o testemunho que devem dar a besta que surge do abismo pelejaraacute contra elas e as venceraacute e mataraacuterdquo Percebemos que as duas testemunhas satildeo mortas pela besta que sobe do abismo Em Apocalipse 204 a causa da morte das almas foi justamente ldquonatildeo adorar a bestardquo

O termo μαρτυρία ldquotestemunhordquo aleacutem das ocorrecircncias mencionadas acima tambeacutem aparece em Apocalipse 15 onde o proacuteprio Jesus eacute descrito como ldquoa testemunha fielrdquo (ο μαρτυς ο πιστός) Essa expressatildeo provavelmente indica sua morte na cruz (tambeacutem em Apocalipse 314) Por causa disso em Apocalipse 213 Antipas que foi morto em Peacutergamo eacute chamado pelo proacuteprio Cristo de ldquominha testemunha fielrdquo (μαρτυς μου ο πιστός μου)

O tabernaacuteculo celestial eacute denominado em Apocalipse 155 como o santuaacuterio do tabernaacuteculo do testemunho Essa expressatildeo provavelmente aponta para os maacutertires reunidos no ceacuteu que satildeo vingados pelos flagelos que comeccedilam

21 Em Apocalipse 1412 ldquopalavrardquo eacute substituiacuteda por ldquomandamentosrdquo e ldquotestemunhordquo por ldquofideli-daderdquo ou ldquofeacuterdquo

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

17

a ser derramados depois Em Apocalipse 176 a grande prostituta eacute descrita como becircbada com o sangue das testemunhas de Jesus Aleacutem disso a expressatildeo ldquotestemunho de Jesusrdquo aparece duas vezes em 1910 com uma relaccedilatildeo direta com 229 onde tambeacutem aparece a expressatildeo para guardar as palavras do livro

Finalmente nos uacuteltimos seis versiacuteculos do livro haacute trecircs usos do termo ldquotestemunhordquo em sua forma verbal Em 2216 Jesus relembra o envio do anjo para mostrar a Joatildeo a visatildeo (descrita primeiro em 11) ldquoEu Jesus enviei o meu anjo para vos testificar estas coisas agraves igrejasrdquo Em 2218 o termo testemunho eacute usado como um aviso contra acreacutescimos ou subtraccedilotildees sobre o conteuacutedo do livro Em 2220 Jesus se autodenomina ldquoaquele que daacute testemunhordquo e anuncia seu retorno em breve

Por isso o chamado ao testemunho eacute a grande mensagem do livro e eacute o aspecto central que queremos demonstrar neste artigo Apocalipse eacute um cha-mado ao verdadeiro testemunho Infelizmente as sete igrejas da Aacutesia estavam falhando em dar esse testemunho naqueles dias e do mesmo modo a igreja atual tambeacutem pode estar falhando

3 O CHAMADO AO MARTIacuteRIO NAS SETE CARTASOs cristatildeos das sete cidades imperiais natildeo eram oriundos apenas das clas-

ses mais baixas da populaccedilatildeo muitos eram comerciantes ricos e bem-sucedidos (Ap 317)22 Eles ajudavam a abastecer o comeacutercio imperial com bens e serviccedilos Muitos eram comerciantes navais (Ap 189-19)23 Para natildeo perderem privileacute-gios nesse sentido evitavam entrar em confronto com as autoridades romanas e com a populaccedilatildeo em geral Para esses cristatildeos o Apocalipse foi endereccedilado como um alerta contra o perigo de se acomodar ao status quo dominante e participar do culto imperial24 Eacute provaacutevel que como diz Collins muitos dos leitores para quem Joatildeo escreveu o Apocalipse nem sequer percebiam a crise que os cercava25 Estavam de tal modo envolvidos com a vida romana que nem

22 Ver o estudo de Wayne Meeks sobre a origem social dos crentes a partir das cartas paulinas Ele conclui que os crentes vinham menos dos extremos das classes sociais romanas altas e baixas sendo na sua maioria artesatildeos e pequenos comerciantes (WA Meeks The First Urban Christians The Social World of the Apostle Paul New Haven Yale University Press 1983 p 73 Ver tambeacutem A J Malherbe Social Aspects of Early Christianity Baton Rouge LA Louisiana State University Press 1977 p 29-32) Ver ainda o resumo sobre o status social dos cristatildeos em L L Thompson The Book of Revelation p 128-129

23 Ver nesse sentido a bem fundamentada tese de J Nelson Kraybill Imperial Cult and Commer-ce in Johnrsquos Apocalypse Journal for the Study of the New Testament Supplement Series 132 Shefield Academic Press 1996 Sobre a relaccedilatildeo entre economia e religiatildeo ver tambeacutem Leonard L Thompson The Book of Revelation p 171-197 R M Royalty The Streets of Heaven The Ideology of Wealth in the Apocalypse of John Macon GA Mercer University Press 1998

24 Price faz uma anaacutelise dos motivos pelos quais as pessoas da Aacutesia Menor participavam do culto imperial Ver Rituals and Power p 234-48

25 Adela Yarbro Collins Crisis and Catharsis The Power of the Apocalypse Philadelphia West-minster 1984 p 77 A autora entende que o culto imperial natildeo era um problema para a maioria das

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

18

percebiam os riscos de idolatria agrave sua volta Poreacutem apoacutes lerem o Apocalipse teriam que tomar uma decisatildeo26

As igrejas estavam sofrendo basicamente por dois motivos problemas internos e externos Externamente como dissemos havia um clima de ameaccedila de perseguiccedilotildees e tambeacutem algumas perseguiccedilotildees pontuais por parte das au-toridades do Impeacuterio Apocalipse daacute a entender que muitos cristatildeos estavam sentindo a ameaccedila de serem cerceados em seus direitos civis mesmo como cidadatildeos romanos com perda de funccedilotildees cargos e bens E alguns temiam sofrer sanccedilotildees ainda maiores como prisatildeo escravidatildeo e morte Como jaacute dis-semos ser cristatildeo no primeiro seacuteculo costumava envolver um certo risco de perder coisas a liberdade ou a proacutepria vida O proacuteprio Joatildeo apoacutestolo de Cristo se encontrava preso como grande evidecircncia do preccedilo a ser pago27 Ao que parece muitos cristatildeos natildeo estavam dispostos a pagar esse preccedilo e tentavam encontrar maneiras de fugir agraves puniccedilotildees sem necessariamente abandonar a feacute cristatilde Isso provavelmente gerava o segundo grave problema que a maioria das igrejas enfrentava a abertura para os falsos ensinos e a imoralidade Aleacutem dos pecados tradicionais como desuniatildeo brigas fornicaccedilatildeo etc um tipo de impureza doutrinaacuteria e moral parecia estar muito ligado agrave questatildeo da ameaccedila de perseguiccedilatildeo e ao desejo de escapar dela Informaccedilotildees histoacutericas mostram que o culto imperial permeava todos os aspectos da vida das cidades e vilas da Aacutesia Menor de maneira que era impossiacutevel uma pessoa aspirar a uma melhor condiccedilatildeo social e econocircmica sem participar em algum grau do culto romano28 Cidadatildeos tanto das classes altas quanto das baixas eram convocados a oferecer sacrifiacutecios ao imperador em vaacuterias ocasiotildees e nas cidades principais como Eacutefeso fundos puacuteblicos eram distribuiacutedos para que os cidadatildeos pudessem pagar pelos sacrifiacutecios de modo que natildeo participar desses eventos era considerado deslealdade e falta de patriotismo incorrendo nas penalidades legais29

igrejas ou seja muitos crentes da regiatildeo natildeo pensavam que eram proibidos de participar por causa de sua convicccedilatildeo cristatilde Kraybill sustenta que ldquoas comunidades cristatildes da Aacutesia Menor provavelmente ex-perimentaram mais desejo interno de se conformar agrave sociedade pagatilde do que pressatildeo externa no caminho da perseguiccedilatildeordquo (Imperial Cult p 196)

26 J P M Sweet diz ldquoA parte apocaliacuteptica natildeo eacute tanto um ataque ao mundo para encorajar a Igreja mas um ataque agrave Igreja que estaacute abraccedilando o mundo ndash para seu proacuteprio perigo mortal e na traiccedilatildeo de seu verdadeiro papel de convencer o mundo por seu testemunho para a salvaccedilatildeo do mundordquo (Mantaining the testimony of Jesus in Suffering and Martyrdom in the New Testament Eds William Horbory and Brian McNeil Cambridge University Press 1981 p 102-103)

27 Apesar de Thompson sugerir que Joatildeo pudesse ter ido a Patmos para pregar o Evangelho (Apo-calyse and Empire p 172-173) a maior parte dos inteacuterpretes inclusive os pais da igreja entende que ele havia sido aprisionado De fato os termos θλίψει e ὑπομονῇ que ele usa para descrever sua estada em Patmos sugerem prisatildeo mais do que apenas pregaccedilatildeo

28 Ver Price Rituals and Power p 101-132 Friesen Imperial Cults and the Apocalypse of John p 135-151

29 Ver Beale Revelation p 240-241 Price Rituals and Power p 78-121

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

19

Os falsos mestres ensinavam maneiras de as pessoas escaparem das perseguiccedilotildees pelo caminho da infidelidade A menccedilatildeo aos nicolaiacutetas30 aos seguidores de um tipo moderno de ldquoBalaatildeordquo e uma moderna ldquoJezabelrdquo que aparecem em quase todas as cartas satildeo indicaccedilotildees nesse sentido Suas doutri-nas claramente liberavam as pessoas do compromisso de santidade por isso tambeacutem logicamente as livravam das sanccedilotildees puacuteblicas

Eacutefeso em princiacutepio parece um exceccedilatildeo nesse sentido A igreja recebe um inesperado elogio quando Cristo diz ldquoTens contudo a teu favor que odeias as obras dos nicolaiacutetas as quais eu tambeacutem odeiordquo (26) A cidade era a metroacutepole da Aacutesia Menor31 Certamente continha a igreja mais importante daquela regiatildeo32 Os efeacutesios ao menos no comeccedilo recusaram seguir o caminho alternativo indicado pelos falsos apoacutestolos aquele que os liberava de ldquosofrer provas por causa do nome de Jesusrdquo ao contraacuterio mostraram ldquolabor e perseve-ranccedilardquo (κόπον καὶ τὴν ὑπομονήν) Eles seguiram o caminho do sofrimento da perda de direitos perante as autoridades mas natildeo da perda da fidelidade diante de Deus Mas ao que parece a situaccedilatildeo mudou depois de um tempo pois o Senhor acusa a igreja ldquoTenho poreacutem contra ti que abandonaste o teu primei-ro amorrdquo Provavelmente isso significava uma falta de zelo no testemunho puacuteblico do Evangelho33 O chamado ao arrependimento por certo significava um chamado viril ao testemunho para voltar a suportar fielmente as provas por causa de Cristo Portanto Eacutefeso natildeo deu espaccedilo aos falsos pregadores mas no final natildeo se saiu melhor do que as outras igrejas fracassando no testemunho perante o mundo por medo das consequecircncias

Esmirna era uma igreja fiel Ela recebe elogios e forte admoestaccedilatildeo de Cristo a permanecer fiel a continuar imitando a Cristo o que a coloca como igreja padratildeo no livro Para ela Cristo se reapresenta nos termos jaacute ouvidos no capiacutetulo 1 o ldquoprimeiro e uacuteltimo que esteve morto e tornou a viverrdquo O Cristo que experimentou o sofrimento e a morte se identifica com a igreja sofredora

30 Natildeo parece haver razatildeo para a ligaccedilatildeo feita por Irineu entre os nicolaiacutetas e o proseacutelito Nicolau mencionado em Atos 65 (Adv Haereses 1263 3111) Outros pais da igreja como Hipoacutelito (Hae-reses 724) disseram que se tratava de uma seita gnoacutestica que praticava imoralidade Segundo Beale ldquoos nicolaiacutetas ensinavam que algum grau de participaccedilatildeo na cultura idoacutelatra de Eacutefeso era permissiacutevelrdquo (Revelation 233) Thompson diz que eram forasteiros que tentavam se estabelecer na igreja de Eacutefeso (Apocalypse and Empire p 12) Fiorenza afirma que os nicolaiacutetas ldquoexpressam sua liberdade em um comportamento libertinordquo (Apocalyptic and Gnosis p 570)

31 Efeacuteso se tornou proeminente no tempo de Domiciano com a instalaccedilatildeo do culto provincial ao imperador (S J Friesen Twice Neokoros Ephesus Asia and the Cult of the Flavian Imperial Family Leiden Brill 1993 p 41-49)

32 G E Ladd A Commentary on the Revelation of John Grand Rapids Eerdmans 1972 p 30 Foi o lugar em que Paulo pastoreou e antes de ir embora advertiu contra os falsos mestres e falsos ensinos que poderiam vir apoacutes a sua partida (At 2028-31)

33 Beale Revelation p 230

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

20

de Esmirna com as palavras ldquoconheccedilo a tua tribulaccedilatildeordquo O estado paradoxal ldquopobreza (material) versus riqueza (espiritual)rdquo tambeacutem foi algo experimentado por Cristo E as blasfecircmias dos ldquofalsos judeusrdquo que parecem ter agido como acusadores perante as autoridades romanas tambeacutem estatildeo evocadas aqui A falta de explicaccedilotildees adicionais para a expressatildeo ldquosinagoga de Satanaacutesrdquo quanto agrave sinagoga judaica existente em Esmirna nos impede de ter certeza acerca da iden-tidade desses ldquofalsosrdquo judeus34 Poreacutem levando em consideraccedilatildeo que Satanaacutes eacute chamado de ldquogrande acusadorrdquo em Apocalipse 1210 parece justificar a ideia de que provavelmente se deva agrave atitude acusatoacuteria adotada pelos judeus contra os cristatildeos perante as autoridades romanas35 Essa parece ser a maior ameaccedila de perseguiccedilatildeo contemplada no livro de Apocalipse Os judeus de Esmirna natildeo queriam conceder aos cristatildeos o mesmo privileacutegio de praticar sua religiatildeo fora da Judeia e provavelmente acusavam os cristatildeos perante as autoridades de-monstrando que eles natildeo eram judeus e assim incitavam as autoridades contra os cristatildeos36 Por essa atitude sem misericoacuterdia aqueles judeus se revelavam como ldquofalsos judeusrdquo pois apesar do sangue e da descendecircncia judaica natildeo agiam como filhos de Deus e sim como ldquofilhos do diabordquo (Jo 844)37 Para essa igreja tatildeo identificada com ldquoa testemunha fielrdquo (Ap 15 ndash ο μαρτυς ο πιστός) o Senhor Jesus diz ldquoNatildeo temas as coisas que tens de sofrerrdquo Esse parece ser o grande incentivo do Apocalipse para uma disposiccedilatildeo ao martiacuterio Do mesmo modo como Cristo tocou Joatildeo quando este estava ldquocomo mortordquo e lhe disse ldquonatildeo temas eu sou o primeiro e o uacuteltimo e tenho as chaves da morte e do Hadesrdquo (Ap 117-18) agora ele conforta a igreja de Esmirna Certamente no sofrimento e morte estaacute a promessa da recompensa daquele que pode abrir

34 Van Henten observa que ldquoagrave exceccedilatildeo das referecircncias a Satanaacutes e ao diabo (29-10) o decreto permanece um tanto vago sobre quem eacute responsaacutevel pelo sofrimento dos fieacuteis em Esmirnardquo (Martyrdom p 590) Ver tambeacutem a discussatildeo na nota 14 da mesma paacutegina sobre autores que assumem posiccedilotildees diferentes sobre a identidade desses judeus

35 Friesen entende que Joatildeo fez uso de ironia e sarcasmo nesse ponto como uma forma de ldquovi-lificaccedilatildeordquo (termo de A Y Collins ldquoVilification and Self-Definition in the Book of Revelationrdquo HTR 79 (1986) 308ndash20) Steve Friesen Sarcasm in Revelation 2ndash3 Churches Christians True Jews and Satanic Synagogues In David L Barr The Reality of Apocalypse Rhetoric and Politics in the Book of Revelation Number 39 Leiden Boston Brill 2006 127-144

36 Segundo informaccedilotildees histoacutericas ateacute a segunda metade do primeiro seacuteculo os cristatildeos desfru-tavam de certa liberdade de culto debaixo do guarda-chuva do judaiacutesmo pois as autoridades romanas natildeo distinguiam o cristianismo do judaiacutesmo Os judeus desfrutavam de certa toleracircncia por parte dos romanos natildeo eram obrigados a sacrificar a Ceacutesar como deus mas apenas como governante Apoacutes o tempo de Nero novas religiotildees natildeo foram permitidas em Roma entatildeo os judeus tentaram mostrar aos romanos que o cristianismo natildeo era o judaiacutesmo Ver Beale Revelation p 240

37 No Martiacuterio de Policarpo existe uma descriccedilatildeo interessante nesse sentido quando o prococircnsul proclama diante da multidatildeo no estaacutedio que Policarpo eacute um cristatildeo Entatildeo a multidatildeo composta de gentios e judeus que habitavam em Esmirna testemunhara contra Policarpo dizendo que ele pregava contra os deuses e ensinava a natildeo oferecer sacrifiacutecios Por causa disso Policarpo foi condenado agrave morte (MPoly 121-2)

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

21

o Hades O Cristo que padeceu a morte nas matildeos dos romanos por causa da acusaccedilatildeo dos judeus anima sua igreja a passar pela mesma situaccedilatildeo pois ldquoeles sofreram por isso nas matildeos dos judeus os quais assim se mostraram servos de Satanaacutes (29 39)rdquo38 Que sejam portanto imitadores de Cristo Devem imitaacute-lo na maneira como satildeo acusados pelos judeus na maneira como satildeo julgados e condenados mas tambeacutem na maneira como Cristo triunfou

Ele anuncia prisatildeo prova e tribulaccedilatildeo de dez dias39 para a igreja Isso significava que a acusaccedilatildeo dos judeus perante as autoridades levaria agrave prisatildeo de alguns irmatildeos da igreja de Esmirna40 Provavelmente exista aqui uma inter-textualidade com o tempo de teste de Daniel e seus trecircs amigos em Babilocircnia que solicitaram dez dias ao rei para provar que comendo soacute legumes sem participar das iguarias da mesa do rei poderiam se manter mais saudaacuteveis do que os outros (Dn 112-15)41 Se essa interpretaccedilatildeo estaacute correta Joatildeo estava dizendo aos crentes de Esmirna que eles natildeo podiam se beneficiar das vanta-gens da cidadania romana uma vez que isso os obrigava a participar dos cultos idolaacutetricos A consequecircncia entretanto para essa recusa seria sofrimento certo e provavelmente morte

Do mesmo modo que Cristo que se apresentou como aquele que este-ve morto mas tornou a viver ou seja a ldquotestemunha fiel e o primogecircnito dos mortosrdquo a igreja tambeacutem eacute chamada a permanecer ldquofiel ateacute a morterdquo (πιστὸς ἄχρι θανατου) pois do mesmo modo experimentaraacute a gloriosa recompensa de receber ldquoa coroa da vidardquo (τὸν στέφανον τῆς ζωῆς) Isso soacute pode portanto ser uma referecircncia agrave ressurreiccedilatildeo42 Poreacutem a proacutexima declaraccedilatildeo parece esclarecer detalhadamente a que isso se refere ldquoO vencedor de nenhum modo sofreraacute dano da segunda morterdquo (Ap 211) Ou seja quem permanecer fiel ldquoateacute a morterdquo (ἄχρι θανατου) o que daacute a ideia natildeo de um periacuteodo de tempo ateacute a morte mas de uma fidelidade que pode resultar em morte43 natildeo sofreraacute a destruiccedilatildeo da

38 J P M Sweet Mantaining the testimony of Jesus p 10639 O tempo da tribulaccedilatildeo como sendo de ldquodez diasrdquo provavelmente natildeo seja uma referecircncia a

um periacuteodo literal antes aponta para o aspecto perverso e maligno dessa detenccedilatildeo O nuacutemero dez em Apocalipse estaacute associado agraves forccedilas malignas (Ap 916 123 131)

40 As autoridades romanas podiam lanccedilar pessoas em prisatildeo para manter a ordem puacuteblica mesmo antes de serem condenadas (At 1623-24) O aprisionamento permitia aos oficiais realizar a acusaccedilatildeo e pressionar o acusado ateacute obter uma confissatildeo como aparece na carta de Pliacutenio o Moccedilo (Ep 10963-4) As pessoas eram mantidas na prisatildeo indefinidamente ateacute que que a sentenccedila fosse imposta a qual podia ser multa banimento ou morte Ver Craig R Koester Revelation A New Translation with Introduction and Commentary org John J Collins vol 38A Anchor Yale Bible New Haven London Yale University Press 2014 p 276 Esse ato era chamado de procedimento cognitio

41 Beale Revelation p 24242 Ver B Kowalski Martyrdom and Resurrection p 5843 A construccedilatildeo significa ldquonatildeo fiel ateacute a hora da morte mas fiel ateacute uma medida que suportaraacute a

morte por amor de Cristo Eacute um termo intensivo natildeo extensivordquo (Marvin Richardson Vincent Word

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

22

ldquosegunda morterdquo O proacuteximo lugar no Apocalipse onde a expressatildeo ldquosegunda morterdquo aparece eacute justamente 206 onde se diz que os participantes da ldquoprimeira ressurreiccedilatildeordquo estatildeo livres da segunda morte Nesse mesmo texto eacute declarado que as almas dos decapitados reinam com Cristo durante os mil anos Portan-to eacute possiacutevel concluir preliminarmente que ldquoa coroa da vidardquo prometida aos vencedores em Esmirna era participar da primeira ressurreiccedilatildeo Tal aconteceria se os crentes se mantivessem fieacuteis ateacute o ponto de morrerem por causa disso Entatildeo semelhantemente a Cristo tambeacutem viveriam novamente A coroa da vida portanto parece ser uma recompensa especial para os mortos fieacuteis uma distinccedilatildeo de participar diretamente do reinado de Cristo (204) passando pe-las portas do Hades diretamente para o ceacuteu Em resumo vale a pena ser uma testemunhamaacutertir de Cristo

A ameaccedila da morte que ainda era uma sombra futura para os crentes de Esmirna aparece como um fato consumado ao menos para uma pessoa em Peacutergamo A igreja ficava numa cidade imperial uma antiga cidade fortaleza conquistada por Roma e transformada num importante centro de adoraccedilatildeo ao imperador romano44 Peacutergamo era um centro do culto a Ascleacutepio uma divin-dade representada por uma serpente poreacutem isso natildeo parece estar agrave altura do desafio pretendido pela expressatildeo ldquotrono de Satanaacutesrdquo Eacute mais seguro identificar a expressatildeo como uma alusatildeo ao forte paganismo de Peacutergamo simbolizado no grande altar que provavelmente dominava a acroacutepole onde ficava o centro de adoraccedilatildeo ao Ceacutesar45

A menccedilatildeo agrave morte de um cristatildeo daquela igreja se reveste de grande significado Aparentemente eacute a uacutenica pessoa que recebe um nome proacuteprio em Apocalipse aleacutem do proacuteprio Joatildeo46 Eacute possiacutevel concordar com Kraybill que ldquoo fato de Antipas ser o uacutenico maacutertir mencionado no Apocalipse sugere que a perseguiccedilatildeo letal era possiacutevel mas ainda natildeo era comum para os cristatildeos na Aacutesia Menorrdquo47 Isso reforccedila a ideia de que o martiacuterio era uma possibilidade um tanto remota para os cristatildeos das sete igrejas48 De fato talvez por ser remota

studies in the New Testament New York Charles Scribnerrsquos Sons 1887 2445) A referecircncia natildeo eacute ldquoateacuterdquo mas ldquomesmo querdquo (Henry Alford The Greek Testament Boston Lee and Shepard 1872 4567)

44 W Ramsay The Letters to the Seven Churches of Asia London Hodder amp Stoughton 1904ss45 H B Swete Apocalypse of St John the Greek Text Grand Rapids Eerdmans 1951 p 34-35

Aune lista ao menos oito possibilidades de interpretar a expressatildeo ldquotrono de Satanaacutesrdquo (D E Aune Re-velation Word Biblical Commentary Dallas Word 1998 52A 182-183)

46 Considerando que Jezabel mencionada na carta agrave igreja de Tiatira natildeo seja realmente um nome proacuteprio

47 Imperial Cult p 3448 Eacute preciso reconhecer que claramente o episoacutedio de Antipas fazia parte do passado (Paul B

Duff The Synagogue of Satan Crisis Mongering and the Apocalypse of John In David L Barr The Reality of Apocalypse p 161) Poreacutem aparentemente um passado recente (M Gilbertson God and History in the Book of Revelation New Testament Studies in Dialogue with Pannenberg and Moltmann Cambridge University Press 2003 p 110)

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

23

era uma possibilidade que natildeo os preocupasse cotidianamente Se eles natildeo se indispusessem de algum modo diretamente contra Roma provavelmente natildeo sofreriam grandes consequecircncias No entanto essa tepidez eacute condenada no Apocalipse A posiccedilatildeo de Antipas eacute destacada Se Esmirna eacute o grande exem-plo de igreja Antipas eacute o grande exemplo de cristatildeo que o livro quer destacar Natildeo eacute apenas a menccedilatildeo ao nome mas principalmente os termos aplicados a ele por Cristo que chamam a atenccedilatildeo Antipas minha testemunha meu fiel

(Ἀντιπᾶς ο μαρτυς μου ο πιστός μου) Natildeo pode haver nenhuma duacutevida de que com essas palavras Antipas estaacute sendo descrito como algueacutem que morreu por Cristo49 Esses termos foram usados para descrever a execuccedilatildeo de Jesus em Apocalipse 15 E isso foi exatamente o que aconteceu com Antipas50 pois Joatildeo diz ldquoo qual foi morto entre voacutes onde Satanaacutes habitardquo A expressatildeo pode ser traduzida como ldquoo qual foi executado diante de vocecircs aiacute onde Satanaacutes habitardquo (ὃς ἀπεκτανθη παρʼ ὑμιν ὅπου ο Σατανᾶς κατοικει) Sem duacutevida sugere-se uma execuccedilatildeo puacuteblica51 forense52 semelhante agrave de Jesus Natildeo haacute registro do motivo ou mesmo do meacutetodo da execuccedilatildeo de Antipas mas pode se deduzir que ele se recusou a fazer aquilo que era defendido pelos nicolaiacutetas e baalamitas que eram admirados em Peacutergamo ou seja recusou-se a participar do culto ao imperador53 e deve ter feito isso de maneira irredutiacutevel Entatildeo foi executado como testemunha de Jesus

O notaacutevel exemplo de Antipas entretanto natildeo parece ter produzido muito efeito positivo nos demais cristatildeos de Peacutergamo os quais natildeo parecem valorizar o fato e pode ter produzido ateacute mesmo uma reaccedilatildeo contraacuteria Provavelmente temerosos de ter que enfrentar um destino tatildeo cruel quanto a execuccedilatildeo por traiccedilatildeo perante as autoridades os cristatildeos de Peacutergamo seguiram o caminho alternativo oferecido pelos falsos mestres

49 Natildeo parece haver razatildeo para a aparente duacutevida de Thompson nesse sentido Ver L L Thomp-son Ordinary Lives John and His First Readers In David L Barr Reading the Book of Revelation A Resource for Students Atlanta Society of Biblical Literature 2003 p 41

50 Nenhuma informaccedilatildeo adicional eacute dada sobre Antipas Provavelmente o nome seja a abreviaccedilatildeo de Antipater um nome comum tanto entre judeus quanto entre gregos A tradiccedilatildeo posterior descreveu Antipas sendo morto apoacutes o interrogatoacuterio pelo prefeito romano Ele foi colocado dentro da estaacutetua oca de um touro de bronze posto sobre o fogo e assado ateacute a morte (Ver Acta Sanc 23-5)

51 Aune traduz a expressatildeo como ldquoque foi publicamente executado onde Satanaacutes habitardquo David E Aune Revelation 1-5 vol 52A p 1178

52 Collins Persecution and Vengeance p 73353 Thompson natildeo vecirc motivos para conectar a morte de Antipas com a adoraccedilatildeo ao imperador Ele

argumenta que a referecircncia ao trono de Satanaacutes provavelmente se refere ao ldquogrande altar de Zeus em Peacutergamordquo ou talvez ldquoao culto de Ascleacutepio e ao centro meacutedico laacute existenterdquo (The Book of Revelation p 173) Poreacutem eacute mais provaacutevel que tivesse relaccedilatildeo com o culto ao imperador pois eacute difiacutecil pensar numa execuccedilatildeo nesses outros dois casos apenas Ou mesmo uma conjunccedilatildeo de fatores pela negaccedilatildeo de Antipas em participar de qualquer um desses cultos

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

24

O mesmo se deu com Tiatira e Sardes igrejas que natildeo recebem nenhum elogio da parte de Cristo mas aparecem como comprometidas com a visatildeo dos grupos condenados por Joatildeo Um desses grupos Joatildeo o compara a Bala-que rei dos moabitas e ao profeta Balaatildeo do Antigo Testamento (Nm 22-25) Balaque contratou Balaatildeo para amaldiccediloar o povo de Israel que marchava no deserto poreacutem o profeta se viu impedido de fazer isso por restriccedilatildeo divina Consequentemente orientou Balaque a armar ciladas contra os israelitas oferecendo mulheres a fim de seduzir os homens de Israel para que pecassem contra Deus (Nm 3116) Portanto duas praacuteticas estavam sendo incentivadas em Peacutergamo como um modo de provavelmente fugir das sanccedilotildees imperiais comer carnes sacrificadas aos iacutedolos (no mercado e nas festas)54 e talvez ateacute mesmo participar de orgias sexuais com as prostitutas cultuais que ficavam nos vaacuterios templos de Peacutergamo55 Existe alguma possibilidade de que esses falsos mestres fossem um tipo de ldquognoacutesticos primitivosrdquo56 que ensinavam uma espeacutecie de ldquoseparaccedilatildeordquo entre os aspectos carnais e espirituais da vida Assim talvez dissessem que participar das festas e orgias era uma atitude carnal que no entanto natildeo afetava o espiacuterito tranquilizando a consciecircncia dos crentes Os nicolaiacutetas que foram rejeitados em Eacutefeso foram aceitos em Peacutergamo A frase ldquotambeacutem tu tens os que da mesma forma sustentam a doutrina dos nicolaiacutetasrdquo estabelece uma similaridade entre as praacuteticas dos dois grupos57 No entanto o fato de Jesus mencionaacute-los aqui como um grupo separado pode levar agrave de-finiccedilatildeo da posiccedilatildeo especiacutefica dos nicolaiacutetas eles defendiam a participaccedilatildeo no culto ao imperador

A cidade de Tiatira era famosa na antiguidade por causa de seu comeacutercio de roupas e tinturas (At 1614)58 Era uma cidade na qual as mulheres de-sempenhavam funccedilotildees importantes Segundo o entendimento do Apocalipse certa mulher estava exercendo uma autoridade nefasta sobre a igreja Ela se autoproclamava ldquoprofetisardquo e ensinava os crentes a praticarem a prostituiccedilatildeo e a comerem coisas sacrificadas Joatildeo a chama de ldquoJezabelrdquo numa referecircncia agrave

54 Apesar do ensino paulino sobre comer tudo o que eacute vendido no mercado sem questionar a procedecircncia (1Co 1025) para os crentes de Peacutergamo isso era difiacutecil pois a procedecircncia das carnes era praticamente uma soacute o culto pagatildeo

55 Para uma anaacutelise da figura de Balaatildeo no Apocalipse ver Jan Willem van Henten ldquoBalaam in Revelation 214rdquo In The Prestige of the Pagan Prophet Balaam in Judaism Early Christianity and Islam George H van Kooten e Jacques van Ruiten (Orgs) Leiden Brill 2008 p 233-46

56 R H Charles A Critical and Exegetical Commentary on The Revelation of St John ndash The In-ternational Critical Commentary Edinburgh T amp T Clark 1920 1979 p 63 WHC Frend ldquoThe Gnostic Sects and the Roman Empirerdquo JEH 5 (1954) p 25-37

57 Beale sugere que ldquonicolaiacutetasrdquo (Νικολαϊτῶν) pudesse ser o tiacutetulo da seita dos seguidores de Balaatildeo pois o significado de Nicolau eacute ldquoaquele que conquista as pessoasrdquo enquanto que uma possiacutevel traduccedilatildeo para Balaatildeo (Βαλαάμ) seja ldquoaquele que consome as pessoasrdquo (Revelation p 251)

58 Ramsay The Letters to the Seven Churches of Asia p 325

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

25

mulher feniacutecia de Acabe rei de Israel que era profetiza de Baal e perseguiu o profeta Elias aleacutem de conduzir o povo agrave idolatria (1Rs 16) Talvez com isso Joatildeo estivesse identificando a esposa de alguma personalidade importante da igreja em Tiatira ou mesmo algueacutem importante na cidade como um todo59

Uma possiacutevel conjectura diz que essa mulher seguia o mesmo princiacutepio adotado em Peacutergamo poreacutem adaptado agrave situaccedilatildeo de Tiatira Para poderem participar ativamente do proacutespero comeacutercio da cidade as pessoas eram con-vidadas a tomar parte nas celebraccedilotildees puacuteblicas das empresas comerciais nas quais havia celebraccedilotildees cuacutelticas com alimentos oferecidos a iacutedolos60 A recusa em participar desses eventos poderia acarretar dificuldades em participar do comeacutercio imperial

Assim como a recompensa para os crentes fieacuteis de Peacutergamo seria muito maior do que os benefiacutecios puacuteblicos e civis advindos da participaccedilatildeo na ado-raccedilatildeo idolaacutetrica para os crentes de Tiatira que vencerem aquela tentaccedilatildeo o Senhor promete ldquoautoridade sobre as naccedilotildeesrdquo (ἐξουσίαν ἐπὶ τῶν ἐθνῶν) As duas palavras aparecem em Mateus 2818-19 no texto da chamada Grande Comissatildeo O texto natildeo estaacute fazendo referecircncia a um reino milenar futuro61 pois Jesus diz que jaacute recebeu autoridade sobre as naccedilotildees ou seja ele jaacute estaacute reinando sobre elas pois recebeu do Pai toda autoridade nos ceacuteus e na terra Portanto eacute possiacutevel que a recompensa dos crentes fieacuteis aqueles que estivessem dispostos a enfrentar o sofrimento e a morte esteja sendo aqui descrita como uma recompensa celeste desfrutando do reinado de Cristo sobre as naccedilotildees

Do mesmo modo os vencedores de Filadeacutelfia recebem a exortaccedilatildeo para permanecerem fieacuteis ldquopara que ningueacutem tome a tua coroardquo o que no caso natildeo parece ser uma ameaccedila de perder a salvaccedilatildeo mas uma garantia de receber a recompensa especial dos maacutertires Jesus igualmente os elogia porque guardaram ldquoa palavra da minha perseveranccedilardquo (τὸν λόγον τῆς ὑπομονῆς μου) Provavel-mente τὸν λόγον aqui significa ldquoordem ou comandordquo62 Eacute o senhor que ordena que seu povo sofra com paciecircncia Filadeacutelfia constitui junto com Esmirna as duas igrejas fieacuteis em Apocalipse Ambas estatildeo sendo acusadas por judeus falsos e ambas permanecem fieacuteis ao seu Senhor mesmo pagando o preccedilo

59 Charles Revelation p 70 Natildeo fica claro ateacute onde eacute possiacutevel estender a imaginaccedilatildeo ao pensar em Jezabel agindo em Tiatira A comparaccedilatildeo parece apropriada tanto para designar uma mulher gentiacutelica que foi influente na igreja ou que usou sua influecircncia para fazer a congregaccedilatildeo participar de atividades sacrificiais (Ver S Friesen Sarcasm in Revelation 2-3 p 134)

60 Ver L L Thompson The Book of Revelation 122-123 Ver tambeacutem o estudo de Theissen sobre o conflito em Corinto a respeito das comidas sacrificadas a iacutedolos (G Theissen The Social Setting of Pauline Christianity Philadelphia Fortress 1982 p 127-132)

61 Ladd Revelation p 43 Ver J F Walvoord The Revelation of Jesus Christ Chicago Moody Press 1966 p 77

62 Van Henten Martyrdom p 591 Ver nota 18

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

26

Aparentemente em Laodiceacuteia ficavam os crentes mais abastados entre todas as cidades Todas as expressotildees pejorativas que Joatildeo usa apontam para a inversatildeo de epiacutetetos de destaque na cidade de Laodiceia aos quais os morado-res se apegavam e dos quais se orgulhavam63 Eles pensavam que eram felizes mas eram infelizes e miseraacuteveis Pensavam que eram ricos mas eram pobres Pensavam que enxergavam bem por causa do famoso coliacuterio feito a partir do poacute friacutegio da cidade mas eram cegos Pensavam que se vestiam bem por causa das famosas confecccedilotildees e da latilde negra preciosa produzida na regiatildeo mas eram nus ou insuficientemente trajados como a palavra tambeacutem pode ser traduzida64 Ou seja pensavam que eram cidadatildeos romanos bem-vestidos nobres famosos com todos os cuidados meacutedicos mas Cristo os descreve como mendigos cegos e mal trajados O status que eles desfrutavam diante dos homens era exatamente o contraacuterio diante de Deus Humanamente eram ricos e saudaacuteveis espiritual-mente eram miseraacuteveis A exortaccedilatildeo de Cristo portanto era para que a igreja se tornasse ldquouma verdadeira testemunhardquo65 abrindo matildeo do conforto de uma religiatildeo submissa ao mundo para uma feacute viva e atuante mesmo que isso lhe custasse o ldquoouro de tolordquo do mundo pois assim experimentaria o ldquoverdadeiro ourordquo da feacute purificada

CONCLUSAtildeOJoatildeo vecirc a situaccedilatildeo da maior parte das igrejas como traacutegica justamente

porque boa parte dos cristatildeos natildeo parecia sequer entender a necessidade de testemunho perante o mundo Muitos deles estavam engajados em negoacutecios mundanos entrelaccedilados com idolatria outros estavam se entregando agraves dis-soluccedilotildees carnais e seguiam falsos mestres que tranquilizavam a consciecircncia deles Em contraste com essas posturas ele os chama para o testemunho autecircntico para a ldquoperseveranccedilardquo (ὑπομονή) ou seja para a disposiccedilatildeo de enfrentar perseguiccedilotildees e a proacutepria morte Ao contraacuterio de isso ser uma perda como muitos poderiam pensar a respeito do que aconteceu com Antipas Joatildeo mostra que a verdadeira recompensa aguarda aqueles que perseverarem ateacute o fim no testemunho

Assim percebemos que o contexto do primeiro seacuteculo guarda semelhanccedilas com vaacuterias eacutepocas que a igreja enfrenta inclusive a atual na qual existem focos de perseguiccedilatildeo em vaacuterias partes do mundo Ao mesmo tempo ser um cristatildeo fiel mesmo em paiacuteses livres pode trazer prejuiacutezos agrave pessoa por perseguiccedilotildees indiretas escaacuternio desprezo e dificuldades em ascender socialmente Contudo a mensagem do Apocalipse continua ecoando em todo ouvido verdadeiramente cristatildeo secirc fiel ateacute a morte

63 Swete Apocalypse p 61 Charles Revelation p 9664 Ladd Revelation p 5265 Beale Revelation p 306

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

27

ABSTRACTAt the end of the first century when John received the vision and recorded

it in the book of Revelation the churches in Asia did not face the worst period of persecution Even though there were occasional persecutions and some shadow of intensification of regular persecution was on the horizon many Christians as Roman citizens found themselves in relative peace and security enjoying privileges and benefits from the rich imperial trade in the region of Asia Minor The desire to remain enjoying certain benefits led many believers to follow the path of cultural accommodation proposed by eloquent false teachers of the time Against this behavior Revelation demonstrates that true believers need to follow the example of Christ who was faithful unto death and received the reward at the resurrection In this way if they are willing to live faithfully to Christ and face their own death because of it they will give true testimony to the world as well as participate in the reward of Christ

KEYWORDSSeven churches of Asia Revelation Martyrdom Witness Persecution

29

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO O POacuteS-MODERNISMO DA TEOLOGIA DA ESPERANCcedilA

Agrave TEOLOGIA DA NOVA ERA E SEUS REFLEXOS NO CAMPO EDUCACIONAL

Solano Portela

RESUMOEste artigo traccedila o desenvolvimento teoloacutegico do seacuteculo 20 dividindo-o

em duas partes a primeira mostra a transiccedilatildeo do liberalismo alematildeo consoli-dado do seacuteculo 19 agrave teologia modernacontemporacircnea A segunda parte trata da pavimentaccedilatildeo do caminho ao advento da teologia poacutes-moderna O autor demonstra que o tema subjacente de desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo de pontos fundamentais com um progressivo desvio dos direcionamentos biacuteblicos estaacute sempre presente na teologia modernacontemporacircnea Essa vertente pode ser vista especialmente em cinco escolas de pensamento teoloacutegico Teologia da Esperanccedila Teologia da Libertaccedilatildeo Teologia Feminista Teologia do Pro-cesso e Teologia da Nova Era Todas elas compartilham do pensamento poacutes--Moderno e diminuem a Biacuteblia como Palavra de Deus inerrante enquanto simultaneamente retroalimentam a Teologia Poacutes-Moderna lanccedilando duacutevidas sobre princiacutepios e valores eternos biacuteblicos e tradicionais As tendecircncias que aparecem nessas reflexotildees teoloacutegicas satildeo similares ao que se observa no cam-po da educaccedilatildeo e algumas delas impactam profundamente o processo cristatildeo de ensino-aprendizagem Com uma abordagem proacutepria agrave realidade o poacutes-

Graduado em Matemaacutetica Aplicada (BA Magna Cum Laude) pelo Shelton College (Cape May Nova Jersey) Mestre em Divindade (MDiv) pelo Biblical Theological Seminary (Hatfield Pennsylvania) Litterarum Humanarum Doctor (LHD) pelo Gordon College (Boston Massachusetts) Eacute professor-coordenador de Educaccedilatildeo Cristatilde no CPAJ e professor de Teologia Sistemaacutetica no Seminaacuterio Presbiteriano Rev Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo em Satildeo Paulo

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

30

-modernismo subverteu conceitos pedagoacutegicos chaves diminuiu o papel do professor e submergiu escolas em uma crise de autoridade Eacute feito um apelo para que um soacutelido alicerce biacuteblico venha a fundamentar qualquer filosofia de educaccedilatildeo escolar cristatilde

PALAVRAS-CHAVEEducaccedilatildeo cristatilde Construtivismo Desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo Piaget

Poacutes-modernismo Teologia poacutes-moderna Teologia contemporacircnea Libera-lismo teoloacutegico

INTRODUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO Eacute UMA FILOSOFIAO Dr John Feinberg (1946-) da Trinity Evangelical Divinity School

(Deerfield Illinois) em uma de suas palestras sobre teologia contemporacircnea1 indica que o termo poacutes-modernismo natildeo define uma filosofia ou teologia especiacutefica em si mas eacute um entendimento da vida que questiona os postula-dos da modernidade os quais considera como meras proposiccedilotildees dualistas simplistas Nesse sentido o poacutes-modernismo se faz presente em quase todas as proposiccedilotildees teoloacutegicas modernas e contemporacircneas Pelo menos todas as correntes de teologia que aqui seratildeo abordadas tecircm a sua contribuiccedilatildeo ao ou pontos de intersecccedilatildeo marcantes com o poacutes-modernismo tendo como carac-teriacutestica comum a criacutetica ao pensamento cartesiano ou a rejeiccedilatildeo da existecircncia de uma verdade absoluta O poacutes-modernismo portanto natildeo eacute uma escola de pensamento que apresenta as suas proacuteprias proposiccedilotildees mas uma persuasatildeo contemporacircnea que admite a coexistecircncia paciacutefica de muitas assertivas Nesse caldeiratildeo de pensamentos postulados pluralistas desconexos ou ateacute contraditoacuterios encontram o seu proacuteprio espaccedilo na arena filosoacutefico-teoloacutegica das uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo 20 estendendo-se ateacute este primeiro quarto do seacuteculo 21

O propoacutesito deste artigo eacute mostrar que existe uma conectividade e um tema sempre presente em cinco escolas de teologia modernacontemporacircnea Teologia da Esperanccedila Teologia da Libertaccedilatildeo Teologia Feminista Teologia do Processo e Teologia da Nova Era2 Todas essas entendemos floresceram de-

1 FEINBERG John Contemporary Theology II ndash Lecture 21 Institute of Theological Studies Grand Rapids Outreach Inc 1998 Palestras disponiacuteveis como miacutedia eletrocircnica gravada

2 Todas as citaccedilotildees de publicaccedilotildees ou livros em inglecircs neste artigo satildeo de traduccedilatildeo do autor Este artigo eacute baseado em pesquisas iniciadas em setembro de 2002 e continua como um projeto em andamento Citaccedilotildees de documentos postados na Internet (Web) satildeo precisas na ocasiatildeo em que os textos estavam postados Todos os esforccedilos foram empreendidos para acessar e atualizar os endereccedilos eletrocircnicos ateacute 6 de maio de 2021 mas uns poucos documentos podem ter sido deslocados para diferentes paacuteginas ou siacutetios desde o acesso original ou removidos inteiramente da Web por falta de manutenccedilatildeo ou por qualquer outra razatildeo natildeo detectaacutevel

31

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

baixo do guarda-chuva do poacutes-modernismo contribuiacuteram com ele e abraccedilaram a desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo como eixo norteador do ldquofazer teologiardquo As conclusotildees a que chegam refletem um sentimento de necessidade de apresentar a quebra do tradicional concretizando essa acircnsia em uma sanha demolidora de valores passados uma desconsideraccedilatildeo para com acircncoras metafiacutesicas tais como o entendimento das Escrituras como Palavra de Deus que conteacutem verdades proposicionais absolutas e confiaacuteveis Essa desconsideraccedilatildeo resulta em formulaccedilotildees teoloacutegicas fluidas nas quais a apreensatildeo humana eacute colocada como norteadora da compreensatildeo do transcendente Descartam-se princiacutepios que eram aceitos como alicerces de uma boa teologia e subjuga-se a Escritura ao contexto social acatando-se este como aacuterbitro e chave hermenecircutica de in-terpretaccedilatildeo Resumindo o poacutes-modernismo latente nessas correntes naturaliza a religiatildeo e extirpa o sobrenatural do relacionamento e comunicaccedilatildeo entre o Criador e suas criaturas

1 A ORIGEM SIacuteNTESE DO DESENVOLVIMENTO HISTOacuteRICO DE FORMULACcedilOtildeES TEOLOacuteGICAS DESDE A REFORMA DO SEacuteCULO 16

O pensamento teoloacutegico foi liberto da escravatura da tradiccedilatildeo medieval catoacutelica romana com suas adiccedilotildees humanas agrave mensagem e liturgia da igreja pela Reforma do Seacuteculo 16 Desde entatildeo um cerne de ortodoxia biacuteblica tem marcado a sua presenccedila ateacute os nossos dias Apesar dessa resiliecircncia da teologia reformada nesse ponto marcante de inflexatildeo na histoacuteria da igreja existe um registro contiacutenuo de desvios em sistemas teoloacutegicos propostos de um caminho estritamente direcionado pela Escritura para esquemas mais dilatados que aco-modem especulaccedilotildees humanas Estes surgiram com frequecircncia sob a forma de rebuscados trabalhos acadecircmicos e com a aparecircncia de volumosas pesqui-sas Entretanto na realidade refletiram correntes de pensamentos seculares e filosoacuteficos que inundavam as academias Uma tentativa recorrente de siacutentese pode ser observada com a cosmovisatildeo de um mundo secularizado buscando uma zona de conforto na qual pensadores e teoacutelogos formais pudessem acolher visotildees religiosas distorcidas e obter legitimidade para seus voos intelectuais de destinos incertos e seguranccedila duacutebia

Nesse sentido observamos no periacuteodo poacutes-Reforma do seacuteculo 16 a ascensatildeo do misticismo religioso no campo protestante seguido pelo raciona-lismo do liberalismo teoloacutegico alematildeo3 Estes deixaram suas marcas nas eras

3 Ainda que contraditoriamente grandes expoentes do liberalismo fossem miacutesticos em sua preacutedica e escritos pessoais como nos relembra Blackwell um estudioso de Friedrich Schleiermacher Ele registra que de um lado ldquoSchleiermacher natildeo tinha paciecircncia com conceitos abstratos quer fossem poliacuteticos filosoacuteficos ou teoloacutegicosrdquo que natildeo tivessem ldquorelaccedilatildeo direta com e afetassem a vida realrdquo Por outro lado

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

32

preacute-moderna e moderna enquanto em paralelo grandes desenvolvimentos intelectuais afloravam nas academias bem como o mundo experimentava o surgimento das induacutestrias e profundas reorganizaccedilotildees socioloacutegicas Isso ocorreu primeiramente na Europa e subsequentemente no chamado Novo Mundo

Essas duas correntes do seacuteculo 19 o misticismo exemplificado pelos Quakers Shakers4 e outros ldquoprotomovimentosrdquo miacutesticos5 que resultaram no pentecostalismo do seacuteculo 20 e o racionalismo alematildeo que adentrou de forma avassaladora grandes seminaacuterios de renome dos Estados Unidos6 dominaram o cenaacuterio teoloacutegico avant garde ateacute as primeiras deacutecadas do uacuteltimo seacuteculo Naquela ocasiatildeo uma reaccedilatildeo que se apresentou inicialmente como um res-gate da religiatildeo verdadeira e da teologia biacuteblica adentra a arena teoloacutegica ndash a neo-ortodoxia Entretanto no cocircmputo final a neo-ortodoxia eacute cooptada pelo subjetivismo do racionalismo alematildeo e se revela natildeo uma contestaccedilatildeo biacuteblica do liberalismo teoloacutegico mas um escape miacutestico agraves questotildees mais difiacuteceis como a veracidade dos milagres e a realidade da ressurreiccedilatildeo questotildees que satildeo empurradas a uma supra histoacuteria (Heilsgeschichte) que natildeo se relaciona objetivamente com a chamada ldquohistoacuteria brutardquo

Possivelmente poderiacuteamos classificar a primeira metade do seacuteculo 20 como um periacuteodo de transiccedilatildeo entre a teologia moderna e a contemporacircnea Referimo-nos agrave progressatildeo do pensamento de Georg Wilhelm Friedrich He-gel (1770-1831) passando por Soslashren Kierkegaard (1813-1855) Karl Barth

continua Blackwell o seu misticismo aflora como uma ldquoconscientizaccedilatildeo iacutentima e remanescente de que todas as coisas fazem parte de um todordquo e que ldquonossa origem uacuteltima permanece aleacutem do que eacute possiacutevel conhecerrdquo Muitas de suas expressotildees miacutesticas satildeo encontradas em cartas escritas em 1802 para Eleonore Grunow uma mulher casada com quem Schleiermacher tencionava se casar apoacutes o divoacutercio dela ndash o que nunca ocorreu BLACKWELL Albert ldquoSchleiermacherrsquos Mysticism A Letter to His Distant Belovedrdquo Blog Modalities 13 de marccedilo de 2015 Disponiacutevel em httpsalbertblackwellblogspotcom201503schleiermachers-mysticism-letter-to-hishtml Acesso em 6 maio 2021 Essa via dupla do racionalismo e do misticismo demonstra como os extremos se tocam pois em ambas as posiccedilotildees estaacute ausente a cen-tralidade da Escritura como chave para compreensatildeo de noacutes mesmos da Terra em que habitamos do Universo que nos cerca e do Deus que tudo criou

4 FERNANDES Rubeneide O L ldquoMovimento pentecostal Assembleia de Deus e o estabeleci-mento da educaccedilatildeo formalrdquo Dissertaccedilatildeo natildeo publicada Mestrado em Educaccedilatildeo Piracicaba UNIMEP p 31-32

5 Ver por exemplo MATOS Alderi S ldquoEdward Irving precursor do movimento carismaacutetico na igreja reformadardquo Fides Reformata I-2 (1996) Disponiacutevel em httpscpajmackenziebrwp-contentuploads2019021_Edward_ Irving_Precursor_do_Movimento_CarismC3A1tico_na_Igreja_Re-formada_Alderi_Souza_Matospdf Acesso em 6 maio 2021

6 BROWN Ira ldquoThe Higher Criticism Comes to America 1880-1900rdquo Journal of The Presbyte-rian Historical Society 38 (4) Philadelphia The Presbyterian Historical Society dez 1960 p 193-212 Disponiacutevel em jStor httpwwwjstororgstable23325229 Acesso em 6 maio 2021

33

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

(1886-1968) Paul Tillich (1886-1965) Rudolf Bultmann (1884-1976)7 e os filoacutesofos analiacuteticos8 encerrando-se com os teoacutelogos da ldquoMorte de Deusrdquo9

Este foi um periacuteodo marcado por um novo subjetivismo e por uma abor-dagem individualista no qual definiccedilotildees e expressotildees linguiacutesticas foram consi-deradas amorfas e reduzidas a praticamente serem sem sentido em si proacuteprias adaptaacuteveis agrave compreensatildeo e intenccedilatildeo individuais tanto dos proponentes como de seus ouvintes ou leitores

Semelhantemente enquanto esse periacuteodo de transiccedilatildeo constroacutei uma ponte entre o moderno e o contemporacircneo podemos afirmar que praticamente todas as proposiccedilotildees teoloacutegicas novas que surgiram no seacuteculo 20 a partir da deacutecada de 1960 poderiam ser classificadas como degraus para a ascensatildeo do periacuteodo e pensamento poacutes-moderno no qual como civilizaccedilatildeo estamos sub-mersos Visualizamos em cada expressatildeo dos pensamentos teoloacutegicos desde os ldquoTeoacutelogos da Morte de Deusrdquo elementos do poacutes-modernismo quer de maneira incipiente quer de forma bastante expliacutecita e madura ateacute que eles se juntam em um amalgamado que pode ser denominado Teologia Poacutes-Moderna

Concentrando nossa anaacutelise da teologia modernacontemporacircnea das uacuteltimas deacutecadas ndash desde a Teologia da Esperanccedila10 agrave Teologia Poacutes-Moderna encontramos alguns temas subjacentes que se fazem presentes em cada variaccedilatildeo ou ramo e esses natildeo dependem dos roacutetulos que os proponentes atribuem (ou recebem) em cada escola de pensamento

Por exemplo John Feinberg indica que uma caracteriacutestica presente nas formulaccedilotildees teoloacutegicas desse periacuteodo eacute ldquoa divinizaccedilatildeo do homem e a huma-nizaccedilatildeo de Deusrdquo11 Devemos acatar a pertinecircncia dessa anaacutelise pois nunca

7 Para a afinidade desses teoacutelogos com o pensamento de Hegel ver CREMER Douglas J ldquoPro-testant Theology in Early Weimar Germany Barth Tillich and Bultmannrdquo Journal of the History of Ideas 56 n 2 (1995) 289-307 Doi1023072709839 Acesso em 23 dez 2020

8 Tambeacutem conhecida como ldquofilosofia da linguagemrdquo procura expressar uma anaacutelise racional loacutegica e matemaacutetica do pensamento ndash levando a conclusotildees puramente naturalistas sobre as grandes questotildees do universo e da vida Como maiores expoentes podemos citar Gottlob Frege (1848-1925) Ludwig Wittgenstein (1889-1951) e Bertrand Russell (1872-1970) autor do famoso livro Porque Natildeo Sou Cristatildeo As raiacutezes no pensamento alematildeo satildeo evidentes em seus escritos ainda que a grande popu-larizaccedilatildeo da corrente tenha ocorrido nas academias dos Estados Unidos e da Inglaterra

9 Os ldquoTeoacutelogos da Morte de Deusrdquo reavivaram o conceito hegeliano de que ldquoDeus estaacute mor-tordquo ndash indicando que a ideia de Deus do mundo ocidental tinha que ser revista e substituiacuteda por uma transcendecircncia centrada na humanidade Os dois expoentes modernos mais conhecidos foram William Hamilton (1924-2012) e Thomas J J Altizer (1927-2018) Os dois foram coautores do livro Teologia Radical e a Morte de Deus e forneceram combustiacutevel aos movimentos alienados hedonistas sensuais e existenciais da deacutecada de 1970 como os Provos na Europa e a onda hippie que tomou conta das Ameacutericas nas deacutecadas 1960-1970

10 Um resumo dos pontos principais dessa vertente teoloacutegica seraacute apresentado adiante Ela surgiu no livro mais famoso do seu autor originalmente publicado na Alemanha em 1964 MOLTMANN Juumlrgen Teologia da esperanccedila Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005

11 FEINBERG Lecture 1

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

34

houve um periacuteodo como o dessas deacutecadas na histoacuteria mundial ou da igreja que tratou Deus como sujeito e natildeo soberano e as pessoas mais como regentes dos seus proacuteprios destinos do que como criaturas caiacutedas necessitadas de redenccedilatildeo

Submeto entretanto que existe outro tema que se faz igualmente presente nessas correntes teoloacutegicas recentes ndash a ideia de que eacute necessaacuterio desconstruir e reconstruir ou a ideia de que as atividades de desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo se constituem em tarefas necessaacuterias ao campo da teologia Nesse sentido o teoacutelogo deve desconstruir ideias conceitos metaacuteforas ideologias esquemas de pensamento e convicccedilotildees Por outro lado eacute necessaacuterio reconstruir ou cons-truir todos esses aspectos com base no sentimento de quais estruturas devem ser estabelecidas para trazer a sensaccedilatildeo empiacuterica de liberdade da opressatildeo (de onde quer que proceda) aos proponentes e aos seus seguidores objetivados Eacute essa temaacutetica da desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo que queremos prescrutar seguindo e explorando as suas consequecircncias e principalmente avaliando os reflexos no campo educacional cristatildeo

2 DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO DA TEOLOGIA DA ESPERANCcedilA Agrave TEOLOGIA DA NOVA ERA

Vamos examinar brevemente os conceitos de desconstruccedilatildeo e recons-truccedilatildeo nessas vertentes teoloacutegicas que preparam o caminho e reforccedilam os fundamentos do pensamento poacutes-moderno dentro da teologia e seus efeitos no campo educacional

21 Teologia da EsperanccedilaJuumlrgen Moltmann iniciou esse periacuteodo na teologia contemporacircnea com

a sua Teologia da Esperanccedila12 na qual a escatologia ndash ou a esperanccedila de um futuro que eacute possiacutevel e real ndash eacute o alicerce sobre o qual toda a interpretaccedilatildeo teoloacutegica do mundo e da vida deve ser construiacuteda Apesar do termo ldquodescon-truirrdquo natildeo aparecer com ecircnfase na obra de Moltmann sua abordagem teoloacutegica conceitualmente eacute exatamente isso reverter a ordem pela qual a teologia tem sido abordada que tradicionalmente comeccedila com a avaliaccedilatildeo dos dados sobre Deus na Escritura sua natureza e suas obras postulando que a escatologia eacute na realidade a fundaccedilatildeo da teologia Com a intenccedilatildeo de ldquofazer teologiardquo Molt-mann desconstruiu a estrutura teoloacutegica que tem sido utilizada haacute seacuteculos Natildeo deveria surpreender que John B Cobb um teoacutelogo moderno (do Processo) faz a seguinte afirmaccedilatildeo sobre a Teologia da Esperanccedila ldquoA abordagem de Molt-mann eacute praticamente revolucionaacuteria em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo cristatilde dominanterdquo13

12 MOLTMANN Teologia da esperanccedila13 COBB John ldquoNorth American Theology in the Twentieth Centuryrdquo ago 1991 Disponiacutevel

em httpwwwreligion-onlineorgcgi-binrelsearchddllshowarticleitem_id=42 Acesso em 23 mar 2003

35

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

Na sequecircncia Moltmann daacute andamento agrave construccedilatildeo de sua proacutepria teo-logia especificamente redefinindo escatologia esperanccedila e salvaccedilatildeo trazendo todos esses termos a um relacionamento corporativo com a vida aqui e agora Essa reconstruccedilatildeo inova menos do que pretende porque natildeo chega a se desli-gar completamente da Teologia Existencial Como Moltmann enfatiza o lado corporativo da religiatildeo e traz o foco para a vida no presente ndash como sendo essencialmente uma vida de esperanccedila futura ndash ele acabou por construir uma base adequada para as ideias da Teologia da Libertaccedilatildeo

22 Teologia da LibertaccedilatildeoEste ramo da teologia geralmente associado aos escritos de Gustavo

Gutierrez14 popularizou-se essencialmente na Ameacuterica Latina e em outros paiacuteses em desenvolvimento (anteriormente rotulados de subdesenvolvidos) A Teologia da Libertaccedilatildeo tambeacutem desconstroacutei os conceitos tradicionais do pensamento cristatildeo especialmente aqueles relacionados agraves accedilotildees que devem ser empreendidos em meio a uma sociedade que eacute considerada socialmente injusta Ela preconiza que concentrar a visatildeo no futuro gera aniquilaccedilatildeo e cega os olhos agraves injusticcedilas presentes A perspectiva da igreja deve ser reconstruiacuteda considerando a libertaccedilatildeo como a tarefa primaacuteria da teologia do cristianis-mo e da sociedade como um todo Essa libertaccedilatildeo ou salvaccedilatildeo eacute de todas as formas de opressatildeo mas eacute definida prioritariamente como libertaccedilatildeo de condiccedilotildees de pobreza de uma classe que se encontra sob a regecircncia de outra classe dominante ndash a classe opressora A classe oprimida deve ser salva tam-beacutem da opressatildeo econocircmica e poliacutetica Cobb registra a conexatildeo da Teologia da Libertaccedilatildeo com a Teologia da Esperanccedila quando afirma ldquoNa praacutetica a Teologia da Libertaccedilatildeo da Ameacuterica Latina segue um modelo semelhante ao de Moltmannrdquo15 Chamo atenccedilatildeo para terminologia utilizada por Cobb que mostra o conceito de desconstruccedilatildeoreconstruccedilatildeo impliacutecito em seus elogios proferidos na anaacutelise da Teologia da Esperanccedila Referindo-se a teoacutelogos da libertaccedilatildeo ele diz ldquoEles foram brilhantemente bem-sucedidos em construir um sistema teoloacutegico completo com base nessa [nova] hermenecircuticardquo16

Encontramos tambeacutem a Teologia da Libertaccedilatildeo providenciando uma zona de conforto para outras formas de teologias de ldquoclassesrdquo ou de ldquominoriasrdquo que se consideram ldquooprimidasrdquo por qualquer outro segmento da sociedade Este eacute o caso da Teologia Gay Robert Goss explicando e defendendo essa vertente ldquoteoloacutegicardquo deixa clara a conexatildeo ldquoA Teologia da Libertaccedilatildeo eacute provavel-mente o melhor termo para servir de guarda-chuva para o que estaacute acontecendo [no cenaacuterio teoloacutegico] Porque ela atinge a raiz da cultura os conservadores

14 GUTIERREZ Gustavo Teologia da libertaccedilatildeo 2 ed Satildeo Paulo Vozes 198515 COBB ldquoNorth American Theologyrdquo16 Ibid

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

36

tecircm problemas com ela como nos dias de Jesus Esses conservadores como os entendo estatildeo na realidade interessados na conservaccedilatildeo do status quo de relaccedilotildees de poderrdquo17 A ideia de desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo fica bem evi-dente na apresentaccedilatildeo do livro de Goss

O trabalho do Rev Goss eacute um de desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo Ele descons-troacutei o Cristo que se assenta entronizado e abenccediloa com decretos divinos os preconceitos e as relaccedilotildees de poder e encontra no meio de tudo isso o Jesus que questiona os relacionamentos de poder dos seus dias e que [ele proacuteprio] desconstroacutei agrave sua proacutepria maneira18

Um exemplo adicional desses ramos teoloacutegicos enxertados ou que bro-tam da Teologia da Libertaccedilatildeo eacute visto na ldquoTeologia Racialrdquo na qual tambeacutem encontramos os conceitos de desconstruirconstruir Fazendo referecircncia nesse sentido ao artigo de Maria-Cristina Ventura ldquoDesconstruccedilatildeo e Reconstruccedilatildeo Teoloacutegica na Luta contra o Racismordquo lemos o seguinte em sua introduccedilatildeo ldquoA desconstruccedilatildeo teoloacutegica que leva a uma reconstruccedilatildeo eacute essencial para um en-tendimento da teologia na luta contra o racismo O exerciacutecio de desconstruccedilatildeo implica em questionamento e na confrontaccedilatildeo da teologiardquo19 Mais recente-mente os pontos fundamentais da Teologia da Libertaccedilatildeo tecircm sido veiculados no meio protestante como Teologia Puacuteblica e Teologia da Missatildeo Integral (TMI)

23 Teologia FeministaNatildeo precisamos ir muito aleacutem do tiacutetulo do livro de Elisabeth Schuumlssler

Fiorenza para localizar o tema de ldquodesconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeordquo na Teologia Feminista Essa famosa porta-voz feminista tambeacutem constroacutei sobre a base fornecida pela Teologia da Libertaccedilatildeo para desenvolver um Gestalt teoloacutegico que busca libertar as mulheres de uma estrutura supostamente dominada pelo sexo masculino Ela escreveu ldquoEm Memoacuteria Dela Uma Reconstruccedilatildeo Teoloacute-gica Feminista das Origens Cristatildesrdquo20 Em outro livro Fiorenza indica que a hermenecircutica feminista de libertaccedilatildeo deve desconstruir tradiccedilotildees opressoras e identificar imagens e argumentos diferentes daqueles que satildeo identificados com o sexo masculino21

17 GOSS Robert Jesus Acted Up A Gay and Lesbian Christian Manifesto Nova York Harper amp Row 1993

18 Ibid19 VENTURA Maria-Cristina ldquoTheological Deconstruction and Reconstruction in the Fight against

Racismrdquo Disponiacutevel em httpwwwwcc-coeorgwccwhatjpcechoesechoes-17-06html Acesso em 6 maio 2021

20 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler In Memory of Her A Feminist Theological Reconstruction of Christian Origins New York Crossroads 1983

21 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Jesus Miriamrsquos Child Sophiarsquos Prophet Critical Issues in Feminist Christology New York Continuum Publishing Group 1995 p 33

37

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

Desconstruccedilatildeo eacute tambeacutem um tema baacutesico para a Teologia Feminista no entendimento de David Rutledge que escreveu ldquoLeitura Marginal Feminis-mo Desconstruccedilatildeo e a Biacutebliardquo22 De acordo com a compreensatildeo da Teologia Feminista deve-se desconstruir todas as metaacuteforas e linguagem opressoras que falseiam o entendimento da divindade e ajudam a perpetuar a opressatildeo das mulheres em toda parte Semelhantemente eacute necessaacuterio reconstruir estruturas teoloacutegicas centradas em um simbolismo e terminologia feministas que mais adequadamente refletem os cuidados e a nutriccedilatildeo que fluem da divindade dessa forma se promoveraacute a alforria e libertaccedilatildeo das mulheres e seraacute atribuiacutedo um papel mais justo para os homens

24 Teologia do ProcessoA Teologia do Processo contesta o ldquoTeiacutesmo Claacutessicordquo e se propotildee a

descrever mais adequadamente a divindade e o entendimento metafiacutesico da estrutura da realidade Para atingir esse objetivo necessita desconstruir a apreensatildeo transcendente de Deus e reconstruiacute-lo em torno de sua imanecircncia e de sua ldquopreensatildeordquo23 dos outros seres reais Ela se apresenta como sendo uma forma mais cientiacutefica de olhar a realidade e de abordar o pensamento teoloacutegico mas ao desconstruir informaccedilotildees disponiacuteveis sobre o Deus da Biacuteblia termina por reconstruiacute-lo como um deus totalmente passivo praticamente impotente que procura atrair e persuadir e pretende influenciar mas que nunca age posi-tivamente para estabelecer sua vontade e seu propoacutesito James Ashbrook um teoacutelogo do processo do Garrett Evangelical Theological Seminary mostra esse vieacutes desconstrucionista quando apresentando uma das caracteriacutesticas dessa linha de pensamento ndash convicccedilotildees ou crenccedilas que estatildeo sempre mutantes ou em processamento ndash descreve-se a si mesmo dessa maneira

Sou um ceacutetico miacutestico um crente descrente Participo daquilo que eu questiono mais especificamente construo a realidade de acordo com o paradigma de um Deus cheio de graccedila exemplificado nas tradiccedilotildees judaico-cristatildes (plurais) e que faz sentido agrave luz do que aprendemos nas neurociecircncias Sou influenciado por praacuteticas Zen medito e oro regularmente como parte de minha vida Tento desconstruir a teologia com a finalidade de reconstruiacute-la agrave luz da experiecircncia e em um mundo carregado de opressatildeo compartilho com outros como testemunho uma realidade iluminada pela justiccedila e pelo amor24

22 RUTLEDGE David Reading Marginally Feminism Deconstruction and the Bible Leiden New York Brill 1996

23 ldquoPreensatildeordquo (prehension) na terminologia da Teologia do Processo eacute um tipo de compreensatildeo sem o elemento cognitivo ou uma forma inconsciente de relacionamento e de compartilhamento das atividades da vida pela e com a divindade

24 ASHBROOK James ldquoOur Illusory Relation to God ndash A Neurotheological Approachrdquo (palestra) Texto da nota autobiograacutefica na programaccedilatildeo da workshop ldquoInstitute on Religion in an Age of Science

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

38

25 Teologia da Nova EraJohn Feinberg aponta que a Teologia da Nova Era natildeo surgiu como um

ramo que cresceu dos ciacuterculos acadecircmicos mas eacute uma importante linha de pensamento que deve ser considerada devido aos raacutepidos avanccedilos feitos na sociedade e pela popularidade observada em alguns segmentos da igreja cristatilde25 Ela tem produzido uma abundacircncia de escritos a maioria desses com caracteriacutesticas populares mas deles podemos aferir seus temas principais Em um relatoacuterio que esboccedila ldquoAs atividades da Nova Era na Igreja Episcopalrdquo observamos os avanccedilos que essa filosofia mais do que uma teologia tecircm feito naquela denominaccedilatildeo aleacutem de trazerem agrave tona os sempre presentes temas de desconstruccedilatildeoreconstruccedilatildeo O relatoacuterio registra as seguintes palavras do Rev Matthew Fox

O que eacute a redescoberta do Cristo coacutesmico se natildeo uma desconstruccedilatildeo da ldquocris-tologia do poderrdquo que estabeleceu o impeacuterio cristatildeo no Conciacutelio de Niceacuteia no quarto seacuteculo e uma reconexatildeo com a tradiccedilatildeo biacuteblica mais antiga de Cristo como a sabedoria coacutesmica presente em todos os seres26

Vemos esse posicionamento de desconstruccedilatildeo neste e em outros traba-lhos escritos de teoacutelogos da Nova Era de conceitos tradicionais do teiacutesmo e da histoacuteria da redenccedilatildeo ndash como sendo um caminho exclusivo apresentado pela feacute cristatilde ndash pois essa ldquoteologiardquo reconstroacutei a conexatildeo com a divindade como sendo algo que estaacute presente em todos nesta religiosidade inclusiva agora denominada de ldquoreligiatildeo coacutesmicardquo ou de ldquosabedoria coacutesmicardquo

Encerramos este segmento da nossa anaacutelise indicando que Groothuis quando relaciona os temas principais que caracterizam a teologia da Nova Era destaca este em primeiro lugar ldquoTudo eacute um Quaisquer diferenccedilas perceptiacute-veis satildeo apenas aparentes e natildeo reaisrdquo 27 Este eacute o resultado do conceito de reconstruccedilatildeo da Teologia da Nova Era e podemos ver a harmonia e sobrepo-siccedilatildeo com as ideias do Poacutes-Modernismo que enfatiza construccedilotildees subjetivas Considerando que tudo eacute o mesmo aponta Feinberg28 uma pedra pode natildeo ser uma pedra eacute apenas percebida como uma pedra e assim por diante Dessa maneira estaacute preparado o palco para o Poacutes-Modernismo

38th Annual Star Island Conferencerdquo (Portsmouth NH 2707 a 03081991) Disponiacutevel em wwwirasorgconferences abs1991pdf Acesso em 20 mar 2003

25 FEINBERG Lecture 1726 COHEN Elaine ldquoMatthew Fox Techno Cosmic Mass Heralds New Spiritualityrdquo In Conscious

Life julho 1999 p 11 Citado por PENN Lee (1999 2004) ldquoThe New Age Movement in the Episcopal Churchrdquo Disponiacutevel em httpswwwevangelizationstationcomhtm_htmlNew20Agenew_age_movement_in_the_epishtm Acesso em 6 maio 2021

27 GROOTHUIS Douglas Unmasking the New Age Downers Grove IL IVP 1986 p 1828 FEINBERG Lecture 17

39

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

3 DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO NA TEOLOGIA POacuteS-MODERNA

Se o tema de desconstruccedilatildeoreconstruccedilatildeo esteve presente em cada uma dessas cinco escolas de pensamento teoloacutegico eacute no poacutes-modernismo que en-contramos o seu aacutepice Daniel J Adams depois de apresentar e discutir trecircs caracteriacutesticas do poacutes-modernismo ndash 1) decliacutenio do Ocidente e do pensamento ocidental (dilema do secularismo x devoccedilatildeo pessoal) 2) questionamento das metanarrativas (verdades fundacionais autoritativas) e 3) disseminaccedilatildeo da informaccedilatildeo (o ldquomercadordquo intelectual) ndash relaciona a quarta da seguinte forma ldquoUma quarta caracteriacutestica da era poacutes-moderna eacute aquela que ficou conhecida como o processo de desconstruccedilatildeo Desconstruccedilatildeo eacute exatamente o que estaacute expresso no significado impliacutecito da palavra eacute desmembrar textos de maneira semelhante a tirar as camadas de uma cebola Eacute um processo intencionalrdquo29

Jacques Derrida o famoso filoacutesofo poacutes-moderno de origem argelina mas de nacionalidade francesa que tem tido um impacto substancial no pensamento filosoacutefico e poacutes-moderno escreveu

Por que se envolver em um processo de desconstruccedilatildeo em vez de deixar as coisas como estatildeo etc Nada aqui se processa sem uma medida de forccedilas em algum momento Desconstruccedilatildeo tenho insistido natildeo eacute algo neutro Eacute uma intervenccedilatildeo30

Adams anteriormente citado analisa o pensamento do poacutes-modernista Ernest Gellner que escreveu sobre razatildeo e religiatildeo31 afirmando

hellip desconstruccedilatildeo tem uma implicaccedilatildeo profunda para a teologia considerando que a ldquoverdade objetiva deve ser substituiacuteda pela verdade hermenecircuticardquo Isso significa que os textos sagrados como a Biacuteblia natildeo possuem um significado uacuteltimo nem satildeo textos autoritativos Na realidade a rede ou a teia de relacio-namentos fora do texto podem determinar tanto o significado do texto como a natureza de sua autoridade Um exemplo disso dentro da tradiccedilatildeo presbiteriana--reformada eacute a controveacutersia formada em torno da eacutetica sexual e as maneiras nas quais posiccedilotildees diferentes tecircm sido propostas apoiadas na interpretaccedilatildeo dos textos biacuteblicos Uma leitura tradicional do texto e uma desconstruccedilatildeo poacutes-moderna do texto resultam em interpretaccedilotildees com enormes diferenccedilas entre si32

29 ADAMS Daniel J ldquoToward a Theological Understanding of Postmodernismrdquo publicado ini-cialmente em Metanoia (Praga) primavera-veratildeo 1997 Disponiacutevel em httpwwwcrosscurrentsorgadamshtm Acesso em 6 maio 2021

30 Extraiacutedo de uma carta de Jacques Derrida a Jean-Louis Houdebine citado em DERRIDA Jacques Positions Trad Alan Bass Chicago University of Chicago Press 1981 p 93

31 GELLNER Ernest Postmodernism Reason and Religion London Routledge 1992 p 3532 ADAMS ldquoToward a Theological Understandingrdquo

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

40

Podemos observar consequentemente a contradiccedilatildeo que existe entre o pensamento e a teologia poacutes-moderna (com essa ecircnfase na desconstruccedilatildeo) e os absolutos do teiacutesmo claacutessico especialmente a noccedilatildeo da existecircncia da verda-de absoluta que pode ser percebida por seres racionais mesmo natildeo sendo de forma exaustiva mas pelo menos de forma parcial e ainda assim verdadeira Um artigo por Robert Goizueta professor de teologia do Boston College aborda essa questatildeo com clareza

A desconstruccedilatildeo poacutes-moderna do sujeito e a rejeiccedilatildeo de todas as chamadas me-tanarrativas levam agrave duacutevida sobre a proacutepria possibilidade de se fazer quaisquer declaraccedilotildees normativas Simplificando a verdade eacute frequentemente reduzida a uma questatildeo de um significado ambivalente ou utilitaacuterio a feacute eacute algo que tem significado ou tem utilidade para mim A feacute dos pobres tem significado ou utilidade para eles Ela os auxilia Ela os liberta33

Aleacutem disso essa identificaccedilatildeo do poacutes-modernismo com desconstruccedilatildeo eacute estabelecida e definida pelo pesquisador e historiador Robert Chandler que escreve ldquoO poacutes-modernismo ou a lsquodesconstruccedilatildeorsquo postula que nada eacute neutro ndash observaccedilatildeo linguagem preservaccedilatildeo de registros documentos narra-dores ou escritos Objetividade eacute um mito e valores absolutos natildeo existemrdquo34 Consequentemente o poacutes-modernismo eacute em sua proacutepria essecircncia contraacuterio agrave noccedilatildeo dualiacutestica que contrasta verdade com falsidade certo com errado e assim por diante Obviamente o cristatildeo natildeo eacute dualista no sentido de que existe um Deus regente do universo no qual ele crecirc que rege todas as coisas e natildeo forccedilas sempre opostas que regem impessoalmente os destinos das pessoas No entanto a Biacuteblia expressa que existem sim posiccedilotildees e situaccedilotildees contrastantes em vaacuterias aacutereas Eacute interessante observarmos como o poacutes-modernismo perturba ateacute o pensamento oriental dualista (e equivocado) ao extremo mas que reco-nhece alguns contrastes inevitaacuteveis da realidade que natildeo se encaixam na visatildeo amorfa do poacutes-modernismo Nesse sentido sem que tenhamos que concordar com tudo um partidaacuterio da filosofia oriental Balbinder Singh Bhogal ex--professor visitante da University of Derby (atualmente um escritor proliacutefico e membro do corpo docente da Hofstra University)35 expressa sua criacutetica ao poacutes-modernismo assim

33 GOIZUETTA Robert God First Loved Us Reflections on the Theological Grounds of Liberation Disponiacutevel em httpswwwlivedtheologyorgwp-contentuploads20150520120424PPR01-Roberto--S-Goizueta-God-First-Loved-Us-Reflections-on-the-Theological-Grounds-of-Liberationpdf p 8 Acesso em 6 maio 2021

34 CHANDLER Robert J Resenha de ldquoContested Eden California Before the Gold Rushrdquo GU-TIERREZ Ramon e ORSI Richard (Orgs) The Journal of San Diego History 44 n 4 (outono 1998) p 44 (4) Disponiacutevel em httpssandiegohistoryorgjournal1998octobereden Acesso em 6 maio 2021

35 Long Island NY Ver httpshofstraacademiaeduBalbinderSinghBhogal Acesso em 6 maio 2021

41

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

O pensamento poacutes-moderno desafia dualidades hieraacuterquicas e herdadas e revela uma nova forma de pensar que emerge desses dualismos como um processo natural de desconstruccedilatildeo-construccedilatildeo-desconstruccedilatildeo Esse pensamento obscuro esmaece os limites de um dualismo que existe agraves claras como o sagrado e o secular luz e trevas o bem e o mal certo e errado Deus e o homem o infinito e o finito o numenal e o fenomenal o espiacuterito e a mateacuteria deus-pai e matildee terra36

David Griffin na introduccedilatildeo ao seu trabalho de muacuteltiplos autores identi-fica um ramo do poacutes-modernismo que para no estaacutegio da desconstruccedilatildeo sendo assim harmocircnico com suas premissas ndash se o pluralismo e a diversidade eacute o que conta por que reconstruir Ele aponta para o pensamento desconstrutivo ou eliminador do poacutes-modernismo ldquoO poacutes-modernismo filosoacutefico eacute inspirado de diversas formas pelo pragmatismo e fisicalismo por Ludwig Wittgenstein Martin Heidegger e Jacques Derrida e outros pensadores franceses recentesrdquo37

No entanto no final das contas em um sistema onde a desconstruccedilatildeo reina descontroladamente segue-se a reconstruccedilatildeo de uma forma subjetiva sem padrotildees que foram igualmente desconstruiacutedos com o restante A recons-truccedilatildeo ocorreraacute na linguagem nas artes no pensamento teoloacutegico e religioso com cada pessoa construindo sua proacutepria imagem da realidade de acordo com a apreensatildeo subjetiva das realidades ndash o que quer que sejam estas Thomas Hopko presidente do St Vladimir Seminary escreveu pertinentemente sobre essa condiccedilatildeo na qual encontramos o mundo poacutes-moderno

Em uma sociedade moderna e secularizada a linguagem as estruturas os siacutembolos e rituais claacutessicos e o cristianismo biacuteblico permanecem enquanto os seus conteuacutedos e significados satildeo radicalmente alterados Na desconstruccedilatildeo poacutes-moderna da cosmovisatildeo moderna ndash por intermeacutedio de um existencialis-mo radical cultural e pessoal pela revoluccedilatildeo sexual pela busca incessante do miacutestico pela politizaccedilatildeo da teologia e da eacutetica e pela explosatildeo do hedonismo e avareza espiritual e material ndash a linguagem tradicional as estruturas os siacutembolos e rituais satildeo recriados ao ponto em que os seus conteuacutedos e significados originais natildeo mais existem mas satildeo substituiacutedos por uma completa nova reconstruccedilatildeo da realidade38

36 BHOGAL Balbinder Singh (1995) ldquoGlimpses of Postmodernism (Deconstruction) and Reli-gionrdquo Palestra proferida no School of Oriental and African Studies Post-Graduate Seminar nov 1995 Disponiacutevel em httpwwwmultifaithnetorgmfnopenaccessresearchonlineseminarbbglimpseshtm Acesso em 16 mar 2003

37 GRIFFIN David Ray BEARDSLEE William A HOLLAND Joe Varieties of Postmodern Theology Albany State of New York University Press 1989 p xii

38 HOPKO Thomas ldquoOrthodoxy in Pluralistic Post-Modern Societiesrdquo The Ecumenical Review 51 p 364-371 Disponiacutevel em httpsdoiorg101111j1758-66231999tb00404x Acesso em 6 maio 2021

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

42

Assim temos visto esse tema recorrente de desconstruccedilatildeoreconstruccedilatildeo nesse periacuteodo contemporacircneo de desenvolvimento teoloacutegico desde a Teologia da Esperanccedila em diante e a sua forte presenccedila no pensamento filosoacutefico e teoloacutegico poacutes-moderno Aonde isso levaraacute quando tratamos dessas influecircncias no campo da educaccedilatildeo

4 O QUE ACONTECE QUANDO NAtildeO HAacute NADA A DESCONSTRUIR

E se existir uma aacuterea da realidade onde natildeo haacute estrutura de pensamento para desconstruir Se ela existe entatildeo natildeo haacute que se falar sobre reconstruir algo que natildeo foi desconstruiacutedo A aacuterea de educaccedilatildeo mais especificamente a educaccedilatildeo das crianccedilas se apresenta para o enquadramento nesta categoria Natildeo me refiro aos processos metodoloacutegicos da educaccedilatildeo pois nesses certamente a mente poacutes-moderna encontraraacute amplo campo para desconstruccedilatildeo e reconstru-ccedilatildeo Faccedilo referecircncia agrave aacuterea cognitiva da crianccedila o que ocorre na sua mente nos primeiros estaacutegios de aprendizado em sua existecircncia como o conhecimento chega ateacute ela O que na realidade eacute conhecimento Eacute algo que eacute transmitido comunicado e ao qual ela eacute conduzida e levada a assimilar

Os trabalhos escritos nesta aacuterea tecircm mantido paridade com o pensamento contemporacircneo e com desenvolvimentos teoloacutegicos especialmente neste pe-riacuteodo poacutes-moderno onde se questiona a realidade de tudo (ou o conhecimento concreto) exceto as apreensotildees subjetivas na mente das pessoas Tratando da mente de crianccedilas admitem que natildeo haacute nada para desconstruir mas sim para construir No entanto nessa abordagem o conhecimento natildeo eacute e nem deve ser transmitido ndash de alguma forma indescritiacutevel esse conhecimento vai brotar ou ser construiacutedo autonomamente Tentativas de transmissatildeo a algueacutem de dados da realidade como em processos de ensino-aprendizagem tradicionais resultam tatildeo somente em distorccedilatildeo da realidade subjetiva dessa pessoa que deve ser facilitada tatildeo somente para caminhar por um processo de construccedilatildeo de sua proacutepria compreensatildeo do mundo e da vida E assim nasce o construtivismo

41 A ferramenta adequada do poacutes-modernismoO Construtivismo ainda que plantado na primeira metade do seacuteculo 20

tomou forma desenvolveu-se e popularizou-se na segunda metade daquele seacute-culo Cresceu portanto paralelamente e em sobreposiccedilatildeo ao poacutes-modernismo Podemos afirmar que o construtivismo se encaixa perfeitamente no subjeti-vismo de pensadores poacutes-modernos de tal forma a poder funcionar como a ferramenta educacional do poacutes-modernismo Dennis McCallum conhecido conferencista e autor sobre esta filosofia coloca a conexatildeo da seguinte maneira

O construtivismo eacute a teoria de aprendizagem principal subjacente agrave educaccedilatildeo poacutes-moderna De acordo com construtivistas o conhecimento natildeo eacute descoberto

43

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

como afirmam os modernistas Todo conhecimento eacute inventado ou ldquoconstruiacutedordquo na mente do aprendiz Natildeo poderia ser de outra maneira dizem os poacutes-moder-nistas porque as ideias que os professores ensinam e os alunos aprendem natildeo correspondem a qualquer realidade objetiva Satildeo tatildeo somente construccedilotildees hu-manas Conhecimento ideias e linguagem satildeo criados por pessoas natildeo porque sejam ldquoverdaderdquo mas porque tecircm utilidade39

Jaacute haacute algumas deacutecadas o construtivismo tem sido ldquovendidordquo como uma metodologia de ensino mas ele se apresenta na realidade como um sistema filosoacutefico do processo de ensino-aprendizagem chegando adicionalmente a postular teorias sobre a formaccedilatildeo de valores morais e do julgamento do certo e errado na concepccedilatildeo mental das crianccedilas Suas raiacutezes foram fincadas em solo europeu pelo pesquisador Jean Piaget (1896-1980) e suas conclusotildees adota-das amplamente por psicopedagogos A popularizaccedilatildeo na Ameacuterica Latina foi uma consequecircncia inevitaacutevel da influecircncia europeia na aacuterea educacional dessa regiatildeo especialmente no Brasil onde tornou-se o cerne majoritaacuterio do ensino nos cursos de pedagogia de universidades Professores cristatildeos assim treina-dos iludidos pela ideia de que estatildeo apenas aprendendo uma ldquometodologiardquo de vanguarda absorvem pontos cruciais que contradizem a revelaccedilatildeo biacuteblica Via de regra experimentam o sentimento de que ldquoalgo estaacute erradordquo mas tecircm dificuldade em fazer uma anaacutelise depuradora mais profunda que identifique as falhas metafiacutesicas epistemoloacutegicas e teoloacutegicas do construtivismo40

Nos Estados Unidos da Ameacuterica berccedilo de tantas escolas de pensamento na aacuterea educacional o construtivismo tem feito avanccedilos significativos Jaacute em 1999 a revista especializada do campo ldquoEducational Leadershiprdquo devotou um exemplar inteiro agrave ldquosala de aula construtivistardquo no qual vaacuterios artigos relatoacute-

39 MCCALLUM Dennis The Death of Truth What is wrong with Multiculturalism the Rejection of Reason and the New Postmodern Diversity Minneapolis Bethany House 1996 p 99

40 Natildeo eacute a intenccedilatildeo neste artigo fazer uma exposiccedilatildeo e refutaccedilatildeo detalhada do construtivismo O objetivo eacute demonstrar a ligaccedilatildeo do construtivismo com o poacutes-modernismo e os conceitos teoloacutegicos precedentes Sobre o construtivismo em todos os seus aspectos o autor jaacute publicou diversos ensaios e livros aos quais direciona os leitores interessados no aprofundamento e estudo do tema PORTELA NETO F S O que estatildeo ensinando aos nossos filhos Fides Reformata V-1 (2000) p 71-96 PORTELA NETO F S Pensamentos Preliminares Direcionados a uma Pedagogia Redentiva Fides Reformata XIII-2 (2008) p 125-154 PORTELA NETO F S Resgatando o Papel do Professor na Es-cola Confessional como Transmissor de Conhecimento e da Verdade Reflexotildees e Propostas Seminais Fides Reformata XXV-1 (2020) p 63-75 PORTELA NETO F S O que estatildeo ensinando aos nossos filhos uma avaliaccedilatildeo criacutetica da pedagogia contemporacircnea apresentando a resposta da educaccedilatildeo escolar cristatilde Satildeo Joseacute dos Campos Editora Fiel 2012 PORTELA NETO F S ldquoConstrutivismo no Cenaacuterio Brasileirordquo In Fundamentos Biacuteblicos e Filosoacuteficos da Educaccedilatildeo Seacuterie Perspectivas Cristatildes da Educaccedilatildeo Satildeo Paulo ACSI Brasil 2005 PORTELA NETO F S ldquoIssues Faced by Education in the 21st Centuryrdquo Fides Reformata XXVI-1 (2021) PORTELA NETO F S Visatildeo cristatilde sobre educaccedilatildeo escolar Campina Grande PB Visatildeo Cristatilde 2015

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

44

rios e ateacute os colunistas regulares concentraram os textos em uma exposiccedilatildeo elogiosa que destacava a excelecircncia do construtivismo41

Simplificadamente o ldquoconstrutivismo postula que o conhecimento eacute algo que cresce subjetiva e individualmenterdquo ldquoNesse sentido natildeo eacute algo que deve ser ministrado ou transmitido pelo professorrdquo O mestre diferente de antiga-mente deve ser um mero ldquoagente facilitador nesse processo de crescimentordquo cognitivo42

O relacionamento entre o poacutes-modernismo e o construtivismo eacute deixado claro por Dennis McCallum analisando o posicionamento dos poacutes-modernistas quanto ao papel dos professores e agrave questatildeo da verdade

De acordo com os poacutes-modernistas os educadores satildeo facilitadores que abrigam preconceitos e satildeo co-construidores do conhecimento Se toda realidade natildeo existe ldquolaacute forardquo mas somente na mente daqueles que a percebem entatildeo ningueacutem pode reclamar para si o papel de autoridade Todas as versotildees da verdade satildeo meramente criaccedilotildees humanas Educadores ndash quer sejam professores em salas de aula pesquisadores ou autores de livros didaacuteticos ndash natildeo satildeo objetivos nem autoridades legiacutetimas Em vez disso visualizam a educaccedilatildeo partindo de suas proacuteprias perspectivas construiacutedas e cheias de preconceitos Consequentemente natildeo possuem qualquer relacionamento ldquoprivilegiadordquo com a verdade43

42 Incompatibilidades com o conceito biacuteblico da educaccedilatildeoJaacute verificamos que a teologia contemporacircnea nos vaacuterios ramos principais

aqui tratados e o poacutes-modernismo convivem em perfeita e plena harmonia Esse relacionamento eacute possibilitado pela temaacutetica desconstruccedilatildeoreconstruccedilatildeo que costura todas essas correntes de pensamento Nesse solo feacutertil um enten-dimento construtivista no campo educacional se encaixa sem dissonacircncia Mas a preocupaccedilatildeo maior eacute com a educaccedilatildeo escolar cristatilde Muitas vezes o conceito pedagoacutegico de escolas e educadores procura amparo em teologias que teimam em se utilizar de terminologia biacuteblica para destruir as proacuteprias diretrizes das Escrituras Assim terminam confundindo estas escolas e educadores pela suposta ldquocristianizaccedilatildeordquo de conceitos totalmente antagocircnicos ao que a Palavra de Deus ensina sobre a natureza humana a assimilaccedilatildeo cognitiva e a necessi-dade de firmar a praacutetica pedagoacutegica em princiacutepios e valores eternos que dela emanam Tanto pelas premissas poacutes-modernistas como pela dos construtivistas nunca teriacuteamos condiccedilatildeo de saber se a verdade objetiva existe Qualquer dado pode significar uma seacuterie de ldquoverdadesrdquo diferentes dependendo das pessoas que tomam contato com esses dados McCallum elucida ldquoUma visatildeo plena-

41 Educational Leadership 57 n 3 (novembro de 1999)42 PORTELA NETO F S O que estatildeo ensinando aos nossos filhos Fides Reformata V-1 (2000)

p 7243 MCCALLUM The Death of Truth p 99

45

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

mente construtivista e pressuposiccedilotildees metafiacutesicas estaacuteticas satildeo mutuamente excludentesrdquo44

A feacute cristatilde eacute fundamentada e o processo de ensino-aprendizagem cristatildeo deveria ser ordenado na existecircncia de acircncoras metafiacutesicas estaacuteticas Natildeo so-mente Deus eacute transcendente (estaacute aleacutem da realidade fiacutesica) e eacute imutaacutevel mas ele nos lega realidades objetivas a partir de sua pessoa Deus eacute a fonte das coisas reais ele elucida a realidade (Deus imanente) e nele natildeo haacute sombra de mudanccedilas (Tg 117 e Ml 36) A verdade eacute personificada (Jo 146) em Cristo (Deus conosco) e eacute objetivamente relatada nas Escrituras (Jo 177) A ressur-reiccedilatildeo por exemplo eacute realidade objetiva relatada por testemunhas e natildeo um reflexo subjetivo do objeto com a mente ou uma ilusatildeo criada na mente de pessoas alucinadas (1 Co 15)

Em outra faceta o processo pedagoacutegico contemporacircneo tem enaltecido o conceito da educaccedilatildeo disruptiva como ldquouma das palavras-chave do seacuteculo 21rdquo na qual toda praacutetica deve ser questionada e todo paradigma tradicional descar-tado ou desconstruiacutedo ldquorompendo com o estabelecidordquo45 A educaccedilatildeo escolar cristatilde natildeo deve ser refrataacuteria a novas metodologias mas preza e constroacutei em cima de verdades estabelecidas Ela pode reverter transitoriamente o processo mas natildeo romper com ldquoo estabelecidordquo principalmente se este ldquoestabelecidordquo forem conceitos e princiacutepios biacuteblicos A Biacuteblia aponta para a importacircncia de sermos fieacuteis ao corpo de doutrinas (ensinamentos) previamente reveladas ou seja a manutenccedilatildeo da ldquoanalogia da feacuterdquo (Rm 126)

Semelhantemente a ideia contemporacircnea da sala de aula invertida (flipped classroom)46 deve ser utilizada com cuidado por educadores e escolas cristatildes Se falamos de momentos em que os alunos satildeo levados a reverter os papeis em algumas ocasiotildees ou intermitentemente vemos paralelo com as diretrizes de Jesus aos disciacutepulos para que fossem de dois em dois a colocar em praacutetica o que estavam aprendendo (Mc 67) Ou no caso da mulher samaritana que tendo sido ensinada (Jo 47-26) passa a ensinar (Jo 439) No entanto essa metodologia educacional poacutes-moderna postula mais uma vez a desconstru-ccedilatildeo completa das praacuteticas de ensino pois o momento do encontro presencial contempla tatildeo somente discussatildeo dos assuntos reduzindo o papel do professor a um dos pares na classe

44 Ibid45 Publicaccedilatildeo Institucional do Grupo Espanhol Iberdrola sem designaccedilatildeo de autor ldquoUma educaccedilatildeo

disruptiva para enfrentar os desafios do futurordquo Disponiacutevel em httpswwwiberdrolacomtalentoseducacao-disruptiva Acesso em 6 maio 2021

46 Meacutetodo de ensino atraveacutes do qual a loacutegica da organizaccedilatildeo de uma sala de aula eacute invertida por completo Ver CARVALHO Rafael ldquoComo funciona a sala de aula invertidardquo 18 de maio de 2018 Disponiacutevel em httpswwwedoolscomsala-de-aula-invertida Acesso em 6 maio 2021

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

46

CONCLUSAtildeOO pensamento e a teologia poacutes-moderna quando acoplados ao constru-

tivismo na esfera educacional com essa forccedila demolidora de desconstruccedilatildeoreconstruccedilatildeo e uma negaccedilatildeo latente da possibilidade de aquisiccedilatildeo do conhe-cimento do real contrasta com a cosmovisatildeo cristatilde seus princiacutepios e valores extraiacutedos da Biacuteblia Como cristatildeos natildeo devemos temer revisotildees de comporta-mentos procedimentos ou processos desde que as mudanccedilas sejam efetivadas de acordo com padrotildees esquecidos ou negligenciados Na realidade nessas situaccedilotildees devemos ateacute liderar as ldquodesconstruccedilotildeesrdquo A Reforma do Seacuteculo 16 fez exatamente isso Devemos estar sempre alerta para desconstruccedilotildees e recons-truccedilotildees que sejam um fim em si mesmas descartando a sabedoria do passado e os princiacutepios da Palavra de Deus A teologia da Reforma com sua ecircnfase nas Escrituras Sagradas como uacutenica fonte autoritativa e inerrante de conhecimento religioso metafiacutesico e epistemoloacutegico deve se posicionar no centro de todos os esforccedilos intelectuais e pedagoacutegicos de cristatildeos comprometidos com a verdade

ABSTRACTThis article traces the theological development of the 20th century dividing

it into two parts the first half showing the transition from consolidated 19th century liberalism to moderncontemporary theology and the second half the road paved to postmodern theology The author demonstrates that the underlying theme of deconstruction and reconstruction of major tenets with an increasing departure from biblical directives is always present in moderncontemporary theology This is shown especially in five schools of theological thought Theology of Hope Liberation Theology Feminist Theology Process Theology and New Age Theology All these share the postmodern thought and belittle the Bible as the inerrant Word of God At the same time they provide feedback to Postmodern Theology raising doubts about biblical and traditional eternal principles and values Trends that appear in these theological schools of thought are similar to those being experienced in the field of education some of which have profound impact on the Christian teaching-learning pro-cess With its subjective approach to reality postmodernism has subverted key pedagogical concepts has undermined the role of the teacher and has submerged schools in a crisis of authority An appeal is made to have a solid biblical foundation for any philosophy of Christian school education which should be grounded in sound theology

KEYWORDSChristian education Constructivism Contemporary theology Decon-

struction and reconstruction Piaget Postmodernism Postmodern theology Theological liberalism

47

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

ldquoCOR MEUM TIBI OFFERO DOMINE PROMPTE ET SINCERErdquo UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO

SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADAHeber Carlos de Campos Juacutenior

RESUMOEste artigo apresenta a espiritualidade reformada como uma aacuterea ainda

desconhecida em meios populares e acadecircmicos e carente de ser redescoberta O conceito de que essa natildeo eacute uma aacuterea forte entre os reformados somado aos referenciais vagos sobre praacuteticas devocionais tecircm levado muitos a procurar espiritualidades alternativas No intuito de resgatar o aspecto piedoso e de-vocional da tradiccedilatildeo reformada este artigo intenta apresentar uma introduccedilatildeo agrave teologia praacutetica de personagens como Joatildeo Calvino os puritanos ingleses o movimento reformado holandecircs Nadere Reformatie e Jonathan Edwards aleacutem de representantes contemporacircneos da piedade reformada Num segundo momento o artigo apresenta alguns distintivos dessa espiritualidade e conclui apresentando a necessidade de resgatar essa histoacuteria para o movimento refor-mado brasileiro

PALAVRAS-CHAVEEspiritualidade Teologia reformada Joatildeo Calvino Puritanos Nadere

Reformatie Jonathan Edwards

Doutor em Teologia Histoacuterica (PhD Calvin Theological Seminary) Mestre em Teologia His-toacuterica (ThM Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper) professor de Teologia Histoacuterica no CPAJ e de Teologia Sistemaacutetica no Seminaacuterio Rev Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

48

INTRODUCcedilAtildeO PROCURA-SE UMA ESPIRITUALIDADE REFORMADAEspiritualidade eacute uma palavra relativamente recente no vocabulaacuterio

teoloacutegico protestante O estudioso do assunto James Houston1 observou na deacutecada de 1980 que o interesse dos evangeacutelicos pela espiritualidade era novo e o termo ateacute entatildeo natildeo aparecia em dicionaacuterios biacuteblicos ou teoloacutegicos2 Isso natildeo significa que o assunto fosse novo pois no passado eram mais utilizados termos como ldquopiedaderdquo ldquodevoccedilatildeordquo ldquosantidaderdquo ldquoandar com Deusrdquo Ateacute poucas deacutecadas atraacutes espiritualidade era um termo mais associado ao ascetismo de religiosidades orientais ou ao misticismo do monasticismo medieval Alister McGrath observa que o termo moderno ldquoespiritualidaderdquo nasce no contexto catoacutelico do seacuteculo 17 mas recentemente ldquotem recebido grande aceitaccedilatildeo como a maneira preferida de referir-se aos aspectos da praacutetica devocional de uma religiatildeo especificamente as experiecircncias individuais interiores dos cristatildeosrdquo em oposiccedilatildeo agrave religiatildeo meramente intelectual e acadecircmica3

Definir o conceito de espiritualidade eacute desafiador por ser muito abran-gente (o todo da vida cristatilde)4 e por depender dos referenciais teoloacutegicos de cada um A verdade eacute que espiritualidade eacute um guarda-chuva muito amplo com direito a definiccedilotildees vagas ou perigosamente plurais Houston define espiritua-lidade como ldquoo estado de relacionamento profundo com Deusrdquo5 e McGrath define espiritualidade cristatilde como a ldquobusca de uma vida religiosa autecircntica e satisfatoacuteriardquo6 expressotildees que natildeo oferecem paracircmetros claros para a experiecircn-cia de vida cristatilde No entanto o proacuteprio McGrath mostra que a teologia do seacuteculo 20 dissociou o estudo teoloacutegico da espiritualidade criando uma cisatildeo natildeo saudaacutevel entre o conteuacutedo objetivo da feacute e o ato subjetivo da confianccedila7

A verdade eacute que essa dicotomia entre teologia e espiritualidade tem preju-dicado conceituar o que seria uma espiritualidade reformada Afinal ldquoreforma-dordquo tem sido compreendido como sinocircnimo de ldquolinha teoloacutegicardquo natildeo de praacutetica

1 James Houston membro da Sociedade dos Irmatildeos (Plymouth Brethren) sempre se interessou por educaccedilatildeo teoloacutegica voltada para a formaccedilatildeo espiritual dos evangeacutelicos e por isso fundou o Regent College com esse interesse em resgatar a espiritualidade cristatilde ao longo dos seacuteculos MCGRATH Alister J I Packer A Biography Grand Rapids Baker 1997 p 223-231

2 HOUSTON James M ldquoEspiritualidaderdquo In ELWELL Walter A (Org) Enciclopeacutedia Histoacuterico--Teoloacutegica da Igreja Cristatilde Trad Gordon Chown Satildeo Paulo Vida Nova 1992 vol 2 p 60

3 MCGRATH Alister E Uma introduccedilatildeo agrave espiritualidade cristatilde Trad William Lane Satildeo Paulo Vida 2008 p 21 25

4 Para um resumo das complexidades dessa definiccedilatildeo ver a discussatildeo do catoacutelico SHELDRAKE Philip Spirituality A Brief History 2ordf ed Malden MA Wiley-Blackwell 2013 p 3-9

5 HOUSTON ldquoEspiritualidaderdquo p 606 MCGRATH Uma introduccedilatildeo agrave espiritualidade cristatilde p 207 Ibid p 60-62

49

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

cristatilde Popularmente reformado eacute sinocircnimo de ldquocabeccedila granderdquo e ldquocoraccedilatildeo friordquo com pouca ecircnfase em avivamento8 Curiosamente vaacuterios evangeacutelicos simpaacuteticos agrave teologia reformada talvez conseguissem enumerar particularidades da ldquoespiritualidade catoacutelicardquo ou da ldquoespiritualidade pentecostalrdquo mas teriam dificuldade em arrolar os distintivos de uma ldquoespiritualidade reformadardquo Se essa constataccedilatildeo estaacute correta deve-se concluir que essa espiritualidade ou eacute inexistente enquanto tradiccedilatildeo (isto eacute apenas presente em alguns poucos indiviacuteduos) ou eacute desconhecida do puacuteblico

Philip Ryken discordaria de que ela seja inexistente pois ele define o cal-vinista verdadeiro como algueacutem cuja espiritualidade consiste em ter uma mente centrada em Deus um espiacuterito penitente um coraccedilatildeo grato uma vontade sub-missa ao Todo-Poderoso uma vida santa e um propoacutesito de glorificar o Senhor9 Essa eacute a sua tentativa de enumerar as caracteriacutesticas de uma espiritualidade reformada em resposta agravequeles que tem uma visatildeo quanto aos reformados de intransigecircncia em sua militacircncia teoloacutegica Eacute verdade que uma descoberta do calvinismo que se torna beacutelica e quase que exclusivamente cognitiva (ortodoxia sem devoccedilatildeo) natildeo tem ajudado pelo contraacuterio parece reforccedilar a imagem de que o calvinista natildeo eacute piedoso Todavia mesmo para os que discordam dessa visatildeo popular natildeo satildeo muitos que conseguiriam enumerar uma boa histoacuteria resumida da teologia praacutetica entre os reformados

Mesmo o meio acadecircmico natildeo tem facilidade em identificar quais seriam os contornos de uma espiritualidade reformada Supreendentemente por vezes ateacute questiona se de fato existe uma espiritualidade distinta dos reformados O acadecircmico presbiteriano Hughes Oliphant Old numa palestra proferida no iniacutecio da deacutecada de 199010 disse que muitos se surpreenderam quando uma grande coletacircnea sobre os claacutessicos da espiritualidade ocidental quase natildeo incluiu protestantes e os que foram colocados nem representavam bem a es-piritualidade protestante (por exemplo Jacob Boehme os Quakers William Law etc) Ele lamentou que essa lista natildeo tivesse incluiacutedo os salmos metrifi-cados de Clement Marot e Teodoro Beza as cartas de Joatildeo Calvino e Samuel Rutherford a Fiel Narrativa de Jonathan Edwards o diaacuterio de David Brainerd o comentaacuterio devocional de Matthew Henry e os escritos de Richard Baxter dentre outros claacutessicos reformados Isso levou muitos a perguntarem se de

8 Kenneth Stewart comprova que esse preconceito eacute um dos vaacuterios mitos entre os reformados jaacute que haacute uma longa lista de envolvimento de reformados com avivamentos Cf STEWART Kenneth Ten Myths about Calvinism Recovering the Breadth of the Reformed Tradition Downers Grove IL InterVarsity 2011 p 99-120

9 RYKEN Philip Graham ldquoO que eacute um calvinista de verdaderdquo In LUCAS Sean Michael et al (Orgs) Seacuterie Feacute Reformada Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2015 vol 1 p 10-29

10 OLD Hughes Oliphant ldquoWhat is Reformed Spirituality Played Over Again Lightlyrdquo In LEITH J H (Org) Calvin Studies VII John Calvin Studies Davidson NC 1994 p 61-68

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

50

fato existe tal coisa como uma ldquoespiritualidade reformadardquo11 Essa ausecircncia de uma histoacuteria bem contada sobre a piedade reformada levou a um conceito popular negativo sobre o calvinismo

Por conta desse vaacutecuo histoacuterico surgiu ateacute entre pessoas que pertencem a igrejas reformadas uma busca por espiritualidades alternativas Tem havido um movimento de resgate do que eacute antigo como se a modernidade tivesse sufocado a vida piedosa12 O prefaciador brasileiro da obra de Alister McGrath sobre espiritualidade escreve ldquoEacute tempo de deixarmos as teacutecnicas de marke-ting e administraccedilatildeo e voltarmo-nos ao testemunho dos santos e profetas que habitaram o deserto e os mosteiros especialmente entre os seacuteculos VI e XV e conhecer o Deus que estaacute mais interessado em nossos afetos do que em nossos feitos mais atento ao nosso caraacuteter do que aos nossos discursosrdquo13 Kenneth Stewart narra que existe uma onda de livros evangeacutelicos norte-americanos apontando para o monasticismo como o ideal de espiritualidade a ser resga-tado pelos evangeacutelicos No entanto ele mesmo avalia que tem havido uma apropriaccedilatildeo de praacuteticas contemplativas sem discernimento teoloacutegico14 Esse tipo de espiritualidade alternativa por vezes estaacute unido a interesses por certas doutrinas reformadas criando um pluralismo eclesiaacutestico bem diversificado em nossos dias

Essa apropriaccedilatildeo evangeacutelica miacutestica do legado romanista parece nova mas tem elementos bem antigos Michael Horton observa como a valorizaccedilatildeo do interior sobre o exterior do espiacuterito antes que a instituiccedilatildeo eacute tatildeo antigo quanto o gnosticismo cujas pressuposiccedilotildees platocircnicas natildeo foram todas rejeitadas pela igreja15 Na Idade Meacutedia o dualismo interior-exterior levou a vaacuterios movimen-tos miacutesticos de desprezo da igreja institucionalizada (pregaccedilatildeo sacramentos disciplina) em favor de disciplinas espirituais privadas Isso foi apropriado natildeo soacute por movimentos religiosos como os anabatistas entusiastas (ldquoDeus dentrordquo) mas ateacute de modo ainda mais influente nas filosofias iluministas ldquoSeja conce-bida em termos da razatildeo interior (Descartes) lsquoda lei moral interiorrsquo (Kant) ou do lsquosentimento piedosorsquo (Schleiermacher) a modernidade fez ouvidos moucos

11 OLD ldquoWhat is Reformed Spiritualityrdquo p 6112 Robert Webber foi um dos que defenderam a necessidade de um resgate da tradiccedilatildeo para promo-

ver uma mistura de antigo e poacutes-moderno em vaacuterias aacutereas da teologia inclusive na espiritualidade Cf WEBBER Robert Ancient-Future Faith Rethinking Evangelicalism for a Postmodern World Grand Rapids Baker 1999 p 117-138

13 Osmar Ludovico da Silva ldquoPrefaacutecio agrave ediccedilatildeo brasileirardquo In MCGRATH Uma introduccedilatildeo agrave espiritualidade cristatilde p 12

14 STEWART Kenneth J In Search of Ancient Roots The Christian Path and the Evangelical Identity Crisis Downers Grove IL InterVarsity 2017 p 173-186

15 HORTON Michael A Grande Comissatildeo O resgate da estrateacutegia divina para o discipulado Trad Odayr Olivetti Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2014 p 287

51

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

para toda e qualquer autoridade externardquo16 Isso se vecirc entre evangeacutelicos como o quaker Richard Foster o qual natildeo inclui nas disciplinas espirituais os meios de graccedila (pregaccedilatildeo e sacramentos) ordenados por Cristo enquanto trata como essenciais meacutetodos para a piedade pessoal que natildeo satildeo ordenados na Escritura (por exemplo simplicidade e celebraccedilatildeo)17 Se conectarmos o misticismo antigo com representantes atuais da espiritualidade individualista podemos concluir que o movimento emergente e o de desigrejados natildeo eacute nada poacutes-moderno mas totalmente moderno

A dicotomia entre teologia e espiritualidade explica a falta de criteacuterio com o qual muitos tem se apropriado de outras espiritualidades Richard Foster eacute um dos grandes mentores de espiritualidade no mundo evangeacutelico atual Ele eacute um exemplo dessa apropriaccedilatildeo indiscriminada da tradiccedilatildeo quando funda uma instituiccedilatildeo (Renovare) cujo objetivo eacute ldquouma visatildeo integral da espiritualidade cristatilderdquo O que se entende por ldquointegralrdquo eacute uma amaacutelgama de seis tradiccedilotildees de espiritualidade (contemplativa de santidade carismaacutetica de justiccedila social evangelical sacramental) num mesmo pacote uacutetil para fomentar a espiritua-lidade do cristatildeo18 Quando se tem esse tipo de referencial vago e plural fica mesmo difiacutecil conhecer o que seria uma espiritualidade reformada

Outro evangeacutelico que enfatiza o interior em detrimento do institucio-nal eacute Dallas Willard que diminui o ldquoevangelho do perdatildeordquo em prol de uma ldquotransformaccedilatildeo interior da almardquo e parafraseia a Grande Comissatildeo de Mateus 28 substituindo os meios de graccedila (Palavra e sacramento) por nossas ativida-des19 Numa entrevista ao perioacutedico Modern Reformation Willard enfatizou disciplinas espirituais como ldquosolitude e silecircnciordquo e uma ecircnfase muito maior na vida cristatilde individual do que coletiva e terminou o texto menosprezando a importacircncia dos meios de graccedila como a pregaccedilatildeo e os sacramentos20 Esse tipo de espiritualidade comum entre evangeacutelicos tem que nos preocupar em tempos atuais quando a igreja tem perdido referenciais fiacutesicos e congregacionais onde uma visatildeo virtual e passiva de culto tem proliferado

Diante desse cenaacuterio evangeacutelico pode-se deduzir erroneamente que natildeo tem havido vozes procurando ensinar acerca de espiritualidade a partir da tra-diccedilatildeo reformada Na verdade existe um esforccedilo contemporacircneo para resgatar

16 HORTON A Grande Comissatildeo p 28917 Ibid p 29018 FOSTER Richard Celebraccedilatildeo da disciplina o caminho do crescimento espiritual 2ordf ed Satildeo

Paulo Vida 2007 p 303-304 Cf FOSTER Richard J e GRIFFIN Emilie Celebrando as 12 disciplinas espirituais textos claacutessicos sobre as disciplinas interiores exteriores e comunitaacuterias Trad Elizabeth Gomes Satildeo Paulo Vida 2010

19 HORTON A Grande Comissatildeo p 290-29120 ldquoSpiritual Disciplines and Means of Grace Contrast or Continuum QampA with Dallas Willardrdquo

Modern Reformation vol 22 n 4 (jul-ago 2013) p 23-25

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

52

uma identidade reformada de piedade por parte de autores de teologia histoacuterica e praacutetica tanto do meio acadecircmico como pastores e pensadores com uma lente reformada Alguns deles se especializaram em escritos de formaccedilatildeo espiritual e devoccedilatildeo como Jerry Bridges21 Donald Whitney22 e Tom Schwanda23 Aleacutem destes podemos mencionar teoacutelogos que natildeo satildeo conhecidos por essa aacuterea da teologia mas que tem exercido enorme influecircncia sobre a percepccedilatildeo reformada de espiritualidade como eacute o caso de Francis Schaeffer24 John Piper25 Michael Haykin26 e Joel Beeke27 Eacute certo que outros nomes poderiam ser citados poreacutem estes satildeo suficientes para ilustrar a tentativa de resgate de parte da tradiccedilatildeo reformada ainda relativamente desconhecida

Ainda que jaacute tenhamos alguma literatura em portuguecircs a espiritualidade reformada parece ser uma descoberta que ainda precisa ser feita em nosso paiacutes O crescimento do interesse pela teologia reformada natildeo tem sido ampla-mente marcado pela descoberta de sua espiritualidade Como este eacute um artigo histoacuterico-teoloacutegico seu intento eacute fazer um resgate introdutoacuterio desse legado e mostrar que a espiritualidade reformada existe desde as origens do movimen-to Na primeira parte do artigo seratildeo apresentados alguns representantes da tradiccedilatildeo em seu interesse por promover devoccedilatildeo de forma solidamente teoloacute-gica Na segunda parte seratildeo destacadas algumas caracteriacutesticas tipicamente reformadas a fim de se concluir que sua espiritualidade eacute de fato resultado de sua visatildeo teoloacutegica

21 Jerry Bridges (1929-2016) sempre esteve associado a uma entidade paraeclesiaacutestica (Naviga-tors) poreacutem suas ecircnfases teoloacutegicas mais marcantes foram obras da tradiccedilatildeo reformada das quais vaacuterias jaacute foram traduzidas para o portuguecircs Para um resumo de suas origens e seu legado ver httpswwwthegospelcoalitionorgblogsjustin-taylorjerry-bridges-1929-2016 Acesso em 4 jun 2021

22 Cf WHITNEY Donald Disciplinas espirituais para a vida cristatilde Satildeo Paulo Batista Regular 2009 Para mais recursos de Don Whitney ver httpsbiblicalspiritualityorg Acesso em 4 jun 2021

23 Cf SCHWANDA Tom Soul Recreation The Contemplative-Mystical Piety of Puritanism Eugene OR Wipf amp Stock 2012

24 Cf SCHAEFFER Francis A Verdadeira espiritualidade 2ordf ed Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2018 EDGAR William Francis Schaeffer e a vida cristatilde a espiritualidade contracultural Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2018

25 John Piper eacute muito conhecido do puacuteblico brasileiro e natildeo se faz necessaacuterio mencionar os vaacuterios livros de sua autoria que jaacute foram traduzidos para o portuguecircs Todavia o destaque ao seu nome se daacute pelo fato de sua principal ecircnfase sempre girar em torno da vida cristatilde da piedade e do seu interesse por tantos personagens histoacutericos que marcaram a tradiccedilatildeo reformada especialmente Jonathan Edwards

26 Michael Haykin natildeo soacute eacute estudioso da patriacutestica e da histoacuteria da ala batista reformada mas tem escrito livros que mostram o lado devocional e praacutetico da espiritualidade reformada Cf HAYKIN Michael The God Who Draws Near An Introduction to Biblical Spirituality Webster NY Evangelical Press 2007 8 mulheres de feacute Satildeo Joseacute dos Campos Fiel 2017

27 BEEKE Joel Espiritualidade reformada uma teologia praacutetica para a devoccedilatildeo a Deus Trad Valter Graciano Martins Satildeo Joseacute dos Campos Fiel 2014 BEEKE Joel R e PEDERSON Randall J Paixatildeo pela pureza Satildeo Paulo PES 2011

53

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

1 REPRESENTANTES HISTOacuteRICOS DE UMA ESPIRITUALIDADE REFORMADA

Hughes Oliphant Old afirma que a Reforma do seacuteculo 16 reformou a es-piritualidade assim como o fez com a teologia Se por seacuteculos a espiritualidade havia sido enclausurada atraacutes das paredes dos mosteiros separada da sujeira das atividades cotidianas deste mundo a espiritualidade protestante articulou a vida cristatilde ldquocom a famiacutelia laacute fora nos campos na oficina na cozinha ou no comeacuterciordquo28 De fato essa eacute a santificaccedilatildeo da vida comum (cf Ef 518-69) Em contraste com o monasticismo medieval a piedade reformada entendia a reclusatildeo e meditaccedilatildeo moderaccedilatildeo e preocupaccedilatildeo com a eternidade mas seu ascetismo era apenas espiritual29 Arie de Reuver diz que enquanto o monas-ticismo fugia do mundo com janelas fechadas para uma espiritualidade de solidatildeo os reformados abriram suas janelas para o barulho da rua para uma espiritualidade de solidariedade30 Alguns exemplos da histoacuteria reformada se-ratildeo vistos de forma panoracircmica nesta seccedilatildeo alguns mais conhecidos e outros menos conhecidos apenas com o intuito de mostrar que essa tradiccedilatildeo tem uma longa histoacuteria de piedade

A pesquisa de autores apresentados no paraacutegrafo anterior revela que os representantes histoacutericos da espiritualidade reformada seratildeo apresentados na maneira como interagem com o restante da tradiccedilatildeo Isto eacute ao inveacutes de apre-sentar apenas a piedade desses teoacutelogos num vaacutecuo histoacuterico haveraacute maior preocupaccedilatildeo em destacar como eles lidaram com a devoccedilatildeo cristatilde ao seu redor e como se apropriaram da tradiccedilatildeo cristatilde de piedade de forma criteriosa segundo o filtro de suas convicccedilotildees teoloacutegicas Tal ecircnfase demonstraraacute primeiramente a catolicidade de nossa feacute e praacutetica provando que os reformados natildeo soacute liam os gigantes da patriacutestica e do medievo mas se apropriavam de vaacuterios aspectos dessas expressotildees histoacutericas do cristianismo Os reformados se apropriaram natildeo soacute da teologia de gigantes como Agostinho mas inclusive da espiritualidade de autores como Bernardo de Claraval e Tomaacutes agrave Kempis os dois pietistas medievais mais citados entre os reformados holandeses31 Em complemento agrave catolicidade da espiritualidade a ecircnfase desta seccedilatildeo mostraraacute em segundo lugar que a apropriaccedilatildeo da tradiccedilatildeo foi cautelosa e condizente com a feacute reformada Este eacute possivelmente o ponto mais importante desta seccedilatildeo

Arie de Reuver resume a diferenccedila entre o misticismo medieval e a espiri-tualidade dos reformadores agrave medida que interagiram com essa teologia miacutestica

28 OLD ldquoWhat is Reformed Spiritualityrdquo p 6129 DE REUVER Arie Sweet Communion Trajectories of Spirituality from the Middle Ages

through the Further Reformation Grand Rapids Baker 2007 p 10130 Ibid31 Cf DE REUVER Sweet Communion

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

54

A rejeiccedilatildeo do misticismo pelos reformadores envolveu somente certa forma dele Essa forma incluiacutea em primeiro lugar um misticismo que funcionava como uma uniatildeo experimental na qual a fronteira entre Deus e a humanidade era obliterada Ela incluiacutea em segundo lugar um misticismo que era prezado e praticado como uma condiccedilatildeo preacutevia meritoacuteria para a salvaccedilatildeo que ignorava a graccedila Ela incluiacutea em terceiro lugar um misticismo restrito a observacircncias monaacutesticas Em quarto lugar ela envolvia um misticismo que frustrava o equi-liacutebrio entre feacute e amor prejudicando a feacute32

Esses quatro pontos levantados na citaccedilatildeo acima ajudam a delimitar o que da espiritualidade medieval foi aceito pelos reformadores e o que foi descartado Eacute especialmente importante destacar o quarto e uacuteltimo ponto pois revela mais imitatio Christi do que unio Christi entre os miacutesticos medievais Os reformado-res iratildeo lutar por esse equiliacutebrio entre feacute e amor perdido na teologia medieval

O mesmo tipo de filtro da tradiccedilatildeo aparece na forma como os reformados holandeses Willem Teellinck (1579-1629) e Wilhelmus agrave Brakel (1635-1711) interagiram com o miacutestico medieval Tomaacutes agrave Kempis (c 1379-1471) Teellinck tem apreccedilo pela obra de Kempis A Imitaccedilatildeo de Cristo e a cita vaacuterias vezes em seus escritos embora reconheccedila imperfeiccedilotildees em sua espiritualidade Teellinck procura transpor a forma e o sabor de boa parte da literatura devocional preacute--Reforma para um contexto reformado Afinal muitas dessas obras contecircm trecircs erros a ilusatildeo da perfeiccedilatildeo justificaccedilatildeo em conjunto com as boas obras e desvalorizaccedilatildeo da Escritura33 Brakel tambeacutem considera A Imitaccedilatildeo de Cristo de Kempis um excelente tratado mas observa como Kempis teve pouco a dizer ldquosobre o Senhor Jesus como o resgate e a justiccedila dos pecadores ndash sobre como ele por uma feacute verdadeira deve ser usado para a justificaccedilatildeo e aproximaccedilatildeo de Deus praticando a verdadeira santidade como algo originado nele e em nossa uniatildeo com elerdquo34 O que o reformado Brakel quer dizer eacute que o escritor medieval apresentou alguns oacutetimos aspectos de vida cristatilde mas sem o funda-mento objetivo dessa espiritualidade isto eacute ele observa que haacute uma proposta de discipulado (inclui carregar a cruz humildade autoexame meditaccedilatildeo etc) sem estar calcado na obra objetiva de Cristo Nas palavras do estudioso Arie de Reuver o Cristo que eacute nosso substituto ficou na sombra do Cristo que nos chama a segui-lo35 Essa preocupaccedilatildeo eacute semelhante agrave de Michael Horton quando diz que o evangelicalismo moderno tem se preocupado mais com o que Cristo faria numa determinada situaccedilatildeo (ldquoEm seus passos o que faria Jesusrdquo) ao inveacutes do que Cristo fez por vocecirc isto eacute mais lei do que evangelho (espiritualidade

32 Ibid p 2233 Ibid p 112-11334 BRAKEL Wilhelmus agrave The Christianrsquos Reasonable Service Grand Rapids Reformation

Heritage Books 1992 vol 2 p 64135 DE REUVER Sweet Communion p 99

55

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

moralista)36 Esse eacute o tipo de discernimento do qual tanto carecem os evangeacute-licos que se simpatizam com aspectos da tradiccedilatildeo reformada

Tendo feito um panorama da forma como o movimento reformado lidou com a tradiccedilatildeo cristatilde de vida devocional veremos agora alguns representantes histoacutericos do movimento

11 Joatildeo CalvinoA frase latina que daacute tiacutetulo a este artigo (que pode ser traduzida por ldquoMeu

coraccedilatildeo te ofereccedilo Senhor de modo pronto e sincerordquo) eacute encontrada em selos de Genebra logo apoacutes a morte de Calvino e por vezes eacute atribuiacuteda a ele37 Independentemente da fonte exata da frase ela expressa a espiritualidade de um homem que se destaca por sua teologia doutrinaacuteria Eacute preciso resgatar a espiritualidade de quem eacute frequentemente considerado gigante apenas em sua teologia

Muito jaacute foi escrito sobre a espiritualidade de Joatildeo Calvino38 poreacutem alguns traccedilos gerais seratildeo suficientes para demonstrar a riqueza desse reformador no toacutepico da pietas (piedade) a palavra mais utilizada por ele para se referir ao nosso tema O contexto do monasticismo medieval e a resposta de Calvino seratildeo apresentados em primeiro lugar para depois realccedilar o trecho das Insti-tutas mais conhecido por sua ecircnfase em diferentes aspectos da devoccedilatildeo cristatilde

David Steinmetz39 analisa a criacutetica que Calvino faz da instituiccedilatildeo e da ideologia do monasticismo e a situa no contexto medieval de debates sobre o

36 Cf HORTON Michael Cristianismo sem Cristo o evangelho alternativo da igreja atual Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2010

37 Os selos utilizados por Calvino tinham a figura de matildeos segurando um coraccedilatildeo mas sem estarem acompanhados de palavras Para uma breve histoacuteria do selo de Calvino ver o artigo de Barbara Carvill ldquoThe Calvin Sealrdquo em httpscalvineduabouthistorycalvin-sealhtml Acesso em 4 jun 2021 Todavia temos uma frase parecida de Calvino numa carta que escreveu a Guilherme Farel quando relutantemente cedeu ao pedido do amigo para que retornasse a Genebra em 1541 ldquoOfereccedilo meu coraccedilatildeo apresentado como sacrifiacutecio ao Senhorrdquo CALVINO Joatildeo ldquoPara William Farelrdquo In Cartas de Joatildeo Calvino Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2009 p 49

38 Apenas a tiacutetulo de introduccedilatildeo bibliograacutefica ver as seguintes obras RICHARD Lucien Joseph The Spirituality of John Calvin Atlanta John Knox Press 1974 SIMPSON Henry William ldquoPietas in the Institutes of Calvinrdquo In VAN DER WALT Barend Johannes (Org) Our Reformational Tradition A Rich Heritage and Lasting Vocation Potchefstroom Potchefstroom University for Christian Higher Education 1984 p 179-191 BOWSMA William J ldquoThe Spirituality of John Calvinrdquo In RAITT Jill (Org) Christian Spirituality High Middles Ages and Reformation New York Crossroad 1987 p 318-333 GAMBLE Richard C ldquoCalvin and Sixteenth-Century Spirituality Comparison with the Anabaptistsrdquo Calvin Theological Journal vol 31 n 2 (1996) p 335-358 GLEASON Randall C John Calvin and John Owen on Mortification a comparative study on reformed spirituality New York Peter Lang 1995 BEEKE Espiritualidade reformada p 23-60 HORTON Michael Calvino e a vida cristatilde para glorificar a Deus e alegrar-se nele para sempre Trad Jader Santos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2017

39 STEINMETZ David C ldquoCalvin and the Monastic Idealrdquo In STEINMETZ David C Calvin in Context 2 ed Oxford Oxford University Press 2010 p 185-196

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

56

status da vida religiosa Tomaacutes de Aquino (1225-1274) enxerga os monges em um estado de perfeiccedilatildeo pois eles natildeo soacute cumprem os mandamentos biacuteblicos (obrigaccedilatildeo de todo cristatildeo) mas tambeacutem os conselhos evangeacutelicos (celibato e voto de pobreza) Portanto aqueles que fazem parte das ordens mendicantes estatildeo em vantagem na busca da santidade pois suas obras tecircm maior valor meritoacuterio Depois de sintetizar as criacuteticas medievais ao movimento monaacutestico por parte de Jean Gerson (1363-1429) e Johann Pupper von Goch (1400-1475) Steinmetz resume a criacutetica de Calvino de que o movimento eacute cismaacutetico pois cria uma dicotomia entre os monges e o resto da igreja quando de fato Cristo estabeleceu uma regra de vida com mandamentos e conselhos para todos os cristatildeos Calvino tambeacutem confronta o celibato como uma lei para todo cleacuteri-go concluindo que o voto monaacutestico pode ser dissolvido pois Deus natildeo nos prende a votos iliacutecitos40 Acima de tudo Calvino advogava a unidade cristatilde e o estado de perfeiccedilatildeo como sendo o estado de todo cristatildeo41

Eacute lamentaacutevel que as Institutas tenham ganhado um caraacuteter mais dogmaacutetico na histoacuteria e tenham sido negligenciadas como um livro catequeacutetico e portanto para a vida cristatilde comum Nela Calvino considera a piedade como a ldquoreverecircncia unida ao amor por Deusrdquo induzida pelo ldquoconhecimento de seus benefiacuteciosrdquo42 A raiz dessa piedade eacute a uniatildeo miacutestica com Cristo uma doutrina que permeia as suas obras e que permite que tenhamos ldquocomunhatildeordquo com Cristo e ldquopartici-paccedilatildeordquo nos seus benefiacutecios43 A doutrina da justificaccedilatildeo eacute o solo de onde brota a piedade e a santificaccedilatildeo eacute o contiacutenuo remodelar do Espiacuterito consagrando-nos a Deus Joel Beeke destaca as dimensotildees eclesioloacutegicas da piedade de Calvino quando fala da igreja da palavra dos sacramentos e do salteacuterio44 Quanto agraves dimensotildees praacuteticas de sua piedade Beeke destaca a importacircncia da oraccedilatildeo (o segundo capiacutetulo mais longo das Institutas) depois aborda o arrependimento e entatildeo dedica o restante do tempo agraves Institutas III6-1045

Esse trecho das Institutas eacute tatildeo significativo que desde 1550 ele foi pu-blicado separadamente vaacuterias vezes sob o tiacutetulo O Livreto Dourado da Vida Cristatilde uma espeacutecie de resumo da piedade calvinista Nesse trecho Calvino fala de abnegaccedilatildeo carregar a cruz e frugalidade na vida presente por ter em mente a vida futura Calvino introduz essa seccedilatildeo das Institutas dizendo que o seu propoacutesito eacute mostrar ao homem de Deus como ele pode direcionar a sua trajetoacuteria para uma vida ordeira e apresentar brevemente algumas regras para

40 STEINMETZ ldquoCalvin and the Monastic Idealrdquo p 192-19341 Cf CALVIN John The Institutes of the Christian Religion Philadelphia The Westminster

Press 1960 IVxiii42 CALVIN Institutes of the Christian Religion Iii143 BEEKE Espiritualidade reformada p 27-2944 Ibid p 33-4845 Ibid p 48-56

57

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

determinar as suas tarefas46 Essa instruccedilatildeo apresenta uma eacutetica que envolve tanto virtudes como regras pois fala do amor pela justiccedila que eacute infundido em nossos coraccedilotildees mas tambeacutem de uma regra que natildeo nos deixa desviar em nosso zelo pela justiccedila47 No capiacutetulo sobre abnegaccedilatildeo Calvino assevera que natildeo somos nossos mas vivemos e morremos para a gloacuteria de Deus48 explica o conceito de autonegaccedilatildeo conforme Tito 249 e a apresenta nas relaccedilotildees com o proacuteximo (marcadas por humildade espiacuterito de serviccedilo e amor sincero)50 e na relaccedilatildeo com Deus51 No capiacutetulo sobre carregar a cruz Calvino demonstra que a nossa cruz nutre esperanccedila nos treina em paciecircncia e obediecircncia e trata medicinalmente de nossa carne rebelde52 ao mesmo tempo que discorre sobre como suportar o sofrimento em distinccedilatildeo do espiacuterito estoico53 No capiacutetulo 9 do livro 3 Calvino fala de como a vida presente eacute motivo de gratidatildeo na medida que experimentamos a doccedilura da generosidade divina e almejamos sua plena revelaccedilatildeo54 Calvino ensina a desejar deixar esta vida somente na medida em que ela nos prende ao pecado e reprende severamente aqueles que se deixam vencer pelo medo da morte55 No uacuteltimo capiacutetulo dessa seccedilatildeo Calvino ensina como viver esta vida piedosamente atraveacutes do uso adequado das daacutedivas divi-nas do princiacutepio da frugalidade e da vocaccedilatildeo que Deus concedeu a cada um56

46 CALVIN Institutes of the Christian Religion IIIvi147 Ibid IIIvi248 Ibid IIIvii1 Joel Beeke comenta ldquoa abnegaccedilatildeo natildeo eacute centrada no ego como se dava com

frequecircncia no monasticismo medieval e sim centrada em Deus Nosso maior inimigo natildeo eacute o diabo nem o mundo e sim noacutes mesmosrdquo BEEKE Espiritualidade reformada p 53

49 CALVIN Institutes of the Christian Religion IIIvii350 Ibid IIIvii4-751 Ibid IIIvii8-10 Ronald Wallace julga que os toacutepicos de carregar a cruz e autonegaccedilatildeo estatildeo

claramente em continuidade com a obra de Tomaacutes agrave Kempis Todavia Wallace faz uma distinccedilatildeo entre o misticismo medieval e a piedade de Calvino ldquoEntretanto no ensino dos miacutesticos medievais o chamado para a negaccedilatildeo de si mesmo era frequentemente considerado uma obra de iniciativa humana merecendo recompensa e resposta de Deus Calvino todavia sempre considera nosso sacrifiacutecio de negaccedilatildeo de noacutes mesmos como possiacutevel apenas mediante a graccedila de Deus em Cristordquo WALLACE Ronald Calvino Genebra e a Reforma Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2003 p 160

52 CALVIN Institutes of the Christian Religion IIIviii3-5 Beeke comenta ldquoEnquanto a abne-gaccedilatildeo focaliza a conformidade interior com Cristo o levar a cruz se centra na externa semelhanccedila com Cristordquo BEEKE Espiritualidade Reformada p 54

53 CALVIN Institutes of the Christian Religion IIIviii9-1154 Ibid IIIix355 Ibid IIIix4-556 Ibid IIIx2 5-6 Beeke comenta ldquoCalvino natildeo era asceta ele desfrutava a boa literatura

o bom alimento e as belezas da natureza No entanto rejeitou todas as formas do excesso terreno O crente eacute chamado agrave moderaccedilatildeo de Cristo a qual inclui modeacutestia prudecircncia abstenccedilatildeo de ostentaccedilatildeo e o contentamento com nossa sorte pois eacute a esperanccedila da vida por vir que nos fornece o propoacutesito e o desfrute de nossa presente vidardquo BEEKE Espiritualidade reformada p 55-56

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

58

12 Os puritanos inglesesFalar resumidamente da piedade puritana das Ilhas Britacircnicas nos seacuteculos

16 e 17 eacute quase impossiacutevel jaacute que a literatura que aborda o movimento eacute quase toda voltada para a sua devoccedilatildeo multifacetada Ainda que os puritanos tenham se mostrado excelentes em sua teologia eacute possiacutevel argumentar que o movimento puritano eacute prioritariamente um movimento de espiritualidade reformada na medida em que seus adeptos visavam purificar a Igreja da Inglaterra de suas imperfeiccedilotildees ldquopapistasrdquo Richard Lovelace traccedila um panorama da literatura devocional inglesa no iniacutecio do seacuteculo 17 como uma criacutetica agrave tradiccedilatildeo catoacutelica romana em sua origem e esboccedila a anatomia da piedade puritana composta de marcas de uma verdadeira conversatildeo vida de santidade crescimento em piedade e percepccedilatildeo da astuacutecia de Satanaacutes os meios de graccedila o amor pelo proacuteximo e a comunhatildeo com Deus57 Um exemplo dessa literatura explorado por Lovelace eacute o claacutessico de Lewis Bayly (c 1575-1631) A Praacutetica da Piedade que se tornou uma referecircncia de literatura devocional jaacute no seacuteculo 17 sendo reimpresso em dezenas e dezenas de novas ediccedilotildees

Em nosso idioma a espiritualidade dos puritanos eacute bem explorada em livros de J I Packer58 Leland Ryken59 e Joel Beeke Packer por exemplo apre-senta um panorama dos escritos praacuteticos de puritanos ingleses como Richard Greenham William Perkins mas principalmente Richard Baxter e observa tal literatura como sendo popular no sentido de ser simples mas certamente natildeo no sentido de ser teologicamente inepta60 Packer observa cinco qualida-des nesses escritos eles revelam os puritanos como verdadeiros meacutedicos da alma como expositores da Escritura que dirigiam seu ensino agraves consciecircncias e aos afetos dos ouvintes como educadores da mente como inculcadores da verdade e como homens espirituais61 Em sua exposiccedilatildeo da espiritualidade de John Owen Packer explora natildeo somente a santificaccedilatildeo nas trecircs obras de Owen que falam de luta contra o pecado mas analisa principalmente a sua obra Co-munhatildeo com Deus Packer diz que nossa geraccedilatildeo tende a pensar na comunhatildeo com Deus de modo subjetivo nossa consciente experiecircncia com Deus mas os puritanos pensavam nessa comunhatildeo de modo objetivo na aproximaccedilatildeo divina a noacutes ldquoIsso livrou-os do perigo do falso misticismo que tem poluiacutedo

57 LOVELACE Richard C ldquoPuritan Spirituality The Search for a Rightly Reformed Churchrdquo In DUPREacute Louis e SALIERS Don E (Orgs) Christian Spirituality Post-Reformation and Modern New York Crossroad 1989 p 294-323

58 PACKER J I Entre os gigantes de Deus uma visatildeo puritana da vida cristatilde Satildeo Joseacute dos Campos Fiel 1996

59 RYKEN Leland Santos no mundo os puritanos como realmente eram 2 ed Satildeo Joseacute dos Campos Fiel 2013

60 PACKER Entre os gigantes de Deus p 6861 Ibid p 69-84

59

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

muito da suposta devoccedilatildeo em tempos recentesrdquo diz Packer O contexto e a causa da comunhatildeo ldquoeacute a eficaz comunhatildeo de Deus conosco transmitindo-nos vida a primeira coisa sempre deve ser concebida como uma consequecircncia ou mesmo um aspecto da uacuteltimardquo62

Embora por vezes seja alvo de caricatura ou criacutetica63 a espiritualidade dos puritanos eacute uma das grandes contribuiccedilotildees desse movimento agrave espiritualidade de nossos dias Haacute temas interessantiacutessimos como a questatildeo da consciecircncia e a seguranccedila da salvaccedilatildeo (casuiacutestica de William Perkins e William Ames)64 a guarda do dia do Senhor65 e a visatildeo que tinham de culto66 Todavia essa piedade puritana seraacute ilustrada apenas com o conceito que possuiacuteam da meditaccedilatildeo Joel Beeke fala sobre a negligenciada praacutetica da meditaccedilatildeo ressaltando diferentes temas e propoacutesitos meditar sobre Cristo para ter nosso coraccedilatildeo inflamado pelo seu amor meditar no pecado para odiaacute-lo meditar nas verdades de Deus para ser transformado por elas67 e meditar para alargar nossa feacute aumentar santas afeiccedilotildees e fomentar arrependimento e reforma de vida68 Os puritanos falavam de meditaccedilotildees ocasionais (como ser levado a meditar em Deus por causa de algo belo na natureza) e meditaccedilotildees deliberadas habituais a ocasional era alvo de cuidados para natildeo se tornar supersticiosa69 e a meditaccedilatildeo ordinaacuteria sobre a Palavra de Deus era cuidadosamente dissecada para que fosse uma praacutetica constante70 O puritano Thomas Brooks dizia que a meditaccedilatildeo eacute o estocircmago que digere as verdades espirituais o cristatildeo mais forte natildeo eacute o que lecirc mais mas o que medita mais71 Richard Baxter dizia que alguns fieacuteis tecircm anorexia espiritual (natildeo tem apetite por verdades biacuteblicas e nem as digerem) outros tem bulimia espiritual (tem apetite mas natildeo a digerem)72 Que aplicaccedilatildeo adequada para tempos em que algumas pessoas escolhem ouvir uma ldquomaratonardquo de sermotildees na web mas que natildeo sabem digerir

62 Ibid p 221 Packer termina esse capiacutetulo fazendo trecircs contrastes entre a espiritualidade de Owen e a atual (p 233-236) Para um panorama mais abrangente da teologia praacutetica de Owen ver BARRETT Matthew e HAYKIN Michael A G Owen on the Christian Life Living for the Glory of God in Christ Wheaton Crossway 2015

63 James Houston critica a espiritualidade puritana por natildeo ter a vida contemplativa do catolicismo romano a qual em sua opiniatildeo a teria enriquecido HOUSTON ldquoEspiritualidaderdquo p 66

64 Cf PACKER Entre os gigantes de Deus p 115-132 BEEKE Espiritualidade reformada p 229-261 381-402

65 PACKER Entre os gigantes de Deus p 253-26466 Ibid p 265-278 RYKEN Santos no mundo p 193-23267 BEEKE Espiritualidade reformada p 112-113 68 Ibid p 13769 Ibid p 11470 Ibid p 124-13071 Ibid p 13972 Ibid p 135

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

60

13 Nadere ReformatieUm movimento menos conhecido nosso eacute a versatildeo holandesa do purita-

nismo inglecircs a Nadere Reformatie (literalmente ldquoreforma posteriorrdquo ldquorefor-ma que foi mais adianterdquo) um movimento dos seacuteculos 17 e iniacutecio do 18 que demonstrou grande zelo pela piedade aliado agrave teologia reformada Joel Beeke afirma que o crescimento da membresia das igrejas reformadas na Holanda no seacuteculo 17 gerando grande nuacutemero de membros nominais somado agrave influecircncia do puritanismo inglecircs e outras fontes de piedade fez surgir uma geraccedilatildeo de acadecircmicos e pregadores que enfatizaram uma ldquoteologia experimentalrdquo des-tacando a primazia de uma resposta interior a Deus73 A Nadere Reformatie foi um movimento holandecircs que primou por uma ldquorevitalizaccedilatildeo interna da doutrina reformada e uma santificaccedilatildeo radical da vidardquo e junto com o purita-nismo anglo-saxocircnico e o pietismo alematildeo estava em busca da piedade74 O movimento holandecircs com representantes como Willem Teellinck Gisbertus Voetius Johannes Hoornbeeck Wilhelmus agrave Brakel e Herman Witsius entendia que o processo de reforma precisava avanccedilar para acircmbitos pessoais

Jaacute foi mencionado neste artigo como os reformados holandeses procu-raram articular uma espiritualidade catoacutelica Willem Teellinck (1579-1629) considerado o ldquopairdquo da Nadere Reformatie mostrou aspectos de espirituali-dade ao final de sua vida que satildeo semelhantes aos escritos de Bernardo de Claraval75 Sua apropriaccedilatildeo de Bernardo provavelmente via Tomaacutes agrave Kempis eacute um testemunho de sua catolicidade76 Seu principal livro sobre a santifica-ccedilatildeo The Path of True Godliness eacute um manual da vida cristatilde todo dividido em triacuteades no qual ele apresenta os desafios do reino das trevas para a vida espiritual e como o reino da graccedila promove piedade Ele fala no livro sobre os meios de atingir os verdadeiros propoacutesitos da vida (ordenanccedilas obras e promessas divinas) e sobre as motivaccedilotildees para a praacutetica da piedade77 Wilhel-mus agrave Brakel eacute outro que conecta interesses sistemaacuteticos com aplicabilidade pastoral em sua principal obra O Serviccedilo Razoaacutevel do Cristatildeo Brakel diz que os miacutesticos natildeo se apoiam na obra objetiva de Cristo para a sua espiritualidade (Cristo como o nosso resgate como a nossa justiccedila) todo verdadeiro piedoso soacute pode aproximar-se de Deus por meio de Cristo Todavia alguns miacutesticos (Quakers Quietistas Franccedilois de Feacutenelon) falam de negar a si mesmo amar

73 BEEKE Joel R ldquoThe Dutch Second Reformation (Nadere Reformatie)rdquo Calvin Theological Journal vol 28 n 2 (nov 1993) p 308-320

74 DE REUVER Sweet Communion p 1675 BEEKE Espiritualidade reformada p 411-41276 DE REUVER Sweet Communion p 16077 BEEKE Espiritualidade reformada p 421-425 Beeke tenta defendecirc-lo de certos legalismos

(p 425-427) mas parece que o decliacutenio religioso e moral que possivelmente marcava a Holanda de seus dias natildeo legitima tais legalismos

61

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

contemplar a Deus tudo sem fazer uso de Cristo78 Brakel diz que Deus soacute pode ser ldquoobjetordquo de nossa contemplaccedilatildeo se for Deus em Cristo pois toda a sua espiritualidade estaacute fundada em Cristo Esse fundamento ldquoprotege o seu misticismo de espiritualismordquo79

14 Jonathan EdwardsJonathan Edwards eacute conhecido por sua participaccedilatildeo em avivamentos e

um pouco de sua piedade jaacute foi retratada em livros traduzidos para o nosso idioma80 Dentre os escritos do proacuteprio Edwards poucos contribuem para uma visatildeo da espiritualidade reformada do seacuteculo 18 como A Vida de David Brainerd Contudo em geral o puacuteblico brasileiro desconhece os seus escritos pessoais (Diaacuterio Narrativa Pessoal) que retratam muitas experiecircncias de devoccedilatildeo a Deus George S Claghorn descreve seus escritos pessoais como um vislumbre autobiograacutefico da religiosidade de Edwards que cobrem

desde os seus primeiros embates espirituais e autodisciplina nas ldquoResoluccedilotildeesrdquo e no ldquoDiaacuteriordquo ateacute sua busca por uma companheira piedosa em ldquoSobre Sarah Pierrepontrdquo [que viria a ser sua esposa] chegando ao resumo retrospectivo de suas experiecircncias religiosas avivalistas em sua ldquoNarrativa Pessoalrdquo81

Nesta uacuteltima obra Edwards narra suas constantes caminhadas pela natureza para um tempo de contemplaccedilatildeo e de oraccedilatildeo no qual suas afeiccedilotildees eram mo-vidas a experimentar a doccedilura da majestade e da graccedila de Deus que por vezes o levavam a chorar em alta voz82

Charles Hambrick-Stowe pontua de forma perspicaz que nessa meditaccedilatildeo sobre a natureza um haacutebito que adquirira desde a sua juventude sempre tinha a Biacuteblia aberta diante de si pois Edwards negava que pudesse haver qualquer conhecimento de Deus agrave parte da revelaccedilatildeo biacuteblica83 Para Edwards a fonte da graccedila natildeo deveria ser buscada dentro de sua alma pois na proacutepria Narrati-va Pessoal ele afirma que suas mais doces alegrias natildeo surgiram de um bom estado de sua alma mas de uma visatildeo das coisas gloriosas do evangelho84

78 BRAKEL The Christianrsquos Reasonable Service vol 2 p 64279 DE REUVER Sweet Communion p 25880 Cf PIPER John A paixatildeo de Deus por sua gloacuteria vivendo a visatildeo de Jonathan Edwards Satildeo

Paulo Cultura Cristatilde 2008 LAWSON Steven J As firmes resoluccedilotildees de Jonathan Edwards Satildeo Joseacute dos Campos Fiel 2010

81 CLAGHORN George S (Org) The Works of Jonathan Edwards Online vol 16 p 74182 Cf Ibid p 790-80483 HAMBRICK-STOWE Charles E ldquoSpirituality and Devotionrdquo In SWEENEY Douglas A e

STIEVERMANN Jan (Orgs) The Oxford Handbook of Jonathan Edwards Oxford Oxford University Press 2021 p 357

84 Ibid p 355

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

62

O foco de suas meditaccedilotildees enquanto perambulava na natureza natildeo era Deus o Criador muito menos as aacutervores ou as nuvens mas a pessoa de Jesus Cristo85 Essa natureza bibliocecircntrica da piedade de Edwards era o ponto de conexatildeo entre sua vida devocional e sua vida intelectual entre seus escritos pessoais e seu ministeacuterio puacuteblico de escrita e pregaccedilatildeo fazendo com que sua piedade pessoal transbordasse para o seu ministeacuterio eclesiaacutestico86

Semelhante desconhecimento ocorre com o aspecto esteacutetico de sua religio-sidade Dentre as palavras mais usadas no seu corpo literaacuterio estatildeo ldquoexcelecircnciardquo e especialmente ldquobelezardquo a ponto de Dane Ortlund considerar a ldquobelezardquo como o fulcro da teologia edwardsiana87 A filosofia natural de Edwards estaacute repleta de alusotildees aos sentidos espirituais de elementos da natureza e enxergar a revelaccedilatildeo geral repleta de ldquosinaisrdquo do divino eacute a base de sua constante tipologia

2 DISTINTIVOS TEOLOacuteGICOS DE UMA ESPIRITUALIDADE REFORMADA

Ao apresentar caracteriacutesticas peculiares da espiritualidade reformada muitas outras ecircnfases ficaratildeo de fora Natildeo seratildeo trabalhadas a oraccedilatildeo ou a im-portacircncia dos cacircnticos e ateacute mesmo a leitura devocional das Escrituras ficaraacute de fora de um escrutiacutenio adequado A razatildeo de omitir essas e outras praacuteticas eacute para focalizar aspectos que satildeo mais proacuteprios da tradiccedilatildeo reformada e que natildeo aparecem tatildeo comumente em outras tradiccedilotildees cristatildes nem mesmo as evangeacuteli-cas Todavia como os reformados natildeo satildeo os uacutenicos a ensinar tais realidades trataremos de cada item abaixo em termos de ldquoecircnfasesrdquo pois os reformados as destacam de tal forma que se tornaram distintivas

21 Uma ecircnfase na graccedila gratuita e capacitadoraEm oposiccedilatildeo ao romanismo a espiritualidade reformada daacute ecircnfase agrave gra-

ccedila gratuita e capacitadora A maioria das propostas romanas de espiritualidade seguem uma teologia semipelagiana na qual a iniciativa eacute do homem em busca da graccedila (seguindo o famoso ditado medieval facientibus quod in se est Deus non denegat gratiam cuja versatildeo popular eacute ldquofaccedila a sua parte e eu o ajudareirdquo) e ateacute aqueles que natildeo satildeo semipelagianos falam em conquistar ou ldquoalcanccedilar uma graccedilardquo Em contraste com isso os reformados sempre enfatizaram o aspecto to-talmente gratuito da graccedila isto eacute ela natildeo eacute conquistada por nosso esforccedilo nem mesmo quando somos impulsionados pela graccedila interna ldquoEnquanto o monge ascende ao Deus de majestade atraveacutes da contemplaccedilatildeo especulaccedilatildeo e meacuterito no evangelho Deus desce a noacutes em humildade em nossa carne para nos resgatarrdquo88

85 Ibid p 35786 Ibid p 354 35687 ORTLUND Dane C Jonathan Edwards e a vida cristatilde Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2017 p 21-3688 HORTON Michael S ldquoThe Reformation amp Spiritual Formationrdquo Modern Reformation vol 22

n 4 (jul-ago 2013) p 29

63

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

Nelson Kloosterman destaca que certas definiccedilotildees catoacutelicas apresentam uma visatildeo teleoloacutegica de espiritualidade na qual ela se apresenta como o cami-nho para a santidade e uniatildeo com Deus Em contrapartida a visatildeo protestante e reformada de piedade procede da justificaccedilatildeo forense da justiccedila imputada de Cristo Sendo assim a ldquosantidade natildeo eacute simplesmente o objetivo mas prima-riamente o fundamento ou solo da verdadeira espiritualidade cristatilderdquo89 Esta eacute a visatildeo biacuteblica de santificaccedilatildeo apresentada nas epiacutestolas paulinas Indicativos fundamentam e motivam os imperativos nas epiacutestolas (Rm 121 Ef 41 Cl 31-11) Os indicativos nos definem enquanto os imperativos nos convocam Isso significa que a obra redentora do Deus trino eacute descrita primeiro para nos informar do que foi feito por noacutes a fim de buscarmos nos tornar aquilo que jaacute somos em Cristo

Essa graccedila natildeo soacute eacute o fundamento de nossa peregrinaccedilatildeo santificadora mas eacute o impulso dessa santificaccedilatildeo A tradiccedilatildeo reformada recente tem procurado resgatar o entendimento deixado pela Reforma de uma santificaccedilatildeo impulsio-nada pelo evangelho90 A obra de Cristo natildeo eacute necessaacuteria apenas para o iniacutecio da vida cristatilde (conversatildeo justificaccedilatildeo adoccedilatildeo) como se depois da conversatildeo entatildeo dependesse de nossa resposta ao amor de Cristo (santificaccedilatildeo) Esse tipo de dicotomia faz com que caiamos num cristianismo moralista A espiritualidade reformada em contrapartida destaca que a proacutepria forccedila motora da santifica-ccedilatildeo vem da obra consumada de Cristo (Rm 61-4 Tt 214 1 Pe 114-19) A Confissatildeo de Feacute de Westminster afirma que somos santificados pessoalmente ldquopela virtude da morte e ressurreiccedilatildeo de Cristordquo (131) Portanto a obra de Cristo natildeo eacute apenas o que acontece primeiro natildeo eacute apenas o que nos estimula agrave obediecircncia ela eacute a proacutepria habilitadora de nosso esforccedilo santificador

Ateacute a obra do Espiacuterito no iniacutecio de nossa vida cristatilde ndash conversatildeo justi-ficaccedilatildeo adoccedilatildeo ndash serve de motivaccedilatildeo para uma busca de santidade Michael Horton chama a atenccedilatildeo para a linguagem paulina em Romanos 6 a fim de dizer que natildeo temos que entregar nosso corpo agrave crucificaccedilatildeo para que o peca-do seja morto mas o velho homem jaacute ldquofoi crucificado com ele para que o corpo do pecado seja destruiacutedordquo (Rm 66) Ele natildeo ordena que natildeo deixemos o pecado nos dominar mas afirma que ldquoo pecado natildeo teraacute domiacutenio sobre voacutesrdquo (Rm 614) Portanto algo jaacute aconteceu conosco e devemos buscar a santidade (o ldquoainda natildeordquo de nossa redenccedilatildeo) calcados na obra jaacute realizada pelo Espiacuterito91

89 KLOOSTERMAN Nelson D ldquoStudying Spirituality in a Reformed Seminary A Calvinist Modelrdquo Mid-America Journal of Theology vol 6 n 2 (1990) p 127

90 Ver esse texto de Jerry Bridges httpswwwmonergismcomgospel-driven-sanctification Acesso em 4 jun 2021

91 HORTON Michael S ldquoThe Indicative and The Imperative A Reformed View of Sanctificationrdquo Disponiacutevel em httpswwwmonergismcomindicative-and-imperative-reformation-view-sanctification Acesso em 4 jun 2021

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

64

22 Uma ecircnfase nos meios de graccedila e na comunidade santificadora

Em oposiccedilatildeo ao evangelicalismo a espiritualidade reformada coloca uma ecircnfase nos meios de graccedila e na comunidade santificadora Enquanto o evangelicalismo eacute conhecido por enfatizar uma espiritualidade individual isto eacute a importacircncia da devoccedilatildeo privada (o momento a soacutes com Deus) a feacute refor-mada natildeo a negligencia mas destaca que grande parte de nossa santificaccedilatildeo acontece no acircmbito puacuteblico onde haacute troca de dons (Ef 411-16) Os meios de graccedila conforme articulados no culto puacuteblico satildeo chave para o crescimento espiritual Foi nos documentos de Westminster que se instituiu a importacircncia do culto domeacutestico de maneira formal como exemplo de zelo pela comunidade menor enquanto formadora de nossa devoccedilatildeo Antes do que conceitos vazios de subjetividade a feacute reformada defende uma espiritualidade da Palavra que se consegue mediante a pregaccedilatildeo puacuteblica a meditaccedilatildeo e o estudo pessoal92 Por isso Wilhelmus agrave Brakel enfatizava o amor pela verdade (Palavra) e a estima pela igreja93

Enquanto os evangeacutelicos tendem a enxergar a igreja como uma associaccedilatildeo voluntaacuteria de pessoas que alegam terem passado por uma mesma experiecircncia religiosa a eclesiologia reformada conforme expressa em suas confissotildees reforccedila a indispensabilidade da pregaccedilatildeo para gerar e nutrir vida cristatilde a necessidade dos meios de graccedila e a dos ofiacutecios autorizados por Cristo para proteger e nutrir a piedade cristatilde94 Calvino soube se apropriar da eclesiologia catoacutelica e chamar a igreja de ldquomatildee dos fieacuteisrdquo porque ele sabia que a igreja era o lugar ordinaacuterio no qual cristatildeos seriam gerados nutridos e protegidos95 Franccedilois Wendel descreve a eclesiologia de Calvino afirmando que a Igreja eacute necessaacuteria para a nossa ldquosantificaccedilatildeo coletivardquo e para promover o ldquoconsenso da feacuterdquo mediante a pregaccedilatildeo e o ensino Ainda que Deus esteja livre para usar outros meios ordinaacuterios aleacutem da pregaccedilatildeo da Palavra e dos sacramentos como ele os instituiu noacutes natildeo estamos livres desses meios de santificaccedilatildeo96

Michael Horton afirma que enquanto a piedade de muitos evangeacutelicos eacute quase exclusivamente privada e orientada por meacutetodos a piedade da Reforma eacute mais comunitaacuteria e pactual Enquanto os evangeacutelicos focalizam os meios de compromissos que os conduzem agrave graccedila os reformados pensam em meios de graccedila que produzem compromisso Ao inveacutes de sair do mundo em solidatildeo

92 OLD ldquoWhat is Reformed Spiritualityrdquo p 6393 Cf BRAKEL The Christianrsquos Reasonable Service vol 2 p 644-65394 KLOOSTERMAN ldquoStudying Spirituality in a Reformed Seminaryrdquo p 13295 CALVINO Institutas IV14 Cf Confissatildeo de Feacute de Westminster 25296 WENDEL Franccedilois Calvin Origins and Development of His Religious Thought Grand Rapids

Baker 2002 p 292-293 Cf CALVINO Institutas IV15

65

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

os reformados pensam mais numa piedade que nos leva para o mundo pois a piedade da Reforma eacute mais extrospectiva do que introspectiva97 Horton con-testa a espiritualidade evangeacutelica que eacute prioritariamente individual e privada onde o que salva eacute o que o indiviacuteduo faz com a Palavra natildeo o que a Palavra faz com o indiviacuteduo onde o batismo eacute o compromisso do fiel antes do que de Deus onde a ceia simplesmente oferece uma oportunidade para o indiviacuteduo refletir sobre a morte de Cristo e renovar o seu compromisso mas natildeo eacute a daacutediva de Cristo com todos os seus benefiacutecios98 Diante desse cenaacuterio Horton mostra no restante do artigo como a espiritualidade reformada eacute marcada pela vida comunitaacuteria com os meios de graccedila

23 Uma ecircnfase na uniatildeo com Cristo conjugando becircnccedilatildeos objetivas e subjetivas

Na espiritualidade reformada o objetivo e o subjetivo o externo e o interno satildeo ligados inseparavelmente por essa realidade Cristo eacute a fonte da santidade do cristatildeo Isso significa que a santidade dele passa a ser do fiel numa uniatildeo miacutestica que se tem com o Salvador A uniatildeo eacute comumente chamada de ldquomiacutesticardquo porque natildeo tem paralelo na realidade transcende todas as analogias terrenas mesmo as que satildeo utilizadas na Escritura (casamento edifiacutecio e fun-damento videira e ramos corpo e cabeccedila) Todavia a espiritualidade que dela procede natildeo eacute miacutestica no sentido de inexplicaacutevel irracional O ministeacuterio de Jesus sempre foi marcado por ensino por explicaccedilatildeo de vida cristatilde Jesus era um mestre por excelecircncia

Os reformados percebem que haacute aspecto objetivo da uniatildeo que acontece federativamente na eternidade e na histoacuteria e que garante as becircnccedilatildeos recebidas pelos cristatildeos o qual eacute distinto da uniatildeo miacutestica que se refere agrave experiecircncia subjetiva de sermos unidos a Cristo pelo Espiacuterito99 Anthony Hoekema diz que a doutrina da uniatildeo miacutestica ajuda a contrabalanccedilar o aspecto legal com o aspecto vital da redenccedilatildeo o Cristo por noacutes com o Cristo em noacutes100 Jaacute foi mencionada neste artigo a importacircncia da doutrina da uniatildeo com Cristo na teologia de Joatildeo Calvino algo atestado por vaacuterios escritos101 Todavia John Fesko vai aleacutem de

97 HORTON ldquoThe Reformation amp Spiritual Formationrdquo p 2898 Ibid p 3199 A A Hodge tambeacutem distingue a uniatildeo com Cristo em seu aspecto ldquofederalrdquo e em seu aspecto

ldquovital e espiritualrdquo HODGE Archibald A Outlines of Theology New York Hodder amp Stoughton 1878 p 482

100 HOEKEMA Anthony A Saved by Grace Grand Rapids Baker 1986 p 66-67 101 Como satildeo muitos os escritos que exploram Calvino acerca de uniatildeo com Cristo citaremos ape-

nas duas fontes TAMBURELLO Dennis E Union with Christ John Calvin and the Mysticism of St Bernard Louisville Westminster John Knox 1994 JOHNSON Marcus ldquoLuther and Calvin on Union with Christrdquo Fides et Historia 39 n 2 (VeratildeoOutono 2007) p 59-77

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

66

Calvino ao fazer um apanhado histoacuterico dos contornos da uniatildeo com Cristo que une justificaccedilatildeo e santificaccedilatildeo nos escritos de reformados como Henrique Bullinger Pedro Maacutertir Vermigli Jerocircnimo Zanchi William Perkins John Owen Richard Baxter Francisco Turretino e Herman Witsius102

Podemos resumir a uniatildeo em trecircs caracteriacutesticas com implicaccedilotildees para a nossa espiritualidade Em primeiro lugar eacute uma uniatildeo mediadora da uniatildeo com o Deus trino103 Como Cristo eacute o nosso mediador no relacionamento pactual com Deus por ela recebemos todos os benefiacutecios do pacto da graccedila de Deus ser o nosso Deus e noacutes sermos o seu povo tanto em sermos reconciliados com ele por obra do Deus trino como de conformidade com ele tornando-nos participantes da natureza divina agrave medida que somos transformados agrave sua ima-gem (2 Pe 13-4) A vitoacuteria de Cristo concedeu-nos o Espiacuterito o qual efetiva a nossa uniatildeo com Cristo Jesus disse que seriacuteamos habitados pelo Pai pelo Filho e pelo Espiacuterito (Jo 1416-20 23) Em segundo lugar eacute uma uniatildeo vital Somos ligados de forma orgacircnica a Cristo (analogias do corpo e da videira) de tal forma que a vida dele nos eacute comunicada Isto eacute aleacutem de Cristo ser o nosso representante ele tambeacutem eacute ldquoformadordquo em noacutes (Gl 419) nascemos de novo experimentamos uma vida de sofrimento humilhaccedilatildeo e enfim exaltaccedilatildeo tudo segundo a natureza humana de Jesus104 Somos tornados participantes de seu triunfo (Cl 220 31) Em terceiro lugar eacute uma uniatildeo reciacuteproca Se Cristo primeiramente nos une a ele por obra do Espiacuterito na regeneraccedilatildeo o crente responde em feacute unindo-se a Cristo e recebendo todos os benefiacutecios da sua vida (Jo 154-5 Gl 220 Ef 317)

24 Outras ecircnfases reformadasHaacute vaacuterios outros distintivos da tradiccedilatildeo reformada que natildeo satildeo tatildeo evi-

dentes em outras tradiccedilotildees da feacute cristatilde Em primeiro lugar a observacircncia do Dia do Senhor funciona como antecipaccedilatildeo da gloacuteria por vir Enquanto muitas discussotildees em torno desse assunto tecircm se detido em minuacutecias praacuteticas perde--se o propoacutesito de resgatar esse dia como deleitoso para a alma Em segundo lugar as obras de misericoacuterdia satildeo parte da espiritualidade reformada Inclusive essa eacute a razatildeo pela qual essa deveria ser uma das atividades do dia do Senhor como o proacuteprio Jesus o fez Em terceiro lugar a piedade reformada sempre enxergou a lei em um contexto de graccedila Enquanto Lutero enxergava a lei

102 Cf FESKO J V Beyond Calvin Union with Christ and Justification in Early Modern Reformed Theology (1517-1700) Gottingen Vandenhoeck amp Ruprecht 2012

103 A A Hodge escreve ldquoEssa uniatildeo eacute entre o cristatildeo e a pessoa do Deus-homem em seu ofiacutecio como Mediador Seu oacutergatildeo imediato eacute o Espiacuterito Santo que habita em noacutes e atraveacutes dele noacutes somos virtualmente unidos e comungamos com toda a Divindade sendo que ele eacute o Espiacuterito do Pai assim como do Filhordquo HODGE Outlines of Theology p 484

104 BERKHOF Louis Teologia sistemaacutetica Campinas Luz Para o Caminho 1990 p 452-453

67

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

primordialmente como uma antiacutetese ao evangelho Calvino iraacute observar que o uso pedagoacutegico da lei de ressaltar o pecado eacute ldquoacidentalrdquo (linguagem aristoteacute-lica para afirmar que natildeo eacute essencial) pois seu propoacutesito principal eacute servir de norma de conduta que o Deus benevolente nos deixou Em contraste com os legalismos catoacutelico-romanos e ateacute evangeacutelicos os puritanos conseguiram ver a lei de forma deleitosa no contexto do pacto da graccedila105

Em quarto lugar os reformados natildeo fazem dicotomia entre vida contem-plativa e vida ativa (Tomaacutes de Aquino) pois a cosmovisatildeo reformada santifica o trabalho com os conceitos de vocaccedilatildeo e mordomia Kloosterman destaca como o conceito de vocaccedilatildeo na Reforma permitiu que toda a criaccedilatildeo fosse usufruiacuteda e empregada sob a contiacutenua norma da Palavra de Deus106 Enquanto os luteranos introduziram o elemento de vocaccedilatildeo de forma inovadora foram os reformados que ampliaram o elemento holiacutestico de vida cristatilde com a aplica-ccedilatildeo da cosmovisatildeo Por isso Kloosterman contrasta o misticismo catoacutelico e ateacute a piedade evangeacutelica como muito voltada para o pecado orientada para dentro ou para o futuro e apresenta a espiritualidade reformada afirmando a vida em relacionamentos criacionais107 Isto eacute existe espiritualidade em obediecircncia ao triacuteplice mandato que nos foi dado na criaccedilatildeo mandato espi-ritual (relacionamento com Deus) mandato social (relacionamento com o proacuteximo) e mandato cultural (relacionamento com o restante da criaccedilatildeo) Tal integralidade que envolve os trecircs mandatos estaacute disponiacutevel a todos os fieacuteis e natildeo somente aos monges natildeo haacute espiritualidade especiacutefica do ldquoclerordquo como asseverava a doutrina romana

Estes satildeo apenas alguns raacutepidos traccedilos de aspectos ricos e com vasta literatura na histoacuteria do movimento reformado Tais distintivos servem apenas para ressaltar que existe uma espiritualidade proacutepria da teologia reformada e condizente com o seu legado doutrinaacuterio

CONCLUSAtildeO ldquoA IMPORTAcircNCIA DE RESGATAR UMA ESPIRITUALIDADE DA TRADICcedilAtildeO REFORMADArdquoAo concluir esse panorama de personagens e distintivos da espiritua-

lidade reformada especialmente em contraste com outras versotildees cristatildes de espiritualidade fica evidente que a teologia molda a piedade A espiritualidade natildeo acontece num vaacutecuo teoloacutegico Algueacutem pode natildeo estar ciente da teologia que alimenta sua espiritualidade mas como disse McGrath acertadamente ldquoA teologia tem profundo impacto sobre a espiritualidaderdquo108 Sendo assim eacute

105 Cf KEVAN Ernest The Grace of Law A Study of Puritan Theology London Carey Kingsgate 1965

106 KLOOSTERMAN ldquoStudying Spirituality in a Reformed Seminaryrdquo p 129107 Ibid p 130108 MCGRATH Uma introduccedilatildeo agrave espiritualidade cristatilde p 29

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

68

necessaacuterio que os reformados sejam mais conscientizados das implicaccedilotildees que a sua teologia traz para a vida cristatilde Eis a razatildeo de elaborarmos este breve histoacuterico da teologia reformada de espiritualidade Afinal piedade com teologia defeituosa eacute enganosa e sem proveito como Paulo ensinou aos colossenses (Cl 216-23) Portanto eacute necessaacuterio que os reformados se aprofundem no conhecimento dessa histoacuteria e como ela se adequa a uma praacutetica condizente

Enquanto os criacuteticos tendem a julgar que a teologia reformada eacute prio-ritariamente cognitiva e teoacuterica os reformados tecircm historicamente exaltado o aspecto afetivo e praacutetico da teologia O grande acadecircmico reformado do seacuteculo 17 Francisco Turretino explica que a despeito de seu elemento teoacuteri-co (contemplaccedilatildeo do Deus revelado conhecimento da verdade) a teologia eacute mormente praacutetica pois todo o seu conhecimento (crer) deve redundar em adoraccedilatildeo e obediecircncia (observar)109 Na filosofia reformada todo coraccedilatildeo eacute por natureza religioso e por isso produz algum tipo de devoccedilatildeo ou espiri-tualidade Todavia nem toda espiritualidade eacute virtuosa porque nem toda feacute eacute saudaacutevel Por exemplo uma vida de oraccedilatildeo para encher nosso ministeacuterio de poder perde de vista que a sauacutede de uma vida de oraccedilatildeo estaacute em nos esvaziar-mos de noacutes mesmos isto eacute a oraccedilatildeo natildeo busca poder para si mas expressa dependecircncia e fraqueza para que o poder de Deus opere em noacutes Portanto teologia molda espiritualidade

Talvez o leitor se pergunte ldquoOnde eacute que o estudo da espiritualidade de-veria se encaixar numa grade de formaccedilatildeo teoloacutegicardquo Kloosterman responde na eacutetica E ele fundamenta essa resposta dizendo que se alguns evangeacutelicos tendem a olhar para a espiritualidade como ldquoerupccedilotildees espontacircneasrdquo antes que ldquoexerciacutecios padronizadosrdquo eles seratildeo levados a estudar a piedade sob a nor-ma da Palavra de Deus Analisar tais exerciacutecios espirituais natildeo tira o ldquopoderrdquo que lhes eacute atribuiacutedo mas ajuda-nos a averiguar praacuteticas que satildeo biblicamente certas ou erradas Por isso a eacutetica constitui um bom espaccedilo para o ensino da espiritualidade110

Se essa sugestatildeo parecer estranha ao leitor pode ser que a estranheza se explique pela ignoracircncia da bela tradiccedilatildeo eacutetica reformada que ensina acerca de vida cristatilde mediante a exposiccedilatildeo dos Dez Mandamentos Esse natildeo soacute eacute o ensino da Escritura (Rm 138-10 Gl 513-15) mas tem amplo respaldo nos catecismos da tradiccedilatildeo reformada Poreacutem introduzir essa mateacuteria seria conteuacutedo para outro artigo

109 TURRETINI Franccedilois Compendio de teologia apologeacutetica Trad Valter Graciano Martins Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011 vol 1 p 61-65 (Ivii)

110 KLOOSTERMAN ldquoStudying Spirituality in a Reformed Seminaryrdquo p 135-136

69

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

ABSTRACTThis article presents Reformed Spirituality as a field still unknown in

popular and academic circles a part of the tradition that needs to be redis-covered The concept that this is not a strong area among the Reformed plus the elusive standards of devotional practices have led many to seek alternative spiritualities Wanting to rescue the devotional and pious aspect of the Reformed tradition this article introduces the practical theology of figures such as John Calvin the English Puritans the Dutch Reformed movement called Nadere Reformatie and Jonathan Edwards besides some contemporary representa-tives of Reformed piety Later on the article presents a few distinctives of such spirituality and concludes showing the need to rescue this story for the benefit of the Reformed movement in Brazil

KEYWORDSSpirituality Reformed Theology John Calvin Puritans Nadere Refor-

matie Jonathan Edwards

71

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO ndash UMA ANAacuteLISE DA QUESTAtildeO JURIacuteDICA NO CONTEXTO DA GRANDE COMISSAtildeO (MT 2818-20)

Paulo Eduardo Vieira da Veiga

RESUMOO contexto juriacutedico no qual foi dada a Grande Comissatildeo envolve os quatro

grandes temas das Escrituras criaccedilatildeo queda redenccedilatildeo e consumaccedilatildeo Quando colocado no Eacuteden Adatildeo recebeu a missatildeo de governar tudo o que Deus havia criado Ao pecar de algum modo essa autoridade foi usurpada por Satanaacutes Quando Cristo morreu e ressuscitou cumpriu assim o seu propoacutesito redentor e como o uacuteltimo Adatildeo recuperou e ampliou juridicamente a autoridade perdida pelo primeiro Dessa forma a Grande Comissatildeo em Mateus 2818-20 comeccedila natildeo no versiacuteculo 19 mas jaacute no versiacuteculo 18 quando o Senhor ressurreto com base nesta mesma autoridade ordena a seus disciacutepulos irem pelo mundo e fa-zerem disciacutepulos de todas as naccedilotildees Portanto o presente artigo visa analisar a palavra ἐξουσία (autoridade) mencionada no versiacuteculo 18 no contexto da teologia biacuteblica do Antigo e do Novo Testamentos refletir sobre a autorida-de perdida por Adatildeo e reconquistada por Cristo e avaliar como o triunfo e a exaltaccedilatildeo de Cristo satildeo a garantia de sucesso da missatildeo datildeo sentido ao ldquoiderdquo revestem a igreja com autoridade e impulsionam os disciacutepulos no cumprimento da Grande Comissatildeo apontando para o escaton1

O autor eacute bacharel em teologia pelo Seminaacuterio Presbiteriano do Sul e mestrando em Estudos Biacuteblico-Hermenecircuticos do Novo Testamento no Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper

1 Este artigo foi escrito inicialmente para atender agraves exigecircncias da disciplina ldquoPrincipados e Potestadesrdquo ministrada em 2020 pelo Prof Dr Leandro A de Lima no CPAJ como parte do curso de Mestrado em Estudos Biacuteblico-Hermenecircuticos Vaacuterias das ideias expostas no artigo especialmente a questatildeo juriacutedica da autoridade conquistada por Cristo refletem o ensino do referido professor ministrado durante a disciplina e tambeacutem em seus escritos em especial sua tese de doutorado de 2012 (LIMA

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

72

PALAVRAS-CHAVETeologia biacuteblica Novo Testamento Grande Comissatildeo Reino Evangelho

Autoridade Batalha juriacutedica

INTRODUCcedilAtildeOOs debates recentes entre os exegetas sobre o entendimento da Grande

Comissatildeo giram em torno do verbo πορευθέντες (ir) Alguns defendem que esse verbo deva ser traduzido como ldquoiderdquo no imperativo outros defendem que seja traduzido como ldquoindordquo no geruacutendio Ambas as anaacutelises exegeacuteticas trazem implicaccedilotildees missioloacutegicas importantes seja a ecircnfase no discipulado local seja nas missotildees transculturais e na plantaccedilatildeo de novas igrejas Eacute certo que tudo isso estaacute incluiacutedo na Grande Comissatildeo

David Hesselgrave ao analisar o texto de Mateus 2818-20 defende que existe um elemento baacutesico que eacute ldquofazei disciacutepulos de todas as naccedilotildeesrdquo Segundo ele a importacircncia do fazer disciacutepulos (μαθητεύσατε) eacute ressaltada pelo fato de este ser o uacutenico imperativo no texto da Grande Comissatildeo Ele ainda destaca que ldquofazei disciacutepulos de todas as naccedilotildeesrdquo requer que se tenha missionaacuterios em todas as naccedilotildees2 O professor Carl Bosma em suas pesquisas sobre as posiccedilotildees exegeacuteticas acerca de Mateus 2818-20 apresenta quatro atitudes em relaccedilatildeo a esses termos (1) forte ecircnfase no particiacutepio traduzido como imperativo (ldquoIderdquo) (2) maior ecircnfase em ldquofazer disciacutepulosrdquo (3) subordinaccedilatildeo plena do ldquoirrdquo ao ldquofazer disciacutepulosrdquo tornando-o quase irrelevante (4) ecircnfase igual nos dois conceitos Bosma defende a quarta posiccedilatildeo enfatizando que o ldquoirrdquo faz parte do mandamento de se fazer disciacutepulos Para ele tanto eacute importante o discipulado local (fazer disciacutepulos e ensinar) quanto as missotildees transculturais (ldquoindo)rdquo3 Jaacute o professor Chun Kwang Chung faz uma anaacutelise da mudanccedila recente na traduccedilatildeo do verbo πορευθέντες como ldquoindordquo em vez de ldquoiderdquo traduccedilatildeo esta que sempre foi adotada por diversas sociedades biacuteblicas Segundo ele traduzir πορευθέντες como ldquoindordquo gera implicaccedilotildees missioloacutegicas fundamentais no entendimento da Grande Comissatildeo pois tal interpretaccedilatildeo eacute defendida pelos proponentes do ministeacuterio de discipulado nas igrejas locais e pelo movimento de igrejas missionais Poreacutem ele defende que os tradutores estavam corretos ao traduzirem o particiacutepio πορευθέντες como imperativo ldquoiderdquo4

Leandro Antocircnio de ldquoApocalipse como literatura um estudo sobre a importacircncia da anaacutelise da arte literaacuteria em apocalipse 12-13rdquo Dissertaccedilatildeo (Doutorado em Letras) Satildeo Paulo Universidade Presbite-riana Mackenzie 2012) e seu livro A Grande Batalha Escatoloacutegica (Satildeo Paulo Editora Agathos 2016)

2 HESSELGRAVE David J A comunicaccedilatildeo transcultural do Evangelho Satildeo Paulo Vida Nova 1994 p 69

3 BOSMA Carl ldquoMissotildees e sintaxe grega em Mateus 2818-20rdquo Fides Reformata XIV-1 2009 p 9

4 CHUNG Chun Kwang ldquoIde ou Indo Igrejas Missionais e o uso do particiacutepio na Grande Comissatildeo de Mateus 2818-20rdquo Fides Reformata XXIV-2 2019 p 51

73

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

Toda essa discussatildeo teoloacutegica eacute saudaacutevel vaacutelida e uacutetil para o entendi-mento da missatildeo da igreja Sem duacutevida eacute preciso considerar esses aspectos Contudo parece-me que ao longo destes debates tem sido deixado de lado o contexto no qual estas palavras foram ditas pelo Senhor Jesus perdendo-se de vista a base a seguranccedila e a motivaccedilatildeo principal para a missatildeo que eacute o triunfo e a exaltaccedilatildeo do Cristo ressurreto que ascendeu aos ceacuteus e que garante sua presenccedila constante com seus disciacutepulos em missatildeo Ele tambeacutem garante que as portas do inferno natildeo prevaleceratildeo contra a sua igreja (Mt 1618) Porque Jesus conquistou todo poder e toda autoridade nos ceacuteus e terra ele tem o direito legal de exercecirc-los sobre todas as coisas Sua morte e ressurreiccedilatildeo deram-lhe o direito legal de restaurar a criaccedilatildeo a qual fora colocada debaixo do cativeiro do pecado e de salvar aqueles por quem ele morreu pois levou sobre si todos os pecados deles tambeacutem num sentido legal Logo focar ape-nas na traduccedilatildeo do verbo πορευθέντες deixa muita coisa de fora pois omite a base da argumentaccedilatildeo racional da Grande Comissatildeo5 Portanto analisar a promessa que impele a Grande Comissatildeo eacute fundamental para o cumprimento dessa tarefa dada agrave igreja

1 TODA A AUTORIDADE (πᾶσα ἐξουσία)A palavra ἐξουσία (autoridade poder) eacute amplamente usada no Novo Tes-

tamento Tendo em vista os evangelhos e o livro de Atos encontramos o termo ἐξουσία nove vezes em Mateus (729 89 96 8 101 2123 24 27 2818) No evangelho de Marcos a palavra tambeacutem aparece nove vezes Jaacute Lucas e Joatildeo a utilizam dezesseis vezes e oito vezes respectivamente6 Analisando a autoridade de Cristo no contexto do livro de Mateus percebemos que Jesus se apresenta como aquele que tem autoridade sobre a terra para perdoar pecados (Mt 96) Eacute dito que as multidotildees se maravilhavam de sua doutrina porque ele as ensinava como quem tem autoridade (Mt 729) e o proacuteprio Jesus ainda afirma que tudo lhe havia sido entregue pelo Pai (Mt 1127) Logo apoacutes ressuscitar Jesus se apresenta aos seus disciacutepulos como algueacutem que tem toda a autoridade nos ceacuteus e na terra (Mt 2818) Curiosamente sempre que Mateus faz uso do termo ἐξουσία (autoridade) ele o faz somente com referecircncia a Jesus Quando se trata de seres humanos a palavra utilizada por ele eacute δύναμις (poder)7 De acordo com Craig Keener ldquoa autoridade de Jesus inclui a autoridade de dizer aos seus subordinados para iremrdquo8 Sua autoridade eacute singular eacute a uacutenica que

5 HORTON Michael A Grande Comissatildeo Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2014 p 276 LEE k VILJOEN F P ldquoThe Ultimate Comission the key for the gospel according to Matthewrdquo

Acta Theologica University of the Free State South Africa vol 30 n 1 (jun 2010) p 64-83 7 LAWRENCE Louise Joy An ethnography of the Gospel of Matthew A critical assessment of

the use of the honour and shame model in New Testament studies Tuumlbingen Mohr Siebeck 2010 p 1178 KEENER Craig S The Gospel of Matthew A Socio-Rhetorical Commentary Grand Rapids

Eerdmans 2009 p 178

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

74

pode ser declarada como autoridade absoluta autoridade da verdade autoridade de Deus9 Eacute com base nessa autoridade que Jesus ordena aos seus disciacutepulos para que vatildeo ao mundo e faccedilam disciacutepulos de todas as naccedilotildees batizem-nos em nome do Pai do Filho e do Espiacuterito Santo e os ensinem a guardar todas as coisas que Jesus havia ordenado aos doze David Bauer ainda destaca que a autoridade de Jesus pode ser vista em seus ensinamentos milagres nas pessoas que respondem a ele em seus tiacutetulos e em sua posiccedilatildeo uacutenica como uma figura divina ou messiacircnica10

Eacute importante observar que Jesus profere essas palavras apoacutes a sua ressur-reiccedilatildeo Assim todas as restriccedilotildees vinculadas agrave sua encarnaccedilatildeo agora natildeo mais estatildeo ligadas agrave sua natureza humana pois ele natildeo eacute mais o homem de dores ferido de Deus e oprimido Agora tendo triunfado sobre o pecado e a morte ele recebe autoridade divina sobre ceacuteus e terra11 Logo a autoridade que foi dada a Cristo refere-se agrave autoridade que ele recebe enquanto Deushomem A palavra ἐξουσία poderia ser traduzida como um estado de controle sobre algo liberdade de escolha o direito de agir ou decidir capacidade de fazer algo poder absoluto legitimidade12 O Novo Testamento emprega duas palavras para se referir a ldquopoderrdquo satildeo os termos ἐξουσία e δύναμις sendo que ἐξουσία eacute um termo mais abrangente do que δύναμις pois se refere tanto agrave posiccedilatildeo quanto agrave funccedilatildeo Logo nada na criaccedilatildeo estaacute fora da autoridade de Cristo o que denota sua autoridade divina13 Eacute desta forma que ele emprega essa palavra no contexto da Grande Comissatildeo Contudo em que sentido Cristo recebe essa autoridade apenas apoacutes a sua morte e ressurreiccedilatildeo Sendo Deus ele jaacute natildeo possuiacutea toda essa autoridade mesmo antes disso

Para tornar isso claro precisamos analisar o aspecto legal desta autori-dade ou seja o direito e o poder que Cristo tem sobre todas as coisas derivado de sua posiccedilatildeo como o segundo Adatildeo como aquele que veio para reverter a Queda O Dr Leandro de Lima ao abordar o tema da primeira vinda de Cris-to a denomina a grande batalha escatoloacutegica na qual a libertaccedilatildeo do povo de Deus estava sendo conquistada visto que era uma batalha juriacutedica ou legal uma batalha por autoridade Assim ele destaca que ldquoa vinda de Cristo foi uma

9 DODD C H The Authority of the Bible London Fontana Books 1960 p 23210 BAUER David R The Structure of Matthewrsquos Gospel A Study in Literary Design Sheffield

Almond 1988 p 115-11711 MORRIS Leon The Gospel according to Matthew Grand Rapids Eerdmans 1992 p 745-74612 LENSKI R C H The Eisenach Gospel Selections An Exegetical-Homiletical Treatment

Columbus The Lutheran Book Concern 1928 p 57713 OSBORNE Grant R The Resurrection Narratives A Redactional Study Grand Rapids Baker

1984 p 90

75

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

declaraccedilatildeo de guerra contra os inimigos [] mas uma guerra por direito por legitimidaderdquo14

11 A autoridade usurpadaEssa guerra por legitimidade teve iniacutecio no Eacuteden Quando Deus colocou

Adatildeo e Eva no jardim e lhes deu a missatildeo de governar tudo o que ele havia criado (Gn 126-27) eles eram na linguagem de Gerard Van Groningen os vice-gerentes de Deus Bruce Waltke comentando Gecircnesis 126-27 destaca que ldquoo texto estaacute dizendo que exercer domiacutenio real sobre a terra como repre-sentante de Deus eacute o propoacutesito baacutesico para o qual Deus criou o homemrdquo15 Van Groningen lanccedila luz sobre a questatildeo

Deus tinha um propoacutesito predeterminado para a humanidade Ela deveria ter um papel superior uma influecircncia dominante e um serviccedilo responsaacutevel Homem e mulher deveriam ser governadores sobre a criaccedilatildeo natural deveriam ser os representantes reais dentro do reino coacutesmico16

Dessa forma o homem foi colocado como mordomo de Deus junto agrave criaccedilatildeo Todas as coisas foram postas sob sua autoridade Ele deveria gover-nar sobre o que havia sido criado exercendo assim suas prerrogativas reais desenvolvendo o cosmos e mantendo-o Ao conferir esta autoridade e domiacutenio ao homem o Senhor estava colocando a humanidade em um relacionamento singular com o cosmos17 O homem tinha essas prerrogativas por direito o qual lhe tinha sido concedido pelo proacuteprio Deus pois como escreve o salmista ldquoFizeste-o no entanto por um pouco menor do que Deus e de gloacuteria e de honra o coroaste Deste-lhe domiacutenio sobre as obras de tua matildeo e sob seus peacutes tudo lhe pusesterdquo (Sl 85-6) Obviamente que Deus natildeo concedeu sua deidade aos seres humanos mas os colocou na mais alta posiccedilatildeo real na criaccedilatildeo e os dotou com o privileacutegio e a responsabilidade de serem cotrabalhadores com ele nas tarefas reais a serem executadas na criaccedilatildeo18 A terra foi criada para o domiacutenio e governo humanos Tal domiacutenio era expressatildeo do reino de Deus e representava o governo divino19

14 LIMA Leandro A de A grande batalha escatoloacutegica Satildeo Paulo Editora Agathos 2016 p 715 WALTKE Bruce Comentaacuterios do Antigo Testamento Genesis Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019

p 7716 VAN GRONINGEN Gerard Criaccedilatildeo e consumaccedilatildeo o reino a alianccedila e o Mediador Satildeo

Paulo Cultura Cristatilde 2018 vol 1 p 7917 Ibid p 9018 Ibid p 85 19 DEMPSTER Stephen G Dominion and Dynasty A Biblical Theology of the Hebrew Bible

New Studies in Biblical Theology 15 Downers Grove Illinois IVP Academic 2006 p 62

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

76

Se Adatildeo e Eva tivessem cumprido devidamente o mandato recebido de Deus Satanaacutes natildeo teria nenhum direito e legalidade sobre o cosmos e nem sobre os vice-gerentes de Deus Pois embora Satanaacutes tivesse acesso ao Eacuteden pelo fato de ser um anjo e por sua posiccedilatildeo no cosmos ele natildeo era capaz de introduzir o mal e o pecado diretamente dentro do Eacuteden e do cosmos pois natildeo lhe foram concedidas as prerrogativas reais e o status que foram concedidos por Deus a Adatildeo e Eva20 Por isso ele buscava para si o controle do reino coacutesmico de Deus mas para atingir seu objetivo era preciso encontrar uma brecha ele precisava usurpar este direito que pertencia ao primeiro casal e a uacutenica maneira de fazecirc--lo era entrar no Eacuteden e ganhar controle e influecircncia sobre os vice-gerentes de Deus Em Gecircnesis 215 Deus toma o homem e o coloca no jardim do Eacuteden para o cultivar e o guardar Um aspecto interessante da atividade do homem eacute que o termo guardar incluiacutea guardar o jardim contra a usurpaccedilatildeo de Satanaacutes Adatildeo e Eva natildeo eram apenas os sacerdotes de Deus mas tambeacutem os guardiotildees do jardim Eles que deveriam expulsar a serpente acabaram sendo expulsos por ela21 Ao inveacutes de prontamente se opor denunciar e expulsar o tentador blasfemo eacute digno de nota o fato de Adatildeo ter ficado passivo enquanto via sua esposa receber um tutorial deste estranho mestre de teologia a serpente22 Sa-tanaacutes estava desafiando a autoridade de Deus ao compelir o homem a escolher entre dois mestres23 Era a autoridade de Deus versus o desafio do mundo sob o domiacutenio de Satanaacutes24 Dessa maneira ao darem ouvidos agrave voz da serpente Adatildeo e Eva estavam deixando a autoridade de Deus e de sua palavra para se colocarem debaixo da autoridade do diabo e de suas mentiras submetendo-se ao pecado e ao poder do mal ficando destinados agrave morte25

Ao enganar e seduzir o primeiro casal Satanaacutes foi bem-sucedido em seu plano de introduzir o mal e o pecado no mundo (Gn 31-13) levando-os a duvidar de Deus e desobedececirc-lo Adatildeo e Eva quebraram o seu relacionamento com Yahweh com o cosmos e um com o outro Agora eles eram os quebradores do pacto natildeo mais tinham o senso de serem governadores reais e vice-gerentes de Deus Eles abdicaram do trono que Deus lhes havia dado renderam-se a Satanaacutes completamente e pecaram contra o Criador26 Com isso Satanaacutes obteve

20 GRONINGEN Criaccedilatildeo e consumaccedilatildeo p 12521 WALTKE Comentaacuterios do Antigo Testamento p 10322 GOLDINGAY John Old Testament Theology Israelrsquos Gospel Downers Grove IL IVP Aca-

demic 2003 p 13123 KLINE M G Kingdom Prologue Genesis Foundations for a Covenantal Worldview Eugene

OR Wipf amp Stock 2006 p 12324 ARNOLD Bill T Encountering the Book of Genesis Grand Rapids Baker Books 1998 p 4125 Segundo Gordon Wenham ldquoa serpente simboliza o pecado a morte e o poder do malrdquo WENHAM

Gordon J Genesis 1-15 World Biblical Commentary Waco TX 1987 p 14826 GRONINGEN Criaccedilatildeo e consumaccedilatildeo p 127

77

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

o domiacutenio sobre os vice-gerentes pactuais de Deus e consequentemente ob-teve domiacutenio sobre o cosmos O pecado que passou a fazer parte da natureza humana caiacuteda deu poder a Satanaacutes e seus anjos para serem acusadores dos seres humanos e tambeacutem para os dominarem e possuiacuterem Foi o princiacutepio da legalidade Satanaacutes conseguiu estabelecer o seu reino seu trono e seu domiacutenio substitutos dentro do cosmos27 Poreacutem seu reino eacute parasita ou seja natildeo pode existir independentemente pois depende do reino coacutesmico de Deus Ele eacute um intruso maligno querendo entronizar-se como o mestre dos seres humanos e do reino coacutesmico sobre o qual eles haviam recebido o domiacutenio e o mandato de zelar cultivar e governar28

Por meio da desobediecircncia de Adatildeo e Eva Satanaacutes foi capacitado a im-plantar seu reino parasita dentro do cosmos Sua intenccedilatildeo eacute ter domiacutenio com-pleto o que nunca seraacute consumado Seu reino eacute de oposiccedilatildeo espiritual ao reino de Deus e a todo o cosmos O ataque de Satanaacutes foi totalmente planejado pois visava destruir toda estrutura que Deus havia criado no jardim O interesse do inimigo natildeo era simplesmente conseguir que o homem pecasse contra Deus muito mais do que isso ele queria invadir cada estrutura de autoridade cada siacutembolo de reino e governo que Deus havia instituiacutedo29 Ele queria subverter toda a estrutura da criaccedilatildeo e queria que Deus fosse humilhado Eacute aqui que temos o estabelecimento da antiacutetese da linha divisoacuteria do abismo e da oposi-ccedilatildeo entre o reino de Deus e o reino parasita de Satanaacutes Logo apoacutes a queda do primeiro casal o Senhor pronuncia uma maldiccedilatildeo contra a serpente e declara inimizade entre a semente de Satanaacutes e os seguidores de Yahweh (cf Gn 315) Van Groningen mais uma vez traz clareza agrave questatildeo

Eacute basicamente uma luta pelo coraccedilatildeo pelo serviccedilo real e os benefiacutecios re-sultantes destes Deus Yahweh requereu o direito de posse Satanaacutes tambeacutem Ter os coraccedilotildees a proacutepria pessoa de Adatildeo e Eva natildeo era somente tecirc-los como servos mas tambeacutem reivindicar o cosmos sobre o qual tinham sido colocados como vice-gerentes Desse modo reivindicar os vice-gerentes era reivindicar o seu domiacutenio Reivindicar os seres reais era reivindicar suas prerrogativas reais dentro do domiacutenio Ter domiacutenio espiritual era tambeacutem ter o domiacutenio coacutesmico todos os aspectos do reino coacutesmico estariam envolvidos na luta quando Deus Yahweh sustentasse por declaraccedilatildeo a oposiccedilatildeo ie a antiacutetese30

Com a entrada do pecado no mundo o homem a quem Deus havia criado com liberdade de escolha usa seu livre arbiacutetrio para rebeliatildeo Adatildeo e Eva quebram o Pacto que Deus havia feito com eles caem do seu estado de

27 Ibid28 Ibid p 12629 Ibid p 15730 Ibid p 156

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

78

inocecircncia e tornam-se pecadores traindo a Deus num ato de rebeldia pois foi uma traiccedilatildeo universal (coacutesmica) uma traiccedilatildeo contra o Rei do cosmos31 Sua natureza que antes era santa agora estaacute corrompida pelo mal e manchada pelo pecado Seus pensamentos consciecircncia vontade e emoccedilotildees satildeo atingidos pela corrupccedilatildeo e pervertidos eles satildeo despojados de sua justiccedila original E assim condenam todos os seus descendentes a nascerem em iniquidade culpados corrompidos e destinados agrave morte32 Agora toda a criaccedilatildeo eacute colocada debaixo do cativeiro do pecado Aqui os vice-gerentes de Deus entregam nas matildeos da serpente o domiacutenio que tinham recebido do Criador perdendo seu status real e a autoridade de dominar e sujeitar toda criaccedilatildeo33 Contudo como assinala Derek Kidner ldquograccedilas agrave misericoacuterdia a maldiccedilatildeo recai sobre os domiacutenios do homem natildeo sobre o homem propriamente ditordquo34 Pois embora Adatildeo tenha ouvido palavras como fadiga suor morte e poacute sendo associadas agrave sua expe-riecircncia humana como consequecircncia de sua rebeliatildeo contudo a maldiccedilatildeo recai sobre a terra que se torna maldita por causa do pecado e porque seu domiacutenio eacute entregue a Satanaacutes Ademais o objetivo da serpente de minar a autoridade de Deus entre o povo que ele mesmo criou natildeo seraacute alcanccedilado pois no final ela seraacute destruiacuteda pela semente da mulher (cf Gn 315)35

12 A autoridade recuperada e ampliadaA fim de que esta autoridade fosse recuperada ou reconquistada algo

precisava ser feito E ningueacutem menos que o Filho de Deus foi quem realizou tal obra por meio de sua vitoacuteria na batalha juriacutedica da cruz Ao retrocedermos para muito antes da crucificaccedilatildeo temos de considerar a conversa que o diabo tem com Jesus por ocasiatildeo da tentaccedilatildeo no deserto Em Lucas 45-6 Satanaacutes num momento mostra a Cristo todos os reinos do mundo e a gloacuteria deles A seguir declara que daraacute toda essa autoridade sobre os reinos a Cristo se ele prostrado o adorar o que Cristo se recusou a fazer Mas um fato importante nesse episoacutedio eacute que o diabo afirma que a autoridade sobre todos os reinos do mundo foi entregue a ele por isso ele pode concedecirc-la a quem quiser O curioso eacute que Jesus natildeo o desmente e nem o questiona sobre tal afirmaccedilatildeo Apesar de ser o pai da mentira o diabo parece estar falando a verdade quando afirmou que tinha toda aquela autoridade sobre as naccedilotildees e reinos Pois no Eacuteden por ocasiatildeo da queda do ser humano ele recebeu autoridade para enganar as naccedilotildees e mantecirc-las sob cegueira espiritual Eacute digno de nota que ao tentar a Cristo

31 SPROUL R C A verdade da cruz Satildeo Paulo Fiel 2019 p 35-36 32 CALVINO Joatildeo Salmos Vol 2 Satildeo Paulo Fiel 2011 p 418-419 33 CHUNG Chun Kwang Missatildeo primordial os fundamentos da missatildeo em Gecircnesis 1-11 Satildeo

Paulo Missioloacutegica 2019 p 7334 KIDNER Derek Genesis introduccedilatildeo e comentaacuterio Satildeo Paulo Vida Nova 1979 p 6735 LONGMAN III Tremper Como ler Genesis Satildeo Paulo Vida Nova 2009 p 137

79

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

no deserto ele natildeo sabia que natildeo teria mais esta autoridade por muito tempo Porque Cristo por meio de sua morte e ressurreiccedilatildeo cassaria este direito legal de Satanaacutes e tomaria dele as naccedilotildees36

Quando comparamos as passagens de Lucas 46 com Mateus 2818 podemos perceber uma forte semelhanccedila entre as palavras que Satanaacutes usou para oferecer a autoridade dos reinos deste mundo a Jesus e a afirmaccedilatildeo de Jesus sobre o Pai ter-lhe concedido toda autoridade nos ceacuteus e na terra Em Lucas 46 Satanaacutes declara ldquoΣοὶ δώσω τὴν ἐξουσίαν ταύτην ἅπασαν καὶ τὴν δόξαν αὐτῶν ὅτι ἐμοὶ παραδέδοταιrdquo (ldquoA ti darei toda esta autoridade e a gloacuteria deles porque a mim foi entreguerdquo) Em Mateus 2818 Jesus decla-ra ldquoἘδόθη μοι πᾶσα ἐξουσία ἐν οὐρανῷ καὶ ἐπὶ τῆς γῆςrdquo (ldquoFoi dada a mim toda autoridade no ceacuteu e sobre a terrardquo) Jesus proclama sua autoridade nos ceacuteus e na terra repetindo quase que cada palavra proferida pelo diabo37 Podemos perceber que a batalha juriacutedica travada por Cristo eacute determinada pela antiacutetese entre o reino dos ceacuteus e o domiacutenio de Satanaacutes A tentaccedilatildeo com respeito aos reinos deste mundo (cf Lc 45ss e Mt 48ss) revela em que consistia o conflito entre Jesus e Satanaacutes O priacutencipe deste mundo (o diabo) estava se opondo ao reino de Deus por saber que Jesus disputaria essa autoridade com ele em nome de Deus sendo que Cristo jamais poderia fazer uso arbitraacuterio da autoridade que lhe fora dada antes deveria conquistaacute-la natildeo da maneira proposta por Satanaacutes mas da maneira determinada por Deus38 Enquanto a autoridade de Satanaacutes foi algo usurpado pela legalidade deixada por Adatildeo a autoridade de Cristo por sua vez foi um direito conquistado e recebido das matildeos um Deus soberano Ele natildeo usurpou tal autoridade antes ela lhe foi dada por Deus como uma capacitaccedilatildeo para um encargo39 Jesus eacute digno da autoridade que recebeu (Apocalipse 5) O que Satanaacutes ofereceu a Jesus foi ldquotoda autoridaderdquo sobre os reinos deste mundo mas o que Deus lhe concedeu foi toda autoridade nos ceacuteus e na terra dando-lhe um nome acima de todo nome (Fp 29-10) Isso aponta para o se-nhorio coacutesmico de Cristo

Fica claro que refletir sobre a obra realizada por Cristo em sua morte ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo eacute imprescindiacutevel para compreendermos o aspecto juriacutedico que envolve o plano da redenccedilatildeo A obra de Cristo efetua por assim dizer uma total renovaccedilatildeo coacutesmica colocando todos os reinos deste mundo sob seu domiacutenio conquistando a salvaccedilatildeo natildeo soacute de almas mas de corpos e natildeo soacute de seres humanos mas de toda a criaccedilatildeo40 Eacute com base nisto que pode-

36 LIMA A grande batalha escatoloacutegica p 29-3037 Ibid p 2938 RIDDERBOS Herman A vinda do Reino de Deus Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019 p 6439 KLAIBER Walter ldquoThe Great Commission of Matthew 2816-20rdquo American Baptist Historical

Quarterly vol XXXVII n 2 p 108-122 40 HORTON A Grande Comissatildeo p 72-73

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

80

mos entender o protoevangelho em gecircnesis 315 ldquoPorei inimizade entre ti e a mulher entre a tua descendecircncia e o seu descendente Este te feriraacute a cabeccedila e tu lhe feriraacutes o calcanharrdquo Na maldiccedilatildeo sobre a serpente veio embutida uma semente de esperanccedila para a humanidade uma esperanccedila genealoacutegica41

Eacute neste contexto mais amplo da alianccedila da graccedila que teve seu iniacutecio com a promessa divina de um redentor em Gecircnesis 315 que a Grande Comissatildeo eacute dada Jesus eacute o descendente da mulher que ao morrer na cruz e ressuscitar feriu a cabeccedila de Satanaacutes Ele esmagou a cabeccedila da serpente e estaacute pondo prisioneiros em liberdade pois lhe foi dada toda a autoridade nos ceacuteus e na terra42 Esta autoridade foi reivindicada por ele algumas vezes nos evangelhos quando falava de si mesmo como o ldquoFilho do Homemrdquo Tal expressatildeo aparece em Daniel 713-14 e eacute uma das mais usadas por Jesus para referir-se a si proacute-prio para falar de sua majestade de sua autoridade para perdoar pecados do seu poder legislador sobre o dia de saacutebado e da gloacuteria de sua segunda vinda (cf Mt 96 128 1627 2430 2531) Mateus 2818 parece ser uma alusatildeo consciente a Daniel 71443

Podemos dizer que Jesus estaacute edificando a sua igreja sobre a sua palavra e uma dessas palavras ocorre no evangelho de Mateus 2818-20 exatamente o texto da Grande Comissatildeo Mateus 2818 eacute o equivalente real a Daniel 714 ldquoE foi-lhe dado o domiacutenio e a honra e o reino para que todos os povos naccedilotildees e liacutenguas o servissem o seu domiacutenio eacute um domiacutenio eterno que natildeo passa-raacute e o seu reino tal que natildeo seraacute destruiacutedordquo Jesus reivindica ser este Filho do Homem profetizado por Daniel44 Eacute com base em sua proacutepria identidade que ele entrega a Grande Comissatildeo aos seus disciacutepulos Portanto Cristo eacute o centro de toda proclamaccedilatildeo missionaacuteria45 ele eacute o personagem central da missatildeo sua pessoa eacute o centro da Escritura (Lc 2427 44) e eacute ele mesmo quem deve ser proclamado (Lc 2446-47) Os disciacutepulos devem proclamar o evangelho com base no direito de Cristo o qual veio a este mundo para impor o direito divino sobre Satanaacutes e assim libertar os cativos O evangelho iraacute prevalecer46 Cristo veraacute o fruto do penoso trabalho de sua alma e ficaraacute satisfeito pois agrave medida que o evangelho for sendo proclamado a todas as naccedilotildees o Senhor atrairaacute muitos pecadores a si e justificaacute-los-aacute (Is 5311)

41 DEMPSTER Dominion and Dynasty p 6842 LIMA A grande batalha escatoloacutegica p 8243 CARSON Donald A O comentaacuterio de Mateus Satildeo Paulo Shedd 2011 p 68744 KLAIBER ldquoThe Great Commissionrdquo p 108-12245 PIPER John Alegrem-se os povos a supremacia de Deus em missotildees Satildeo Paulo Cultura

Cristatilde 2001 p 23446 LIMA A grande batalha escatoloacutegica p 45

81

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

2 O PODER DO EVANGELHOToda menccedilatildeo ao evangelho feita neste artigo tem como base a seguinte

definiccedilatildeo ldquoO evangelho eacute a mensagem de Deus para a redenccedilatildeo de sua igreja Eacute o poder de Deus que se manifesta na transformaccedilatildeo de pessoas Eacute o proacuteprio Senhor Jesus quem ele eacute o que ele fez na cruz e na ressurreiccedilatildeordquo47 Posto isto o poder o triunfo e os efeitos do evangelho satildeo infinitamente maiores do que a maioria de noacutes imagina

Em Colossenses 214 Paulo faz uso de uma metaacutefora tirada do mundo juriacutedico ele fala de uma espeacutecie de certificado de diacutevida uma cobranccedila de nossa diacutevida legal Ao comentar este versiacuteculo James Dunn diz que o pano de fundo aqui por meio da expressatildeo ldquocontra noacutesrdquo confirma que o documento em questatildeo era de condenaccedilatildeo era um registro de nossas transgressotildees hostil a noacutes Dunn ainda argumenta que a redenccedilatildeo realizada na cruz sob estas imagens efetua o cancelamento ou apagamento dos registros de um livro A eliminaccedilatildeo dos registros confirma que nenhuma destas transgressotildees eacute mais mantida contra noacutes em outras palavras a metaacutefora eacute outra maneira de dizer que ldquoele perdoou todas as nossas transgressotildeesrdquo48 Paulo usa uma imagem viacutevida ao afirmar que Cristo ao ser crucificado removeu destruiu o registro de diacutevida que era contra noacutes A ideia eacute de a acusaccedilatildeo estar sendo destruiacuteda por meio da crucificaccedilatildeo como se a proacutepria acusaccedilatildeo estivesse sendo crucificada Nossas transgressotildees foram absorvidas na morte sacrifical de Cristo49 Em Colossenses 215 Paulo daacute ecircnfase ao triunfo do Senhor ressurreto sobre principados e potestades Se em Colossenses 214 a cruz eacute siacutembolo de destruiccedilatildeo no sentido de cancelar ou destruir o escrito de diacutevida agora em Colossenses 215 ela eacute transformada em uma imagem puacuteblica de triunfo50

A versatildeo Todayrsquos New International Version traduz a expressatildeo ldquodespojan-do principados e potestadesrdquo como ldquotendo desarmado os principados e potes-tadesrdquo Douglas Moo ao analisar exegeticamente esses versiacuteculos afirma que foi na cruz que Deus desarmou tirou as armas dos dominadores deste mundo mas que foi na ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo de Cristo que Deus exibiu publicamente a realidade do triunfo de Cristo sobre os principados e potestades Para Moo o apoacutestolo Paulo ao usar a sequecircncia dos versiacuteculos 14 e 15 parece sugerir uma ligaccedilatildeo entre o perdatildeo de nossos pecados e o desarmamento dos poderes

47 LIDOacuteRIO Ronaldo Revitalizaccedilatildeo de igrejas avaliando a vitalidade de igrejas locais Satildeo Paulo Vida Nova 2016 p 21

48 DUNN James D G The Epistles to the Colossians and to Philemon Grand Rapids Eerdmans 2016 p 164-166

49 Ibid50 Ibid

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

82

das trevas51 Mais uma vez podemos perceber o aspecto juriacutedico da obra de Cristo seu direito e senhorio sobre todas as coisas

Esta verdade tambeacutem eacute encontrada em Efeacutesios 120-21 quando Paulo afirma que Deus ressuscitou a Jesus dentre os mortos e o fez assentar acima de todo governo domiacutenio principado e potestade Ele ensina a mesma verdade em Romanos 13-4 ao afirmar que Jesus foi designado Filho de Deus com poder por meio da ressurreiccedilatildeo Eacute quando ele ascende aos ceacuteus para assentar-se agrave direita do Pai que ele proclama sua vitoacuteria sobre os seres espirituais malignos (1Pe 318-22)52

1Pedro 318-22 eacute outro texto que apresenta a vitoacuteria da Cristo na batalha juriacutedica do Calvaacuterio Aqui o apoacutestolo Pedro fala acerca da morte e ressurreiccedilatildeo de Cristo seu triunfo e a proclamaccedilatildeo de sua vitoacuteria sobre os principados e potestades No versiacuteculo 19 Pedro usa o verbo ἐκήρυξεν (proclamar) para dizer que Jesus apoacutes ressuscitar proclamou sua vitoacuteria aos anjos caiacutedos (espiacuteritos em prisatildeo) anunciou o seu triunfo sobre seus adversaacuterios O texto termina dando destaque ao fato de que Jesus Cristo apoacutes ter subido aos ceacuteus estaacute agrave matildeo direita de Deus estando-lhe sujeitos os anjos autoridades e potestades (322) Pedro objetiva deixar claro que natildeo haacute nada nos ceacuteus e na terra que tenha ficado fora do domiacutenio de Cristo O alvo de Cristo ao fazer uma proclamaccedilatildeo especiacutefica a esses anjos em prisatildeo foi mostrar que nem mesmo aqueles antigos anjos caiacutedos que estavam haacute tanto tempo aprisionados ficaram alheios ao senhorio de Jesus53 ldquoO Senhor ressuscitado eacute o evangelho vivordquo54 ndash isto quer dizer que o evangelho venceu triunfou A ecircnfase do texto estaacute na obra de Cristo na cruz e no que ele conquistou ou seja a morte e a ressurreiccedilatildeo de Cristo garantem a libertaccedilatildeo dos seres humanos dos poderes dos espiacuteritos malignos55 Cristo se manifestou para tirar os pecados e para destruir as obras do diabo (1Jo 35 8) aleacutem de conquistar o direito de restaurar toda a criaccedilatildeo libertando-a do cativeiro do pecado (Rm 821)

Apocalipse 59-10 eacute mais um texto que apresenta essa questatildeo juriacutedica da morte e ressurreiccedilatildeo de Cristo e de como ele tem o direito de exercer seu senhorio sobre todas as coisas e de salvar pessoas que procedem dos quatro cantos da Terra No versiacuteculo 9 Joatildeo declara que Jesus ἠγόρασας (comprou) para Deus pessoas que procedem de toda tribo povo liacutengua e naccedilatildeo Cristo comprou a libertaccedilatildeo do seu povo da maldiccedilatildeo e da penalidade do pecado Mais do que isso ele comprou pessoas elas lhe pertencem Por meio de sua

51 MOO Douglas J The Letters to the Colossians and Philemon Grand Rapids Eerdmans 2008 p 215

52 Ibid p 21553 LIMA A grande batalha escatoloacutegica p 11054 DALTON William Joseph Christrsquos Proclamation to the Spirits A Study of 1 Peter 318-46

Roma Editrice Pontificio Istituto Biblico 1989 p 9 55 Ibid

83

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

morte sacrificial Cristo comprou um povo para si O verbo ἠγόρασας eacute usado como uma metaacutefora comercial para a libertaccedilatildeo de um prisioneiro de guerra da escravidatildeo Desta forma sua morte foi um resgate um preccedilo pago pelo qual Deus comprou um povo O texto mostra que o preccedilo foi o sangue incorrup-tiacutevel de Cristo que garante natildeo soacute a liberdade do seu povo mas que tambeacutem o coloca em uma nova condiccedilatildeo espiritual Agora esse povo eacute escravo de Deus comprado para fazer sua vontade Eacute o povo de propriedade exclusiva de Deus A redenccedilatildeo efetuada confere uma nova condiccedilatildeo56

Cristo possui toda a autoridade no ceacuteu e na terra Com base em sua vitoacuteria na terra ele expulsou Satanaacutes do santuaacuterio do ceacuteu onde ele acusava os santos dia e noite (Apocalipse 12)57 Apoacutes prender ou amarrar o valente Cristo estaacute saqueando sua casa na terra tomando de volta o que por justiccedila lhe pertence (Mt 1229) Douglas Moo ao abordar a visatildeo claacutessica da expiaccedilatildeo mostra que haacute uma conexatildeo entre o poder que Satanaacutes e seus correligionaacuterios tinham sobre os seres humanos por causa do seu pecado Contudo Deus com a provisatildeo de Cristo pagou a diacutevida que os homens tinham com Satanaacutes O Pai ao enviar seu Filho agrave cruz resolveu de maneira final e definitiva o problema do pecado e removeu qualquer poder que os espiacuteritos malignos possam ter sobre os se-res humanos Moo ainda destaca que a vitoacuteria de Cristo celebrada e exibida na sua ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo precisa ser entendida pelos crentes como se fosse deles Logo a autoridade de Cristo sobre os principados e potestades foi manifestada e em Cristo os crentes compartilham dessa autoridade58 A obra realizada por Cristo em sua morte ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo pode ser bem definida nestas palavras de Horton

Nosso Senhor realizou algo na Histoacuteria ndash em sua vida morte ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo ndash que o qualifica para ser juiz e justificador dos iacutempios Jesus eacute tanto o Senhor da Alianccedila que comanda quanto o Servo da Alianccedila que cumpre toda a justiccedila e obteacutem para noacutes o perdatildeo o novo nascimento a ressurreiccedilatildeo e a renovaccedilatildeo de toda a criaccedilatildeo Como Deus ele eacute Senhor como ser humano ele ldquofoi designado Filho de Deus com poder segundo o espiacuterito de santidade pela ressurreiccedilatildeo dos mortos a saber Jesus Cristo nosso Senhorrdquo (Rm 14)59

56 OSBORNE Grant Comentaacuterio exegeacutetico Apocalipse Satildeo Paulo Vida Nova 2014 p 290-29157 Antes da morte e ressurreiccedilatildeo de Cristo ao que tudo indica Satanaacutes tinha livre acesso ao ceacuteu

onde atuava como uma espeacutecie de promotor de justiccedila acusando os seres humanos de suas transgressotildees da lei divina Ao morrer Cristo pagou todo o preccedilo do resgate do ser humano destronando o acusador que jaacute natildeo tem mais base para continuar acusando o povo de Deus Satanaacutes perdeu seu posto de acu-sador no ceacuteu sua cadeira ficou vazia ele natildeo tem mais legitimidade para agir como acusador no ceacuteu LIMA Leandro Antocircnio de ldquoApocalipse como literatura um estudo sobre a importacircncia da anaacutelise da arte literaacuteria em apocalipse 12-13rdquo Dissertaccedilatildeo (Doutorado em Letras) Satildeo Paulo Universidade Presbiteriana Mackenzie 2012 p 188-189

58 MOO The Letters to the Colossians and Philemon p 21659 HORTON A Grande Comissatildeo p 42

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

84

Walter Klaiber afirma que a ressurreiccedilatildeo de Jesus jaacute eacute sua exaltaccedilatildeo60 Este eacute um ponto importante em nossa discussatildeo pois ao ressuscitar Cristo triunfa sobre o pecado sobre a morte e sobre Satanaacutes e seus anjos Em Romanos 14 lemos ldquoe foi designado Filho de Deus com poder segundo o espiacuterito de santidade pela ressurreiccedilatildeo dos mortos a saber Jesus Cristo nosso Senhorrdquo Sobre este texto John Stott declara que ldquoa ressurreiccedilatildeo eacute o ponto decisivo na existecircncia do Filho de Deus Antes de ressuscitar ele era o Filho de Deus em fraqueza a humildade Por meio da ressurreiccedilatildeo torna-se o Filho de Deus em poderrdquo61 Eacute digno de nota que Jesus soacute entrega a Grande Comissatildeo aos seus disciacutepulos apoacutes ressuscitar ldquoA ressurreiccedilatildeo marca a vitoacuteria incontestaacutevel de Cristordquo62 Ele obteve toda autoridade nos ceacuteus e na terra por meio de sua humilhaccedilatildeo sofrimento e morte63 A ressurreiccedilatildeo de Cristo deu iniacutecio agrave nova criaccedilatildeo de Deus sendo os cristatildeos as primiacutecias desta nova criaccedilatildeo Eacute por isso que Paulo escrevendo aos coriacutentios afirma ldquoMas de fato Cristo ressuscitou dentre os mortos sendo ele as primiacutecias dos que dormemrdquo (1Co 1517-20) Sua ressurreiccedilatildeo eacute a garantia de redenccedilatildeo do seu povo mas tambeacutem de todo o cos-mos Ademais ldquofoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de mortos como de vivosrdquo (Rm 149) Jesus morreu natildeo apenas para salvar seu povo dos pecados deles mas para ter o controle absoluto da nova criaccedilatildeo64 Diante dele todo joelho tem de se dobrar e toda liacutengua con-fessar que ele eacute o Senhor (Fp 29-11) ldquoEle estaacute agora amplamente instalado e declarado como Juiz e somente ele pode receber os apelos para absolviccedilatildeordquo65 Desta maneira o conceito de salvaccedilatildeo implica render-se ao senhorio de Cristo pois Jesus foi designado Juiz de todos os povos graccedilas agrave sua ressurreiccedilatildeo e foi colocado por Deus como o centro de toda a obra salvadora de Deus66 As implicaccedilotildees missioloacutegicas do seu triunfo como Juiz universal satildeo a base para a Grande Comissatildeo ldquoA ordem dada por Jesus de pregar o arrependimento e o perdatildeo de pecados repousava sobre sua ressurreiccedilatildeo Esse eacute o conteuacutedo da comissatildeordquo67 Com base nisto o Senhor Jesus comissiona seus disciacutepulos a irem pelo mundo e pregarem o evangelho a toda criatura

60 KLAIBER ldquoThe Great Commissionrdquo p 108-12261 STOTT John R W A mensagem de Romanos Satildeo Paulo ABU Editora 2007 p 5162 LIMA A grande batalha escatoloacutegica p 90 63 RIDDERBOS A vinda do Reino de Deus p 9964 SILVA Norval Oliveira da A mensagem de salvaccedilatildeo num contexto animista A questatildeo indiacutegena

uma luta desigual Minas Gerais Editora Ultimato 2008 p 20065 PIPER Alegrem-se os povos p 150 66 Ibid p 142 e 15067 STETZER Ed Plantando igrejas missionais como plantar igrejas biacuteblicas saudaacuteveis e rele-

vantes agrave cultura Satildeo Paulo Vida Nova 2015 p 64

85

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

3 AS GARANTIAS DO EVANGELHOSobre a questatildeo levantada no iniacutecio a respeito da traduccedilatildeo do verbo

πορευθέντες o autor deste artigo concorda com a posiccedilatildeo do professor Bos-ma de que o ldquoirrdquo faz parte do mandamento de se fazer disciacutepulos pois tanto eacute importante o discipulado local (fazer disciacutepulos e ensinar) quanto as missotildees transculturais Ademais estaacute claro que o Ide tem forccedila imperativa Logo natildeo faz sentido criar uma tensatildeo entre discipulado e missotildees pois as duas coisas estatildeo incluiacutedas e interligadas na Grande Comissatildeo ambas estatildeo debaixo da autoridade de Cristo

A ordem para que o evangelho fosse proclamado entre todas as naccedilotildees foi dada por Cristo aos seus disciacutepulos logo apoacutes sua vitoacuteria na batalha juriacute-dica travada na cruz e consumada na ressurreiccedilatildeo O Pai concedeu-lhe toda a autoridade nos ceacuteus e na terra bem como o direito de exercer essa autoridade sobre principados e potestades e abriu as portas para que o evangelho fosse pregado a todas as naccedilotildees sem impedimento algum68 Eric Kayayan declara que ldquoa proclamaccedilatildeo do evangelho de Jesus Cristo eacute o cetro por meio do qual Deus deseja governar o mundo e sua autoridade divina eacute expressa para que todos se submetam a elardquo69 Jesus deteacutem o direito de controlar todas as coisas e de exigir obediecircncia70 Faz-se necessaacuterio destacar que todos os eventos associados agrave primeira vinda de Cristo desde sua encarnaccedilatildeo ateacute a coroaccedilatildeo satildeo decisi-vos para a expulsatildeo de Satanaacutes do ceacuteu e seu aprisionamento para cercear sua influecircncia enganadora entre as naccedilotildees (cf Ap 121-6) Agrave medida que a igreja cumpre a Grande Comissatildeo a verdade do evangelho vai tomando o lugar da mentira do diabo e Cristo atrai a si todos os eleitos dentre as naccedilotildees A igreja enquanto uma poderosa organizaccedilatildeo missionaacuteria que proclama o evangelho entre as naccedilotildees natildeo pode ser destruiacuteda pelo diabo71 Michael Horton eacute asser-tivo ao dizer que ldquoa Grande Comissatildeo comeccedila com um triunfante anuacutencio de que toda a autoridade nos ceacuteus e na terra pertence a Jesus Cristo O evangelho

68 De acordo com a interpretaccedilatildeo amilenista do texto de Apocalipse 121-6 por ocasiatildeo da primeira vinda de Cristo Satanaacutes foi aprisionado no sentido de natildeo poder enganar as naccedilotildees para impedi-las de aprender a verdade acerca de Deus Logo durante a era do evangelho ele natildeo pode congregar todos os inimigos de Cristo para atacarem conjuntamente a igreja E embora sua influecircncia natildeo seja eliminada ela eacute tatildeo restringida que ele eacute incapaz de impedir a disseminaccedilatildeo do evangelho entre as naccedilotildees do mundo Por causa do aprisionamento de Satanaacutes na atualidade as naccedilotildees natildeo podem conquistar a igreja mas a igreja estaacute conquistando as naccedilotildees HOEKEMA Anthony A A Biacuteblia e o futuro Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2012 p 243-245

69 KAYAYAN Eric ldquoChristrsquos Fourfold Declaration of Authorityrdquo Unio Cum Cristo Philadeplphia v 5 n 2 (out 2019) p 5-13

70 CARSON Donald A Os perigos da interpretaccedilatildeo da Biacuteblia Satildeo Paulo Vida Nova 2011 p 5271 HENDRIKSEN William Mais que vencedores os misteacuterios do Apocalipse desvendados com

profundidade e fidelidade Trad Wadislau Martins Gomes Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011 p 220-222

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

86

que traz salvaccedilatildeo tambeacutem orienta a igreja em sua missatildeordquo72 Dessa maneira a afirmaccedilatildeo de que toda a autoridade em todo o reino coacutesmico de Deus foi dada ao Cristo ressurreto eacute um preluacutedio apropriado para a ordem que se segue pois a posse de tal autoridade era um requisito para a emissatildeo efetiva de tal ordem73 ldquoPor causa de sua autoridade seus seguidores podem ir confiantes de que seu Senhor estaacute no controle soberano de tudo nos ceacuteus e na terrardquo74

Assim as duas declaraccedilotildees que estruturam as palavras de Jesus na Grande Comissatildeo podem ser consideradas como a ldquoGrande Garantiardquo A primeira eacute que Cristo tem toda a autoridade nos ceacuteus e na terra que eacute a capacitaccedilatildeo dada por Deus para um encargo A segunda declaraccedilatildeo eacute a garantia de sua presen-ccedila constante pois Cristo garante que seus disciacutepulos natildeo estaratildeo sozinhos ele estaraacute com eles enquanto cumprem sua missatildeo75 Na teologia biacuteblica do evangelho de Mateus Jesus eacute apresentado como o ldquoEmanuelrdquo que quer dizer ldquoDeus conoscordquo (cf Mt 123 e 2820) Eacute essa consciecircncia da presenccedila do Cristo ressurreto e glorificado entre os seus disciacutepulos que garante o cumprimento da missatildeo76 Logo podemos dizer que o evangelho antecede a missatildeo porque o sucesso na tarefa depende inteiramente daquilo que Cristo jaacute realizou em sua primeira vinda

Esta autoridade de Cristo natildeo eacute um poder (δύναμις) que um grande con-quistador pode reivindicar Mas refere-se agrave autoridade (ἐξουσία) que eacute sua por direito a qual lhe foi conferida por aquele que tem o direito de concedecirc-la77 Donald Carson ao comentar sobre a autoridade de Jesus neste texto diz que as esferas em que ele agora exerce autoridade absoluta foram ampliadas para incluir os ceacuteus e a terra ou seja o universo O pai estaacute desobrigado da autori-dade do Filho Jesus eacute aquele por meio de quem a autoridade do Pai eacute mediada Carson ainda comenta que esta eacute uma guinada na histoacuteria da redenccedilatildeo pois o reino do Messias manifesta-se com novo poder78 Ao ressuscitar Jesus vence a morte e conquista a salvaccedilatildeo de sua igreja Sua ressurreiccedilatildeo abastece o mandato missionaacuterio79 Por meio de sua ressurreiccedilatildeo Cristo estaacute introduzindo uma nova era e sua igreja tem a tarefa de testemunhar essa verdade por todo o mundo

72 HORTON A Grande Comissatildeo p 2373 MCGARVEY John William The New Testament Commentary Matthew and Mark Delight

AR Gospel Light Publishing Company 1875 p 25374 CARSON O comentaacuterio de Mateus p 68875 KLAIBER ldquoThe Great Commissionrdquo p 108-122 76 ZABATIERO Juacutelio Paulo Tavares LEONEL Joatildeo Biacuteblia literatura e linguagem Satildeo Paulo

Paulus 2011 p 9677 Dr Constablersquos Expository Bible Study Notes Disponiacutevel em httpsplanobiblechapelorg

tconnotespdfmatthewpdf Acesso em 12 fev 202178 CARSON Donald A O comentaacuterio de Mateus p 68779 STOTT John R W Ouccedila o Espiacuterito ouccedila o mundo Satildeo Paulo Editora ABU 1997 p 409

87

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

Apoacutes ressuscitar ele ordena que em seu nome seja pregado o arrependimento e a remissatildeo dos pecados em todas as naccedilotildees (Lc 2446-47) Ele conquistou o direito legal para que a missatildeo seja cumprida Todas as barreiras satacircnicas caiacuteram pois Cristo conquistou o direito sobre toda a criaccedilatildeo Portanto eacute com base nessa nova ordem das coisas que Jesus envia seus disciacutepulos para a mis-satildeo de evangelizar o mundo dando certeza de sua presenccedila vitoriosa como uma garantia de que o evangelho triunfaraacute80 Posto isto Deus eacute quem cria e sustenta a existecircncia e o crescimento de sua igreja por meio de sua Palavra Esta mesma Palavra deve ser proclamada ao mundo a fim de que o reino de Cristo se expanda ateacute aos confins da terra Como Horton diz ldquoA decisatildeo do Pai eacute irrevogaacutevel A missatildeo de Cristo jaacute foi realizada e o Espiacuterito teraacute igual ecircxito em seus labores Segue-se pois que a Grande Comissatildeo natildeo falharaacuterdquo81

Na anaacutelise de Walter Klaiber isso fica bastante claro

A Grande Comissatildeo nada mais eacute do que a consequecircncia da Grande Garantia Portanto vaacute porque eu Jesus tenho toda autoridade sobre as naccedilotildees em minhas matildeos A missatildeo da igreja natildeo eacute uma cruzada para subjugar as naccedilotildees para Cristo sua tarefa eacute introduzir as naccedilotildees na realidade do domiacutenio de Cristo82

Uma vez mais o professor Michael Horton traz sua contribuiccedilatildeo ao dizer que ldquoo mandato da Grande Comissatildeo eacute como a estrela-guia para reajustar o foco da nossa missatildeo como cristatildeos e como igrejas na vocaccedilatildeo central para este periacuteodo entre as duas vindas de Cristordquo83 Logo satildeo os indicativos do evan-gelho que impulsionam e direcionam a igreja em sua missatildeo de proclamaacute-lo

CONSIDERACcedilOtildeES FINAISA Grande Comissatildeo exigiu uma resposta por parte dos primeiros dis-

ciacutepulos Eles eram servos inadequados e hesitantes Natildeo obstante foram chamados para cumprir o propoacutesito divino ao continuarem a ensinar aquilo que Jesus iniciou84 Eles enfrentariam tempos difiacuteceis pois estavam sendo enviados a um mundo hostil a Deus e ao evangelho Jesus lhes disse que seriam perseguidos accediloitados presos e ateacute martirizados (cf Jo 1518ndash164) Mas o reino de Deus iria avanccedilar o evangelho triunfaria a despeito de todos os ataques do inimigo (cf At 1920) Por semelhante modo a Grande Co-missatildeo exige uma resposta de todos os verdadeiros disciacutepulos de todas as eacutepocas A resposta adequada que devemos dar a estas palavras de Cristo eacute

80 LIMA A grande batalha escatoloacutegica p 8281 HORTON A Grande Comissatildeo p 3682 KLAIBER ldquoThe Great Commissionrdquo83 HORTON A Grande Comissatildeo p 984 FRANCE R T The Gospel of Matthew Grand Rapids Eerdmans 2007 p 1109

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

88

a de unir-nos aos onze disciacutepulos em adoraccedilatildeo e obediecircncia ao Senhor dos ceacuteus e da terra a fim de cumprirmos nosso papel na proclamaccedilatildeo das boas novas de salvaccedilatildeo do reino de Deus a todas as naccedilotildees e deleitarmo-nos com a certeza de que mesmo diante de um mundo hostil a Deus e ao seu povo mesmo em face da perseguiccedilatildeo que este mundo possa nos oferecer natildeo temos de temer porque se a presenccedila fiacutesica de Jesus com seus disciacutepulos estava limitada a seu periacuteodo de vida terrena por sua vez a presenccedila espiritual do Senhor ressurreto natildeo tem semelhante limitaccedilatildeo pois Cristo garante que sempre estaraacute entre seu povo obediente Ele eacute o Deus conosco85

Ainda podemos dizer que a proacutepria analogia usada no Novo Testamento para descrever a tarefa a ser cumprida na Grande Comissatildeo eacute a de embaixado-res arautos oficiais que foram designados pelo chefe da naccedilatildeo para anunciar algo de grande importacircncia para o mundo em geral Por semelhante modo o termo ldquoevangelhordquo era usado para se referir agrave boa notiacutecia que um oficial era comissionado a anunciar na sede a saber que tinha havido vitoacuteria no campo de batalha86 ldquoO evangelho antecede a evangelizaccedilatildeordquo87 Eacute a boa nova daquilo que Deus fez em Cristo e por meio dele que libera e impulsiona a igreja a adentrar o mundo com o evangelho As boas novas do evangelho falam da vitoacuteria de Cristo mostram que as portas estatildeo abertas por todo o mundo pois as barreiras satacircnicas caiacuteram Agora o reino de Deus avanccedila pelo mundo in-teiro vai a todas as naccedilotildees ningueacutem pode deter o avanccedilo do evangelho ele vai por todo o mundo

Sem duacutevida a igreja eacute embaixadora de um reino indestrutiacutevel Cristo estaacute presente entre noacutes atraindo pecadores a si Ele estaacute edificando a sua igreja e as portas do inferno jamais prevaleceratildeo contra ela (Mt 1618) Eacute somente Jesus quem pode formar ou edificar a igreja porque a igreja eacute dele e natildeo nossa Somos conclamados a anunciar em todas as naccedilotildees o evangelho do reino o reino do Filho do Homem um reino inabalaacutevel o qual natildeo pode ser frustrado por nossa infidelidade justamente porque natildeo se trata de um reino que noacutes mesmos estamos edificando e sim um reino que estamos recebendo (Hb 1228) pois Jesus edifica sua igreja empregando meios estabelecidos por ele mesmo e garantindo sua presenccedila salviacutefica88

O evangelho natildeo pode ser contido A despeito de toda perseguiccedilatildeo nada o segura Ele eacute universal e alcanccedila todas as naccedilotildees Por isso antes de colocar o imperativo Jesus deu o maior dos estiacutemulos e o grande fundamento missio-naacuterio o seu triunfo A autoridade que Cristo conquistou por ocasiatildeo de sua ressurreiccedilatildeo eacute a uacutenica razatildeo pela qual os disciacutepulos satildeo convocados a irem pelo

85 Ibid86 HORTON A Grande Comissatildeo p 1587 Ibid p 2688 Ibid p 332

89

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

mundo e fazerem disciacutepulos dele89 O Mestre estava lhes mostrando que sua obra jaacute foi consumada e mesmo que eles ainda natildeo vissem os efeitos dela por completo ela foi realizada em sua primeira vinda de maneira que o reino de Deus agora cresce e nada pode contecirc-lo

A compreensatildeo dessa realidade cristoloacutegica exerce uma enorme diferenccedila em nossa motivaccedilatildeo confianccedila e esperanccedila para cumprimos nosso papel na Grande Comissatildeo A vitoacuteria foi conquistada por Cristo e noacutes como os seus arautos devemos apenas proclamaacute-la natildeo esquecendo obviamente de fazer disciacutepulos de todas as naccedilotildees batizaacute-los e ensinaacute-los em tudo aquilo que Cristo ordenou Quando a igreja cumpre a Grande Comissatildeo estaacute honrando e respei-tando o senhorio de Cristo pois ele tem o direito de exigir nossa obediecircncia

Portanto a missatildeo da igreja aponta para o escaton Quando o presente estado de coisas terminar e ceacuteus e terra forem renovados uma multidatildeo de redimidos estaraacute diante do trono adorando ao Cordeiro de Deus pois a Grande Comissatildeo foi cumprida ldquoE ouvi a toda a criatura que estaacute no ceacuteu e na terra e debaixo da terra e que estatildeo no mar e a todas as coisas que neles haacute dizer Ao que estaacute assentado sobre o trono e ao Cordeiro sejam dadas accedilotildees de graccedilas e honra e gloacuteria e poder para todo o sempre (Ap 513)90

ABSTRACTThe legal context in which the Great Commission was given involves the

four great themes of Scripture creation fall redemption and consummation When placed in Eden Adam was tasked with governing all that God had created When he sinned he gave this authority to Satan When Christ died and rose again he fulfilled his redemptive purpose and as the last Adam recovered and extended the authority lost by the first The Great Commission in Matthew 2818-20 begins not in verse 19 but already in verse 18 when the risen Lord based on this same authority commands his disciples to go out into the world and make disciples of all nations Therefore this article aims to analyze the word ldquoἐξουσίαrdquo (authority) especially in the context of the Gospel of Matthew in order to reflect on the authority lost by Adam and regained by Christ and to evaluate how the triumph and exaltation of Christ are the guarantee of the missionrsquos success how they give meaning to the ldquogordquo invest the church with authority and propel the disciples to the fulfillment of the Great Commission pointing to the eschaton

KEYWORDSBiblical theology New Testament Great Commission Kingdom Gospel

Authority Legal battle

89 KAYAYAN ldquoChristrsquos Fourfold Declaration of Authorityrdquo p 5-1390 PIPER Alegrem-se os povos p 13

91

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 91-101

IGREJAS E HISTOacuteRIA UM MODELO PARA INTERPRETAR A DIFERENCcedilA ENTRE O CATOLICISMO ROMANO

E O PROTESTANTISMOPaul Wells

RESUMOEste artigo1 aborda o conceito de tradiccedilatildeo a maneira pela qual um grupo

religioso apresenta no desenvolvimento da histoacuteria a relaccedilatildeo entre o mundo espiritual e o mundo histoacuterico material A tradiccedilatildeo situa o grupo em relaccedilatildeo agraves suas origens transmite crenccedilas e quando se trata de outro mundo evoca o ceacuteu e daacute esperanccedila No cristianismo existem duas maneiras de considerar e representar a relaccedilatildeo entre o mundo espiritual e o mundo material O catolicismo romano representa essa relaccedilatildeo como comparaacutevel agrave que existe entre um ato e a intenccedilatildeo por traacutes do ato O protestantismo considera tal relaccedilatildeo comparaacutevel agrave que existe entre uma palavra e seu sentido Para abordar o tema Igreja e histoacuteria o autor propotildee fazer uma comparaccedilatildeo entre essas duas posiccedilotildees em trecircs aacutereas a Igreja e os sacramentos a Escritura e a tradiccedilatildeo o Espiacuterito Santo e a vida cristatilde Ao concluir explica por que a posiccedilatildeo protestante expressa pela Reforma representa o cristianismo autecircntico e como essa posiccedilatildeo estaacute ameaccedilada no presente

PALAVRAS-CHAVECatolicismo Protestantismo Histoacuteria Igreja Tradiccedilatildeo Escritura

Professor de teologia sistemaacutetica na Faculdade Livre de Teologia Reformada de Aix-en-Provence no sul da Franccedila atual Faculdade de Teologia Joatildeo Calvino

1 O artigo foi publicado originalmente em La Revue Reformeacutee nordm 221 20031 Traduccedilatildeo Paulo Seacutergio Athayde Ribeiro

PAUL WELLS IGREJAS E HISTOacuteRIA

92

INTRODUCcedilAtildeOAs comunidades religiosas tecircm por funccedilatildeo apresentar uma mensagem

que ofereccedila a seus fieacuteis acesso ao mundo invisiacutevel Elas manifestam no mundo temporal o que eacute divino Elas existem para falar do mundo invisiacutevel e espiri-tual e tornaacute-lo presente na realidade material fiacutesica Igrejas de todos os tipos procuram ser a ponte entre o terreno e o que estaacute aleacutem

Se o mundo invisiacutevel eacute permanente o mundo terrestre evolui e se modi-fica progressivamente Tudo parece estar em constante movimento O mundo tem uma histoacuteria E nessa histoacuteria as igrejas que apresentam a mensagem do mundo invisiacutevel assumem feiccedilotildees distintas e encontram formas diferentes de apresentar essa mensagem A relaccedilatildeo entre os mundos espiritual e material eacute sempre o palco de desenvolvimentos destinados a exprimir como o homem pode alcanccedilar o outro mundo

Esses desenvolvimentos constituem o que podemos chamar de ldquotradi-ccedilatildeordquo o que foi recebido e transmitido agrave geraccedilatildeo seguinte e por ela de novo apropriado atraveacutes de novas formulaccedilotildees ou adaptaccedilotildees Uma tradiccedilatildeo viva cresce no curso da histoacuteria Suas justificaccedilotildees tornam-se mais completas as explicaccedilotildees da sua verdade e suas praacuteticas tornam-se mais profundas Cada agrupamento humano ndash famiacutelia igreja naccedilatildeo ou clube esportivo ndash tem suas tradiccedilotildees e ritos Eacute inevitaacutevel porque uma comunidade sem tradiccedilatildeo estaacute destinada a desaparecer

Agraves vezes alguns catoacutelicos romanos pensam que os protestantes natildeo tecircm tradiccedilotildees e que as recusam totalmente Eacute verdade que alguns protestantes deram essa impressatildeo quando disseram ldquoNoacutes natildeo temos tradiccedilotildees somos contra toda tradiccedilatildeo noacutes precisamos somente da Biacutebliardquo No entanto no Novo Testamento vemos que precisamos guardar a tradiccedilatildeo apostoacutelica como ldquoo bom depoacutesitordquo e pretender natildeo ter tradiccedilotildees torna-se uma atitude tradicional Tal ponto de vista resulta em sectarismos

A tradiccedilatildeo de um grupo religioso eacute entatildeo sua maneira de apresentar progressivamente no desenvolvimento da histoacuteria a relaccedilatildeo entre o mundo espiritual e o mundo histoacuterico material Assim a tradiccedilatildeo situa o grupo em relaccedilatildeo agraves suas origens transmite crenccedilas e quando se trata de outro mundo evoca o ceacuteu e daacute uma esperanccedila No cristianismo ndash se deixarmos de lado a Igreja Ortodoxa que quanto agrave tradiccedilatildeo tem uma visatildeo muito proacutexima do catolicismo romano ndash existem duas maneiras de considerar e de representar a relaccedilatildeo entre o mundo espiritual e o mundo material

O catolicismo romano representa a relaccedilatildeo entre o material e o espiri-tual como sendo comparaacutevel agrave relaccedilatildeo que existe entre um ato e a intenccedilatildeo por traacutes do ato Como um beijo ganha significado do amor que exprime o mundo material e tudo o que acontece ganham significado daquilo que representam e fazem conhecer ou seja de uma realidade espiritual que os

93

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 91-101

supera Assim para o catolicismo a histoacuteria e os desenvolvimentos histoacutericos das representaccedilotildees do espiritual satildeo muito importantes A religiatildeo catoacutelica acentuou como eacute o caso em Newman por exemplo a importacircncia dos de-senvolvimentos registrados a partir das origens A verdadeira realidade se encontra nos desenvolvimentos o original natildeo eacute a melhor representaccedilatildeo da coisa ela se torna mais expliacutecita nos desenvolvimentos Esta concepccedilatildeo acen-tua a importacircncia da continuidade da tradiccedilatildeo a marcha em direccedilatildeo a uma expressatildeo mais perfeita do espiritual e a importacircncia da Igreja em velar por esses desenvolvimentos histoacutericos

O protestantismo que representa uma ruptura no processo de desen-volvimento da Igreja no seacuteculo XVI considera a relaccedilatildeo entre o material e o espiritual comparaacutevel agrave relaccedilatildeo que haacute entre uma palavra e seu sentido A palavra eacute o meio pelo qual um sentido eacute apreendido o qual ultrapassa o seu caraacuteter simboacutelico A realidade do beijo eacute maior do que a palavra e a palavra remete ao que a transcende Assim para o protestantismo o importante estaacute nas origens A mensagem se reporta a qualquer coisa que eacute maior do que a palavra e que se exprime nessa palavra Eacute por essa razatildeo que o protestantismo eacute um retorno agraves fontes ao sentido original e acentua a centralidade da Palavra de Deus Jesus Cristo e as palavras apostoacutelicas inspiradas que fazem com que o conheccedilamos Eacute aqui que a relaccedilatildeo entre o mundo material e o mundo espiritual eacute estabelecida

Propomos fazer uma comparaccedilatildeo entre essas duas posiccedilotildees para apro-ximar a questatildeo ao nosso tema sobre Igreja e histoacuteria e isso em trecircs aacutereas

bull A Igreja e os sacramentosbull A Escritura e a tradiccedilatildeobull O Espiacuterito Santo e a vida cristatilde

Ao concluirmos diremos por que a posiccedilatildeo protestante expressa pela Reforma representa para noacutes o cristianismo autecircntico e como essa posiccedilatildeo atualmente estaacute ameaccedilada

1 A IGREJA E OS SACRAMENTOSNa Idade Meacutedia foi desenvolvida a ideia de que o papel da Igreja era

o de suplementar a ausecircncia de Cristo Por meio dela Cristo se comunica com o mundo Ela constitui uma extensatildeo histoacuterica sob forma diferente da encarnaccedilatildeo de Cristo A proacutepria Igreja torna-se um instrumento da revelaccedilatildeo e mesmo que natildeo tenha acesso ao texto sagrado o homem pode conhecer a Deus atraveacutes dela Essa opiniatildeo sobre o papel histoacuterico da Igreja Romana corrente na eacutepoca da Reforma e rejeitada pelos reformadores permaneceu intocada

PAUL WELLS IGREJAS E HISTOacuteRIA

94

11 A sacramentalidade da IgrejaAssim atualmente um teoacutelogo como Edward Schillebeeckx2 em seu

livro Cristo o Sacramento do Encontro com Deus pode chamar Cristo de ldquoo sacramento primordialrdquo e a Igreja de ldquoo sacramento do Cristo ressuscitadordquo Como tambeacutem nos textos do Vaticano II a Constituiccedilatildeo Lumen Gentium sobre a Igreja (sect7) mostra uma noccedilatildeo muito materialista do corpo de Cristo ldquoNesse Corpo a vida do Cristo eacute infundida nos crentes que satildeo unidos ao Cristo sofredor e glorificadordquo

O irmatildeo Daniel Bourgeois comenta ldquoNa perspectiva catoacutelica essa sacra-mentalidade natildeo se limita ao sistema de sinais que acompanham os atos funda-dores da alianccedila entre Deus e os homens o sistema de sinais que acompanha o povo de Deus natildeo eacute um sistema fechadordquo3 A Igreja e sua vida constituem ldquoum sistema de significaccedilatildeo vivo que se move rico de dinamismo e de uma capacidade inesgotaacutevel em perceber a verdade dos atos da alianccedilardquo Assim haacute uma reatualizaccedilatildeo constante na histoacuteria da Igreja e de seus membros e isso eacute fundamental O grande exemplo dessa operaccedilatildeo eacute a missa como representaccedilatildeo natildeo sangrenta do sacrifiacutecio da cruz No ex opere operato se efetua pelo proacuteprio ato o que nele eacute representado Assim por atos histoacutericos no mundo material o mundo espiritual se faz presente de maneira real e eficaz

A Igreja como sacramento da redenccedilatildeo eacute o meio pelo qual a uniatildeo entre Cristo e o homem se efetua Ela eacute tambeacutem o elo entre o eterno e o temporal em todos os atos que realiza ao longo da histoacuteria Neste sentido os integristas do Monsenhor Lefebvre4 natildeo estatildeo errados ao defender a missa em latim O rito age independentemente da compreensatildeo que dele se tenha conforme a intenccedilatildeo do ato

12 A histoacuteria da Igreja e o reino de DeusLumen Gentium afirma que a Igreja ldquoprovida de dons de seu fundador

recebe a missatildeo de anunciar o reino de Cristo e de Deus e de instauraacute-lo em todas as naccedilotildees formando o germe que daacute iniacutecio a esse reino sobre a terrardquo (sect5) Apesar do caraacuteter discreto dessa formulaccedilatildeo em relaccedilatildeo a outras afirma-ccedilotildees podemos notar sempre a ideia de que a Igreja que faz a ligaccedilatildeo entre este mundo e o mundo espiritual eacute o meio pelo qual o mundo futuro penetra no mundo material e estende progressivamente sua influecircncia Esta ideia que tem sua origem em Agostinho propotildee que o reino de Cristo sobre a terra jaacute

2 NR O teoacutelogo belga Edward Schillebeeckx nasceu em 1914 e faleceu em 20093 BOURGEOIS Daniel ldquoEnsaio de anaacutelise teoloacutegica do integrismo catoacutelicordquo La Revue Reformeacutee

n 174 (1992) p 414 NR Marcel Lefebvre (1905-1991) arcebispo francecircs e rigoroso defensor do movimento tradi-

cionalista catoacutelico destacou-se por sua resistecircncia a algumas decisotildees do Conciacutelio Vaticano II

95

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 91-101

estaacute presente e se manifesta na Igreja Antes da eacutepoca moderna a missatildeo do papa era organizar o reino de Deus sobre a terra e estender sua influecircncia so-bre toda a vida O agente dessa presenccedila era o clero Essa ideia secularizada resultou no marxismo no qual o partido reina sobre toda a vida atraveacutes de seus membros Essa atitude dominante explica em parte por que as naccedilotildees catoacutelicas ou ortodoxas foram os bastiotildees do marxismo-leninismo

A Igreja tem portanto a missatildeo histoacuterica de manifestar a obra redentora de Deus e de adaptar a realidade deste mundo ao outro mundo da mesma ma-neira como o materialismo dialeacutetico anunciou a futura nova humanidade Aqui encontramos a mesma estrutura responsaacutevel pela sacramentalidade da Igreja

13 A Igreja como testemunha da Palavra de DeusNo protestantismo temos uma configuraccedilatildeo totalmente diferente a qual

representa a relaccedilatildeo entre a palavra e seu sentido Haacute aqui uma concepccedilatildeo diferente da relaccedilatildeo entre o tempo e a eternidade Da mesma maneira que uma palavra eacute diferente da realidade que evoca e eacute autocircnoma em relaccedilatildeo a ela haacute para o protestantismo uma distinccedilatildeo radical entre o tempo e a eternidade Esta distinccedilatildeo natildeo eacute ultrapassada pela Igreja que continuaria a encarnaccedilatildeo mas unicamente por Cristo que desce do ceacuteu Cristo eacute a Palavra de Deus que traz a revelaccedilatildeo aos homens ldquoNestes uacuteltimos dias Deus nos falou pelo Filho pelo qual tambeacutem fez o universordquo (Hb 1) Essa revelaccedilatildeo que foi concluiacuteda nas palavras apostoacutelicas eacute a uacuteltima palavra de Deus aos homens

Natildeo mais estamos no periacuteodo da encarnaccedilatildeo e sofrimento de Cristo mas no da sua ressurreiccedilatildeo e reino celeste A Igreja natildeo daacute continuidade agrave encar-naccedilatildeo porque esta foi encerrada pela ressurreiccedilatildeo Considerar a Igreja como continuaccedilatildeo da encarnaccedilatildeo eacute natildeo respeitar o reloacutegio da histoacuteria da revelaccedilatildeo retardando-o a uma hora que jaacute passou Eacute por esta razatildeo tambeacutem que os pro-testantes com razatildeo rejeitaram a utilizaccedilatildeo do crucifixo

O protestantismo propotildee um retorno agraves origens pela fidelidade agrave Pala-vra de Deus A Igreja estaacute onde a Palavra de Deus eacute fielmente pregada Para Calvino a sucessatildeo apostoacutelica natildeo reside nas coisas e nos homens mas na doutrina Calvino recusou crer que a Igreja tenha poderes espirituais particu-lares transmitidos por seus ldquooficiaisrdquo A Igreja se submete agrave Escritura e recebe sua autoridade dela Ela eacute canonizada pela Escritura e natildeo o contraacuterio Assim a autoridade da Igreja tem sua origem na Palavra de Deus e por ela eacute limita-da Nenhuma nova doutrina eacute permitida e natildeo se admite nenhuma doutrina estranha agraves Escrituras A verdadeira Igreja eacute espiritual e celeste Ela inclui os eleitos os filhos de Deus por ele conhecidos e ela se manifesta e se congrega onde a Palavra eacute pregada Assim a Palavra que reuacutene os filhos de Deus daacute o verdadeiro sentido ao povo comprado pelo Cordeiro que foi imolado antes da fundaccedilatildeo do mundo

PAUL WELLS IGREJAS E HISTOacuteRIA

96

Eacute por isso que para o protestantismo os dois sacramentos satildeo ldquopalavras visiacuteveisrdquo que acompanham e explicam a palavra pregada A eficaacutecia do sacra-mento natildeo estaacute propriamente no ato mas na compreensatildeo que dele temos na uniatildeo com Cristo pela instrumentalidade do Espiacuterito Santo A palavra visiacutevel o siacutembolo remete a seu sentido fundamental a purificaccedilatildeo pela morte de Cris-to a comunhatildeo presente com o mesmo Cristo e a expectativa de seu retorno Portanto os sacramentos protestantes requerem inteligecircncia espiritual

Aleacutem disso para o protestantismo o reino de Deus se faz presente natildeo pela Igreja mas pela praacutetica da Palavra O reino tem um caraacuteter global mas que se distingue da influecircncia da Igreja sobre a sociedade e de seus ldquooficiaisrdquo sobre os leigos Cada cristatildeo eacute um sacerdote da nova alianccedila e sua missatildeo eacute servir a Deus em todos os aspectos da vida Ele obedece a Deus na famiacutelia e no mundo do comeacutercio tanto quanto na Igreja

A perspectiva tambeacutem eacute diferente Natildeo se trata do reino futuro que se manifestaraacute no mundo da eternidade no tempo O reino futuro eacute ldquoo novo ceacuteu e a nova terra onde habitaraacute a justiccedilardquo Esse reino eacute anunciado desde o momento em que a Palavra vivida pelo cristatildeo livra a antiga criaccedilatildeo da servidatildeo do pe-cado Este eacute o sentido da ceacutelebre palavra de Lutero ldquoSe eu soubesse que Cristo voltaria amanhatilde hoje eu plantaria uma aacutervorerdquo Plantar uma aacutervore natildeo tem nenhum reflexo sobre a vinda do reino futuro mas o anuncia na criaccedilatildeo atual

Para o protestante a vinda do reino natildeo tem nada a ver com o ldquosobrenatu-ralrdquo que invade e metamorfoseia a natureza mas com a justiccedila que suplanta o pecado Eacute a graccedila da justificaccedilatildeo anunciada na Palavra e para noacutes completada em Cristo que realiza essa libertaccedilatildeo

Nessa perspectiva o protestantismo tem interpretado a histoacuteria muito concretamente pelo esquema criaccedilatildeo queda e redenccedilatildeo Toda a vida religiosa social poliacutetica familiar e pessoal eacute criada por Deus submissa ao pecado mas resgatada pela Palavra de Deus A Igreja tem a funccedilatildeo de pocircr em evidecircncia esta situaccedilatildeo pela Palavra que anuncia

2 A ESCRITURA E A TRADICcedilAtildeOEacute bastante compreensiacutevel que o catolicismo romano com sua ecircnfase sobre

o papel central da Igreja como ponte na histoacuteria entre este mundo e o mundo futuro tenha concebido a ideia do desenvolvimento do dogma A continuida-de eacute assegurada pela autoridade da instituiccedilatildeo histoacuterica da Igreja A principal justificaccedilatildeo do desenvolvimento da tradiccedilatildeo ao lado da Escritura reside na convicccedilatildeo de que a Igreja eacute a continuaccedilatildeo da encarnaccedilatildeo sob a direccedilatildeo do Es-piacuterito Assim a Igreja regulamenta a feacute de seus membros pela Escritura mas tambeacutem pela tradiccedilatildeo que tambeacutem eacute a verdade A Igreja interpreta aumenta e completa a Biacuteblia por suas tradiccedilotildees

97

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 91-101

21 A autoridade da tradiccedilatildeoDessa maneira a Igreja desenvolveu ensinos que ultrapassam o que eacute

ensinado na Biacuteblia Antes de 1500 a tradiccedilatildeo que o padre Gabriel Moran chama ldquoconstitutivardquo em seu livro Escritura e Tradiccedilatildeo tornou-se autocircnoma por direito proacuteprio Essas tradiccedilotildees satildeo os ensinos recebidos pela Igreja e satildeo normativos para a feacute Entre eles podemos destacar o purgatoacuterio a transubs-tanciaccedilatildeo as doutrinas marianas o primado papal a oraccedilatildeo aos santos etc

Quanto agrave origem dessas tradiccedilotildees reconhecidas pela Igreja como pos-suindo autoridade diferentes proposiccedilotildees foram formuladas o papa porque ele representa Cristo para a Igreja os conciacutelios da Igreja ou a tradiccedilatildeo oral veiculada apoacutes a eacutepoca apostoacutelica Quanto agraves duas questotildees fundamentais ndash a da relaccedilatildeo entre a Biacuteblia e a tradiccedilatildeo e a de identificar qual das duas tem a primazia ndash a posiccedilatildeo de Roma natildeo variou muito atraveacutes dos seacuteculos O padre Yves Congar afirmou que a posiccedilatildeo romana reconhece a insuficiecircncia das Escrituras O padre Georges Tavard em seu livro Santa Escritura ou Santa Igreja diz o seguinte ldquoA Escritura e a Igreja se completam mutuamente A Escritura conserva o primado ontoloacutegico e a Igreja o primado histoacuterico porque eacute somente ao recebecirc-la que os homens tomam consciecircncia da Palavrardquo

Assim historicamente a Escritura e a tradiccedilatildeo vecircm da Igreja A Igreja transmite a Escritura de uma geraccedilatildeo a outra com um conhecimento mais profundo sobre o seu sentido A tradiccedilatildeo eacute essencialmente a interpretaccedilatildeo da Escritura agrave qual se acrescentam os ensinos que ultrapassam as afirmaccedilotildees claras do texto sagrado O Conciacutelio de Trento respondeu aos reformadores ao afirmar a autoridade da Escritura e da tradiccedilatildeo Congar comenta ldquoAo afirmar o valor normativo das tradiccedilotildees apostoacutelicas natildeo contidas nas Escrituras o Conciacutelio fez da tradiccedilatildeo um princiacutepio formal paralelo agraves Escrituras senatildeo autocircnomo em relaccedilatildeo a elasrdquo

Natildeo entraremos aqui na discussatildeo recente sobre a interpretaccedilatildeo dos textos de Trento Basta dizer que de fato muitos protestantes adotaram em princiacutepio a noccedilatildeo da insuficiecircncia da Escritura como mostram as discussotildees da Confe-recircncia de Feacute e Constituiccedilatildeo em Montreal sobre ldquoA tradiccedilatildeo e as tradiccedilotildeesrdquo Um consenso atual entre catoacutelicos modernistas e protestantes liberais afirmaria a seguinte posiccedilatildeo ldquoA Escritura eacute o primeiro elo da tradiccedilatildeo cristatilde Como toda tradiccedilatildeo humana ela eacute faliacutevel e insuficiente A Escritura e as tradiccedilotildees satildeo ambas suscetiacuteveis de errarrdquo Podemos chamar esta posiccedilatildeo de traditio sola

22 A posiccedilatildeo dos reformadoresOs reformadores natildeo comeccedilaram seu conflito com a Igreja Romana por

causa da tradiccedilatildeo Foi quando Eck disse a Lutero que sua doutrina da justi-ficaccedilatildeo estava de acordo com o Novo Testamento mas natildeo de acordo com a tradiccedilatildeo da Igreja que o problema da autoridade da tradiccedilatildeo surgiu Em 1518

PAUL WELLS IGREJAS E HISTOacuteRIA

98

em Leipzig Eck obrigou Lutero a admitir que nem os Pais nem o direito ca-nocircnico mas somente as Escrituras tecircm autoridade uacuteltima sobre a Igreja

Acusaram os reformadores de natildeo terem antecedentes histoacutericos de romper com tudo o que o Espiacuterito havia feito ao conduzir o povo de Deus Contra o argumento segundo o qual a Igreja Romana tinha o apoio dos Pais dos cinco primeiros seacuteculos Calvino respondeu que sua autoridade natildeo provinha de sua antiguidade nem de seu reconhecimento pela Igreja mas que derivava das Escrituras Calvino honrou Agostinho ao citaacute-lo perto de trecircs mil vezes na sua Instituiccedilatildeo Cristatilde mas igualmente o criticou por suas ideias quanto ao celibato ao purgatoacuterio agrave autoridade eclesiaacutestica e sua interpretaccedilatildeo alegoacuterica da Escritura Para Calvino os Pais da Igreja podem ser reconhecidos enquanto permanecerem fieacuteis agrave Escritura e sua autoridade estaacute sempre subordinada a esta Calvino se sentiu completamente agrave vontade ao recusar as tradiccedilotildees roma-nas natildeo biacuteblicas ndash suas cerimocircnias doutrinas sacramentos e ministeacuterios ndash por duas razotildees Primeiramente os Pais da Igreja constantemente afirmaram que a Igreja deve se submeter somente agrave Palavra escrita mas a Igreja romana foi sempre atraiacuteda para o lado contraacuterio Em segundo lugar os Pais cometeram erros e nessa aacuterea a Igreja os seguiu contra o ensinamento Biacuteblico Como Lutero Calvino tomou como princiacutepio de autoridade para a vida da Igreja tatildeo somente a Escritura

23 O princiacutepio de Sola Scriptura contra ldquoEscritura e tradiccedilatildeordquo A ruptura entre os protestantes e Roma diz respeito a esta questatildeo fun-

damental quem tem a autoridade final em mateacuteria de feacute e praacutetica A posiccedilatildeo de Calvino sobre isso se resume nos seguintes pontos

bull Quando lemos a Escritura ouvimos a proacutepria voz de Deus Nada de origem humana se mistura a isso Sem a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo Isaiacuteas ou Jeremias teriam dito palavras impuras e tolas Mas quando o Espiacuterito comeccedilou a usaacute-los como instrumentos seus laacutebios se tornaram puros e santos

bull Uma vez que Deus fala na Escritura e em nenhum outro lugar natildeo haacute outra fonte de onde possa vir sua Palavra

bull Em razatildeo de sua origem uacutenica as Escrituras tecircm a autoridade e a suficiecircncia da Palavra de Deus Elas contecircm tudo o que Deus quer falar aos homens

bull Elas tecircm a autoridade suprema sobre a vida do cristatildeobull Ao estudarmos a natureza ou a histoacuteria podemos aumentar nossos

conhecimentos sobre Deus unicamente porque primeiramente somos iluminados pela Palavra biacuteblica

99

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 91-101

Foi assim que a doutrina protestante claacutessica formulou a finalidade das Escrituras ldquoDepois de Deus mesmo ter falado diz Calvino ele natildeo deixou mais nada a ser dito por outrosrdquo A Palavra eacute o viacutenculo entre o tempo e a eternidade porque por ela noacutes ouvimos Deus falar em nossa linguagem humana Aqui vemos que a concepccedilatildeo protestante implica num viacutenculo atraveacutes da Palavra que veicula o sentido da realidade Essa perspectiva eacute criacutetica em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo segundo a qual os atos e as tradiccedilotildees da Igreja representam a intenccedilatildeo divina na salvaccedilatildeo

Por esta razatildeo tambeacutem Calvino rejeita o sistema catoacutelico no qual as aparecircncias exteriores satildeo uma usurpaccedilatildeo da autoridade de Cristo resultando numa Igreja falsa Consequentemente longe de ser um pecado separar-se de Roma eacute uma ocasiatildeo para reencontrar pela Palavra a verdadeira Igreja em suas origens

3 O ESPIacuteRITO SANTO E A VIDA CRISTAtildePara o catolicismo romano a histoacuteria representa uma sucessatildeo de atos que

realizam a intenccedilatildeo divina Este mundo estaacute em relaccedilatildeo orgacircnica com o mundo futuro Deus usa as realidades externas como instrumentos eficazes Eacute por essa razatildeo que o esquema natureza e graccedila eacute capital no pensamento catoacutelico em particular a partir da Idade Meacutedia A graccedila eacute o ato divino que vem completar a natureza e preparaacute-la para a sua transfiguraccedilatildeo final

31 Encarnaccedilatildeo e vida cristatilde no catolicismo romanoNesse sentido a encarnaccedilatildeo de Jesus Cristo apresenta uma forma nova

de humanidade que realiza a intenccedilatildeo da criaccedilatildeo A vinda de Jesus Cristo torna a humanidade completa A Igreja como continuaccedilatildeo da encarnaccedilatildeo eacute uma nova humanidade sob a direccedilatildeo especial do Espiacuterito Santo Isto cons-titui a principal justificaccedilatildeo para o desenvolvimento do dogma e da praacutetica da Igreja no decorrer da histoacuteria

As consequecircncias satildeo importantes para a vida cristatilde Na Igreja Romana a pessoa realiza progressivamente sua nova humanidade num processo em que o homem se prepara para o outro mundo ao receber a graccedila sobrenatural atraveacutes dos sacramentos Fora da Igreja natildeo haacute salvaccedilatildeo e a graccedila eacute recebida pela natildeo resistecircncia do indiviacuteduo Este processo de aperfeiccediloamento continua mesmo aleacutem-tuacutemulo no purgatoacuterio

32 O Espiacuterito Santo e a vida cristatilde no protestantismoNo protestantismo com seu modelo palavrasentido a encarnaccedilatildeo eacute a

revelaccedilatildeo da Palavra de Deus Longe de completar a humanidade esta reve-laccedilatildeo de Deus em carne eacute necessaacuteria porque a natureza estaacute caiacuteda e o homem eacute incapaz de agradar a Deus Deus se revela em Cristo que em particular se

PAUL WELLS IGREJAS E HISTOacuteRIA

100

revela na cruz como Salvador abolindo o pecado por seu sacrifiacutecio Por essa razatildeo o protestantismo destaca o ldquouma vez por todasrdquo da epiacutestola aos Hebreus

Ao rejeitar a hierarquia romana Lutero e Calvino demoliram a noccedilatildeo de uma Igreja sacramental Como a graccedila eacute recebida O Espiacuterito Santo fala ao crente de maneira direta pela Palavra de Deus O Evangelho diz que somos pecadores mas justificados pela justiccedila da cruz ndash ldquoCristo em nosso lugarrdquo ndash quando nele cremos Assim o Espiacuterito de Deus efetua o novo nascimento do indiviacuteduo que se torna unido a Cristo pela feacute e eacute feito nova criaccedilatildeo Eacute pela Palavra e pelo Espiacuterito que ele eacute convertido

O padre Tavard afirma que o calvinismo eacute uma pneumatologia Ele destacou um ponto importante Para Calvino a Igreja deve abandonar sua proacutepria sabedoria e se colocar sob a direccedilatildeo do Espiacuterito pelas Escrituras Os dois andam sempre juntos O Espiacuterito como Autor das Escrituras eacute seu uacutenico inteacuterprete e natildeo o magisteacuterio da Igreja Ele ilumina o entendimento do cristatildeo que recebe a oferta de salvaccedilatildeo e o faz reconhecer a verdade da Palavra de Deus O Espiacuterito natildeo se dissocia jamais da Palavra biacuteblica e natildeo a contradiz porque eacute a sua Palavra

O Espiacuterito age sobre a Igreja Pela Palavra ele vivifica os crentes e assim acrescenta ao corpo de Cristo aqueles que creem Eacute neste sentido afirma Cal-vino que devemos compreender a expressatildeo ldquofora da Igreja natildeo haacute salvaccedilatildeordquo Por sua Palavra o Espiacuterito reina tambeacutem sobre a Igreja e a conduz Para que uma Igreja seja autecircntica eacute preciso que ela viva da vida do Espiacuterito que vem somente pela Palavra Assim a Palavra e a Igreja satildeo unidas pelo poder do Espiacuterito A Igreja resulta entatildeo da obra da Palavra e do Espiacuterito Ela vem deles e eacute subalterna a eles A Palavra e o Espiacuterito satildeo divinos a Igreja visiacutevel eacute humana

CONCLUSAtildeOPor que sou protestante Porque creio que o pensamento protestante eacute

o que estaacute mais proacuteximo da revelaccedilatildeo biacuteblica em particular em seu ponto central Jesus Cristo eacute a Palavra-revelaccedilatildeo de Deus para a nossa salvaccedilatildeo sob uma forma limitada e rebaixada a carne humana A encarnaccedilatildeo representa o rebaixamento de Deus que se revela como servo ateacute agrave morte de cruz Deus o Filho sofreu a consequecircncia do nosso pecado Limitaccedilatildeo obediecircncia e serviccedilo satildeo as palavras de ordem na Igreja submissa agrave Palavra de Deus A Igreja eacute posta natildeo sob o signo da dominaccedilatildeo divina e da gloacuteria mas sob a cruz Para compreender a relaccedilatildeo do nosso mundo com o outro Deus nos chama a considerar o sacrifiacutecio o abandono mesmo de sua Palavra encarnada Este eacute o centro da histoacuteria e seu sentido Noacutes estamos nos extremos de uma sucessatildeo de atos divinos que realizam progressivamente o propoacutesito de Deus

Entretanto um perigo existe Hoje a crise provocada pela criacutetica racio-nalista agrave Escritura minou a feacute na Biacuteblia como Palavra de Deus A Escritura eacute

101

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 91-101

considerada como insuficiente porque eacute reconhecida apenas como um teste-munho humano sobre uma revelaccedilatildeo que a ultrapassa Quando isso acontece a Biacuteblia eacute submetida ao julgamento de uma autoridade superior a razatildeo os sentimentos as tradiccedilotildees histoacutericas ou o imediatismo de um encontro com Deus Entatildeo a Biacuteblia natildeo eacute mais a autoridade final para a Igreja ou para o cristatildeo ela eacute somente um dos fatos constitutivos da vida cristatilde

A questatildeo fundamental destacada pelos reformadores permanece sempre ldquoEacute biacuteblico Sim ou natildeordquo Tudo o que exigir uma resposta negativa deve ser descartado de nossa vida Dizer e repetir essa eacute a vocaccedilatildeo histoacuterica da Igreja5

ABSTRACTThis article deals with the concept of tradition the manner in which a

religious group presents in the course of history the relationship between the spiritual and the historical material world Tradition positions a group in regard to its origins transmits beliefs and as far as another world is concerned evokes heaven and brings hope In Christianity there are two ways of considering and representing the relationship between the spiritual and the material worlds Roman catholicism represents such relationship as comparable to one between an act and the intention behind it Protestantism considers this relationship as comparable to one between a word and its meaning In order to approach the theme Church and history the author proposes to make a comparison of these two positions in three areas Church and sacraments Scripture and tradition and the Holy Spirit and Christian life In conclusion he explains why the Protestant position expressed by the Reformation represents authentic Christianity and how such position is under threat in the present time

KEYWORDSCatholicism Protestantism History Church Tradition Scripture

5 Aleacutem dos autores catoacutelicos romanos a que fiz referecircncia aproveitei a anaacutelise de dois protestantes hoje esquecidos HEIM Karl Das Wesen des Evangelischen Christentums (1929) tiacutetulo em inglecircs Spirit and Truth (Lutterworth 1935) e QUICK Oliver C Catholic and Protestant Elements in Christianity (Longmans Green 1924)

103

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION THE PRIMACY OF BIBLICAL REVELATION

Isaias DrsquoOleo Ochoa

ABSTRACTIn his discussion of evolution Bavinck offers a modified theory of

development rooted not under a mechanistic and naturalistic worldview as Darwin does but under a ldquotheistic-friendlyrdquo framework This article argues that Bavinckrsquos discussion of evolution as a whole endorses a modified AristotelianThomistic framework in order to understand the theory of development and thus overcomes the challenges raised by Darwinrsquos naturalistic worldview to biblical revelation

KEYWORDSDarwinism Evolution Evolutionary worldview Theology-science dia-

logue Theory of development

INTRODUCTIONCurrent scholarship on Herman Bavinckrsquos view of the theory of evolution

has tended to be unified in affirming that despite his criticism of it Bavinck seems to provide some room for evolution On one hand from his discussion in Reformed Dogmatics (originally published in Dutch between 1895-1901) and other writings1 it may be concluded that Bavinck fights fiercely against

The author is a minister of Word and Sacrament in the Reformed Church of America He is currently pursuing a PhD degree at Calvin Theological Seminary with concentration in Philosophical Theology He received his Master of Theology degree at Calvin Seminary (2017) and his Master of Divinity at Western Theological Seminary (2015)

1 Cf Herman Bavinck Reformed Dogmatics II ed John Bolt trans John Vriend (Grand Rapids MI Baker Academic) 407-529 Bavinck ldquoCreation or Developmentrdquo trans Hendrik De Vries in The Methodist Review (1901) 849ndash74 Bavinck ldquoEvolutionrdquo in Essays on Religion Science and Society ed John Bolt (Grand Rapids MI Baker Academic 2008) 105-118

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

104

Darwinrsquos evolutionary project and seems to reject it completely One the other hand in those same discussions where he treats the topic one also observes that Bavinck seems to be willing to concede some kind of ldquoevolutionrdquo as well For those who believe that Bavinck retains the notion of biological develop-ment of natural creatures in the Darwinian sense in order to integrate it into his understanding of biblical revelation one issue emerges while Bavinck appropriates the concept of ldquodevelopmentrdquo from the theory of evolution he seems to use the term in an opposite sense from that of Darwinism Taking this into account it is the thesis of this paper that in his discussion of evolution Bavinck progressively endorses a modified AristotelianThomistic notion of development in order to overcome the challenges raised by Darwinrsquos method-ology and naturalistic worldview to biblical revelation

When Bavinck debated evolution he objected to a series of features of Darwinrsquos theory of development These objections include the theoryrsquos features of naturalism its mechanistic understanding of the world its atheistic world-view and its teleological characteristic of natural organisms Although there exists scholarship that discusses Bavinckrsquos approach to evolution however it largely overlooks how Bavinck understands the notion of development in his dialogue with the theory of evolution In this respect and in order to narrow this research I will focus exclusively on Rob P W Visser and Abraham C Flipsersquos works which develop the theme of evolution in greater detail2

Rob P W Visserrsquos study ldquoDutch Calvinists and Darwinism 1900-1960rdquo in Nature and Scripture in the Abrahamic Religions offers an historical analysis of the reception of Darwinrsquos theory of evolution among the Cal-vinists in the Netherlands Visserrsquos work emphasizes the role that Abraham Kuyper and Herman Bavinck played in the theological renewal at the be-ginning of the twentieth century in the Dutch community (VISSER 1998 p 312) Visser suggests that although Darwinrsquos theory of evolution was rapidly integrated into the Dutch university system by the last two decades of the nineteenth century the Dutch Calvinist response tended to be slow and negative (VISSER 1998 p 293) Both Kuyper and Bavinck emphasized the necessity of differentiating Darwinrsquos theory of evolution as a scientific theory from its metaphysics Visser claims (VISSER 1998 p 294) In his view unlike Kuyper Bavinck was more positive about the theory of evolution for two main reasons First he believed that evolution relays part of the truth

2 See Rob Visser ldquoDutch Calvinists and Darwinism 1900-1960rdquo Nature and Scripture in the Abrahamic Religions (Leiden Brill 2008) 293-316 Abraham C Flipse ldquoThe Origins of Creationism in the Netherlands The Evolution Debate among Twentieth-Century Dutch Neo Calvinistsrdquo Church History 81 n 1 (March 2012) 104ndash47 For background information read George Harinck ldquoTwin Sisters with a Changing Character How neo-Calvinists Dealt with the Modern Discrepancy between Bible and Natural Sciencesrdquo In Nature and Scripture in the Abrahamic Religions 1700-Present Leiden Brill 2008 317-370

105

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

about the natural world Second Bavinck believed that current species were not identical with those that God originally created In this respect Visser writes

Bavinck did not subscribe to Darwinrsquos explanation of evolutionary development Natural selection ruled out divine intervention and was for this reason unac-ceptable He defended the idea that evolution was a teleological and organic rather than a mechanical process which opened its existence to an intelligent cause lsquoDesign law goal and directionrsquo and not selection where the keywords to understand and explain organic evolution Bavinck like Kuyper regarded God as the ultimate cause of evolution Bavinck presented his combination of creation and evolution as a Christian alternative for Darwinrsquos theory (VISSER 1998 p 296)

Visser reads Bavinck as one who seems willing to accept the development of natural species but finds unacceptable Darwinrsquos proposal of natural selection because of its rejection of a teleological character3 It is such a reading that leads Visser to affirm that both Kuyper and Bavinck succeeded in integrating evolution and biblical revelation

Kuyper and Bavinck removed the controversial elements [of Darwinrsquos theory of evolution] notably natural selection and the descent of man Evolutionary change was the only aspect of the theory that they could acceptThey [introduced] organic mutability into divine providence which enabled them to incorporate their modified view of biological evolution in their theology (VISSER 1998 p 297)4

Furthermore it is noteworthy to mention the context in which such integration happens In this respect Visser writes

The response of Kuyper and Bavinck to Darwin occurred in the context of attempting to develop a new understanding of Scripture as revelation resulting from both divine and human action They referred to this new understanding as organic insertion It contrasted with the mechanical inspiration that became dominant in the seventeenth century In this Calvinist orthodoxy God was believed to have verbally dictated the text with no contribution by the human writer As a result God became the warrant for a text that was considered ob-jective and could be used in rational argument The Bible became a source of objective factual information about nature and history (VISSER 1998 p 298)5

3 Cf Harry R Boer ldquoEvolution and Herman Bavinckrdquo Reformed Journal 37 n 12 (December 1987) 3-4 p 3

4 See also Eduardo J Echeverria ldquoReview Essay The Philosophical Foundations of Bavinck and Dooyeweerdrdquo Journal of Markets amp Morality 14 n 2 (2011) 463-483 pp 465ndash67

5 For further discussion see also James Eglinton ldquoBavinckrsquos Organic Motif Questions Seeking Answersrdquo Calvin Theological Journal 45 (1) 20120 51-71

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

106

There are many layers to debate within Visserrsquos previous citation One issue is with the suggestion that Bavinckrsquos interest in exploring the theory of evolution is connected to his desire to redefine his understanding of Scripture as revelation But Visser joins together what Bavinck kept distinct In that regard Visser does not seem to describe Bavinck correctly

Despite his criticism of Darwinrsquos theory of evolution Bavinck seems to be attracted to this topic and engages seriously with it In 2011 Willem J de Wit published a collection of essays titled On the Way to the Living God A Cathartic Reading of Herman Bavinck and An Invitation to Overcome the Plausibility Crisis of Christianity6 When writing briefly about Bavinckrsquos worldview and evolution he asks ldquoWhy will [Bavinck] later feel so attracted by the theory of evolution that he does not reject it once and for all but comes back to it again and againrdquo (DE WIT 2011 p 15) De Witrsquos way of posing this question is itself debatable because it suggests a personal and subjective crisis within Bavinck However I think de Witrsquos question is important to approach

De Wit discusses the prominence of worldviews in Bavinckrsquos theological work He states

From Creation or Development (1901) to The Philosophy of Revelation (19081909) the antithesis between the two worldviews is not just a theme but probably the most important issue for Bavinck He identifies evolution as the key concept of the modern worldview and revelation as the key concept of the Christian worldview In his publications on morals science education family social relations etcetera he seeks to make clear how different views in these areas are related to a difference in worldview and reflects on these areas from the perspective of his Christian worldview (DE WIT 2011 pp 55-56)

The reason behind Bavinckrsquos interest in evolution has less to do with his obsession than with the reality of the modern spirit which trumpeted Darwinism In any case as de Wit suggests the topic of evolution is not of secondary value in Bavinckrsquos theological discussion Rather part of Bavinckrsquos interest is in studying carefully the Christian against the naturalistic worldview Without understanding properly such a significant aspect Bavinckrsquos writings can be easily misunderstood especially those containing dated information

Another historical study is Abraham Flipsersquos ldquoThe Origins of Creationism in the Netherlands The Evolution Debate among Twentieth-Century Dutch Neo-Calvinistsrdquo It was published in 2012 and complements Visserrsquos work Flipse explores the role of Calvinists and their interest ldquoto formulatehellip[a] coherent view of science society and culturerdquo (FLIPSE 2012 p 107) This

6 Willem J de Wit On the Way to the Living God A Cathartic Reading of Herman Bavinck and An Invitation to Overcome the Plausibility Crisis of Christianity (Amsterdam VU University Press 2011) 16-94

107

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

exploration sets up the framework for this paperrsquos discussion Flipse offers his readers another of the main reasons why Bavinck rejected the theory of evolution besides discussing Bavinckrsquos position on the possibility to rescue the theory itself of some crucial elements Flipse writes

The ldquomechanistic worldviewrdquo that according to Bavinck underlies the Dar-winistic view of evolution a priori excluded supernatural interventions and prescribed that everything lsquoshould be reduced to mechanical motionrsquo Therefore Darwinists claim that mankind has descended from animals and that life has emerged spontaneously from inorganic matter How could it have happened otherwise If the mechanistic or ldquomodernrdquo worldview were to be abandoned Bavinck believed a different worldview could produce a different theory This theory could contain elements of Darwinism and would still be in harmony with belief in creation (FLIPSE 2012 p 112)

Like Visser Flipse reads Bavinck as not totally opposed to the theory of evolu-tion This would allow in Flipsersquos understanding of Bavinck that some ele-ments of the theory of evolution could be reinterpreted into a new framework that may be consistent with biblical revelation This line of reasoning was based in part because of the emphasis of Bavinck and other Dutch neo-Calvinists on the infallible character of the Scriptures (FLIPSE 2012 p 113) That is human knowledge and Scripture ought to be unified Of interest to this paper is Flipsersquos accurate conclusion in his first section that one of the greatest contributions of Bavinck and Kuyper to the evolution debate was not merely a matter of responding to specific questions Rather one of the greatest con-tributions was their approach to science based on the analysis of worldviews and presuppositions (FLIPSE 2012 p 116)

To address this issue Part I of this paper recounts how Bavinck understood and criticized Darwinism in the second volume of Reformed Dogmatics focus-ing primarily on his discussion of human origins in sect279-83 Here Bavinck shows a sympathetic reading of Aristotle and his particular use of the term lsquoevolutionrsquo In this section it is demonstrated that a) Bavinckrsquos understand-ing of lsquoevolutionrsquo or lsquodevelopmentrsquo differs significantly from the interpretation of Darwin and modern evolutionary theory and b) Bavinck is open to the possibility of accepting some features of Darwinism to be compatible with Scripture but only in a very limited sense Part II draws upon Bavinckrsquos two essays ldquoCreation or Developmentrdquo and ldquoEvolutionrdquo This second part ana-lyzes how Bavinck responded to Darwinism while also holding a high view of biblical revelation By analyzing the first essay listed above I demonstrate that Bavinck reframes his discussion on evolution as a worldview issue By analyzing the second essay I demonstrate that Bavinck endorses a notion of evolution in a modified Aristotelian sense

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

108

1 DARWINISM IN BAVINCKrsquoS REFORMED DOGMATICSIn his Reformed Dogmatics Bavinck introduces the topic of creation

and lsquoevolutionrsquo in relation to Darwinism Although he seems to remain open to the possibility of any eventual appropriation of aspects that might not be in contradiction with biblical revelation such openness must be understood in a very limited sense In order to establish a distinction between the former theory of evolution which had a Christian-Aristotelian framework from the modern interpretation of evolution which clings to a materialistic and naturalistic frame-work Bavinck tries to detach the term lsquodevelopmentrsquo or lsquoevolutionrsquo from its association with Darwinism and the eighteen century non-teleological theories To achieve his purpose Bavinck proceeds to sympathetically read Aristotle and his understanding of lsquoevolutionrsquo and lsquodevelopmentrsquo and from such a position becomes critical of Darwinrsquos theory of evolution

11 Evolution is not a modern construct Bavinck argues that the notion of evolution was developed by the Greek

philosophers Among those he cites Aristotle is a significant reference7 For Bavinck Aristotle rightly ldquoattributed an organic and teleological characterrdquo to the notion of development the transition from potentiality into actuality (BAVINCK 2004 p 513)8 With such understanding Christianity and the notion of lsquoevolutionrsquo would not contradict each other In this respect Bavinck writes ldquoFrom the Christian position there is not the least objection to the notion of evolution or development as conceived by Aristotle on the contrary it is creation alone that makes such evolution possiblerdquo (BAVINCK 2004 p 513) One observes that Bavinck here offers a sympathetic reading of Aristotlersquos view on lsquoevolutionrsquo and seems to agree with him at least in general terms

More useful for this paperrsquos argument is Bavinckrsquos assertion that during the eighteenth century the notion of evolution departed from this Aristotelian notion of development into other philosophical positions ldquoBut in the eigh-teenth century evolution was torn from its basis in theism and creation and made serviceable to a pantheistic or materialistic systemrdquo (BAVINCK 2004 p 513) Bavinck correctly charges Rousseau Kant Goethe Hegel and others of promoting such departure However one difference Bavinck claims existed between the position of these philosophers listed earlier and the modern approach to evolution the notion of lsquoevolutionrsquo still held its organic and teleological

7 Among those Greek philosophers who discussed the topic of lsquodevelopment or evolutionrsquo Bavinck cites the natural philosophers (eg Anaximenes Heraclitus) and the Atomists Bavinck clari-fies that while Heraclitus presented his theory with a pantheistic view the Atomists used a materialistic framework instead

8 Herman Bavinck Reformed Dogmatics II ed John Bolt trans John Vriend Grand Rapids Mich Baker Academic 2004 407-529 p 513

109

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

character Bavinck argues that it was through French naturalists J B Pierre de Lamarck and E G Saint-Hilaire along with English biologist and philosopher Herbert Spencer among other scholars that this ldquo[Aristotelian] evolutionary theory was so refashioned that it led to the descent of humanity from animal ancestryrdquo (BAVINCK 2004 p 513)

Although in the previous sentence Bavinck does not explicitly include the term lsquoAristotelianrsquo he seems to refer to it Bavinck first rightly claims that the departure of the lsquotheistic-creationistrsquo evolutionary theory had started before Darwin and secondly that Darwinrsquos observations about humanity and animals were ldquoserviceable to a hypothesis that was already dominantrdquo (BAVINCK 2004 p 513) In sum the notion of lsquoevolutionrsquo for Bavinck must not be understood exclusively as a product of Darwinism or modern theories

Interlude how did Bavinck understand DarwinismWhen Bavinck discusses Darwinrsquos theory of evolution or Darwinism he

understands it as

the theory that the various species into which organic entities used to be divided possess no constant properties but are mutable that the higher organic beings have evolved from the lower and that man in particular has gradually evolved in the course of centuries from an extinct genus of ape that the organic in turn emerged from the inorganic and that evolution is therefore the way in which under the sway of purely mechanical and chemical laws the present world has come into being (BAVINCK 2004 p 514)

This concise definition allows us to better comprehend how Bavinck understood Darwinism Careful attention must be paid into the series of con-siderations Bavinck offers of Darwinrsquos theory of evolution naturersquos struggle for life natural and sexual selection certain properties passing to future gen-erations and perfection of the organism by and through mutations Bavinck argues that all these considerations constitute mere ldquoassumptions and interpreta-tionsrdquo (BAVINCK 2004 p 514) For him scholars particularly theologians philosophers and scientists rightly recognized Darwinrsquos theory as a flawed and even a contradictory system (BAVINCK 2004 p 514-15) Therersquos no doubt that Bavinck shares such assessments and agrees with them His posi-tion however is reflected more clearly when he offers his major criticism to the modern theory of evolution

One notable aspect that must be clarified is Bavinckrsquos distinction between Darwinism in the broader sense versus its restricted sense While the latter refers to the ldquoexplanation that Darwin with his theory of natural selection offered for the origin of speciesrdquo the former refers to ldquothe opinion that the higher or-ganism evolved from the lower organisms and that the human species therefore gradually evolved from animal ancestryrdquo (BAVINCK 2004 p 516) Bavinck

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

110

believes that the restricted sense of Darwinism was generally discarded and the broader sense still enjoyed a good reputation during his era as it had earlier (BAVINCK 2004 p 516) Even as Bavinck pays little attention to the restricted sense of Darwinrsquos theory in relation to the broader one it does not mean he accepts it or finds it compatible with biblical revelation On the contrary Bavinck seems to reject the theory of natural selection without further consideration

12 Darwinism is incompatible with science and revelationBavinck offers four major critiques to the modern theory of evolution The

first one is that the theory of descent has not clearly demonstrated the origin of life Bavinck argues that evolution makes matter movement and life eternal By doing so the modern evolutionary theory adds a metaphysical dimension to the notion of evolution (BAVINCK 2004 p 517)9 This situation may be problematic for an eventual integration with biblical revelation especially if the new added metaphysical dimension is in tension with what Scripture says regarding human protology

Second Bavinck argues that Darwinism has not successfully explained the development of organic life in contrast to the Genesis narrative which ndash by claiming that animals and plants have come forth from the earth by divine order since the beginning of creation ndash gives sense to evolution (BAVINCK 2004 p 517) By using the notion of diversity and dissimilarity Bavinck claims that Darwinism is unable to explain the development of organic life In Bavinckrsquos view this proves the failure of Darwinism Thus he writes ldquo[N]atural and sexual selection are insufficient to make possible such changes in the species and have accordingly already been significantly limited and modified by Dar-win himselfrdquo (BAVINCK 2004 p 518) In addition empirical observation or science Bavinck claims has not shown a gradual transition of species from one to another On the contrary they have demonstrated that ldquoall kinds of spe-cies existed side by side from the beginningrdquo (BAVINCK 2004 p 518)10 In a few words what Bavinck suggests here is that Darwinism if true science must necessarily bases its theories and conclusions only on demonstrable facts

In this respect Bavinck believes that ldquo[m]aterialism and Darwinism are both historically and logically the result of philosophy not of experimental science Darwin himself in any case states that many of the views he presented were highly speculativerdquo (BAVINCK 2004 p 518-19)11 With this assertion

9 See also footnote 19 on p 51710 Besides this Bavinck gives two other reasons in order to support his point the lack of abundant

transitional forms of species and the belief that acquired properties are not passed on through heredity Regarding the latter point nevertheless Bavinck acknowledges that scholarship is enormously divided

11 In this respect Bavinck adds ldquoAccording to Haeckel Darwin did not discover any new facts what he did was combine and utilize the facts in a unique way The profound kinship between humans and ani-

111

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

Bavinck claims that Darwin was basically offering a philosophical response to the problem of evolution By this he suggests that Darwinrsquos account of evolu-tion was not based on scientific facts but on mere philosophical speculation

The third aspect in which Bavinck criticizes Darwinism is regarding the serious issues this system encounters when it tries to explain human origin To support his criticism Bavinck argues that there does not truly exist any positive proof that demonstrates humans have indeed descended from animal ancestry Bavinck offers two arguments the actual difference between humans and animals has always existed as well as the assumption of some transitional species These arguments are closely related to Bavinckrsquos belief that Darwinism is highly speculative

The fourth criticism Bavinck makes is the failure of Darwinism to explain humanity from a mentalpsychic dimension One of the main problems Bavinck finds in that sense is that Darwin tries ldquoto derive all the mental phenomena [eg consciousness] to be found in humansrdquo from the analogy of animal phenomena (BAVINCK 2004 p 519) Unlike biblical revelation Bavinck believes natural science has limitations in addressing mental phenomena and answering ultimate questions

It becomes clear that with this general criticism of Darwinrsquos approach to science Bavinck proceeds to reject Darwinism The problem further com-plicates with the close connection of Darwinism and materialism Bavinck argues that Darwinism significantly relies on a materialistic framework Even worse it ldquopaves the way for the subversion of religion and morality and the destruction of our humannessrdquo (BAVINCK 2004 p 520) Besides its tension with empirical science Bavinck argues that the theory of descent is also in tension with biblical revelation by ldquoviolat[ing] the image of Godrdquo in humanity and ldquodegrad[ing] the human into an image of the orangutan and chimpanzeerdquo (BAVINCK 2004 p 520) From this one concludes that in Bavinckrsquos view the doctrine of the image of God and evolutionary thinking are simply incompatible

13 Biblical revelation has priority over scienceBavinck defends one single kind of science where biblical revelation has

priority over worldviews and natural science However one must be cautious in that regard Bavinckrsquos theology is anti-dualistic and strongly dichotomizing revelation against science would be an error What Bavinck seems to defend is that scientific data must be interpreted in light of biblical revelation and not vice versa In this respect Bavinck defends the position that Scripture is

mals comes through in the concept of lsquorational animalrsquo But in earlier times this fact was not yet combined with the monistic philosophy which says that from a pure potency which is nothing ndash like such things as atoms chaos or cells ndash everything can nevertheless evolverdquo BAVINCK 2004 pp 518-19 Noteworthy to observe is Bavinckrsquos reference to Aristotlersquos concept of potency and his monistic philosophy

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

112

the one that offers a real account of humanityrsquos origins and of the different languages cultures races and alike For him all these human dimensions point ldquoto a single act of God by which he intervened in the development of humanityrdquo (BAVINCK 2004 p 525) Bavinckrsquos commitment to finding in Scripture ultimate questions is prominent Despite the diversity of languages and human ideas he claims there is still unity and that against such unity Darwinism is unable to provide an objection (BAVINCK 2004 pp 525-26)

One can observe that Bavinck seems to be open to the possibility of ap-propriation of some evolutionary ideas In that regard current scholarship on Bavinck is correct Nonetheless one must also consider that Bavinck allows such an appropriation only if it does not enter conflict with biblical revelation For instance discussing the diversity of current organisms Bavinck concedes that perhaps Darwinism might be useful to clarify the truth He writes ldquoDar-winism indeed furnishes the conceptual means of explaining the possibility of a wide assortment of changes within a given species as a result of various climatic and lifestyle influences To that extent it renders excellent service to the defense of truthrdquo (BAVINCK 2004 p 526) As seen Bavinck considers that the notion of lsquobiological changersquo can be a tool for biblical revelation One must not assume nonetheless that such lsquochangersquo must be understood in the Darwinian sense as Visser and Flipse seem to have concluded The fact that Darwinism might have some elements of truth does not mean the entire system does

Furthermore in discussing the different views on the interpretation of paradise and the Garden of Eden in Genesis 2 Bavinck again gives priority to biblical revelation over any other system of interpretation and in this case science Bavinck for example boldly claims that there is nothing in science that ldquocompels us to abandon the stipulation of Holy Scripturerdquo in regard to the earthly paradise and the first human beings despite the fact that we do not know the original place where the first humans resided (BAVINCK 2004 p 528-29) For Bavinck biblical revelation must be trusted and we should believe that despite being unknown the first humans beings lived in a defined and particular place at the beginning of the creation of humanity This demon-strates that Bavinck is committed to understand the insight offered by science under the biblical framework and not vice versa It is important to mention that one should not confuse what biblical revelation establishes in Scripture with our particular reading or interpretation of such revelation

As appreciated in Part I with such critical assessment Bavinck seems not to provide a lot of room for the theory of evolution to be understood as compatible with Scripture Besides the areas where Darwinrsquos theory is openly incompatible with biblical revelation there are other incompatibility issues that

113

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

arise12 In light of Bavinckrsquos preliminary view Darwinism has transgressed its limits as a plausible theory to reinterpret lsquoevolutionrsquo Darwinism moved from interpreting scientific data objectively to the field of explaining ultimate questions If there is something to be appropriated from Darwinism such ele-ments must not contradict biblical revelation which has priority Therefore Bavinckrsquos openness regarding an eventual appropriation from the theory of evolution must be understood in a very limited sense

2 HOW DOES BAVINCK TRY TO INTEGRATE EVOLUTION AND BIBLICAL REVELATION

In his essays ldquoCreation or Developmentrdquo (1901) and ldquoEvolutionrdquo (1908) Bavinck examines in-depth Darwinism and evolutionary theory In both essays readers will be able to appreciate Bavinckrsquos argumentative progression and deeper engagement with evolution along with a thought-provoking response on what aspects Bavinck believes evolution might be or not be compatible with biblical revelation

21 In the essay ldquoCreation or DevelopmentrdquoIn his essay ldquoCreation or Developmentrdquo Bavinck presents to his readers

the issue of evolution as he previously did in his Reformed Dogmatics This time nonetheless Bavinck reframes his discussion on evolution as a world-view issue Bavinck discusses how the human being has tried to explain the world in terms that leave out God and spirituality and instead has focused on ldquodata of matter and forcerdquo13 For him eighteenth century philosophers such as Spinoza later Hegel and Feuerbach have all failed in the task of success-fully explaining the origin of the world It is within this challenging context Bavinck claims that Darwinrsquos theory of development appears and embraces a ldquonew worldview which undertakes to interpret [all things] without exception independent of Godrdquo (BAVINCK 1901 Intro Par1) Bavinck in this essay introduces Darwinism as a lsquotheory of developmentrsquo In doing so Bavinck acknowledges that Darwinism constitutes a theory that has tried to explain

12 The previous four critiques discussed in this section are not the only ones Bavinck made against Darwinism Bavinck also argues other aspects such as a) that evolution also contradicts the Scriptures in other aspects than humanity origin ldquo[T]he age the unity and the original abode of the human racerdquo are areas where evolution and biblical revelation also differs Par sect281 ldquoThe Age of Humanity in Bavinckrdquo BAVINCK 2004 p 520-22 b) that Darwinism is unable to successfully respond to questions about the origin of humanity and its age because in the large period of time that it assumes is difficult to point out a first human being Par sect282 ldquoThe Unity of the Human Racerdquo in BAVINCK 2004 p 525 c) that science including Darwinism has not said anything certain about the home of humanity except ldquoconjuncturesrdquo since it ldquoknows nothing about the origin and abode of the first humansrdquo Par sect283 ldquoThe Original Abode of Humanityrdquo in BAVINCK 2004 p 528

13 Herman Bavinck ldquoCreation or Developmentrdquo The Methodist Review (1901) transl Hendrik De Vries 849ndash74 Introduction Par 1

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

114

the issue of evolution although such attempt has failed This is an important fact for this paper in light of Bavinckrsquos assumed interest in appropriating and reframing key aspects of Darwinism and evolution which might not conflict with biblical revelation

211 Darwinism is not science but a worldviewOne observes that Bavinck is not interested in responding a list of ques-

tions regarding evolution and how it challenges Christianity Rather Bavinck departs from another point where he rejects the idea that Darwinism is a solid scientific theory In this respect Bavinck in his Reformed Dogmatics claims that Darwinism is mere speculation and a philosophical system He reinforces this position and argues Darwinism is also a worldview in the first section of ldquoCreation or Developmentrdquo

Bavinck clarifies his understanding of natural science as ldquoan insight into the essence of things and an understanding of the idea the logic and the uni-versal which is to be observed in thingsrdquo (BAVINCK 1901 Section I Par1) Such a notion sets the framework from which Bavinck evaluates lsquoevolutionrsquo and its relation to biblical revelation He proceeds to discuss some ultimate questions such as the origin of life and all things He asserts that Darwinismrsquos theory of evolution (the development theory) addresses the ultimate question about the source of things In this respect Bavinck states ldquo[Its answer is that] there is no origin and no beginning of things All what is always was though it be in other forms and always shall berdquo (BAVINCK 1901 Section I Par4)

The issue Bavinck finds here is the philosophical suggestion on the eter-nity of matter and substance Substance has become according to Bavinck the ldquoDeity of the newer worldviewrdquo (BAVINCK 1901 Section I Par6) Therefore development or evolution has ldquodisplace[d] Divine Providencerdquo by becoming an ldquoeternal lawrdquo (BAVINCK 1901 Section I Par7) Despite Bavinckrsquos as-sertion that this law has tried to explain the origin of the universe and how the earth has become a habitable place for organisms through a process of development Bavinckrsquos tone is one of irony in order to make his point that current development theory has indeed displaced providence This seems to be confirmed with the following paragraph where Bavinck describes the new state of affairs under the newer theory of development

This is the new and newest interpretation of the origin of things There is some-thing imposing something which takes hold of one mightily in this view There is contained in its unity of thought boldness of conception and sequence of principle It is readily understood that it charms many Yes when one does not believe in revelation which furnishes another interpretation of all creatures one is bound in a similar way to render the origin of things in some measure intel-ligible to himself They must have come from somewhere and have originated in some way The theory may still be incomplete and leave many phenomena in

115

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

the physical and psychical world unexplained nevertheless according to Straus Darwin is hailed as the greatest benefactor of the human race because he has opened the door through which a more fortunate posterity will be able to cast out the miracle for good An age which denies the supernatural and even shakes off all religion cannot do other all opposition notwithstanding than expect all salvation from the reason its own thinking and to see the solution of all the riddles of the world in development (BAVINCK 1901 Section I Par8)

After this criticism Bavinck continues further and states that the theory of development ldquois not a product of science but of imagination It is no science in any serious sense no science exact as it is claimed to be but a worldviewa philosophy as uncertain as any system of the philosophersrdquo (BAVINCK 1901 Section I Par9) Because idealism is entirely based on imagination such a worldview becomes contradictory when it addresses human origin Idealism has failed to provide convincing evidence in favor of humanity having an animal ancestry (BAVINCK 1901 Section I Par14) In sum one notes that for Bavinck Darwinismrsquos claims are based on philosophical assumptions and imagination rather than on actual facts

212 Darwinism misappropriates the notion of developmentIn the second section of his essay Bavinck focuses on the essence of things

For Bavinck in this new worldview all creatures are just one constituted by a single substance that changes indefinitely an idea that suggests there is no God and spiritual world (BAVINCK 1901 Section II Par2) This would make the creation a big ldquomachine which has construed itself which continuously holds itself in motion and which completely blind without reason and pur-pose eternally runs on and never downrdquo With such properties creation is no longer a ldquoliving animated organic unityrdquo but an ldquoeternal existence of one and the same sortrdquo (BAVINCK 1901 Section II Par2)

Bavinck goes on with his critical assessment and offers a series of philo-sophical characteristics of the modern theory of development the lack of an ontological difference between humanity and animals the negation of the human soul and other human dimensions the reductionist view of humanityrsquos spiritual dimension and the promotion of anthropocentrism

The implications of a system with such features are important In this new worldview and in contrast to biblical revelation ldquothere is no difference of good and evil of right and wrong of truth and falsehood Everything is good and beautiful and true in its time and place according to the individual faith and choicerdquo (BAVINCK 1901 Section II Par6) This leads Bavinck among other factors to argue that this development theory is a failure in being unable to ldquointerpret the richness and variety of creationrdquo Therefore evolutionists for Bavinck have misappropriated the concept of development by understanding

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

116

it under a mechanical framework and thus concealing the drawbacks of their system of thought (BAVINCK 1901 Section II Par10)

Due to this fact Bavinck argues that lsquodevelopmentrsquo itself is not against the notion of creation ldquobut is only possible upon its foundation and belong to its confessionrdquo (BAVINCK 1901 Section II Par10) To that end Bavinck clarifies what he means and writes

Development produces nothing of itself it is not the mother of being or of life it is only a form of motion which can only reveal what lies hidden inwardly in the germ But the so-called development theory has no knowledge of germs it knows nothing of disposition or capacity of fitness and susceptibility In its sys-tem there is no room for anything save atoms and complexes of atoms which are altogether passive in themselves and are collocated only and alone in a mechanical or chemical manner by circumstances from without This makes no mention of development in its real sense (BAVINCK 1901 Section II Par10)

Bavinck here seems to defend a concept of development In doing so he sug-gests that development understood from a creationist perspective could be retrieved This retrieval would be possible if it is conceded that ldquobeings by way of [a process of] organic growthrdquo can become ldquowhat in germ and principle they already arerdquo This can be so because development itself ldquorefers to thought plan law endrdquo and ldquohe who names development names Godrdquo (BAVINCK 1901 Section II Par10)

One may observe Bavinckrsquos reference to Aristotlersquos notion of potentiality and actuality In effect he indeed seems to adopt an AristotelianThomistic framework to understand development the transition between potentiality (what a being is in germ and principle) and actuality (what the being has become in accordance to what they already are) Understanding development in this way is what I think allows Bavinck to incorporate the notion of lsquodevelopmentrsquo in his theological thought while having a high view of biblical revelation This is demonstrated by Bavinckrsquos words when he states

So little does development stand over against creation that there is scarcely any choice left between creation with the richest development on one side and mechanical combination by the accident of a host of similar atoms on the other Development stands between origin and end under Godrsquos providence it leads from the first to the last and unfolds all the riches of being and of life to which God gave existence (BAVINCK 1901 Section II Par10)

Bavinckrsquos redefinition of lsquodevelopmentrsquo allows him to ldquoembrace not merely a few but all phenomenardquo of the Christian worldview This is because in the Christian worldview the world is ldquoan organic living whole [containing] not only matter and force but also spirit and consciousness reason and willrdquo For Bavinck Godrsquos creation (eg the world) is a unity which ldquoreveals itself in the

117

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

richness and most beautiful varietyrdquo (BAVINCK 1901 Section II Par11) Unlike Darwinism all organic life follows its own law and nature In this respect Bavinck claims

And although the creatures are thus distinguished they are not separated from each other Together they form one whole one organism one art product of which God himself is the artist and the master builder In him in his counsel in his will all created things find their origin and maintain their existence (BAVINCK 1901 Section II Par11)

Bavinck concludes his second section of his essay emphasizing that the newer worldview has no knowledge of biblical revelation Thus the difference be-tween evolution in Darwinist terms and evolution in AristotelianThomistic sense becomes clearer

213 Darwinism lacks an adequate teleologyIn the third section of his essay Bavinck addresses the teleological aspect

of the things He commences his essay claiming that by this third section he has shown the theory of development (Darwinism) fails again because of its ldquoinsufficiency and unsatisfactory characterrdquo (BAVINCK 1901 Section III Par2) Such lacking is teleological the theory does not provide space for universal history For Bavinck although evolutionists speak sometimes of purpose in their theory such purpose is futile and without warrant He writes

The system of the development theory offers no room for a plan or a purpose Nothing is dominant then save the compulsion of fate or the capriciousness of accident Everything is as it is without reason and without purpose The theory of evolution furnishes no answer whatever to the inquiry to what purpose everything serves On this question it remains silent (BAVINCK 1901 Section III Par2)

Bavinckrsquos critique here is about the lack of an adequate teleology that can explain the purpose of humanity yet not limited to it In a non-teleological system in which the spiritual dimension is lacking Bavinck suggests there is no purpose at all If the created order does not have purpose the importance of history is undermined In other words ldquo[H]istoryhellipis dominated just like the physical world and with equal necessity by mechanical forces and lawsrdquo (BAVINCK 1901 Section III Par3-4) Having this line of reasoning in mind Bavinck asserts that ldquothe development of humanity cannot be taken as end-lessly progressingrdquo The end would be chaos and destruction which ultimately would lead to the extinction of the created order where ldquodeath [will be] the end of the world as well as of the individual man and of the entire human racerdquo (BAVINCK 1901 Section III Par5) Therefore this theory of development lacks an adequate eschatological aspect in its worldview

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

118

As appreciated in this part unlike biblical revelation the evolutionary worldview denies the teleological aspect of humanity and the created order For this reason Bavinck writes the following critical assessment ldquo[C]om-plete bankruptcy moral and spiritual is the end of the modern worldviewrdquo (BAVINCK 1901 Section III Par12) Bavinck entirely discards Darwinrsquos interpretation of the theory of development By reframing it as worldview Bavinck demonstrates that Darwinism is not true science but an interpreta-tive system imposed on scientific data And as such Bavinck claims that this interpretative system is flawed This becomes clearer when Bavinck claims that the lsquotruersquo development theory is to be found only in biblical revelation where history has a teleological course shaped by Scripture and there is an ldquoexpectation of the futurerdquo (BAVINCK 1901 Section III Par13)

22 In the essay ldquoEvolutionrdquoIn his ldquoEvolutionrdquo essay Bavinck begins by warning his readers about

the unstable character of the term lsquoevolutionrsquo throughout history and thus the diversity of the termrsquos meanings Bavinck clarifies the term making a refer-ence to Leibniz who was the first one to use the Latin term ldquoevolutiordquo with the connotation of ldquobecoming of things in naturerdquo14 Such an aspect is of high weight for this paper because of the different ways Bavinck has used the term Alongside previous criticism the fact that Bavinck redefines evolution as lsquodevelopmentrsquo in an Aristotelian sense shows that he has indeed endorsed an AristotelianThomistic framework to understand evolution Bavinck has already justified the reasons of such redefinition and now he has taken a further step in the progression of his ideas at the intersection of evolution and biblical revelation

221 The Christian idea of development is based on Aristotlersquos notion of evolution

Bavinck had previously discussed that although the term lsquoevolutionrsquo was not used by Greek philosophers they did discuss the idea behind it The idea of being Bavinck tells us was known to the Greeks especially Heraclitus who rejected the notion of being in favor of only becoming (BAVINCK 2008 p 106) The balance between being and becoming was then a topic later phi-losophers discussed such as Empedocles Anaxagoras the Atomists Plato and Aristotle among others For Bavinck however it is Aristotle the first Greek philosopher to present a development theory Bavinck writes

14 Herman Bavinck ldquoEvolutionrdquo in Essays on Religion Science and Society ed John Bolt Grand Rapids Mich Baker Academic 2008 105-118 p 105

119

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

And one can rightly say that the last-named philosopher [Aristotle] was the first to devise a lsquosystem of developmentrsquo Aristotle conceived of that which is as the being that is developing in the phenomena True being does not consist in isolation above and beyond but it is within things However it does not im-mediately and initially fully exist there but it gradually comes into being by way of a process All becoming (happening moving) consists in the transition from potential to actualityhellip

Aristotle therefore does not explain what came to pass ndash as the Atomists do ndash from mechanical pleasure to impact but he borrows his idea of development from organic life For him becoming is an actualizing a realization of what is potentially and germinally present in the phenomena he explains the becoming from the being for him the genesis exists for the sake of the ousia With this thinking Aristotle is far ahead of the Atomists because he considers becoming not as determined entirely from the outside through accidental circumstances but as guided from the beginning in a certain direction The nature the char-acter the being the idea of something indicates the direction in which the development will take place Since evolution is thought to be organic it is also thoroughly teleological And since Aristotle applies this idea of development not only to particular things but also to the world in its entirely he discovers order and planning movement and upward mobility in the world of creatures (BAVINCK 2008 p 106)

Bavinck argues that Christianity developed Aristotlersquos notion of de-velopment although he does not mention any name The important aspect to highlight in this respect is Bavinckrsquos assertion that ldquoChristianity did not replace or dispute [the Aristotelian] idea of development but took it over and enriched itrdquo (BAVINCK 2008 p 106) The claim that ldquomatter also originated from and through the word and therefore was a part of divine thoughtrdquo was the first great contribution of Christianity to Aristotlersquos development project a project that in its original form Bavinck finds very dualistic In this respect Bavinck believes ldquonature is not a dark demonic mass but incarnate wordrdquo With this anti-dualistic line of reasoning Bavinck rightly concludes that the theory of development presented by Aristotle was ldquoimmeasurably enrichedrdquo (BAVINCK 2008 p 107)

The second way Christianity benefited Aristotlersquos system of develop-ment was that it provided a coherent history of humanity which starts from a particular point toward eternal life In that regard Bavinck writes ldquoChristianity presents a history of humanity a development that proceeds from a certain point and moves toward a specific goal progressing toward the absolute ideal toward true being toward eternal liferdquo (BAVINCK 2008 p 107) So far Bavinck has held that Christianity appropriated Aristotlersquos development system and has enriched it He calls this the ldquoChristian idea of developmentrdquo an idea which ldquomade its way into the newer philosophy [of the seventeenth

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

120

century]rdquo (BAVINCK 2008 p 107) Bavinckrsquos sympathetic reading and af-finity to Aristotelesrsquos notion of development seems to be something that cur-rent scholarship has slightly ignored There is no doubt that Bavinck clings to Aristotle Such fact has implications on what Bavinck may accept or reject from Darwinrsquos theory of evolution

222 Darwinism has departed from AristotleChristianityPreviously in his Reformed Dogmatics Bavinck affirmed that the eigh-

teenth-century philosophers left the theistic development system Here Bavinck writes ldquowith many the idea of development is detached from the theistic founda-tion of which it rests in Christianityrdquo (BAVINCK 2008 p 107) Earlier in this essay we learned that the system was Aristotlersquos development theory enriched by Christianity therefore it can be concluded that Bavinck seems to endorse a modified Aristotelian framework to understand the theory of evolution If this claim is true as has been argued throughout this paper it will not only help readers better understand Bavinckrsquos position but also clarify to what extend he provides room for evolution (in the modern use of the term) with his high view of biblical revelation

ldquoEvolution is organic and teleological and for that reason it has a pro-gressive characterrdquo Bavinck has argued (BAVINCK 2008 p 106) Now he reaffirms such a vision claiming the different changes that people observe in the created order constitute a ldquodevelopment from withinrdquo This means that such development has been conceived ldquoorganically and for that reason retains its teleological characterrdquo (BAVINCK 2008 p 107) This development is not merely accidental according to Bavinck When poets and philosophers speak of ldquounity in the developmentrdquo in their ldquosearchinghellip for gradual transitionsrdquo they refer to a ldquological ideal order in the progression [development] of crea-turesrdquo and not ldquoa physical descent [of humanity]rdquo (BAVINCK 2008 p 108) Bavinck clings to this among other aspects to claim that philosophers of the nineteenth century departed from such a notion of development and replaced it with ldquoa totally different ideahellip[yet] was not completely new for it had been proposed already in antiquity by Leucippus Democritus and Epicurus [reemerging] with Descartesrdquo (BAVINCK 2008 pp 108-9) Supported by French naturalists and appropriated by some philosophers ldquothe [new] idea of development displayed a character that was too philosophicrdquo (BAVINCK 2008 p 108) Once again Bavinck highlights the difference between the two kinds of theories of development ndash the Aristotelian theory of development and Darwinism

Important to notice here is Bavinckrsquos assertion that Darwin provided the scientific character that the new understanding of development needed in order to become a theory of evolution In this respect Bavinck writes

121

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

The modern idea of evolution existed already before Darwin just as socialist expectations had prophets already before Marx But Darwin endeavored to give this idea of evolution a solid foundation in the facts in the same way in which Marx according to the opinion of his followers changed utopian socialism into a scientific socialism And Darwin did not leave it at that Not only did he show us in an amazing mass of facts striking analogies that exist between organic creatures which had been categorized in species by [Carolus] Linnaeus and on which he constructed his theory of descent he also tried to explain this descent by this hypothesis of lsquonatural selectionrsquo which in the lsquostruggle for lifersquo assures the lsquosurvival of the fittestrsquo and thus assures the development also as progressAs a result evolution received a completely different meaning in the newer science than it had before (BAVINCK 2008 p 108-9)

Bavinck here is bold about his rejection of Darwinism and Darwinrsquos appropria-tion of the notion of development which was previously understood as ldquoan organic progressive teleological processrdquo that has the purpose of ldquoposit[ing] a logical idealistic order between creaturesrdquo (BAVINCK 2008 p 109) Although Bavinck does not indicate it he seems to make a reference to Aristotlersquos Great Chain of Being especially with his explanation of the purpose of the former theory of development

Rightly after his clarification about Darwinrsquos misappropriation Bavinck proceeds to offer a brief explanation of the claims made by the new theory of development (Cf BAVINCK 2008 p 109) Modern readers must not assume that the previous list is exhaustive in the aspects Bavinck rejects from Darwinism Such an integral perspective is only reached when taking into account at least his exposition in Reformed Dogmatics and his ldquoCreation or Developmentrdquo essay among other brief references Bavinck makes to evolution in other parts of his theological thought15

223 Failure of the Darwinist methodology Once Bavinck offers his brief list of the characteristics of the new theory

of development he moves on to discuss some methodological aspects of Dar-winrsquos theory of evolution Bavinck criticizes the lack of purpose or guidance in the new theory of development as well as its inability to ldquoprovide norms by which to measure progress or declinerdquo While evolutionists speak of ldquoa con-tinuing improvement of the human racerdquo such a naiumlve notion of improvement is used by some to manipulate people and their ldquoexpectations to the other side

15 In this respect Bavinck writes ldquoSo many and such weighty objections exist against this theory that it is impossible to consider it seriously as a solution to the problems of this world The short space available for this controversy permits only a few comments but these may already be sufficient to justify any counterargument that mechanical monism experiences in many circles both within and outside the realm of scholarshiprdquo (ldquoChristianity and Natural Sciencerdquo in Essays on Religion Science and Society ed John Bolt Grand Rapids Mich Baker Academic 2008 81-104 p 100)

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

122

of the graverdquo (BAVINCK 2008 p 109) Bavinck ironically writes ldquohellip[I]f a monkey can evolve gradually into a human being there is a good possibility than in the next life humans will gradually change into angels (BAVINCK 2008 p 110) He offers this example as a way of noticing the absurd ldquomechanical non-teleologicalrdquo characteristic of the new theories of development and descent

As Flipse notices Bavinck argues that the mechanical worldview is deficient It is not enough to claim that ldquothe world is a machinerdquo because believing such an idea requires a lot of faith from us ldquo[W]hen natural science limits itself to its own realm it does not have to concernrdquo about the ldquoorigin of thingsrdquo Bavinck asserts (BAVINCK 2008 p 110) The issue arises when the limits of science are transgressed into the metaphysical or philosophical realm ldquoThe mechanical idea which is fully justified in some areas of nature is then expanded into a mechanical worldview and proclaims the dogma of the eternity of the matterrdquo For Bavinck in the moment such a situation happens the scientist becomes a philosopher (BAVINCK 2008 p 110)

Bavinckrsquos point opens the door to evaluating Darwinism in light of its metaphysical claims It is not a surprise that Bavinck claims a ldquoperpetual motion machine is self-contradictionrdquo as a critique to Darwinismrsquos mechani-cal worldview a view that lacks mystery This goes in contradiction to ldquothe mystery of beingrdquo (BAVINCK 2008 p 110) Bavinck concedes however that the only mystery that this newer theory of development and its mechani-cal worldview has is about ldquothe origin of thingsrdquo (BAVINCK 2008 p 111) One should note that this concession does not necessarily mean that Bavinck would include such elements in an eventual Christian account of lsquoevolutionrsquo as Flipse seems to understand

Bavinck also argues that believing in the concept of a rational human being assumes that there is a difference between human beings and animals Such a difference is made evident not only in body structure but also in body organs and embryonic development (BAVINCK 2008 p 113) This claim is significant especially if one tries to contend that Bavinck seems to be open with some elements of the evolutionary theory Bavinckrsquos critique is clear the embrace of the theory of descent is a product of leaving the faith and ne-glecting scientific data (BAVINCK 2008 p 113) Therefore arguments from the theory of descent are not based on pure facts but on hypotheses As seen Bavinck does not criticize Darwinism only from the claims it makes but also for the methods it uses

For instance Bavinck becomes critical of the comparison method that Darwin uses for the theory of descent He argues that the theory of descent relies too much on comparison (eg comparative anatomy physiology and psychology) Darwinismrsquos method fails because despite all similarities be-tween man and animal humankind is separate from all creatures (BAVINCK 2008 p 114) Such differentiation is not merely physiologically but also of

123

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

the metaphysical dimension of man In this respect Bavinck relies on this fact to assert that other areas of study such as religion philosophy and psychology have important insights to provide when the theory of descent is assessed (BAVINCK 2008 p 115) As he has done in other parts Bavinck rejects the notion that there is a gradual transition which supports the theory of descent

In sum Bavinck rejects not only the content of Darwinism and how it has interpreted the theory of evolution but its own flawed methodology

224 Development can be accepted but only in the Aristotelian sense

After offering arguments to what extent evolution and biblical revelation may not contradict each other Bavinck argues that there is room for develop-ment in the ldquotrue sense of the wordrdquo but such development assumes ldquoplan and law direction and goalhellipbeginning and endrdquo (BAVINCK 2008 p 118) It is not a coincidence that Bavinckrsquos last sentences refer to Aristotle ldquo[He] already understood that becoming exists for the sake of being not the reverse There is becoming only if and because there is beingrdquo (BAVINCK 2008 p 118) Here Bavinck claims there is space for lsquodevelopmentrsquo in biblical revelation However he restricts such possibility significantly one should understand lsquodevelopmentrsquo in the real meaning or true sense of the term As it was shown previously in this paper Darwinist or non-teleological theories of evolution do not give such real meaning to the term but the lsquoChristian-Aristotelianrsquo framework does

CONCLUDING REMARKSBavinckrsquos engagement with the theory of evolution is noteworthy Unlike

his general criticism to Darwinism in his discussion of human origins in RD sect279-83 the essays studied here analyze the theory of evolution in a further in-depth fashion While in ldquoCreation or Developmentrdquo Bavinck approaches Darwinism as an interpretative system of scientific data in his essay ldquoEvolu-tionrdquo Bavinck reclaims the notion of lsquodevelopmentrsquo and lsquoevolutionrsquo under a modified Aristotelian-Christian account of lsquoevolutionrsquo It is a framework that seems to be compatible with Scripture but rejects Darwinism as a whole and not only a particular feature of it Current scholarship is partially right

What this paper departs from modern scholarship is that Bavinckrsquos notion of lsquodevelopmentrsquo is not merely a kind of Christianized Darwinism or theistic evolution It is true that Bavinck might allow certain changes in organisms but only within their kinds without any notion of metaphysical change improve-ment or retrogression such as the change of an organism of a kind evolving into another kind When Bavinck speaks of lsquodevelopmentrsquo his use of the term is strictly in accordance to the Aristotelian metaphysics being as becoming

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

124

Modern readers must take into consideration that this Aristotelian posi-tion has traditionally been understood as opposed to evolution in the modern sense Bavinck has modified the Aristotelian notion of development to allow certain changes in the material constitution of organisms but not in their es-sence With this understanding of lsquodevelopmentrsquo Bavinck indeed overcomes the challenges on the intersection of evolution and biblical revelation but does not leave much room to appropriate evolutionary thinking

RESUMOEm sua anaacutelise da evoluccedilatildeo Bavinck oferece uma teoria modificada de

desenvolvimento radicada natildeo em uma cosmovisatildeo mecanicista e naturalista como Darwin faz mas em uma estrutura ldquoamistosa ao teiacutesmordquo Este artigo sugere que a discussatildeo de Bavinck acerca da evoluccedilatildeo como um todo endossa uma estrutura modificada aristoteacutelica-tomista a fim de compreender a teoria do desenvolvimento e assim supera os desafios levantados pela cosmovisatildeo naturalista de Darwin para a revelaccedilatildeo biacuteblica

PALAVRAS-CHAVEDarwinismo Evoluccedilatildeo Cosmologia evolutiva Diaacutelogo teologia-ciecircncia

Teoria do desenvolvimento

125

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 125-129

RESENHA

Heber Carlos de Campos Juacutenior

ALLEN Michael SWAIN Scott R Catolicidade reformada a pro-messa da recuperaccedilatildeo para a teologia e a interpretaccedilatildeo biacuteblica Brasiacutelia DF Monergismo 2021 223 p

A Editora Monergismo nos presenteou com um livro que enriquece mui-tiacutessimo o cenaacuterio teoloacutegico brasileiro quanto agrave autoria e quanto ao tema Mi-chael Allen e Scott Swain satildeo pouco conhecidos do puacuteblico brasileiro embora capiacutetulos de sua autoria jaacute tenham sido publicados em nosso idioma (Teologia da Reforma org Matthew Barrett Thomas Nelson Brasil 2017) Ambos satildeo professores de teologia sistemaacutetica do Reformed Theological Seminary no campus da cidade de Orlando nos Estados Unidos Satildeo autores jovens mui proliacuteficos e extremamente haacutebeis no lidar com teologia contemporacircnea Neste uacuteltimo quesito quero dizer que eles satildeo teoacutelogos que interagem frequente e perspicazmente com autores recentes inclusive de outras tradiccedilotildees cristatildes Portanto ambos fazem teologia sistemaacutetica natildeo somente reproduzindo as vozes de autores do passado mas mediante um rico diaacutelogo criacutetico com dife-rentes linhas doutrinaacuterias modernas Uma variedade de fontes pode ser vista no livro que estamos resenhando prova de que os autores estatildeo encarnando um espiacuterito ldquocatoacutelicordquo

Isso me leva ao segundo aspecto no qual este livro enriquece o cenaacuterio protestante brasileiro o tema A catolicidade agrave qual o livro se refere natildeo eacute uma referecircncia agrave Igreja de Roma nem um aspecto meramente eclesioloacutegico (universalidade geograacutefica e antropoloacutegica da igreja) mas um resgate e incor-poraccedilatildeo da tradiccedilatildeo teoloacutegica cristatilde Cientes de que existem vaacuterios movimentos

Doutor em Teologia Histoacuterica (PhD Calvin Theological Seminary) Mestre em Teologia His-toacuterica (ThM Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper) professor de Teologia Histoacuterica no CPAJ e de Teologia Sistemaacutetica no Seminaacuterio Presbiteriano Rev Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo

CATOLICIDADE REFORMADA A PROMESSA DA RECUPERACcedilAtildeO PARA A TEOLOGIA

126

recentes que tecircm retornado agraves fontes antigas ndash desde catoacutelicos (Yves Congar e Henri de Lubac) passando por anglicanos (John Milbank e Graham Ward) protestantes de denominaccedilotildees liberais (Donald Bloesch e Thomas Oden) e ateacute evangeacutelicos (Robert Webber e D H Williams) ndash Allen e Swain se unem a essas tendecircncias recentes de renovaccedilatildeo teoloacutegica mediante a recuperaccedilatildeo de recursos da tradiccedilatildeo cristatilde (p 19-30) No entanto os autores natildeo estatildeo apenas seguindo a tendecircncia de nosso tempo mas estatildeo seguindo o modelo de refor-mados do passado como William Perkins em seu livro Reformed Catholicke (1597) a Ortodoxia Reformada do seacuteculo 17 e ateacute Philip Schaff no seacuteculo 19 (p 31 213) para os quais ldquoser reformado significa ir mais fundo na verdadeira catolicidaderdquo (p 18) Em outras palavras as diversas teologias de recuperaccedilatildeo da tradiccedilatildeo catoacutelica natildeo devem ser assimiladas num espiacuterito de colagem aceacute-fala de autores antigos mas devem alertar-nos para pensar numa apropriaccedilatildeo consistentemente protestante da tradiccedilatildeo (p 29-30) Os autores natildeo prometem uma metodologia completa para tal apropriaccedilatildeo mas lanccedilam um manifesto que precisa ser ouvido por protestantes que natildeo satildeo suficientemente catoacutelicos e por ecumecircnicos que natildeo satildeo suficientemente protestantes

Apoacutes a introduccedilatildeo o livro possui cinco capiacutetulos da pena dos autores e um posfaacutecio escrito por J Todd Billings o qual apresenta uma proposta de re-descoberta da tradiccedilatildeo para a renovaccedilatildeo da igreja (p 199-223) Este eacute professor no Western Theological Seminary de linha teologicamente mais aberta que o Reformed Todavia Billings faz coro com os autores do livro ao afirmar que a tradiccedilatildeo catoacutelico-reformada oferece uma alternativa agrave leitura individualista das Escrituras que muitos evangeacutelicos fazem buscando respostas no texto para confirmar a ldquorelevacircnciardquo de Jesus Em contraposiccedilatildeo a tal tendecircncia o propoacutesito de recuperar vozes do passado eacute para que elas revelem os pontos cegos de nossa eacutepoca e superemos as idolatrias ocultas do presente (p 211-213)

No primeiro capiacutetulo Allen e Swain afirmam que o ressourcement (lit ldquoretorno agraves fontesrdquo alusatildeo ao movimento catoacutelico romano do seacuteculo 20 deno-minado Nouvelle Theacuteologie) reformado natildeo eacute uma proposta tradicionalista mas um programa de natureza trinitaacuteria e cristoloacutegica que relaciona o Espiacuterito de Cristo e a mente renovada da igreja De acordo com 1Joatildeo 227 o ldquoEspiacuterito de Cristo ensina a igreja em veracidade tatildeo suficiente e pura que a igreja natildeo precisa buscar entendimento teoloacutegico em qualquer outra fonte ou princiacutepiordquo de tal forma que a igreja eacute o canteiro da teologia o uacutenico terreno criacional feacutertil no qual a instruccedilatildeo de Cristo promete ldquoflorescer em entendimento humano renovadordquo (p 37) Os autores acreditam que a tradiccedilatildeo eacute instituiccedilatildeo divina na qual buscamos progresso na busca por entendimento O fato de a tradiccedilatildeo poder errar natildeo desqualifica o seu status de instituiccedilatildeo divina Diferentemente do que George Lindbeck propocircs em seu livro The Nature of Doctrine a teologia natildeo eacute meramente um fenocircmeno lsquolinguiacutestico-culturalrsquo de construccedilatildeo credal a

127

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 125-129

teologia reformada de recuperaccedilatildeo acredita que ldquoa igreja recebe e transmite o ensino apostoacutelico como frutos do Espiacuteritordquo (p 46)

O restante do primeiro capiacutetulo eacute uma articulaccedilatildeo pneumatoloacutegica de como chegamos ao conhecimento da verdade O Espiacuterito estaacute por traacutes do ato da igreja de criar tradiccedilatildeo (p 53) O Espiacuterito natildeo a igreja eacute a fonte da verdade teoloacutegica e a tradiccedilatildeo eacute a postura da igreja de permanecer no ensino apostoacutelico ao longo do tempo (p 57) Enquanto a Escritura ldquoeacute a fonte divina-mente autoritativa e suficiente da teologiardquo ndash contra a teoria das duas fontes propagada pelo Vaticano II ndash a tradiccedilatildeo eacute ldquoa recepccedilatildeo da Escritura capacitada pelo Espiacuterito eacute o alvo divinamente designado da teologiardquo (p 60) A Escritura eacute o fundamento e a obra iluminadora do Espiacuterito renovando nossas mentes permite agrave igreja construir tradiccedilatildeo em cima da Escritura ldquoEmbora o depoacutesito apostoacutelico natildeo possa crescer o entendimento da igreja desse depoacutesito pode e de fato deve crescerrdquo (p 70)

Nos capiacutetulos 2 e 3 os autores articulam uma defesa do Sola Scriptura e sua relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo Sola Scriptura na Reforma nunca intentou ser ldquouma censura absoluta agrave tradiccedilatildeo ou uma negaccedilatildeo da autoridade eclesiaacutestica genuiacutenardquo (p 75) Pelo contraacuterio os autores acreditam que o compromisso com o Sola Scriptura na verdade aumenta nossa recepccedilatildeo da rica tradiccedilatildeo catoacutelica (p 77) Contrapondo-se a criacuteticos do princiacutepio de ldquoSomente a Escriturardquo tan-to do passado (Alexis de Tocqueville) como do presente (Brad Gregory e A N Williams) que alegam que tal princiacutepio significa ausecircncia da autoridade interpretativa da tradiccedilatildeo e abre a porta para todo tipo de pluralismo herme-necircutico nossos autores revelam que a leitura dos criacuteticos eacute equivocadamente ldquodonatistardquo (como se o princiacutepio fosse um purismo biacuteblico que fecha os olhos para a conduccedilatildeo providencial de uma igreja imperfeita) e ldquodeiacutestardquo (como se o processo de reflexatildeo teoloacutegica fosse uma atividade exclusivamente humana ou natural) Ateacute quando os reformados defenderam o ldquoprinciacutepio regulador de cultordquo ndash pelo qual se entende que todo elemento do culto deve ser autorizado pela Escritura ndash eles removeram certas praacuteticas romanas e introduziram novos padrotildees lituacutergicos que deveriam ser seguidos por geraccedilotildees vindouras (p 102) Isto eacute os reformados nunca deixaram de produzir tradiccedilatildeo mas sempre dirigida pela Escritura

Em seguida calcados em passagens como o Salmo 145 Atos 15 e as Epiacutestolas Pastorais aleacutem do escrito de Lutero sobre conciacutelios eclesiaacutesticos Allen e Swain concluem que somos mais biacuteblicos natildeo quando somos ldquobibli-cistasrdquo mas quando estamos envolvidos no processo de ldquoformar tradiccedilatildeordquo Somente a Escritura (Sola Scriptura) natildeo eacute sinocircnimo de a Escritura Sozinha (Solo Scriptura) ldquoum filho bastardo amamentado no seio do racionalismo e individualismo modernosrdquo assim como a perspicuidade da Escritura natildeo sig-nifica que qualquer investigador do texto sagrado provido dos devidos meios sempre o interpreta adequadamente como se o sacerdoacutecio universal signifi-

CATOLICIDADE REFORMADA A PROMESSA DA RECUPERACcedilAtildeO PARA A TEOLOGIA

128

casse que natildeo precisamos de mestres (p 123-124) De modo bem protestante eles encerram o capiacutetulo 3 dizendo que a igreja eacute criatura da Palavra que ela eacute nutrida ao ouvir a Palavra e que sua autoridade ministerial eacute delegada pela Palavra (p 125-134)

O quarto capiacutetulo trata do papel dos escritos confessionais na interpre-taccedilatildeo biacuteblica Allen e Swain satildeo organizadores de uma seacuterie de comentaacuterios de interpretaccedilatildeo teoloacutegica da Escritura (TampT Clark International Theological Commentary) e seguindo essa tendecircncia de interpretaccedilatildeo credalconfessional eles propotildeem uma ldquoleitura reguladardquo da Escritura com base em princiacutepios te-oloacutegicos e eclesioloacutegicos reformados (p 136-137) A leitura da Biacuteblia eacute uma empreitada comunitaacuteria e por isso o indiviacuteduo que faz dogmaacutetica o faz como ldquouma persona autoconscientemente eclesiaacutesticardquo (p 139) Inspirados pelo fa-moso escrito sobre a Escritura de William Whitaker os autores afirmam que a igreja ldquoguarda discerne proclama e interpretardquo a Palavra de Deus (p 142-144) O direito privado de investigaccedilatildeo eacute um privileacutegio de todos os fieacuteis mas natildeo deve ser confundido com o poder de interpretaccedilatildeo puacuteblica concedido a homens chamados e dotados para o ministeacuterio do ensino A devida distinccedilatildeo leva os autores a concluir ldquoA autoridade de ensino da igreja natildeo existe para excluir outros da interpretaccedilatildeo e compreensatildeo da Palavra de Deus Pelo contraacuterio a autoridade de ensino da igreja existe para comunicar (ie ldquotornar comunsrdquo) os tesouros da Palavra de Deus para todos do povo de Deus de forma que eles tambeacutem possam ter completa comunhatildeo (ie ldquodividir igualmenterdquo) nesses tesourosrdquo (p 151) A ldquoregra de feacuterdquo ou escritos confessionais nos habilitam a ler as vaacuterias partes da Escritura agrave luz do todo fazendo com que Sola Scriptura funcione conjuntamente com Tota Scriptura (p 156 162)

O quinto e uacuteltimo capiacutetulo se propotildee a fazer uma defesa da utilizaccedilatildeo da Escritura na forma de citaccedilatildeo de ldquotextos-provardquo (dicta probanda) uma praacutetica tatildeo maculada por criacuteticos modernos A acusaccedilatildeo contra essa praacutetica se baseia em trecircs erros ela desconsidera os contextos de textos especiacuteficos (por ex cita partes do texto sem atentar para o gecircnero literaacuterio) natildeo demonstra sensibilidade para com o horizonte hermenecircutico do inteacuterprete (por ex pretende resolver o debate sobre desarmamento ao fazer exegese das porccedilotildees relevantes da Escri-tura) interage com a histoacuteria eclesiaacutestica antes que com a histoacuteria biacuteblica (por ex encaixa textos em suas categorias de teologia sistemaacutetica para integrar a verdade em um sistema) Allen e Swain reconhecem que essas acusaccedilotildees tecircm elementos verdadeiros (p 175-180) Poreacutem a proacutepria Escritura pode ser acusada dos mesmos trecircs ldquoerrosrdquo e eles fornecem exemplos dos trecircs Tal alegaccedilatildeo natildeo serve para desqualificar a hermenecircutica que os autores do Novo Testamento fazem do Antigo ou dizer que eles tecircm passe livre para fazer o que quiserem com o texto primevo Natildeo Tudo o que os autores pretendem provar eacute isto ldquoNatildeo devemos confundir teacutecnicas de citaccedilatildeo (por exemplo textos-prova) com meacutetodo hermenecircutico seja ao considerarmos o uso da Escritura pela Escritura

129

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 125-129

ou o uso da Escritura pela teologiardquo (p 182) Por isso calcados nos exemplos de Tomaacutes de Aquino e Joatildeo Calvino eles terminam o capiacutetulo encorajando os teoacutelogos sistemaacuteticos a serem mais frequentes na exegese da Escritura e os teoacutelogos biacuteblicos a se familiarizarem com a histoacuteria da interpretaccedilatildeo biacuteblica e perceberem que eles proacuteprios tambeacutem se utilizam de categorias sinteacuteticas para trabalhar com o texto seletivamente quem sabe tais encorajamentos promovam maior simbiose entre exegese e dogmaacutetica (p 192-198)

Conforme dito no comeccedilo desta resenha a Editora Monergismo nos in-troduz a teoacutelogos reformados da nova geraccedilatildeo que demonstram grande lastro de pesquisa e interaccedilatildeo perspicaz com diversas fontes aleacutem de apresentar um tema muito importante para o evangelicalismo individualista que possui ten-taacuteculos inclusive no movimento reformado brasileiro Temos muito a aprender sobre a maneira como os reformados do passado e do presente interagem com a tradiccedilatildeo cristatilde de forma criteriosa Catolicidade eacute um tema que requer mais reflexatildeo em nosso meio para desmitificarmos uma compreensatildeo estreita de Sola Scriptura respondermos adequadamente agrave acusaccedilatildeo romana de que a doutrina protestante da Escritura abriu as portas para o individualismo de pensamento que culminou em pluralismos e apontarmos um caminho melhor de uso da tradiccedilatildeo e da Escritura tanto para teoacutelogos biacuteblicos como sistemaacuteticos

Haacute pouquiacutessimos momentos em que discordo de detalhes propostos pelos autores Eles dizem que a investigaccedilatildeo teoloacutegica moderna se exauriu na forma de investigaccedilatildeo teoloacutegica e carece de renovaccedilatildeo mediante o resgate de fontes (p 19) Eu natildeo diria que a investigaccedilatildeo se exauriu mas diria que a teologia moderna expressou a soberba progressista proacutepria do Iluminismo e se esqueceu da importacircncia do aprendizado com a comunidade cristatilde atraveacutes dos seacuteculos Outro exemplo de discordacircncia acontece quando eles impotildeem a John Owen categorias ndash de ldquoautoridaderdquo e ldquounccedilatildeordquo ndash que natildeo estatildeo na obra do puritano (v 68) Embora natildeo seja errado criarmos categorias para explicar o pensamento de autores do passado creio que as categorias utilizadas por Allen e Swain natildeo satildeo as mais precisas jaacute que autoridade e unccedilatildeo satildeo termos que possuem certo grau de sobreposiccedilatildeo

Mesmo com essas observaccedilotildees criacuteticas tangenciais minha avaliaccedilatildeo em nada desmerece a contribuiccedilatildeo tatildeo necessaacuteria que esses teoacutelogos trazem para a tradiccedilatildeo reformada contemporacircnea como um todo e mais especificamente ao cenaacuterio teoloacutegico protestante no Brasil Fariacuteamos bem em ouvir esse manifesto e buscar fontes passadas de nossa tradiccedilatildeo para estimular continuidade credal que promove comunhatildeo intergeracional Aleacutem de seu conteuacutedo precioso a Editora Monergismo fez um excelente trabalho editorial (traduccedilatildeo formataccedilatildeo) e produziu uma capa muito mais bonita que a original

131

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 131-135

RESENHAWendell Gonzaga da Paixatildeo

EDGAR W Francis Schaeffer e a vida cristatilde a espiritualidade con-tracultural Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2018 224 pp

William Edgar eacute professor de apologeacutetica no Westminster Theological Seminary em Filadeacutelfia Obteve o bacharelado em muacutesica da Harvard Uni-versity em 1966 o grau de M Div do Westminster Theological Seminary em 1969 e o PhD em teologia da Universiteacute de Genegraveve na Suiacuteccedila em 19931 Teve um privileacutegio que poucos tiveram pois conviveu e trabalhou com Francis Schaeffer no LrsquoAbri Fellowship e estudou com Cornelius Van Til no Westminster Theological Seminary Ateacute onde pude pesquisar aleacutem desse livro que estamos resenhando William Edgar tem ainda os seguintes mate-riais traduzidos para o portuguecircs o livro Razotildees do Coraccedilatildeo2 e trecircs ensaios publicados em 20113 e 20174

O livro Francis Schaeffer e a Vida Cristatilde A Espiritualidade Contra-cultural encontra-se dividido de uma maneira um pouco incomum Apoacutes o

O autor eacute bacharel em Teologia pelo Seminaacuterio Presbiteriano do Norte e poacutes-graduado em Teologia Pastoral tambeacutem pelo SPN Estaacute cursando o Mestrado em Teologia com ecircnfase em Teologia Filosoacutefica no CPAJ Conclui neste ano o curso de licenciatura em Filosofia pela UNICAP

1 Disponiacutevel em httpsfacultywtsedufacultyedgar Acesso em 6 ago 20202 EDGAR William Razotildees do coraccedilatildeo reconquistando a persuasatildeo Cristatilde Brasiacutelia Ministeacuterios

Refuacutegio 1996 3 EDGAR William ldquoA luz de Schleiermacher na restauraccedilatildeo da Franccedila os precedentes de Samuel

Vincent e Merle DrsquoAubigneacuterdquo In LILLBACK Peter A (Org) O calvinismo na praacutetica uma introduccedilatildeo agrave heranccedila reformada e presbiteriana Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011 p 217-234

4 EDGAR William ldquoAs artes e a tradiccedilatildeo reformadardquo In HALL David W PADGETT Marvin (Orgs) Calvino e a cultura Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2017 p 58-84 Idem ldquoDois guerreiros cristatildeos uma comparaccedilatildeo entre Cornelius Van Til e Francis Schaefferrdquo In ARAUacuteJO NETO Felipe Sabino de (Org) Coram Deo a vida perante Deus ensaios em honra a Wadislau Gomes Brasiacutelia Monergismo 2017 p 801-832

FRANCIS SCHAEFFER E A VIDA CRISTAtilde A ESPIRITUALIDADE CONTRACULTURAL

132

primeiro capiacutetulo os demais estatildeo inseridos dentro de trecircs partes A primeira parte tem por tiacutetulo ldquoO homem e seu tempordquo e conteacutem os capiacutetulos dois e trecircs A segunda tem por tiacutetulo ldquoVerdadeira espiritualidaderdquo e conteacutem os capiacutetulos quatro a seis A terceira tem por tiacutetulo ldquoConfiando em Deus para tudo na vidardquo e vai dos capiacutetulos sete ao dez O livro ainda conteacutem um posfaacutecio

Diferentemente de outras biografias de Schaeffer este livro tem como diferencial dois aspectos importantes Em primeiro lugar ele explora com certo niacutevel de profundidade algo diferenciado do LrsquoAbri ndash ldquoa sua mais importante razatildeo de ser ou seja a espiritualidade cristatilderdquo (p 14) Em segundo lugar ainda muito jovem Willian Edgar conheceu Schaeffer Nas suas proacuteprias palavras ldquoVisto que tive o privileacutegio de testemunhar pessoalmente muitos dos temas e personalidades relacionadas com Francis Schaeffer e LrsquoAbri comecei e terminei a narrativa com alguns fatos que envolvem a minha proacutepria narra-tivardquo (p 14) Isso jaacute torna o livro bastante envolvente e com uma narrativa bastante peculiar

O primeiro capiacutetulo tem por tiacutetulo ldquoUma introduccedilatildeo pessoal a Francis Schaefferrdquo Aqui William Edgar nos apresenta como de maneira comovente conheceu Schaeffer em LrsquoAbri William Edgar chegou ao LrsquoAbri com 19 anos e como um descrente poreacutem diz que ldquoem menos de 24 horas depois da minha chegada em LrsquoAbri minha vida tinha virado de cabeccedila para baixo completa-menterdquo (p 24) Posteriormente Schaeffer se tornou natildeo soacute um mentor mas um amigo

O segundo capiacutetulo tem por tiacutetulo ldquoA jornada para o LrsquoAbrirdquo Aqui William Edgar mostra fatos importantes na vida de Francis Schaeffer que incluem o seu nascimento (p 42-43) conversatildeo (p 43-44) formaccedilatildeo superior (p 44-49) casamento (p 45) nascimentos das filhas ainda nos Estados Unidos (p 49 50 51) pastorado e ida para Suiacuteccedila momento de crise nascimento do filho (p 58) e finalmente como se deu a expulsatildeo dos Schaeffers do cantatildeo de Valais (p 60)

O terceiro capiacutetulo tem por tiacutetulo ldquoLrsquoAbri e aleacutemrdquo Nele William Edgar narra a histoacuteria desde a chegada dos Schaeffers em Hueacutemoz (p 65) e tambeacutem apresenta a contribuiccedilatildeo de Schaeffer para a criaccedilatildeo de um jargatildeo teoloacutegico proacuteprio (p 70-71) Por fim faz uma bela apresentaccedilatildeo dos vaacuterios livros escritos por Schaeffer

O quarto capiacutetulo tem por tiacutetulo ldquoFundamentosrdquo Nesse capiacutetulo nos satildeo apresentados ldquoos pontos de vista de Francis Schaeffer sobre a vida cristatilderdquo (p 87) O objetivo de William Edgar eacute tratar de forma panoracircmica temas que satildeo muito caros ao pensamento de Schaeffer tais como ldquoFundamentos do Evangelhordquo (p 89) ldquoA autoridade da Verdaderdquo (p 91) a ldquoEspiritualidade da cosmovisatildeordquo (p 94) e por fim ldquoOs contornos da realidaderdquo Essa parte merece ser lida com bastante apreccedilo principalmente por aqueles que insistem em apre-sentar uma apologeacutetica agressiva Schaeffer valorizava tanto a ortodoxia como

133

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 131-135

a ortopraxia No dizer de William Edgar Schaeffer iraacute ldquoenfatizar a necessidade de doutrina soacutelida juntamente com a praacutetica soacutelida A primeira lsquorealidadersquo eacute a satilde doutrina O segundo lsquoconteuacutedorsquo eacute respostas honestas a perguntas honestasrdquo (p 101) Em outras palavras o cristatildeo deveraacute demonstrar uma ldquoespiritualidade verdadeirardquo e a ldquobeleza das relaccedilotildees humanasrdquo

O quinto capiacutetulo tem por tiacutetulo ldquoLiberdade na vida cristatilderdquo Este capiacutetulo tem como alvo analisar a primeira parte do livro Verdadeira Espiritualidade William Edgar apresenta a contribuiccedilatildeo de Schaeffer na anaacutelise que nos permite detectar se estamos cobiccedilando Segundo ele Schaeffer apresenta dois testes O primeiro faz referecircncia a Deus no tocante ao contentamento que temos nele Pois ldquose eu amo a Deus o suficiente para estar contente entatildeo eu estou sendo adequadamente espiritualrdquo (p 105) O segundo teste por sua vez tem uma relaccedilatildeo com o meu proacuteximo ldquoseraacute que eu amo o meu proacuteximo o suficiente para natildeo o invejarrdquo (p 106) Nesse capiacutetulo ainda satildeo elencados temas sobre a vida cristatilde no que se refere ao aspecto passivo e ativo

O sexto capiacutetulo tem por tiacutetulo ldquoAplicaccedilotildeesrdquo O seu principal objetivo eacute analisar a segunda parte do livro Verdadeira Espiritualidade Aqui eacute apresentado um ponto de controveacutersia pois ldquoSchaeffer coloca o mundo do pensamento no centro da vida cristatilderdquo (p 119) William Edgar discorda do seu mentor e diz que ldquocertamente a ideia biacuteblica do coraccedilatildeo eacute mais rica do que a mente e seus pensamentos (embora ela inclua a mente)rdquo (p 119) Satildeo abordados outros temas mas sem discordacircncia entre o autor e Schaeffer

O seacutetimo capiacutetulo tem por tema ldquoOraccedilatildeo e Orientaccedilatildeordquo William Edgar oferece uma apresentaccedilatildeo rica em detalhes sobre a abordagem de Schaeffer acerca da oraccedilatildeo ldquoEmbora Francis Schaeffer natildeo tenha deixado um legado de extensos escritos sobre o tema oraccedilatildeo ele pregou pelo menos um conjun-to bastante completo de mensagens sobre o assuntordquo (p 137) Sobre o tema orientaccedilatildeo William Edgar afirma que se no tema oraccedilatildeo Schaeffer natildeo nos deixou um legado extenso muito menos deixou sobre o tema orientaccedilatildeo Algo interessante eacute que ldquoEdith foi mais proliacutefica do que Fran na abordagem da orientaccedilatildeordquo (p 142)

ldquoUma das oraccedilotildees constantes de Edith era que o Senhor deixasse claro o que ela devia fazer em uma determinada situaccedilatildeo ndash em outras palavras que o Senhor a guiasserdquo (p 142) William Edgar demonstra por meio do caso da poliomielite do filho do casal como se dava na praacutetica essa busca da orientaccedilatildeo do Senhor

O capiacutetulo oito tem por tema ldquoAfliccedilatildeordquo Novamente Edith se destaca na abordagem do assunto pois foi ela ldquoquem mais escreveu extensivamente sobre sofrimento enquanto o material de Fran reflete de passagem ou o aborda mais filosoficamente e em grande profundidade quando trata do problema do malrdquo (p 147)

FRANCIS SCHAEFFER E A VIDA CRISTAtilde A ESPIRITUALIDADE CONTRACULTURAL

134

ldquoO livro Affliction5 de Edith representa o auge de seus pontos de vista sobre o sofrimentordquo (p 147) William Edgar tambeacutem mostra que concernente ao problema do mal Schaeffer tem uma abordagem proacutexima daquela de Van Til ldquoDe uma maneira sugestiva de Cornelius Van Til Schaeffer afirma que existem realmente apenas duas explicaccedilotildees possiacuteveis para o problema do malrdquo (p 151) ou seja uma causa metafiacutesica e outra eacutetica

O capiacutetulo nove tem por tema ldquoVida na igrejardquo Nesse capiacutetulo aparecem dois assuntos controversos na apresentaccedilatildeo que Wiliam Edgar faz dos escritos de Schaeffer O primeiro assunto controverso tem a ver com a seguinte de-claraccedilatildeo do personagem registrada por Edgar ldquoO mundo atual tem o direito de julgar se nossa feacute cristatilde eacute autecircntica Pode julgar com base em nosso amor muacutetuordquo (p 161) Cornelius Van Til vai discordar veementemente de Francis Schaeffer acerca dessa declaraccedilatildeo6 O segundo ponto controvertido eacute sobre pedir perdatildeo Schaeffer diz que ldquonatildeo precisamos esperar a outra pessoa dar o primeiro passo Devemos ter um espiacuterito de perdatildeo de qualquer maneirardquo (p 162) William Edgar aceita tal posiccedilatildeo embora reconheccedila que essa abor-dagem natildeo eacute aceita por todos os teoacutelogos reformados7 No fim do capiacutetulo satildeo apresentadas oito ldquonormas estruturais que governam a igreja visiacutevel (p 173 174) Por fim embora William Edgar jaacute tenha falado sobre a igreja fundada por Schaeffer (p 59 60) agora vai aprofundar o surgimento e como se daacute a vivecircncia na International Presbyterian Church (p 175)

Finalmente chegamos ao uacuteltimo capiacutetulo O capiacutetulo dez tem por tiacutetulo ldquoEngajando o mundordquo Nele encontramos uma espeacutecie de panorama dos temas que Schaeffer trabalhou em diversas obras Contudo novamente queremos destacar algo que William Edgar diz sobre Schaeffer Segundo ele Schaeffer ldquoconcorda que os filoacutesofos natildeo cristatildeos desde os gregos ateacute pouco antes da modernidade tinham trecircs coisas em comum o racionalismo o respeito pela racionalidade e o otimismordquo (p 191)8 Aqui Schaeffer parece ser um tanto ingecircnuo em acreditar que os filoacutesofos do passado foram bem-sucedidos na apresentaccedilatildeo de um campo de conhecimento unificado Por isso que ldquoVan Til

5 Esse livro foi lanccedilado em 2019 pela Editora Monergismo SCHAEFFER Edith Afliccedilatildeo um olhar compassivo sobre a realidade da dor e do sofrimento Brasiacutelia Monergismo 2019 344 p

6 VAN TIL Cornelius The apologetic methodology of Francis Schaeffer Westminster Theological Seminary 1974 p 48s

7 Jay Adams discorda desse ponto de vista de Schaeffer e de William Edgar Ver ADAMS Jay De perdoado a perdoador aprendendo a perdoar uns aos outros da forma de Deus Brasiacutelia Monergismo 2015 220 p

8 Para mais informaccedilotildees sobre como Schaeffer aborda o assunto ver SCHAEFFER F Como viveremos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2003 p 96s

135

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 131-135

o acusa de natildeo reconhecer a dialeacutetica perpeacutetua do pensamento racionalistairracionalista em cada eacutepocardquo (p 191)9

Finalizamos afirmando que William Edgar fez um beliacutessimo trabalho oferecendo-nos grande riqueza de detalhes uma vez que foi testemunha ocu-lar de muitas coisas que aqui estatildeo registradas A traduccedilatildeo de Neuza Batista da Silva foi muito eficiente natildeo nos deixando em duacutevida sobre o sentido das frases O livro tambeacutem possui uma diagramaccedilatildeo bem-feita proporcionado uma leitura apraziacutevel

A Editora Cultura Cristatilde estaacute de parabeacutens pelo excelente trabalho Que-remos recomendaacute-lo para todo estudante interessado em apologeacutetica e anaacutelise cultural Certamente faratildeo bem em lecirc-lo Essa obra tambeacutem seraacute de grande ajuda para os iniciantes nos estudos acerca da vida de Francis Schaeffer Contudo ateacute mesmo os mais experientes poderatildeo se beneficiar da riqueza de detalhes oferecida pelo autor A ediccedilatildeo eacute apresentada sob o selo ldquoSeacuterie Teoacutelogos e a Vida Cristatilderdquo que jaacute conta com outros volumes em portuguecircs

9 Para mais informaccedilotildees ver VAN TIL Cornelius The apologetic methodology of Francis Schaeffer Westminster Theological Seminary 1974 p 39ss

137

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 137-141

RESENHANorval da Silva

HORSLEY Richard A Jesus e o impeacuterio o Reino de Deus e a nova desordem mundial Satildeo Paulo Paulus 2014 177 p

Atualmente haacute muitas perspectivas quando se tenta fazer uma anaacutelise de quem foi Jesus e de suas ecircnfases e propoacutesitos No livro Jesus e o Impeacuterio O Reino de Deus e a Nova Desordem Mundial da editora Paulus Richard Horsley faz uso dos estudos socioloacutegicos como paracircmetro de anaacutelise da vida e dos ensinos de Jesus

Horsley eacute conhecido por sua abordagem social das Escrituras Ele foi professor de artes liberais e religiatildeo na Universidade de Massachusetts em Boston ateacute sua aposentadoria em 2007 Aleacutem do livro ora resenhado eacute tambeacutem autor de Jesus e a Espiral da Violencia da mesma editora

O livro Jesus e o Impeacuterio estaacute dividido em cinco capiacutetulos Poreacutem o leitor natildeo deve saltar a introduccedilatildeo Laacute jaacute podemos perceber a linha adotada pelo autor e sua intenccedilatildeo qual seja desconstruir a ideia tradicional que se tem do Jesus histoacuterico Do iniacutecio ao fim sua hermenecircutica eacute conduzida pelo pensamento ideoloacutegico de que Jesus foi um libertador agrave moda dos libertado-res campesinos cansados de pagar impostos aos tiranos que arrebanhou um grupo de camponeses e produziu uma revoluccedilatildeo para reverter a ordem social

De certa forma Horsley atribui aos americanos a leitura tradicional de um Jesus completamente religioso e que natildeo se envolve nas questotildees poliacuteti-cas e sociais A identidade ambiacutegua dos Estados Unidos poreacutem foi sacudida apoacutes o evento de 11 de setembro e segundo o autor jaacute natildeo se pode mais ldquoficar com essas representaccedilotildees domesticadas de Jesusrdquo (p 9) Para ele a naccedilatildeo judaica como um todo reagiu agrave ocupaccedilatildeo romana e seria muito difiacutecil

Mestre em exegese biacuteblica e linguiacutestica pelo Dallas Theological Seminary Tradutor do Novo Testamento para uma liacutengua indiacutegena pela Agecircncia Presbiteriana de Missotildees Transculturais (APMT) Aluno do STM-NT no CPAJ

JESUS E O IMPEacuteRIO O REINO DE DEUS E A NOVA DESORDEM MUNDIAL

138

imaginar um Jesus alheio agraves accedilotildees do seu proacuteprio povo Segundo o autor haacute quatro pressupostos que contribuem para uma anaacutelise do Jesus despolitizado (1) O pressuposto ocidental de que a religiatildeo estaacute separada da poliacutetica e da economia (2) A religiatildeo eacute uma esfera separada e pertence ao indiviacuteduo (3) A orientaccedilatildeo cientiacutefica dos acadecircmicos (4) Inteacuterpretes eliminaram falas de Jesus considerando inautecircntico tudo o que parecesse embaraccediloso Ele entatildeo conclui que esses pressupostos satildeo equivocados e revelam uma cosmovisatildeo ocidental e moderna longe da realidade cultural e histoacuterica do Oriente Meacutedio Esses pressupostos satildeo poreacutem indefensaacuteveis quando se trata da pesquisa e reconstruccedilatildeo histoacutericas (p 10) O autor defende a necessidade de que se olhe para Jesus a partir do contexto social poliacutetico e econocircmico da eacutepoca Ele afirma que ldquose queremos compreender o Jesus histoacuterico num contexto histoacuterico mais completo e adequado precisamos sem duacutevida conceber uma abordagem mais abrangente e relacionalrdquo (p 15-16)

Ao afirmar ldquoBaseados num levantamento dos vaacuterios movimentos de resistecircncia entre os galileus e os judeus podemos comeccedilar a suspeitar que Jesus natildeo era uma figura absolutamente rarardquo (p 16) o autor prepara o terreno para o que seraacute de fato a sua visatildeo e metodologia Para saber quem Jesus era natildeo devemos olhar para Jesus propriamente mas para o contexto em que ele viveu E aqui se encontra o primeiro perigo pois Horsley comete o mesmo equiacutevoco em que acusa os outros de terem caiacutedo ou seja deixar que o contexto em si determine o sentido das coisas A loacutegica eacute mais ou menos a seguinte se Jesus viveu em uma palestina ocupada onde a rebeliatildeo e insurgecircncia contra o impeacuterio eram as marcas do povo judeu especialmente dos galileus ele deve ter agido da mesma forma Ele deve ter sido um guerrilheiro e revolucionaacuterio Com esse pressuposto agrave matildeo tudo o que Jesus disser teraacute que passar pelo filtro desse pensamento Assim o contexto eacute absoluto e o texto apenas um pretexto para o que se quer entender

O capiacutetulo 1 trata do surgimento e expansatildeo do Impeacuterio Romano Eacute uma anaacutelise de como a pequena vila fundada por Rocircmulo e Remo se tornou um grande impeacuterio derrotando impeacuterios anteriores Na visatildeo do autor o que moti-vou o impeacuterio natildeo foi apenas o domiacutenio militar e poliacutetico em si mas a questatildeo econocircmica ou seja dominar os outros para se beneficiar economicamente Assim surgiu o populismo democraacutetico (p 23) uma nova forma de imperia-lismo Essa nova ordem mundial que favorecia os romanos trazia desordem e miseacuteria para os povos dominados (p 24) A conquista sempre implicava em devastaccedilatildeo do interior queima de aldeias pilhagem de cidades morticiacutenio e escravidatildeo da populaccedilatildeo Para manter os povos dominados cativos os impe-rialistas usavam o terrorismo e a barbaacuterie com execuccedilotildees puacuteblicas de qualquer um que se levantasse contra o impeacuterio

O capiacutetulo 2 eacute uma anaacutelise das constantes revoltas perpetradas pelos gali-leus e judeus contra o imperialismo romano Segundo o autor esses dois povos

139

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 137-141

se destacavam entre os subjugados por sua rebeldia Houve quatro revoltas principais A primeira quando Herodes foi designado rei pelo impeacuterio em 40 aC Muitos natildeo o aceitaram e lanccedilavam ataques de guerrilha que duraram trecircs anos A segunda foi em 4 dC no final do governo de Herodes Durante a Paacutescoa ecoaram protestos em Jerusaleacutem que produziram revoltas na zona rural e demais regiotildees da Palestina A terceira foi a revolta generalizada de 66 d C Na ocasiatildeo a populaccedilatildeo atacou sumos sacerdotes e suas mansotildees Essas accedilotildees culminaram com a destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem e do templo em 70 dC Por fim mesmo apoacutes a destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem revoltas e insurreiccedilotildees continuaram pelas matildeos de Simatildeo bar Kokhba sessenta anos mais tarde (132-135 dC)

No capiacutetulo 3 o autor chega de fato agrave sua tese principal se considerarmos o contexto em que o Jesus histoacuterico viveu traccedilaremos um quadro bem diferente de quem ele eacute e do que ensinou O autor inicia o capiacutetulo fazendo uma criacutetica aos estudos tradicionais do Jesus histoacuterico por buscarem analisar Jesus com base apenas em seus ditos uma vez que os ditos satildeo fragmentos artificiais que natildeo podem se constituir em unidades de comunicaccedilatildeo (p 64) Ele tem razatildeo ao afirmar que precisamos do contexto em que os ditos foram proferidos para entendermos a real significaccedilatildeo do que foi dito O restante do capiacutetulo eacute uma apresentaccedilatildeo de aspectos desse contexto histoacuterico que satildeo relevantes ao processo interpretativo do Jesus histoacuterico nos evangelhos Por exemplo havia divisotildees de classes De um lado a elite composta por governantes romanos e sacerdotes do outro o povo Outro exemplo seriam as formas sociais de vida moradia em aldeias e cidades vida comunitaacuteria e agraacuteria etc O autor conclui que considerando a natureza da comunicaccedilatildeo e analisando os evangelhos com base nessa natureza devemos imaginar o texto como enriquecido de sentido contextual pleno e objetivo para comunidades especiacuteficas de fala hebraica Para ele por exemplo o Evangelho de Marcos foi escrito para demonstrar aos cristatildeos como Jesus estabeleceu o Reino de Deus e se insurgiu contra o Impeacuterio Romano ao propor a renovaccedilatildeo de Israel (p 85)

O capiacutetulo 4 eacute o desenvolvimento da tese mencionada Segundo o autor ao anunciar a renovaccedilatildeo de Israel Jesus pronuncia a sentenccedila sobre o impeacute-rio e sobre a lideranccedila religiosa de Israel Aqui algumas de suas afirmaccedilotildees satildeo exageradas e sua hermenecircutica duvidosa Ao analisar por exemplo a expressatildeo ldquofilhos do Reinordquo ele considera como uma referecircncia aos liacutederes judaicos o que me parece ser uma interpretaccedilatildeo conveniente uma vez que uma melhor opccedilatildeo contextual seria considerar como referecircncia agrave naccedilatildeo de Israel de forma geral ou pelo menos agravequeles que rejeitavam Jesus como Messias independentemente de serem parte da lideranccedila religiosa ou natildeo Segundo ele Mateus e Lucas de fato usam a expressatildeo para se referir agrave naccedilatildeo como um todo mas isso se deu somente apoacutes a destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem A fonte original usada por Mateus e Lucas o hipoteacutetico documento Q natildeo trazia essa perspectiva Natildeo creio que haja duacutevida da parte de qualquer estudioso de que

JESUS E O IMPEacuteRIO O REINO DE DEUS E A NOVA DESORDEM MUNDIAL

140

Jesus se contrapocircs aos liacutederes de Israel Os textos demonstram isso Mas daiacute a afirmar que denunciar essa lideranccedila e promover uma revoluccedilatildeo social dos pobres era o propoacutesito final de Jesus haacute uma longa distacircncia

Ainda outro caso curioso eacute sua anaacutelise da resposta de Jesus agrave pergunta se era liacutecito pagar imposto a Ceacutesar Segundo o autor todo mundo que ouviu a resposta de Jesus entendeu que sua resposta era ldquonatildeo natildeo se deve pagar imposto a Ceacutesarrdquo Ora segundo o proacuteprio autor os fariseus eram os que defendiam essa tese Entatildeo se a resposta de Jesus confirmava a tese dos fariseus por que cargas drsquoaacutegua esse segmento fez oposiccedilatildeo tatildeo ferrenha a Jesus O natural seria interpretar que eles considerariam Jesus um aliado Mais estranha ainda eacute a sua intepretaccedilatildeo de que os exorcismos praticados por Jesus eram uma forma de derrotar o Impeacuterio Romano (ver p 108)

Outra intepretaccedilatildeo natildeo menos estranha eacute a sua anaacutelise do episoacutedio dos democircnios que entraram nos porcos e consequentemente se precipitaram no mar em Marcos 5 Para ele como o nome dos democircnios era ldquolegiatildeordquo isso significava a derrota dos soldados romanos por Jesus E mais que as pessoas que presenciaram o fato se lembrariam do episoacutedio do Mar Vermelho quando os exeacutercitos de Faraoacute submergiram sob o poder de Deus Muito estranha essa anaacutelise para dizer o miacutenimo

O quinto e uacuteltimo capiacutetulo trata do conceito de alianccedila e o ideal de vida em comunidade e cooperaccedilatildeo Segundo o autor a populaccedilatildeo estava oprimida sobrecarregada de diacutevidas e as formas sociais fundamentais da famiacutelia e da sociedade se desintegravam Ele insiste que as possessotildees demoniacuteacas eram representaccedilotildees da opressatildeo romana e que ao expulsar esses democircnios Jesus estava expulsando os romanos e suas ldquolegiotildeesrdquo da terra de Israel Para ele cada histoacuteria de cura natildeo era uma cura individual mas cura social das comunidades subsequentes (p 120) O povo precisava ser renovado E para essa renovaccedilatildeo segundo o autor a cooperaccedilatildeo comunitaacuteria era a chave Por fim essa renovaccedilatildeo comunitaacuteria passa obrigatoriamente pela resoluccedilatildeo de conflitos econocircmicos e sociais da comunidade Aqui o leitor perceberaacute uma linguagem muito se-melhante agrave dos proponentes da Teologia da Libertaccedilatildeo Em momento algum o autor aborda a necessidade do povo de Israel como sendo espiritual Para ele o problema do povo natildeo eacute com Deus e sim com as estruturas opressoras Pecado se haacute eacute pecado em esfera totalmente social e foi para isso que Jesus veio para libertar o povo simples da opressatildeo para fazer uma revoluccedilatildeo social Isso fica evidente quando ele afirma que a promessa de Jesus ldquoe no futuro a vida eternardquo eacute uma observaccedilatildeo sem importacircncia (ver p 135)

Uma observaccedilatildeo necessaacuteria a se fazer eacute quanto agrave hermenecircutica do autor e seus pressupostos Como para ele os aspectos sociais e econocircmicos satildeo os problemas reais da naccedilatildeo de Israel toda a leitura que ele faz dos evangelhos natildeo apenas eacute influenciada por esses pressupostos mas determinada por eles Ele se tornou prisioneiro de sua cosmovisatildeo O texto natildeo o desafia corrige

141

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 137-141

ou questiona como deveria fazer em um processo hermenecircutico normal Eacute fato que todos noacutes nos aproximamos do texto com pressupostos Poreacutem ateacute que ponto esses pressupostos determinam o sentido intentado pelo autor eacute algo com que precisamos ter cuidado

ExcElecircncia E PiEdadE a SErviccedilo do rEino dE dEuS

CENTRO PRESBITERIANO DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO ANDREW JUMPERVenha estudar conosco

Cursos modulares corpo docente poacutes-graduado convecircnio com instituiccedilotildees internacionais bi-blioteca teoloacutegica com mais de 40000 volumes acervo bibliograacutefico atualizado e informatizado

Educaccedilatildeo agrave distacircncia (Ead)Cursos anuais totalmente online que visam agrave instruccedilatildeo e ao aperfeiccediloamento biacuteblico-teoloacutegico de pastores e crentes que possuam graduaccedilatildeo em qualquer aacuterea Satildeo eles Estudos em Teologia Sistemaacutetica Estudos em Teologia Biacuteblica Estudos em Teologia Aplicada e Estudos em Missotildees

REvitalizaccedilatildeo E Multiplicaccedilatildeo dE igREjas (RMi)O RMI objetiva capacitar pastores e liacutederes na conduccedilatildeo do processo de restauraccedilatildeo do mi-nisteacuterio pastoral da oraccedilatildeo e da expansatildeo da igreja por meio de missotildees usando ferramentas biacuteblico-teoloacutegicas e de outras aacutereas das ciecircncias

EspEcializaccedilatildeo EM Educaccedilatildeo cRistatilde (EEc)O programa de especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Cristatilde eacute destinado a pais pastores professores e demais interessados em educaccedilatildeo eclesiaacutestica ou escolar Seu principal objetivo eacute promover uma reflexatildeo a respeito da dimensatildeo pedagoacutegica a partir dos pressupostos cristatildeos e oferecer ferramentas para o exerciacutecio intencional e planejado da atividade educacional a partir desses pressupostos

Ma lEadERship in chRistian Education (MaE)Este programa eacute um mestrado semipresencial biliacutengue (portuguecircsinglecircs) ministrado em par-ceria com o Gordon College (Boston EUA) Eacute dirigido agrave educaccedilatildeo escolar cristatilde com ecircnfase em lideranccedila compreendendo a gestatildeo escolar e suas bases conceituais Uacutetil para a lideranccedila e gestatildeo de Departamentos de Educaccedilatildeo Cristatilde em igrejas bem como para seminaacuterios institutos biacuteblicos e outras instituiccedilotildees teoloacutegicas

MEstRado EM divindadE (Magister Divinitatis ndash Mdiv)Trata-se do mestrado eclesiaacutestico do CPAJ Eacute anaacutelogo aos jaacute tradicionais mestrados profissio-nalizantes diferindo entretanto do Master of Divinity norte-americano apenas no fato de que natildeo constitui e nem pretende oferecer a formaccedilatildeo baacutesica para o ministeacuterio pastoral Oferece uma visatildeo geral das grandes aacutereas do conhecimento teoloacutegico Natildeo eacute submetido agrave avaliaccedilatildeo e natildeo possui credenciamento da CAPES

MEstRado EM tEologia (sacrae theologiae Magister ndash stM)Esse mestrado acadecircmico difere do Magister Divinitatis por sua ecircnfase na pesquisa e sua har-monizaccedilatildeo com os mestrados acadecircmicos em teologia oferecidos em universidades e escolas de teologia internacionais Eacute oferecido para aqueles que possuem o MDiv ou graduaccedilatildeo em Teologia e mestrado em qualquer aacuterea Natildeo eacute submetido agrave avaliaccedilatildeo e natildeo possui credenciamento da CAPES

doutoRado EM MinisteacuteRio (dMin)Curso oferecido em parceria com o Reformed Theological Seminary (RTS) de Jackson Mis-sissippi O programa possui o reconhecimento da JETIPB e da Association of Theological Schools (ATS) nos Estados Unidos O corpo docente inclui acadecircmicos brasileiros americanos e de outras nacionalidades com soacutelida formaccedilatildeo em suas respectivas aacutereas

Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper Rua Maria Borba 4044 ndash Vila Buarque ndash Satildeo Paulo ndash SP ndash Brasil ndash CEP 01221-040

Telefone +55 (11) 2114-86448759 ndash atendimentocpajmackenziebr cpajmackenziebr ndash httpswwwfacebookcomcppaj

Editoraccedilatildeo eletrocircnicaLibro Comunicaccedilatildeo

CONSELHO EDITORIALAugustus Nicodemus Lopes

Davi Charles GomesHeber Carlos de Campos

Heber Carlos de Campos JuacuteniorJedeiacuteas de Almeida Duarte

Joatildeo Paulo Thomaz de AquinoMauro Fernando MeisterValdeci da Silva Santos

A revista Fides Reformata eacute uma publicaccedilatildeo semestral doCentro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper

Os pontos de vista expressos nesta revista refletem os juiacutezos pessoais dos autores natildeo representando necessariamente a posiccedilatildeo do Conselho Editorial Os direitos de publicaccedilatildeo

desta revista satildeo do Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper

Permite-se reproduccedilatildeo desde que citada a fonte e o autor

Pede-se permutaWe request exchange On demande lrsquoeacutechange Wir erbitten Austausch

Se solicita canje Si chiede lo scambio

ENDERECcedilO PARA CORRESPONDEcircNCIARevista Fides Reformata

Rua Maria Borba 4044 ndash Vila BuarqueSatildeo Paulo ndash SP ndash 01221-040

Tel (11) 2114-8644E-mail atendimentocpajmackenziebr

ENDERECcedilO PARA PERMUTAInstituto Presbiteriano Mackenzie

Rua da Consolaccedilatildeo 896Preacutedio 2 ndash Biblioteca CentralSatildeo Paulo ndash SP ndash 01302-907

Tel (11) 2114-8302E-mail bibliopermackenziecombr

EDITORIAL

Eacute com satisfaccedilatildeo que apresentamos aos nossos leitores o volume XXVI no 1 da revista Fides Reformata dando continuidade a mais de duas deacutecadas de contribuiccedilatildeo ininterrupta agrave pesquisa teoloacutegica na Ameacuterica Latina Nos uacuteltimos anos a publicaccedilatildeo de artigos em inglecircs tem ampliado a contribuiccedilatildeo de Fides tambeacutem no cenaacuterio mundial Conheccedila todo esse acervo em formato eletrocircnico no site oficial do Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper e em bancos de dados como ATLA Serials e Fuente Academica

Nesta ediccedilatildeo o primeiro artigo de autoria do Dr Leandro de Lima ldquoO chamado para o martiacuterio em Apocalipse as sete igrejas da Aacutesiardquo nos desafia a refletir sobre o niacutevel de perseguiccedilatildeo que os leitores originais do livro de Apo-calipse enfrentavam em seus dias Segundo o autor a situaccedilatildeo ainda natildeo era extrema mas os cristatildeos jaacute comeccedilavam a demonstrar sinais de acomodaccedilatildeo agrave cultura vigente para tentar manter os benefiacutecios da paz Dessa forma o livro de Apocalipse cumpre seu papel de confrontar tal acomodaccedilatildeo

No segundo artigo pelo professor Solano Portela ldquoDesconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo o poacutes-modernismo da teologia da esperanccedila agrave teologia da nova era e seus reflexos no campo educacionalrdquo o autor demonstra que o tema subjacente de desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo de pontos fundamentais com um progressivo desvio dos direcionamentos biacuteblicos estaacute sempre presente na teologia modernacontemporacircnea Segundo ele as tendecircncias que aparecem nessas reflexotildees teoloacutegicas satildeo similares ao que se observa no campo da edu-caccedilatildeo e algumas delas impactam profundamente o processo cristatildeo de ensino--aprendizagem O desafio feito pelo autor eacute para que um soacutelido alicerce biacuteblico venha a fundamentar qualquer filosofia de educaccedilatildeo escolar cristatilde

O terceiro artigo pelo professor Heber Carlos de Campos Juacutenior ldquolsquoCor meum tibi offero Domine prompte et sincerersquo um ensaio introdutoacuterio sobre espiritualidade reformadardquo apresenta a espiritualidade reformada como uma aacuterea ainda desconhecida em meios populares e acadecircmicos e carente de ser redescoberta No intuito de resgatar o aspecto piedoso e devocional da tradiccedilatildeo reformada seu artigo apresenta uma introduccedilatildeo agrave teologia praacutetica de perso-nagens como Joatildeo Calvino os puritanos ingleses o movimento reformado holandecircs ldquoNadere Reformatierdquo e Jonathan Edwards aleacutem de representantes contemporacircneos da piedade reformada

O quarto artigo por Paulo Eduardo Vieira da Veiga ldquoAs implicaccedilotildees missioloacutegicas do triunfo de Cristo uma anaacutelise da questatildeo juriacutedica no contexto da Grande Comissatildeo (Mt 2818-20)rdquo analisa o termo ἐξουσία (autoridade) mencionado no versiacuteculo 18 no contexto da teologia biacuteblica do Antigo e do Novo Testamentos reflete sobre a autoridade perdida por Adatildeo e reconquis-tada por Cristo e avalia como o triunfo e a exaltaccedilatildeo de Cristo satildeo a garantia de sucesso da missatildeo

No quinto artigo ldquoIgrejas e histoacuteria um modelo para interpretar a di-ferenccedila entre o catolicismo romano e o protestantismordquo Paul Wells aborda o conceito de tradiccedilatildeo a maneira pela qual um grupo religioso apresenta no desenvolvimento da histoacuteria a relaccedilatildeo entre o mundo espiritual e o mundo histoacuterico material Para abordar o tema igreja e histoacuteria o autor propotildee fazer uma comparaccedilatildeo entre essas duas posiccedilotildees em trecircs aacutereas a Igreja e os sacra-mentos a Escritura e a tradiccedilatildeo o Espiacuterito Santo e a vida cristatilde

O sexto artigo de Isaias DrsquoOleo Ochoa ldquoOn how Herman Bavinck res-ponds to the theory of evolution The primacy of biblical revelationrdquo (Sobre o modo como Herman Bavinck responde agrave teoria da evoluccedilatildeo a primazia da revelaccedilatildeo biacuteblica) oferece uma teoria de desenvolvimento modificada a qual estaacute fundamentada natildeo em uma cosmovisatildeo mecanicista e naturalista como vemos em Darwin mas em uma estrutura ldquoteiacutesta-amigaacutevelrdquo Nesse artigo o autor argumenta que a discussatildeo de Bavinck sobre evoluccedilatildeo em termos gerais endossa uma estrutura aristoteacutelicatomista modificada a fim de entender a teoria de desenvolvimento e assim superar os desafios suscitados pela cosmovisatildeo naturalista de Darwin agrave revelaccedilatildeo biacuteblica

A seccedilatildeo de resenhas traz avaliaccedilotildees de obras relevantes para o contexto atual da igreja Catolicidade Reformada A Promessa da Recuperaccedilatildeo para a Teologia e a Interpretaccedilatildeo Biacuteblica de Michael Allen e Scott R Swain resenha-da por Heber Carlos de Campos Juacutenior Francis Schaeffer e a Vida Cristatilde A Espiritualidade Contracultural de W Edgar resenhada por Wendell Gonzaga da Paixatildeo e Jesus e o Impeacuterio O Reino de Deus e a Nova Desordem Mundial de Richard A Horsley resenhada por Norval da Silva

Mantendo o compromisso da revista em proporcionar e incentivar uma reflexatildeo teoloacutegica reformada entrego aos leitores mais esta ediccedilatildeo de Fides Reformata desejoso de que estes artigos despertem mais uma vez o interesse por pesquisas que visam contribuir para a edificaccedilatildeo do povo de Deus servindo sua igreja ao redor do mundo

Boa leitura

Dr Daniel SantosEditor

SUMAacuteRIO

ARTIGOS

O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIALeandro A de Lima 9

DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO O POacuteS-MODERNISMO DA TEOLOGIA DA ESPERANCcedilA Agrave TEOLOGIA DA NOVA ERA E SEUS REFLEXOS NO CAMPO EDUCACIONALSolano Portela 29

ldquoCOR MEUM TIBI OFFERO DOMINE PROMPTE ET SINCERErdquo UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADAHeber Carlos de Campos Juacutenior 47

AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO ndash UMA ANAacuteLISE DA QUESTAtildeO JURIacuteDICA NO CONTEXTO DA GRANDE COMISSAtildeO (MT 2818-20)Paulo Eduardo Vieira da Veiga 71

IGREJAS E HISTOacuteRIA UM MODELO PARA INTERPRETAR A DIFERENCcedilA ENTRE O CATOLICISMO ROMANO E O PROTESTANTISMOPaul Wells 91

ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION THE PRIMACY OF BIBLICAL REVELATIONIsaias DrsquoOleo Ochoa 103

RESENHAS

CATOLICIDADE REFORMADA A PROMESSA DA RECUPERACcedilAtildeO PARA A TEOLOGIA E A INTERPRETACcedilAtildeO BIacuteBLICA (MICHAEL ALLEN SCOTT R SWAIN)Heber Carlos de Campos Juacutenior 125

FRANCIS SCHAEFFER E A VIDA CRISTAtilde A ESPIRITUALIDADE CONTRACULTURAL (W EDGAR)Wendell Gonzaga da Paixatildeo 131

JESUS E O IMPEacuteRIO O REINO DE DEUS E A NOVA DESORDEM MUNDIAL (RICHARD A HORSLEY)Norval da Silva 137

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

9

O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

Leandro A de Lima

RESUMONo final do primeiro seacuteculo quando Joatildeo recebeu a visatildeo e a registrou

no livro do Apocalipse as igrejas da Aacutesia natildeo enfrentavam o pior periacuteodo de perseguiccedilatildeo Muito embora existissem perseguiccedilotildees pontuais e alguma som-bra de intensificaccedilatildeo de perseguiccedilatildeo se apresentasse no horizonte boa parte dos cristatildeos vivia em relativa paz e seguranccedila desfrutando de privileacutegios e benefiacutecios vindos do rico comeacutercio imperial que permeava a regiatildeo da Aacutesia Menor e de seu status como cidadatildeos romanos O desejo de permanecer des-frutando de certos benefiacutecios levou muitos crentes a seguirem o caminho de acomodaccedilatildeo cultural proposto por falsos mestres eloquentes da eacutepoca Contra essa disposiccedilatildeo o Apocalipse demonstra que os crentes verdadeiros precisam seguir o exemplo de Cristo que foi fiel ateacute a morte e recebeu a recompensa na ressurreiccedilatildeo Desse modo se estiverem dispostos a viverem fieacuteis a Cristo e enfrentarem a proacutepria morte por causa disso daratildeo o verdadeiro testemunho ao mundo bem como participaratildeo da recompensa de Cristo

PALAVRAS-CHAVESete igrejas da Aacutesia Apocalipse Martiacuterio Testemunho Perseguiccedilatildeo

INTRODUCcedilAtildeOGeralmente o livro do Apocalipse eacute considerado um tratado que objetiva

trazer consolo agrave igreja que experimenta perseguiccedilatildeo e sofrimento Muitos cren-

O autor eacute ministro presbiteriano e professor de Novo Testamento no Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper Tem doutorado em Literatura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e atualmente cursa outro doutorado em Novo Testamento pela Universidade de Kampen na Holanda

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

10

tes acreditam que nos dias em que Joatildeo recebeu o Apocalipse e o registrou a igreja enfrentava grande e incessante perseguiccedilatildeo e que em parte por causa disso era uma igreja extremamente fiel disposta a viver e morrer por Cristo No entanto haacute fortes razotildees no proacuteprio livro do Apocalipse para entender que essas duas expectativas estatildeo erradas e natildeo descrevem a realidade dos fatos daqueles dias no final do primeiro seacuteculo O livro parece ter sido escrito como uma exortaccedilatildeo para alguns grupos de cristatildeos que estavam experimentando relativo fracasso em seu testemunho perante o mundo1 O objetivo do livro foi mostrar para aqueles crentes o ponto exato em que estavam falhando e chamaacute-los ao arrependimento e agrave mudanccedila de atitude

Eacute nossa convicccedilatildeo de que esse entendimento eacute importante natildeo apenas para compreender melhor o livro do Apocalipse como um todo mas tam-beacutem para ldquoaproximarrdquo leitores modernos do livro O livro natildeo descreve uma ldquoigreja dos sonhosrdquo em termos de fidelidade ou como se costuma dizer uma ldquoigreja fiel porque era perseguidardquo Isso nos mostra que em todos os tempos precisamos da exortaccedilatildeo de Deus para que sejamos fieacuteis ateacute agrave morte seja em tempos de intensa perseguiccedilatildeo ou de relativa paz e seguranccedila

1 MARTIacuteRIO EM APOCALIPSEA noccedilatildeo comum de que o livro de Apocalipse descreve uma eacutepoca histoacute-

rica de intensa e incessante perseguiccedilatildeo2 tem sido questionada por muitos estu-diosos3 A percepccedilatildeo da ameaccedila de perseguiccedilatildeo causada por eventos pontuais4

1 Eacute nossa convicccedilatildeo de que a chave hermenecircutica para entender o pano de fundo histoacuterico do Apocalipse estaacute nas cartas agraves sete igrejas Ver Elizabeth Schuumlssler-Fiorenza Priester fur Gott Studien zum Herrschafts-und Priestermotiv in der Apokalypse NtAbhNF 7 (Munster Aschendorff 1972) p 155-166

2 Ver Elisabeth Schuumlssler-Fiorenza The Book of Revelation Justice and Judgment (2nd ed Minneapolis Fortress 1998) p 187-99 A autora defende que existia perseguiccedilatildeo mesmo que natildeo haja evidecircncia para provar isso

3 Principalmente por Leonard L Thompson The Book of Revelation Apocalypse and Empire New York Oxford University Press 1990 p 95-115 Segundo Thompson duas visotildees contrastantes de Domiciano podem ser encontradas nas fontes antigas a oficial que o descreve como um tirano e outras que o descrevem como um bom imperador Thompson prefere a segunda e por isso natildeo vecirc justificativa para perseguiccedilotildees generalizadas no final do primeiro seacuteculo Adela Yarbro Collins por outro lado sustenta que havia perseguiccedilotildees Ver ldquoPersecution and vengeance in the Book of Revelationrdquo In Apocalypticism in the Mediterranean World and the Near East p 729-749 Tuumlbingen JCB Mohr (Paul Siebeck) 1983 ver tambeacutem Adela Yarbro Collins Crisis and Catharsis The Power of the Apocalypse Philadelphia Westminster 1984 p 84-110 Yarbro Collins destaca a importacircncia de distinguir entre uma crise real e uma crise percebida (p 32)

4 Beale define o ldquoclimardquo do periacuteodo com as seguintes palavras ldquoA evidecircncia interna do livro aponta para uma situaccedilatildeo de relativa paz e perseguiccedilatildeo seletiva com uma expectativa iminente de intensificaccedilatildeo da perseguiccedilatildeo em uma escala cada vez mais programaacuteticardquo (G K Beale The Book of Revelation A Commentary on the Greek Text New International Greek Testament Commentary Grand Rapids MI Carlisle Cumbria Eerdmans Paternoster Press 1999 p 12)

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

11

(Ap 210 213) mais do que perseguiccedilatildeo contiacutenua parece descrever melhor o periacuteodo do final do primeiro seacuteculo na regiatildeo da Aacutesia Menor5 Isso entretanto natildeo diminui o impacto que os casos especiacuteficos de perseguiccedilatildeo produziam so-bre as igrejas daquela regiatildeo Na verdade a caracteriacutestica quase randocircmica da perseguiccedilatildeo parece ter produzido em muitos dos disciacutepulos das sete igrejas da Aacutesia a esperanccedila de poder escapar dela E o meio escolhido para isso em muitos casos parece ter sido a subserviecircncia disfarccedilada (ou natildeo) aos padrotildees idolaacutetricos romanos6 Contra esse cenaacuterio7 Joatildeo apregoou a bem-aventuranccedila da morte testemunhal8

Apocalipse menciona vaacuterias vezes a palavra ldquovitoacuteriardquo ou ldquovencerrdquo e descreve os vencedores em cada epiacuteteto das sete cartas Mas ao contraacuterio do que isso representava nas batalhas romanas o vencedor em Apocalipse natildeo eacute aquele que permanece vivo mas aquele que morre como Cristo que eacute o Cordeiro vencedor (Ap 55-6) Kowalski estaacute certo ao afirmar que ldquoo obje-tivo principal da metaacutefora do Cordeiro eacute encorajar o povo de Deus que estaacute passando por sofrimento e afliccedilatildeo dando-lhe a chance de se identificar com Cristo especialmente em seu sofrimento luta e ressurreiccedilatildeordquo9 De fato aleacutem de exaltar a nobreza e a dignidade da testemunha que fielmente recusa-se a ceder agraves exigecircncias idolaacutetricas e morre por Cristo Joatildeo igualmente destaca de maneira contiacutenua a recompensa desses mortos O simples fato de Joatildeo mencionar tantas vezes a expressatildeo ldquomortosrdquo ao longo do livro evidencia que

5 Nosso pressuposto eacute que o Apocalipse foi escrito pelo apoacutestolo Joatildeo por volta do ano 95 dC durante o reinado de Domiciano Sobre perseguiccedilatildeo ver Alan S Bandy ldquoPersecution and the purpose of Revelation with reference to Roman jurisprudencerdquo Bulletin for Biblical Research 23 n 3 (2013) 377-398 O autor argumenta convincentemente pelo caminho da jurisprudecircncia romana que tanto a ameaccedila quanto a perseguiccedilatildeo eram reais Para uma defesa de que Domiciano era um grande perseguidor ver WHC Frend Martyrdom and Persecution in the Early Church Oxford Basil Blackwell 1965 p 2211-2218

6 Price estabelece que no tempo de Domiciano havia uma expectativa em meio agrave populaccedilatildeo de expressotildees puacuteblicas de lealdade ao imperador cada vez mais fortes atraveacutes do culto imperial Essa pressatildeo era por parte dos proacuteprios cidadatildeos da Aacutesia Menor e era especialmente devotada nos momentos em que o imperador visitava as cidades ou nas datas nataliacutecias Frequentemente se associava a cultos locais e agraves aspiraccedilotildees das guildas comerciais da eacutepoca (S R F Price Rituals and Power The Roman Imperial Cult in Asia Minor Cambridge University Press 1984 p 78-222)

7 Ver a anaacutelise de Friesen onde ele conclui que os estudos em Apocalipse deveriam focar menos em supostos excessos de perseguiccedilatildeo sob Nero ou Domiciano e mais no caraacuteter normativo das atividades do culto imperial (Steven J Friesen Imperial Cults and the Apocalypse of John Reading Revelation in the Ruins Oxford University Press 2001 p 135-151)

8 Beale entende que ldquoo principal objetivo retoacuterico do argumento literaacuterio do Apocalipse de Joatildeo eacute exortar o povo de Deus a permanecer fiel ao chamado para seguir o exemplo paradoxal do Cordeiro e natildeo se comprometer tudo com o objetivo de herdar a salvaccedilatildeo finalrdquo (G K Beale The Book of Revelation p 171)

9 B Kowalski Martyrdom and Resurrection in The Revelation to John Andrews University Seminary Studies 411 (2003) p 55

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

12

o autor estaacute preocupado em explicar a situaccedilatildeo deles (Ap 15 69-11 1118 1413 1824 205 12-13) O livro encoraja os crentes a perseverarem ateacute o fim significando prioritariamente a necessidade de morrer por Cristo a fim de receber a grande recompensa de sua fidelidade (Ap 210 1211)

No entanto essas menccedilotildees expliacutecitas e diretas podem ser apenas a ponta do iceberg Haacute no nosso entendimento uma intrincada e desenvolvida teologia em favor do martiacuterio ao longo de todo o livro a qual se relaciona diretamente com o martiacuterio de Jesus Sweet lista quatro aspectos da relaccedilatildeo entre o martiacute-rio de Jesus e o martiacuterio de seus seguidores conforme o livro de Apocalipse estabelece

(a) O sofrimento dos cristatildeos eacute o resultado do testemunho que natildeo eacute apenas o testemunho acerca de Jesus mas o testemunho de Jesus que eles mantecircm

(b) Mantido fielmente este testemunho traz sofrimento para eles como trouxe para ele do mundo que provoca e atormenta

(c) Natildeo consiste no sofrimento mas em falar pelo Deus verdadeiro em palavra e comportamento contra a idolatria e imoralidade do mundo

(d) Em uacuteltima anaacutelise eacute vitorioso natildeo pelo efeito moral do sofrimento em que incorre mas pela vindicaccedilatildeo de Deus que destroacutei a oposiccedilatildeo10

A vitoacuteria sobre a morte aparece como a grande vindicaccedilatildeo dos maacutertires em Apocalipse A morte eacute um inimigo personificado no livro (68) Ela aparece como o grande adversaacuterio que Cristo jaacute conquistou exatamente por ter morrido (118) O uacuteltimo ato julgador de Cristo no final do livro eacute banir a morte para o lago de fogo (2014 214) Uma vez que essa morte ainda natildeo foi banida a igreja se vecirc diante dela tendo que enfrentaacute-la Do mesmo modo que Cristo obteve a vitoacuteria sobre esse inimigo tambeacutem para a igreja o melhor modo de vencer a morte eacute paradoxalmente morrer Assim o chamado ao martiacuterio eacute na verdade em Apocalipse natildeo a exaltaccedilatildeo de um momento miacutestico de sofri-mento (como muitas vezes parece ser na literatura posterior de martiacuterio) mas a certeza da verdadeira vitoacuteria Os crentes derrotam a morte quando morrem como Cristo morreu Tornam-se testemunhas vitoriosas perante o mundo e herdam o mundo vindouro

Desde o estudo de Trites eacute comum pensar que os termos maacutertir martiacuterio (μαρτυς μαρτυρία) e seus cognatos11 em Apocalipse natildeo tenham o significado semacircntico plenamente assumido de ldquomorte testemunhalrdquo que veio a ser am-

10 J P M Sweet Maintaining the Testimony of Jesus The Suffering of Christians in the Revelation of John In Suffering and Martyrdom in the New Testament William Horbory and Brian McNeil (Eds) Cambridge University Press 1981 p 101

11 Esses termos possuem grande peso semacircntico nos escritos atribuiacutedos a Joatildeo no Novo Testamento O conceito ocorre normalmente no iniacutecio e no final dos escritos Jo 17 e 1935 2124 1Jo 12 e 59 Ap 12 e 2220 (Ver A Pohl Die Offenbarung des Johanes Wuppertal Teil 1969 Ap 12)

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

13

plamente desenvolvido e generalizado no segundo seacuteculo a partir do Martiacuterio de Policarpo Trites estabelece cinco estaacutegios para a mudanccedila e consolidaccedilatildeo semacircntica do termo maacutertir (μαρτυς) Primeiro tinha apenas o sentido de teste-munho perante um tribunal sem implicaccedilatildeo de morte Em segundo lugar foi aplicado a algueacutem que testemunhou diante de um tribunal e foi morto como consequecircncia Em terceiro lugar a morte se tornou parte do testemunho Em quarto lugar a palavra μαρτυς assumiu o caraacuteter teacutecnico de morte Por uacuteltimo a noccedilatildeo de testemunho desapareceu do termo ficando exclusivamente a ideia de morte ou martiacuterio12 A conclusatildeo de Trites eacute que

O estudo do uso de μαρτυρία no Apocalipse leva agrave conclusatildeo de que a palavra ainda natildeo atingiu o estaacutegio em que sua definiccedilatildeo de dicionaacuterio eacute ldquomartiacuteriordquo Onde as ideias martiroloacutegicas estatildeo presentes elas devem ser deduzidas do contexto e natildeo de uma mudanccedila semacircntica no significado da palavra13

Assim para Trites a terminologia em Apocalipse estaacute ainda no terceiro estaacutegio movendo-se na direccedilatildeo do quarto e do quinto estaacutegios O estudo se-macircntico de Trites eacute uacutetil para nossa discussatildeo pois parece evidente que haacute uma evoluccedilatildeo terminoloacutegica poreacutem natildeo eacute possiacutevel localizar o conceito de martiacuterio em Apocalipse precisamente no terceiro estaacutegio justamente porque embora o termo natildeo signifique semanticamente ldquomorte testemunhalrdquo o conceito estaacute firmemente associado a isso pois a morte eacute praticamente uma consequecircncia necessaacuteria do testemunho A teologia martiroloacutegica do livro de Apocalipse se ancora no termo ldquotestemunhardquo Deste modo a definiccedilatildeo de Dragas precisa ser adicionada ldquoEacute preciso lembrar tambeacutem no entanto que no Apocalipse μαρτυς se refere agravequeles que testemunham atraveacutes da morte e que tanto An-tipas quanto o proacuteprio Jesus satildeo portanto as verdadeiras testemunhasrdquo14 De fato ldquoembora o vocabulaacuterio sobre testemunho no Apocalipse de um modo geral provavelmente natildeo se refira ao martiacuterio neste caso o termo μαρτυς estaacute relacionado com uma morte violentardquo15 Entendemos portanto que embora Apocalipse ainda natildeo use semanticamente o termo μαρτυς como substituto de morte testemunhal o livro foi grandemente responsaacutevel por essa identificaccedilatildeo posterior pois associou fortemente os sentidos Segundo a definiccedilatildeo de Van Henten ldquoum maacutertir eacute uma pessoa que se encontra em situaccedilatildeo extremamente hostil e prefere uma morte violenta a cumprir uma exigecircncia de autoridades

12 A A Trites ldquoμαρτυς and Martyrdom in the Apocalypse A Semantic Studyrdquo Novum Testamentum 15 (1973) p 72-73

13 Ibid p 7714 G Dragas ldquoMartyrdom and orthodoxy in the New Testament era the theme of martyria as

witness to the truthrdquo The Greek Orthodox Theological Review 30 n 3 (September 1985) p 29215 P H R van Houwelingen The Book of Revelation Full of Expectation Saacuterospataki Fuumlzetek

1 (2011) p 16

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

14

estrangeirasrdquo16 O conceito portanto nos parece presente no livro de Apoca-lipse fortemente associado ao uso do termo μαρτυς e seus cognatos

Existe uma noccedilatildeo bem estabelecida da importacircncia e do valor de uma morte testemunhal anterior ao Apocalipse17 E ao usar esse conceito associado ao termo μαρτυς o Apocalipse moldou fortemente o sentido nessa direccedilatildeo18 O termo martiacuterio em Apocalipse tem a conotaccedilatildeo de um testemunho a sustentaccedilatildeo de uma verdade que natildeo se abaixa diante das exigecircncias mundanas mas que persevera em fidelidade ateacute a morte Uma testemunha verdadeira soacute pode ser algueacutem que estaacute disposto a ir ateacute o fim nesse testemunho mesmo que even-tualmente ele natildeo seja morto violentamente Para definir o mais precisamente possiacutevel a discussatildeo entendemos que o testemunho em Apocalipse natildeo exige necessariamente uma morte violenta da testemunha mas exige a disposiccedilatildeo para tal morte

2 A PALAVRA DO TESTEMUNHOO Apocalipse expressa a ideia de que o comportamento esperado de

um verdadeiro cristatildeo eacute algo que entra em conflito direto com as condiccedilotildees exigecircncias e padrotildees de comportamento impostos pela sociedade romana da qual os cristatildeos das sete igrejas da Aacutesia faziam parte Ou seja de acordo com o Apocalipse se um cristatildeo realmente vivesse como devia viver em relaccedilatildeo a Deus isso de fato poderia levaacute-lo a sofrer consequecircncias como a perda de direitos comerciais aleacutem de ter que enfrentar processos judiciais complicados e perigosos pois ser acusado de falta de lealdade ao imperador romano era algo muito grave naqueles dias Aparentemente natildeo era todo dia que algum cristatildeo era levado perante as autoridades romanas por causa da sua feacute e isso mostra que por um lado a perseguiccedilatildeo natildeo era maciccedila mas por outro lado que provavelmente a maioria dos cristatildeos natildeo estivesse vivendo como um cristatildeo devia viver Roma natildeo os via como ameaccedila aos seus padrotildees sociais religiosos e culturais

16 Ver J W van Henten amp F Avemarie Martyrdom and Noble Death ndash Selected Texts from Graeco--Roman Jewish and Christian Antiquity London amp New York Routledge 2002 p 3-4

17 Como ficou estabelecido na tese de Van Henten que analisou o conceito de martiacuterio como herdado do judaiacutesmo especialmente de 2 e 4 Macabeus Van Henten estabelece que ldquoa figura do maacutertir eacute mais antiga que o Cristianismo e tem raiacutezes judaicasrdquo (J W van Henten The Maccabean Martyrs as Saviours of the Jewish people A Study of 2 and 4 Maccabees Leiden Brill 1997 p 7) A origem provavelmente estaacute nas histoacuterias contadas em Daniel 3 e 6 onde Daniel e seus trecircs amigos enfrentam a condenaccedilatildeo agrave morte diante das autoridades estrangeiras pelo motivo de se recusarem a descumprir ordens de seu Deus

18 Provavelmente eacute possiacutevel ver isso em livros canocircnicos anteriores ao Apocalipse como no livro de Atos onde os apoacutestolos e disciacutepulos satildeo chamados a serem μου μαρτυρες (At 18) O primeiro disciacute-pulo de Cristo a ser morto Estevatildeo eacute chamado de μαρτυρός σου Paulo ao ser comissionado tambeacutem recebe a designaccedilatildeo de testemunha (At 2616)

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

15

A mensagem central do livro pode ser entendida como um chamado divino para que os crentes das igrejas assumam a responsabilidade de serem testemunhas de Jesus diante da sociedade idoacutelatra Os cristatildeos nas sete igrejas precisavam seguir o exemplo de Cristo o qual sofreu perante as autoridades romanas na Judeia em razatildeo de ter permanecido fiel a Deus Jesus pagou o preccedilo da fidelidade atraveacutes de sua morte mas recebeu a recompensa disso em sua ressurreiccedilatildeo Portanto na visatildeo de Joatildeo os cristatildeos precisam entender o que significa ser uma testemunha de Jesus ou seja qual eacute o conteuacutedo desse testemunho quais satildeo os desafios e consequecircncias imediatas dessa atitude e finalmente quais satildeo as recompensas O Apocalipse foi escrito primordialmente para trazer esse conhecimento aos cristatildeos Eacute um chamado para uma atitude de mudanccedila e consagraccedilatildeo

Haacute uma frase que aparece diversas vezes no livro e que resume bem o significado desse chamado ou convocaccedilatildeo ldquopor causa da Palavra de Deus e do testemunho de Jesusrdquo Essas palavras de fato quase parecem um brado de guerra e resumem o senso de heroiacutesmo e fidelidade esperado dos verdadeiros cristatildeos conforme estabelecido no livro do Apocalipse Essas duas expressotildees aparecem com algumas variaccedilotildees seis vezes no livro atribuiacutedas a certas pes-soas que por causa delas enfrentam seacuterias dificuldades inclusive perseguiccedilotildees prisotildees e morte mas tambeacutem triunfam esplendidamente E ainda aparecem uma seacutetima vez de maneira resumida Listamos abaixo todas as sete vezes em que a frase pode ser vista (com pequenas modificaccedilotildees)19

Apocalipse 11-2 ndash Revelaccedilatildeo de Jesus Cristo que Deus lhe deu para mostrar aos seus servos as coisas que em breve devem acontecer e que ele enviando por intermeacutedio do seu anjo notificou ao seu servo Joatildeo o qual atestou a palavra de Deus e o testemunho de Jesus Cristo quanto a tudo o que viu

Apocalipse 19 ndash Eu Joatildeo irmatildeo vosso e companheiro na tribulaccedilatildeo no reino e na perseveranccedila em Jesus achei-me na ilha chamada Patmos por causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus

Apocalipse 69 ndash Quando ele abriu o quinto selo vi debaixo do altar as almas daqueles que tinham sido mortos por causa da palavra de Deus e por causa do testemunho que sustentavam

Apocalipse 1217s ndash Irou-se o dragatildeo contra a mulher e foi pelejar com os res-tantes da sua descendecircncia os que guardam os mandamentos de Deus e tem o testemunho de Jesus e se pocircs em peacute sobre a areia do mar20

19 As modificaccedilotildees na frase em suas apariccedilotildees parecem intencionais e fazem parte do estilo de Joatildeo que poderia ser denominado de ldquoparalelismo progressivordquo

20 Em Apocalipse 1217 haacute uma mudanccedila interessante nos termos com ldquopalavrardquo sendo substituiacuteda por ldquomandamentosrdquo

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

16

Apocalipse 1412 ndash Aqui estaacute a perseveranccedila dos santos os que guardam os mandamentos de Deus e a feacute em Jesus21

Apocalipse 204 ndash Vi tambeacutem tronos e nestes sentaram-se aqueles aos quais foi dada autoridade de julgar Vi ainda as almas dos decapitados por causa do testemunho de Jesus bem como por causa da palavra de Deus tantos quantos natildeo adoraram a besta nem tampouco a sua imagem e natildeo receberam a marca na fronte e na matildeo e viveram e reinaram com Cristo durante mil anos

Aleacutem dessas seis ocorrecircncias em Apocalipse 1211 haacute uma abreviaccedilatildeo que parece ser intencional para essa dupla declaraccedilatildeo palavramandamentos e testemunhofidelidade A expressatildeo eacute traduzida como ldquopalavra do testemunhordquo e eacute a causa da vitoacuteria dos crentes sobre o dragatildeo Ou seja eacute a disposiccedilatildeo deles de morrer por Cristo que garante sua vitoacuteria ldquoEles pois o venceram por causa do sangue do Cordeiro e por causa da palavra do testemunho que deram e mesmo em face da morte natildeo amaram a proacutepria vidardquo

Essa ldquopalavra do testemunhordquo eacute o ato de um cristatildeo verdadeiro em defen-der a verdade de Deus diante do mundo em viver de acordo com ela mesmo sabendo que isso acarretaraacute perseguiccedilotildees perdas sofrimentos e em uacuteltimo caso a proacutepria morte

Aleacutem disso nota-se que os termos correlatos ldquotestemunhardquo ldquotestemunhordquo ou o verbo ldquotestemunharrdquo tambeacutem aparecem em outros lugares do livro Em grego esses termos podem ser transliterados como ldquomaacutertirrdquo ldquomartiacuteriordquo ldquomar-tirizarrdquo (μαρτυς μαρτυρία μαρτυρειν) O termo testemunho como algo que deve ser sustentado e que causa a proacutepria morte daqueles que o datildeo aparece como a tarefa que eacute dada agraves duas testemunhas em Apocalipse 117 ldquoQuando tiverem entatildeo concluiacutedo o testemunho que devem dar a besta que surge do abismo pelejaraacute contra elas e as venceraacute e mataraacuterdquo Percebemos que as duas testemunhas satildeo mortas pela besta que sobe do abismo Em Apocalipse 204 a causa da morte das almas foi justamente ldquonatildeo adorar a bestardquo

O termo μαρτυρία ldquotestemunhordquo aleacutem das ocorrecircncias mencionadas acima tambeacutem aparece em Apocalipse 15 onde o proacuteprio Jesus eacute descrito como ldquoa testemunha fielrdquo (ο μαρτυς ο πιστός) Essa expressatildeo provavelmente indica sua morte na cruz (tambeacutem em Apocalipse 314) Por causa disso em Apocalipse 213 Antipas que foi morto em Peacutergamo eacute chamado pelo proacuteprio Cristo de ldquominha testemunha fielrdquo (μαρτυς μου ο πιστός μου)

O tabernaacuteculo celestial eacute denominado em Apocalipse 155 como o santuaacuterio do tabernaacuteculo do testemunho Essa expressatildeo provavelmente aponta para os maacutertires reunidos no ceacuteu que satildeo vingados pelos flagelos que comeccedilam

21 Em Apocalipse 1412 ldquopalavrardquo eacute substituiacuteda por ldquomandamentosrdquo e ldquotestemunhordquo por ldquofideli-daderdquo ou ldquofeacuterdquo

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

17

a ser derramados depois Em Apocalipse 176 a grande prostituta eacute descrita como becircbada com o sangue das testemunhas de Jesus Aleacutem disso a expressatildeo ldquotestemunho de Jesusrdquo aparece duas vezes em 1910 com uma relaccedilatildeo direta com 229 onde tambeacutem aparece a expressatildeo para guardar as palavras do livro

Finalmente nos uacuteltimos seis versiacuteculos do livro haacute trecircs usos do termo ldquotestemunhordquo em sua forma verbal Em 2216 Jesus relembra o envio do anjo para mostrar a Joatildeo a visatildeo (descrita primeiro em 11) ldquoEu Jesus enviei o meu anjo para vos testificar estas coisas agraves igrejasrdquo Em 2218 o termo testemunho eacute usado como um aviso contra acreacutescimos ou subtraccedilotildees sobre o conteuacutedo do livro Em 2220 Jesus se autodenomina ldquoaquele que daacute testemunhordquo e anuncia seu retorno em breve

Por isso o chamado ao testemunho eacute a grande mensagem do livro e eacute o aspecto central que queremos demonstrar neste artigo Apocalipse eacute um cha-mado ao verdadeiro testemunho Infelizmente as sete igrejas da Aacutesia estavam falhando em dar esse testemunho naqueles dias e do mesmo modo a igreja atual tambeacutem pode estar falhando

3 O CHAMADO AO MARTIacuteRIO NAS SETE CARTASOs cristatildeos das sete cidades imperiais natildeo eram oriundos apenas das clas-

ses mais baixas da populaccedilatildeo muitos eram comerciantes ricos e bem-sucedidos (Ap 317)22 Eles ajudavam a abastecer o comeacutercio imperial com bens e serviccedilos Muitos eram comerciantes navais (Ap 189-19)23 Para natildeo perderem privileacute-gios nesse sentido evitavam entrar em confronto com as autoridades romanas e com a populaccedilatildeo em geral Para esses cristatildeos o Apocalipse foi endereccedilado como um alerta contra o perigo de se acomodar ao status quo dominante e participar do culto imperial24 Eacute provaacutevel que como diz Collins muitos dos leitores para quem Joatildeo escreveu o Apocalipse nem sequer percebiam a crise que os cercava25 Estavam de tal modo envolvidos com a vida romana que nem

22 Ver o estudo de Wayne Meeks sobre a origem social dos crentes a partir das cartas paulinas Ele conclui que os crentes vinham menos dos extremos das classes sociais romanas altas e baixas sendo na sua maioria artesatildeos e pequenos comerciantes (WA Meeks The First Urban Christians The Social World of the Apostle Paul New Haven Yale University Press 1983 p 73 Ver tambeacutem A J Malherbe Social Aspects of Early Christianity Baton Rouge LA Louisiana State University Press 1977 p 29-32) Ver ainda o resumo sobre o status social dos cristatildeos em L L Thompson The Book of Revelation p 128-129

23 Ver nesse sentido a bem fundamentada tese de J Nelson Kraybill Imperial Cult and Commer-ce in Johnrsquos Apocalypse Journal for the Study of the New Testament Supplement Series 132 Shefield Academic Press 1996 Sobre a relaccedilatildeo entre economia e religiatildeo ver tambeacutem Leonard L Thompson The Book of Revelation p 171-197 R M Royalty The Streets of Heaven The Ideology of Wealth in the Apocalypse of John Macon GA Mercer University Press 1998

24 Price faz uma anaacutelise dos motivos pelos quais as pessoas da Aacutesia Menor participavam do culto imperial Ver Rituals and Power p 234-48

25 Adela Yarbro Collins Crisis and Catharsis The Power of the Apocalypse Philadelphia West-minster 1984 p 77 A autora entende que o culto imperial natildeo era um problema para a maioria das

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

18

percebiam os riscos de idolatria agrave sua volta Poreacutem apoacutes lerem o Apocalipse teriam que tomar uma decisatildeo26

As igrejas estavam sofrendo basicamente por dois motivos problemas internos e externos Externamente como dissemos havia um clima de ameaccedila de perseguiccedilotildees e tambeacutem algumas perseguiccedilotildees pontuais por parte das au-toridades do Impeacuterio Apocalipse daacute a entender que muitos cristatildeos estavam sentindo a ameaccedila de serem cerceados em seus direitos civis mesmo como cidadatildeos romanos com perda de funccedilotildees cargos e bens E alguns temiam sofrer sanccedilotildees ainda maiores como prisatildeo escravidatildeo e morte Como jaacute dis-semos ser cristatildeo no primeiro seacuteculo costumava envolver um certo risco de perder coisas a liberdade ou a proacutepria vida O proacuteprio Joatildeo apoacutestolo de Cristo se encontrava preso como grande evidecircncia do preccedilo a ser pago27 Ao que parece muitos cristatildeos natildeo estavam dispostos a pagar esse preccedilo e tentavam encontrar maneiras de fugir agraves puniccedilotildees sem necessariamente abandonar a feacute cristatilde Isso provavelmente gerava o segundo grave problema que a maioria das igrejas enfrentava a abertura para os falsos ensinos e a imoralidade Aleacutem dos pecados tradicionais como desuniatildeo brigas fornicaccedilatildeo etc um tipo de impureza doutrinaacuteria e moral parecia estar muito ligado agrave questatildeo da ameaccedila de perseguiccedilatildeo e ao desejo de escapar dela Informaccedilotildees histoacutericas mostram que o culto imperial permeava todos os aspectos da vida das cidades e vilas da Aacutesia Menor de maneira que era impossiacutevel uma pessoa aspirar a uma melhor condiccedilatildeo social e econocircmica sem participar em algum grau do culto romano28 Cidadatildeos tanto das classes altas quanto das baixas eram convocados a oferecer sacrifiacutecios ao imperador em vaacuterias ocasiotildees e nas cidades principais como Eacutefeso fundos puacuteblicos eram distribuiacutedos para que os cidadatildeos pudessem pagar pelos sacrifiacutecios de modo que natildeo participar desses eventos era considerado deslealdade e falta de patriotismo incorrendo nas penalidades legais29

igrejas ou seja muitos crentes da regiatildeo natildeo pensavam que eram proibidos de participar por causa de sua convicccedilatildeo cristatilde Kraybill sustenta que ldquoas comunidades cristatildes da Aacutesia Menor provavelmente ex-perimentaram mais desejo interno de se conformar agrave sociedade pagatilde do que pressatildeo externa no caminho da perseguiccedilatildeordquo (Imperial Cult p 196)

26 J P M Sweet diz ldquoA parte apocaliacuteptica natildeo eacute tanto um ataque ao mundo para encorajar a Igreja mas um ataque agrave Igreja que estaacute abraccedilando o mundo ndash para seu proacuteprio perigo mortal e na traiccedilatildeo de seu verdadeiro papel de convencer o mundo por seu testemunho para a salvaccedilatildeo do mundordquo (Mantaining the testimony of Jesus in Suffering and Martyrdom in the New Testament Eds William Horbory and Brian McNeil Cambridge University Press 1981 p 102-103)

27 Apesar de Thompson sugerir que Joatildeo pudesse ter ido a Patmos para pregar o Evangelho (Apo-calyse and Empire p 172-173) a maior parte dos inteacuterpretes inclusive os pais da igreja entende que ele havia sido aprisionado De fato os termos θλίψει e ὑπομονῇ que ele usa para descrever sua estada em Patmos sugerem prisatildeo mais do que apenas pregaccedilatildeo

28 Ver Price Rituals and Power p 101-132 Friesen Imperial Cults and the Apocalypse of John p 135-151

29 Ver Beale Revelation p 240-241 Price Rituals and Power p 78-121

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

19

Os falsos mestres ensinavam maneiras de as pessoas escaparem das perseguiccedilotildees pelo caminho da infidelidade A menccedilatildeo aos nicolaiacutetas30 aos seguidores de um tipo moderno de ldquoBalaatildeordquo e uma moderna ldquoJezabelrdquo que aparecem em quase todas as cartas satildeo indicaccedilotildees nesse sentido Suas doutri-nas claramente liberavam as pessoas do compromisso de santidade por isso tambeacutem logicamente as livravam das sanccedilotildees puacuteblicas

Eacutefeso em princiacutepio parece um exceccedilatildeo nesse sentido A igreja recebe um inesperado elogio quando Cristo diz ldquoTens contudo a teu favor que odeias as obras dos nicolaiacutetas as quais eu tambeacutem odeiordquo (26) A cidade era a metroacutepole da Aacutesia Menor31 Certamente continha a igreja mais importante daquela regiatildeo32 Os efeacutesios ao menos no comeccedilo recusaram seguir o caminho alternativo indicado pelos falsos apoacutestolos aquele que os liberava de ldquosofrer provas por causa do nome de Jesusrdquo ao contraacuterio mostraram ldquolabor e perseve-ranccedilardquo (κόπον καὶ τὴν ὑπομονήν) Eles seguiram o caminho do sofrimento da perda de direitos perante as autoridades mas natildeo da perda da fidelidade diante de Deus Mas ao que parece a situaccedilatildeo mudou depois de um tempo pois o Senhor acusa a igreja ldquoTenho poreacutem contra ti que abandonaste o teu primei-ro amorrdquo Provavelmente isso significava uma falta de zelo no testemunho puacuteblico do Evangelho33 O chamado ao arrependimento por certo significava um chamado viril ao testemunho para voltar a suportar fielmente as provas por causa de Cristo Portanto Eacutefeso natildeo deu espaccedilo aos falsos pregadores mas no final natildeo se saiu melhor do que as outras igrejas fracassando no testemunho perante o mundo por medo das consequecircncias

Esmirna era uma igreja fiel Ela recebe elogios e forte admoestaccedilatildeo de Cristo a permanecer fiel a continuar imitando a Cristo o que a coloca como igreja padratildeo no livro Para ela Cristo se reapresenta nos termos jaacute ouvidos no capiacutetulo 1 o ldquoprimeiro e uacuteltimo que esteve morto e tornou a viverrdquo O Cristo que experimentou o sofrimento e a morte se identifica com a igreja sofredora

30 Natildeo parece haver razatildeo para a ligaccedilatildeo feita por Irineu entre os nicolaiacutetas e o proseacutelito Nicolau mencionado em Atos 65 (Adv Haereses 1263 3111) Outros pais da igreja como Hipoacutelito (Hae-reses 724) disseram que se tratava de uma seita gnoacutestica que praticava imoralidade Segundo Beale ldquoos nicolaiacutetas ensinavam que algum grau de participaccedilatildeo na cultura idoacutelatra de Eacutefeso era permissiacutevelrdquo (Revelation 233) Thompson diz que eram forasteiros que tentavam se estabelecer na igreja de Eacutefeso (Apocalypse and Empire p 12) Fiorenza afirma que os nicolaiacutetas ldquoexpressam sua liberdade em um comportamento libertinordquo (Apocalyptic and Gnosis p 570)

31 Efeacuteso se tornou proeminente no tempo de Domiciano com a instalaccedilatildeo do culto provincial ao imperador (S J Friesen Twice Neokoros Ephesus Asia and the Cult of the Flavian Imperial Family Leiden Brill 1993 p 41-49)

32 G E Ladd A Commentary on the Revelation of John Grand Rapids Eerdmans 1972 p 30 Foi o lugar em que Paulo pastoreou e antes de ir embora advertiu contra os falsos mestres e falsos ensinos que poderiam vir apoacutes a sua partida (At 2028-31)

33 Beale Revelation p 230

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

20

de Esmirna com as palavras ldquoconheccedilo a tua tribulaccedilatildeordquo O estado paradoxal ldquopobreza (material) versus riqueza (espiritual)rdquo tambeacutem foi algo experimentado por Cristo E as blasfecircmias dos ldquofalsos judeusrdquo que parecem ter agido como acusadores perante as autoridades romanas tambeacutem estatildeo evocadas aqui A falta de explicaccedilotildees adicionais para a expressatildeo ldquosinagoga de Satanaacutesrdquo quanto agrave sinagoga judaica existente em Esmirna nos impede de ter certeza acerca da iden-tidade desses ldquofalsosrdquo judeus34 Poreacutem levando em consideraccedilatildeo que Satanaacutes eacute chamado de ldquogrande acusadorrdquo em Apocalipse 1210 parece justificar a ideia de que provavelmente se deva agrave atitude acusatoacuteria adotada pelos judeus contra os cristatildeos perante as autoridades romanas35 Essa parece ser a maior ameaccedila de perseguiccedilatildeo contemplada no livro de Apocalipse Os judeus de Esmirna natildeo queriam conceder aos cristatildeos o mesmo privileacutegio de praticar sua religiatildeo fora da Judeia e provavelmente acusavam os cristatildeos perante as autoridades de-monstrando que eles natildeo eram judeus e assim incitavam as autoridades contra os cristatildeos36 Por essa atitude sem misericoacuterdia aqueles judeus se revelavam como ldquofalsos judeusrdquo pois apesar do sangue e da descendecircncia judaica natildeo agiam como filhos de Deus e sim como ldquofilhos do diabordquo (Jo 844)37 Para essa igreja tatildeo identificada com ldquoa testemunha fielrdquo (Ap 15 ndash ο μαρτυς ο πιστός) o Senhor Jesus diz ldquoNatildeo temas as coisas que tens de sofrerrdquo Esse parece ser o grande incentivo do Apocalipse para uma disposiccedilatildeo ao martiacuterio Do mesmo modo como Cristo tocou Joatildeo quando este estava ldquocomo mortordquo e lhe disse ldquonatildeo temas eu sou o primeiro e o uacuteltimo e tenho as chaves da morte e do Hadesrdquo (Ap 117-18) agora ele conforta a igreja de Esmirna Certamente no sofrimento e morte estaacute a promessa da recompensa daquele que pode abrir

34 Van Henten observa que ldquoagrave exceccedilatildeo das referecircncias a Satanaacutes e ao diabo (29-10) o decreto permanece um tanto vago sobre quem eacute responsaacutevel pelo sofrimento dos fieacuteis em Esmirnardquo (Martyrdom p 590) Ver tambeacutem a discussatildeo na nota 14 da mesma paacutegina sobre autores que assumem posiccedilotildees diferentes sobre a identidade desses judeus

35 Friesen entende que Joatildeo fez uso de ironia e sarcasmo nesse ponto como uma forma de ldquovi-lificaccedilatildeordquo (termo de A Y Collins ldquoVilification and Self-Definition in the Book of Revelationrdquo HTR 79 (1986) 308ndash20) Steve Friesen Sarcasm in Revelation 2ndash3 Churches Christians True Jews and Satanic Synagogues In David L Barr The Reality of Apocalypse Rhetoric and Politics in the Book of Revelation Number 39 Leiden Boston Brill 2006 127-144

36 Segundo informaccedilotildees histoacutericas ateacute a segunda metade do primeiro seacuteculo os cristatildeos desfru-tavam de certa liberdade de culto debaixo do guarda-chuva do judaiacutesmo pois as autoridades romanas natildeo distinguiam o cristianismo do judaiacutesmo Os judeus desfrutavam de certa toleracircncia por parte dos romanos natildeo eram obrigados a sacrificar a Ceacutesar como deus mas apenas como governante Apoacutes o tempo de Nero novas religiotildees natildeo foram permitidas em Roma entatildeo os judeus tentaram mostrar aos romanos que o cristianismo natildeo era o judaiacutesmo Ver Beale Revelation p 240

37 No Martiacuterio de Policarpo existe uma descriccedilatildeo interessante nesse sentido quando o prococircnsul proclama diante da multidatildeo no estaacutedio que Policarpo eacute um cristatildeo Entatildeo a multidatildeo composta de gentios e judeus que habitavam em Esmirna testemunhara contra Policarpo dizendo que ele pregava contra os deuses e ensinava a natildeo oferecer sacrifiacutecios Por causa disso Policarpo foi condenado agrave morte (MPoly 121-2)

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

21

o Hades O Cristo que padeceu a morte nas matildeos dos romanos por causa da acusaccedilatildeo dos judeus anima sua igreja a passar pela mesma situaccedilatildeo pois ldquoeles sofreram por isso nas matildeos dos judeus os quais assim se mostraram servos de Satanaacutes (29 39)rdquo38 Que sejam portanto imitadores de Cristo Devem imitaacute-lo na maneira como satildeo acusados pelos judeus na maneira como satildeo julgados e condenados mas tambeacutem na maneira como Cristo triunfou

Ele anuncia prisatildeo prova e tribulaccedilatildeo de dez dias39 para a igreja Isso significava que a acusaccedilatildeo dos judeus perante as autoridades levaria agrave prisatildeo de alguns irmatildeos da igreja de Esmirna40 Provavelmente exista aqui uma inter-textualidade com o tempo de teste de Daniel e seus trecircs amigos em Babilocircnia que solicitaram dez dias ao rei para provar que comendo soacute legumes sem participar das iguarias da mesa do rei poderiam se manter mais saudaacuteveis do que os outros (Dn 112-15)41 Se essa interpretaccedilatildeo estaacute correta Joatildeo estava dizendo aos crentes de Esmirna que eles natildeo podiam se beneficiar das vanta-gens da cidadania romana uma vez que isso os obrigava a participar dos cultos idolaacutetricos A consequecircncia entretanto para essa recusa seria sofrimento certo e provavelmente morte

Do mesmo modo que Cristo que se apresentou como aquele que este-ve morto mas tornou a viver ou seja a ldquotestemunha fiel e o primogecircnito dos mortosrdquo a igreja tambeacutem eacute chamada a permanecer ldquofiel ateacute a morterdquo (πιστὸς ἄχρι θανατου) pois do mesmo modo experimentaraacute a gloriosa recompensa de receber ldquoa coroa da vidardquo (τὸν στέφανον τῆς ζωῆς) Isso soacute pode portanto ser uma referecircncia agrave ressurreiccedilatildeo42 Poreacutem a proacutexima declaraccedilatildeo parece esclarecer detalhadamente a que isso se refere ldquoO vencedor de nenhum modo sofreraacute dano da segunda morterdquo (Ap 211) Ou seja quem permanecer fiel ldquoateacute a morterdquo (ἄχρι θανατου) o que daacute a ideia natildeo de um periacuteodo de tempo ateacute a morte mas de uma fidelidade que pode resultar em morte43 natildeo sofreraacute a destruiccedilatildeo da

38 J P M Sweet Mantaining the testimony of Jesus p 10639 O tempo da tribulaccedilatildeo como sendo de ldquodez diasrdquo provavelmente natildeo seja uma referecircncia a

um periacuteodo literal antes aponta para o aspecto perverso e maligno dessa detenccedilatildeo O nuacutemero dez em Apocalipse estaacute associado agraves forccedilas malignas (Ap 916 123 131)

40 As autoridades romanas podiam lanccedilar pessoas em prisatildeo para manter a ordem puacuteblica mesmo antes de serem condenadas (At 1623-24) O aprisionamento permitia aos oficiais realizar a acusaccedilatildeo e pressionar o acusado ateacute obter uma confissatildeo como aparece na carta de Pliacutenio o Moccedilo (Ep 10963-4) As pessoas eram mantidas na prisatildeo indefinidamente ateacute que que a sentenccedila fosse imposta a qual podia ser multa banimento ou morte Ver Craig R Koester Revelation A New Translation with Introduction and Commentary org John J Collins vol 38A Anchor Yale Bible New Haven London Yale University Press 2014 p 276 Esse ato era chamado de procedimento cognitio

41 Beale Revelation p 24242 Ver B Kowalski Martyrdom and Resurrection p 5843 A construccedilatildeo significa ldquonatildeo fiel ateacute a hora da morte mas fiel ateacute uma medida que suportaraacute a

morte por amor de Cristo Eacute um termo intensivo natildeo extensivordquo (Marvin Richardson Vincent Word

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

22

ldquosegunda morterdquo O proacuteximo lugar no Apocalipse onde a expressatildeo ldquosegunda morterdquo aparece eacute justamente 206 onde se diz que os participantes da ldquoprimeira ressurreiccedilatildeordquo estatildeo livres da segunda morte Nesse mesmo texto eacute declarado que as almas dos decapitados reinam com Cristo durante os mil anos Portan-to eacute possiacutevel concluir preliminarmente que ldquoa coroa da vidardquo prometida aos vencedores em Esmirna era participar da primeira ressurreiccedilatildeo Tal aconteceria se os crentes se mantivessem fieacuteis ateacute o ponto de morrerem por causa disso Entatildeo semelhantemente a Cristo tambeacutem viveriam novamente A coroa da vida portanto parece ser uma recompensa especial para os mortos fieacuteis uma distinccedilatildeo de participar diretamente do reinado de Cristo (204) passando pe-las portas do Hades diretamente para o ceacuteu Em resumo vale a pena ser uma testemunhamaacutertir de Cristo

A ameaccedila da morte que ainda era uma sombra futura para os crentes de Esmirna aparece como um fato consumado ao menos para uma pessoa em Peacutergamo A igreja ficava numa cidade imperial uma antiga cidade fortaleza conquistada por Roma e transformada num importante centro de adoraccedilatildeo ao imperador romano44 Peacutergamo era um centro do culto a Ascleacutepio uma divin-dade representada por uma serpente poreacutem isso natildeo parece estar agrave altura do desafio pretendido pela expressatildeo ldquotrono de Satanaacutesrdquo Eacute mais seguro identificar a expressatildeo como uma alusatildeo ao forte paganismo de Peacutergamo simbolizado no grande altar que provavelmente dominava a acroacutepole onde ficava o centro de adoraccedilatildeo ao Ceacutesar45

A menccedilatildeo agrave morte de um cristatildeo daquela igreja se reveste de grande significado Aparentemente eacute a uacutenica pessoa que recebe um nome proacuteprio em Apocalipse aleacutem do proacuteprio Joatildeo46 Eacute possiacutevel concordar com Kraybill que ldquoo fato de Antipas ser o uacutenico maacutertir mencionado no Apocalipse sugere que a perseguiccedilatildeo letal era possiacutevel mas ainda natildeo era comum para os cristatildeos na Aacutesia Menorrdquo47 Isso reforccedila a ideia de que o martiacuterio era uma possibilidade um tanto remota para os cristatildeos das sete igrejas48 De fato talvez por ser remota

studies in the New Testament New York Charles Scribnerrsquos Sons 1887 2445) A referecircncia natildeo eacute ldquoateacuterdquo mas ldquomesmo querdquo (Henry Alford The Greek Testament Boston Lee and Shepard 1872 4567)

44 W Ramsay The Letters to the Seven Churches of Asia London Hodder amp Stoughton 1904ss45 H B Swete Apocalypse of St John the Greek Text Grand Rapids Eerdmans 1951 p 34-35

Aune lista ao menos oito possibilidades de interpretar a expressatildeo ldquotrono de Satanaacutesrdquo (D E Aune Re-velation Word Biblical Commentary Dallas Word 1998 52A 182-183)

46 Considerando que Jezabel mencionada na carta agrave igreja de Tiatira natildeo seja realmente um nome proacuteprio

47 Imperial Cult p 3448 Eacute preciso reconhecer que claramente o episoacutedio de Antipas fazia parte do passado (Paul B

Duff The Synagogue of Satan Crisis Mongering and the Apocalypse of John In David L Barr The Reality of Apocalypse p 161) Poreacutem aparentemente um passado recente (M Gilbertson God and History in the Book of Revelation New Testament Studies in Dialogue with Pannenberg and Moltmann Cambridge University Press 2003 p 110)

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

23

era uma possibilidade que natildeo os preocupasse cotidianamente Se eles natildeo se indispusessem de algum modo diretamente contra Roma provavelmente natildeo sofreriam grandes consequecircncias No entanto essa tepidez eacute condenada no Apocalipse A posiccedilatildeo de Antipas eacute destacada Se Esmirna eacute o grande exem-plo de igreja Antipas eacute o grande exemplo de cristatildeo que o livro quer destacar Natildeo eacute apenas a menccedilatildeo ao nome mas principalmente os termos aplicados a ele por Cristo que chamam a atenccedilatildeo Antipas minha testemunha meu fiel

(Ἀντιπᾶς ο μαρτυς μου ο πιστός μου) Natildeo pode haver nenhuma duacutevida de que com essas palavras Antipas estaacute sendo descrito como algueacutem que morreu por Cristo49 Esses termos foram usados para descrever a execuccedilatildeo de Jesus em Apocalipse 15 E isso foi exatamente o que aconteceu com Antipas50 pois Joatildeo diz ldquoo qual foi morto entre voacutes onde Satanaacutes habitardquo A expressatildeo pode ser traduzida como ldquoo qual foi executado diante de vocecircs aiacute onde Satanaacutes habitardquo (ὃς ἀπεκτανθη παρʼ ὑμιν ὅπου ο Σατανᾶς κατοικει) Sem duacutevida sugere-se uma execuccedilatildeo puacuteblica51 forense52 semelhante agrave de Jesus Natildeo haacute registro do motivo ou mesmo do meacutetodo da execuccedilatildeo de Antipas mas pode se deduzir que ele se recusou a fazer aquilo que era defendido pelos nicolaiacutetas e baalamitas que eram admirados em Peacutergamo ou seja recusou-se a participar do culto ao imperador53 e deve ter feito isso de maneira irredutiacutevel Entatildeo foi executado como testemunha de Jesus

O notaacutevel exemplo de Antipas entretanto natildeo parece ter produzido muito efeito positivo nos demais cristatildeos de Peacutergamo os quais natildeo parecem valorizar o fato e pode ter produzido ateacute mesmo uma reaccedilatildeo contraacuteria Provavelmente temerosos de ter que enfrentar um destino tatildeo cruel quanto a execuccedilatildeo por traiccedilatildeo perante as autoridades os cristatildeos de Peacutergamo seguiram o caminho alternativo oferecido pelos falsos mestres

49 Natildeo parece haver razatildeo para a aparente duacutevida de Thompson nesse sentido Ver L L Thomp-son Ordinary Lives John and His First Readers In David L Barr Reading the Book of Revelation A Resource for Students Atlanta Society of Biblical Literature 2003 p 41

50 Nenhuma informaccedilatildeo adicional eacute dada sobre Antipas Provavelmente o nome seja a abreviaccedilatildeo de Antipater um nome comum tanto entre judeus quanto entre gregos A tradiccedilatildeo posterior descreveu Antipas sendo morto apoacutes o interrogatoacuterio pelo prefeito romano Ele foi colocado dentro da estaacutetua oca de um touro de bronze posto sobre o fogo e assado ateacute a morte (Ver Acta Sanc 23-5)

51 Aune traduz a expressatildeo como ldquoque foi publicamente executado onde Satanaacutes habitardquo David E Aune Revelation 1-5 vol 52A p 1178

52 Collins Persecution and Vengeance p 73353 Thompson natildeo vecirc motivos para conectar a morte de Antipas com a adoraccedilatildeo ao imperador Ele

argumenta que a referecircncia ao trono de Satanaacutes provavelmente se refere ao ldquogrande altar de Zeus em Peacutergamordquo ou talvez ldquoao culto de Ascleacutepio e ao centro meacutedico laacute existenterdquo (The Book of Revelation p 173) Poreacutem eacute mais provaacutevel que tivesse relaccedilatildeo com o culto ao imperador pois eacute difiacutecil pensar numa execuccedilatildeo nesses outros dois casos apenas Ou mesmo uma conjunccedilatildeo de fatores pela negaccedilatildeo de Antipas em participar de qualquer um desses cultos

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

24

O mesmo se deu com Tiatira e Sardes igrejas que natildeo recebem nenhum elogio da parte de Cristo mas aparecem como comprometidas com a visatildeo dos grupos condenados por Joatildeo Um desses grupos Joatildeo o compara a Bala-que rei dos moabitas e ao profeta Balaatildeo do Antigo Testamento (Nm 22-25) Balaque contratou Balaatildeo para amaldiccediloar o povo de Israel que marchava no deserto poreacutem o profeta se viu impedido de fazer isso por restriccedilatildeo divina Consequentemente orientou Balaque a armar ciladas contra os israelitas oferecendo mulheres a fim de seduzir os homens de Israel para que pecassem contra Deus (Nm 3116) Portanto duas praacuteticas estavam sendo incentivadas em Peacutergamo como um modo de provavelmente fugir das sanccedilotildees imperiais comer carnes sacrificadas aos iacutedolos (no mercado e nas festas)54 e talvez ateacute mesmo participar de orgias sexuais com as prostitutas cultuais que ficavam nos vaacuterios templos de Peacutergamo55 Existe alguma possibilidade de que esses falsos mestres fossem um tipo de ldquognoacutesticos primitivosrdquo56 que ensinavam uma espeacutecie de ldquoseparaccedilatildeordquo entre os aspectos carnais e espirituais da vida Assim talvez dissessem que participar das festas e orgias era uma atitude carnal que no entanto natildeo afetava o espiacuterito tranquilizando a consciecircncia dos crentes Os nicolaiacutetas que foram rejeitados em Eacutefeso foram aceitos em Peacutergamo A frase ldquotambeacutem tu tens os que da mesma forma sustentam a doutrina dos nicolaiacutetasrdquo estabelece uma similaridade entre as praacuteticas dos dois grupos57 No entanto o fato de Jesus mencionaacute-los aqui como um grupo separado pode levar agrave de-finiccedilatildeo da posiccedilatildeo especiacutefica dos nicolaiacutetas eles defendiam a participaccedilatildeo no culto ao imperador

A cidade de Tiatira era famosa na antiguidade por causa de seu comeacutercio de roupas e tinturas (At 1614)58 Era uma cidade na qual as mulheres de-sempenhavam funccedilotildees importantes Segundo o entendimento do Apocalipse certa mulher estava exercendo uma autoridade nefasta sobre a igreja Ela se autoproclamava ldquoprofetisardquo e ensinava os crentes a praticarem a prostituiccedilatildeo e a comerem coisas sacrificadas Joatildeo a chama de ldquoJezabelrdquo numa referecircncia agrave

54 Apesar do ensino paulino sobre comer tudo o que eacute vendido no mercado sem questionar a procedecircncia (1Co 1025) para os crentes de Peacutergamo isso era difiacutecil pois a procedecircncia das carnes era praticamente uma soacute o culto pagatildeo

55 Para uma anaacutelise da figura de Balaatildeo no Apocalipse ver Jan Willem van Henten ldquoBalaam in Revelation 214rdquo In The Prestige of the Pagan Prophet Balaam in Judaism Early Christianity and Islam George H van Kooten e Jacques van Ruiten (Orgs) Leiden Brill 2008 p 233-46

56 R H Charles A Critical and Exegetical Commentary on The Revelation of St John ndash The In-ternational Critical Commentary Edinburgh T amp T Clark 1920 1979 p 63 WHC Frend ldquoThe Gnostic Sects and the Roman Empirerdquo JEH 5 (1954) p 25-37

57 Beale sugere que ldquonicolaiacutetasrdquo (Νικολαϊτῶν) pudesse ser o tiacutetulo da seita dos seguidores de Balaatildeo pois o significado de Nicolau eacute ldquoaquele que conquista as pessoasrdquo enquanto que uma possiacutevel traduccedilatildeo para Balaatildeo (Βαλαάμ) seja ldquoaquele que consome as pessoasrdquo (Revelation p 251)

58 Ramsay The Letters to the Seven Churches of Asia p 325

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

25

mulher feniacutecia de Acabe rei de Israel que era profetiza de Baal e perseguiu o profeta Elias aleacutem de conduzir o povo agrave idolatria (1Rs 16) Talvez com isso Joatildeo estivesse identificando a esposa de alguma personalidade importante da igreja em Tiatira ou mesmo algueacutem importante na cidade como um todo59

Uma possiacutevel conjectura diz que essa mulher seguia o mesmo princiacutepio adotado em Peacutergamo poreacutem adaptado agrave situaccedilatildeo de Tiatira Para poderem participar ativamente do proacutespero comeacutercio da cidade as pessoas eram con-vidadas a tomar parte nas celebraccedilotildees puacuteblicas das empresas comerciais nas quais havia celebraccedilotildees cuacutelticas com alimentos oferecidos a iacutedolos60 A recusa em participar desses eventos poderia acarretar dificuldades em participar do comeacutercio imperial

Assim como a recompensa para os crentes fieacuteis de Peacutergamo seria muito maior do que os benefiacutecios puacuteblicos e civis advindos da participaccedilatildeo na ado-raccedilatildeo idolaacutetrica para os crentes de Tiatira que vencerem aquela tentaccedilatildeo o Senhor promete ldquoautoridade sobre as naccedilotildeesrdquo (ἐξουσίαν ἐπὶ τῶν ἐθνῶν) As duas palavras aparecem em Mateus 2818-19 no texto da chamada Grande Comissatildeo O texto natildeo estaacute fazendo referecircncia a um reino milenar futuro61 pois Jesus diz que jaacute recebeu autoridade sobre as naccedilotildees ou seja ele jaacute estaacute reinando sobre elas pois recebeu do Pai toda autoridade nos ceacuteus e na terra Portanto eacute possiacutevel que a recompensa dos crentes fieacuteis aqueles que estivessem dispostos a enfrentar o sofrimento e a morte esteja sendo aqui descrita como uma recompensa celeste desfrutando do reinado de Cristo sobre as naccedilotildees

Do mesmo modo os vencedores de Filadeacutelfia recebem a exortaccedilatildeo para permanecerem fieacuteis ldquopara que ningueacutem tome a tua coroardquo o que no caso natildeo parece ser uma ameaccedila de perder a salvaccedilatildeo mas uma garantia de receber a recompensa especial dos maacutertires Jesus igualmente os elogia porque guardaram ldquoa palavra da minha perseveranccedilardquo (τὸν λόγον τῆς ὑπομονῆς μου) Provavel-mente τὸν λόγον aqui significa ldquoordem ou comandordquo62 Eacute o senhor que ordena que seu povo sofra com paciecircncia Filadeacutelfia constitui junto com Esmirna as duas igrejas fieacuteis em Apocalipse Ambas estatildeo sendo acusadas por judeus falsos e ambas permanecem fieacuteis ao seu Senhor mesmo pagando o preccedilo

59 Charles Revelation p 70 Natildeo fica claro ateacute onde eacute possiacutevel estender a imaginaccedilatildeo ao pensar em Jezabel agindo em Tiatira A comparaccedilatildeo parece apropriada tanto para designar uma mulher gentiacutelica que foi influente na igreja ou que usou sua influecircncia para fazer a congregaccedilatildeo participar de atividades sacrificiais (Ver S Friesen Sarcasm in Revelation 2-3 p 134)

60 Ver L L Thompson The Book of Revelation 122-123 Ver tambeacutem o estudo de Theissen sobre o conflito em Corinto a respeito das comidas sacrificadas a iacutedolos (G Theissen The Social Setting of Pauline Christianity Philadelphia Fortress 1982 p 127-132)

61 Ladd Revelation p 43 Ver J F Walvoord The Revelation of Jesus Christ Chicago Moody Press 1966 p 77

62 Van Henten Martyrdom p 591 Ver nota 18

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

26

Aparentemente em Laodiceacuteia ficavam os crentes mais abastados entre todas as cidades Todas as expressotildees pejorativas que Joatildeo usa apontam para a inversatildeo de epiacutetetos de destaque na cidade de Laodiceia aos quais os morado-res se apegavam e dos quais se orgulhavam63 Eles pensavam que eram felizes mas eram infelizes e miseraacuteveis Pensavam que eram ricos mas eram pobres Pensavam que enxergavam bem por causa do famoso coliacuterio feito a partir do poacute friacutegio da cidade mas eram cegos Pensavam que se vestiam bem por causa das famosas confecccedilotildees e da latilde negra preciosa produzida na regiatildeo mas eram nus ou insuficientemente trajados como a palavra tambeacutem pode ser traduzida64 Ou seja pensavam que eram cidadatildeos romanos bem-vestidos nobres famosos com todos os cuidados meacutedicos mas Cristo os descreve como mendigos cegos e mal trajados O status que eles desfrutavam diante dos homens era exatamente o contraacuterio diante de Deus Humanamente eram ricos e saudaacuteveis espiritual-mente eram miseraacuteveis A exortaccedilatildeo de Cristo portanto era para que a igreja se tornasse ldquouma verdadeira testemunhardquo65 abrindo matildeo do conforto de uma religiatildeo submissa ao mundo para uma feacute viva e atuante mesmo que isso lhe custasse o ldquoouro de tolordquo do mundo pois assim experimentaria o ldquoverdadeiro ourordquo da feacute purificada

CONCLUSAtildeOJoatildeo vecirc a situaccedilatildeo da maior parte das igrejas como traacutegica justamente

porque boa parte dos cristatildeos natildeo parecia sequer entender a necessidade de testemunho perante o mundo Muitos deles estavam engajados em negoacutecios mundanos entrelaccedilados com idolatria outros estavam se entregando agraves dis-soluccedilotildees carnais e seguiam falsos mestres que tranquilizavam a consciecircncia deles Em contraste com essas posturas ele os chama para o testemunho autecircntico para a ldquoperseveranccedilardquo (ὑπομονή) ou seja para a disposiccedilatildeo de enfrentar perseguiccedilotildees e a proacutepria morte Ao contraacuterio de isso ser uma perda como muitos poderiam pensar a respeito do que aconteceu com Antipas Joatildeo mostra que a verdadeira recompensa aguarda aqueles que perseverarem ateacute o fim no testemunho

Assim percebemos que o contexto do primeiro seacuteculo guarda semelhanccedilas com vaacuterias eacutepocas que a igreja enfrenta inclusive a atual na qual existem focos de perseguiccedilatildeo em vaacuterias partes do mundo Ao mesmo tempo ser um cristatildeo fiel mesmo em paiacuteses livres pode trazer prejuiacutezos agrave pessoa por perseguiccedilotildees indiretas escaacuternio desprezo e dificuldades em ascender socialmente Contudo a mensagem do Apocalipse continua ecoando em todo ouvido verdadeiramente cristatildeo secirc fiel ateacute a morte

63 Swete Apocalypse p 61 Charles Revelation p 9664 Ladd Revelation p 5265 Beale Revelation p 306

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

27

ABSTRACTAt the end of the first century when John received the vision and recorded

it in the book of Revelation the churches in Asia did not face the worst period of persecution Even though there were occasional persecutions and some shadow of intensification of regular persecution was on the horizon many Christians as Roman citizens found themselves in relative peace and security enjoying privileges and benefits from the rich imperial trade in the region of Asia Minor The desire to remain enjoying certain benefits led many believers to follow the path of cultural accommodation proposed by eloquent false teachers of the time Against this behavior Revelation demonstrates that true believers need to follow the example of Christ who was faithful unto death and received the reward at the resurrection In this way if they are willing to live faithfully to Christ and face their own death because of it they will give true testimony to the world as well as participate in the reward of Christ

KEYWORDSSeven churches of Asia Revelation Martyrdom Witness Persecution

29

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO O POacuteS-MODERNISMO DA TEOLOGIA DA ESPERANCcedilA

Agrave TEOLOGIA DA NOVA ERA E SEUS REFLEXOS NO CAMPO EDUCACIONAL

Solano Portela

RESUMOEste artigo traccedila o desenvolvimento teoloacutegico do seacuteculo 20 dividindo-o

em duas partes a primeira mostra a transiccedilatildeo do liberalismo alematildeo consoli-dado do seacuteculo 19 agrave teologia modernacontemporacircnea A segunda parte trata da pavimentaccedilatildeo do caminho ao advento da teologia poacutes-moderna O autor demonstra que o tema subjacente de desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo de pontos fundamentais com um progressivo desvio dos direcionamentos biacuteblicos estaacute sempre presente na teologia modernacontemporacircnea Essa vertente pode ser vista especialmente em cinco escolas de pensamento teoloacutegico Teologia da Esperanccedila Teologia da Libertaccedilatildeo Teologia Feminista Teologia do Pro-cesso e Teologia da Nova Era Todas elas compartilham do pensamento poacutes--Moderno e diminuem a Biacuteblia como Palavra de Deus inerrante enquanto simultaneamente retroalimentam a Teologia Poacutes-Moderna lanccedilando duacutevidas sobre princiacutepios e valores eternos biacuteblicos e tradicionais As tendecircncias que aparecem nessas reflexotildees teoloacutegicas satildeo similares ao que se observa no cam-po da educaccedilatildeo e algumas delas impactam profundamente o processo cristatildeo de ensino-aprendizagem Com uma abordagem proacutepria agrave realidade o poacutes-

Graduado em Matemaacutetica Aplicada (BA Magna Cum Laude) pelo Shelton College (Cape May Nova Jersey) Mestre em Divindade (MDiv) pelo Biblical Theological Seminary (Hatfield Pennsylvania) Litterarum Humanarum Doctor (LHD) pelo Gordon College (Boston Massachusetts) Eacute professor-coordenador de Educaccedilatildeo Cristatilde no CPAJ e professor de Teologia Sistemaacutetica no Seminaacuterio Presbiteriano Rev Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo em Satildeo Paulo

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

30

-modernismo subverteu conceitos pedagoacutegicos chaves diminuiu o papel do professor e submergiu escolas em uma crise de autoridade Eacute feito um apelo para que um soacutelido alicerce biacuteblico venha a fundamentar qualquer filosofia de educaccedilatildeo escolar cristatilde

PALAVRAS-CHAVEEducaccedilatildeo cristatilde Construtivismo Desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo Piaget

Poacutes-modernismo Teologia poacutes-moderna Teologia contemporacircnea Libera-lismo teoloacutegico

INTRODUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO Eacute UMA FILOSOFIAO Dr John Feinberg (1946-) da Trinity Evangelical Divinity School

(Deerfield Illinois) em uma de suas palestras sobre teologia contemporacircnea1 indica que o termo poacutes-modernismo natildeo define uma filosofia ou teologia especiacutefica em si mas eacute um entendimento da vida que questiona os postula-dos da modernidade os quais considera como meras proposiccedilotildees dualistas simplistas Nesse sentido o poacutes-modernismo se faz presente em quase todas as proposiccedilotildees teoloacutegicas modernas e contemporacircneas Pelo menos todas as correntes de teologia que aqui seratildeo abordadas tecircm a sua contribuiccedilatildeo ao ou pontos de intersecccedilatildeo marcantes com o poacutes-modernismo tendo como carac-teriacutestica comum a criacutetica ao pensamento cartesiano ou a rejeiccedilatildeo da existecircncia de uma verdade absoluta O poacutes-modernismo portanto natildeo eacute uma escola de pensamento que apresenta as suas proacuteprias proposiccedilotildees mas uma persuasatildeo contemporacircnea que admite a coexistecircncia paciacutefica de muitas assertivas Nesse caldeiratildeo de pensamentos postulados pluralistas desconexos ou ateacute contraditoacuterios encontram o seu proacuteprio espaccedilo na arena filosoacutefico-teoloacutegica das uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo 20 estendendo-se ateacute este primeiro quarto do seacuteculo 21

O propoacutesito deste artigo eacute mostrar que existe uma conectividade e um tema sempre presente em cinco escolas de teologia modernacontemporacircnea Teologia da Esperanccedila Teologia da Libertaccedilatildeo Teologia Feminista Teologia do Processo e Teologia da Nova Era2 Todas essas entendemos floresceram de-

1 FEINBERG John Contemporary Theology II ndash Lecture 21 Institute of Theological Studies Grand Rapids Outreach Inc 1998 Palestras disponiacuteveis como miacutedia eletrocircnica gravada

2 Todas as citaccedilotildees de publicaccedilotildees ou livros em inglecircs neste artigo satildeo de traduccedilatildeo do autor Este artigo eacute baseado em pesquisas iniciadas em setembro de 2002 e continua como um projeto em andamento Citaccedilotildees de documentos postados na Internet (Web) satildeo precisas na ocasiatildeo em que os textos estavam postados Todos os esforccedilos foram empreendidos para acessar e atualizar os endereccedilos eletrocircnicos ateacute 6 de maio de 2021 mas uns poucos documentos podem ter sido deslocados para diferentes paacuteginas ou siacutetios desde o acesso original ou removidos inteiramente da Web por falta de manutenccedilatildeo ou por qualquer outra razatildeo natildeo detectaacutevel

31

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

baixo do guarda-chuva do poacutes-modernismo contribuiacuteram com ele e abraccedilaram a desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo como eixo norteador do ldquofazer teologiardquo As conclusotildees a que chegam refletem um sentimento de necessidade de apresentar a quebra do tradicional concretizando essa acircnsia em uma sanha demolidora de valores passados uma desconsideraccedilatildeo para com acircncoras metafiacutesicas tais como o entendimento das Escrituras como Palavra de Deus que conteacutem verdades proposicionais absolutas e confiaacuteveis Essa desconsideraccedilatildeo resulta em formulaccedilotildees teoloacutegicas fluidas nas quais a apreensatildeo humana eacute colocada como norteadora da compreensatildeo do transcendente Descartam-se princiacutepios que eram aceitos como alicerces de uma boa teologia e subjuga-se a Escritura ao contexto social acatando-se este como aacuterbitro e chave hermenecircutica de in-terpretaccedilatildeo Resumindo o poacutes-modernismo latente nessas correntes naturaliza a religiatildeo e extirpa o sobrenatural do relacionamento e comunicaccedilatildeo entre o Criador e suas criaturas

1 A ORIGEM SIacuteNTESE DO DESENVOLVIMENTO HISTOacuteRICO DE FORMULACcedilOtildeES TEOLOacuteGICAS DESDE A REFORMA DO SEacuteCULO 16

O pensamento teoloacutegico foi liberto da escravatura da tradiccedilatildeo medieval catoacutelica romana com suas adiccedilotildees humanas agrave mensagem e liturgia da igreja pela Reforma do Seacuteculo 16 Desde entatildeo um cerne de ortodoxia biacuteblica tem marcado a sua presenccedila ateacute os nossos dias Apesar dessa resiliecircncia da teologia reformada nesse ponto marcante de inflexatildeo na histoacuteria da igreja existe um registro contiacutenuo de desvios em sistemas teoloacutegicos propostos de um caminho estritamente direcionado pela Escritura para esquemas mais dilatados que aco-modem especulaccedilotildees humanas Estes surgiram com frequecircncia sob a forma de rebuscados trabalhos acadecircmicos e com a aparecircncia de volumosas pesqui-sas Entretanto na realidade refletiram correntes de pensamentos seculares e filosoacuteficos que inundavam as academias Uma tentativa recorrente de siacutentese pode ser observada com a cosmovisatildeo de um mundo secularizado buscando uma zona de conforto na qual pensadores e teoacutelogos formais pudessem acolher visotildees religiosas distorcidas e obter legitimidade para seus voos intelectuais de destinos incertos e seguranccedila duacutebia

Nesse sentido observamos no periacuteodo poacutes-Reforma do seacuteculo 16 a ascensatildeo do misticismo religioso no campo protestante seguido pelo raciona-lismo do liberalismo teoloacutegico alematildeo3 Estes deixaram suas marcas nas eras

3 Ainda que contraditoriamente grandes expoentes do liberalismo fossem miacutesticos em sua preacutedica e escritos pessoais como nos relembra Blackwell um estudioso de Friedrich Schleiermacher Ele registra que de um lado ldquoSchleiermacher natildeo tinha paciecircncia com conceitos abstratos quer fossem poliacuteticos filosoacuteficos ou teoloacutegicosrdquo que natildeo tivessem ldquorelaccedilatildeo direta com e afetassem a vida realrdquo Por outro lado

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

32

preacute-moderna e moderna enquanto em paralelo grandes desenvolvimentos intelectuais afloravam nas academias bem como o mundo experimentava o surgimento das induacutestrias e profundas reorganizaccedilotildees socioloacutegicas Isso ocorreu primeiramente na Europa e subsequentemente no chamado Novo Mundo

Essas duas correntes do seacuteculo 19 o misticismo exemplificado pelos Quakers Shakers4 e outros ldquoprotomovimentosrdquo miacutesticos5 que resultaram no pentecostalismo do seacuteculo 20 e o racionalismo alematildeo que adentrou de forma avassaladora grandes seminaacuterios de renome dos Estados Unidos6 dominaram o cenaacuterio teoloacutegico avant garde ateacute as primeiras deacutecadas do uacuteltimo seacuteculo Naquela ocasiatildeo uma reaccedilatildeo que se apresentou inicialmente como um res-gate da religiatildeo verdadeira e da teologia biacuteblica adentra a arena teoloacutegica ndash a neo-ortodoxia Entretanto no cocircmputo final a neo-ortodoxia eacute cooptada pelo subjetivismo do racionalismo alematildeo e se revela natildeo uma contestaccedilatildeo biacuteblica do liberalismo teoloacutegico mas um escape miacutestico agraves questotildees mais difiacuteceis como a veracidade dos milagres e a realidade da ressurreiccedilatildeo questotildees que satildeo empurradas a uma supra histoacuteria (Heilsgeschichte) que natildeo se relaciona objetivamente com a chamada ldquohistoacuteria brutardquo

Possivelmente poderiacuteamos classificar a primeira metade do seacuteculo 20 como um periacuteodo de transiccedilatildeo entre a teologia moderna e a contemporacircnea Referimo-nos agrave progressatildeo do pensamento de Georg Wilhelm Friedrich He-gel (1770-1831) passando por Soslashren Kierkegaard (1813-1855) Karl Barth

continua Blackwell o seu misticismo aflora como uma ldquoconscientizaccedilatildeo iacutentima e remanescente de que todas as coisas fazem parte de um todordquo e que ldquonossa origem uacuteltima permanece aleacutem do que eacute possiacutevel conhecerrdquo Muitas de suas expressotildees miacutesticas satildeo encontradas em cartas escritas em 1802 para Eleonore Grunow uma mulher casada com quem Schleiermacher tencionava se casar apoacutes o divoacutercio dela ndash o que nunca ocorreu BLACKWELL Albert ldquoSchleiermacherrsquos Mysticism A Letter to His Distant Belovedrdquo Blog Modalities 13 de marccedilo de 2015 Disponiacutevel em httpsalbertblackwellblogspotcom201503schleiermachers-mysticism-letter-to-hishtml Acesso em 6 maio 2021 Essa via dupla do racionalismo e do misticismo demonstra como os extremos se tocam pois em ambas as posiccedilotildees estaacute ausente a cen-tralidade da Escritura como chave para compreensatildeo de noacutes mesmos da Terra em que habitamos do Universo que nos cerca e do Deus que tudo criou

4 FERNANDES Rubeneide O L ldquoMovimento pentecostal Assembleia de Deus e o estabeleci-mento da educaccedilatildeo formalrdquo Dissertaccedilatildeo natildeo publicada Mestrado em Educaccedilatildeo Piracicaba UNIMEP p 31-32

5 Ver por exemplo MATOS Alderi S ldquoEdward Irving precursor do movimento carismaacutetico na igreja reformadardquo Fides Reformata I-2 (1996) Disponiacutevel em httpscpajmackenziebrwp-contentuploads2019021_Edward_ Irving_Precursor_do_Movimento_CarismC3A1tico_na_Igreja_Re-formada_Alderi_Souza_Matospdf Acesso em 6 maio 2021

6 BROWN Ira ldquoThe Higher Criticism Comes to America 1880-1900rdquo Journal of The Presbyte-rian Historical Society 38 (4) Philadelphia The Presbyterian Historical Society dez 1960 p 193-212 Disponiacutevel em jStor httpwwwjstororgstable23325229 Acesso em 6 maio 2021

33

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

(1886-1968) Paul Tillich (1886-1965) Rudolf Bultmann (1884-1976)7 e os filoacutesofos analiacuteticos8 encerrando-se com os teoacutelogos da ldquoMorte de Deusrdquo9

Este foi um periacuteodo marcado por um novo subjetivismo e por uma abor-dagem individualista no qual definiccedilotildees e expressotildees linguiacutesticas foram consi-deradas amorfas e reduzidas a praticamente serem sem sentido em si proacuteprias adaptaacuteveis agrave compreensatildeo e intenccedilatildeo individuais tanto dos proponentes como de seus ouvintes ou leitores

Semelhantemente enquanto esse periacuteodo de transiccedilatildeo constroacutei uma ponte entre o moderno e o contemporacircneo podemos afirmar que praticamente todas as proposiccedilotildees teoloacutegicas novas que surgiram no seacuteculo 20 a partir da deacutecada de 1960 poderiam ser classificadas como degraus para a ascensatildeo do periacuteodo e pensamento poacutes-moderno no qual como civilizaccedilatildeo estamos sub-mersos Visualizamos em cada expressatildeo dos pensamentos teoloacutegicos desde os ldquoTeoacutelogos da Morte de Deusrdquo elementos do poacutes-modernismo quer de maneira incipiente quer de forma bastante expliacutecita e madura ateacute que eles se juntam em um amalgamado que pode ser denominado Teologia Poacutes-Moderna

Concentrando nossa anaacutelise da teologia modernacontemporacircnea das uacuteltimas deacutecadas ndash desde a Teologia da Esperanccedila10 agrave Teologia Poacutes-Moderna encontramos alguns temas subjacentes que se fazem presentes em cada variaccedilatildeo ou ramo e esses natildeo dependem dos roacutetulos que os proponentes atribuem (ou recebem) em cada escola de pensamento

Por exemplo John Feinberg indica que uma caracteriacutestica presente nas formulaccedilotildees teoloacutegicas desse periacuteodo eacute ldquoa divinizaccedilatildeo do homem e a huma-nizaccedilatildeo de Deusrdquo11 Devemos acatar a pertinecircncia dessa anaacutelise pois nunca

7 Para a afinidade desses teoacutelogos com o pensamento de Hegel ver CREMER Douglas J ldquoPro-testant Theology in Early Weimar Germany Barth Tillich and Bultmannrdquo Journal of the History of Ideas 56 n 2 (1995) 289-307 Doi1023072709839 Acesso em 23 dez 2020

8 Tambeacutem conhecida como ldquofilosofia da linguagemrdquo procura expressar uma anaacutelise racional loacutegica e matemaacutetica do pensamento ndash levando a conclusotildees puramente naturalistas sobre as grandes questotildees do universo e da vida Como maiores expoentes podemos citar Gottlob Frege (1848-1925) Ludwig Wittgenstein (1889-1951) e Bertrand Russell (1872-1970) autor do famoso livro Porque Natildeo Sou Cristatildeo As raiacutezes no pensamento alematildeo satildeo evidentes em seus escritos ainda que a grande popu-larizaccedilatildeo da corrente tenha ocorrido nas academias dos Estados Unidos e da Inglaterra

9 Os ldquoTeoacutelogos da Morte de Deusrdquo reavivaram o conceito hegeliano de que ldquoDeus estaacute mor-tordquo ndash indicando que a ideia de Deus do mundo ocidental tinha que ser revista e substituiacuteda por uma transcendecircncia centrada na humanidade Os dois expoentes modernos mais conhecidos foram William Hamilton (1924-2012) e Thomas J J Altizer (1927-2018) Os dois foram coautores do livro Teologia Radical e a Morte de Deus e forneceram combustiacutevel aos movimentos alienados hedonistas sensuais e existenciais da deacutecada de 1970 como os Provos na Europa e a onda hippie que tomou conta das Ameacutericas nas deacutecadas 1960-1970

10 Um resumo dos pontos principais dessa vertente teoloacutegica seraacute apresentado adiante Ela surgiu no livro mais famoso do seu autor originalmente publicado na Alemanha em 1964 MOLTMANN Juumlrgen Teologia da esperanccedila Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005

11 FEINBERG Lecture 1

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

34

houve um periacuteodo como o dessas deacutecadas na histoacuteria mundial ou da igreja que tratou Deus como sujeito e natildeo soberano e as pessoas mais como regentes dos seus proacuteprios destinos do que como criaturas caiacutedas necessitadas de redenccedilatildeo

Submeto entretanto que existe outro tema que se faz igualmente presente nessas correntes teoloacutegicas recentes ndash a ideia de que eacute necessaacuterio desconstruir e reconstruir ou a ideia de que as atividades de desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo se constituem em tarefas necessaacuterias ao campo da teologia Nesse sentido o teoacutelogo deve desconstruir ideias conceitos metaacuteforas ideologias esquemas de pensamento e convicccedilotildees Por outro lado eacute necessaacuterio reconstruir ou cons-truir todos esses aspectos com base no sentimento de quais estruturas devem ser estabelecidas para trazer a sensaccedilatildeo empiacuterica de liberdade da opressatildeo (de onde quer que proceda) aos proponentes e aos seus seguidores objetivados Eacute essa temaacutetica da desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo que queremos prescrutar seguindo e explorando as suas consequecircncias e principalmente avaliando os reflexos no campo educacional cristatildeo

2 DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO DA TEOLOGIA DA ESPERANCcedilA Agrave TEOLOGIA DA NOVA ERA

Vamos examinar brevemente os conceitos de desconstruccedilatildeo e recons-truccedilatildeo nessas vertentes teoloacutegicas que preparam o caminho e reforccedilam os fundamentos do pensamento poacutes-moderno dentro da teologia e seus efeitos no campo educacional

21 Teologia da EsperanccedilaJuumlrgen Moltmann iniciou esse periacuteodo na teologia contemporacircnea com

a sua Teologia da Esperanccedila12 na qual a escatologia ndash ou a esperanccedila de um futuro que eacute possiacutevel e real ndash eacute o alicerce sobre o qual toda a interpretaccedilatildeo teoloacutegica do mundo e da vida deve ser construiacuteda Apesar do termo ldquodescon-truirrdquo natildeo aparecer com ecircnfase na obra de Moltmann sua abordagem teoloacutegica conceitualmente eacute exatamente isso reverter a ordem pela qual a teologia tem sido abordada que tradicionalmente comeccedila com a avaliaccedilatildeo dos dados sobre Deus na Escritura sua natureza e suas obras postulando que a escatologia eacute na realidade a fundaccedilatildeo da teologia Com a intenccedilatildeo de ldquofazer teologiardquo Molt-mann desconstruiu a estrutura teoloacutegica que tem sido utilizada haacute seacuteculos Natildeo deveria surpreender que John B Cobb um teoacutelogo moderno (do Processo) faz a seguinte afirmaccedilatildeo sobre a Teologia da Esperanccedila ldquoA abordagem de Molt-mann eacute praticamente revolucionaacuteria em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo cristatilde dominanterdquo13

12 MOLTMANN Teologia da esperanccedila13 COBB John ldquoNorth American Theology in the Twentieth Centuryrdquo ago 1991 Disponiacutevel

em httpwwwreligion-onlineorgcgi-binrelsearchddllshowarticleitem_id=42 Acesso em 23 mar 2003

35

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

Na sequecircncia Moltmann daacute andamento agrave construccedilatildeo de sua proacutepria teo-logia especificamente redefinindo escatologia esperanccedila e salvaccedilatildeo trazendo todos esses termos a um relacionamento corporativo com a vida aqui e agora Essa reconstruccedilatildeo inova menos do que pretende porque natildeo chega a se desli-gar completamente da Teologia Existencial Como Moltmann enfatiza o lado corporativo da religiatildeo e traz o foco para a vida no presente ndash como sendo essencialmente uma vida de esperanccedila futura ndash ele acabou por construir uma base adequada para as ideias da Teologia da Libertaccedilatildeo

22 Teologia da LibertaccedilatildeoEste ramo da teologia geralmente associado aos escritos de Gustavo

Gutierrez14 popularizou-se essencialmente na Ameacuterica Latina e em outros paiacuteses em desenvolvimento (anteriormente rotulados de subdesenvolvidos) A Teologia da Libertaccedilatildeo tambeacutem desconstroacutei os conceitos tradicionais do pensamento cristatildeo especialmente aqueles relacionados agraves accedilotildees que devem ser empreendidos em meio a uma sociedade que eacute considerada socialmente injusta Ela preconiza que concentrar a visatildeo no futuro gera aniquilaccedilatildeo e cega os olhos agraves injusticcedilas presentes A perspectiva da igreja deve ser reconstruiacuteda considerando a libertaccedilatildeo como a tarefa primaacuteria da teologia do cristianis-mo e da sociedade como um todo Essa libertaccedilatildeo ou salvaccedilatildeo eacute de todas as formas de opressatildeo mas eacute definida prioritariamente como libertaccedilatildeo de condiccedilotildees de pobreza de uma classe que se encontra sob a regecircncia de outra classe dominante ndash a classe opressora A classe oprimida deve ser salva tam-beacutem da opressatildeo econocircmica e poliacutetica Cobb registra a conexatildeo da Teologia da Libertaccedilatildeo com a Teologia da Esperanccedila quando afirma ldquoNa praacutetica a Teologia da Libertaccedilatildeo da Ameacuterica Latina segue um modelo semelhante ao de Moltmannrdquo15 Chamo atenccedilatildeo para terminologia utilizada por Cobb que mostra o conceito de desconstruccedilatildeoreconstruccedilatildeo impliacutecito em seus elogios proferidos na anaacutelise da Teologia da Esperanccedila Referindo-se a teoacutelogos da libertaccedilatildeo ele diz ldquoEles foram brilhantemente bem-sucedidos em construir um sistema teoloacutegico completo com base nessa [nova] hermenecircuticardquo16

Encontramos tambeacutem a Teologia da Libertaccedilatildeo providenciando uma zona de conforto para outras formas de teologias de ldquoclassesrdquo ou de ldquominoriasrdquo que se consideram ldquooprimidasrdquo por qualquer outro segmento da sociedade Este eacute o caso da Teologia Gay Robert Goss explicando e defendendo essa vertente ldquoteoloacutegicardquo deixa clara a conexatildeo ldquoA Teologia da Libertaccedilatildeo eacute provavel-mente o melhor termo para servir de guarda-chuva para o que estaacute acontecendo [no cenaacuterio teoloacutegico] Porque ela atinge a raiz da cultura os conservadores

14 GUTIERREZ Gustavo Teologia da libertaccedilatildeo 2 ed Satildeo Paulo Vozes 198515 COBB ldquoNorth American Theologyrdquo16 Ibid

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

36

tecircm problemas com ela como nos dias de Jesus Esses conservadores como os entendo estatildeo na realidade interessados na conservaccedilatildeo do status quo de relaccedilotildees de poderrdquo17 A ideia de desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo fica bem evi-dente na apresentaccedilatildeo do livro de Goss

O trabalho do Rev Goss eacute um de desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo Ele descons-troacutei o Cristo que se assenta entronizado e abenccediloa com decretos divinos os preconceitos e as relaccedilotildees de poder e encontra no meio de tudo isso o Jesus que questiona os relacionamentos de poder dos seus dias e que [ele proacuteprio] desconstroacutei agrave sua proacutepria maneira18

Um exemplo adicional desses ramos teoloacutegicos enxertados ou que bro-tam da Teologia da Libertaccedilatildeo eacute visto na ldquoTeologia Racialrdquo na qual tambeacutem encontramos os conceitos de desconstruirconstruir Fazendo referecircncia nesse sentido ao artigo de Maria-Cristina Ventura ldquoDesconstruccedilatildeo e Reconstruccedilatildeo Teoloacutegica na Luta contra o Racismordquo lemos o seguinte em sua introduccedilatildeo ldquoA desconstruccedilatildeo teoloacutegica que leva a uma reconstruccedilatildeo eacute essencial para um en-tendimento da teologia na luta contra o racismo O exerciacutecio de desconstruccedilatildeo implica em questionamento e na confrontaccedilatildeo da teologiardquo19 Mais recente-mente os pontos fundamentais da Teologia da Libertaccedilatildeo tecircm sido veiculados no meio protestante como Teologia Puacuteblica e Teologia da Missatildeo Integral (TMI)

23 Teologia FeministaNatildeo precisamos ir muito aleacutem do tiacutetulo do livro de Elisabeth Schuumlssler

Fiorenza para localizar o tema de ldquodesconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeordquo na Teologia Feminista Essa famosa porta-voz feminista tambeacutem constroacutei sobre a base fornecida pela Teologia da Libertaccedilatildeo para desenvolver um Gestalt teoloacutegico que busca libertar as mulheres de uma estrutura supostamente dominada pelo sexo masculino Ela escreveu ldquoEm Memoacuteria Dela Uma Reconstruccedilatildeo Teoloacute-gica Feminista das Origens Cristatildesrdquo20 Em outro livro Fiorenza indica que a hermenecircutica feminista de libertaccedilatildeo deve desconstruir tradiccedilotildees opressoras e identificar imagens e argumentos diferentes daqueles que satildeo identificados com o sexo masculino21

17 GOSS Robert Jesus Acted Up A Gay and Lesbian Christian Manifesto Nova York Harper amp Row 1993

18 Ibid19 VENTURA Maria-Cristina ldquoTheological Deconstruction and Reconstruction in the Fight against

Racismrdquo Disponiacutevel em httpwwwwcc-coeorgwccwhatjpcechoesechoes-17-06html Acesso em 6 maio 2021

20 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler In Memory of Her A Feminist Theological Reconstruction of Christian Origins New York Crossroads 1983

21 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Jesus Miriamrsquos Child Sophiarsquos Prophet Critical Issues in Feminist Christology New York Continuum Publishing Group 1995 p 33

37

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

Desconstruccedilatildeo eacute tambeacutem um tema baacutesico para a Teologia Feminista no entendimento de David Rutledge que escreveu ldquoLeitura Marginal Feminis-mo Desconstruccedilatildeo e a Biacutebliardquo22 De acordo com a compreensatildeo da Teologia Feminista deve-se desconstruir todas as metaacuteforas e linguagem opressoras que falseiam o entendimento da divindade e ajudam a perpetuar a opressatildeo das mulheres em toda parte Semelhantemente eacute necessaacuterio reconstruir estruturas teoloacutegicas centradas em um simbolismo e terminologia feministas que mais adequadamente refletem os cuidados e a nutriccedilatildeo que fluem da divindade dessa forma se promoveraacute a alforria e libertaccedilatildeo das mulheres e seraacute atribuiacutedo um papel mais justo para os homens

24 Teologia do ProcessoA Teologia do Processo contesta o ldquoTeiacutesmo Claacutessicordquo e se propotildee a

descrever mais adequadamente a divindade e o entendimento metafiacutesico da estrutura da realidade Para atingir esse objetivo necessita desconstruir a apreensatildeo transcendente de Deus e reconstruiacute-lo em torno de sua imanecircncia e de sua ldquopreensatildeordquo23 dos outros seres reais Ela se apresenta como sendo uma forma mais cientiacutefica de olhar a realidade e de abordar o pensamento teoloacutegico mas ao desconstruir informaccedilotildees disponiacuteveis sobre o Deus da Biacuteblia termina por reconstruiacute-lo como um deus totalmente passivo praticamente impotente que procura atrair e persuadir e pretende influenciar mas que nunca age posi-tivamente para estabelecer sua vontade e seu propoacutesito James Ashbrook um teoacutelogo do processo do Garrett Evangelical Theological Seminary mostra esse vieacutes desconstrucionista quando apresentando uma das caracteriacutesticas dessa linha de pensamento ndash convicccedilotildees ou crenccedilas que estatildeo sempre mutantes ou em processamento ndash descreve-se a si mesmo dessa maneira

Sou um ceacutetico miacutestico um crente descrente Participo daquilo que eu questiono mais especificamente construo a realidade de acordo com o paradigma de um Deus cheio de graccedila exemplificado nas tradiccedilotildees judaico-cristatildes (plurais) e que faz sentido agrave luz do que aprendemos nas neurociecircncias Sou influenciado por praacuteticas Zen medito e oro regularmente como parte de minha vida Tento desconstruir a teologia com a finalidade de reconstruiacute-la agrave luz da experiecircncia e em um mundo carregado de opressatildeo compartilho com outros como testemunho uma realidade iluminada pela justiccedila e pelo amor24

22 RUTLEDGE David Reading Marginally Feminism Deconstruction and the Bible Leiden New York Brill 1996

23 ldquoPreensatildeordquo (prehension) na terminologia da Teologia do Processo eacute um tipo de compreensatildeo sem o elemento cognitivo ou uma forma inconsciente de relacionamento e de compartilhamento das atividades da vida pela e com a divindade

24 ASHBROOK James ldquoOur Illusory Relation to God ndash A Neurotheological Approachrdquo (palestra) Texto da nota autobiograacutefica na programaccedilatildeo da workshop ldquoInstitute on Religion in an Age of Science

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

38

25 Teologia da Nova EraJohn Feinberg aponta que a Teologia da Nova Era natildeo surgiu como um

ramo que cresceu dos ciacuterculos acadecircmicos mas eacute uma importante linha de pensamento que deve ser considerada devido aos raacutepidos avanccedilos feitos na sociedade e pela popularidade observada em alguns segmentos da igreja cristatilde25 Ela tem produzido uma abundacircncia de escritos a maioria desses com caracteriacutesticas populares mas deles podemos aferir seus temas principais Em um relatoacuterio que esboccedila ldquoAs atividades da Nova Era na Igreja Episcopalrdquo observamos os avanccedilos que essa filosofia mais do que uma teologia tecircm feito naquela denominaccedilatildeo aleacutem de trazerem agrave tona os sempre presentes temas de desconstruccedilatildeoreconstruccedilatildeo O relatoacuterio registra as seguintes palavras do Rev Matthew Fox

O que eacute a redescoberta do Cristo coacutesmico se natildeo uma desconstruccedilatildeo da ldquocris-tologia do poderrdquo que estabeleceu o impeacuterio cristatildeo no Conciacutelio de Niceacuteia no quarto seacuteculo e uma reconexatildeo com a tradiccedilatildeo biacuteblica mais antiga de Cristo como a sabedoria coacutesmica presente em todos os seres26

Vemos esse posicionamento de desconstruccedilatildeo neste e em outros traba-lhos escritos de teoacutelogos da Nova Era de conceitos tradicionais do teiacutesmo e da histoacuteria da redenccedilatildeo ndash como sendo um caminho exclusivo apresentado pela feacute cristatilde ndash pois essa ldquoteologiardquo reconstroacutei a conexatildeo com a divindade como sendo algo que estaacute presente em todos nesta religiosidade inclusiva agora denominada de ldquoreligiatildeo coacutesmicardquo ou de ldquosabedoria coacutesmicardquo

Encerramos este segmento da nossa anaacutelise indicando que Groothuis quando relaciona os temas principais que caracterizam a teologia da Nova Era destaca este em primeiro lugar ldquoTudo eacute um Quaisquer diferenccedilas perceptiacute-veis satildeo apenas aparentes e natildeo reaisrdquo 27 Este eacute o resultado do conceito de reconstruccedilatildeo da Teologia da Nova Era e podemos ver a harmonia e sobrepo-siccedilatildeo com as ideias do Poacutes-Modernismo que enfatiza construccedilotildees subjetivas Considerando que tudo eacute o mesmo aponta Feinberg28 uma pedra pode natildeo ser uma pedra eacute apenas percebida como uma pedra e assim por diante Dessa maneira estaacute preparado o palco para o Poacutes-Modernismo

38th Annual Star Island Conferencerdquo (Portsmouth NH 2707 a 03081991) Disponiacutevel em wwwirasorgconferences abs1991pdf Acesso em 20 mar 2003

25 FEINBERG Lecture 1726 COHEN Elaine ldquoMatthew Fox Techno Cosmic Mass Heralds New Spiritualityrdquo In Conscious

Life julho 1999 p 11 Citado por PENN Lee (1999 2004) ldquoThe New Age Movement in the Episcopal Churchrdquo Disponiacutevel em httpswwwevangelizationstationcomhtm_htmlNew20Agenew_age_movement_in_the_epishtm Acesso em 6 maio 2021

27 GROOTHUIS Douglas Unmasking the New Age Downers Grove IL IVP 1986 p 1828 FEINBERG Lecture 17

39

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

3 DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO NA TEOLOGIA POacuteS-MODERNA

Se o tema de desconstruccedilatildeoreconstruccedilatildeo esteve presente em cada uma dessas cinco escolas de pensamento teoloacutegico eacute no poacutes-modernismo que en-contramos o seu aacutepice Daniel J Adams depois de apresentar e discutir trecircs caracteriacutesticas do poacutes-modernismo ndash 1) decliacutenio do Ocidente e do pensamento ocidental (dilema do secularismo x devoccedilatildeo pessoal) 2) questionamento das metanarrativas (verdades fundacionais autoritativas) e 3) disseminaccedilatildeo da informaccedilatildeo (o ldquomercadordquo intelectual) ndash relaciona a quarta da seguinte forma ldquoUma quarta caracteriacutestica da era poacutes-moderna eacute aquela que ficou conhecida como o processo de desconstruccedilatildeo Desconstruccedilatildeo eacute exatamente o que estaacute expresso no significado impliacutecito da palavra eacute desmembrar textos de maneira semelhante a tirar as camadas de uma cebola Eacute um processo intencionalrdquo29

Jacques Derrida o famoso filoacutesofo poacutes-moderno de origem argelina mas de nacionalidade francesa que tem tido um impacto substancial no pensamento filosoacutefico e poacutes-moderno escreveu

Por que se envolver em um processo de desconstruccedilatildeo em vez de deixar as coisas como estatildeo etc Nada aqui se processa sem uma medida de forccedilas em algum momento Desconstruccedilatildeo tenho insistido natildeo eacute algo neutro Eacute uma intervenccedilatildeo30

Adams anteriormente citado analisa o pensamento do poacutes-modernista Ernest Gellner que escreveu sobre razatildeo e religiatildeo31 afirmando

hellip desconstruccedilatildeo tem uma implicaccedilatildeo profunda para a teologia considerando que a ldquoverdade objetiva deve ser substituiacuteda pela verdade hermenecircuticardquo Isso significa que os textos sagrados como a Biacuteblia natildeo possuem um significado uacuteltimo nem satildeo textos autoritativos Na realidade a rede ou a teia de relacio-namentos fora do texto podem determinar tanto o significado do texto como a natureza de sua autoridade Um exemplo disso dentro da tradiccedilatildeo presbiteriana--reformada eacute a controveacutersia formada em torno da eacutetica sexual e as maneiras nas quais posiccedilotildees diferentes tecircm sido propostas apoiadas na interpretaccedilatildeo dos textos biacuteblicos Uma leitura tradicional do texto e uma desconstruccedilatildeo poacutes-moderna do texto resultam em interpretaccedilotildees com enormes diferenccedilas entre si32

29 ADAMS Daniel J ldquoToward a Theological Understanding of Postmodernismrdquo publicado ini-cialmente em Metanoia (Praga) primavera-veratildeo 1997 Disponiacutevel em httpwwwcrosscurrentsorgadamshtm Acesso em 6 maio 2021

30 Extraiacutedo de uma carta de Jacques Derrida a Jean-Louis Houdebine citado em DERRIDA Jacques Positions Trad Alan Bass Chicago University of Chicago Press 1981 p 93

31 GELLNER Ernest Postmodernism Reason and Religion London Routledge 1992 p 3532 ADAMS ldquoToward a Theological Understandingrdquo

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

40

Podemos observar consequentemente a contradiccedilatildeo que existe entre o pensamento e a teologia poacutes-moderna (com essa ecircnfase na desconstruccedilatildeo) e os absolutos do teiacutesmo claacutessico especialmente a noccedilatildeo da existecircncia da verda-de absoluta que pode ser percebida por seres racionais mesmo natildeo sendo de forma exaustiva mas pelo menos de forma parcial e ainda assim verdadeira Um artigo por Robert Goizueta professor de teologia do Boston College aborda essa questatildeo com clareza

A desconstruccedilatildeo poacutes-moderna do sujeito e a rejeiccedilatildeo de todas as chamadas me-tanarrativas levam agrave duacutevida sobre a proacutepria possibilidade de se fazer quaisquer declaraccedilotildees normativas Simplificando a verdade eacute frequentemente reduzida a uma questatildeo de um significado ambivalente ou utilitaacuterio a feacute eacute algo que tem significado ou tem utilidade para mim A feacute dos pobres tem significado ou utilidade para eles Ela os auxilia Ela os liberta33

Aleacutem disso essa identificaccedilatildeo do poacutes-modernismo com desconstruccedilatildeo eacute estabelecida e definida pelo pesquisador e historiador Robert Chandler que escreve ldquoO poacutes-modernismo ou a lsquodesconstruccedilatildeorsquo postula que nada eacute neutro ndash observaccedilatildeo linguagem preservaccedilatildeo de registros documentos narra-dores ou escritos Objetividade eacute um mito e valores absolutos natildeo existemrdquo34 Consequentemente o poacutes-modernismo eacute em sua proacutepria essecircncia contraacuterio agrave noccedilatildeo dualiacutestica que contrasta verdade com falsidade certo com errado e assim por diante Obviamente o cristatildeo natildeo eacute dualista no sentido de que existe um Deus regente do universo no qual ele crecirc que rege todas as coisas e natildeo forccedilas sempre opostas que regem impessoalmente os destinos das pessoas No entanto a Biacuteblia expressa que existem sim posiccedilotildees e situaccedilotildees contrastantes em vaacuterias aacutereas Eacute interessante observarmos como o poacutes-modernismo perturba ateacute o pensamento oriental dualista (e equivocado) ao extremo mas que reco-nhece alguns contrastes inevitaacuteveis da realidade que natildeo se encaixam na visatildeo amorfa do poacutes-modernismo Nesse sentido sem que tenhamos que concordar com tudo um partidaacuterio da filosofia oriental Balbinder Singh Bhogal ex--professor visitante da University of Derby (atualmente um escritor proliacutefico e membro do corpo docente da Hofstra University)35 expressa sua criacutetica ao poacutes-modernismo assim

33 GOIZUETTA Robert God First Loved Us Reflections on the Theological Grounds of Liberation Disponiacutevel em httpswwwlivedtheologyorgwp-contentuploads20150520120424PPR01-Roberto--S-Goizueta-God-First-Loved-Us-Reflections-on-the-Theological-Grounds-of-Liberationpdf p 8 Acesso em 6 maio 2021

34 CHANDLER Robert J Resenha de ldquoContested Eden California Before the Gold Rushrdquo GU-TIERREZ Ramon e ORSI Richard (Orgs) The Journal of San Diego History 44 n 4 (outono 1998) p 44 (4) Disponiacutevel em httpssandiegohistoryorgjournal1998octobereden Acesso em 6 maio 2021

35 Long Island NY Ver httpshofstraacademiaeduBalbinderSinghBhogal Acesso em 6 maio 2021

41

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

O pensamento poacutes-moderno desafia dualidades hieraacuterquicas e herdadas e revela uma nova forma de pensar que emerge desses dualismos como um processo natural de desconstruccedilatildeo-construccedilatildeo-desconstruccedilatildeo Esse pensamento obscuro esmaece os limites de um dualismo que existe agraves claras como o sagrado e o secular luz e trevas o bem e o mal certo e errado Deus e o homem o infinito e o finito o numenal e o fenomenal o espiacuterito e a mateacuteria deus-pai e matildee terra36

David Griffin na introduccedilatildeo ao seu trabalho de muacuteltiplos autores identi-fica um ramo do poacutes-modernismo que para no estaacutegio da desconstruccedilatildeo sendo assim harmocircnico com suas premissas ndash se o pluralismo e a diversidade eacute o que conta por que reconstruir Ele aponta para o pensamento desconstrutivo ou eliminador do poacutes-modernismo ldquoO poacutes-modernismo filosoacutefico eacute inspirado de diversas formas pelo pragmatismo e fisicalismo por Ludwig Wittgenstein Martin Heidegger e Jacques Derrida e outros pensadores franceses recentesrdquo37

No entanto no final das contas em um sistema onde a desconstruccedilatildeo reina descontroladamente segue-se a reconstruccedilatildeo de uma forma subjetiva sem padrotildees que foram igualmente desconstruiacutedos com o restante A recons-truccedilatildeo ocorreraacute na linguagem nas artes no pensamento teoloacutegico e religioso com cada pessoa construindo sua proacutepria imagem da realidade de acordo com a apreensatildeo subjetiva das realidades ndash o que quer que sejam estas Thomas Hopko presidente do St Vladimir Seminary escreveu pertinentemente sobre essa condiccedilatildeo na qual encontramos o mundo poacutes-moderno

Em uma sociedade moderna e secularizada a linguagem as estruturas os siacutembolos e rituais claacutessicos e o cristianismo biacuteblico permanecem enquanto os seus conteuacutedos e significados satildeo radicalmente alterados Na desconstruccedilatildeo poacutes-moderna da cosmovisatildeo moderna ndash por intermeacutedio de um existencialis-mo radical cultural e pessoal pela revoluccedilatildeo sexual pela busca incessante do miacutestico pela politizaccedilatildeo da teologia e da eacutetica e pela explosatildeo do hedonismo e avareza espiritual e material ndash a linguagem tradicional as estruturas os siacutembolos e rituais satildeo recriados ao ponto em que os seus conteuacutedos e significados originais natildeo mais existem mas satildeo substituiacutedos por uma completa nova reconstruccedilatildeo da realidade38

36 BHOGAL Balbinder Singh (1995) ldquoGlimpses of Postmodernism (Deconstruction) and Reli-gionrdquo Palestra proferida no School of Oriental and African Studies Post-Graduate Seminar nov 1995 Disponiacutevel em httpwwwmultifaithnetorgmfnopenaccessresearchonlineseminarbbglimpseshtm Acesso em 16 mar 2003

37 GRIFFIN David Ray BEARDSLEE William A HOLLAND Joe Varieties of Postmodern Theology Albany State of New York University Press 1989 p xii

38 HOPKO Thomas ldquoOrthodoxy in Pluralistic Post-Modern Societiesrdquo The Ecumenical Review 51 p 364-371 Disponiacutevel em httpsdoiorg101111j1758-66231999tb00404x Acesso em 6 maio 2021

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

42

Assim temos visto esse tema recorrente de desconstruccedilatildeoreconstruccedilatildeo nesse periacuteodo contemporacircneo de desenvolvimento teoloacutegico desde a Teologia da Esperanccedila em diante e a sua forte presenccedila no pensamento filosoacutefico e teoloacutegico poacutes-moderno Aonde isso levaraacute quando tratamos dessas influecircncias no campo da educaccedilatildeo

4 O QUE ACONTECE QUANDO NAtildeO HAacute NADA A DESCONSTRUIR

E se existir uma aacuterea da realidade onde natildeo haacute estrutura de pensamento para desconstruir Se ela existe entatildeo natildeo haacute que se falar sobre reconstruir algo que natildeo foi desconstruiacutedo A aacuterea de educaccedilatildeo mais especificamente a educaccedilatildeo das crianccedilas se apresenta para o enquadramento nesta categoria Natildeo me refiro aos processos metodoloacutegicos da educaccedilatildeo pois nesses certamente a mente poacutes-moderna encontraraacute amplo campo para desconstruccedilatildeo e reconstru-ccedilatildeo Faccedilo referecircncia agrave aacuterea cognitiva da crianccedila o que ocorre na sua mente nos primeiros estaacutegios de aprendizado em sua existecircncia como o conhecimento chega ateacute ela O que na realidade eacute conhecimento Eacute algo que eacute transmitido comunicado e ao qual ela eacute conduzida e levada a assimilar

Os trabalhos escritos nesta aacuterea tecircm mantido paridade com o pensamento contemporacircneo e com desenvolvimentos teoloacutegicos especialmente neste pe-riacuteodo poacutes-moderno onde se questiona a realidade de tudo (ou o conhecimento concreto) exceto as apreensotildees subjetivas na mente das pessoas Tratando da mente de crianccedilas admitem que natildeo haacute nada para desconstruir mas sim para construir No entanto nessa abordagem o conhecimento natildeo eacute e nem deve ser transmitido ndash de alguma forma indescritiacutevel esse conhecimento vai brotar ou ser construiacutedo autonomamente Tentativas de transmissatildeo a algueacutem de dados da realidade como em processos de ensino-aprendizagem tradicionais resultam tatildeo somente em distorccedilatildeo da realidade subjetiva dessa pessoa que deve ser facilitada tatildeo somente para caminhar por um processo de construccedilatildeo de sua proacutepria compreensatildeo do mundo e da vida E assim nasce o construtivismo

41 A ferramenta adequada do poacutes-modernismoO Construtivismo ainda que plantado na primeira metade do seacuteculo 20

tomou forma desenvolveu-se e popularizou-se na segunda metade daquele seacute-culo Cresceu portanto paralelamente e em sobreposiccedilatildeo ao poacutes-modernismo Podemos afirmar que o construtivismo se encaixa perfeitamente no subjeti-vismo de pensadores poacutes-modernos de tal forma a poder funcionar como a ferramenta educacional do poacutes-modernismo Dennis McCallum conhecido conferencista e autor sobre esta filosofia coloca a conexatildeo da seguinte maneira

O construtivismo eacute a teoria de aprendizagem principal subjacente agrave educaccedilatildeo poacutes-moderna De acordo com construtivistas o conhecimento natildeo eacute descoberto

43

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

como afirmam os modernistas Todo conhecimento eacute inventado ou ldquoconstruiacutedordquo na mente do aprendiz Natildeo poderia ser de outra maneira dizem os poacutes-moder-nistas porque as ideias que os professores ensinam e os alunos aprendem natildeo correspondem a qualquer realidade objetiva Satildeo tatildeo somente construccedilotildees hu-manas Conhecimento ideias e linguagem satildeo criados por pessoas natildeo porque sejam ldquoverdaderdquo mas porque tecircm utilidade39

Jaacute haacute algumas deacutecadas o construtivismo tem sido ldquovendidordquo como uma metodologia de ensino mas ele se apresenta na realidade como um sistema filosoacutefico do processo de ensino-aprendizagem chegando adicionalmente a postular teorias sobre a formaccedilatildeo de valores morais e do julgamento do certo e errado na concepccedilatildeo mental das crianccedilas Suas raiacutezes foram fincadas em solo europeu pelo pesquisador Jean Piaget (1896-1980) e suas conclusotildees adota-das amplamente por psicopedagogos A popularizaccedilatildeo na Ameacuterica Latina foi uma consequecircncia inevitaacutevel da influecircncia europeia na aacuterea educacional dessa regiatildeo especialmente no Brasil onde tornou-se o cerne majoritaacuterio do ensino nos cursos de pedagogia de universidades Professores cristatildeos assim treina-dos iludidos pela ideia de que estatildeo apenas aprendendo uma ldquometodologiardquo de vanguarda absorvem pontos cruciais que contradizem a revelaccedilatildeo biacuteblica Via de regra experimentam o sentimento de que ldquoalgo estaacute erradordquo mas tecircm dificuldade em fazer uma anaacutelise depuradora mais profunda que identifique as falhas metafiacutesicas epistemoloacutegicas e teoloacutegicas do construtivismo40

Nos Estados Unidos da Ameacuterica berccedilo de tantas escolas de pensamento na aacuterea educacional o construtivismo tem feito avanccedilos significativos Jaacute em 1999 a revista especializada do campo ldquoEducational Leadershiprdquo devotou um exemplar inteiro agrave ldquosala de aula construtivistardquo no qual vaacuterios artigos relatoacute-

39 MCCALLUM Dennis The Death of Truth What is wrong with Multiculturalism the Rejection of Reason and the New Postmodern Diversity Minneapolis Bethany House 1996 p 99

40 Natildeo eacute a intenccedilatildeo neste artigo fazer uma exposiccedilatildeo e refutaccedilatildeo detalhada do construtivismo O objetivo eacute demonstrar a ligaccedilatildeo do construtivismo com o poacutes-modernismo e os conceitos teoloacutegicos precedentes Sobre o construtivismo em todos os seus aspectos o autor jaacute publicou diversos ensaios e livros aos quais direciona os leitores interessados no aprofundamento e estudo do tema PORTELA NETO F S O que estatildeo ensinando aos nossos filhos Fides Reformata V-1 (2000) p 71-96 PORTELA NETO F S Pensamentos Preliminares Direcionados a uma Pedagogia Redentiva Fides Reformata XIII-2 (2008) p 125-154 PORTELA NETO F S Resgatando o Papel do Professor na Es-cola Confessional como Transmissor de Conhecimento e da Verdade Reflexotildees e Propostas Seminais Fides Reformata XXV-1 (2020) p 63-75 PORTELA NETO F S O que estatildeo ensinando aos nossos filhos uma avaliaccedilatildeo criacutetica da pedagogia contemporacircnea apresentando a resposta da educaccedilatildeo escolar cristatilde Satildeo Joseacute dos Campos Editora Fiel 2012 PORTELA NETO F S ldquoConstrutivismo no Cenaacuterio Brasileirordquo In Fundamentos Biacuteblicos e Filosoacuteficos da Educaccedilatildeo Seacuterie Perspectivas Cristatildes da Educaccedilatildeo Satildeo Paulo ACSI Brasil 2005 PORTELA NETO F S ldquoIssues Faced by Education in the 21st Centuryrdquo Fides Reformata XXVI-1 (2021) PORTELA NETO F S Visatildeo cristatilde sobre educaccedilatildeo escolar Campina Grande PB Visatildeo Cristatilde 2015

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

44

rios e ateacute os colunistas regulares concentraram os textos em uma exposiccedilatildeo elogiosa que destacava a excelecircncia do construtivismo41

Simplificadamente o ldquoconstrutivismo postula que o conhecimento eacute algo que cresce subjetiva e individualmenterdquo ldquoNesse sentido natildeo eacute algo que deve ser ministrado ou transmitido pelo professorrdquo O mestre diferente de antiga-mente deve ser um mero ldquoagente facilitador nesse processo de crescimentordquo cognitivo42

O relacionamento entre o poacutes-modernismo e o construtivismo eacute deixado claro por Dennis McCallum analisando o posicionamento dos poacutes-modernistas quanto ao papel dos professores e agrave questatildeo da verdade

De acordo com os poacutes-modernistas os educadores satildeo facilitadores que abrigam preconceitos e satildeo co-construidores do conhecimento Se toda realidade natildeo existe ldquolaacute forardquo mas somente na mente daqueles que a percebem entatildeo ningueacutem pode reclamar para si o papel de autoridade Todas as versotildees da verdade satildeo meramente criaccedilotildees humanas Educadores ndash quer sejam professores em salas de aula pesquisadores ou autores de livros didaacuteticos ndash natildeo satildeo objetivos nem autoridades legiacutetimas Em vez disso visualizam a educaccedilatildeo partindo de suas proacuteprias perspectivas construiacutedas e cheias de preconceitos Consequentemente natildeo possuem qualquer relacionamento ldquoprivilegiadordquo com a verdade43

42 Incompatibilidades com o conceito biacuteblico da educaccedilatildeoJaacute verificamos que a teologia contemporacircnea nos vaacuterios ramos principais

aqui tratados e o poacutes-modernismo convivem em perfeita e plena harmonia Esse relacionamento eacute possibilitado pela temaacutetica desconstruccedilatildeoreconstruccedilatildeo que costura todas essas correntes de pensamento Nesse solo feacutertil um enten-dimento construtivista no campo educacional se encaixa sem dissonacircncia Mas a preocupaccedilatildeo maior eacute com a educaccedilatildeo escolar cristatilde Muitas vezes o conceito pedagoacutegico de escolas e educadores procura amparo em teologias que teimam em se utilizar de terminologia biacuteblica para destruir as proacuteprias diretrizes das Escrituras Assim terminam confundindo estas escolas e educadores pela suposta ldquocristianizaccedilatildeordquo de conceitos totalmente antagocircnicos ao que a Palavra de Deus ensina sobre a natureza humana a assimilaccedilatildeo cognitiva e a necessi-dade de firmar a praacutetica pedagoacutegica em princiacutepios e valores eternos que dela emanam Tanto pelas premissas poacutes-modernistas como pela dos construtivistas nunca teriacuteamos condiccedilatildeo de saber se a verdade objetiva existe Qualquer dado pode significar uma seacuterie de ldquoverdadesrdquo diferentes dependendo das pessoas que tomam contato com esses dados McCallum elucida ldquoUma visatildeo plena-

41 Educational Leadership 57 n 3 (novembro de 1999)42 PORTELA NETO F S O que estatildeo ensinando aos nossos filhos Fides Reformata V-1 (2000)

p 7243 MCCALLUM The Death of Truth p 99

45

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

mente construtivista e pressuposiccedilotildees metafiacutesicas estaacuteticas satildeo mutuamente excludentesrdquo44

A feacute cristatilde eacute fundamentada e o processo de ensino-aprendizagem cristatildeo deveria ser ordenado na existecircncia de acircncoras metafiacutesicas estaacuteticas Natildeo so-mente Deus eacute transcendente (estaacute aleacutem da realidade fiacutesica) e eacute imutaacutevel mas ele nos lega realidades objetivas a partir de sua pessoa Deus eacute a fonte das coisas reais ele elucida a realidade (Deus imanente) e nele natildeo haacute sombra de mudanccedilas (Tg 117 e Ml 36) A verdade eacute personificada (Jo 146) em Cristo (Deus conosco) e eacute objetivamente relatada nas Escrituras (Jo 177) A ressur-reiccedilatildeo por exemplo eacute realidade objetiva relatada por testemunhas e natildeo um reflexo subjetivo do objeto com a mente ou uma ilusatildeo criada na mente de pessoas alucinadas (1 Co 15)

Em outra faceta o processo pedagoacutegico contemporacircneo tem enaltecido o conceito da educaccedilatildeo disruptiva como ldquouma das palavras-chave do seacuteculo 21rdquo na qual toda praacutetica deve ser questionada e todo paradigma tradicional descar-tado ou desconstruiacutedo ldquorompendo com o estabelecidordquo45 A educaccedilatildeo escolar cristatilde natildeo deve ser refrataacuteria a novas metodologias mas preza e constroacutei em cima de verdades estabelecidas Ela pode reverter transitoriamente o processo mas natildeo romper com ldquoo estabelecidordquo principalmente se este ldquoestabelecidordquo forem conceitos e princiacutepios biacuteblicos A Biacuteblia aponta para a importacircncia de sermos fieacuteis ao corpo de doutrinas (ensinamentos) previamente reveladas ou seja a manutenccedilatildeo da ldquoanalogia da feacuterdquo (Rm 126)

Semelhantemente a ideia contemporacircnea da sala de aula invertida (flipped classroom)46 deve ser utilizada com cuidado por educadores e escolas cristatildes Se falamos de momentos em que os alunos satildeo levados a reverter os papeis em algumas ocasiotildees ou intermitentemente vemos paralelo com as diretrizes de Jesus aos disciacutepulos para que fossem de dois em dois a colocar em praacutetica o que estavam aprendendo (Mc 67) Ou no caso da mulher samaritana que tendo sido ensinada (Jo 47-26) passa a ensinar (Jo 439) No entanto essa metodologia educacional poacutes-moderna postula mais uma vez a desconstru-ccedilatildeo completa das praacuteticas de ensino pois o momento do encontro presencial contempla tatildeo somente discussatildeo dos assuntos reduzindo o papel do professor a um dos pares na classe

44 Ibid45 Publicaccedilatildeo Institucional do Grupo Espanhol Iberdrola sem designaccedilatildeo de autor ldquoUma educaccedilatildeo

disruptiva para enfrentar os desafios do futurordquo Disponiacutevel em httpswwwiberdrolacomtalentoseducacao-disruptiva Acesso em 6 maio 2021

46 Meacutetodo de ensino atraveacutes do qual a loacutegica da organizaccedilatildeo de uma sala de aula eacute invertida por completo Ver CARVALHO Rafael ldquoComo funciona a sala de aula invertidardquo 18 de maio de 2018 Disponiacutevel em httpswwwedoolscomsala-de-aula-invertida Acesso em 6 maio 2021

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

46

CONCLUSAtildeOO pensamento e a teologia poacutes-moderna quando acoplados ao constru-

tivismo na esfera educacional com essa forccedila demolidora de desconstruccedilatildeoreconstruccedilatildeo e uma negaccedilatildeo latente da possibilidade de aquisiccedilatildeo do conhe-cimento do real contrasta com a cosmovisatildeo cristatilde seus princiacutepios e valores extraiacutedos da Biacuteblia Como cristatildeos natildeo devemos temer revisotildees de comporta-mentos procedimentos ou processos desde que as mudanccedilas sejam efetivadas de acordo com padrotildees esquecidos ou negligenciados Na realidade nessas situaccedilotildees devemos ateacute liderar as ldquodesconstruccedilotildeesrdquo A Reforma do Seacuteculo 16 fez exatamente isso Devemos estar sempre alerta para desconstruccedilotildees e recons-truccedilotildees que sejam um fim em si mesmas descartando a sabedoria do passado e os princiacutepios da Palavra de Deus A teologia da Reforma com sua ecircnfase nas Escrituras Sagradas como uacutenica fonte autoritativa e inerrante de conhecimento religioso metafiacutesico e epistemoloacutegico deve se posicionar no centro de todos os esforccedilos intelectuais e pedagoacutegicos de cristatildeos comprometidos com a verdade

ABSTRACTThis article traces the theological development of the 20th century dividing

it into two parts the first half showing the transition from consolidated 19th century liberalism to moderncontemporary theology and the second half the road paved to postmodern theology The author demonstrates that the underlying theme of deconstruction and reconstruction of major tenets with an increasing departure from biblical directives is always present in moderncontemporary theology This is shown especially in five schools of theological thought Theology of Hope Liberation Theology Feminist Theology Process Theology and New Age Theology All these share the postmodern thought and belittle the Bible as the inerrant Word of God At the same time they provide feedback to Postmodern Theology raising doubts about biblical and traditional eternal principles and values Trends that appear in these theological schools of thought are similar to those being experienced in the field of education some of which have profound impact on the Christian teaching-learning pro-cess With its subjective approach to reality postmodernism has subverted key pedagogical concepts has undermined the role of the teacher and has submerged schools in a crisis of authority An appeal is made to have a solid biblical foundation for any philosophy of Christian school education which should be grounded in sound theology

KEYWORDSChristian education Constructivism Contemporary theology Decon-

struction and reconstruction Piaget Postmodernism Postmodern theology Theological liberalism

47

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

ldquoCOR MEUM TIBI OFFERO DOMINE PROMPTE ET SINCERErdquo UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO

SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADAHeber Carlos de Campos Juacutenior

RESUMOEste artigo apresenta a espiritualidade reformada como uma aacuterea ainda

desconhecida em meios populares e acadecircmicos e carente de ser redescoberta O conceito de que essa natildeo eacute uma aacuterea forte entre os reformados somado aos referenciais vagos sobre praacuteticas devocionais tecircm levado muitos a procurar espiritualidades alternativas No intuito de resgatar o aspecto piedoso e de-vocional da tradiccedilatildeo reformada este artigo intenta apresentar uma introduccedilatildeo agrave teologia praacutetica de personagens como Joatildeo Calvino os puritanos ingleses o movimento reformado holandecircs Nadere Reformatie e Jonathan Edwards aleacutem de representantes contemporacircneos da piedade reformada Num segundo momento o artigo apresenta alguns distintivos dessa espiritualidade e conclui apresentando a necessidade de resgatar essa histoacuteria para o movimento refor-mado brasileiro

PALAVRAS-CHAVEEspiritualidade Teologia reformada Joatildeo Calvino Puritanos Nadere

Reformatie Jonathan Edwards

Doutor em Teologia Histoacuterica (PhD Calvin Theological Seminary) Mestre em Teologia His-toacuterica (ThM Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper) professor de Teologia Histoacuterica no CPAJ e de Teologia Sistemaacutetica no Seminaacuterio Rev Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

48

INTRODUCcedilAtildeO PROCURA-SE UMA ESPIRITUALIDADE REFORMADAEspiritualidade eacute uma palavra relativamente recente no vocabulaacuterio

teoloacutegico protestante O estudioso do assunto James Houston1 observou na deacutecada de 1980 que o interesse dos evangeacutelicos pela espiritualidade era novo e o termo ateacute entatildeo natildeo aparecia em dicionaacuterios biacuteblicos ou teoloacutegicos2 Isso natildeo significa que o assunto fosse novo pois no passado eram mais utilizados termos como ldquopiedaderdquo ldquodevoccedilatildeordquo ldquosantidaderdquo ldquoandar com Deusrdquo Ateacute poucas deacutecadas atraacutes espiritualidade era um termo mais associado ao ascetismo de religiosidades orientais ou ao misticismo do monasticismo medieval Alister McGrath observa que o termo moderno ldquoespiritualidaderdquo nasce no contexto catoacutelico do seacuteculo 17 mas recentemente ldquotem recebido grande aceitaccedilatildeo como a maneira preferida de referir-se aos aspectos da praacutetica devocional de uma religiatildeo especificamente as experiecircncias individuais interiores dos cristatildeosrdquo em oposiccedilatildeo agrave religiatildeo meramente intelectual e acadecircmica3

Definir o conceito de espiritualidade eacute desafiador por ser muito abran-gente (o todo da vida cristatilde)4 e por depender dos referenciais teoloacutegicos de cada um A verdade eacute que espiritualidade eacute um guarda-chuva muito amplo com direito a definiccedilotildees vagas ou perigosamente plurais Houston define espiritua-lidade como ldquoo estado de relacionamento profundo com Deusrdquo5 e McGrath define espiritualidade cristatilde como a ldquobusca de uma vida religiosa autecircntica e satisfatoacuteriardquo6 expressotildees que natildeo oferecem paracircmetros claros para a experiecircn-cia de vida cristatilde No entanto o proacuteprio McGrath mostra que a teologia do seacuteculo 20 dissociou o estudo teoloacutegico da espiritualidade criando uma cisatildeo natildeo saudaacutevel entre o conteuacutedo objetivo da feacute e o ato subjetivo da confianccedila7

A verdade eacute que essa dicotomia entre teologia e espiritualidade tem preju-dicado conceituar o que seria uma espiritualidade reformada Afinal ldquoreforma-dordquo tem sido compreendido como sinocircnimo de ldquolinha teoloacutegicardquo natildeo de praacutetica

1 James Houston membro da Sociedade dos Irmatildeos (Plymouth Brethren) sempre se interessou por educaccedilatildeo teoloacutegica voltada para a formaccedilatildeo espiritual dos evangeacutelicos e por isso fundou o Regent College com esse interesse em resgatar a espiritualidade cristatilde ao longo dos seacuteculos MCGRATH Alister J I Packer A Biography Grand Rapids Baker 1997 p 223-231

2 HOUSTON James M ldquoEspiritualidaderdquo In ELWELL Walter A (Org) Enciclopeacutedia Histoacuterico--Teoloacutegica da Igreja Cristatilde Trad Gordon Chown Satildeo Paulo Vida Nova 1992 vol 2 p 60

3 MCGRATH Alister E Uma introduccedilatildeo agrave espiritualidade cristatilde Trad William Lane Satildeo Paulo Vida 2008 p 21 25

4 Para um resumo das complexidades dessa definiccedilatildeo ver a discussatildeo do catoacutelico SHELDRAKE Philip Spirituality A Brief History 2ordf ed Malden MA Wiley-Blackwell 2013 p 3-9

5 HOUSTON ldquoEspiritualidaderdquo p 606 MCGRATH Uma introduccedilatildeo agrave espiritualidade cristatilde p 207 Ibid p 60-62

49

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

cristatilde Popularmente reformado eacute sinocircnimo de ldquocabeccedila granderdquo e ldquocoraccedilatildeo friordquo com pouca ecircnfase em avivamento8 Curiosamente vaacuterios evangeacutelicos simpaacuteticos agrave teologia reformada talvez conseguissem enumerar particularidades da ldquoespiritualidade catoacutelicardquo ou da ldquoespiritualidade pentecostalrdquo mas teriam dificuldade em arrolar os distintivos de uma ldquoespiritualidade reformadardquo Se essa constataccedilatildeo estaacute correta deve-se concluir que essa espiritualidade ou eacute inexistente enquanto tradiccedilatildeo (isto eacute apenas presente em alguns poucos indiviacuteduos) ou eacute desconhecida do puacuteblico

Philip Ryken discordaria de que ela seja inexistente pois ele define o cal-vinista verdadeiro como algueacutem cuja espiritualidade consiste em ter uma mente centrada em Deus um espiacuterito penitente um coraccedilatildeo grato uma vontade sub-missa ao Todo-Poderoso uma vida santa e um propoacutesito de glorificar o Senhor9 Essa eacute a sua tentativa de enumerar as caracteriacutesticas de uma espiritualidade reformada em resposta agravequeles que tem uma visatildeo quanto aos reformados de intransigecircncia em sua militacircncia teoloacutegica Eacute verdade que uma descoberta do calvinismo que se torna beacutelica e quase que exclusivamente cognitiva (ortodoxia sem devoccedilatildeo) natildeo tem ajudado pelo contraacuterio parece reforccedilar a imagem de que o calvinista natildeo eacute piedoso Todavia mesmo para os que discordam dessa visatildeo popular natildeo satildeo muitos que conseguiriam enumerar uma boa histoacuteria resumida da teologia praacutetica entre os reformados

Mesmo o meio acadecircmico natildeo tem facilidade em identificar quais seriam os contornos de uma espiritualidade reformada Supreendentemente por vezes ateacute questiona se de fato existe uma espiritualidade distinta dos reformados O acadecircmico presbiteriano Hughes Oliphant Old numa palestra proferida no iniacutecio da deacutecada de 199010 disse que muitos se surpreenderam quando uma grande coletacircnea sobre os claacutessicos da espiritualidade ocidental quase natildeo incluiu protestantes e os que foram colocados nem representavam bem a es-piritualidade protestante (por exemplo Jacob Boehme os Quakers William Law etc) Ele lamentou que essa lista natildeo tivesse incluiacutedo os salmos metrifi-cados de Clement Marot e Teodoro Beza as cartas de Joatildeo Calvino e Samuel Rutherford a Fiel Narrativa de Jonathan Edwards o diaacuterio de David Brainerd o comentaacuterio devocional de Matthew Henry e os escritos de Richard Baxter dentre outros claacutessicos reformados Isso levou muitos a perguntarem se de

8 Kenneth Stewart comprova que esse preconceito eacute um dos vaacuterios mitos entre os reformados jaacute que haacute uma longa lista de envolvimento de reformados com avivamentos Cf STEWART Kenneth Ten Myths about Calvinism Recovering the Breadth of the Reformed Tradition Downers Grove IL InterVarsity 2011 p 99-120

9 RYKEN Philip Graham ldquoO que eacute um calvinista de verdaderdquo In LUCAS Sean Michael et al (Orgs) Seacuterie Feacute Reformada Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2015 vol 1 p 10-29

10 OLD Hughes Oliphant ldquoWhat is Reformed Spirituality Played Over Again Lightlyrdquo In LEITH J H (Org) Calvin Studies VII John Calvin Studies Davidson NC 1994 p 61-68

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

50

fato existe tal coisa como uma ldquoespiritualidade reformadardquo11 Essa ausecircncia de uma histoacuteria bem contada sobre a piedade reformada levou a um conceito popular negativo sobre o calvinismo

Por conta desse vaacutecuo histoacuterico surgiu ateacute entre pessoas que pertencem a igrejas reformadas uma busca por espiritualidades alternativas Tem havido um movimento de resgate do que eacute antigo como se a modernidade tivesse sufocado a vida piedosa12 O prefaciador brasileiro da obra de Alister McGrath sobre espiritualidade escreve ldquoEacute tempo de deixarmos as teacutecnicas de marke-ting e administraccedilatildeo e voltarmo-nos ao testemunho dos santos e profetas que habitaram o deserto e os mosteiros especialmente entre os seacuteculos VI e XV e conhecer o Deus que estaacute mais interessado em nossos afetos do que em nossos feitos mais atento ao nosso caraacuteter do que aos nossos discursosrdquo13 Kenneth Stewart narra que existe uma onda de livros evangeacutelicos norte-americanos apontando para o monasticismo como o ideal de espiritualidade a ser resga-tado pelos evangeacutelicos No entanto ele mesmo avalia que tem havido uma apropriaccedilatildeo de praacuteticas contemplativas sem discernimento teoloacutegico14 Esse tipo de espiritualidade alternativa por vezes estaacute unido a interesses por certas doutrinas reformadas criando um pluralismo eclesiaacutestico bem diversificado em nossos dias

Essa apropriaccedilatildeo evangeacutelica miacutestica do legado romanista parece nova mas tem elementos bem antigos Michael Horton observa como a valorizaccedilatildeo do interior sobre o exterior do espiacuterito antes que a instituiccedilatildeo eacute tatildeo antigo quanto o gnosticismo cujas pressuposiccedilotildees platocircnicas natildeo foram todas rejeitadas pela igreja15 Na Idade Meacutedia o dualismo interior-exterior levou a vaacuterios movimen-tos miacutesticos de desprezo da igreja institucionalizada (pregaccedilatildeo sacramentos disciplina) em favor de disciplinas espirituais privadas Isso foi apropriado natildeo soacute por movimentos religiosos como os anabatistas entusiastas (ldquoDeus dentrordquo) mas ateacute de modo ainda mais influente nas filosofias iluministas ldquoSeja conce-bida em termos da razatildeo interior (Descartes) lsquoda lei moral interiorrsquo (Kant) ou do lsquosentimento piedosorsquo (Schleiermacher) a modernidade fez ouvidos moucos

11 OLD ldquoWhat is Reformed Spiritualityrdquo p 6112 Robert Webber foi um dos que defenderam a necessidade de um resgate da tradiccedilatildeo para promo-

ver uma mistura de antigo e poacutes-moderno em vaacuterias aacutereas da teologia inclusive na espiritualidade Cf WEBBER Robert Ancient-Future Faith Rethinking Evangelicalism for a Postmodern World Grand Rapids Baker 1999 p 117-138

13 Osmar Ludovico da Silva ldquoPrefaacutecio agrave ediccedilatildeo brasileirardquo In MCGRATH Uma introduccedilatildeo agrave espiritualidade cristatilde p 12

14 STEWART Kenneth J In Search of Ancient Roots The Christian Path and the Evangelical Identity Crisis Downers Grove IL InterVarsity 2017 p 173-186

15 HORTON Michael A Grande Comissatildeo O resgate da estrateacutegia divina para o discipulado Trad Odayr Olivetti Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2014 p 287

51

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

para toda e qualquer autoridade externardquo16 Isso se vecirc entre evangeacutelicos como o quaker Richard Foster o qual natildeo inclui nas disciplinas espirituais os meios de graccedila (pregaccedilatildeo e sacramentos) ordenados por Cristo enquanto trata como essenciais meacutetodos para a piedade pessoal que natildeo satildeo ordenados na Escritura (por exemplo simplicidade e celebraccedilatildeo)17 Se conectarmos o misticismo antigo com representantes atuais da espiritualidade individualista podemos concluir que o movimento emergente e o de desigrejados natildeo eacute nada poacutes-moderno mas totalmente moderno

A dicotomia entre teologia e espiritualidade explica a falta de criteacuterio com o qual muitos tem se apropriado de outras espiritualidades Richard Foster eacute um dos grandes mentores de espiritualidade no mundo evangeacutelico atual Ele eacute um exemplo dessa apropriaccedilatildeo indiscriminada da tradiccedilatildeo quando funda uma instituiccedilatildeo (Renovare) cujo objetivo eacute ldquouma visatildeo integral da espiritualidade cristatilderdquo O que se entende por ldquointegralrdquo eacute uma amaacutelgama de seis tradiccedilotildees de espiritualidade (contemplativa de santidade carismaacutetica de justiccedila social evangelical sacramental) num mesmo pacote uacutetil para fomentar a espiritua-lidade do cristatildeo18 Quando se tem esse tipo de referencial vago e plural fica mesmo difiacutecil conhecer o que seria uma espiritualidade reformada

Outro evangeacutelico que enfatiza o interior em detrimento do institucio-nal eacute Dallas Willard que diminui o ldquoevangelho do perdatildeordquo em prol de uma ldquotransformaccedilatildeo interior da almardquo e parafraseia a Grande Comissatildeo de Mateus 28 substituindo os meios de graccedila (Palavra e sacramento) por nossas ativida-des19 Numa entrevista ao perioacutedico Modern Reformation Willard enfatizou disciplinas espirituais como ldquosolitude e silecircnciordquo e uma ecircnfase muito maior na vida cristatilde individual do que coletiva e terminou o texto menosprezando a importacircncia dos meios de graccedila como a pregaccedilatildeo e os sacramentos20 Esse tipo de espiritualidade comum entre evangeacutelicos tem que nos preocupar em tempos atuais quando a igreja tem perdido referenciais fiacutesicos e congregacionais onde uma visatildeo virtual e passiva de culto tem proliferado

Diante desse cenaacuterio evangeacutelico pode-se deduzir erroneamente que natildeo tem havido vozes procurando ensinar acerca de espiritualidade a partir da tra-diccedilatildeo reformada Na verdade existe um esforccedilo contemporacircneo para resgatar

16 HORTON A Grande Comissatildeo p 28917 Ibid p 29018 FOSTER Richard Celebraccedilatildeo da disciplina o caminho do crescimento espiritual 2ordf ed Satildeo

Paulo Vida 2007 p 303-304 Cf FOSTER Richard J e GRIFFIN Emilie Celebrando as 12 disciplinas espirituais textos claacutessicos sobre as disciplinas interiores exteriores e comunitaacuterias Trad Elizabeth Gomes Satildeo Paulo Vida 2010

19 HORTON A Grande Comissatildeo p 290-29120 ldquoSpiritual Disciplines and Means of Grace Contrast or Continuum QampA with Dallas Willardrdquo

Modern Reformation vol 22 n 4 (jul-ago 2013) p 23-25

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

52

uma identidade reformada de piedade por parte de autores de teologia histoacuterica e praacutetica tanto do meio acadecircmico como pastores e pensadores com uma lente reformada Alguns deles se especializaram em escritos de formaccedilatildeo espiritual e devoccedilatildeo como Jerry Bridges21 Donald Whitney22 e Tom Schwanda23 Aleacutem destes podemos mencionar teoacutelogos que natildeo satildeo conhecidos por essa aacuterea da teologia mas que tem exercido enorme influecircncia sobre a percepccedilatildeo reformada de espiritualidade como eacute o caso de Francis Schaeffer24 John Piper25 Michael Haykin26 e Joel Beeke27 Eacute certo que outros nomes poderiam ser citados poreacutem estes satildeo suficientes para ilustrar a tentativa de resgate de parte da tradiccedilatildeo reformada ainda relativamente desconhecida

Ainda que jaacute tenhamos alguma literatura em portuguecircs a espiritualidade reformada parece ser uma descoberta que ainda precisa ser feita em nosso paiacutes O crescimento do interesse pela teologia reformada natildeo tem sido ampla-mente marcado pela descoberta de sua espiritualidade Como este eacute um artigo histoacuterico-teoloacutegico seu intento eacute fazer um resgate introdutoacuterio desse legado e mostrar que a espiritualidade reformada existe desde as origens do movimen-to Na primeira parte do artigo seratildeo apresentados alguns representantes da tradiccedilatildeo em seu interesse por promover devoccedilatildeo de forma solidamente teoloacute-gica Na segunda parte seratildeo destacadas algumas caracteriacutesticas tipicamente reformadas a fim de se concluir que sua espiritualidade eacute de fato resultado de sua visatildeo teoloacutegica

21 Jerry Bridges (1929-2016) sempre esteve associado a uma entidade paraeclesiaacutestica (Naviga-tors) poreacutem suas ecircnfases teoloacutegicas mais marcantes foram obras da tradiccedilatildeo reformada das quais vaacuterias jaacute foram traduzidas para o portuguecircs Para um resumo de suas origens e seu legado ver httpswwwthegospelcoalitionorgblogsjustin-taylorjerry-bridges-1929-2016 Acesso em 4 jun 2021

22 Cf WHITNEY Donald Disciplinas espirituais para a vida cristatilde Satildeo Paulo Batista Regular 2009 Para mais recursos de Don Whitney ver httpsbiblicalspiritualityorg Acesso em 4 jun 2021

23 Cf SCHWANDA Tom Soul Recreation The Contemplative-Mystical Piety of Puritanism Eugene OR Wipf amp Stock 2012

24 Cf SCHAEFFER Francis A Verdadeira espiritualidade 2ordf ed Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2018 EDGAR William Francis Schaeffer e a vida cristatilde a espiritualidade contracultural Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2018

25 John Piper eacute muito conhecido do puacuteblico brasileiro e natildeo se faz necessaacuterio mencionar os vaacuterios livros de sua autoria que jaacute foram traduzidos para o portuguecircs Todavia o destaque ao seu nome se daacute pelo fato de sua principal ecircnfase sempre girar em torno da vida cristatilde da piedade e do seu interesse por tantos personagens histoacutericos que marcaram a tradiccedilatildeo reformada especialmente Jonathan Edwards

26 Michael Haykin natildeo soacute eacute estudioso da patriacutestica e da histoacuteria da ala batista reformada mas tem escrito livros que mostram o lado devocional e praacutetico da espiritualidade reformada Cf HAYKIN Michael The God Who Draws Near An Introduction to Biblical Spirituality Webster NY Evangelical Press 2007 8 mulheres de feacute Satildeo Joseacute dos Campos Fiel 2017

27 BEEKE Joel Espiritualidade reformada uma teologia praacutetica para a devoccedilatildeo a Deus Trad Valter Graciano Martins Satildeo Joseacute dos Campos Fiel 2014 BEEKE Joel R e PEDERSON Randall J Paixatildeo pela pureza Satildeo Paulo PES 2011

53

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

1 REPRESENTANTES HISTOacuteRICOS DE UMA ESPIRITUALIDADE REFORMADA

Hughes Oliphant Old afirma que a Reforma do seacuteculo 16 reformou a es-piritualidade assim como o fez com a teologia Se por seacuteculos a espiritualidade havia sido enclausurada atraacutes das paredes dos mosteiros separada da sujeira das atividades cotidianas deste mundo a espiritualidade protestante articulou a vida cristatilde ldquocom a famiacutelia laacute fora nos campos na oficina na cozinha ou no comeacuterciordquo28 De fato essa eacute a santificaccedilatildeo da vida comum (cf Ef 518-69) Em contraste com o monasticismo medieval a piedade reformada entendia a reclusatildeo e meditaccedilatildeo moderaccedilatildeo e preocupaccedilatildeo com a eternidade mas seu ascetismo era apenas espiritual29 Arie de Reuver diz que enquanto o monas-ticismo fugia do mundo com janelas fechadas para uma espiritualidade de solidatildeo os reformados abriram suas janelas para o barulho da rua para uma espiritualidade de solidariedade30 Alguns exemplos da histoacuteria reformada se-ratildeo vistos de forma panoracircmica nesta seccedilatildeo alguns mais conhecidos e outros menos conhecidos apenas com o intuito de mostrar que essa tradiccedilatildeo tem uma longa histoacuteria de piedade

A pesquisa de autores apresentados no paraacutegrafo anterior revela que os representantes histoacutericos da espiritualidade reformada seratildeo apresentados na maneira como interagem com o restante da tradiccedilatildeo Isto eacute ao inveacutes de apre-sentar apenas a piedade desses teoacutelogos num vaacutecuo histoacuterico haveraacute maior preocupaccedilatildeo em destacar como eles lidaram com a devoccedilatildeo cristatilde ao seu redor e como se apropriaram da tradiccedilatildeo cristatilde de piedade de forma criteriosa segundo o filtro de suas convicccedilotildees teoloacutegicas Tal ecircnfase demonstraraacute primeiramente a catolicidade de nossa feacute e praacutetica provando que os reformados natildeo soacute liam os gigantes da patriacutestica e do medievo mas se apropriavam de vaacuterios aspectos dessas expressotildees histoacutericas do cristianismo Os reformados se apropriaram natildeo soacute da teologia de gigantes como Agostinho mas inclusive da espiritualidade de autores como Bernardo de Claraval e Tomaacutes agrave Kempis os dois pietistas medievais mais citados entre os reformados holandeses31 Em complemento agrave catolicidade da espiritualidade a ecircnfase desta seccedilatildeo mostraraacute em segundo lugar que a apropriaccedilatildeo da tradiccedilatildeo foi cautelosa e condizente com a feacute reformada Este eacute possivelmente o ponto mais importante desta seccedilatildeo

Arie de Reuver resume a diferenccedila entre o misticismo medieval e a espiri-tualidade dos reformadores agrave medida que interagiram com essa teologia miacutestica

28 OLD ldquoWhat is Reformed Spiritualityrdquo p 6129 DE REUVER Arie Sweet Communion Trajectories of Spirituality from the Middle Ages

through the Further Reformation Grand Rapids Baker 2007 p 10130 Ibid31 Cf DE REUVER Sweet Communion

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

54

A rejeiccedilatildeo do misticismo pelos reformadores envolveu somente certa forma dele Essa forma incluiacutea em primeiro lugar um misticismo que funcionava como uma uniatildeo experimental na qual a fronteira entre Deus e a humanidade era obliterada Ela incluiacutea em segundo lugar um misticismo que era prezado e praticado como uma condiccedilatildeo preacutevia meritoacuteria para a salvaccedilatildeo que ignorava a graccedila Ela incluiacutea em terceiro lugar um misticismo restrito a observacircncias monaacutesticas Em quarto lugar ela envolvia um misticismo que frustrava o equi-liacutebrio entre feacute e amor prejudicando a feacute32

Esses quatro pontos levantados na citaccedilatildeo acima ajudam a delimitar o que da espiritualidade medieval foi aceito pelos reformadores e o que foi descartado Eacute especialmente importante destacar o quarto e uacuteltimo ponto pois revela mais imitatio Christi do que unio Christi entre os miacutesticos medievais Os reformado-res iratildeo lutar por esse equiliacutebrio entre feacute e amor perdido na teologia medieval

O mesmo tipo de filtro da tradiccedilatildeo aparece na forma como os reformados holandeses Willem Teellinck (1579-1629) e Wilhelmus agrave Brakel (1635-1711) interagiram com o miacutestico medieval Tomaacutes agrave Kempis (c 1379-1471) Teellinck tem apreccedilo pela obra de Kempis A Imitaccedilatildeo de Cristo e a cita vaacuterias vezes em seus escritos embora reconheccedila imperfeiccedilotildees em sua espiritualidade Teellinck procura transpor a forma e o sabor de boa parte da literatura devocional preacute--Reforma para um contexto reformado Afinal muitas dessas obras contecircm trecircs erros a ilusatildeo da perfeiccedilatildeo justificaccedilatildeo em conjunto com as boas obras e desvalorizaccedilatildeo da Escritura33 Brakel tambeacutem considera A Imitaccedilatildeo de Cristo de Kempis um excelente tratado mas observa como Kempis teve pouco a dizer ldquosobre o Senhor Jesus como o resgate e a justiccedila dos pecadores ndash sobre como ele por uma feacute verdadeira deve ser usado para a justificaccedilatildeo e aproximaccedilatildeo de Deus praticando a verdadeira santidade como algo originado nele e em nossa uniatildeo com elerdquo34 O que o reformado Brakel quer dizer eacute que o escritor medieval apresentou alguns oacutetimos aspectos de vida cristatilde mas sem o funda-mento objetivo dessa espiritualidade isto eacute ele observa que haacute uma proposta de discipulado (inclui carregar a cruz humildade autoexame meditaccedilatildeo etc) sem estar calcado na obra objetiva de Cristo Nas palavras do estudioso Arie de Reuver o Cristo que eacute nosso substituto ficou na sombra do Cristo que nos chama a segui-lo35 Essa preocupaccedilatildeo eacute semelhante agrave de Michael Horton quando diz que o evangelicalismo moderno tem se preocupado mais com o que Cristo faria numa determinada situaccedilatildeo (ldquoEm seus passos o que faria Jesusrdquo) ao inveacutes do que Cristo fez por vocecirc isto eacute mais lei do que evangelho (espiritualidade

32 Ibid p 2233 Ibid p 112-11334 BRAKEL Wilhelmus agrave The Christianrsquos Reasonable Service Grand Rapids Reformation

Heritage Books 1992 vol 2 p 64135 DE REUVER Sweet Communion p 99

55

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

moralista)36 Esse eacute o tipo de discernimento do qual tanto carecem os evangeacute-licos que se simpatizam com aspectos da tradiccedilatildeo reformada

Tendo feito um panorama da forma como o movimento reformado lidou com a tradiccedilatildeo cristatilde de vida devocional veremos agora alguns representantes histoacutericos do movimento

11 Joatildeo CalvinoA frase latina que daacute tiacutetulo a este artigo (que pode ser traduzida por ldquoMeu

coraccedilatildeo te ofereccedilo Senhor de modo pronto e sincerordquo) eacute encontrada em selos de Genebra logo apoacutes a morte de Calvino e por vezes eacute atribuiacuteda a ele37 Independentemente da fonte exata da frase ela expressa a espiritualidade de um homem que se destaca por sua teologia doutrinaacuteria Eacute preciso resgatar a espiritualidade de quem eacute frequentemente considerado gigante apenas em sua teologia

Muito jaacute foi escrito sobre a espiritualidade de Joatildeo Calvino38 poreacutem alguns traccedilos gerais seratildeo suficientes para demonstrar a riqueza desse reformador no toacutepico da pietas (piedade) a palavra mais utilizada por ele para se referir ao nosso tema O contexto do monasticismo medieval e a resposta de Calvino seratildeo apresentados em primeiro lugar para depois realccedilar o trecho das Insti-tutas mais conhecido por sua ecircnfase em diferentes aspectos da devoccedilatildeo cristatilde

David Steinmetz39 analisa a criacutetica que Calvino faz da instituiccedilatildeo e da ideologia do monasticismo e a situa no contexto medieval de debates sobre o

36 Cf HORTON Michael Cristianismo sem Cristo o evangelho alternativo da igreja atual Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2010

37 Os selos utilizados por Calvino tinham a figura de matildeos segurando um coraccedilatildeo mas sem estarem acompanhados de palavras Para uma breve histoacuteria do selo de Calvino ver o artigo de Barbara Carvill ldquoThe Calvin Sealrdquo em httpscalvineduabouthistorycalvin-sealhtml Acesso em 4 jun 2021 Todavia temos uma frase parecida de Calvino numa carta que escreveu a Guilherme Farel quando relutantemente cedeu ao pedido do amigo para que retornasse a Genebra em 1541 ldquoOfereccedilo meu coraccedilatildeo apresentado como sacrifiacutecio ao Senhorrdquo CALVINO Joatildeo ldquoPara William Farelrdquo In Cartas de Joatildeo Calvino Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2009 p 49

38 Apenas a tiacutetulo de introduccedilatildeo bibliograacutefica ver as seguintes obras RICHARD Lucien Joseph The Spirituality of John Calvin Atlanta John Knox Press 1974 SIMPSON Henry William ldquoPietas in the Institutes of Calvinrdquo In VAN DER WALT Barend Johannes (Org) Our Reformational Tradition A Rich Heritage and Lasting Vocation Potchefstroom Potchefstroom University for Christian Higher Education 1984 p 179-191 BOWSMA William J ldquoThe Spirituality of John Calvinrdquo In RAITT Jill (Org) Christian Spirituality High Middles Ages and Reformation New York Crossroad 1987 p 318-333 GAMBLE Richard C ldquoCalvin and Sixteenth-Century Spirituality Comparison with the Anabaptistsrdquo Calvin Theological Journal vol 31 n 2 (1996) p 335-358 GLEASON Randall C John Calvin and John Owen on Mortification a comparative study on reformed spirituality New York Peter Lang 1995 BEEKE Espiritualidade reformada p 23-60 HORTON Michael Calvino e a vida cristatilde para glorificar a Deus e alegrar-se nele para sempre Trad Jader Santos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2017

39 STEINMETZ David C ldquoCalvin and the Monastic Idealrdquo In STEINMETZ David C Calvin in Context 2 ed Oxford Oxford University Press 2010 p 185-196

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

56

status da vida religiosa Tomaacutes de Aquino (1225-1274) enxerga os monges em um estado de perfeiccedilatildeo pois eles natildeo soacute cumprem os mandamentos biacuteblicos (obrigaccedilatildeo de todo cristatildeo) mas tambeacutem os conselhos evangeacutelicos (celibato e voto de pobreza) Portanto aqueles que fazem parte das ordens mendicantes estatildeo em vantagem na busca da santidade pois suas obras tecircm maior valor meritoacuterio Depois de sintetizar as criacuteticas medievais ao movimento monaacutestico por parte de Jean Gerson (1363-1429) e Johann Pupper von Goch (1400-1475) Steinmetz resume a criacutetica de Calvino de que o movimento eacute cismaacutetico pois cria uma dicotomia entre os monges e o resto da igreja quando de fato Cristo estabeleceu uma regra de vida com mandamentos e conselhos para todos os cristatildeos Calvino tambeacutem confronta o celibato como uma lei para todo cleacuteri-go concluindo que o voto monaacutestico pode ser dissolvido pois Deus natildeo nos prende a votos iliacutecitos40 Acima de tudo Calvino advogava a unidade cristatilde e o estado de perfeiccedilatildeo como sendo o estado de todo cristatildeo41

Eacute lamentaacutevel que as Institutas tenham ganhado um caraacuteter mais dogmaacutetico na histoacuteria e tenham sido negligenciadas como um livro catequeacutetico e portanto para a vida cristatilde comum Nela Calvino considera a piedade como a ldquoreverecircncia unida ao amor por Deusrdquo induzida pelo ldquoconhecimento de seus benefiacuteciosrdquo42 A raiz dessa piedade eacute a uniatildeo miacutestica com Cristo uma doutrina que permeia as suas obras e que permite que tenhamos ldquocomunhatildeordquo com Cristo e ldquopartici-paccedilatildeordquo nos seus benefiacutecios43 A doutrina da justificaccedilatildeo eacute o solo de onde brota a piedade e a santificaccedilatildeo eacute o contiacutenuo remodelar do Espiacuterito consagrando-nos a Deus Joel Beeke destaca as dimensotildees eclesioloacutegicas da piedade de Calvino quando fala da igreja da palavra dos sacramentos e do salteacuterio44 Quanto agraves dimensotildees praacuteticas de sua piedade Beeke destaca a importacircncia da oraccedilatildeo (o segundo capiacutetulo mais longo das Institutas) depois aborda o arrependimento e entatildeo dedica o restante do tempo agraves Institutas III6-1045

Esse trecho das Institutas eacute tatildeo significativo que desde 1550 ele foi pu-blicado separadamente vaacuterias vezes sob o tiacutetulo O Livreto Dourado da Vida Cristatilde uma espeacutecie de resumo da piedade calvinista Nesse trecho Calvino fala de abnegaccedilatildeo carregar a cruz e frugalidade na vida presente por ter em mente a vida futura Calvino introduz essa seccedilatildeo das Institutas dizendo que o seu propoacutesito eacute mostrar ao homem de Deus como ele pode direcionar a sua trajetoacuteria para uma vida ordeira e apresentar brevemente algumas regras para

40 STEINMETZ ldquoCalvin and the Monastic Idealrdquo p 192-19341 Cf CALVIN John The Institutes of the Christian Religion Philadelphia The Westminster

Press 1960 IVxiii42 CALVIN Institutes of the Christian Religion Iii143 BEEKE Espiritualidade reformada p 27-2944 Ibid p 33-4845 Ibid p 48-56

57

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

determinar as suas tarefas46 Essa instruccedilatildeo apresenta uma eacutetica que envolve tanto virtudes como regras pois fala do amor pela justiccedila que eacute infundido em nossos coraccedilotildees mas tambeacutem de uma regra que natildeo nos deixa desviar em nosso zelo pela justiccedila47 No capiacutetulo sobre abnegaccedilatildeo Calvino assevera que natildeo somos nossos mas vivemos e morremos para a gloacuteria de Deus48 explica o conceito de autonegaccedilatildeo conforme Tito 249 e a apresenta nas relaccedilotildees com o proacuteximo (marcadas por humildade espiacuterito de serviccedilo e amor sincero)50 e na relaccedilatildeo com Deus51 No capiacutetulo sobre carregar a cruz Calvino demonstra que a nossa cruz nutre esperanccedila nos treina em paciecircncia e obediecircncia e trata medicinalmente de nossa carne rebelde52 ao mesmo tempo que discorre sobre como suportar o sofrimento em distinccedilatildeo do espiacuterito estoico53 No capiacutetulo 9 do livro 3 Calvino fala de como a vida presente eacute motivo de gratidatildeo na medida que experimentamos a doccedilura da generosidade divina e almejamos sua plena revelaccedilatildeo54 Calvino ensina a desejar deixar esta vida somente na medida em que ela nos prende ao pecado e reprende severamente aqueles que se deixam vencer pelo medo da morte55 No uacuteltimo capiacutetulo dessa seccedilatildeo Calvino ensina como viver esta vida piedosamente atraveacutes do uso adequado das daacutedivas divi-nas do princiacutepio da frugalidade e da vocaccedilatildeo que Deus concedeu a cada um56

46 CALVIN Institutes of the Christian Religion IIIvi147 Ibid IIIvi248 Ibid IIIvii1 Joel Beeke comenta ldquoa abnegaccedilatildeo natildeo eacute centrada no ego como se dava com

frequecircncia no monasticismo medieval e sim centrada em Deus Nosso maior inimigo natildeo eacute o diabo nem o mundo e sim noacutes mesmosrdquo BEEKE Espiritualidade reformada p 53

49 CALVIN Institutes of the Christian Religion IIIvii350 Ibid IIIvii4-751 Ibid IIIvii8-10 Ronald Wallace julga que os toacutepicos de carregar a cruz e autonegaccedilatildeo estatildeo

claramente em continuidade com a obra de Tomaacutes agrave Kempis Todavia Wallace faz uma distinccedilatildeo entre o misticismo medieval e a piedade de Calvino ldquoEntretanto no ensino dos miacutesticos medievais o chamado para a negaccedilatildeo de si mesmo era frequentemente considerado uma obra de iniciativa humana merecendo recompensa e resposta de Deus Calvino todavia sempre considera nosso sacrifiacutecio de negaccedilatildeo de noacutes mesmos como possiacutevel apenas mediante a graccedila de Deus em Cristordquo WALLACE Ronald Calvino Genebra e a Reforma Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2003 p 160

52 CALVIN Institutes of the Christian Religion IIIviii3-5 Beeke comenta ldquoEnquanto a abne-gaccedilatildeo focaliza a conformidade interior com Cristo o levar a cruz se centra na externa semelhanccedila com Cristordquo BEEKE Espiritualidade Reformada p 54

53 CALVIN Institutes of the Christian Religion IIIviii9-1154 Ibid IIIix355 Ibid IIIix4-556 Ibid IIIx2 5-6 Beeke comenta ldquoCalvino natildeo era asceta ele desfrutava a boa literatura

o bom alimento e as belezas da natureza No entanto rejeitou todas as formas do excesso terreno O crente eacute chamado agrave moderaccedilatildeo de Cristo a qual inclui modeacutestia prudecircncia abstenccedilatildeo de ostentaccedilatildeo e o contentamento com nossa sorte pois eacute a esperanccedila da vida por vir que nos fornece o propoacutesito e o desfrute de nossa presente vidardquo BEEKE Espiritualidade reformada p 55-56

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

58

12 Os puritanos inglesesFalar resumidamente da piedade puritana das Ilhas Britacircnicas nos seacuteculos

16 e 17 eacute quase impossiacutevel jaacute que a literatura que aborda o movimento eacute quase toda voltada para a sua devoccedilatildeo multifacetada Ainda que os puritanos tenham se mostrado excelentes em sua teologia eacute possiacutevel argumentar que o movimento puritano eacute prioritariamente um movimento de espiritualidade reformada na medida em que seus adeptos visavam purificar a Igreja da Inglaterra de suas imperfeiccedilotildees ldquopapistasrdquo Richard Lovelace traccedila um panorama da literatura devocional inglesa no iniacutecio do seacuteculo 17 como uma criacutetica agrave tradiccedilatildeo catoacutelica romana em sua origem e esboccedila a anatomia da piedade puritana composta de marcas de uma verdadeira conversatildeo vida de santidade crescimento em piedade e percepccedilatildeo da astuacutecia de Satanaacutes os meios de graccedila o amor pelo proacuteximo e a comunhatildeo com Deus57 Um exemplo dessa literatura explorado por Lovelace eacute o claacutessico de Lewis Bayly (c 1575-1631) A Praacutetica da Piedade que se tornou uma referecircncia de literatura devocional jaacute no seacuteculo 17 sendo reimpresso em dezenas e dezenas de novas ediccedilotildees

Em nosso idioma a espiritualidade dos puritanos eacute bem explorada em livros de J I Packer58 Leland Ryken59 e Joel Beeke Packer por exemplo apre-senta um panorama dos escritos praacuteticos de puritanos ingleses como Richard Greenham William Perkins mas principalmente Richard Baxter e observa tal literatura como sendo popular no sentido de ser simples mas certamente natildeo no sentido de ser teologicamente inepta60 Packer observa cinco qualida-des nesses escritos eles revelam os puritanos como verdadeiros meacutedicos da alma como expositores da Escritura que dirigiam seu ensino agraves consciecircncias e aos afetos dos ouvintes como educadores da mente como inculcadores da verdade e como homens espirituais61 Em sua exposiccedilatildeo da espiritualidade de John Owen Packer explora natildeo somente a santificaccedilatildeo nas trecircs obras de Owen que falam de luta contra o pecado mas analisa principalmente a sua obra Co-munhatildeo com Deus Packer diz que nossa geraccedilatildeo tende a pensar na comunhatildeo com Deus de modo subjetivo nossa consciente experiecircncia com Deus mas os puritanos pensavam nessa comunhatildeo de modo objetivo na aproximaccedilatildeo divina a noacutes ldquoIsso livrou-os do perigo do falso misticismo que tem poluiacutedo

57 LOVELACE Richard C ldquoPuritan Spirituality The Search for a Rightly Reformed Churchrdquo In DUPREacute Louis e SALIERS Don E (Orgs) Christian Spirituality Post-Reformation and Modern New York Crossroad 1989 p 294-323

58 PACKER J I Entre os gigantes de Deus uma visatildeo puritana da vida cristatilde Satildeo Joseacute dos Campos Fiel 1996

59 RYKEN Leland Santos no mundo os puritanos como realmente eram 2 ed Satildeo Joseacute dos Campos Fiel 2013

60 PACKER Entre os gigantes de Deus p 6861 Ibid p 69-84

59

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

muito da suposta devoccedilatildeo em tempos recentesrdquo diz Packer O contexto e a causa da comunhatildeo ldquoeacute a eficaz comunhatildeo de Deus conosco transmitindo-nos vida a primeira coisa sempre deve ser concebida como uma consequecircncia ou mesmo um aspecto da uacuteltimardquo62

Embora por vezes seja alvo de caricatura ou criacutetica63 a espiritualidade dos puritanos eacute uma das grandes contribuiccedilotildees desse movimento agrave espiritualidade de nossos dias Haacute temas interessantiacutessimos como a questatildeo da consciecircncia e a seguranccedila da salvaccedilatildeo (casuiacutestica de William Perkins e William Ames)64 a guarda do dia do Senhor65 e a visatildeo que tinham de culto66 Todavia essa piedade puritana seraacute ilustrada apenas com o conceito que possuiacuteam da meditaccedilatildeo Joel Beeke fala sobre a negligenciada praacutetica da meditaccedilatildeo ressaltando diferentes temas e propoacutesitos meditar sobre Cristo para ter nosso coraccedilatildeo inflamado pelo seu amor meditar no pecado para odiaacute-lo meditar nas verdades de Deus para ser transformado por elas67 e meditar para alargar nossa feacute aumentar santas afeiccedilotildees e fomentar arrependimento e reforma de vida68 Os puritanos falavam de meditaccedilotildees ocasionais (como ser levado a meditar em Deus por causa de algo belo na natureza) e meditaccedilotildees deliberadas habituais a ocasional era alvo de cuidados para natildeo se tornar supersticiosa69 e a meditaccedilatildeo ordinaacuteria sobre a Palavra de Deus era cuidadosamente dissecada para que fosse uma praacutetica constante70 O puritano Thomas Brooks dizia que a meditaccedilatildeo eacute o estocircmago que digere as verdades espirituais o cristatildeo mais forte natildeo eacute o que lecirc mais mas o que medita mais71 Richard Baxter dizia que alguns fieacuteis tecircm anorexia espiritual (natildeo tem apetite por verdades biacuteblicas e nem as digerem) outros tem bulimia espiritual (tem apetite mas natildeo a digerem)72 Que aplicaccedilatildeo adequada para tempos em que algumas pessoas escolhem ouvir uma ldquomaratonardquo de sermotildees na web mas que natildeo sabem digerir

62 Ibid p 221 Packer termina esse capiacutetulo fazendo trecircs contrastes entre a espiritualidade de Owen e a atual (p 233-236) Para um panorama mais abrangente da teologia praacutetica de Owen ver BARRETT Matthew e HAYKIN Michael A G Owen on the Christian Life Living for the Glory of God in Christ Wheaton Crossway 2015

63 James Houston critica a espiritualidade puritana por natildeo ter a vida contemplativa do catolicismo romano a qual em sua opiniatildeo a teria enriquecido HOUSTON ldquoEspiritualidaderdquo p 66

64 Cf PACKER Entre os gigantes de Deus p 115-132 BEEKE Espiritualidade reformada p 229-261 381-402

65 PACKER Entre os gigantes de Deus p 253-26466 Ibid p 265-278 RYKEN Santos no mundo p 193-23267 BEEKE Espiritualidade reformada p 112-113 68 Ibid p 13769 Ibid p 11470 Ibid p 124-13071 Ibid p 13972 Ibid p 135

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

60

13 Nadere ReformatieUm movimento menos conhecido nosso eacute a versatildeo holandesa do purita-

nismo inglecircs a Nadere Reformatie (literalmente ldquoreforma posteriorrdquo ldquorefor-ma que foi mais adianterdquo) um movimento dos seacuteculos 17 e iniacutecio do 18 que demonstrou grande zelo pela piedade aliado agrave teologia reformada Joel Beeke afirma que o crescimento da membresia das igrejas reformadas na Holanda no seacuteculo 17 gerando grande nuacutemero de membros nominais somado agrave influecircncia do puritanismo inglecircs e outras fontes de piedade fez surgir uma geraccedilatildeo de acadecircmicos e pregadores que enfatizaram uma ldquoteologia experimentalrdquo des-tacando a primazia de uma resposta interior a Deus73 A Nadere Reformatie foi um movimento holandecircs que primou por uma ldquorevitalizaccedilatildeo interna da doutrina reformada e uma santificaccedilatildeo radical da vidardquo e junto com o purita-nismo anglo-saxocircnico e o pietismo alematildeo estava em busca da piedade74 O movimento holandecircs com representantes como Willem Teellinck Gisbertus Voetius Johannes Hoornbeeck Wilhelmus agrave Brakel e Herman Witsius entendia que o processo de reforma precisava avanccedilar para acircmbitos pessoais

Jaacute foi mencionado neste artigo como os reformados holandeses procu-raram articular uma espiritualidade catoacutelica Willem Teellinck (1579-1629) considerado o ldquopairdquo da Nadere Reformatie mostrou aspectos de espirituali-dade ao final de sua vida que satildeo semelhantes aos escritos de Bernardo de Claraval75 Sua apropriaccedilatildeo de Bernardo provavelmente via Tomaacutes agrave Kempis eacute um testemunho de sua catolicidade76 Seu principal livro sobre a santifica-ccedilatildeo The Path of True Godliness eacute um manual da vida cristatilde todo dividido em triacuteades no qual ele apresenta os desafios do reino das trevas para a vida espiritual e como o reino da graccedila promove piedade Ele fala no livro sobre os meios de atingir os verdadeiros propoacutesitos da vida (ordenanccedilas obras e promessas divinas) e sobre as motivaccedilotildees para a praacutetica da piedade77 Wilhel-mus agrave Brakel eacute outro que conecta interesses sistemaacuteticos com aplicabilidade pastoral em sua principal obra O Serviccedilo Razoaacutevel do Cristatildeo Brakel diz que os miacutesticos natildeo se apoiam na obra objetiva de Cristo para a sua espiritualidade (Cristo como o nosso resgate como a nossa justiccedila) todo verdadeiro piedoso soacute pode aproximar-se de Deus por meio de Cristo Todavia alguns miacutesticos (Quakers Quietistas Franccedilois de Feacutenelon) falam de negar a si mesmo amar

73 BEEKE Joel R ldquoThe Dutch Second Reformation (Nadere Reformatie)rdquo Calvin Theological Journal vol 28 n 2 (nov 1993) p 308-320

74 DE REUVER Sweet Communion p 1675 BEEKE Espiritualidade reformada p 411-41276 DE REUVER Sweet Communion p 16077 BEEKE Espiritualidade reformada p 421-425 Beeke tenta defendecirc-lo de certos legalismos

(p 425-427) mas parece que o decliacutenio religioso e moral que possivelmente marcava a Holanda de seus dias natildeo legitima tais legalismos

61

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

contemplar a Deus tudo sem fazer uso de Cristo78 Brakel diz que Deus soacute pode ser ldquoobjetordquo de nossa contemplaccedilatildeo se for Deus em Cristo pois toda a sua espiritualidade estaacute fundada em Cristo Esse fundamento ldquoprotege o seu misticismo de espiritualismordquo79

14 Jonathan EdwardsJonathan Edwards eacute conhecido por sua participaccedilatildeo em avivamentos e

um pouco de sua piedade jaacute foi retratada em livros traduzidos para o nosso idioma80 Dentre os escritos do proacuteprio Edwards poucos contribuem para uma visatildeo da espiritualidade reformada do seacuteculo 18 como A Vida de David Brainerd Contudo em geral o puacuteblico brasileiro desconhece os seus escritos pessoais (Diaacuterio Narrativa Pessoal) que retratam muitas experiecircncias de devoccedilatildeo a Deus George S Claghorn descreve seus escritos pessoais como um vislumbre autobiograacutefico da religiosidade de Edwards que cobrem

desde os seus primeiros embates espirituais e autodisciplina nas ldquoResoluccedilotildeesrdquo e no ldquoDiaacuteriordquo ateacute sua busca por uma companheira piedosa em ldquoSobre Sarah Pierrepontrdquo [que viria a ser sua esposa] chegando ao resumo retrospectivo de suas experiecircncias religiosas avivalistas em sua ldquoNarrativa Pessoalrdquo81

Nesta uacuteltima obra Edwards narra suas constantes caminhadas pela natureza para um tempo de contemplaccedilatildeo e de oraccedilatildeo no qual suas afeiccedilotildees eram mo-vidas a experimentar a doccedilura da majestade e da graccedila de Deus que por vezes o levavam a chorar em alta voz82

Charles Hambrick-Stowe pontua de forma perspicaz que nessa meditaccedilatildeo sobre a natureza um haacutebito que adquirira desde a sua juventude sempre tinha a Biacuteblia aberta diante de si pois Edwards negava que pudesse haver qualquer conhecimento de Deus agrave parte da revelaccedilatildeo biacuteblica83 Para Edwards a fonte da graccedila natildeo deveria ser buscada dentro de sua alma pois na proacutepria Narrati-va Pessoal ele afirma que suas mais doces alegrias natildeo surgiram de um bom estado de sua alma mas de uma visatildeo das coisas gloriosas do evangelho84

78 BRAKEL The Christianrsquos Reasonable Service vol 2 p 64279 DE REUVER Sweet Communion p 25880 Cf PIPER John A paixatildeo de Deus por sua gloacuteria vivendo a visatildeo de Jonathan Edwards Satildeo

Paulo Cultura Cristatilde 2008 LAWSON Steven J As firmes resoluccedilotildees de Jonathan Edwards Satildeo Joseacute dos Campos Fiel 2010

81 CLAGHORN George S (Org) The Works of Jonathan Edwards Online vol 16 p 74182 Cf Ibid p 790-80483 HAMBRICK-STOWE Charles E ldquoSpirituality and Devotionrdquo In SWEENEY Douglas A e

STIEVERMANN Jan (Orgs) The Oxford Handbook of Jonathan Edwards Oxford Oxford University Press 2021 p 357

84 Ibid p 355

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

62

O foco de suas meditaccedilotildees enquanto perambulava na natureza natildeo era Deus o Criador muito menos as aacutervores ou as nuvens mas a pessoa de Jesus Cristo85 Essa natureza bibliocecircntrica da piedade de Edwards era o ponto de conexatildeo entre sua vida devocional e sua vida intelectual entre seus escritos pessoais e seu ministeacuterio puacuteblico de escrita e pregaccedilatildeo fazendo com que sua piedade pessoal transbordasse para o seu ministeacuterio eclesiaacutestico86

Semelhante desconhecimento ocorre com o aspecto esteacutetico de sua religio-sidade Dentre as palavras mais usadas no seu corpo literaacuterio estatildeo ldquoexcelecircnciardquo e especialmente ldquobelezardquo a ponto de Dane Ortlund considerar a ldquobelezardquo como o fulcro da teologia edwardsiana87 A filosofia natural de Edwards estaacute repleta de alusotildees aos sentidos espirituais de elementos da natureza e enxergar a revelaccedilatildeo geral repleta de ldquosinaisrdquo do divino eacute a base de sua constante tipologia

2 DISTINTIVOS TEOLOacuteGICOS DE UMA ESPIRITUALIDADE REFORMADA

Ao apresentar caracteriacutesticas peculiares da espiritualidade reformada muitas outras ecircnfases ficaratildeo de fora Natildeo seratildeo trabalhadas a oraccedilatildeo ou a im-portacircncia dos cacircnticos e ateacute mesmo a leitura devocional das Escrituras ficaraacute de fora de um escrutiacutenio adequado A razatildeo de omitir essas e outras praacuteticas eacute para focalizar aspectos que satildeo mais proacuteprios da tradiccedilatildeo reformada e que natildeo aparecem tatildeo comumente em outras tradiccedilotildees cristatildes nem mesmo as evangeacuteli-cas Todavia como os reformados natildeo satildeo os uacutenicos a ensinar tais realidades trataremos de cada item abaixo em termos de ldquoecircnfasesrdquo pois os reformados as destacam de tal forma que se tornaram distintivas

21 Uma ecircnfase na graccedila gratuita e capacitadoraEm oposiccedilatildeo ao romanismo a espiritualidade reformada daacute ecircnfase agrave gra-

ccedila gratuita e capacitadora A maioria das propostas romanas de espiritualidade seguem uma teologia semipelagiana na qual a iniciativa eacute do homem em busca da graccedila (seguindo o famoso ditado medieval facientibus quod in se est Deus non denegat gratiam cuja versatildeo popular eacute ldquofaccedila a sua parte e eu o ajudareirdquo) e ateacute aqueles que natildeo satildeo semipelagianos falam em conquistar ou ldquoalcanccedilar uma graccedilardquo Em contraste com isso os reformados sempre enfatizaram o aspecto to-talmente gratuito da graccedila isto eacute ela natildeo eacute conquistada por nosso esforccedilo nem mesmo quando somos impulsionados pela graccedila interna ldquoEnquanto o monge ascende ao Deus de majestade atraveacutes da contemplaccedilatildeo especulaccedilatildeo e meacuterito no evangelho Deus desce a noacutes em humildade em nossa carne para nos resgatarrdquo88

85 Ibid p 35786 Ibid p 354 35687 ORTLUND Dane C Jonathan Edwards e a vida cristatilde Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2017 p 21-3688 HORTON Michael S ldquoThe Reformation amp Spiritual Formationrdquo Modern Reformation vol 22

n 4 (jul-ago 2013) p 29

63

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

Nelson Kloosterman destaca que certas definiccedilotildees catoacutelicas apresentam uma visatildeo teleoloacutegica de espiritualidade na qual ela se apresenta como o cami-nho para a santidade e uniatildeo com Deus Em contrapartida a visatildeo protestante e reformada de piedade procede da justificaccedilatildeo forense da justiccedila imputada de Cristo Sendo assim a ldquosantidade natildeo eacute simplesmente o objetivo mas prima-riamente o fundamento ou solo da verdadeira espiritualidade cristatilderdquo89 Esta eacute a visatildeo biacuteblica de santificaccedilatildeo apresentada nas epiacutestolas paulinas Indicativos fundamentam e motivam os imperativos nas epiacutestolas (Rm 121 Ef 41 Cl 31-11) Os indicativos nos definem enquanto os imperativos nos convocam Isso significa que a obra redentora do Deus trino eacute descrita primeiro para nos informar do que foi feito por noacutes a fim de buscarmos nos tornar aquilo que jaacute somos em Cristo

Essa graccedila natildeo soacute eacute o fundamento de nossa peregrinaccedilatildeo santificadora mas eacute o impulso dessa santificaccedilatildeo A tradiccedilatildeo reformada recente tem procurado resgatar o entendimento deixado pela Reforma de uma santificaccedilatildeo impulsio-nada pelo evangelho90 A obra de Cristo natildeo eacute necessaacuteria apenas para o iniacutecio da vida cristatilde (conversatildeo justificaccedilatildeo adoccedilatildeo) como se depois da conversatildeo entatildeo dependesse de nossa resposta ao amor de Cristo (santificaccedilatildeo) Esse tipo de dicotomia faz com que caiamos num cristianismo moralista A espiritualidade reformada em contrapartida destaca que a proacutepria forccedila motora da santifica-ccedilatildeo vem da obra consumada de Cristo (Rm 61-4 Tt 214 1 Pe 114-19) A Confissatildeo de Feacute de Westminster afirma que somos santificados pessoalmente ldquopela virtude da morte e ressurreiccedilatildeo de Cristordquo (131) Portanto a obra de Cristo natildeo eacute apenas o que acontece primeiro natildeo eacute apenas o que nos estimula agrave obediecircncia ela eacute a proacutepria habilitadora de nosso esforccedilo santificador

Ateacute a obra do Espiacuterito no iniacutecio de nossa vida cristatilde ndash conversatildeo justi-ficaccedilatildeo adoccedilatildeo ndash serve de motivaccedilatildeo para uma busca de santidade Michael Horton chama a atenccedilatildeo para a linguagem paulina em Romanos 6 a fim de dizer que natildeo temos que entregar nosso corpo agrave crucificaccedilatildeo para que o peca-do seja morto mas o velho homem jaacute ldquofoi crucificado com ele para que o corpo do pecado seja destruiacutedordquo (Rm 66) Ele natildeo ordena que natildeo deixemos o pecado nos dominar mas afirma que ldquoo pecado natildeo teraacute domiacutenio sobre voacutesrdquo (Rm 614) Portanto algo jaacute aconteceu conosco e devemos buscar a santidade (o ldquoainda natildeordquo de nossa redenccedilatildeo) calcados na obra jaacute realizada pelo Espiacuterito91

89 KLOOSTERMAN Nelson D ldquoStudying Spirituality in a Reformed Seminary A Calvinist Modelrdquo Mid-America Journal of Theology vol 6 n 2 (1990) p 127

90 Ver esse texto de Jerry Bridges httpswwwmonergismcomgospel-driven-sanctification Acesso em 4 jun 2021

91 HORTON Michael S ldquoThe Indicative and The Imperative A Reformed View of Sanctificationrdquo Disponiacutevel em httpswwwmonergismcomindicative-and-imperative-reformation-view-sanctification Acesso em 4 jun 2021

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

64

22 Uma ecircnfase nos meios de graccedila e na comunidade santificadora

Em oposiccedilatildeo ao evangelicalismo a espiritualidade reformada coloca uma ecircnfase nos meios de graccedila e na comunidade santificadora Enquanto o evangelicalismo eacute conhecido por enfatizar uma espiritualidade individual isto eacute a importacircncia da devoccedilatildeo privada (o momento a soacutes com Deus) a feacute refor-mada natildeo a negligencia mas destaca que grande parte de nossa santificaccedilatildeo acontece no acircmbito puacuteblico onde haacute troca de dons (Ef 411-16) Os meios de graccedila conforme articulados no culto puacuteblico satildeo chave para o crescimento espiritual Foi nos documentos de Westminster que se instituiu a importacircncia do culto domeacutestico de maneira formal como exemplo de zelo pela comunidade menor enquanto formadora de nossa devoccedilatildeo Antes do que conceitos vazios de subjetividade a feacute reformada defende uma espiritualidade da Palavra que se consegue mediante a pregaccedilatildeo puacuteblica a meditaccedilatildeo e o estudo pessoal92 Por isso Wilhelmus agrave Brakel enfatizava o amor pela verdade (Palavra) e a estima pela igreja93

Enquanto os evangeacutelicos tendem a enxergar a igreja como uma associaccedilatildeo voluntaacuteria de pessoas que alegam terem passado por uma mesma experiecircncia religiosa a eclesiologia reformada conforme expressa em suas confissotildees reforccedila a indispensabilidade da pregaccedilatildeo para gerar e nutrir vida cristatilde a necessidade dos meios de graccedila e a dos ofiacutecios autorizados por Cristo para proteger e nutrir a piedade cristatilde94 Calvino soube se apropriar da eclesiologia catoacutelica e chamar a igreja de ldquomatildee dos fieacuteisrdquo porque ele sabia que a igreja era o lugar ordinaacuterio no qual cristatildeos seriam gerados nutridos e protegidos95 Franccedilois Wendel descreve a eclesiologia de Calvino afirmando que a Igreja eacute necessaacuteria para a nossa ldquosantificaccedilatildeo coletivardquo e para promover o ldquoconsenso da feacuterdquo mediante a pregaccedilatildeo e o ensino Ainda que Deus esteja livre para usar outros meios ordinaacuterios aleacutem da pregaccedilatildeo da Palavra e dos sacramentos como ele os instituiu noacutes natildeo estamos livres desses meios de santificaccedilatildeo96

Michael Horton afirma que enquanto a piedade de muitos evangeacutelicos eacute quase exclusivamente privada e orientada por meacutetodos a piedade da Reforma eacute mais comunitaacuteria e pactual Enquanto os evangeacutelicos focalizam os meios de compromissos que os conduzem agrave graccedila os reformados pensam em meios de graccedila que produzem compromisso Ao inveacutes de sair do mundo em solidatildeo

92 OLD ldquoWhat is Reformed Spiritualityrdquo p 6393 Cf BRAKEL The Christianrsquos Reasonable Service vol 2 p 644-65394 KLOOSTERMAN ldquoStudying Spirituality in a Reformed Seminaryrdquo p 13295 CALVINO Institutas IV14 Cf Confissatildeo de Feacute de Westminster 25296 WENDEL Franccedilois Calvin Origins and Development of His Religious Thought Grand Rapids

Baker 2002 p 292-293 Cf CALVINO Institutas IV15

65

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

os reformados pensam mais numa piedade que nos leva para o mundo pois a piedade da Reforma eacute mais extrospectiva do que introspectiva97 Horton con-testa a espiritualidade evangeacutelica que eacute prioritariamente individual e privada onde o que salva eacute o que o indiviacuteduo faz com a Palavra natildeo o que a Palavra faz com o indiviacuteduo onde o batismo eacute o compromisso do fiel antes do que de Deus onde a ceia simplesmente oferece uma oportunidade para o indiviacuteduo refletir sobre a morte de Cristo e renovar o seu compromisso mas natildeo eacute a daacutediva de Cristo com todos os seus benefiacutecios98 Diante desse cenaacuterio Horton mostra no restante do artigo como a espiritualidade reformada eacute marcada pela vida comunitaacuteria com os meios de graccedila

23 Uma ecircnfase na uniatildeo com Cristo conjugando becircnccedilatildeos objetivas e subjetivas

Na espiritualidade reformada o objetivo e o subjetivo o externo e o interno satildeo ligados inseparavelmente por essa realidade Cristo eacute a fonte da santidade do cristatildeo Isso significa que a santidade dele passa a ser do fiel numa uniatildeo miacutestica que se tem com o Salvador A uniatildeo eacute comumente chamada de ldquomiacutesticardquo porque natildeo tem paralelo na realidade transcende todas as analogias terrenas mesmo as que satildeo utilizadas na Escritura (casamento edifiacutecio e fun-damento videira e ramos corpo e cabeccedila) Todavia a espiritualidade que dela procede natildeo eacute miacutestica no sentido de inexplicaacutevel irracional O ministeacuterio de Jesus sempre foi marcado por ensino por explicaccedilatildeo de vida cristatilde Jesus era um mestre por excelecircncia

Os reformados percebem que haacute aspecto objetivo da uniatildeo que acontece federativamente na eternidade e na histoacuteria e que garante as becircnccedilatildeos recebidas pelos cristatildeos o qual eacute distinto da uniatildeo miacutestica que se refere agrave experiecircncia subjetiva de sermos unidos a Cristo pelo Espiacuterito99 Anthony Hoekema diz que a doutrina da uniatildeo miacutestica ajuda a contrabalanccedilar o aspecto legal com o aspecto vital da redenccedilatildeo o Cristo por noacutes com o Cristo em noacutes100 Jaacute foi mencionada neste artigo a importacircncia da doutrina da uniatildeo com Cristo na teologia de Joatildeo Calvino algo atestado por vaacuterios escritos101 Todavia John Fesko vai aleacutem de

97 HORTON ldquoThe Reformation amp Spiritual Formationrdquo p 2898 Ibid p 3199 A A Hodge tambeacutem distingue a uniatildeo com Cristo em seu aspecto ldquofederalrdquo e em seu aspecto

ldquovital e espiritualrdquo HODGE Archibald A Outlines of Theology New York Hodder amp Stoughton 1878 p 482

100 HOEKEMA Anthony A Saved by Grace Grand Rapids Baker 1986 p 66-67 101 Como satildeo muitos os escritos que exploram Calvino acerca de uniatildeo com Cristo citaremos ape-

nas duas fontes TAMBURELLO Dennis E Union with Christ John Calvin and the Mysticism of St Bernard Louisville Westminster John Knox 1994 JOHNSON Marcus ldquoLuther and Calvin on Union with Christrdquo Fides et Historia 39 n 2 (VeratildeoOutono 2007) p 59-77

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

66

Calvino ao fazer um apanhado histoacuterico dos contornos da uniatildeo com Cristo que une justificaccedilatildeo e santificaccedilatildeo nos escritos de reformados como Henrique Bullinger Pedro Maacutertir Vermigli Jerocircnimo Zanchi William Perkins John Owen Richard Baxter Francisco Turretino e Herman Witsius102

Podemos resumir a uniatildeo em trecircs caracteriacutesticas com implicaccedilotildees para a nossa espiritualidade Em primeiro lugar eacute uma uniatildeo mediadora da uniatildeo com o Deus trino103 Como Cristo eacute o nosso mediador no relacionamento pactual com Deus por ela recebemos todos os benefiacutecios do pacto da graccedila de Deus ser o nosso Deus e noacutes sermos o seu povo tanto em sermos reconciliados com ele por obra do Deus trino como de conformidade com ele tornando-nos participantes da natureza divina agrave medida que somos transformados agrave sua ima-gem (2 Pe 13-4) A vitoacuteria de Cristo concedeu-nos o Espiacuterito o qual efetiva a nossa uniatildeo com Cristo Jesus disse que seriacuteamos habitados pelo Pai pelo Filho e pelo Espiacuterito (Jo 1416-20 23) Em segundo lugar eacute uma uniatildeo vital Somos ligados de forma orgacircnica a Cristo (analogias do corpo e da videira) de tal forma que a vida dele nos eacute comunicada Isto eacute aleacutem de Cristo ser o nosso representante ele tambeacutem eacute ldquoformadordquo em noacutes (Gl 419) nascemos de novo experimentamos uma vida de sofrimento humilhaccedilatildeo e enfim exaltaccedilatildeo tudo segundo a natureza humana de Jesus104 Somos tornados participantes de seu triunfo (Cl 220 31) Em terceiro lugar eacute uma uniatildeo reciacuteproca Se Cristo primeiramente nos une a ele por obra do Espiacuterito na regeneraccedilatildeo o crente responde em feacute unindo-se a Cristo e recebendo todos os benefiacutecios da sua vida (Jo 154-5 Gl 220 Ef 317)

24 Outras ecircnfases reformadasHaacute vaacuterios outros distintivos da tradiccedilatildeo reformada que natildeo satildeo tatildeo evi-

dentes em outras tradiccedilotildees da feacute cristatilde Em primeiro lugar a observacircncia do Dia do Senhor funciona como antecipaccedilatildeo da gloacuteria por vir Enquanto muitas discussotildees em torno desse assunto tecircm se detido em minuacutecias praacuteticas perde--se o propoacutesito de resgatar esse dia como deleitoso para a alma Em segundo lugar as obras de misericoacuterdia satildeo parte da espiritualidade reformada Inclusive essa eacute a razatildeo pela qual essa deveria ser uma das atividades do dia do Senhor como o proacuteprio Jesus o fez Em terceiro lugar a piedade reformada sempre enxergou a lei em um contexto de graccedila Enquanto Lutero enxergava a lei

102 Cf FESKO J V Beyond Calvin Union with Christ and Justification in Early Modern Reformed Theology (1517-1700) Gottingen Vandenhoeck amp Ruprecht 2012

103 A A Hodge escreve ldquoEssa uniatildeo eacute entre o cristatildeo e a pessoa do Deus-homem em seu ofiacutecio como Mediador Seu oacutergatildeo imediato eacute o Espiacuterito Santo que habita em noacutes e atraveacutes dele noacutes somos virtualmente unidos e comungamos com toda a Divindade sendo que ele eacute o Espiacuterito do Pai assim como do Filhordquo HODGE Outlines of Theology p 484

104 BERKHOF Louis Teologia sistemaacutetica Campinas Luz Para o Caminho 1990 p 452-453

67

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

primordialmente como uma antiacutetese ao evangelho Calvino iraacute observar que o uso pedagoacutegico da lei de ressaltar o pecado eacute ldquoacidentalrdquo (linguagem aristoteacute-lica para afirmar que natildeo eacute essencial) pois seu propoacutesito principal eacute servir de norma de conduta que o Deus benevolente nos deixou Em contraste com os legalismos catoacutelico-romanos e ateacute evangeacutelicos os puritanos conseguiram ver a lei de forma deleitosa no contexto do pacto da graccedila105

Em quarto lugar os reformados natildeo fazem dicotomia entre vida contem-plativa e vida ativa (Tomaacutes de Aquino) pois a cosmovisatildeo reformada santifica o trabalho com os conceitos de vocaccedilatildeo e mordomia Kloosterman destaca como o conceito de vocaccedilatildeo na Reforma permitiu que toda a criaccedilatildeo fosse usufruiacuteda e empregada sob a contiacutenua norma da Palavra de Deus106 Enquanto os luteranos introduziram o elemento de vocaccedilatildeo de forma inovadora foram os reformados que ampliaram o elemento holiacutestico de vida cristatilde com a aplica-ccedilatildeo da cosmovisatildeo Por isso Kloosterman contrasta o misticismo catoacutelico e ateacute a piedade evangeacutelica como muito voltada para o pecado orientada para dentro ou para o futuro e apresenta a espiritualidade reformada afirmando a vida em relacionamentos criacionais107 Isto eacute existe espiritualidade em obediecircncia ao triacuteplice mandato que nos foi dado na criaccedilatildeo mandato espi-ritual (relacionamento com Deus) mandato social (relacionamento com o proacuteximo) e mandato cultural (relacionamento com o restante da criaccedilatildeo) Tal integralidade que envolve os trecircs mandatos estaacute disponiacutevel a todos os fieacuteis e natildeo somente aos monges natildeo haacute espiritualidade especiacutefica do ldquoclerordquo como asseverava a doutrina romana

Estes satildeo apenas alguns raacutepidos traccedilos de aspectos ricos e com vasta literatura na histoacuteria do movimento reformado Tais distintivos servem apenas para ressaltar que existe uma espiritualidade proacutepria da teologia reformada e condizente com o seu legado doutrinaacuterio

CONCLUSAtildeO ldquoA IMPORTAcircNCIA DE RESGATAR UMA ESPIRITUALIDADE DA TRADICcedilAtildeO REFORMADArdquoAo concluir esse panorama de personagens e distintivos da espiritua-

lidade reformada especialmente em contraste com outras versotildees cristatildes de espiritualidade fica evidente que a teologia molda a piedade A espiritualidade natildeo acontece num vaacutecuo teoloacutegico Algueacutem pode natildeo estar ciente da teologia que alimenta sua espiritualidade mas como disse McGrath acertadamente ldquoA teologia tem profundo impacto sobre a espiritualidaderdquo108 Sendo assim eacute

105 Cf KEVAN Ernest The Grace of Law A Study of Puritan Theology London Carey Kingsgate 1965

106 KLOOSTERMAN ldquoStudying Spirituality in a Reformed Seminaryrdquo p 129107 Ibid p 130108 MCGRATH Uma introduccedilatildeo agrave espiritualidade cristatilde p 29

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

68

necessaacuterio que os reformados sejam mais conscientizados das implicaccedilotildees que a sua teologia traz para a vida cristatilde Eis a razatildeo de elaborarmos este breve histoacuterico da teologia reformada de espiritualidade Afinal piedade com teologia defeituosa eacute enganosa e sem proveito como Paulo ensinou aos colossenses (Cl 216-23) Portanto eacute necessaacuterio que os reformados se aprofundem no conhecimento dessa histoacuteria e como ela se adequa a uma praacutetica condizente

Enquanto os criacuteticos tendem a julgar que a teologia reformada eacute prio-ritariamente cognitiva e teoacuterica os reformados tecircm historicamente exaltado o aspecto afetivo e praacutetico da teologia O grande acadecircmico reformado do seacuteculo 17 Francisco Turretino explica que a despeito de seu elemento teoacuteri-co (contemplaccedilatildeo do Deus revelado conhecimento da verdade) a teologia eacute mormente praacutetica pois todo o seu conhecimento (crer) deve redundar em adoraccedilatildeo e obediecircncia (observar)109 Na filosofia reformada todo coraccedilatildeo eacute por natureza religioso e por isso produz algum tipo de devoccedilatildeo ou espiri-tualidade Todavia nem toda espiritualidade eacute virtuosa porque nem toda feacute eacute saudaacutevel Por exemplo uma vida de oraccedilatildeo para encher nosso ministeacuterio de poder perde de vista que a sauacutede de uma vida de oraccedilatildeo estaacute em nos esvaziar-mos de noacutes mesmos isto eacute a oraccedilatildeo natildeo busca poder para si mas expressa dependecircncia e fraqueza para que o poder de Deus opere em noacutes Portanto teologia molda espiritualidade

Talvez o leitor se pergunte ldquoOnde eacute que o estudo da espiritualidade de-veria se encaixar numa grade de formaccedilatildeo teoloacutegicardquo Kloosterman responde na eacutetica E ele fundamenta essa resposta dizendo que se alguns evangeacutelicos tendem a olhar para a espiritualidade como ldquoerupccedilotildees espontacircneasrdquo antes que ldquoexerciacutecios padronizadosrdquo eles seratildeo levados a estudar a piedade sob a nor-ma da Palavra de Deus Analisar tais exerciacutecios espirituais natildeo tira o ldquopoderrdquo que lhes eacute atribuiacutedo mas ajuda-nos a averiguar praacuteticas que satildeo biblicamente certas ou erradas Por isso a eacutetica constitui um bom espaccedilo para o ensino da espiritualidade110

Se essa sugestatildeo parecer estranha ao leitor pode ser que a estranheza se explique pela ignoracircncia da bela tradiccedilatildeo eacutetica reformada que ensina acerca de vida cristatilde mediante a exposiccedilatildeo dos Dez Mandamentos Esse natildeo soacute eacute o ensino da Escritura (Rm 138-10 Gl 513-15) mas tem amplo respaldo nos catecismos da tradiccedilatildeo reformada Poreacutem introduzir essa mateacuteria seria conteuacutedo para outro artigo

109 TURRETINI Franccedilois Compendio de teologia apologeacutetica Trad Valter Graciano Martins Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011 vol 1 p 61-65 (Ivii)

110 KLOOSTERMAN ldquoStudying Spirituality in a Reformed Seminaryrdquo p 135-136

69

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

ABSTRACTThis article presents Reformed Spirituality as a field still unknown in

popular and academic circles a part of the tradition that needs to be redis-covered The concept that this is not a strong area among the Reformed plus the elusive standards of devotional practices have led many to seek alternative spiritualities Wanting to rescue the devotional and pious aspect of the Reformed tradition this article introduces the practical theology of figures such as John Calvin the English Puritans the Dutch Reformed movement called Nadere Reformatie and Jonathan Edwards besides some contemporary representa-tives of Reformed piety Later on the article presents a few distinctives of such spirituality and concludes showing the need to rescue this story for the benefit of the Reformed movement in Brazil

KEYWORDSSpirituality Reformed Theology John Calvin Puritans Nadere Refor-

matie Jonathan Edwards

71

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO ndash UMA ANAacuteLISE DA QUESTAtildeO JURIacuteDICA NO CONTEXTO DA GRANDE COMISSAtildeO (MT 2818-20)

Paulo Eduardo Vieira da Veiga

RESUMOO contexto juriacutedico no qual foi dada a Grande Comissatildeo envolve os quatro

grandes temas das Escrituras criaccedilatildeo queda redenccedilatildeo e consumaccedilatildeo Quando colocado no Eacuteden Adatildeo recebeu a missatildeo de governar tudo o que Deus havia criado Ao pecar de algum modo essa autoridade foi usurpada por Satanaacutes Quando Cristo morreu e ressuscitou cumpriu assim o seu propoacutesito redentor e como o uacuteltimo Adatildeo recuperou e ampliou juridicamente a autoridade perdida pelo primeiro Dessa forma a Grande Comissatildeo em Mateus 2818-20 comeccedila natildeo no versiacuteculo 19 mas jaacute no versiacuteculo 18 quando o Senhor ressurreto com base nesta mesma autoridade ordena a seus disciacutepulos irem pelo mundo e fa-zerem disciacutepulos de todas as naccedilotildees Portanto o presente artigo visa analisar a palavra ἐξουσία (autoridade) mencionada no versiacuteculo 18 no contexto da teologia biacuteblica do Antigo e do Novo Testamentos refletir sobre a autorida-de perdida por Adatildeo e reconquistada por Cristo e avaliar como o triunfo e a exaltaccedilatildeo de Cristo satildeo a garantia de sucesso da missatildeo datildeo sentido ao ldquoiderdquo revestem a igreja com autoridade e impulsionam os disciacutepulos no cumprimento da Grande Comissatildeo apontando para o escaton1

O autor eacute bacharel em teologia pelo Seminaacuterio Presbiteriano do Sul e mestrando em Estudos Biacuteblico-Hermenecircuticos do Novo Testamento no Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper

1 Este artigo foi escrito inicialmente para atender agraves exigecircncias da disciplina ldquoPrincipados e Potestadesrdquo ministrada em 2020 pelo Prof Dr Leandro A de Lima no CPAJ como parte do curso de Mestrado em Estudos Biacuteblico-Hermenecircuticos Vaacuterias das ideias expostas no artigo especialmente a questatildeo juriacutedica da autoridade conquistada por Cristo refletem o ensino do referido professor ministrado durante a disciplina e tambeacutem em seus escritos em especial sua tese de doutorado de 2012 (LIMA

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

72

PALAVRAS-CHAVETeologia biacuteblica Novo Testamento Grande Comissatildeo Reino Evangelho

Autoridade Batalha juriacutedica

INTRODUCcedilAtildeOOs debates recentes entre os exegetas sobre o entendimento da Grande

Comissatildeo giram em torno do verbo πορευθέντες (ir) Alguns defendem que esse verbo deva ser traduzido como ldquoiderdquo no imperativo outros defendem que seja traduzido como ldquoindordquo no geruacutendio Ambas as anaacutelises exegeacuteticas trazem implicaccedilotildees missioloacutegicas importantes seja a ecircnfase no discipulado local seja nas missotildees transculturais e na plantaccedilatildeo de novas igrejas Eacute certo que tudo isso estaacute incluiacutedo na Grande Comissatildeo

David Hesselgrave ao analisar o texto de Mateus 2818-20 defende que existe um elemento baacutesico que eacute ldquofazei disciacutepulos de todas as naccedilotildeesrdquo Segundo ele a importacircncia do fazer disciacutepulos (μαθητεύσατε) eacute ressaltada pelo fato de este ser o uacutenico imperativo no texto da Grande Comissatildeo Ele ainda destaca que ldquofazei disciacutepulos de todas as naccedilotildeesrdquo requer que se tenha missionaacuterios em todas as naccedilotildees2 O professor Carl Bosma em suas pesquisas sobre as posiccedilotildees exegeacuteticas acerca de Mateus 2818-20 apresenta quatro atitudes em relaccedilatildeo a esses termos (1) forte ecircnfase no particiacutepio traduzido como imperativo (ldquoIderdquo) (2) maior ecircnfase em ldquofazer disciacutepulosrdquo (3) subordinaccedilatildeo plena do ldquoirrdquo ao ldquofazer disciacutepulosrdquo tornando-o quase irrelevante (4) ecircnfase igual nos dois conceitos Bosma defende a quarta posiccedilatildeo enfatizando que o ldquoirrdquo faz parte do mandamento de se fazer disciacutepulos Para ele tanto eacute importante o discipulado local (fazer disciacutepulos e ensinar) quanto as missotildees transculturais (ldquoindo)rdquo3 Jaacute o professor Chun Kwang Chung faz uma anaacutelise da mudanccedila recente na traduccedilatildeo do verbo πορευθέντες como ldquoindordquo em vez de ldquoiderdquo traduccedilatildeo esta que sempre foi adotada por diversas sociedades biacuteblicas Segundo ele traduzir πορευθέντες como ldquoindordquo gera implicaccedilotildees missioloacutegicas fundamentais no entendimento da Grande Comissatildeo pois tal interpretaccedilatildeo eacute defendida pelos proponentes do ministeacuterio de discipulado nas igrejas locais e pelo movimento de igrejas missionais Poreacutem ele defende que os tradutores estavam corretos ao traduzirem o particiacutepio πορευθέντες como imperativo ldquoiderdquo4

Leandro Antocircnio de ldquoApocalipse como literatura um estudo sobre a importacircncia da anaacutelise da arte literaacuteria em apocalipse 12-13rdquo Dissertaccedilatildeo (Doutorado em Letras) Satildeo Paulo Universidade Presbite-riana Mackenzie 2012) e seu livro A Grande Batalha Escatoloacutegica (Satildeo Paulo Editora Agathos 2016)

2 HESSELGRAVE David J A comunicaccedilatildeo transcultural do Evangelho Satildeo Paulo Vida Nova 1994 p 69

3 BOSMA Carl ldquoMissotildees e sintaxe grega em Mateus 2818-20rdquo Fides Reformata XIV-1 2009 p 9

4 CHUNG Chun Kwang ldquoIde ou Indo Igrejas Missionais e o uso do particiacutepio na Grande Comissatildeo de Mateus 2818-20rdquo Fides Reformata XXIV-2 2019 p 51

73

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

Toda essa discussatildeo teoloacutegica eacute saudaacutevel vaacutelida e uacutetil para o entendi-mento da missatildeo da igreja Sem duacutevida eacute preciso considerar esses aspectos Contudo parece-me que ao longo destes debates tem sido deixado de lado o contexto no qual estas palavras foram ditas pelo Senhor Jesus perdendo-se de vista a base a seguranccedila e a motivaccedilatildeo principal para a missatildeo que eacute o triunfo e a exaltaccedilatildeo do Cristo ressurreto que ascendeu aos ceacuteus e que garante sua presenccedila constante com seus disciacutepulos em missatildeo Ele tambeacutem garante que as portas do inferno natildeo prevaleceratildeo contra a sua igreja (Mt 1618) Porque Jesus conquistou todo poder e toda autoridade nos ceacuteus e terra ele tem o direito legal de exercecirc-los sobre todas as coisas Sua morte e ressurreiccedilatildeo deram-lhe o direito legal de restaurar a criaccedilatildeo a qual fora colocada debaixo do cativeiro do pecado e de salvar aqueles por quem ele morreu pois levou sobre si todos os pecados deles tambeacutem num sentido legal Logo focar ape-nas na traduccedilatildeo do verbo πορευθέντες deixa muita coisa de fora pois omite a base da argumentaccedilatildeo racional da Grande Comissatildeo5 Portanto analisar a promessa que impele a Grande Comissatildeo eacute fundamental para o cumprimento dessa tarefa dada agrave igreja

1 TODA A AUTORIDADE (πᾶσα ἐξουσία)A palavra ἐξουσία (autoridade poder) eacute amplamente usada no Novo Tes-

tamento Tendo em vista os evangelhos e o livro de Atos encontramos o termo ἐξουσία nove vezes em Mateus (729 89 96 8 101 2123 24 27 2818) No evangelho de Marcos a palavra tambeacutem aparece nove vezes Jaacute Lucas e Joatildeo a utilizam dezesseis vezes e oito vezes respectivamente6 Analisando a autoridade de Cristo no contexto do livro de Mateus percebemos que Jesus se apresenta como aquele que tem autoridade sobre a terra para perdoar pecados (Mt 96) Eacute dito que as multidotildees se maravilhavam de sua doutrina porque ele as ensinava como quem tem autoridade (Mt 729) e o proacuteprio Jesus ainda afirma que tudo lhe havia sido entregue pelo Pai (Mt 1127) Logo apoacutes ressuscitar Jesus se apresenta aos seus disciacutepulos como algueacutem que tem toda a autoridade nos ceacuteus e na terra (Mt 2818) Curiosamente sempre que Mateus faz uso do termo ἐξουσία (autoridade) ele o faz somente com referecircncia a Jesus Quando se trata de seres humanos a palavra utilizada por ele eacute δύναμις (poder)7 De acordo com Craig Keener ldquoa autoridade de Jesus inclui a autoridade de dizer aos seus subordinados para iremrdquo8 Sua autoridade eacute singular eacute a uacutenica que

5 HORTON Michael A Grande Comissatildeo Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2014 p 276 LEE k VILJOEN F P ldquoThe Ultimate Comission the key for the gospel according to Matthewrdquo

Acta Theologica University of the Free State South Africa vol 30 n 1 (jun 2010) p 64-83 7 LAWRENCE Louise Joy An ethnography of the Gospel of Matthew A critical assessment of

the use of the honour and shame model in New Testament studies Tuumlbingen Mohr Siebeck 2010 p 1178 KEENER Craig S The Gospel of Matthew A Socio-Rhetorical Commentary Grand Rapids

Eerdmans 2009 p 178

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

74

pode ser declarada como autoridade absoluta autoridade da verdade autoridade de Deus9 Eacute com base nessa autoridade que Jesus ordena aos seus disciacutepulos para que vatildeo ao mundo e faccedilam disciacutepulos de todas as naccedilotildees batizem-nos em nome do Pai do Filho e do Espiacuterito Santo e os ensinem a guardar todas as coisas que Jesus havia ordenado aos doze David Bauer ainda destaca que a autoridade de Jesus pode ser vista em seus ensinamentos milagres nas pessoas que respondem a ele em seus tiacutetulos e em sua posiccedilatildeo uacutenica como uma figura divina ou messiacircnica10

Eacute importante observar que Jesus profere essas palavras apoacutes a sua ressur-reiccedilatildeo Assim todas as restriccedilotildees vinculadas agrave sua encarnaccedilatildeo agora natildeo mais estatildeo ligadas agrave sua natureza humana pois ele natildeo eacute mais o homem de dores ferido de Deus e oprimido Agora tendo triunfado sobre o pecado e a morte ele recebe autoridade divina sobre ceacuteus e terra11 Logo a autoridade que foi dada a Cristo refere-se agrave autoridade que ele recebe enquanto Deushomem A palavra ἐξουσία poderia ser traduzida como um estado de controle sobre algo liberdade de escolha o direito de agir ou decidir capacidade de fazer algo poder absoluto legitimidade12 O Novo Testamento emprega duas palavras para se referir a ldquopoderrdquo satildeo os termos ἐξουσία e δύναμις sendo que ἐξουσία eacute um termo mais abrangente do que δύναμις pois se refere tanto agrave posiccedilatildeo quanto agrave funccedilatildeo Logo nada na criaccedilatildeo estaacute fora da autoridade de Cristo o que denota sua autoridade divina13 Eacute desta forma que ele emprega essa palavra no contexto da Grande Comissatildeo Contudo em que sentido Cristo recebe essa autoridade apenas apoacutes a sua morte e ressurreiccedilatildeo Sendo Deus ele jaacute natildeo possuiacutea toda essa autoridade mesmo antes disso

Para tornar isso claro precisamos analisar o aspecto legal desta autori-dade ou seja o direito e o poder que Cristo tem sobre todas as coisas derivado de sua posiccedilatildeo como o segundo Adatildeo como aquele que veio para reverter a Queda O Dr Leandro de Lima ao abordar o tema da primeira vinda de Cris-to a denomina a grande batalha escatoloacutegica na qual a libertaccedilatildeo do povo de Deus estava sendo conquistada visto que era uma batalha juriacutedica ou legal uma batalha por autoridade Assim ele destaca que ldquoa vinda de Cristo foi uma

9 DODD C H The Authority of the Bible London Fontana Books 1960 p 23210 BAUER David R The Structure of Matthewrsquos Gospel A Study in Literary Design Sheffield

Almond 1988 p 115-11711 MORRIS Leon The Gospel according to Matthew Grand Rapids Eerdmans 1992 p 745-74612 LENSKI R C H The Eisenach Gospel Selections An Exegetical-Homiletical Treatment

Columbus The Lutheran Book Concern 1928 p 57713 OSBORNE Grant R The Resurrection Narratives A Redactional Study Grand Rapids Baker

1984 p 90

75

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

declaraccedilatildeo de guerra contra os inimigos [] mas uma guerra por direito por legitimidaderdquo14

11 A autoridade usurpadaEssa guerra por legitimidade teve iniacutecio no Eacuteden Quando Deus colocou

Adatildeo e Eva no jardim e lhes deu a missatildeo de governar tudo o que ele havia criado (Gn 126-27) eles eram na linguagem de Gerard Van Groningen os vice-gerentes de Deus Bruce Waltke comentando Gecircnesis 126-27 destaca que ldquoo texto estaacute dizendo que exercer domiacutenio real sobre a terra como repre-sentante de Deus eacute o propoacutesito baacutesico para o qual Deus criou o homemrdquo15 Van Groningen lanccedila luz sobre a questatildeo

Deus tinha um propoacutesito predeterminado para a humanidade Ela deveria ter um papel superior uma influecircncia dominante e um serviccedilo responsaacutevel Homem e mulher deveriam ser governadores sobre a criaccedilatildeo natural deveriam ser os representantes reais dentro do reino coacutesmico16

Dessa forma o homem foi colocado como mordomo de Deus junto agrave criaccedilatildeo Todas as coisas foram postas sob sua autoridade Ele deveria gover-nar sobre o que havia sido criado exercendo assim suas prerrogativas reais desenvolvendo o cosmos e mantendo-o Ao conferir esta autoridade e domiacutenio ao homem o Senhor estava colocando a humanidade em um relacionamento singular com o cosmos17 O homem tinha essas prerrogativas por direito o qual lhe tinha sido concedido pelo proacuteprio Deus pois como escreve o salmista ldquoFizeste-o no entanto por um pouco menor do que Deus e de gloacuteria e de honra o coroaste Deste-lhe domiacutenio sobre as obras de tua matildeo e sob seus peacutes tudo lhe pusesterdquo (Sl 85-6) Obviamente que Deus natildeo concedeu sua deidade aos seres humanos mas os colocou na mais alta posiccedilatildeo real na criaccedilatildeo e os dotou com o privileacutegio e a responsabilidade de serem cotrabalhadores com ele nas tarefas reais a serem executadas na criaccedilatildeo18 A terra foi criada para o domiacutenio e governo humanos Tal domiacutenio era expressatildeo do reino de Deus e representava o governo divino19

14 LIMA Leandro A de A grande batalha escatoloacutegica Satildeo Paulo Editora Agathos 2016 p 715 WALTKE Bruce Comentaacuterios do Antigo Testamento Genesis Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019

p 7716 VAN GRONINGEN Gerard Criaccedilatildeo e consumaccedilatildeo o reino a alianccedila e o Mediador Satildeo

Paulo Cultura Cristatilde 2018 vol 1 p 7917 Ibid p 9018 Ibid p 85 19 DEMPSTER Stephen G Dominion and Dynasty A Biblical Theology of the Hebrew Bible

New Studies in Biblical Theology 15 Downers Grove Illinois IVP Academic 2006 p 62

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

76

Se Adatildeo e Eva tivessem cumprido devidamente o mandato recebido de Deus Satanaacutes natildeo teria nenhum direito e legalidade sobre o cosmos e nem sobre os vice-gerentes de Deus Pois embora Satanaacutes tivesse acesso ao Eacuteden pelo fato de ser um anjo e por sua posiccedilatildeo no cosmos ele natildeo era capaz de introduzir o mal e o pecado diretamente dentro do Eacuteden e do cosmos pois natildeo lhe foram concedidas as prerrogativas reais e o status que foram concedidos por Deus a Adatildeo e Eva20 Por isso ele buscava para si o controle do reino coacutesmico de Deus mas para atingir seu objetivo era preciso encontrar uma brecha ele precisava usurpar este direito que pertencia ao primeiro casal e a uacutenica maneira de fazecirc--lo era entrar no Eacuteden e ganhar controle e influecircncia sobre os vice-gerentes de Deus Em Gecircnesis 215 Deus toma o homem e o coloca no jardim do Eacuteden para o cultivar e o guardar Um aspecto interessante da atividade do homem eacute que o termo guardar incluiacutea guardar o jardim contra a usurpaccedilatildeo de Satanaacutes Adatildeo e Eva natildeo eram apenas os sacerdotes de Deus mas tambeacutem os guardiotildees do jardim Eles que deveriam expulsar a serpente acabaram sendo expulsos por ela21 Ao inveacutes de prontamente se opor denunciar e expulsar o tentador blasfemo eacute digno de nota o fato de Adatildeo ter ficado passivo enquanto via sua esposa receber um tutorial deste estranho mestre de teologia a serpente22 Sa-tanaacutes estava desafiando a autoridade de Deus ao compelir o homem a escolher entre dois mestres23 Era a autoridade de Deus versus o desafio do mundo sob o domiacutenio de Satanaacutes24 Dessa maneira ao darem ouvidos agrave voz da serpente Adatildeo e Eva estavam deixando a autoridade de Deus e de sua palavra para se colocarem debaixo da autoridade do diabo e de suas mentiras submetendo-se ao pecado e ao poder do mal ficando destinados agrave morte25

Ao enganar e seduzir o primeiro casal Satanaacutes foi bem-sucedido em seu plano de introduzir o mal e o pecado no mundo (Gn 31-13) levando-os a duvidar de Deus e desobedececirc-lo Adatildeo e Eva quebraram o seu relacionamento com Yahweh com o cosmos e um com o outro Agora eles eram os quebradores do pacto natildeo mais tinham o senso de serem governadores reais e vice-gerentes de Deus Eles abdicaram do trono que Deus lhes havia dado renderam-se a Satanaacutes completamente e pecaram contra o Criador26 Com isso Satanaacutes obteve

20 GRONINGEN Criaccedilatildeo e consumaccedilatildeo p 12521 WALTKE Comentaacuterios do Antigo Testamento p 10322 GOLDINGAY John Old Testament Theology Israelrsquos Gospel Downers Grove IL IVP Aca-

demic 2003 p 13123 KLINE M G Kingdom Prologue Genesis Foundations for a Covenantal Worldview Eugene

OR Wipf amp Stock 2006 p 12324 ARNOLD Bill T Encountering the Book of Genesis Grand Rapids Baker Books 1998 p 4125 Segundo Gordon Wenham ldquoa serpente simboliza o pecado a morte e o poder do malrdquo WENHAM

Gordon J Genesis 1-15 World Biblical Commentary Waco TX 1987 p 14826 GRONINGEN Criaccedilatildeo e consumaccedilatildeo p 127

77

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

o domiacutenio sobre os vice-gerentes pactuais de Deus e consequentemente ob-teve domiacutenio sobre o cosmos O pecado que passou a fazer parte da natureza humana caiacuteda deu poder a Satanaacutes e seus anjos para serem acusadores dos seres humanos e tambeacutem para os dominarem e possuiacuterem Foi o princiacutepio da legalidade Satanaacutes conseguiu estabelecer o seu reino seu trono e seu domiacutenio substitutos dentro do cosmos27 Poreacutem seu reino eacute parasita ou seja natildeo pode existir independentemente pois depende do reino coacutesmico de Deus Ele eacute um intruso maligno querendo entronizar-se como o mestre dos seres humanos e do reino coacutesmico sobre o qual eles haviam recebido o domiacutenio e o mandato de zelar cultivar e governar28

Por meio da desobediecircncia de Adatildeo e Eva Satanaacutes foi capacitado a im-plantar seu reino parasita dentro do cosmos Sua intenccedilatildeo eacute ter domiacutenio com-pleto o que nunca seraacute consumado Seu reino eacute de oposiccedilatildeo espiritual ao reino de Deus e a todo o cosmos O ataque de Satanaacutes foi totalmente planejado pois visava destruir toda estrutura que Deus havia criado no jardim O interesse do inimigo natildeo era simplesmente conseguir que o homem pecasse contra Deus muito mais do que isso ele queria invadir cada estrutura de autoridade cada siacutembolo de reino e governo que Deus havia instituiacutedo29 Ele queria subverter toda a estrutura da criaccedilatildeo e queria que Deus fosse humilhado Eacute aqui que temos o estabelecimento da antiacutetese da linha divisoacuteria do abismo e da oposi-ccedilatildeo entre o reino de Deus e o reino parasita de Satanaacutes Logo apoacutes a queda do primeiro casal o Senhor pronuncia uma maldiccedilatildeo contra a serpente e declara inimizade entre a semente de Satanaacutes e os seguidores de Yahweh (cf Gn 315) Van Groningen mais uma vez traz clareza agrave questatildeo

Eacute basicamente uma luta pelo coraccedilatildeo pelo serviccedilo real e os benefiacutecios re-sultantes destes Deus Yahweh requereu o direito de posse Satanaacutes tambeacutem Ter os coraccedilotildees a proacutepria pessoa de Adatildeo e Eva natildeo era somente tecirc-los como servos mas tambeacutem reivindicar o cosmos sobre o qual tinham sido colocados como vice-gerentes Desse modo reivindicar os vice-gerentes era reivindicar o seu domiacutenio Reivindicar os seres reais era reivindicar suas prerrogativas reais dentro do domiacutenio Ter domiacutenio espiritual era tambeacutem ter o domiacutenio coacutesmico todos os aspectos do reino coacutesmico estariam envolvidos na luta quando Deus Yahweh sustentasse por declaraccedilatildeo a oposiccedilatildeo ie a antiacutetese30

Com a entrada do pecado no mundo o homem a quem Deus havia criado com liberdade de escolha usa seu livre arbiacutetrio para rebeliatildeo Adatildeo e Eva quebram o Pacto que Deus havia feito com eles caem do seu estado de

27 Ibid28 Ibid p 12629 Ibid p 15730 Ibid p 156

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

78

inocecircncia e tornam-se pecadores traindo a Deus num ato de rebeldia pois foi uma traiccedilatildeo universal (coacutesmica) uma traiccedilatildeo contra o Rei do cosmos31 Sua natureza que antes era santa agora estaacute corrompida pelo mal e manchada pelo pecado Seus pensamentos consciecircncia vontade e emoccedilotildees satildeo atingidos pela corrupccedilatildeo e pervertidos eles satildeo despojados de sua justiccedila original E assim condenam todos os seus descendentes a nascerem em iniquidade culpados corrompidos e destinados agrave morte32 Agora toda a criaccedilatildeo eacute colocada debaixo do cativeiro do pecado Aqui os vice-gerentes de Deus entregam nas matildeos da serpente o domiacutenio que tinham recebido do Criador perdendo seu status real e a autoridade de dominar e sujeitar toda criaccedilatildeo33 Contudo como assinala Derek Kidner ldquograccedilas agrave misericoacuterdia a maldiccedilatildeo recai sobre os domiacutenios do homem natildeo sobre o homem propriamente ditordquo34 Pois embora Adatildeo tenha ouvido palavras como fadiga suor morte e poacute sendo associadas agrave sua expe-riecircncia humana como consequecircncia de sua rebeliatildeo contudo a maldiccedilatildeo recai sobre a terra que se torna maldita por causa do pecado e porque seu domiacutenio eacute entregue a Satanaacutes Ademais o objetivo da serpente de minar a autoridade de Deus entre o povo que ele mesmo criou natildeo seraacute alcanccedilado pois no final ela seraacute destruiacuteda pela semente da mulher (cf Gn 315)35

12 A autoridade recuperada e ampliadaA fim de que esta autoridade fosse recuperada ou reconquistada algo

precisava ser feito E ningueacutem menos que o Filho de Deus foi quem realizou tal obra por meio de sua vitoacuteria na batalha juriacutedica da cruz Ao retrocedermos para muito antes da crucificaccedilatildeo temos de considerar a conversa que o diabo tem com Jesus por ocasiatildeo da tentaccedilatildeo no deserto Em Lucas 45-6 Satanaacutes num momento mostra a Cristo todos os reinos do mundo e a gloacuteria deles A seguir declara que daraacute toda essa autoridade sobre os reinos a Cristo se ele prostrado o adorar o que Cristo se recusou a fazer Mas um fato importante nesse episoacutedio eacute que o diabo afirma que a autoridade sobre todos os reinos do mundo foi entregue a ele por isso ele pode concedecirc-la a quem quiser O curioso eacute que Jesus natildeo o desmente e nem o questiona sobre tal afirmaccedilatildeo Apesar de ser o pai da mentira o diabo parece estar falando a verdade quando afirmou que tinha toda aquela autoridade sobre as naccedilotildees e reinos Pois no Eacuteden por ocasiatildeo da queda do ser humano ele recebeu autoridade para enganar as naccedilotildees e mantecirc-las sob cegueira espiritual Eacute digno de nota que ao tentar a Cristo

31 SPROUL R C A verdade da cruz Satildeo Paulo Fiel 2019 p 35-36 32 CALVINO Joatildeo Salmos Vol 2 Satildeo Paulo Fiel 2011 p 418-419 33 CHUNG Chun Kwang Missatildeo primordial os fundamentos da missatildeo em Gecircnesis 1-11 Satildeo

Paulo Missioloacutegica 2019 p 7334 KIDNER Derek Genesis introduccedilatildeo e comentaacuterio Satildeo Paulo Vida Nova 1979 p 6735 LONGMAN III Tremper Como ler Genesis Satildeo Paulo Vida Nova 2009 p 137

79

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

no deserto ele natildeo sabia que natildeo teria mais esta autoridade por muito tempo Porque Cristo por meio de sua morte e ressurreiccedilatildeo cassaria este direito legal de Satanaacutes e tomaria dele as naccedilotildees36

Quando comparamos as passagens de Lucas 46 com Mateus 2818 podemos perceber uma forte semelhanccedila entre as palavras que Satanaacutes usou para oferecer a autoridade dos reinos deste mundo a Jesus e a afirmaccedilatildeo de Jesus sobre o Pai ter-lhe concedido toda autoridade nos ceacuteus e na terra Em Lucas 46 Satanaacutes declara ldquoΣοὶ δώσω τὴν ἐξουσίαν ταύτην ἅπασαν καὶ τὴν δόξαν αὐτῶν ὅτι ἐμοὶ παραδέδοταιrdquo (ldquoA ti darei toda esta autoridade e a gloacuteria deles porque a mim foi entreguerdquo) Em Mateus 2818 Jesus decla-ra ldquoἘδόθη μοι πᾶσα ἐξουσία ἐν οὐρανῷ καὶ ἐπὶ τῆς γῆςrdquo (ldquoFoi dada a mim toda autoridade no ceacuteu e sobre a terrardquo) Jesus proclama sua autoridade nos ceacuteus e na terra repetindo quase que cada palavra proferida pelo diabo37 Podemos perceber que a batalha juriacutedica travada por Cristo eacute determinada pela antiacutetese entre o reino dos ceacuteus e o domiacutenio de Satanaacutes A tentaccedilatildeo com respeito aos reinos deste mundo (cf Lc 45ss e Mt 48ss) revela em que consistia o conflito entre Jesus e Satanaacutes O priacutencipe deste mundo (o diabo) estava se opondo ao reino de Deus por saber que Jesus disputaria essa autoridade com ele em nome de Deus sendo que Cristo jamais poderia fazer uso arbitraacuterio da autoridade que lhe fora dada antes deveria conquistaacute-la natildeo da maneira proposta por Satanaacutes mas da maneira determinada por Deus38 Enquanto a autoridade de Satanaacutes foi algo usurpado pela legalidade deixada por Adatildeo a autoridade de Cristo por sua vez foi um direito conquistado e recebido das matildeos um Deus soberano Ele natildeo usurpou tal autoridade antes ela lhe foi dada por Deus como uma capacitaccedilatildeo para um encargo39 Jesus eacute digno da autoridade que recebeu (Apocalipse 5) O que Satanaacutes ofereceu a Jesus foi ldquotoda autoridaderdquo sobre os reinos deste mundo mas o que Deus lhe concedeu foi toda autoridade nos ceacuteus e na terra dando-lhe um nome acima de todo nome (Fp 29-10) Isso aponta para o se-nhorio coacutesmico de Cristo

Fica claro que refletir sobre a obra realizada por Cristo em sua morte ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo eacute imprescindiacutevel para compreendermos o aspecto juriacutedico que envolve o plano da redenccedilatildeo A obra de Cristo efetua por assim dizer uma total renovaccedilatildeo coacutesmica colocando todos os reinos deste mundo sob seu domiacutenio conquistando a salvaccedilatildeo natildeo soacute de almas mas de corpos e natildeo soacute de seres humanos mas de toda a criaccedilatildeo40 Eacute com base nisto que pode-

36 LIMA A grande batalha escatoloacutegica p 29-3037 Ibid p 2938 RIDDERBOS Herman A vinda do Reino de Deus Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019 p 6439 KLAIBER Walter ldquoThe Great Commission of Matthew 2816-20rdquo American Baptist Historical

Quarterly vol XXXVII n 2 p 108-122 40 HORTON A Grande Comissatildeo p 72-73

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

80

mos entender o protoevangelho em gecircnesis 315 ldquoPorei inimizade entre ti e a mulher entre a tua descendecircncia e o seu descendente Este te feriraacute a cabeccedila e tu lhe feriraacutes o calcanharrdquo Na maldiccedilatildeo sobre a serpente veio embutida uma semente de esperanccedila para a humanidade uma esperanccedila genealoacutegica41

Eacute neste contexto mais amplo da alianccedila da graccedila que teve seu iniacutecio com a promessa divina de um redentor em Gecircnesis 315 que a Grande Comissatildeo eacute dada Jesus eacute o descendente da mulher que ao morrer na cruz e ressuscitar feriu a cabeccedila de Satanaacutes Ele esmagou a cabeccedila da serpente e estaacute pondo prisioneiros em liberdade pois lhe foi dada toda a autoridade nos ceacuteus e na terra42 Esta autoridade foi reivindicada por ele algumas vezes nos evangelhos quando falava de si mesmo como o ldquoFilho do Homemrdquo Tal expressatildeo aparece em Daniel 713-14 e eacute uma das mais usadas por Jesus para referir-se a si proacute-prio para falar de sua majestade de sua autoridade para perdoar pecados do seu poder legislador sobre o dia de saacutebado e da gloacuteria de sua segunda vinda (cf Mt 96 128 1627 2430 2531) Mateus 2818 parece ser uma alusatildeo consciente a Daniel 71443

Podemos dizer que Jesus estaacute edificando a sua igreja sobre a sua palavra e uma dessas palavras ocorre no evangelho de Mateus 2818-20 exatamente o texto da Grande Comissatildeo Mateus 2818 eacute o equivalente real a Daniel 714 ldquoE foi-lhe dado o domiacutenio e a honra e o reino para que todos os povos naccedilotildees e liacutenguas o servissem o seu domiacutenio eacute um domiacutenio eterno que natildeo passa-raacute e o seu reino tal que natildeo seraacute destruiacutedordquo Jesus reivindica ser este Filho do Homem profetizado por Daniel44 Eacute com base em sua proacutepria identidade que ele entrega a Grande Comissatildeo aos seus disciacutepulos Portanto Cristo eacute o centro de toda proclamaccedilatildeo missionaacuteria45 ele eacute o personagem central da missatildeo sua pessoa eacute o centro da Escritura (Lc 2427 44) e eacute ele mesmo quem deve ser proclamado (Lc 2446-47) Os disciacutepulos devem proclamar o evangelho com base no direito de Cristo o qual veio a este mundo para impor o direito divino sobre Satanaacutes e assim libertar os cativos O evangelho iraacute prevalecer46 Cristo veraacute o fruto do penoso trabalho de sua alma e ficaraacute satisfeito pois agrave medida que o evangelho for sendo proclamado a todas as naccedilotildees o Senhor atrairaacute muitos pecadores a si e justificaacute-los-aacute (Is 5311)

41 DEMPSTER Dominion and Dynasty p 6842 LIMA A grande batalha escatoloacutegica p 8243 CARSON Donald A O comentaacuterio de Mateus Satildeo Paulo Shedd 2011 p 68744 KLAIBER ldquoThe Great Commissionrdquo p 108-12245 PIPER John Alegrem-se os povos a supremacia de Deus em missotildees Satildeo Paulo Cultura

Cristatilde 2001 p 23446 LIMA A grande batalha escatoloacutegica p 45

81

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

2 O PODER DO EVANGELHOToda menccedilatildeo ao evangelho feita neste artigo tem como base a seguinte

definiccedilatildeo ldquoO evangelho eacute a mensagem de Deus para a redenccedilatildeo de sua igreja Eacute o poder de Deus que se manifesta na transformaccedilatildeo de pessoas Eacute o proacuteprio Senhor Jesus quem ele eacute o que ele fez na cruz e na ressurreiccedilatildeordquo47 Posto isto o poder o triunfo e os efeitos do evangelho satildeo infinitamente maiores do que a maioria de noacutes imagina

Em Colossenses 214 Paulo faz uso de uma metaacutefora tirada do mundo juriacutedico ele fala de uma espeacutecie de certificado de diacutevida uma cobranccedila de nossa diacutevida legal Ao comentar este versiacuteculo James Dunn diz que o pano de fundo aqui por meio da expressatildeo ldquocontra noacutesrdquo confirma que o documento em questatildeo era de condenaccedilatildeo era um registro de nossas transgressotildees hostil a noacutes Dunn ainda argumenta que a redenccedilatildeo realizada na cruz sob estas imagens efetua o cancelamento ou apagamento dos registros de um livro A eliminaccedilatildeo dos registros confirma que nenhuma destas transgressotildees eacute mais mantida contra noacutes em outras palavras a metaacutefora eacute outra maneira de dizer que ldquoele perdoou todas as nossas transgressotildeesrdquo48 Paulo usa uma imagem viacutevida ao afirmar que Cristo ao ser crucificado removeu destruiu o registro de diacutevida que era contra noacutes A ideia eacute de a acusaccedilatildeo estar sendo destruiacuteda por meio da crucificaccedilatildeo como se a proacutepria acusaccedilatildeo estivesse sendo crucificada Nossas transgressotildees foram absorvidas na morte sacrifical de Cristo49 Em Colossenses 215 Paulo daacute ecircnfase ao triunfo do Senhor ressurreto sobre principados e potestades Se em Colossenses 214 a cruz eacute siacutembolo de destruiccedilatildeo no sentido de cancelar ou destruir o escrito de diacutevida agora em Colossenses 215 ela eacute transformada em uma imagem puacuteblica de triunfo50

A versatildeo Todayrsquos New International Version traduz a expressatildeo ldquodespojan-do principados e potestadesrdquo como ldquotendo desarmado os principados e potes-tadesrdquo Douglas Moo ao analisar exegeticamente esses versiacuteculos afirma que foi na cruz que Deus desarmou tirou as armas dos dominadores deste mundo mas que foi na ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo de Cristo que Deus exibiu publicamente a realidade do triunfo de Cristo sobre os principados e potestades Para Moo o apoacutestolo Paulo ao usar a sequecircncia dos versiacuteculos 14 e 15 parece sugerir uma ligaccedilatildeo entre o perdatildeo de nossos pecados e o desarmamento dos poderes

47 LIDOacuteRIO Ronaldo Revitalizaccedilatildeo de igrejas avaliando a vitalidade de igrejas locais Satildeo Paulo Vida Nova 2016 p 21

48 DUNN James D G The Epistles to the Colossians and to Philemon Grand Rapids Eerdmans 2016 p 164-166

49 Ibid50 Ibid

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

82

das trevas51 Mais uma vez podemos perceber o aspecto juriacutedico da obra de Cristo seu direito e senhorio sobre todas as coisas

Esta verdade tambeacutem eacute encontrada em Efeacutesios 120-21 quando Paulo afirma que Deus ressuscitou a Jesus dentre os mortos e o fez assentar acima de todo governo domiacutenio principado e potestade Ele ensina a mesma verdade em Romanos 13-4 ao afirmar que Jesus foi designado Filho de Deus com poder por meio da ressurreiccedilatildeo Eacute quando ele ascende aos ceacuteus para assentar-se agrave direita do Pai que ele proclama sua vitoacuteria sobre os seres espirituais malignos (1Pe 318-22)52

1Pedro 318-22 eacute outro texto que apresenta a vitoacuteria da Cristo na batalha juriacutedica do Calvaacuterio Aqui o apoacutestolo Pedro fala acerca da morte e ressurreiccedilatildeo de Cristo seu triunfo e a proclamaccedilatildeo de sua vitoacuteria sobre os principados e potestades No versiacuteculo 19 Pedro usa o verbo ἐκήρυξεν (proclamar) para dizer que Jesus apoacutes ressuscitar proclamou sua vitoacuteria aos anjos caiacutedos (espiacuteritos em prisatildeo) anunciou o seu triunfo sobre seus adversaacuterios O texto termina dando destaque ao fato de que Jesus Cristo apoacutes ter subido aos ceacuteus estaacute agrave matildeo direita de Deus estando-lhe sujeitos os anjos autoridades e potestades (322) Pedro objetiva deixar claro que natildeo haacute nada nos ceacuteus e na terra que tenha ficado fora do domiacutenio de Cristo O alvo de Cristo ao fazer uma proclamaccedilatildeo especiacutefica a esses anjos em prisatildeo foi mostrar que nem mesmo aqueles antigos anjos caiacutedos que estavam haacute tanto tempo aprisionados ficaram alheios ao senhorio de Jesus53 ldquoO Senhor ressuscitado eacute o evangelho vivordquo54 ndash isto quer dizer que o evangelho venceu triunfou A ecircnfase do texto estaacute na obra de Cristo na cruz e no que ele conquistou ou seja a morte e a ressurreiccedilatildeo de Cristo garantem a libertaccedilatildeo dos seres humanos dos poderes dos espiacuteritos malignos55 Cristo se manifestou para tirar os pecados e para destruir as obras do diabo (1Jo 35 8) aleacutem de conquistar o direito de restaurar toda a criaccedilatildeo libertando-a do cativeiro do pecado (Rm 821)

Apocalipse 59-10 eacute mais um texto que apresenta essa questatildeo juriacutedica da morte e ressurreiccedilatildeo de Cristo e de como ele tem o direito de exercer seu senhorio sobre todas as coisas e de salvar pessoas que procedem dos quatro cantos da Terra No versiacuteculo 9 Joatildeo declara que Jesus ἠγόρασας (comprou) para Deus pessoas que procedem de toda tribo povo liacutengua e naccedilatildeo Cristo comprou a libertaccedilatildeo do seu povo da maldiccedilatildeo e da penalidade do pecado Mais do que isso ele comprou pessoas elas lhe pertencem Por meio de sua

51 MOO Douglas J The Letters to the Colossians and Philemon Grand Rapids Eerdmans 2008 p 215

52 Ibid p 21553 LIMA A grande batalha escatoloacutegica p 11054 DALTON William Joseph Christrsquos Proclamation to the Spirits A Study of 1 Peter 318-46

Roma Editrice Pontificio Istituto Biblico 1989 p 9 55 Ibid

83

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

morte sacrificial Cristo comprou um povo para si O verbo ἠγόρασας eacute usado como uma metaacutefora comercial para a libertaccedilatildeo de um prisioneiro de guerra da escravidatildeo Desta forma sua morte foi um resgate um preccedilo pago pelo qual Deus comprou um povo O texto mostra que o preccedilo foi o sangue incorrup-tiacutevel de Cristo que garante natildeo soacute a liberdade do seu povo mas que tambeacutem o coloca em uma nova condiccedilatildeo espiritual Agora esse povo eacute escravo de Deus comprado para fazer sua vontade Eacute o povo de propriedade exclusiva de Deus A redenccedilatildeo efetuada confere uma nova condiccedilatildeo56

Cristo possui toda a autoridade no ceacuteu e na terra Com base em sua vitoacuteria na terra ele expulsou Satanaacutes do santuaacuterio do ceacuteu onde ele acusava os santos dia e noite (Apocalipse 12)57 Apoacutes prender ou amarrar o valente Cristo estaacute saqueando sua casa na terra tomando de volta o que por justiccedila lhe pertence (Mt 1229) Douglas Moo ao abordar a visatildeo claacutessica da expiaccedilatildeo mostra que haacute uma conexatildeo entre o poder que Satanaacutes e seus correligionaacuterios tinham sobre os seres humanos por causa do seu pecado Contudo Deus com a provisatildeo de Cristo pagou a diacutevida que os homens tinham com Satanaacutes O Pai ao enviar seu Filho agrave cruz resolveu de maneira final e definitiva o problema do pecado e removeu qualquer poder que os espiacuteritos malignos possam ter sobre os se-res humanos Moo ainda destaca que a vitoacuteria de Cristo celebrada e exibida na sua ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo precisa ser entendida pelos crentes como se fosse deles Logo a autoridade de Cristo sobre os principados e potestades foi manifestada e em Cristo os crentes compartilham dessa autoridade58 A obra realizada por Cristo em sua morte ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo pode ser bem definida nestas palavras de Horton

Nosso Senhor realizou algo na Histoacuteria ndash em sua vida morte ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo ndash que o qualifica para ser juiz e justificador dos iacutempios Jesus eacute tanto o Senhor da Alianccedila que comanda quanto o Servo da Alianccedila que cumpre toda a justiccedila e obteacutem para noacutes o perdatildeo o novo nascimento a ressurreiccedilatildeo e a renovaccedilatildeo de toda a criaccedilatildeo Como Deus ele eacute Senhor como ser humano ele ldquofoi designado Filho de Deus com poder segundo o espiacuterito de santidade pela ressurreiccedilatildeo dos mortos a saber Jesus Cristo nosso Senhorrdquo (Rm 14)59

56 OSBORNE Grant Comentaacuterio exegeacutetico Apocalipse Satildeo Paulo Vida Nova 2014 p 290-29157 Antes da morte e ressurreiccedilatildeo de Cristo ao que tudo indica Satanaacutes tinha livre acesso ao ceacuteu

onde atuava como uma espeacutecie de promotor de justiccedila acusando os seres humanos de suas transgressotildees da lei divina Ao morrer Cristo pagou todo o preccedilo do resgate do ser humano destronando o acusador que jaacute natildeo tem mais base para continuar acusando o povo de Deus Satanaacutes perdeu seu posto de acu-sador no ceacuteu sua cadeira ficou vazia ele natildeo tem mais legitimidade para agir como acusador no ceacuteu LIMA Leandro Antocircnio de ldquoApocalipse como literatura um estudo sobre a importacircncia da anaacutelise da arte literaacuteria em apocalipse 12-13rdquo Dissertaccedilatildeo (Doutorado em Letras) Satildeo Paulo Universidade Presbiteriana Mackenzie 2012 p 188-189

58 MOO The Letters to the Colossians and Philemon p 21659 HORTON A Grande Comissatildeo p 42

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

84

Walter Klaiber afirma que a ressurreiccedilatildeo de Jesus jaacute eacute sua exaltaccedilatildeo60 Este eacute um ponto importante em nossa discussatildeo pois ao ressuscitar Cristo triunfa sobre o pecado sobre a morte e sobre Satanaacutes e seus anjos Em Romanos 14 lemos ldquoe foi designado Filho de Deus com poder segundo o espiacuterito de santidade pela ressurreiccedilatildeo dos mortos a saber Jesus Cristo nosso Senhorrdquo Sobre este texto John Stott declara que ldquoa ressurreiccedilatildeo eacute o ponto decisivo na existecircncia do Filho de Deus Antes de ressuscitar ele era o Filho de Deus em fraqueza a humildade Por meio da ressurreiccedilatildeo torna-se o Filho de Deus em poderrdquo61 Eacute digno de nota que Jesus soacute entrega a Grande Comissatildeo aos seus disciacutepulos apoacutes ressuscitar ldquoA ressurreiccedilatildeo marca a vitoacuteria incontestaacutevel de Cristordquo62 Ele obteve toda autoridade nos ceacuteus e na terra por meio de sua humilhaccedilatildeo sofrimento e morte63 A ressurreiccedilatildeo de Cristo deu iniacutecio agrave nova criaccedilatildeo de Deus sendo os cristatildeos as primiacutecias desta nova criaccedilatildeo Eacute por isso que Paulo escrevendo aos coriacutentios afirma ldquoMas de fato Cristo ressuscitou dentre os mortos sendo ele as primiacutecias dos que dormemrdquo (1Co 1517-20) Sua ressurreiccedilatildeo eacute a garantia de redenccedilatildeo do seu povo mas tambeacutem de todo o cos-mos Ademais ldquofoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de mortos como de vivosrdquo (Rm 149) Jesus morreu natildeo apenas para salvar seu povo dos pecados deles mas para ter o controle absoluto da nova criaccedilatildeo64 Diante dele todo joelho tem de se dobrar e toda liacutengua con-fessar que ele eacute o Senhor (Fp 29-11) ldquoEle estaacute agora amplamente instalado e declarado como Juiz e somente ele pode receber os apelos para absolviccedilatildeordquo65 Desta maneira o conceito de salvaccedilatildeo implica render-se ao senhorio de Cristo pois Jesus foi designado Juiz de todos os povos graccedilas agrave sua ressurreiccedilatildeo e foi colocado por Deus como o centro de toda a obra salvadora de Deus66 As implicaccedilotildees missioloacutegicas do seu triunfo como Juiz universal satildeo a base para a Grande Comissatildeo ldquoA ordem dada por Jesus de pregar o arrependimento e o perdatildeo de pecados repousava sobre sua ressurreiccedilatildeo Esse eacute o conteuacutedo da comissatildeordquo67 Com base nisto o Senhor Jesus comissiona seus disciacutepulos a irem pelo mundo e pregarem o evangelho a toda criatura

60 KLAIBER ldquoThe Great Commissionrdquo p 108-12261 STOTT John R W A mensagem de Romanos Satildeo Paulo ABU Editora 2007 p 5162 LIMA A grande batalha escatoloacutegica p 90 63 RIDDERBOS A vinda do Reino de Deus p 9964 SILVA Norval Oliveira da A mensagem de salvaccedilatildeo num contexto animista A questatildeo indiacutegena

uma luta desigual Minas Gerais Editora Ultimato 2008 p 20065 PIPER Alegrem-se os povos p 150 66 Ibid p 142 e 15067 STETZER Ed Plantando igrejas missionais como plantar igrejas biacuteblicas saudaacuteveis e rele-

vantes agrave cultura Satildeo Paulo Vida Nova 2015 p 64

85

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

3 AS GARANTIAS DO EVANGELHOSobre a questatildeo levantada no iniacutecio a respeito da traduccedilatildeo do verbo

πορευθέντες o autor deste artigo concorda com a posiccedilatildeo do professor Bos-ma de que o ldquoirrdquo faz parte do mandamento de se fazer disciacutepulos pois tanto eacute importante o discipulado local (fazer disciacutepulos e ensinar) quanto as missotildees transculturais Ademais estaacute claro que o Ide tem forccedila imperativa Logo natildeo faz sentido criar uma tensatildeo entre discipulado e missotildees pois as duas coisas estatildeo incluiacutedas e interligadas na Grande Comissatildeo ambas estatildeo debaixo da autoridade de Cristo

A ordem para que o evangelho fosse proclamado entre todas as naccedilotildees foi dada por Cristo aos seus disciacutepulos logo apoacutes sua vitoacuteria na batalha juriacute-dica travada na cruz e consumada na ressurreiccedilatildeo O Pai concedeu-lhe toda a autoridade nos ceacuteus e na terra bem como o direito de exercer essa autoridade sobre principados e potestades e abriu as portas para que o evangelho fosse pregado a todas as naccedilotildees sem impedimento algum68 Eric Kayayan declara que ldquoa proclamaccedilatildeo do evangelho de Jesus Cristo eacute o cetro por meio do qual Deus deseja governar o mundo e sua autoridade divina eacute expressa para que todos se submetam a elardquo69 Jesus deteacutem o direito de controlar todas as coisas e de exigir obediecircncia70 Faz-se necessaacuterio destacar que todos os eventos associados agrave primeira vinda de Cristo desde sua encarnaccedilatildeo ateacute a coroaccedilatildeo satildeo decisi-vos para a expulsatildeo de Satanaacutes do ceacuteu e seu aprisionamento para cercear sua influecircncia enganadora entre as naccedilotildees (cf Ap 121-6) Agrave medida que a igreja cumpre a Grande Comissatildeo a verdade do evangelho vai tomando o lugar da mentira do diabo e Cristo atrai a si todos os eleitos dentre as naccedilotildees A igreja enquanto uma poderosa organizaccedilatildeo missionaacuteria que proclama o evangelho entre as naccedilotildees natildeo pode ser destruiacuteda pelo diabo71 Michael Horton eacute asser-tivo ao dizer que ldquoa Grande Comissatildeo comeccedila com um triunfante anuacutencio de que toda a autoridade nos ceacuteus e na terra pertence a Jesus Cristo O evangelho

68 De acordo com a interpretaccedilatildeo amilenista do texto de Apocalipse 121-6 por ocasiatildeo da primeira vinda de Cristo Satanaacutes foi aprisionado no sentido de natildeo poder enganar as naccedilotildees para impedi-las de aprender a verdade acerca de Deus Logo durante a era do evangelho ele natildeo pode congregar todos os inimigos de Cristo para atacarem conjuntamente a igreja E embora sua influecircncia natildeo seja eliminada ela eacute tatildeo restringida que ele eacute incapaz de impedir a disseminaccedilatildeo do evangelho entre as naccedilotildees do mundo Por causa do aprisionamento de Satanaacutes na atualidade as naccedilotildees natildeo podem conquistar a igreja mas a igreja estaacute conquistando as naccedilotildees HOEKEMA Anthony A A Biacuteblia e o futuro Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2012 p 243-245

69 KAYAYAN Eric ldquoChristrsquos Fourfold Declaration of Authorityrdquo Unio Cum Cristo Philadeplphia v 5 n 2 (out 2019) p 5-13

70 CARSON Donald A Os perigos da interpretaccedilatildeo da Biacuteblia Satildeo Paulo Vida Nova 2011 p 5271 HENDRIKSEN William Mais que vencedores os misteacuterios do Apocalipse desvendados com

profundidade e fidelidade Trad Wadislau Martins Gomes Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011 p 220-222

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

86

que traz salvaccedilatildeo tambeacutem orienta a igreja em sua missatildeordquo72 Dessa maneira a afirmaccedilatildeo de que toda a autoridade em todo o reino coacutesmico de Deus foi dada ao Cristo ressurreto eacute um preluacutedio apropriado para a ordem que se segue pois a posse de tal autoridade era um requisito para a emissatildeo efetiva de tal ordem73 ldquoPor causa de sua autoridade seus seguidores podem ir confiantes de que seu Senhor estaacute no controle soberano de tudo nos ceacuteus e na terrardquo74

Assim as duas declaraccedilotildees que estruturam as palavras de Jesus na Grande Comissatildeo podem ser consideradas como a ldquoGrande Garantiardquo A primeira eacute que Cristo tem toda a autoridade nos ceacuteus e na terra que eacute a capacitaccedilatildeo dada por Deus para um encargo A segunda declaraccedilatildeo eacute a garantia de sua presen-ccedila constante pois Cristo garante que seus disciacutepulos natildeo estaratildeo sozinhos ele estaraacute com eles enquanto cumprem sua missatildeo75 Na teologia biacuteblica do evangelho de Mateus Jesus eacute apresentado como o ldquoEmanuelrdquo que quer dizer ldquoDeus conoscordquo (cf Mt 123 e 2820) Eacute essa consciecircncia da presenccedila do Cristo ressurreto e glorificado entre os seus disciacutepulos que garante o cumprimento da missatildeo76 Logo podemos dizer que o evangelho antecede a missatildeo porque o sucesso na tarefa depende inteiramente daquilo que Cristo jaacute realizou em sua primeira vinda

Esta autoridade de Cristo natildeo eacute um poder (δύναμις) que um grande con-quistador pode reivindicar Mas refere-se agrave autoridade (ἐξουσία) que eacute sua por direito a qual lhe foi conferida por aquele que tem o direito de concedecirc-la77 Donald Carson ao comentar sobre a autoridade de Jesus neste texto diz que as esferas em que ele agora exerce autoridade absoluta foram ampliadas para incluir os ceacuteus e a terra ou seja o universo O pai estaacute desobrigado da autori-dade do Filho Jesus eacute aquele por meio de quem a autoridade do Pai eacute mediada Carson ainda comenta que esta eacute uma guinada na histoacuteria da redenccedilatildeo pois o reino do Messias manifesta-se com novo poder78 Ao ressuscitar Jesus vence a morte e conquista a salvaccedilatildeo de sua igreja Sua ressurreiccedilatildeo abastece o mandato missionaacuterio79 Por meio de sua ressurreiccedilatildeo Cristo estaacute introduzindo uma nova era e sua igreja tem a tarefa de testemunhar essa verdade por todo o mundo

72 HORTON A Grande Comissatildeo p 2373 MCGARVEY John William The New Testament Commentary Matthew and Mark Delight

AR Gospel Light Publishing Company 1875 p 25374 CARSON O comentaacuterio de Mateus p 68875 KLAIBER ldquoThe Great Commissionrdquo p 108-122 76 ZABATIERO Juacutelio Paulo Tavares LEONEL Joatildeo Biacuteblia literatura e linguagem Satildeo Paulo

Paulus 2011 p 9677 Dr Constablersquos Expository Bible Study Notes Disponiacutevel em httpsplanobiblechapelorg

tconnotespdfmatthewpdf Acesso em 12 fev 202178 CARSON Donald A O comentaacuterio de Mateus p 68779 STOTT John R W Ouccedila o Espiacuterito ouccedila o mundo Satildeo Paulo Editora ABU 1997 p 409

87

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

Apoacutes ressuscitar ele ordena que em seu nome seja pregado o arrependimento e a remissatildeo dos pecados em todas as naccedilotildees (Lc 2446-47) Ele conquistou o direito legal para que a missatildeo seja cumprida Todas as barreiras satacircnicas caiacuteram pois Cristo conquistou o direito sobre toda a criaccedilatildeo Portanto eacute com base nessa nova ordem das coisas que Jesus envia seus disciacutepulos para a mis-satildeo de evangelizar o mundo dando certeza de sua presenccedila vitoriosa como uma garantia de que o evangelho triunfaraacute80 Posto isto Deus eacute quem cria e sustenta a existecircncia e o crescimento de sua igreja por meio de sua Palavra Esta mesma Palavra deve ser proclamada ao mundo a fim de que o reino de Cristo se expanda ateacute aos confins da terra Como Horton diz ldquoA decisatildeo do Pai eacute irrevogaacutevel A missatildeo de Cristo jaacute foi realizada e o Espiacuterito teraacute igual ecircxito em seus labores Segue-se pois que a Grande Comissatildeo natildeo falharaacuterdquo81

Na anaacutelise de Walter Klaiber isso fica bastante claro

A Grande Comissatildeo nada mais eacute do que a consequecircncia da Grande Garantia Portanto vaacute porque eu Jesus tenho toda autoridade sobre as naccedilotildees em minhas matildeos A missatildeo da igreja natildeo eacute uma cruzada para subjugar as naccedilotildees para Cristo sua tarefa eacute introduzir as naccedilotildees na realidade do domiacutenio de Cristo82

Uma vez mais o professor Michael Horton traz sua contribuiccedilatildeo ao dizer que ldquoo mandato da Grande Comissatildeo eacute como a estrela-guia para reajustar o foco da nossa missatildeo como cristatildeos e como igrejas na vocaccedilatildeo central para este periacuteodo entre as duas vindas de Cristordquo83 Logo satildeo os indicativos do evan-gelho que impulsionam e direcionam a igreja em sua missatildeo de proclamaacute-lo

CONSIDERACcedilOtildeES FINAISA Grande Comissatildeo exigiu uma resposta por parte dos primeiros dis-

ciacutepulos Eles eram servos inadequados e hesitantes Natildeo obstante foram chamados para cumprir o propoacutesito divino ao continuarem a ensinar aquilo que Jesus iniciou84 Eles enfrentariam tempos difiacuteceis pois estavam sendo enviados a um mundo hostil a Deus e ao evangelho Jesus lhes disse que seriam perseguidos accediloitados presos e ateacute martirizados (cf Jo 1518ndash164) Mas o reino de Deus iria avanccedilar o evangelho triunfaria a despeito de todos os ataques do inimigo (cf At 1920) Por semelhante modo a Grande Co-missatildeo exige uma resposta de todos os verdadeiros disciacutepulos de todas as eacutepocas A resposta adequada que devemos dar a estas palavras de Cristo eacute

80 LIMA A grande batalha escatoloacutegica p 8281 HORTON A Grande Comissatildeo p 3682 KLAIBER ldquoThe Great Commissionrdquo83 HORTON A Grande Comissatildeo p 984 FRANCE R T The Gospel of Matthew Grand Rapids Eerdmans 2007 p 1109

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

88

a de unir-nos aos onze disciacutepulos em adoraccedilatildeo e obediecircncia ao Senhor dos ceacuteus e da terra a fim de cumprirmos nosso papel na proclamaccedilatildeo das boas novas de salvaccedilatildeo do reino de Deus a todas as naccedilotildees e deleitarmo-nos com a certeza de que mesmo diante de um mundo hostil a Deus e ao seu povo mesmo em face da perseguiccedilatildeo que este mundo possa nos oferecer natildeo temos de temer porque se a presenccedila fiacutesica de Jesus com seus disciacutepulos estava limitada a seu periacuteodo de vida terrena por sua vez a presenccedila espiritual do Senhor ressurreto natildeo tem semelhante limitaccedilatildeo pois Cristo garante que sempre estaraacute entre seu povo obediente Ele eacute o Deus conosco85

Ainda podemos dizer que a proacutepria analogia usada no Novo Testamento para descrever a tarefa a ser cumprida na Grande Comissatildeo eacute a de embaixado-res arautos oficiais que foram designados pelo chefe da naccedilatildeo para anunciar algo de grande importacircncia para o mundo em geral Por semelhante modo o termo ldquoevangelhordquo era usado para se referir agrave boa notiacutecia que um oficial era comissionado a anunciar na sede a saber que tinha havido vitoacuteria no campo de batalha86 ldquoO evangelho antecede a evangelizaccedilatildeordquo87 Eacute a boa nova daquilo que Deus fez em Cristo e por meio dele que libera e impulsiona a igreja a adentrar o mundo com o evangelho As boas novas do evangelho falam da vitoacuteria de Cristo mostram que as portas estatildeo abertas por todo o mundo pois as barreiras satacircnicas caiacuteram Agora o reino de Deus avanccedila pelo mundo in-teiro vai a todas as naccedilotildees ningueacutem pode deter o avanccedilo do evangelho ele vai por todo o mundo

Sem duacutevida a igreja eacute embaixadora de um reino indestrutiacutevel Cristo estaacute presente entre noacutes atraindo pecadores a si Ele estaacute edificando a sua igreja e as portas do inferno jamais prevaleceratildeo contra ela (Mt 1618) Eacute somente Jesus quem pode formar ou edificar a igreja porque a igreja eacute dele e natildeo nossa Somos conclamados a anunciar em todas as naccedilotildees o evangelho do reino o reino do Filho do Homem um reino inabalaacutevel o qual natildeo pode ser frustrado por nossa infidelidade justamente porque natildeo se trata de um reino que noacutes mesmos estamos edificando e sim um reino que estamos recebendo (Hb 1228) pois Jesus edifica sua igreja empregando meios estabelecidos por ele mesmo e garantindo sua presenccedila salviacutefica88

O evangelho natildeo pode ser contido A despeito de toda perseguiccedilatildeo nada o segura Ele eacute universal e alcanccedila todas as naccedilotildees Por isso antes de colocar o imperativo Jesus deu o maior dos estiacutemulos e o grande fundamento missio-naacuterio o seu triunfo A autoridade que Cristo conquistou por ocasiatildeo de sua ressurreiccedilatildeo eacute a uacutenica razatildeo pela qual os disciacutepulos satildeo convocados a irem pelo

85 Ibid86 HORTON A Grande Comissatildeo p 1587 Ibid p 2688 Ibid p 332

89

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

mundo e fazerem disciacutepulos dele89 O Mestre estava lhes mostrando que sua obra jaacute foi consumada e mesmo que eles ainda natildeo vissem os efeitos dela por completo ela foi realizada em sua primeira vinda de maneira que o reino de Deus agora cresce e nada pode contecirc-lo

A compreensatildeo dessa realidade cristoloacutegica exerce uma enorme diferenccedila em nossa motivaccedilatildeo confianccedila e esperanccedila para cumprimos nosso papel na Grande Comissatildeo A vitoacuteria foi conquistada por Cristo e noacutes como os seus arautos devemos apenas proclamaacute-la natildeo esquecendo obviamente de fazer disciacutepulos de todas as naccedilotildees batizaacute-los e ensinaacute-los em tudo aquilo que Cristo ordenou Quando a igreja cumpre a Grande Comissatildeo estaacute honrando e respei-tando o senhorio de Cristo pois ele tem o direito de exigir nossa obediecircncia

Portanto a missatildeo da igreja aponta para o escaton Quando o presente estado de coisas terminar e ceacuteus e terra forem renovados uma multidatildeo de redimidos estaraacute diante do trono adorando ao Cordeiro de Deus pois a Grande Comissatildeo foi cumprida ldquoE ouvi a toda a criatura que estaacute no ceacuteu e na terra e debaixo da terra e que estatildeo no mar e a todas as coisas que neles haacute dizer Ao que estaacute assentado sobre o trono e ao Cordeiro sejam dadas accedilotildees de graccedilas e honra e gloacuteria e poder para todo o sempre (Ap 513)90

ABSTRACTThe legal context in which the Great Commission was given involves the

four great themes of Scripture creation fall redemption and consummation When placed in Eden Adam was tasked with governing all that God had created When he sinned he gave this authority to Satan When Christ died and rose again he fulfilled his redemptive purpose and as the last Adam recovered and extended the authority lost by the first The Great Commission in Matthew 2818-20 begins not in verse 19 but already in verse 18 when the risen Lord based on this same authority commands his disciples to go out into the world and make disciples of all nations Therefore this article aims to analyze the word ldquoἐξουσίαrdquo (authority) especially in the context of the Gospel of Matthew in order to reflect on the authority lost by Adam and regained by Christ and to evaluate how the triumph and exaltation of Christ are the guarantee of the missionrsquos success how they give meaning to the ldquogordquo invest the church with authority and propel the disciples to the fulfillment of the Great Commission pointing to the eschaton

KEYWORDSBiblical theology New Testament Great Commission Kingdom Gospel

Authority Legal battle

89 KAYAYAN ldquoChristrsquos Fourfold Declaration of Authorityrdquo p 5-1390 PIPER Alegrem-se os povos p 13

91

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 91-101

IGREJAS E HISTOacuteRIA UM MODELO PARA INTERPRETAR A DIFERENCcedilA ENTRE O CATOLICISMO ROMANO

E O PROTESTANTISMOPaul Wells

RESUMOEste artigo1 aborda o conceito de tradiccedilatildeo a maneira pela qual um grupo

religioso apresenta no desenvolvimento da histoacuteria a relaccedilatildeo entre o mundo espiritual e o mundo histoacuterico material A tradiccedilatildeo situa o grupo em relaccedilatildeo agraves suas origens transmite crenccedilas e quando se trata de outro mundo evoca o ceacuteu e daacute esperanccedila No cristianismo existem duas maneiras de considerar e representar a relaccedilatildeo entre o mundo espiritual e o mundo material O catolicismo romano representa essa relaccedilatildeo como comparaacutevel agrave que existe entre um ato e a intenccedilatildeo por traacutes do ato O protestantismo considera tal relaccedilatildeo comparaacutevel agrave que existe entre uma palavra e seu sentido Para abordar o tema Igreja e histoacuteria o autor propotildee fazer uma comparaccedilatildeo entre essas duas posiccedilotildees em trecircs aacutereas a Igreja e os sacramentos a Escritura e a tradiccedilatildeo o Espiacuterito Santo e a vida cristatilde Ao concluir explica por que a posiccedilatildeo protestante expressa pela Reforma representa o cristianismo autecircntico e como essa posiccedilatildeo estaacute ameaccedilada no presente

PALAVRAS-CHAVECatolicismo Protestantismo Histoacuteria Igreja Tradiccedilatildeo Escritura

Professor de teologia sistemaacutetica na Faculdade Livre de Teologia Reformada de Aix-en-Provence no sul da Franccedila atual Faculdade de Teologia Joatildeo Calvino

1 O artigo foi publicado originalmente em La Revue Reformeacutee nordm 221 20031 Traduccedilatildeo Paulo Seacutergio Athayde Ribeiro

PAUL WELLS IGREJAS E HISTOacuteRIA

92

INTRODUCcedilAtildeOAs comunidades religiosas tecircm por funccedilatildeo apresentar uma mensagem

que ofereccedila a seus fieacuteis acesso ao mundo invisiacutevel Elas manifestam no mundo temporal o que eacute divino Elas existem para falar do mundo invisiacutevel e espiri-tual e tornaacute-lo presente na realidade material fiacutesica Igrejas de todos os tipos procuram ser a ponte entre o terreno e o que estaacute aleacutem

Se o mundo invisiacutevel eacute permanente o mundo terrestre evolui e se modi-fica progressivamente Tudo parece estar em constante movimento O mundo tem uma histoacuteria E nessa histoacuteria as igrejas que apresentam a mensagem do mundo invisiacutevel assumem feiccedilotildees distintas e encontram formas diferentes de apresentar essa mensagem A relaccedilatildeo entre os mundos espiritual e material eacute sempre o palco de desenvolvimentos destinados a exprimir como o homem pode alcanccedilar o outro mundo

Esses desenvolvimentos constituem o que podemos chamar de ldquotradi-ccedilatildeordquo o que foi recebido e transmitido agrave geraccedilatildeo seguinte e por ela de novo apropriado atraveacutes de novas formulaccedilotildees ou adaptaccedilotildees Uma tradiccedilatildeo viva cresce no curso da histoacuteria Suas justificaccedilotildees tornam-se mais completas as explicaccedilotildees da sua verdade e suas praacuteticas tornam-se mais profundas Cada agrupamento humano ndash famiacutelia igreja naccedilatildeo ou clube esportivo ndash tem suas tradiccedilotildees e ritos Eacute inevitaacutevel porque uma comunidade sem tradiccedilatildeo estaacute destinada a desaparecer

Agraves vezes alguns catoacutelicos romanos pensam que os protestantes natildeo tecircm tradiccedilotildees e que as recusam totalmente Eacute verdade que alguns protestantes deram essa impressatildeo quando disseram ldquoNoacutes natildeo temos tradiccedilotildees somos contra toda tradiccedilatildeo noacutes precisamos somente da Biacutebliardquo No entanto no Novo Testamento vemos que precisamos guardar a tradiccedilatildeo apostoacutelica como ldquoo bom depoacutesitordquo e pretender natildeo ter tradiccedilotildees torna-se uma atitude tradicional Tal ponto de vista resulta em sectarismos

A tradiccedilatildeo de um grupo religioso eacute entatildeo sua maneira de apresentar progressivamente no desenvolvimento da histoacuteria a relaccedilatildeo entre o mundo espiritual e o mundo histoacuterico material Assim a tradiccedilatildeo situa o grupo em relaccedilatildeo agraves suas origens transmite crenccedilas e quando se trata de outro mundo evoca o ceacuteu e daacute uma esperanccedila No cristianismo ndash se deixarmos de lado a Igreja Ortodoxa que quanto agrave tradiccedilatildeo tem uma visatildeo muito proacutexima do catolicismo romano ndash existem duas maneiras de considerar e de representar a relaccedilatildeo entre o mundo espiritual e o mundo material

O catolicismo romano representa a relaccedilatildeo entre o material e o espiri-tual como sendo comparaacutevel agrave relaccedilatildeo que existe entre um ato e a intenccedilatildeo por traacutes do ato Como um beijo ganha significado do amor que exprime o mundo material e tudo o que acontece ganham significado daquilo que representam e fazem conhecer ou seja de uma realidade espiritual que os

93

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 91-101

supera Assim para o catolicismo a histoacuteria e os desenvolvimentos histoacutericos das representaccedilotildees do espiritual satildeo muito importantes A religiatildeo catoacutelica acentuou como eacute o caso em Newman por exemplo a importacircncia dos de-senvolvimentos registrados a partir das origens A verdadeira realidade se encontra nos desenvolvimentos o original natildeo eacute a melhor representaccedilatildeo da coisa ela se torna mais expliacutecita nos desenvolvimentos Esta concepccedilatildeo acen-tua a importacircncia da continuidade da tradiccedilatildeo a marcha em direccedilatildeo a uma expressatildeo mais perfeita do espiritual e a importacircncia da Igreja em velar por esses desenvolvimentos histoacutericos

O protestantismo que representa uma ruptura no processo de desen-volvimento da Igreja no seacuteculo XVI considera a relaccedilatildeo entre o material e o espiritual comparaacutevel agrave relaccedilatildeo que haacute entre uma palavra e seu sentido A palavra eacute o meio pelo qual um sentido eacute apreendido o qual ultrapassa o seu caraacuteter simboacutelico A realidade do beijo eacute maior do que a palavra e a palavra remete ao que a transcende Assim para o protestantismo o importante estaacute nas origens A mensagem se reporta a qualquer coisa que eacute maior do que a palavra e que se exprime nessa palavra Eacute por essa razatildeo que o protestantismo eacute um retorno agraves fontes ao sentido original e acentua a centralidade da Palavra de Deus Jesus Cristo e as palavras apostoacutelicas inspiradas que fazem com que o conheccedilamos Eacute aqui que a relaccedilatildeo entre o mundo material e o mundo espiritual eacute estabelecida

Propomos fazer uma comparaccedilatildeo entre essas duas posiccedilotildees para apro-ximar a questatildeo ao nosso tema sobre Igreja e histoacuteria e isso em trecircs aacutereas

bull A Igreja e os sacramentosbull A Escritura e a tradiccedilatildeobull O Espiacuterito Santo e a vida cristatilde

Ao concluirmos diremos por que a posiccedilatildeo protestante expressa pela Reforma representa para noacutes o cristianismo autecircntico e como essa posiccedilatildeo atualmente estaacute ameaccedilada

1 A IGREJA E OS SACRAMENTOSNa Idade Meacutedia foi desenvolvida a ideia de que o papel da Igreja era

o de suplementar a ausecircncia de Cristo Por meio dela Cristo se comunica com o mundo Ela constitui uma extensatildeo histoacuterica sob forma diferente da encarnaccedilatildeo de Cristo A proacutepria Igreja torna-se um instrumento da revelaccedilatildeo e mesmo que natildeo tenha acesso ao texto sagrado o homem pode conhecer a Deus atraveacutes dela Essa opiniatildeo sobre o papel histoacuterico da Igreja Romana corrente na eacutepoca da Reforma e rejeitada pelos reformadores permaneceu intocada

PAUL WELLS IGREJAS E HISTOacuteRIA

94

11 A sacramentalidade da IgrejaAssim atualmente um teoacutelogo como Edward Schillebeeckx2 em seu

livro Cristo o Sacramento do Encontro com Deus pode chamar Cristo de ldquoo sacramento primordialrdquo e a Igreja de ldquoo sacramento do Cristo ressuscitadordquo Como tambeacutem nos textos do Vaticano II a Constituiccedilatildeo Lumen Gentium sobre a Igreja (sect7) mostra uma noccedilatildeo muito materialista do corpo de Cristo ldquoNesse Corpo a vida do Cristo eacute infundida nos crentes que satildeo unidos ao Cristo sofredor e glorificadordquo

O irmatildeo Daniel Bourgeois comenta ldquoNa perspectiva catoacutelica essa sacra-mentalidade natildeo se limita ao sistema de sinais que acompanham os atos funda-dores da alianccedila entre Deus e os homens o sistema de sinais que acompanha o povo de Deus natildeo eacute um sistema fechadordquo3 A Igreja e sua vida constituem ldquoum sistema de significaccedilatildeo vivo que se move rico de dinamismo e de uma capacidade inesgotaacutevel em perceber a verdade dos atos da alianccedilardquo Assim haacute uma reatualizaccedilatildeo constante na histoacuteria da Igreja e de seus membros e isso eacute fundamental O grande exemplo dessa operaccedilatildeo eacute a missa como representaccedilatildeo natildeo sangrenta do sacrifiacutecio da cruz No ex opere operato se efetua pelo proacuteprio ato o que nele eacute representado Assim por atos histoacutericos no mundo material o mundo espiritual se faz presente de maneira real e eficaz

A Igreja como sacramento da redenccedilatildeo eacute o meio pelo qual a uniatildeo entre Cristo e o homem se efetua Ela eacute tambeacutem o elo entre o eterno e o temporal em todos os atos que realiza ao longo da histoacuteria Neste sentido os integristas do Monsenhor Lefebvre4 natildeo estatildeo errados ao defender a missa em latim O rito age independentemente da compreensatildeo que dele se tenha conforme a intenccedilatildeo do ato

12 A histoacuteria da Igreja e o reino de DeusLumen Gentium afirma que a Igreja ldquoprovida de dons de seu fundador

recebe a missatildeo de anunciar o reino de Cristo e de Deus e de instauraacute-lo em todas as naccedilotildees formando o germe que daacute iniacutecio a esse reino sobre a terrardquo (sect5) Apesar do caraacuteter discreto dessa formulaccedilatildeo em relaccedilatildeo a outras afirma-ccedilotildees podemos notar sempre a ideia de que a Igreja que faz a ligaccedilatildeo entre este mundo e o mundo espiritual eacute o meio pelo qual o mundo futuro penetra no mundo material e estende progressivamente sua influecircncia Esta ideia que tem sua origem em Agostinho propotildee que o reino de Cristo sobre a terra jaacute

2 NR O teoacutelogo belga Edward Schillebeeckx nasceu em 1914 e faleceu em 20093 BOURGEOIS Daniel ldquoEnsaio de anaacutelise teoloacutegica do integrismo catoacutelicordquo La Revue Reformeacutee

n 174 (1992) p 414 NR Marcel Lefebvre (1905-1991) arcebispo francecircs e rigoroso defensor do movimento tradi-

cionalista catoacutelico destacou-se por sua resistecircncia a algumas decisotildees do Conciacutelio Vaticano II

95

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 91-101

estaacute presente e se manifesta na Igreja Antes da eacutepoca moderna a missatildeo do papa era organizar o reino de Deus sobre a terra e estender sua influecircncia so-bre toda a vida O agente dessa presenccedila era o clero Essa ideia secularizada resultou no marxismo no qual o partido reina sobre toda a vida atraveacutes de seus membros Essa atitude dominante explica em parte por que as naccedilotildees catoacutelicas ou ortodoxas foram os bastiotildees do marxismo-leninismo

A Igreja tem portanto a missatildeo histoacuterica de manifestar a obra redentora de Deus e de adaptar a realidade deste mundo ao outro mundo da mesma ma-neira como o materialismo dialeacutetico anunciou a futura nova humanidade Aqui encontramos a mesma estrutura responsaacutevel pela sacramentalidade da Igreja

13 A Igreja como testemunha da Palavra de DeusNo protestantismo temos uma configuraccedilatildeo totalmente diferente a qual

representa a relaccedilatildeo entre a palavra e seu sentido Haacute aqui uma concepccedilatildeo diferente da relaccedilatildeo entre o tempo e a eternidade Da mesma maneira que uma palavra eacute diferente da realidade que evoca e eacute autocircnoma em relaccedilatildeo a ela haacute para o protestantismo uma distinccedilatildeo radical entre o tempo e a eternidade Esta distinccedilatildeo natildeo eacute ultrapassada pela Igreja que continuaria a encarnaccedilatildeo mas unicamente por Cristo que desce do ceacuteu Cristo eacute a Palavra de Deus que traz a revelaccedilatildeo aos homens ldquoNestes uacuteltimos dias Deus nos falou pelo Filho pelo qual tambeacutem fez o universordquo (Hb 1) Essa revelaccedilatildeo que foi concluiacuteda nas palavras apostoacutelicas eacute a uacuteltima palavra de Deus aos homens

Natildeo mais estamos no periacuteodo da encarnaccedilatildeo e sofrimento de Cristo mas no da sua ressurreiccedilatildeo e reino celeste A Igreja natildeo daacute continuidade agrave encar-naccedilatildeo porque esta foi encerrada pela ressurreiccedilatildeo Considerar a Igreja como continuaccedilatildeo da encarnaccedilatildeo eacute natildeo respeitar o reloacutegio da histoacuteria da revelaccedilatildeo retardando-o a uma hora que jaacute passou Eacute por esta razatildeo tambeacutem que os pro-testantes com razatildeo rejeitaram a utilizaccedilatildeo do crucifixo

O protestantismo propotildee um retorno agraves origens pela fidelidade agrave Pala-vra de Deus A Igreja estaacute onde a Palavra de Deus eacute fielmente pregada Para Calvino a sucessatildeo apostoacutelica natildeo reside nas coisas e nos homens mas na doutrina Calvino recusou crer que a Igreja tenha poderes espirituais particu-lares transmitidos por seus ldquooficiaisrdquo A Igreja se submete agrave Escritura e recebe sua autoridade dela Ela eacute canonizada pela Escritura e natildeo o contraacuterio Assim a autoridade da Igreja tem sua origem na Palavra de Deus e por ela eacute limita-da Nenhuma nova doutrina eacute permitida e natildeo se admite nenhuma doutrina estranha agraves Escrituras A verdadeira Igreja eacute espiritual e celeste Ela inclui os eleitos os filhos de Deus por ele conhecidos e ela se manifesta e se congrega onde a Palavra eacute pregada Assim a Palavra que reuacutene os filhos de Deus daacute o verdadeiro sentido ao povo comprado pelo Cordeiro que foi imolado antes da fundaccedilatildeo do mundo

PAUL WELLS IGREJAS E HISTOacuteRIA

96

Eacute por isso que para o protestantismo os dois sacramentos satildeo ldquopalavras visiacuteveisrdquo que acompanham e explicam a palavra pregada A eficaacutecia do sacra-mento natildeo estaacute propriamente no ato mas na compreensatildeo que dele temos na uniatildeo com Cristo pela instrumentalidade do Espiacuterito Santo A palavra visiacutevel o siacutembolo remete a seu sentido fundamental a purificaccedilatildeo pela morte de Cris-to a comunhatildeo presente com o mesmo Cristo e a expectativa de seu retorno Portanto os sacramentos protestantes requerem inteligecircncia espiritual

Aleacutem disso para o protestantismo o reino de Deus se faz presente natildeo pela Igreja mas pela praacutetica da Palavra O reino tem um caraacuteter global mas que se distingue da influecircncia da Igreja sobre a sociedade e de seus ldquooficiaisrdquo sobre os leigos Cada cristatildeo eacute um sacerdote da nova alianccedila e sua missatildeo eacute servir a Deus em todos os aspectos da vida Ele obedece a Deus na famiacutelia e no mundo do comeacutercio tanto quanto na Igreja

A perspectiva tambeacutem eacute diferente Natildeo se trata do reino futuro que se manifestaraacute no mundo da eternidade no tempo O reino futuro eacute ldquoo novo ceacuteu e a nova terra onde habitaraacute a justiccedilardquo Esse reino eacute anunciado desde o momento em que a Palavra vivida pelo cristatildeo livra a antiga criaccedilatildeo da servidatildeo do pe-cado Este eacute o sentido da ceacutelebre palavra de Lutero ldquoSe eu soubesse que Cristo voltaria amanhatilde hoje eu plantaria uma aacutervorerdquo Plantar uma aacutervore natildeo tem nenhum reflexo sobre a vinda do reino futuro mas o anuncia na criaccedilatildeo atual

Para o protestante a vinda do reino natildeo tem nada a ver com o ldquosobrenatu-ralrdquo que invade e metamorfoseia a natureza mas com a justiccedila que suplanta o pecado Eacute a graccedila da justificaccedilatildeo anunciada na Palavra e para noacutes completada em Cristo que realiza essa libertaccedilatildeo

Nessa perspectiva o protestantismo tem interpretado a histoacuteria muito concretamente pelo esquema criaccedilatildeo queda e redenccedilatildeo Toda a vida religiosa social poliacutetica familiar e pessoal eacute criada por Deus submissa ao pecado mas resgatada pela Palavra de Deus A Igreja tem a funccedilatildeo de pocircr em evidecircncia esta situaccedilatildeo pela Palavra que anuncia

2 A ESCRITURA E A TRADICcedilAtildeOEacute bastante compreensiacutevel que o catolicismo romano com sua ecircnfase sobre

o papel central da Igreja como ponte na histoacuteria entre este mundo e o mundo futuro tenha concebido a ideia do desenvolvimento do dogma A continuida-de eacute assegurada pela autoridade da instituiccedilatildeo histoacuterica da Igreja A principal justificaccedilatildeo do desenvolvimento da tradiccedilatildeo ao lado da Escritura reside na convicccedilatildeo de que a Igreja eacute a continuaccedilatildeo da encarnaccedilatildeo sob a direccedilatildeo do Es-piacuterito Assim a Igreja regulamenta a feacute de seus membros pela Escritura mas tambeacutem pela tradiccedilatildeo que tambeacutem eacute a verdade A Igreja interpreta aumenta e completa a Biacuteblia por suas tradiccedilotildees

97

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 91-101

21 A autoridade da tradiccedilatildeoDessa maneira a Igreja desenvolveu ensinos que ultrapassam o que eacute

ensinado na Biacuteblia Antes de 1500 a tradiccedilatildeo que o padre Gabriel Moran chama ldquoconstitutivardquo em seu livro Escritura e Tradiccedilatildeo tornou-se autocircnoma por direito proacuteprio Essas tradiccedilotildees satildeo os ensinos recebidos pela Igreja e satildeo normativos para a feacute Entre eles podemos destacar o purgatoacuterio a transubs-tanciaccedilatildeo as doutrinas marianas o primado papal a oraccedilatildeo aos santos etc

Quanto agrave origem dessas tradiccedilotildees reconhecidas pela Igreja como pos-suindo autoridade diferentes proposiccedilotildees foram formuladas o papa porque ele representa Cristo para a Igreja os conciacutelios da Igreja ou a tradiccedilatildeo oral veiculada apoacutes a eacutepoca apostoacutelica Quanto agraves duas questotildees fundamentais ndash a da relaccedilatildeo entre a Biacuteblia e a tradiccedilatildeo e a de identificar qual das duas tem a primazia ndash a posiccedilatildeo de Roma natildeo variou muito atraveacutes dos seacuteculos O padre Yves Congar afirmou que a posiccedilatildeo romana reconhece a insuficiecircncia das Escrituras O padre Georges Tavard em seu livro Santa Escritura ou Santa Igreja diz o seguinte ldquoA Escritura e a Igreja se completam mutuamente A Escritura conserva o primado ontoloacutegico e a Igreja o primado histoacuterico porque eacute somente ao recebecirc-la que os homens tomam consciecircncia da Palavrardquo

Assim historicamente a Escritura e a tradiccedilatildeo vecircm da Igreja A Igreja transmite a Escritura de uma geraccedilatildeo a outra com um conhecimento mais profundo sobre o seu sentido A tradiccedilatildeo eacute essencialmente a interpretaccedilatildeo da Escritura agrave qual se acrescentam os ensinos que ultrapassam as afirmaccedilotildees claras do texto sagrado O Conciacutelio de Trento respondeu aos reformadores ao afirmar a autoridade da Escritura e da tradiccedilatildeo Congar comenta ldquoAo afirmar o valor normativo das tradiccedilotildees apostoacutelicas natildeo contidas nas Escrituras o Conciacutelio fez da tradiccedilatildeo um princiacutepio formal paralelo agraves Escrituras senatildeo autocircnomo em relaccedilatildeo a elasrdquo

Natildeo entraremos aqui na discussatildeo recente sobre a interpretaccedilatildeo dos textos de Trento Basta dizer que de fato muitos protestantes adotaram em princiacutepio a noccedilatildeo da insuficiecircncia da Escritura como mostram as discussotildees da Confe-recircncia de Feacute e Constituiccedilatildeo em Montreal sobre ldquoA tradiccedilatildeo e as tradiccedilotildeesrdquo Um consenso atual entre catoacutelicos modernistas e protestantes liberais afirmaria a seguinte posiccedilatildeo ldquoA Escritura eacute o primeiro elo da tradiccedilatildeo cristatilde Como toda tradiccedilatildeo humana ela eacute faliacutevel e insuficiente A Escritura e as tradiccedilotildees satildeo ambas suscetiacuteveis de errarrdquo Podemos chamar esta posiccedilatildeo de traditio sola

22 A posiccedilatildeo dos reformadoresOs reformadores natildeo comeccedilaram seu conflito com a Igreja Romana por

causa da tradiccedilatildeo Foi quando Eck disse a Lutero que sua doutrina da justi-ficaccedilatildeo estava de acordo com o Novo Testamento mas natildeo de acordo com a tradiccedilatildeo da Igreja que o problema da autoridade da tradiccedilatildeo surgiu Em 1518

PAUL WELLS IGREJAS E HISTOacuteRIA

98

em Leipzig Eck obrigou Lutero a admitir que nem os Pais nem o direito ca-nocircnico mas somente as Escrituras tecircm autoridade uacuteltima sobre a Igreja

Acusaram os reformadores de natildeo terem antecedentes histoacutericos de romper com tudo o que o Espiacuterito havia feito ao conduzir o povo de Deus Contra o argumento segundo o qual a Igreja Romana tinha o apoio dos Pais dos cinco primeiros seacuteculos Calvino respondeu que sua autoridade natildeo provinha de sua antiguidade nem de seu reconhecimento pela Igreja mas que derivava das Escrituras Calvino honrou Agostinho ao citaacute-lo perto de trecircs mil vezes na sua Instituiccedilatildeo Cristatilde mas igualmente o criticou por suas ideias quanto ao celibato ao purgatoacuterio agrave autoridade eclesiaacutestica e sua interpretaccedilatildeo alegoacuterica da Escritura Para Calvino os Pais da Igreja podem ser reconhecidos enquanto permanecerem fieacuteis agrave Escritura e sua autoridade estaacute sempre subordinada a esta Calvino se sentiu completamente agrave vontade ao recusar as tradiccedilotildees roma-nas natildeo biacuteblicas ndash suas cerimocircnias doutrinas sacramentos e ministeacuterios ndash por duas razotildees Primeiramente os Pais da Igreja constantemente afirmaram que a Igreja deve se submeter somente agrave Palavra escrita mas a Igreja romana foi sempre atraiacuteda para o lado contraacuterio Em segundo lugar os Pais cometeram erros e nessa aacuterea a Igreja os seguiu contra o ensinamento Biacuteblico Como Lutero Calvino tomou como princiacutepio de autoridade para a vida da Igreja tatildeo somente a Escritura

23 O princiacutepio de Sola Scriptura contra ldquoEscritura e tradiccedilatildeordquo A ruptura entre os protestantes e Roma diz respeito a esta questatildeo fun-

damental quem tem a autoridade final em mateacuteria de feacute e praacutetica A posiccedilatildeo de Calvino sobre isso se resume nos seguintes pontos

bull Quando lemos a Escritura ouvimos a proacutepria voz de Deus Nada de origem humana se mistura a isso Sem a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo Isaiacuteas ou Jeremias teriam dito palavras impuras e tolas Mas quando o Espiacuterito comeccedilou a usaacute-los como instrumentos seus laacutebios se tornaram puros e santos

bull Uma vez que Deus fala na Escritura e em nenhum outro lugar natildeo haacute outra fonte de onde possa vir sua Palavra

bull Em razatildeo de sua origem uacutenica as Escrituras tecircm a autoridade e a suficiecircncia da Palavra de Deus Elas contecircm tudo o que Deus quer falar aos homens

bull Elas tecircm a autoridade suprema sobre a vida do cristatildeobull Ao estudarmos a natureza ou a histoacuteria podemos aumentar nossos

conhecimentos sobre Deus unicamente porque primeiramente somos iluminados pela Palavra biacuteblica

99

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 91-101

Foi assim que a doutrina protestante claacutessica formulou a finalidade das Escrituras ldquoDepois de Deus mesmo ter falado diz Calvino ele natildeo deixou mais nada a ser dito por outrosrdquo A Palavra eacute o viacutenculo entre o tempo e a eternidade porque por ela noacutes ouvimos Deus falar em nossa linguagem humana Aqui vemos que a concepccedilatildeo protestante implica num viacutenculo atraveacutes da Palavra que veicula o sentido da realidade Essa perspectiva eacute criacutetica em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo segundo a qual os atos e as tradiccedilotildees da Igreja representam a intenccedilatildeo divina na salvaccedilatildeo

Por esta razatildeo tambeacutem Calvino rejeita o sistema catoacutelico no qual as aparecircncias exteriores satildeo uma usurpaccedilatildeo da autoridade de Cristo resultando numa Igreja falsa Consequentemente longe de ser um pecado separar-se de Roma eacute uma ocasiatildeo para reencontrar pela Palavra a verdadeira Igreja em suas origens

3 O ESPIacuteRITO SANTO E A VIDA CRISTAtildePara o catolicismo romano a histoacuteria representa uma sucessatildeo de atos que

realizam a intenccedilatildeo divina Este mundo estaacute em relaccedilatildeo orgacircnica com o mundo futuro Deus usa as realidades externas como instrumentos eficazes Eacute por essa razatildeo que o esquema natureza e graccedila eacute capital no pensamento catoacutelico em particular a partir da Idade Meacutedia A graccedila eacute o ato divino que vem completar a natureza e preparaacute-la para a sua transfiguraccedilatildeo final

31 Encarnaccedilatildeo e vida cristatilde no catolicismo romanoNesse sentido a encarnaccedilatildeo de Jesus Cristo apresenta uma forma nova

de humanidade que realiza a intenccedilatildeo da criaccedilatildeo A vinda de Jesus Cristo torna a humanidade completa A Igreja como continuaccedilatildeo da encarnaccedilatildeo eacute uma nova humanidade sob a direccedilatildeo especial do Espiacuterito Santo Isto cons-titui a principal justificaccedilatildeo para o desenvolvimento do dogma e da praacutetica da Igreja no decorrer da histoacuteria

As consequecircncias satildeo importantes para a vida cristatilde Na Igreja Romana a pessoa realiza progressivamente sua nova humanidade num processo em que o homem se prepara para o outro mundo ao receber a graccedila sobrenatural atraveacutes dos sacramentos Fora da Igreja natildeo haacute salvaccedilatildeo e a graccedila eacute recebida pela natildeo resistecircncia do indiviacuteduo Este processo de aperfeiccediloamento continua mesmo aleacutem-tuacutemulo no purgatoacuterio

32 O Espiacuterito Santo e a vida cristatilde no protestantismoNo protestantismo com seu modelo palavrasentido a encarnaccedilatildeo eacute a

revelaccedilatildeo da Palavra de Deus Longe de completar a humanidade esta reve-laccedilatildeo de Deus em carne eacute necessaacuteria porque a natureza estaacute caiacuteda e o homem eacute incapaz de agradar a Deus Deus se revela em Cristo que em particular se

PAUL WELLS IGREJAS E HISTOacuteRIA

100

revela na cruz como Salvador abolindo o pecado por seu sacrifiacutecio Por essa razatildeo o protestantismo destaca o ldquouma vez por todasrdquo da epiacutestola aos Hebreus

Ao rejeitar a hierarquia romana Lutero e Calvino demoliram a noccedilatildeo de uma Igreja sacramental Como a graccedila eacute recebida O Espiacuterito Santo fala ao crente de maneira direta pela Palavra de Deus O Evangelho diz que somos pecadores mas justificados pela justiccedila da cruz ndash ldquoCristo em nosso lugarrdquo ndash quando nele cremos Assim o Espiacuterito de Deus efetua o novo nascimento do indiviacuteduo que se torna unido a Cristo pela feacute e eacute feito nova criaccedilatildeo Eacute pela Palavra e pelo Espiacuterito que ele eacute convertido

O padre Tavard afirma que o calvinismo eacute uma pneumatologia Ele destacou um ponto importante Para Calvino a Igreja deve abandonar sua proacutepria sabedoria e se colocar sob a direccedilatildeo do Espiacuterito pelas Escrituras Os dois andam sempre juntos O Espiacuterito como Autor das Escrituras eacute seu uacutenico inteacuterprete e natildeo o magisteacuterio da Igreja Ele ilumina o entendimento do cristatildeo que recebe a oferta de salvaccedilatildeo e o faz reconhecer a verdade da Palavra de Deus O Espiacuterito natildeo se dissocia jamais da Palavra biacuteblica e natildeo a contradiz porque eacute a sua Palavra

O Espiacuterito age sobre a Igreja Pela Palavra ele vivifica os crentes e assim acrescenta ao corpo de Cristo aqueles que creem Eacute neste sentido afirma Cal-vino que devemos compreender a expressatildeo ldquofora da Igreja natildeo haacute salvaccedilatildeordquo Por sua Palavra o Espiacuterito reina tambeacutem sobre a Igreja e a conduz Para que uma Igreja seja autecircntica eacute preciso que ela viva da vida do Espiacuterito que vem somente pela Palavra Assim a Palavra e a Igreja satildeo unidas pelo poder do Espiacuterito A Igreja resulta entatildeo da obra da Palavra e do Espiacuterito Ela vem deles e eacute subalterna a eles A Palavra e o Espiacuterito satildeo divinos a Igreja visiacutevel eacute humana

CONCLUSAtildeOPor que sou protestante Porque creio que o pensamento protestante eacute

o que estaacute mais proacuteximo da revelaccedilatildeo biacuteblica em particular em seu ponto central Jesus Cristo eacute a Palavra-revelaccedilatildeo de Deus para a nossa salvaccedilatildeo sob uma forma limitada e rebaixada a carne humana A encarnaccedilatildeo representa o rebaixamento de Deus que se revela como servo ateacute agrave morte de cruz Deus o Filho sofreu a consequecircncia do nosso pecado Limitaccedilatildeo obediecircncia e serviccedilo satildeo as palavras de ordem na Igreja submissa agrave Palavra de Deus A Igreja eacute posta natildeo sob o signo da dominaccedilatildeo divina e da gloacuteria mas sob a cruz Para compreender a relaccedilatildeo do nosso mundo com o outro Deus nos chama a considerar o sacrifiacutecio o abandono mesmo de sua Palavra encarnada Este eacute o centro da histoacuteria e seu sentido Noacutes estamos nos extremos de uma sucessatildeo de atos divinos que realizam progressivamente o propoacutesito de Deus

Entretanto um perigo existe Hoje a crise provocada pela criacutetica racio-nalista agrave Escritura minou a feacute na Biacuteblia como Palavra de Deus A Escritura eacute

101

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 91-101

considerada como insuficiente porque eacute reconhecida apenas como um teste-munho humano sobre uma revelaccedilatildeo que a ultrapassa Quando isso acontece a Biacuteblia eacute submetida ao julgamento de uma autoridade superior a razatildeo os sentimentos as tradiccedilotildees histoacutericas ou o imediatismo de um encontro com Deus Entatildeo a Biacuteblia natildeo eacute mais a autoridade final para a Igreja ou para o cristatildeo ela eacute somente um dos fatos constitutivos da vida cristatilde

A questatildeo fundamental destacada pelos reformadores permanece sempre ldquoEacute biacuteblico Sim ou natildeordquo Tudo o que exigir uma resposta negativa deve ser descartado de nossa vida Dizer e repetir essa eacute a vocaccedilatildeo histoacuterica da Igreja5

ABSTRACTThis article deals with the concept of tradition the manner in which a

religious group presents in the course of history the relationship between the spiritual and the historical material world Tradition positions a group in regard to its origins transmits beliefs and as far as another world is concerned evokes heaven and brings hope In Christianity there are two ways of considering and representing the relationship between the spiritual and the material worlds Roman catholicism represents such relationship as comparable to one between an act and the intention behind it Protestantism considers this relationship as comparable to one between a word and its meaning In order to approach the theme Church and history the author proposes to make a comparison of these two positions in three areas Church and sacraments Scripture and tradition and the Holy Spirit and Christian life In conclusion he explains why the Protestant position expressed by the Reformation represents authentic Christianity and how such position is under threat in the present time

KEYWORDSCatholicism Protestantism History Church Tradition Scripture

5 Aleacutem dos autores catoacutelicos romanos a que fiz referecircncia aproveitei a anaacutelise de dois protestantes hoje esquecidos HEIM Karl Das Wesen des Evangelischen Christentums (1929) tiacutetulo em inglecircs Spirit and Truth (Lutterworth 1935) e QUICK Oliver C Catholic and Protestant Elements in Christianity (Longmans Green 1924)

103

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION THE PRIMACY OF BIBLICAL REVELATION

Isaias DrsquoOleo Ochoa

ABSTRACTIn his discussion of evolution Bavinck offers a modified theory of

development rooted not under a mechanistic and naturalistic worldview as Darwin does but under a ldquotheistic-friendlyrdquo framework This article argues that Bavinckrsquos discussion of evolution as a whole endorses a modified AristotelianThomistic framework in order to understand the theory of development and thus overcomes the challenges raised by Darwinrsquos naturalistic worldview to biblical revelation

KEYWORDSDarwinism Evolution Evolutionary worldview Theology-science dia-

logue Theory of development

INTRODUCTIONCurrent scholarship on Herman Bavinckrsquos view of the theory of evolution

has tended to be unified in affirming that despite his criticism of it Bavinck seems to provide some room for evolution On one hand from his discussion in Reformed Dogmatics (originally published in Dutch between 1895-1901) and other writings1 it may be concluded that Bavinck fights fiercely against

The author is a minister of Word and Sacrament in the Reformed Church of America He is currently pursuing a PhD degree at Calvin Theological Seminary with concentration in Philosophical Theology He received his Master of Theology degree at Calvin Seminary (2017) and his Master of Divinity at Western Theological Seminary (2015)

1 Cf Herman Bavinck Reformed Dogmatics II ed John Bolt trans John Vriend (Grand Rapids MI Baker Academic) 407-529 Bavinck ldquoCreation or Developmentrdquo trans Hendrik De Vries in The Methodist Review (1901) 849ndash74 Bavinck ldquoEvolutionrdquo in Essays on Religion Science and Society ed John Bolt (Grand Rapids MI Baker Academic 2008) 105-118

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

104

Darwinrsquos evolutionary project and seems to reject it completely One the other hand in those same discussions where he treats the topic one also observes that Bavinck seems to be willing to concede some kind of ldquoevolutionrdquo as well For those who believe that Bavinck retains the notion of biological develop-ment of natural creatures in the Darwinian sense in order to integrate it into his understanding of biblical revelation one issue emerges while Bavinck appropriates the concept of ldquodevelopmentrdquo from the theory of evolution he seems to use the term in an opposite sense from that of Darwinism Taking this into account it is the thesis of this paper that in his discussion of evolution Bavinck progressively endorses a modified AristotelianThomistic notion of development in order to overcome the challenges raised by Darwinrsquos method-ology and naturalistic worldview to biblical revelation

When Bavinck debated evolution he objected to a series of features of Darwinrsquos theory of development These objections include the theoryrsquos features of naturalism its mechanistic understanding of the world its atheistic world-view and its teleological characteristic of natural organisms Although there exists scholarship that discusses Bavinckrsquos approach to evolution however it largely overlooks how Bavinck understands the notion of development in his dialogue with the theory of evolution In this respect and in order to narrow this research I will focus exclusively on Rob P W Visser and Abraham C Flipsersquos works which develop the theme of evolution in greater detail2

Rob P W Visserrsquos study ldquoDutch Calvinists and Darwinism 1900-1960rdquo in Nature and Scripture in the Abrahamic Religions offers an historical analysis of the reception of Darwinrsquos theory of evolution among the Cal-vinists in the Netherlands Visserrsquos work emphasizes the role that Abraham Kuyper and Herman Bavinck played in the theological renewal at the be-ginning of the twentieth century in the Dutch community (VISSER 1998 p 312) Visser suggests that although Darwinrsquos theory of evolution was rapidly integrated into the Dutch university system by the last two decades of the nineteenth century the Dutch Calvinist response tended to be slow and negative (VISSER 1998 p 293) Both Kuyper and Bavinck emphasized the necessity of differentiating Darwinrsquos theory of evolution as a scientific theory from its metaphysics Visser claims (VISSER 1998 p 294) In his view unlike Kuyper Bavinck was more positive about the theory of evolution for two main reasons First he believed that evolution relays part of the truth

2 See Rob Visser ldquoDutch Calvinists and Darwinism 1900-1960rdquo Nature and Scripture in the Abrahamic Religions (Leiden Brill 2008) 293-316 Abraham C Flipse ldquoThe Origins of Creationism in the Netherlands The Evolution Debate among Twentieth-Century Dutch Neo Calvinistsrdquo Church History 81 n 1 (March 2012) 104ndash47 For background information read George Harinck ldquoTwin Sisters with a Changing Character How neo-Calvinists Dealt with the Modern Discrepancy between Bible and Natural Sciencesrdquo In Nature and Scripture in the Abrahamic Religions 1700-Present Leiden Brill 2008 317-370

105

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

about the natural world Second Bavinck believed that current species were not identical with those that God originally created In this respect Visser writes

Bavinck did not subscribe to Darwinrsquos explanation of evolutionary development Natural selection ruled out divine intervention and was for this reason unac-ceptable He defended the idea that evolution was a teleological and organic rather than a mechanical process which opened its existence to an intelligent cause lsquoDesign law goal and directionrsquo and not selection where the keywords to understand and explain organic evolution Bavinck like Kuyper regarded God as the ultimate cause of evolution Bavinck presented his combination of creation and evolution as a Christian alternative for Darwinrsquos theory (VISSER 1998 p 296)

Visser reads Bavinck as one who seems willing to accept the development of natural species but finds unacceptable Darwinrsquos proposal of natural selection because of its rejection of a teleological character3 It is such a reading that leads Visser to affirm that both Kuyper and Bavinck succeeded in integrating evolution and biblical revelation

Kuyper and Bavinck removed the controversial elements [of Darwinrsquos theory of evolution] notably natural selection and the descent of man Evolutionary change was the only aspect of the theory that they could acceptThey [introduced] organic mutability into divine providence which enabled them to incorporate their modified view of biological evolution in their theology (VISSER 1998 p 297)4

Furthermore it is noteworthy to mention the context in which such integration happens In this respect Visser writes

The response of Kuyper and Bavinck to Darwin occurred in the context of attempting to develop a new understanding of Scripture as revelation resulting from both divine and human action They referred to this new understanding as organic insertion It contrasted with the mechanical inspiration that became dominant in the seventeenth century In this Calvinist orthodoxy God was believed to have verbally dictated the text with no contribution by the human writer As a result God became the warrant for a text that was considered ob-jective and could be used in rational argument The Bible became a source of objective factual information about nature and history (VISSER 1998 p 298)5

3 Cf Harry R Boer ldquoEvolution and Herman Bavinckrdquo Reformed Journal 37 n 12 (December 1987) 3-4 p 3

4 See also Eduardo J Echeverria ldquoReview Essay The Philosophical Foundations of Bavinck and Dooyeweerdrdquo Journal of Markets amp Morality 14 n 2 (2011) 463-483 pp 465ndash67

5 For further discussion see also James Eglinton ldquoBavinckrsquos Organic Motif Questions Seeking Answersrdquo Calvin Theological Journal 45 (1) 20120 51-71

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

106

There are many layers to debate within Visserrsquos previous citation One issue is with the suggestion that Bavinckrsquos interest in exploring the theory of evolution is connected to his desire to redefine his understanding of Scripture as revelation But Visser joins together what Bavinck kept distinct In that regard Visser does not seem to describe Bavinck correctly

Despite his criticism of Darwinrsquos theory of evolution Bavinck seems to be attracted to this topic and engages seriously with it In 2011 Willem J de Wit published a collection of essays titled On the Way to the Living God A Cathartic Reading of Herman Bavinck and An Invitation to Overcome the Plausibility Crisis of Christianity6 When writing briefly about Bavinckrsquos worldview and evolution he asks ldquoWhy will [Bavinck] later feel so attracted by the theory of evolution that he does not reject it once and for all but comes back to it again and againrdquo (DE WIT 2011 p 15) De Witrsquos way of posing this question is itself debatable because it suggests a personal and subjective crisis within Bavinck However I think de Witrsquos question is important to approach

De Wit discusses the prominence of worldviews in Bavinckrsquos theological work He states

From Creation or Development (1901) to The Philosophy of Revelation (19081909) the antithesis between the two worldviews is not just a theme but probably the most important issue for Bavinck He identifies evolution as the key concept of the modern worldview and revelation as the key concept of the Christian worldview In his publications on morals science education family social relations etcetera he seeks to make clear how different views in these areas are related to a difference in worldview and reflects on these areas from the perspective of his Christian worldview (DE WIT 2011 pp 55-56)

The reason behind Bavinckrsquos interest in evolution has less to do with his obsession than with the reality of the modern spirit which trumpeted Darwinism In any case as de Wit suggests the topic of evolution is not of secondary value in Bavinckrsquos theological discussion Rather part of Bavinckrsquos interest is in studying carefully the Christian against the naturalistic worldview Without understanding properly such a significant aspect Bavinckrsquos writings can be easily misunderstood especially those containing dated information

Another historical study is Abraham Flipsersquos ldquoThe Origins of Creationism in the Netherlands The Evolution Debate among Twentieth-Century Dutch Neo-Calvinistsrdquo It was published in 2012 and complements Visserrsquos work Flipse explores the role of Calvinists and their interest ldquoto formulatehellip[a] coherent view of science society and culturerdquo (FLIPSE 2012 p 107) This

6 Willem J de Wit On the Way to the Living God A Cathartic Reading of Herman Bavinck and An Invitation to Overcome the Plausibility Crisis of Christianity (Amsterdam VU University Press 2011) 16-94

107

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

exploration sets up the framework for this paperrsquos discussion Flipse offers his readers another of the main reasons why Bavinck rejected the theory of evolution besides discussing Bavinckrsquos position on the possibility to rescue the theory itself of some crucial elements Flipse writes

The ldquomechanistic worldviewrdquo that according to Bavinck underlies the Dar-winistic view of evolution a priori excluded supernatural interventions and prescribed that everything lsquoshould be reduced to mechanical motionrsquo Therefore Darwinists claim that mankind has descended from animals and that life has emerged spontaneously from inorganic matter How could it have happened otherwise If the mechanistic or ldquomodernrdquo worldview were to be abandoned Bavinck believed a different worldview could produce a different theory This theory could contain elements of Darwinism and would still be in harmony with belief in creation (FLIPSE 2012 p 112)

Like Visser Flipse reads Bavinck as not totally opposed to the theory of evolu-tion This would allow in Flipsersquos understanding of Bavinck that some ele-ments of the theory of evolution could be reinterpreted into a new framework that may be consistent with biblical revelation This line of reasoning was based in part because of the emphasis of Bavinck and other Dutch neo-Calvinists on the infallible character of the Scriptures (FLIPSE 2012 p 113) That is human knowledge and Scripture ought to be unified Of interest to this paper is Flipsersquos accurate conclusion in his first section that one of the greatest contributions of Bavinck and Kuyper to the evolution debate was not merely a matter of responding to specific questions Rather one of the greatest con-tributions was their approach to science based on the analysis of worldviews and presuppositions (FLIPSE 2012 p 116)

To address this issue Part I of this paper recounts how Bavinck understood and criticized Darwinism in the second volume of Reformed Dogmatics focus-ing primarily on his discussion of human origins in sect279-83 Here Bavinck shows a sympathetic reading of Aristotle and his particular use of the term lsquoevolutionrsquo In this section it is demonstrated that a) Bavinckrsquos understand-ing of lsquoevolutionrsquo or lsquodevelopmentrsquo differs significantly from the interpretation of Darwin and modern evolutionary theory and b) Bavinck is open to the possibility of accepting some features of Darwinism to be compatible with Scripture but only in a very limited sense Part II draws upon Bavinckrsquos two essays ldquoCreation or Developmentrdquo and ldquoEvolutionrdquo This second part ana-lyzes how Bavinck responded to Darwinism while also holding a high view of biblical revelation By analyzing the first essay listed above I demonstrate that Bavinck reframes his discussion on evolution as a worldview issue By analyzing the second essay I demonstrate that Bavinck endorses a notion of evolution in a modified Aristotelian sense

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

108

1 DARWINISM IN BAVINCKrsquoS REFORMED DOGMATICSIn his Reformed Dogmatics Bavinck introduces the topic of creation

and lsquoevolutionrsquo in relation to Darwinism Although he seems to remain open to the possibility of any eventual appropriation of aspects that might not be in contradiction with biblical revelation such openness must be understood in a very limited sense In order to establish a distinction between the former theory of evolution which had a Christian-Aristotelian framework from the modern interpretation of evolution which clings to a materialistic and naturalistic frame-work Bavinck tries to detach the term lsquodevelopmentrsquo or lsquoevolutionrsquo from its association with Darwinism and the eighteen century non-teleological theories To achieve his purpose Bavinck proceeds to sympathetically read Aristotle and his understanding of lsquoevolutionrsquo and lsquodevelopmentrsquo and from such a position becomes critical of Darwinrsquos theory of evolution

11 Evolution is not a modern construct Bavinck argues that the notion of evolution was developed by the Greek

philosophers Among those he cites Aristotle is a significant reference7 For Bavinck Aristotle rightly ldquoattributed an organic and teleological characterrdquo to the notion of development the transition from potentiality into actuality (BAVINCK 2004 p 513)8 With such understanding Christianity and the notion of lsquoevolutionrsquo would not contradict each other In this respect Bavinck writes ldquoFrom the Christian position there is not the least objection to the notion of evolution or development as conceived by Aristotle on the contrary it is creation alone that makes such evolution possiblerdquo (BAVINCK 2004 p 513) One observes that Bavinck here offers a sympathetic reading of Aristotlersquos view on lsquoevolutionrsquo and seems to agree with him at least in general terms

More useful for this paperrsquos argument is Bavinckrsquos assertion that during the eighteenth century the notion of evolution departed from this Aristotelian notion of development into other philosophical positions ldquoBut in the eigh-teenth century evolution was torn from its basis in theism and creation and made serviceable to a pantheistic or materialistic systemrdquo (BAVINCK 2004 p 513) Bavinck correctly charges Rousseau Kant Goethe Hegel and others of promoting such departure However one difference Bavinck claims existed between the position of these philosophers listed earlier and the modern approach to evolution the notion of lsquoevolutionrsquo still held its organic and teleological

7 Among those Greek philosophers who discussed the topic of lsquodevelopment or evolutionrsquo Bavinck cites the natural philosophers (eg Anaximenes Heraclitus) and the Atomists Bavinck clari-fies that while Heraclitus presented his theory with a pantheistic view the Atomists used a materialistic framework instead

8 Herman Bavinck Reformed Dogmatics II ed John Bolt trans John Vriend Grand Rapids Mich Baker Academic 2004 407-529 p 513

109

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

character Bavinck argues that it was through French naturalists J B Pierre de Lamarck and E G Saint-Hilaire along with English biologist and philosopher Herbert Spencer among other scholars that this ldquo[Aristotelian] evolutionary theory was so refashioned that it led to the descent of humanity from animal ancestryrdquo (BAVINCK 2004 p 513)

Although in the previous sentence Bavinck does not explicitly include the term lsquoAristotelianrsquo he seems to refer to it Bavinck first rightly claims that the departure of the lsquotheistic-creationistrsquo evolutionary theory had started before Darwin and secondly that Darwinrsquos observations about humanity and animals were ldquoserviceable to a hypothesis that was already dominantrdquo (BAVINCK 2004 p 513) In sum the notion of lsquoevolutionrsquo for Bavinck must not be understood exclusively as a product of Darwinism or modern theories

Interlude how did Bavinck understand DarwinismWhen Bavinck discusses Darwinrsquos theory of evolution or Darwinism he

understands it as

the theory that the various species into which organic entities used to be divided possess no constant properties but are mutable that the higher organic beings have evolved from the lower and that man in particular has gradually evolved in the course of centuries from an extinct genus of ape that the organic in turn emerged from the inorganic and that evolution is therefore the way in which under the sway of purely mechanical and chemical laws the present world has come into being (BAVINCK 2004 p 514)

This concise definition allows us to better comprehend how Bavinck understood Darwinism Careful attention must be paid into the series of con-siderations Bavinck offers of Darwinrsquos theory of evolution naturersquos struggle for life natural and sexual selection certain properties passing to future gen-erations and perfection of the organism by and through mutations Bavinck argues that all these considerations constitute mere ldquoassumptions and interpreta-tionsrdquo (BAVINCK 2004 p 514) For him scholars particularly theologians philosophers and scientists rightly recognized Darwinrsquos theory as a flawed and even a contradictory system (BAVINCK 2004 p 514-15) Therersquos no doubt that Bavinck shares such assessments and agrees with them His posi-tion however is reflected more clearly when he offers his major criticism to the modern theory of evolution

One notable aspect that must be clarified is Bavinckrsquos distinction between Darwinism in the broader sense versus its restricted sense While the latter refers to the ldquoexplanation that Darwin with his theory of natural selection offered for the origin of speciesrdquo the former refers to ldquothe opinion that the higher or-ganism evolved from the lower organisms and that the human species therefore gradually evolved from animal ancestryrdquo (BAVINCK 2004 p 516) Bavinck

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

110

believes that the restricted sense of Darwinism was generally discarded and the broader sense still enjoyed a good reputation during his era as it had earlier (BAVINCK 2004 p 516) Even as Bavinck pays little attention to the restricted sense of Darwinrsquos theory in relation to the broader one it does not mean he accepts it or finds it compatible with biblical revelation On the contrary Bavinck seems to reject the theory of natural selection without further consideration

12 Darwinism is incompatible with science and revelationBavinck offers four major critiques to the modern theory of evolution The

first one is that the theory of descent has not clearly demonstrated the origin of life Bavinck argues that evolution makes matter movement and life eternal By doing so the modern evolutionary theory adds a metaphysical dimension to the notion of evolution (BAVINCK 2004 p 517)9 This situation may be problematic for an eventual integration with biblical revelation especially if the new added metaphysical dimension is in tension with what Scripture says regarding human protology

Second Bavinck argues that Darwinism has not successfully explained the development of organic life in contrast to the Genesis narrative which ndash by claiming that animals and plants have come forth from the earth by divine order since the beginning of creation ndash gives sense to evolution (BAVINCK 2004 p 517) By using the notion of diversity and dissimilarity Bavinck claims that Darwinism is unable to explain the development of organic life In Bavinckrsquos view this proves the failure of Darwinism Thus he writes ldquo[N]atural and sexual selection are insufficient to make possible such changes in the species and have accordingly already been significantly limited and modified by Dar-win himselfrdquo (BAVINCK 2004 p 518) In addition empirical observation or science Bavinck claims has not shown a gradual transition of species from one to another On the contrary they have demonstrated that ldquoall kinds of spe-cies existed side by side from the beginningrdquo (BAVINCK 2004 p 518)10 In a few words what Bavinck suggests here is that Darwinism if true science must necessarily bases its theories and conclusions only on demonstrable facts

In this respect Bavinck believes that ldquo[m]aterialism and Darwinism are both historically and logically the result of philosophy not of experimental science Darwin himself in any case states that many of the views he presented were highly speculativerdquo (BAVINCK 2004 p 518-19)11 With this assertion

9 See also footnote 19 on p 51710 Besides this Bavinck gives two other reasons in order to support his point the lack of abundant

transitional forms of species and the belief that acquired properties are not passed on through heredity Regarding the latter point nevertheless Bavinck acknowledges that scholarship is enormously divided

11 In this respect Bavinck adds ldquoAccording to Haeckel Darwin did not discover any new facts what he did was combine and utilize the facts in a unique way The profound kinship between humans and ani-

111

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

Bavinck claims that Darwin was basically offering a philosophical response to the problem of evolution By this he suggests that Darwinrsquos account of evolu-tion was not based on scientific facts but on mere philosophical speculation

The third aspect in which Bavinck criticizes Darwinism is regarding the serious issues this system encounters when it tries to explain human origin To support his criticism Bavinck argues that there does not truly exist any positive proof that demonstrates humans have indeed descended from animal ancestry Bavinck offers two arguments the actual difference between humans and animals has always existed as well as the assumption of some transitional species These arguments are closely related to Bavinckrsquos belief that Darwinism is highly speculative

The fourth criticism Bavinck makes is the failure of Darwinism to explain humanity from a mentalpsychic dimension One of the main problems Bavinck finds in that sense is that Darwin tries ldquoto derive all the mental phenomena [eg consciousness] to be found in humansrdquo from the analogy of animal phenomena (BAVINCK 2004 p 519) Unlike biblical revelation Bavinck believes natural science has limitations in addressing mental phenomena and answering ultimate questions

It becomes clear that with this general criticism of Darwinrsquos approach to science Bavinck proceeds to reject Darwinism The problem further com-plicates with the close connection of Darwinism and materialism Bavinck argues that Darwinism significantly relies on a materialistic framework Even worse it ldquopaves the way for the subversion of religion and morality and the destruction of our humannessrdquo (BAVINCK 2004 p 520) Besides its tension with empirical science Bavinck argues that the theory of descent is also in tension with biblical revelation by ldquoviolat[ing] the image of Godrdquo in humanity and ldquodegrad[ing] the human into an image of the orangutan and chimpanzeerdquo (BAVINCK 2004 p 520) From this one concludes that in Bavinckrsquos view the doctrine of the image of God and evolutionary thinking are simply incompatible

13 Biblical revelation has priority over scienceBavinck defends one single kind of science where biblical revelation has

priority over worldviews and natural science However one must be cautious in that regard Bavinckrsquos theology is anti-dualistic and strongly dichotomizing revelation against science would be an error What Bavinck seems to defend is that scientific data must be interpreted in light of biblical revelation and not vice versa In this respect Bavinck defends the position that Scripture is

mals comes through in the concept of lsquorational animalrsquo But in earlier times this fact was not yet combined with the monistic philosophy which says that from a pure potency which is nothing ndash like such things as atoms chaos or cells ndash everything can nevertheless evolverdquo BAVINCK 2004 pp 518-19 Noteworthy to observe is Bavinckrsquos reference to Aristotlersquos concept of potency and his monistic philosophy

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

112

the one that offers a real account of humanityrsquos origins and of the different languages cultures races and alike For him all these human dimensions point ldquoto a single act of God by which he intervened in the development of humanityrdquo (BAVINCK 2004 p 525) Bavinckrsquos commitment to finding in Scripture ultimate questions is prominent Despite the diversity of languages and human ideas he claims there is still unity and that against such unity Darwinism is unable to provide an objection (BAVINCK 2004 pp 525-26)

One can observe that Bavinck seems to be open to the possibility of ap-propriation of some evolutionary ideas In that regard current scholarship on Bavinck is correct Nonetheless one must also consider that Bavinck allows such an appropriation only if it does not enter conflict with biblical revelation For instance discussing the diversity of current organisms Bavinck concedes that perhaps Darwinism might be useful to clarify the truth He writes ldquoDar-winism indeed furnishes the conceptual means of explaining the possibility of a wide assortment of changes within a given species as a result of various climatic and lifestyle influences To that extent it renders excellent service to the defense of truthrdquo (BAVINCK 2004 p 526) As seen Bavinck considers that the notion of lsquobiological changersquo can be a tool for biblical revelation One must not assume nonetheless that such lsquochangersquo must be understood in the Darwinian sense as Visser and Flipse seem to have concluded The fact that Darwinism might have some elements of truth does not mean the entire system does

Furthermore in discussing the different views on the interpretation of paradise and the Garden of Eden in Genesis 2 Bavinck again gives priority to biblical revelation over any other system of interpretation and in this case science Bavinck for example boldly claims that there is nothing in science that ldquocompels us to abandon the stipulation of Holy Scripturerdquo in regard to the earthly paradise and the first human beings despite the fact that we do not know the original place where the first humans resided (BAVINCK 2004 p 528-29) For Bavinck biblical revelation must be trusted and we should believe that despite being unknown the first humans beings lived in a defined and particular place at the beginning of the creation of humanity This demon-strates that Bavinck is committed to understand the insight offered by science under the biblical framework and not vice versa It is important to mention that one should not confuse what biblical revelation establishes in Scripture with our particular reading or interpretation of such revelation

As appreciated in Part I with such critical assessment Bavinck seems not to provide a lot of room for the theory of evolution to be understood as compatible with Scripture Besides the areas where Darwinrsquos theory is openly incompatible with biblical revelation there are other incompatibility issues that

113

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

arise12 In light of Bavinckrsquos preliminary view Darwinism has transgressed its limits as a plausible theory to reinterpret lsquoevolutionrsquo Darwinism moved from interpreting scientific data objectively to the field of explaining ultimate questions If there is something to be appropriated from Darwinism such ele-ments must not contradict biblical revelation which has priority Therefore Bavinckrsquos openness regarding an eventual appropriation from the theory of evolution must be understood in a very limited sense

2 HOW DOES BAVINCK TRY TO INTEGRATE EVOLUTION AND BIBLICAL REVELATION

In his essays ldquoCreation or Developmentrdquo (1901) and ldquoEvolutionrdquo (1908) Bavinck examines in-depth Darwinism and evolutionary theory In both essays readers will be able to appreciate Bavinckrsquos argumentative progression and deeper engagement with evolution along with a thought-provoking response on what aspects Bavinck believes evolution might be or not be compatible with biblical revelation

21 In the essay ldquoCreation or DevelopmentrdquoIn his essay ldquoCreation or Developmentrdquo Bavinck presents to his readers

the issue of evolution as he previously did in his Reformed Dogmatics This time nonetheless Bavinck reframes his discussion on evolution as a world-view issue Bavinck discusses how the human being has tried to explain the world in terms that leave out God and spirituality and instead has focused on ldquodata of matter and forcerdquo13 For him eighteenth century philosophers such as Spinoza later Hegel and Feuerbach have all failed in the task of success-fully explaining the origin of the world It is within this challenging context Bavinck claims that Darwinrsquos theory of development appears and embraces a ldquonew worldview which undertakes to interpret [all things] without exception independent of Godrdquo (BAVINCK 1901 Intro Par1) Bavinck in this essay introduces Darwinism as a lsquotheory of developmentrsquo In doing so Bavinck acknowledges that Darwinism constitutes a theory that has tried to explain

12 The previous four critiques discussed in this section are not the only ones Bavinck made against Darwinism Bavinck also argues other aspects such as a) that evolution also contradicts the Scriptures in other aspects than humanity origin ldquo[T]he age the unity and the original abode of the human racerdquo are areas where evolution and biblical revelation also differs Par sect281 ldquoThe Age of Humanity in Bavinckrdquo BAVINCK 2004 p 520-22 b) that Darwinism is unable to successfully respond to questions about the origin of humanity and its age because in the large period of time that it assumes is difficult to point out a first human being Par sect282 ldquoThe Unity of the Human Racerdquo in BAVINCK 2004 p 525 c) that science including Darwinism has not said anything certain about the home of humanity except ldquoconjuncturesrdquo since it ldquoknows nothing about the origin and abode of the first humansrdquo Par sect283 ldquoThe Original Abode of Humanityrdquo in BAVINCK 2004 p 528

13 Herman Bavinck ldquoCreation or Developmentrdquo The Methodist Review (1901) transl Hendrik De Vries 849ndash74 Introduction Par 1

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

114

the issue of evolution although such attempt has failed This is an important fact for this paper in light of Bavinckrsquos assumed interest in appropriating and reframing key aspects of Darwinism and evolution which might not conflict with biblical revelation

211 Darwinism is not science but a worldviewOne observes that Bavinck is not interested in responding a list of ques-

tions regarding evolution and how it challenges Christianity Rather Bavinck departs from another point where he rejects the idea that Darwinism is a solid scientific theory In this respect Bavinck in his Reformed Dogmatics claims that Darwinism is mere speculation and a philosophical system He reinforces this position and argues Darwinism is also a worldview in the first section of ldquoCreation or Developmentrdquo

Bavinck clarifies his understanding of natural science as ldquoan insight into the essence of things and an understanding of the idea the logic and the uni-versal which is to be observed in thingsrdquo (BAVINCK 1901 Section I Par1) Such a notion sets the framework from which Bavinck evaluates lsquoevolutionrsquo and its relation to biblical revelation He proceeds to discuss some ultimate questions such as the origin of life and all things He asserts that Darwinismrsquos theory of evolution (the development theory) addresses the ultimate question about the source of things In this respect Bavinck states ldquo[Its answer is that] there is no origin and no beginning of things All what is always was though it be in other forms and always shall berdquo (BAVINCK 1901 Section I Par4)

The issue Bavinck finds here is the philosophical suggestion on the eter-nity of matter and substance Substance has become according to Bavinck the ldquoDeity of the newer worldviewrdquo (BAVINCK 1901 Section I Par6) Therefore development or evolution has ldquodisplace[d] Divine Providencerdquo by becoming an ldquoeternal lawrdquo (BAVINCK 1901 Section I Par7) Despite Bavinckrsquos as-sertion that this law has tried to explain the origin of the universe and how the earth has become a habitable place for organisms through a process of development Bavinckrsquos tone is one of irony in order to make his point that current development theory has indeed displaced providence This seems to be confirmed with the following paragraph where Bavinck describes the new state of affairs under the newer theory of development

This is the new and newest interpretation of the origin of things There is some-thing imposing something which takes hold of one mightily in this view There is contained in its unity of thought boldness of conception and sequence of principle It is readily understood that it charms many Yes when one does not believe in revelation which furnishes another interpretation of all creatures one is bound in a similar way to render the origin of things in some measure intel-ligible to himself They must have come from somewhere and have originated in some way The theory may still be incomplete and leave many phenomena in

115

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

the physical and psychical world unexplained nevertheless according to Straus Darwin is hailed as the greatest benefactor of the human race because he has opened the door through which a more fortunate posterity will be able to cast out the miracle for good An age which denies the supernatural and even shakes off all religion cannot do other all opposition notwithstanding than expect all salvation from the reason its own thinking and to see the solution of all the riddles of the world in development (BAVINCK 1901 Section I Par8)

After this criticism Bavinck continues further and states that the theory of development ldquois not a product of science but of imagination It is no science in any serious sense no science exact as it is claimed to be but a worldviewa philosophy as uncertain as any system of the philosophersrdquo (BAVINCK 1901 Section I Par9) Because idealism is entirely based on imagination such a worldview becomes contradictory when it addresses human origin Idealism has failed to provide convincing evidence in favor of humanity having an animal ancestry (BAVINCK 1901 Section I Par14) In sum one notes that for Bavinck Darwinismrsquos claims are based on philosophical assumptions and imagination rather than on actual facts

212 Darwinism misappropriates the notion of developmentIn the second section of his essay Bavinck focuses on the essence of things

For Bavinck in this new worldview all creatures are just one constituted by a single substance that changes indefinitely an idea that suggests there is no God and spiritual world (BAVINCK 1901 Section II Par2) This would make the creation a big ldquomachine which has construed itself which continuously holds itself in motion and which completely blind without reason and pur-pose eternally runs on and never downrdquo With such properties creation is no longer a ldquoliving animated organic unityrdquo but an ldquoeternal existence of one and the same sortrdquo (BAVINCK 1901 Section II Par2)

Bavinck goes on with his critical assessment and offers a series of philo-sophical characteristics of the modern theory of development the lack of an ontological difference between humanity and animals the negation of the human soul and other human dimensions the reductionist view of humanityrsquos spiritual dimension and the promotion of anthropocentrism

The implications of a system with such features are important In this new worldview and in contrast to biblical revelation ldquothere is no difference of good and evil of right and wrong of truth and falsehood Everything is good and beautiful and true in its time and place according to the individual faith and choicerdquo (BAVINCK 1901 Section II Par6) This leads Bavinck among other factors to argue that this development theory is a failure in being unable to ldquointerpret the richness and variety of creationrdquo Therefore evolutionists for Bavinck have misappropriated the concept of development by understanding

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

116

it under a mechanical framework and thus concealing the drawbacks of their system of thought (BAVINCK 1901 Section II Par10)

Due to this fact Bavinck argues that lsquodevelopmentrsquo itself is not against the notion of creation ldquobut is only possible upon its foundation and belong to its confessionrdquo (BAVINCK 1901 Section II Par10) To that end Bavinck clarifies what he means and writes

Development produces nothing of itself it is not the mother of being or of life it is only a form of motion which can only reveal what lies hidden inwardly in the germ But the so-called development theory has no knowledge of germs it knows nothing of disposition or capacity of fitness and susceptibility In its sys-tem there is no room for anything save atoms and complexes of atoms which are altogether passive in themselves and are collocated only and alone in a mechanical or chemical manner by circumstances from without This makes no mention of development in its real sense (BAVINCK 1901 Section II Par10)

Bavinck here seems to defend a concept of development In doing so he sug-gests that development understood from a creationist perspective could be retrieved This retrieval would be possible if it is conceded that ldquobeings by way of [a process of] organic growthrdquo can become ldquowhat in germ and principle they already arerdquo This can be so because development itself ldquorefers to thought plan law endrdquo and ldquohe who names development names Godrdquo (BAVINCK 1901 Section II Par10)

One may observe Bavinckrsquos reference to Aristotlersquos notion of potentiality and actuality In effect he indeed seems to adopt an AristotelianThomistic framework to understand development the transition between potentiality (what a being is in germ and principle) and actuality (what the being has become in accordance to what they already are) Understanding development in this way is what I think allows Bavinck to incorporate the notion of lsquodevelopmentrsquo in his theological thought while having a high view of biblical revelation This is demonstrated by Bavinckrsquos words when he states

So little does development stand over against creation that there is scarcely any choice left between creation with the richest development on one side and mechanical combination by the accident of a host of similar atoms on the other Development stands between origin and end under Godrsquos providence it leads from the first to the last and unfolds all the riches of being and of life to which God gave existence (BAVINCK 1901 Section II Par10)

Bavinckrsquos redefinition of lsquodevelopmentrsquo allows him to ldquoembrace not merely a few but all phenomenardquo of the Christian worldview This is because in the Christian worldview the world is ldquoan organic living whole [containing] not only matter and force but also spirit and consciousness reason and willrdquo For Bavinck Godrsquos creation (eg the world) is a unity which ldquoreveals itself in the

117

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

richness and most beautiful varietyrdquo (BAVINCK 1901 Section II Par11) Unlike Darwinism all organic life follows its own law and nature In this respect Bavinck claims

And although the creatures are thus distinguished they are not separated from each other Together they form one whole one organism one art product of which God himself is the artist and the master builder In him in his counsel in his will all created things find their origin and maintain their existence (BAVINCK 1901 Section II Par11)

Bavinck concludes his second section of his essay emphasizing that the newer worldview has no knowledge of biblical revelation Thus the difference be-tween evolution in Darwinist terms and evolution in AristotelianThomistic sense becomes clearer

213 Darwinism lacks an adequate teleologyIn the third section of his essay Bavinck addresses the teleological aspect

of the things He commences his essay claiming that by this third section he has shown the theory of development (Darwinism) fails again because of its ldquoinsufficiency and unsatisfactory characterrdquo (BAVINCK 1901 Section III Par2) Such lacking is teleological the theory does not provide space for universal history For Bavinck although evolutionists speak sometimes of purpose in their theory such purpose is futile and without warrant He writes

The system of the development theory offers no room for a plan or a purpose Nothing is dominant then save the compulsion of fate or the capriciousness of accident Everything is as it is without reason and without purpose The theory of evolution furnishes no answer whatever to the inquiry to what purpose everything serves On this question it remains silent (BAVINCK 1901 Section III Par2)

Bavinckrsquos critique here is about the lack of an adequate teleology that can explain the purpose of humanity yet not limited to it In a non-teleological system in which the spiritual dimension is lacking Bavinck suggests there is no purpose at all If the created order does not have purpose the importance of history is undermined In other words ldquo[H]istoryhellipis dominated just like the physical world and with equal necessity by mechanical forces and lawsrdquo (BAVINCK 1901 Section III Par3-4) Having this line of reasoning in mind Bavinck asserts that ldquothe development of humanity cannot be taken as end-lessly progressingrdquo The end would be chaos and destruction which ultimately would lead to the extinction of the created order where ldquodeath [will be] the end of the world as well as of the individual man and of the entire human racerdquo (BAVINCK 1901 Section III Par5) Therefore this theory of development lacks an adequate eschatological aspect in its worldview

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

118

As appreciated in this part unlike biblical revelation the evolutionary worldview denies the teleological aspect of humanity and the created order For this reason Bavinck writes the following critical assessment ldquo[C]om-plete bankruptcy moral and spiritual is the end of the modern worldviewrdquo (BAVINCK 1901 Section III Par12) Bavinck entirely discards Darwinrsquos interpretation of the theory of development By reframing it as worldview Bavinck demonstrates that Darwinism is not true science but an interpreta-tive system imposed on scientific data And as such Bavinck claims that this interpretative system is flawed This becomes clearer when Bavinck claims that the lsquotruersquo development theory is to be found only in biblical revelation where history has a teleological course shaped by Scripture and there is an ldquoexpectation of the futurerdquo (BAVINCK 1901 Section III Par13)

22 In the essay ldquoEvolutionrdquoIn his ldquoEvolutionrdquo essay Bavinck begins by warning his readers about

the unstable character of the term lsquoevolutionrsquo throughout history and thus the diversity of the termrsquos meanings Bavinck clarifies the term making a refer-ence to Leibniz who was the first one to use the Latin term ldquoevolutiordquo with the connotation of ldquobecoming of things in naturerdquo14 Such an aspect is of high weight for this paper because of the different ways Bavinck has used the term Alongside previous criticism the fact that Bavinck redefines evolution as lsquodevelopmentrsquo in an Aristotelian sense shows that he has indeed endorsed an AristotelianThomistic framework to understand evolution Bavinck has already justified the reasons of such redefinition and now he has taken a further step in the progression of his ideas at the intersection of evolution and biblical revelation

221 The Christian idea of development is based on Aristotlersquos notion of evolution

Bavinck had previously discussed that although the term lsquoevolutionrsquo was not used by Greek philosophers they did discuss the idea behind it The idea of being Bavinck tells us was known to the Greeks especially Heraclitus who rejected the notion of being in favor of only becoming (BAVINCK 2008 p 106) The balance between being and becoming was then a topic later phi-losophers discussed such as Empedocles Anaxagoras the Atomists Plato and Aristotle among others For Bavinck however it is Aristotle the first Greek philosopher to present a development theory Bavinck writes

14 Herman Bavinck ldquoEvolutionrdquo in Essays on Religion Science and Society ed John Bolt Grand Rapids Mich Baker Academic 2008 105-118 p 105

119

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

And one can rightly say that the last-named philosopher [Aristotle] was the first to devise a lsquosystem of developmentrsquo Aristotle conceived of that which is as the being that is developing in the phenomena True being does not consist in isolation above and beyond but it is within things However it does not im-mediately and initially fully exist there but it gradually comes into being by way of a process All becoming (happening moving) consists in the transition from potential to actualityhellip

Aristotle therefore does not explain what came to pass ndash as the Atomists do ndash from mechanical pleasure to impact but he borrows his idea of development from organic life For him becoming is an actualizing a realization of what is potentially and germinally present in the phenomena he explains the becoming from the being for him the genesis exists for the sake of the ousia With this thinking Aristotle is far ahead of the Atomists because he considers becoming not as determined entirely from the outside through accidental circumstances but as guided from the beginning in a certain direction The nature the char-acter the being the idea of something indicates the direction in which the development will take place Since evolution is thought to be organic it is also thoroughly teleological And since Aristotle applies this idea of development not only to particular things but also to the world in its entirely he discovers order and planning movement and upward mobility in the world of creatures (BAVINCK 2008 p 106)

Bavinck argues that Christianity developed Aristotlersquos notion of de-velopment although he does not mention any name The important aspect to highlight in this respect is Bavinckrsquos assertion that ldquoChristianity did not replace or dispute [the Aristotelian] idea of development but took it over and enriched itrdquo (BAVINCK 2008 p 106) The claim that ldquomatter also originated from and through the word and therefore was a part of divine thoughtrdquo was the first great contribution of Christianity to Aristotlersquos development project a project that in its original form Bavinck finds very dualistic In this respect Bavinck believes ldquonature is not a dark demonic mass but incarnate wordrdquo With this anti-dualistic line of reasoning Bavinck rightly concludes that the theory of development presented by Aristotle was ldquoimmeasurably enrichedrdquo (BAVINCK 2008 p 107)

The second way Christianity benefited Aristotlersquos system of develop-ment was that it provided a coherent history of humanity which starts from a particular point toward eternal life In that regard Bavinck writes ldquoChristianity presents a history of humanity a development that proceeds from a certain point and moves toward a specific goal progressing toward the absolute ideal toward true being toward eternal liferdquo (BAVINCK 2008 p 107) So far Bavinck has held that Christianity appropriated Aristotlersquos development system and has enriched it He calls this the ldquoChristian idea of developmentrdquo an idea which ldquomade its way into the newer philosophy [of the seventeenth

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

120

century]rdquo (BAVINCK 2008 p 107) Bavinckrsquos sympathetic reading and af-finity to Aristotelesrsquos notion of development seems to be something that cur-rent scholarship has slightly ignored There is no doubt that Bavinck clings to Aristotle Such fact has implications on what Bavinck may accept or reject from Darwinrsquos theory of evolution

222 Darwinism has departed from AristotleChristianityPreviously in his Reformed Dogmatics Bavinck affirmed that the eigh-

teenth-century philosophers left the theistic development system Here Bavinck writes ldquowith many the idea of development is detached from the theistic founda-tion of which it rests in Christianityrdquo (BAVINCK 2008 p 107) Earlier in this essay we learned that the system was Aristotlersquos development theory enriched by Christianity therefore it can be concluded that Bavinck seems to endorse a modified Aristotelian framework to understand the theory of evolution If this claim is true as has been argued throughout this paper it will not only help readers better understand Bavinckrsquos position but also clarify to what extend he provides room for evolution (in the modern use of the term) with his high view of biblical revelation

ldquoEvolution is organic and teleological and for that reason it has a pro-gressive characterrdquo Bavinck has argued (BAVINCK 2008 p 106) Now he reaffirms such a vision claiming the different changes that people observe in the created order constitute a ldquodevelopment from withinrdquo This means that such development has been conceived ldquoorganically and for that reason retains its teleological characterrdquo (BAVINCK 2008 p 107) This development is not merely accidental according to Bavinck When poets and philosophers speak of ldquounity in the developmentrdquo in their ldquosearchinghellip for gradual transitionsrdquo they refer to a ldquological ideal order in the progression [development] of crea-turesrdquo and not ldquoa physical descent [of humanity]rdquo (BAVINCK 2008 p 108) Bavinck clings to this among other aspects to claim that philosophers of the nineteenth century departed from such a notion of development and replaced it with ldquoa totally different ideahellip[yet] was not completely new for it had been proposed already in antiquity by Leucippus Democritus and Epicurus [reemerging] with Descartesrdquo (BAVINCK 2008 pp 108-9) Supported by French naturalists and appropriated by some philosophers ldquothe [new] idea of development displayed a character that was too philosophicrdquo (BAVINCK 2008 p 108) Once again Bavinck highlights the difference between the two kinds of theories of development ndash the Aristotelian theory of development and Darwinism

Important to notice here is Bavinckrsquos assertion that Darwin provided the scientific character that the new understanding of development needed in order to become a theory of evolution In this respect Bavinck writes

121

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

The modern idea of evolution existed already before Darwin just as socialist expectations had prophets already before Marx But Darwin endeavored to give this idea of evolution a solid foundation in the facts in the same way in which Marx according to the opinion of his followers changed utopian socialism into a scientific socialism And Darwin did not leave it at that Not only did he show us in an amazing mass of facts striking analogies that exist between organic creatures which had been categorized in species by [Carolus] Linnaeus and on which he constructed his theory of descent he also tried to explain this descent by this hypothesis of lsquonatural selectionrsquo which in the lsquostruggle for lifersquo assures the lsquosurvival of the fittestrsquo and thus assures the development also as progressAs a result evolution received a completely different meaning in the newer science than it had before (BAVINCK 2008 p 108-9)

Bavinck here is bold about his rejection of Darwinism and Darwinrsquos appropria-tion of the notion of development which was previously understood as ldquoan organic progressive teleological processrdquo that has the purpose of ldquoposit[ing] a logical idealistic order between creaturesrdquo (BAVINCK 2008 p 109) Although Bavinck does not indicate it he seems to make a reference to Aristotlersquos Great Chain of Being especially with his explanation of the purpose of the former theory of development

Rightly after his clarification about Darwinrsquos misappropriation Bavinck proceeds to offer a brief explanation of the claims made by the new theory of development (Cf BAVINCK 2008 p 109) Modern readers must not assume that the previous list is exhaustive in the aspects Bavinck rejects from Darwinism Such an integral perspective is only reached when taking into account at least his exposition in Reformed Dogmatics and his ldquoCreation or Developmentrdquo essay among other brief references Bavinck makes to evolution in other parts of his theological thought15

223 Failure of the Darwinist methodology Once Bavinck offers his brief list of the characteristics of the new theory

of development he moves on to discuss some methodological aspects of Dar-winrsquos theory of evolution Bavinck criticizes the lack of purpose or guidance in the new theory of development as well as its inability to ldquoprovide norms by which to measure progress or declinerdquo While evolutionists speak of ldquoa con-tinuing improvement of the human racerdquo such a naiumlve notion of improvement is used by some to manipulate people and their ldquoexpectations to the other side

15 In this respect Bavinck writes ldquoSo many and such weighty objections exist against this theory that it is impossible to consider it seriously as a solution to the problems of this world The short space available for this controversy permits only a few comments but these may already be sufficient to justify any counterargument that mechanical monism experiences in many circles both within and outside the realm of scholarshiprdquo (ldquoChristianity and Natural Sciencerdquo in Essays on Religion Science and Society ed John Bolt Grand Rapids Mich Baker Academic 2008 81-104 p 100)

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

122

of the graverdquo (BAVINCK 2008 p 109) Bavinck ironically writes ldquohellip[I]f a monkey can evolve gradually into a human being there is a good possibility than in the next life humans will gradually change into angels (BAVINCK 2008 p 110) He offers this example as a way of noticing the absurd ldquomechanical non-teleologicalrdquo characteristic of the new theories of development and descent

As Flipse notices Bavinck argues that the mechanical worldview is deficient It is not enough to claim that ldquothe world is a machinerdquo because believing such an idea requires a lot of faith from us ldquo[W]hen natural science limits itself to its own realm it does not have to concernrdquo about the ldquoorigin of thingsrdquo Bavinck asserts (BAVINCK 2008 p 110) The issue arises when the limits of science are transgressed into the metaphysical or philosophical realm ldquoThe mechanical idea which is fully justified in some areas of nature is then expanded into a mechanical worldview and proclaims the dogma of the eternity of the matterrdquo For Bavinck in the moment such a situation happens the scientist becomes a philosopher (BAVINCK 2008 p 110)

Bavinckrsquos point opens the door to evaluating Darwinism in light of its metaphysical claims It is not a surprise that Bavinck claims a ldquoperpetual motion machine is self-contradictionrdquo as a critique to Darwinismrsquos mechani-cal worldview a view that lacks mystery This goes in contradiction to ldquothe mystery of beingrdquo (BAVINCK 2008 p 110) Bavinck concedes however that the only mystery that this newer theory of development and its mechani-cal worldview has is about ldquothe origin of thingsrdquo (BAVINCK 2008 p 111) One should note that this concession does not necessarily mean that Bavinck would include such elements in an eventual Christian account of lsquoevolutionrsquo as Flipse seems to understand

Bavinck also argues that believing in the concept of a rational human being assumes that there is a difference between human beings and animals Such a difference is made evident not only in body structure but also in body organs and embryonic development (BAVINCK 2008 p 113) This claim is significant especially if one tries to contend that Bavinck seems to be open with some elements of the evolutionary theory Bavinckrsquos critique is clear the embrace of the theory of descent is a product of leaving the faith and ne-glecting scientific data (BAVINCK 2008 p 113) Therefore arguments from the theory of descent are not based on pure facts but on hypotheses As seen Bavinck does not criticize Darwinism only from the claims it makes but also for the methods it uses

For instance Bavinck becomes critical of the comparison method that Darwin uses for the theory of descent He argues that the theory of descent relies too much on comparison (eg comparative anatomy physiology and psychology) Darwinismrsquos method fails because despite all similarities be-tween man and animal humankind is separate from all creatures (BAVINCK 2008 p 114) Such differentiation is not merely physiologically but also of

123

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

the metaphysical dimension of man In this respect Bavinck relies on this fact to assert that other areas of study such as religion philosophy and psychology have important insights to provide when the theory of descent is assessed (BAVINCK 2008 p 115) As he has done in other parts Bavinck rejects the notion that there is a gradual transition which supports the theory of descent

In sum Bavinck rejects not only the content of Darwinism and how it has interpreted the theory of evolution but its own flawed methodology

224 Development can be accepted but only in the Aristotelian sense

After offering arguments to what extent evolution and biblical revelation may not contradict each other Bavinck argues that there is room for develop-ment in the ldquotrue sense of the wordrdquo but such development assumes ldquoplan and law direction and goalhellipbeginning and endrdquo (BAVINCK 2008 p 118) It is not a coincidence that Bavinckrsquos last sentences refer to Aristotle ldquo[He] already understood that becoming exists for the sake of being not the reverse There is becoming only if and because there is beingrdquo (BAVINCK 2008 p 118) Here Bavinck claims there is space for lsquodevelopmentrsquo in biblical revelation However he restricts such possibility significantly one should understand lsquodevelopmentrsquo in the real meaning or true sense of the term As it was shown previously in this paper Darwinist or non-teleological theories of evolution do not give such real meaning to the term but the lsquoChristian-Aristotelianrsquo framework does

CONCLUDING REMARKSBavinckrsquos engagement with the theory of evolution is noteworthy Unlike

his general criticism to Darwinism in his discussion of human origins in RD sect279-83 the essays studied here analyze the theory of evolution in a further in-depth fashion While in ldquoCreation or Developmentrdquo Bavinck approaches Darwinism as an interpretative system of scientific data in his essay ldquoEvolu-tionrdquo Bavinck reclaims the notion of lsquodevelopmentrsquo and lsquoevolutionrsquo under a modified Aristotelian-Christian account of lsquoevolutionrsquo It is a framework that seems to be compatible with Scripture but rejects Darwinism as a whole and not only a particular feature of it Current scholarship is partially right

What this paper departs from modern scholarship is that Bavinckrsquos notion of lsquodevelopmentrsquo is not merely a kind of Christianized Darwinism or theistic evolution It is true that Bavinck might allow certain changes in organisms but only within their kinds without any notion of metaphysical change improve-ment or retrogression such as the change of an organism of a kind evolving into another kind When Bavinck speaks of lsquodevelopmentrsquo his use of the term is strictly in accordance to the Aristotelian metaphysics being as becoming

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

124

Modern readers must take into consideration that this Aristotelian posi-tion has traditionally been understood as opposed to evolution in the modern sense Bavinck has modified the Aristotelian notion of development to allow certain changes in the material constitution of organisms but not in their es-sence With this understanding of lsquodevelopmentrsquo Bavinck indeed overcomes the challenges on the intersection of evolution and biblical revelation but does not leave much room to appropriate evolutionary thinking

RESUMOEm sua anaacutelise da evoluccedilatildeo Bavinck oferece uma teoria modificada de

desenvolvimento radicada natildeo em uma cosmovisatildeo mecanicista e naturalista como Darwin faz mas em uma estrutura ldquoamistosa ao teiacutesmordquo Este artigo sugere que a discussatildeo de Bavinck acerca da evoluccedilatildeo como um todo endossa uma estrutura modificada aristoteacutelica-tomista a fim de compreender a teoria do desenvolvimento e assim supera os desafios levantados pela cosmovisatildeo naturalista de Darwin para a revelaccedilatildeo biacuteblica

PALAVRAS-CHAVEDarwinismo Evoluccedilatildeo Cosmologia evolutiva Diaacutelogo teologia-ciecircncia

Teoria do desenvolvimento

125

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 125-129

RESENHA

Heber Carlos de Campos Juacutenior

ALLEN Michael SWAIN Scott R Catolicidade reformada a pro-messa da recuperaccedilatildeo para a teologia e a interpretaccedilatildeo biacuteblica Brasiacutelia DF Monergismo 2021 223 p

A Editora Monergismo nos presenteou com um livro que enriquece mui-tiacutessimo o cenaacuterio teoloacutegico brasileiro quanto agrave autoria e quanto ao tema Mi-chael Allen e Scott Swain satildeo pouco conhecidos do puacuteblico brasileiro embora capiacutetulos de sua autoria jaacute tenham sido publicados em nosso idioma (Teologia da Reforma org Matthew Barrett Thomas Nelson Brasil 2017) Ambos satildeo professores de teologia sistemaacutetica do Reformed Theological Seminary no campus da cidade de Orlando nos Estados Unidos Satildeo autores jovens mui proliacuteficos e extremamente haacutebeis no lidar com teologia contemporacircnea Neste uacuteltimo quesito quero dizer que eles satildeo teoacutelogos que interagem frequente e perspicazmente com autores recentes inclusive de outras tradiccedilotildees cristatildes Portanto ambos fazem teologia sistemaacutetica natildeo somente reproduzindo as vozes de autores do passado mas mediante um rico diaacutelogo criacutetico com dife-rentes linhas doutrinaacuterias modernas Uma variedade de fontes pode ser vista no livro que estamos resenhando prova de que os autores estatildeo encarnando um espiacuterito ldquocatoacutelicordquo

Isso me leva ao segundo aspecto no qual este livro enriquece o cenaacuterio protestante brasileiro o tema A catolicidade agrave qual o livro se refere natildeo eacute uma referecircncia agrave Igreja de Roma nem um aspecto meramente eclesioloacutegico (universalidade geograacutefica e antropoloacutegica da igreja) mas um resgate e incor-poraccedilatildeo da tradiccedilatildeo teoloacutegica cristatilde Cientes de que existem vaacuterios movimentos

Doutor em Teologia Histoacuterica (PhD Calvin Theological Seminary) Mestre em Teologia His-toacuterica (ThM Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper) professor de Teologia Histoacuterica no CPAJ e de Teologia Sistemaacutetica no Seminaacuterio Presbiteriano Rev Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo

CATOLICIDADE REFORMADA A PROMESSA DA RECUPERACcedilAtildeO PARA A TEOLOGIA

126

recentes que tecircm retornado agraves fontes antigas ndash desde catoacutelicos (Yves Congar e Henri de Lubac) passando por anglicanos (John Milbank e Graham Ward) protestantes de denominaccedilotildees liberais (Donald Bloesch e Thomas Oden) e ateacute evangeacutelicos (Robert Webber e D H Williams) ndash Allen e Swain se unem a essas tendecircncias recentes de renovaccedilatildeo teoloacutegica mediante a recuperaccedilatildeo de recursos da tradiccedilatildeo cristatilde (p 19-30) No entanto os autores natildeo estatildeo apenas seguindo a tendecircncia de nosso tempo mas estatildeo seguindo o modelo de refor-mados do passado como William Perkins em seu livro Reformed Catholicke (1597) a Ortodoxia Reformada do seacuteculo 17 e ateacute Philip Schaff no seacuteculo 19 (p 31 213) para os quais ldquoser reformado significa ir mais fundo na verdadeira catolicidaderdquo (p 18) Em outras palavras as diversas teologias de recuperaccedilatildeo da tradiccedilatildeo catoacutelica natildeo devem ser assimiladas num espiacuterito de colagem aceacute-fala de autores antigos mas devem alertar-nos para pensar numa apropriaccedilatildeo consistentemente protestante da tradiccedilatildeo (p 29-30) Os autores natildeo prometem uma metodologia completa para tal apropriaccedilatildeo mas lanccedilam um manifesto que precisa ser ouvido por protestantes que natildeo satildeo suficientemente catoacutelicos e por ecumecircnicos que natildeo satildeo suficientemente protestantes

Apoacutes a introduccedilatildeo o livro possui cinco capiacutetulos da pena dos autores e um posfaacutecio escrito por J Todd Billings o qual apresenta uma proposta de re-descoberta da tradiccedilatildeo para a renovaccedilatildeo da igreja (p 199-223) Este eacute professor no Western Theological Seminary de linha teologicamente mais aberta que o Reformed Todavia Billings faz coro com os autores do livro ao afirmar que a tradiccedilatildeo catoacutelico-reformada oferece uma alternativa agrave leitura individualista das Escrituras que muitos evangeacutelicos fazem buscando respostas no texto para confirmar a ldquorelevacircnciardquo de Jesus Em contraposiccedilatildeo a tal tendecircncia o propoacutesito de recuperar vozes do passado eacute para que elas revelem os pontos cegos de nossa eacutepoca e superemos as idolatrias ocultas do presente (p 211-213)

No primeiro capiacutetulo Allen e Swain afirmam que o ressourcement (lit ldquoretorno agraves fontesrdquo alusatildeo ao movimento catoacutelico romano do seacuteculo 20 deno-minado Nouvelle Theacuteologie) reformado natildeo eacute uma proposta tradicionalista mas um programa de natureza trinitaacuteria e cristoloacutegica que relaciona o Espiacuterito de Cristo e a mente renovada da igreja De acordo com 1Joatildeo 227 o ldquoEspiacuterito de Cristo ensina a igreja em veracidade tatildeo suficiente e pura que a igreja natildeo precisa buscar entendimento teoloacutegico em qualquer outra fonte ou princiacutepiordquo de tal forma que a igreja eacute o canteiro da teologia o uacutenico terreno criacional feacutertil no qual a instruccedilatildeo de Cristo promete ldquoflorescer em entendimento humano renovadordquo (p 37) Os autores acreditam que a tradiccedilatildeo eacute instituiccedilatildeo divina na qual buscamos progresso na busca por entendimento O fato de a tradiccedilatildeo poder errar natildeo desqualifica o seu status de instituiccedilatildeo divina Diferentemente do que George Lindbeck propocircs em seu livro The Nature of Doctrine a teologia natildeo eacute meramente um fenocircmeno lsquolinguiacutestico-culturalrsquo de construccedilatildeo credal a

127

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 125-129

teologia reformada de recuperaccedilatildeo acredita que ldquoa igreja recebe e transmite o ensino apostoacutelico como frutos do Espiacuteritordquo (p 46)

O restante do primeiro capiacutetulo eacute uma articulaccedilatildeo pneumatoloacutegica de como chegamos ao conhecimento da verdade O Espiacuterito estaacute por traacutes do ato da igreja de criar tradiccedilatildeo (p 53) O Espiacuterito natildeo a igreja eacute a fonte da verdade teoloacutegica e a tradiccedilatildeo eacute a postura da igreja de permanecer no ensino apostoacutelico ao longo do tempo (p 57) Enquanto a Escritura ldquoeacute a fonte divina-mente autoritativa e suficiente da teologiardquo ndash contra a teoria das duas fontes propagada pelo Vaticano II ndash a tradiccedilatildeo eacute ldquoa recepccedilatildeo da Escritura capacitada pelo Espiacuterito eacute o alvo divinamente designado da teologiardquo (p 60) A Escritura eacute o fundamento e a obra iluminadora do Espiacuterito renovando nossas mentes permite agrave igreja construir tradiccedilatildeo em cima da Escritura ldquoEmbora o depoacutesito apostoacutelico natildeo possa crescer o entendimento da igreja desse depoacutesito pode e de fato deve crescerrdquo (p 70)

Nos capiacutetulos 2 e 3 os autores articulam uma defesa do Sola Scriptura e sua relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo Sola Scriptura na Reforma nunca intentou ser ldquouma censura absoluta agrave tradiccedilatildeo ou uma negaccedilatildeo da autoridade eclesiaacutestica genuiacutenardquo (p 75) Pelo contraacuterio os autores acreditam que o compromisso com o Sola Scriptura na verdade aumenta nossa recepccedilatildeo da rica tradiccedilatildeo catoacutelica (p 77) Contrapondo-se a criacuteticos do princiacutepio de ldquoSomente a Escriturardquo tan-to do passado (Alexis de Tocqueville) como do presente (Brad Gregory e A N Williams) que alegam que tal princiacutepio significa ausecircncia da autoridade interpretativa da tradiccedilatildeo e abre a porta para todo tipo de pluralismo herme-necircutico nossos autores revelam que a leitura dos criacuteticos eacute equivocadamente ldquodonatistardquo (como se o princiacutepio fosse um purismo biacuteblico que fecha os olhos para a conduccedilatildeo providencial de uma igreja imperfeita) e ldquodeiacutestardquo (como se o processo de reflexatildeo teoloacutegica fosse uma atividade exclusivamente humana ou natural) Ateacute quando os reformados defenderam o ldquoprinciacutepio regulador de cultordquo ndash pelo qual se entende que todo elemento do culto deve ser autorizado pela Escritura ndash eles removeram certas praacuteticas romanas e introduziram novos padrotildees lituacutergicos que deveriam ser seguidos por geraccedilotildees vindouras (p 102) Isto eacute os reformados nunca deixaram de produzir tradiccedilatildeo mas sempre dirigida pela Escritura

Em seguida calcados em passagens como o Salmo 145 Atos 15 e as Epiacutestolas Pastorais aleacutem do escrito de Lutero sobre conciacutelios eclesiaacutesticos Allen e Swain concluem que somos mais biacuteblicos natildeo quando somos ldquobibli-cistasrdquo mas quando estamos envolvidos no processo de ldquoformar tradiccedilatildeordquo Somente a Escritura (Sola Scriptura) natildeo eacute sinocircnimo de a Escritura Sozinha (Solo Scriptura) ldquoum filho bastardo amamentado no seio do racionalismo e individualismo modernosrdquo assim como a perspicuidade da Escritura natildeo sig-nifica que qualquer investigador do texto sagrado provido dos devidos meios sempre o interpreta adequadamente como se o sacerdoacutecio universal signifi-

CATOLICIDADE REFORMADA A PROMESSA DA RECUPERACcedilAtildeO PARA A TEOLOGIA

128

casse que natildeo precisamos de mestres (p 123-124) De modo bem protestante eles encerram o capiacutetulo 3 dizendo que a igreja eacute criatura da Palavra que ela eacute nutrida ao ouvir a Palavra e que sua autoridade ministerial eacute delegada pela Palavra (p 125-134)

O quarto capiacutetulo trata do papel dos escritos confessionais na interpre-taccedilatildeo biacuteblica Allen e Swain satildeo organizadores de uma seacuterie de comentaacuterios de interpretaccedilatildeo teoloacutegica da Escritura (TampT Clark International Theological Commentary) e seguindo essa tendecircncia de interpretaccedilatildeo credalconfessional eles propotildeem uma ldquoleitura reguladardquo da Escritura com base em princiacutepios te-oloacutegicos e eclesioloacutegicos reformados (p 136-137) A leitura da Biacuteblia eacute uma empreitada comunitaacuteria e por isso o indiviacuteduo que faz dogmaacutetica o faz como ldquouma persona autoconscientemente eclesiaacutesticardquo (p 139) Inspirados pelo fa-moso escrito sobre a Escritura de William Whitaker os autores afirmam que a igreja ldquoguarda discerne proclama e interpretardquo a Palavra de Deus (p 142-144) O direito privado de investigaccedilatildeo eacute um privileacutegio de todos os fieacuteis mas natildeo deve ser confundido com o poder de interpretaccedilatildeo puacuteblica concedido a homens chamados e dotados para o ministeacuterio do ensino A devida distinccedilatildeo leva os autores a concluir ldquoA autoridade de ensino da igreja natildeo existe para excluir outros da interpretaccedilatildeo e compreensatildeo da Palavra de Deus Pelo contraacuterio a autoridade de ensino da igreja existe para comunicar (ie ldquotornar comunsrdquo) os tesouros da Palavra de Deus para todos do povo de Deus de forma que eles tambeacutem possam ter completa comunhatildeo (ie ldquodividir igualmenterdquo) nesses tesourosrdquo (p 151) A ldquoregra de feacuterdquo ou escritos confessionais nos habilitam a ler as vaacuterias partes da Escritura agrave luz do todo fazendo com que Sola Scriptura funcione conjuntamente com Tota Scriptura (p 156 162)

O quinto e uacuteltimo capiacutetulo se propotildee a fazer uma defesa da utilizaccedilatildeo da Escritura na forma de citaccedilatildeo de ldquotextos-provardquo (dicta probanda) uma praacutetica tatildeo maculada por criacuteticos modernos A acusaccedilatildeo contra essa praacutetica se baseia em trecircs erros ela desconsidera os contextos de textos especiacuteficos (por ex cita partes do texto sem atentar para o gecircnero literaacuterio) natildeo demonstra sensibilidade para com o horizonte hermenecircutico do inteacuterprete (por ex pretende resolver o debate sobre desarmamento ao fazer exegese das porccedilotildees relevantes da Escri-tura) interage com a histoacuteria eclesiaacutestica antes que com a histoacuteria biacuteblica (por ex encaixa textos em suas categorias de teologia sistemaacutetica para integrar a verdade em um sistema) Allen e Swain reconhecem que essas acusaccedilotildees tecircm elementos verdadeiros (p 175-180) Poreacutem a proacutepria Escritura pode ser acusada dos mesmos trecircs ldquoerrosrdquo e eles fornecem exemplos dos trecircs Tal alegaccedilatildeo natildeo serve para desqualificar a hermenecircutica que os autores do Novo Testamento fazem do Antigo ou dizer que eles tecircm passe livre para fazer o que quiserem com o texto primevo Natildeo Tudo o que os autores pretendem provar eacute isto ldquoNatildeo devemos confundir teacutecnicas de citaccedilatildeo (por exemplo textos-prova) com meacutetodo hermenecircutico seja ao considerarmos o uso da Escritura pela Escritura

129

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 125-129

ou o uso da Escritura pela teologiardquo (p 182) Por isso calcados nos exemplos de Tomaacutes de Aquino e Joatildeo Calvino eles terminam o capiacutetulo encorajando os teoacutelogos sistemaacuteticos a serem mais frequentes na exegese da Escritura e os teoacutelogos biacuteblicos a se familiarizarem com a histoacuteria da interpretaccedilatildeo biacuteblica e perceberem que eles proacuteprios tambeacutem se utilizam de categorias sinteacuteticas para trabalhar com o texto seletivamente quem sabe tais encorajamentos promovam maior simbiose entre exegese e dogmaacutetica (p 192-198)

Conforme dito no comeccedilo desta resenha a Editora Monergismo nos in-troduz a teoacutelogos reformados da nova geraccedilatildeo que demonstram grande lastro de pesquisa e interaccedilatildeo perspicaz com diversas fontes aleacutem de apresentar um tema muito importante para o evangelicalismo individualista que possui ten-taacuteculos inclusive no movimento reformado brasileiro Temos muito a aprender sobre a maneira como os reformados do passado e do presente interagem com a tradiccedilatildeo cristatilde de forma criteriosa Catolicidade eacute um tema que requer mais reflexatildeo em nosso meio para desmitificarmos uma compreensatildeo estreita de Sola Scriptura respondermos adequadamente agrave acusaccedilatildeo romana de que a doutrina protestante da Escritura abriu as portas para o individualismo de pensamento que culminou em pluralismos e apontarmos um caminho melhor de uso da tradiccedilatildeo e da Escritura tanto para teoacutelogos biacuteblicos como sistemaacuteticos

Haacute pouquiacutessimos momentos em que discordo de detalhes propostos pelos autores Eles dizem que a investigaccedilatildeo teoloacutegica moderna se exauriu na forma de investigaccedilatildeo teoloacutegica e carece de renovaccedilatildeo mediante o resgate de fontes (p 19) Eu natildeo diria que a investigaccedilatildeo se exauriu mas diria que a teologia moderna expressou a soberba progressista proacutepria do Iluminismo e se esqueceu da importacircncia do aprendizado com a comunidade cristatilde atraveacutes dos seacuteculos Outro exemplo de discordacircncia acontece quando eles impotildeem a John Owen categorias ndash de ldquoautoridaderdquo e ldquounccedilatildeordquo ndash que natildeo estatildeo na obra do puritano (v 68) Embora natildeo seja errado criarmos categorias para explicar o pensamento de autores do passado creio que as categorias utilizadas por Allen e Swain natildeo satildeo as mais precisas jaacute que autoridade e unccedilatildeo satildeo termos que possuem certo grau de sobreposiccedilatildeo

Mesmo com essas observaccedilotildees criacuteticas tangenciais minha avaliaccedilatildeo em nada desmerece a contribuiccedilatildeo tatildeo necessaacuteria que esses teoacutelogos trazem para a tradiccedilatildeo reformada contemporacircnea como um todo e mais especificamente ao cenaacuterio teoloacutegico protestante no Brasil Fariacuteamos bem em ouvir esse manifesto e buscar fontes passadas de nossa tradiccedilatildeo para estimular continuidade credal que promove comunhatildeo intergeracional Aleacutem de seu conteuacutedo precioso a Editora Monergismo fez um excelente trabalho editorial (traduccedilatildeo formataccedilatildeo) e produziu uma capa muito mais bonita que a original

131

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 131-135

RESENHAWendell Gonzaga da Paixatildeo

EDGAR W Francis Schaeffer e a vida cristatilde a espiritualidade con-tracultural Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2018 224 pp

William Edgar eacute professor de apologeacutetica no Westminster Theological Seminary em Filadeacutelfia Obteve o bacharelado em muacutesica da Harvard Uni-versity em 1966 o grau de M Div do Westminster Theological Seminary em 1969 e o PhD em teologia da Universiteacute de Genegraveve na Suiacuteccedila em 19931 Teve um privileacutegio que poucos tiveram pois conviveu e trabalhou com Francis Schaeffer no LrsquoAbri Fellowship e estudou com Cornelius Van Til no Westminster Theological Seminary Ateacute onde pude pesquisar aleacutem desse livro que estamos resenhando William Edgar tem ainda os seguintes mate-riais traduzidos para o portuguecircs o livro Razotildees do Coraccedilatildeo2 e trecircs ensaios publicados em 20113 e 20174

O livro Francis Schaeffer e a Vida Cristatilde A Espiritualidade Contra-cultural encontra-se dividido de uma maneira um pouco incomum Apoacutes o

O autor eacute bacharel em Teologia pelo Seminaacuterio Presbiteriano do Norte e poacutes-graduado em Teologia Pastoral tambeacutem pelo SPN Estaacute cursando o Mestrado em Teologia com ecircnfase em Teologia Filosoacutefica no CPAJ Conclui neste ano o curso de licenciatura em Filosofia pela UNICAP

1 Disponiacutevel em httpsfacultywtsedufacultyedgar Acesso em 6 ago 20202 EDGAR William Razotildees do coraccedilatildeo reconquistando a persuasatildeo Cristatilde Brasiacutelia Ministeacuterios

Refuacutegio 1996 3 EDGAR William ldquoA luz de Schleiermacher na restauraccedilatildeo da Franccedila os precedentes de Samuel

Vincent e Merle DrsquoAubigneacuterdquo In LILLBACK Peter A (Org) O calvinismo na praacutetica uma introduccedilatildeo agrave heranccedila reformada e presbiteriana Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011 p 217-234

4 EDGAR William ldquoAs artes e a tradiccedilatildeo reformadardquo In HALL David W PADGETT Marvin (Orgs) Calvino e a cultura Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2017 p 58-84 Idem ldquoDois guerreiros cristatildeos uma comparaccedilatildeo entre Cornelius Van Til e Francis Schaefferrdquo In ARAUacuteJO NETO Felipe Sabino de (Org) Coram Deo a vida perante Deus ensaios em honra a Wadislau Gomes Brasiacutelia Monergismo 2017 p 801-832

FRANCIS SCHAEFFER E A VIDA CRISTAtilde A ESPIRITUALIDADE CONTRACULTURAL

132

primeiro capiacutetulo os demais estatildeo inseridos dentro de trecircs partes A primeira parte tem por tiacutetulo ldquoO homem e seu tempordquo e conteacutem os capiacutetulos dois e trecircs A segunda tem por tiacutetulo ldquoVerdadeira espiritualidaderdquo e conteacutem os capiacutetulos quatro a seis A terceira tem por tiacutetulo ldquoConfiando em Deus para tudo na vidardquo e vai dos capiacutetulos sete ao dez O livro ainda conteacutem um posfaacutecio

Diferentemente de outras biografias de Schaeffer este livro tem como diferencial dois aspectos importantes Em primeiro lugar ele explora com certo niacutevel de profundidade algo diferenciado do LrsquoAbri ndash ldquoa sua mais importante razatildeo de ser ou seja a espiritualidade cristatilderdquo (p 14) Em segundo lugar ainda muito jovem Willian Edgar conheceu Schaeffer Nas suas proacuteprias palavras ldquoVisto que tive o privileacutegio de testemunhar pessoalmente muitos dos temas e personalidades relacionadas com Francis Schaeffer e LrsquoAbri comecei e terminei a narrativa com alguns fatos que envolvem a minha proacutepria narra-tivardquo (p 14) Isso jaacute torna o livro bastante envolvente e com uma narrativa bastante peculiar

O primeiro capiacutetulo tem por tiacutetulo ldquoUma introduccedilatildeo pessoal a Francis Schaefferrdquo Aqui William Edgar nos apresenta como de maneira comovente conheceu Schaeffer em LrsquoAbri William Edgar chegou ao LrsquoAbri com 19 anos e como um descrente poreacutem diz que ldquoem menos de 24 horas depois da minha chegada em LrsquoAbri minha vida tinha virado de cabeccedila para baixo completa-menterdquo (p 24) Posteriormente Schaeffer se tornou natildeo soacute um mentor mas um amigo

O segundo capiacutetulo tem por tiacutetulo ldquoA jornada para o LrsquoAbrirdquo Aqui William Edgar mostra fatos importantes na vida de Francis Schaeffer que incluem o seu nascimento (p 42-43) conversatildeo (p 43-44) formaccedilatildeo superior (p 44-49) casamento (p 45) nascimentos das filhas ainda nos Estados Unidos (p 49 50 51) pastorado e ida para Suiacuteccedila momento de crise nascimento do filho (p 58) e finalmente como se deu a expulsatildeo dos Schaeffers do cantatildeo de Valais (p 60)

O terceiro capiacutetulo tem por tiacutetulo ldquoLrsquoAbri e aleacutemrdquo Nele William Edgar narra a histoacuteria desde a chegada dos Schaeffers em Hueacutemoz (p 65) e tambeacutem apresenta a contribuiccedilatildeo de Schaeffer para a criaccedilatildeo de um jargatildeo teoloacutegico proacuteprio (p 70-71) Por fim faz uma bela apresentaccedilatildeo dos vaacuterios livros escritos por Schaeffer

O quarto capiacutetulo tem por tiacutetulo ldquoFundamentosrdquo Nesse capiacutetulo nos satildeo apresentados ldquoos pontos de vista de Francis Schaeffer sobre a vida cristatilderdquo (p 87) O objetivo de William Edgar eacute tratar de forma panoracircmica temas que satildeo muito caros ao pensamento de Schaeffer tais como ldquoFundamentos do Evangelhordquo (p 89) ldquoA autoridade da Verdaderdquo (p 91) a ldquoEspiritualidade da cosmovisatildeordquo (p 94) e por fim ldquoOs contornos da realidaderdquo Essa parte merece ser lida com bastante apreccedilo principalmente por aqueles que insistem em apre-sentar uma apologeacutetica agressiva Schaeffer valorizava tanto a ortodoxia como

133

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 131-135

a ortopraxia No dizer de William Edgar Schaeffer iraacute ldquoenfatizar a necessidade de doutrina soacutelida juntamente com a praacutetica soacutelida A primeira lsquorealidadersquo eacute a satilde doutrina O segundo lsquoconteuacutedorsquo eacute respostas honestas a perguntas honestasrdquo (p 101) Em outras palavras o cristatildeo deveraacute demonstrar uma ldquoespiritualidade verdadeirardquo e a ldquobeleza das relaccedilotildees humanasrdquo

O quinto capiacutetulo tem por tiacutetulo ldquoLiberdade na vida cristatilderdquo Este capiacutetulo tem como alvo analisar a primeira parte do livro Verdadeira Espiritualidade William Edgar apresenta a contribuiccedilatildeo de Schaeffer na anaacutelise que nos permite detectar se estamos cobiccedilando Segundo ele Schaeffer apresenta dois testes O primeiro faz referecircncia a Deus no tocante ao contentamento que temos nele Pois ldquose eu amo a Deus o suficiente para estar contente entatildeo eu estou sendo adequadamente espiritualrdquo (p 105) O segundo teste por sua vez tem uma relaccedilatildeo com o meu proacuteximo ldquoseraacute que eu amo o meu proacuteximo o suficiente para natildeo o invejarrdquo (p 106) Nesse capiacutetulo ainda satildeo elencados temas sobre a vida cristatilde no que se refere ao aspecto passivo e ativo

O sexto capiacutetulo tem por tiacutetulo ldquoAplicaccedilotildeesrdquo O seu principal objetivo eacute analisar a segunda parte do livro Verdadeira Espiritualidade Aqui eacute apresentado um ponto de controveacutersia pois ldquoSchaeffer coloca o mundo do pensamento no centro da vida cristatilderdquo (p 119) William Edgar discorda do seu mentor e diz que ldquocertamente a ideia biacuteblica do coraccedilatildeo eacute mais rica do que a mente e seus pensamentos (embora ela inclua a mente)rdquo (p 119) Satildeo abordados outros temas mas sem discordacircncia entre o autor e Schaeffer

O seacutetimo capiacutetulo tem por tema ldquoOraccedilatildeo e Orientaccedilatildeordquo William Edgar oferece uma apresentaccedilatildeo rica em detalhes sobre a abordagem de Schaeffer acerca da oraccedilatildeo ldquoEmbora Francis Schaeffer natildeo tenha deixado um legado de extensos escritos sobre o tema oraccedilatildeo ele pregou pelo menos um conjun-to bastante completo de mensagens sobre o assuntordquo (p 137) Sobre o tema orientaccedilatildeo William Edgar afirma que se no tema oraccedilatildeo Schaeffer natildeo nos deixou um legado extenso muito menos deixou sobre o tema orientaccedilatildeo Algo interessante eacute que ldquoEdith foi mais proliacutefica do que Fran na abordagem da orientaccedilatildeordquo (p 142)

ldquoUma das oraccedilotildees constantes de Edith era que o Senhor deixasse claro o que ela devia fazer em uma determinada situaccedilatildeo ndash em outras palavras que o Senhor a guiasserdquo (p 142) William Edgar demonstra por meio do caso da poliomielite do filho do casal como se dava na praacutetica essa busca da orientaccedilatildeo do Senhor

O capiacutetulo oito tem por tema ldquoAfliccedilatildeordquo Novamente Edith se destaca na abordagem do assunto pois foi ela ldquoquem mais escreveu extensivamente sobre sofrimento enquanto o material de Fran reflete de passagem ou o aborda mais filosoficamente e em grande profundidade quando trata do problema do malrdquo (p 147)

FRANCIS SCHAEFFER E A VIDA CRISTAtilde A ESPIRITUALIDADE CONTRACULTURAL

134

ldquoO livro Affliction5 de Edith representa o auge de seus pontos de vista sobre o sofrimentordquo (p 147) William Edgar tambeacutem mostra que concernente ao problema do mal Schaeffer tem uma abordagem proacutexima daquela de Van Til ldquoDe uma maneira sugestiva de Cornelius Van Til Schaeffer afirma que existem realmente apenas duas explicaccedilotildees possiacuteveis para o problema do malrdquo (p 151) ou seja uma causa metafiacutesica e outra eacutetica

O capiacutetulo nove tem por tema ldquoVida na igrejardquo Nesse capiacutetulo aparecem dois assuntos controversos na apresentaccedilatildeo que Wiliam Edgar faz dos escritos de Schaeffer O primeiro assunto controverso tem a ver com a seguinte de-claraccedilatildeo do personagem registrada por Edgar ldquoO mundo atual tem o direito de julgar se nossa feacute cristatilde eacute autecircntica Pode julgar com base em nosso amor muacutetuordquo (p 161) Cornelius Van Til vai discordar veementemente de Francis Schaeffer acerca dessa declaraccedilatildeo6 O segundo ponto controvertido eacute sobre pedir perdatildeo Schaeffer diz que ldquonatildeo precisamos esperar a outra pessoa dar o primeiro passo Devemos ter um espiacuterito de perdatildeo de qualquer maneirardquo (p 162) William Edgar aceita tal posiccedilatildeo embora reconheccedila que essa abor-dagem natildeo eacute aceita por todos os teoacutelogos reformados7 No fim do capiacutetulo satildeo apresentadas oito ldquonormas estruturais que governam a igreja visiacutevel (p 173 174) Por fim embora William Edgar jaacute tenha falado sobre a igreja fundada por Schaeffer (p 59 60) agora vai aprofundar o surgimento e como se daacute a vivecircncia na International Presbyterian Church (p 175)

Finalmente chegamos ao uacuteltimo capiacutetulo O capiacutetulo dez tem por tiacutetulo ldquoEngajando o mundordquo Nele encontramos uma espeacutecie de panorama dos temas que Schaeffer trabalhou em diversas obras Contudo novamente queremos destacar algo que William Edgar diz sobre Schaeffer Segundo ele Schaeffer ldquoconcorda que os filoacutesofos natildeo cristatildeos desde os gregos ateacute pouco antes da modernidade tinham trecircs coisas em comum o racionalismo o respeito pela racionalidade e o otimismordquo (p 191)8 Aqui Schaeffer parece ser um tanto ingecircnuo em acreditar que os filoacutesofos do passado foram bem-sucedidos na apresentaccedilatildeo de um campo de conhecimento unificado Por isso que ldquoVan Til

5 Esse livro foi lanccedilado em 2019 pela Editora Monergismo SCHAEFFER Edith Afliccedilatildeo um olhar compassivo sobre a realidade da dor e do sofrimento Brasiacutelia Monergismo 2019 344 p

6 VAN TIL Cornelius The apologetic methodology of Francis Schaeffer Westminster Theological Seminary 1974 p 48s

7 Jay Adams discorda desse ponto de vista de Schaeffer e de William Edgar Ver ADAMS Jay De perdoado a perdoador aprendendo a perdoar uns aos outros da forma de Deus Brasiacutelia Monergismo 2015 220 p

8 Para mais informaccedilotildees sobre como Schaeffer aborda o assunto ver SCHAEFFER F Como viveremos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2003 p 96s

135

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 131-135

o acusa de natildeo reconhecer a dialeacutetica perpeacutetua do pensamento racionalistairracionalista em cada eacutepocardquo (p 191)9

Finalizamos afirmando que William Edgar fez um beliacutessimo trabalho oferecendo-nos grande riqueza de detalhes uma vez que foi testemunha ocu-lar de muitas coisas que aqui estatildeo registradas A traduccedilatildeo de Neuza Batista da Silva foi muito eficiente natildeo nos deixando em duacutevida sobre o sentido das frases O livro tambeacutem possui uma diagramaccedilatildeo bem-feita proporcionado uma leitura apraziacutevel

A Editora Cultura Cristatilde estaacute de parabeacutens pelo excelente trabalho Que-remos recomendaacute-lo para todo estudante interessado em apologeacutetica e anaacutelise cultural Certamente faratildeo bem em lecirc-lo Essa obra tambeacutem seraacute de grande ajuda para os iniciantes nos estudos acerca da vida de Francis Schaeffer Contudo ateacute mesmo os mais experientes poderatildeo se beneficiar da riqueza de detalhes oferecida pelo autor A ediccedilatildeo eacute apresentada sob o selo ldquoSeacuterie Teoacutelogos e a Vida Cristatilderdquo que jaacute conta com outros volumes em portuguecircs

9 Para mais informaccedilotildees ver VAN TIL Cornelius The apologetic methodology of Francis Schaeffer Westminster Theological Seminary 1974 p 39ss

137

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 137-141

RESENHANorval da Silva

HORSLEY Richard A Jesus e o impeacuterio o Reino de Deus e a nova desordem mundial Satildeo Paulo Paulus 2014 177 p

Atualmente haacute muitas perspectivas quando se tenta fazer uma anaacutelise de quem foi Jesus e de suas ecircnfases e propoacutesitos No livro Jesus e o Impeacuterio O Reino de Deus e a Nova Desordem Mundial da editora Paulus Richard Horsley faz uso dos estudos socioloacutegicos como paracircmetro de anaacutelise da vida e dos ensinos de Jesus

Horsley eacute conhecido por sua abordagem social das Escrituras Ele foi professor de artes liberais e religiatildeo na Universidade de Massachusetts em Boston ateacute sua aposentadoria em 2007 Aleacutem do livro ora resenhado eacute tambeacutem autor de Jesus e a Espiral da Violencia da mesma editora

O livro Jesus e o Impeacuterio estaacute dividido em cinco capiacutetulos Poreacutem o leitor natildeo deve saltar a introduccedilatildeo Laacute jaacute podemos perceber a linha adotada pelo autor e sua intenccedilatildeo qual seja desconstruir a ideia tradicional que se tem do Jesus histoacuterico Do iniacutecio ao fim sua hermenecircutica eacute conduzida pelo pensamento ideoloacutegico de que Jesus foi um libertador agrave moda dos libertado-res campesinos cansados de pagar impostos aos tiranos que arrebanhou um grupo de camponeses e produziu uma revoluccedilatildeo para reverter a ordem social

De certa forma Horsley atribui aos americanos a leitura tradicional de um Jesus completamente religioso e que natildeo se envolve nas questotildees poliacuteti-cas e sociais A identidade ambiacutegua dos Estados Unidos poreacutem foi sacudida apoacutes o evento de 11 de setembro e segundo o autor jaacute natildeo se pode mais ldquoficar com essas representaccedilotildees domesticadas de Jesusrdquo (p 9) Para ele a naccedilatildeo judaica como um todo reagiu agrave ocupaccedilatildeo romana e seria muito difiacutecil

Mestre em exegese biacuteblica e linguiacutestica pelo Dallas Theological Seminary Tradutor do Novo Testamento para uma liacutengua indiacutegena pela Agecircncia Presbiteriana de Missotildees Transculturais (APMT) Aluno do STM-NT no CPAJ

JESUS E O IMPEacuteRIO O REINO DE DEUS E A NOVA DESORDEM MUNDIAL

138

imaginar um Jesus alheio agraves accedilotildees do seu proacuteprio povo Segundo o autor haacute quatro pressupostos que contribuem para uma anaacutelise do Jesus despolitizado (1) O pressuposto ocidental de que a religiatildeo estaacute separada da poliacutetica e da economia (2) A religiatildeo eacute uma esfera separada e pertence ao indiviacuteduo (3) A orientaccedilatildeo cientiacutefica dos acadecircmicos (4) Inteacuterpretes eliminaram falas de Jesus considerando inautecircntico tudo o que parecesse embaraccediloso Ele entatildeo conclui que esses pressupostos satildeo equivocados e revelam uma cosmovisatildeo ocidental e moderna longe da realidade cultural e histoacuterica do Oriente Meacutedio Esses pressupostos satildeo poreacutem indefensaacuteveis quando se trata da pesquisa e reconstruccedilatildeo histoacutericas (p 10) O autor defende a necessidade de que se olhe para Jesus a partir do contexto social poliacutetico e econocircmico da eacutepoca Ele afirma que ldquose queremos compreender o Jesus histoacuterico num contexto histoacuterico mais completo e adequado precisamos sem duacutevida conceber uma abordagem mais abrangente e relacionalrdquo (p 15-16)

Ao afirmar ldquoBaseados num levantamento dos vaacuterios movimentos de resistecircncia entre os galileus e os judeus podemos comeccedilar a suspeitar que Jesus natildeo era uma figura absolutamente rarardquo (p 16) o autor prepara o terreno para o que seraacute de fato a sua visatildeo e metodologia Para saber quem Jesus era natildeo devemos olhar para Jesus propriamente mas para o contexto em que ele viveu E aqui se encontra o primeiro perigo pois Horsley comete o mesmo equiacutevoco em que acusa os outros de terem caiacutedo ou seja deixar que o contexto em si determine o sentido das coisas A loacutegica eacute mais ou menos a seguinte se Jesus viveu em uma palestina ocupada onde a rebeliatildeo e insurgecircncia contra o impeacuterio eram as marcas do povo judeu especialmente dos galileus ele deve ter agido da mesma forma Ele deve ter sido um guerrilheiro e revolucionaacuterio Com esse pressuposto agrave matildeo tudo o que Jesus disser teraacute que passar pelo filtro desse pensamento Assim o contexto eacute absoluto e o texto apenas um pretexto para o que se quer entender

O capiacutetulo 1 trata do surgimento e expansatildeo do Impeacuterio Romano Eacute uma anaacutelise de como a pequena vila fundada por Rocircmulo e Remo se tornou um grande impeacuterio derrotando impeacuterios anteriores Na visatildeo do autor o que moti-vou o impeacuterio natildeo foi apenas o domiacutenio militar e poliacutetico em si mas a questatildeo econocircmica ou seja dominar os outros para se beneficiar economicamente Assim surgiu o populismo democraacutetico (p 23) uma nova forma de imperia-lismo Essa nova ordem mundial que favorecia os romanos trazia desordem e miseacuteria para os povos dominados (p 24) A conquista sempre implicava em devastaccedilatildeo do interior queima de aldeias pilhagem de cidades morticiacutenio e escravidatildeo da populaccedilatildeo Para manter os povos dominados cativos os impe-rialistas usavam o terrorismo e a barbaacuterie com execuccedilotildees puacuteblicas de qualquer um que se levantasse contra o impeacuterio

O capiacutetulo 2 eacute uma anaacutelise das constantes revoltas perpetradas pelos gali-leus e judeus contra o imperialismo romano Segundo o autor esses dois povos

139

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 137-141

se destacavam entre os subjugados por sua rebeldia Houve quatro revoltas principais A primeira quando Herodes foi designado rei pelo impeacuterio em 40 aC Muitos natildeo o aceitaram e lanccedilavam ataques de guerrilha que duraram trecircs anos A segunda foi em 4 dC no final do governo de Herodes Durante a Paacutescoa ecoaram protestos em Jerusaleacutem que produziram revoltas na zona rural e demais regiotildees da Palestina A terceira foi a revolta generalizada de 66 d C Na ocasiatildeo a populaccedilatildeo atacou sumos sacerdotes e suas mansotildees Essas accedilotildees culminaram com a destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem e do templo em 70 dC Por fim mesmo apoacutes a destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem revoltas e insurreiccedilotildees continuaram pelas matildeos de Simatildeo bar Kokhba sessenta anos mais tarde (132-135 dC)

No capiacutetulo 3 o autor chega de fato agrave sua tese principal se considerarmos o contexto em que o Jesus histoacuterico viveu traccedilaremos um quadro bem diferente de quem ele eacute e do que ensinou O autor inicia o capiacutetulo fazendo uma criacutetica aos estudos tradicionais do Jesus histoacuterico por buscarem analisar Jesus com base apenas em seus ditos uma vez que os ditos satildeo fragmentos artificiais que natildeo podem se constituir em unidades de comunicaccedilatildeo (p 64) Ele tem razatildeo ao afirmar que precisamos do contexto em que os ditos foram proferidos para entendermos a real significaccedilatildeo do que foi dito O restante do capiacutetulo eacute uma apresentaccedilatildeo de aspectos desse contexto histoacuterico que satildeo relevantes ao processo interpretativo do Jesus histoacuterico nos evangelhos Por exemplo havia divisotildees de classes De um lado a elite composta por governantes romanos e sacerdotes do outro o povo Outro exemplo seriam as formas sociais de vida moradia em aldeias e cidades vida comunitaacuteria e agraacuteria etc O autor conclui que considerando a natureza da comunicaccedilatildeo e analisando os evangelhos com base nessa natureza devemos imaginar o texto como enriquecido de sentido contextual pleno e objetivo para comunidades especiacuteficas de fala hebraica Para ele por exemplo o Evangelho de Marcos foi escrito para demonstrar aos cristatildeos como Jesus estabeleceu o Reino de Deus e se insurgiu contra o Impeacuterio Romano ao propor a renovaccedilatildeo de Israel (p 85)

O capiacutetulo 4 eacute o desenvolvimento da tese mencionada Segundo o autor ao anunciar a renovaccedilatildeo de Israel Jesus pronuncia a sentenccedila sobre o impeacute-rio e sobre a lideranccedila religiosa de Israel Aqui algumas de suas afirmaccedilotildees satildeo exageradas e sua hermenecircutica duvidosa Ao analisar por exemplo a expressatildeo ldquofilhos do Reinordquo ele considera como uma referecircncia aos liacutederes judaicos o que me parece ser uma interpretaccedilatildeo conveniente uma vez que uma melhor opccedilatildeo contextual seria considerar como referecircncia agrave naccedilatildeo de Israel de forma geral ou pelo menos agravequeles que rejeitavam Jesus como Messias independentemente de serem parte da lideranccedila religiosa ou natildeo Segundo ele Mateus e Lucas de fato usam a expressatildeo para se referir agrave naccedilatildeo como um todo mas isso se deu somente apoacutes a destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem A fonte original usada por Mateus e Lucas o hipoteacutetico documento Q natildeo trazia essa perspectiva Natildeo creio que haja duacutevida da parte de qualquer estudioso de que

JESUS E O IMPEacuteRIO O REINO DE DEUS E A NOVA DESORDEM MUNDIAL

140

Jesus se contrapocircs aos liacutederes de Israel Os textos demonstram isso Mas daiacute a afirmar que denunciar essa lideranccedila e promover uma revoluccedilatildeo social dos pobres era o propoacutesito final de Jesus haacute uma longa distacircncia

Ainda outro caso curioso eacute sua anaacutelise da resposta de Jesus agrave pergunta se era liacutecito pagar imposto a Ceacutesar Segundo o autor todo mundo que ouviu a resposta de Jesus entendeu que sua resposta era ldquonatildeo natildeo se deve pagar imposto a Ceacutesarrdquo Ora segundo o proacuteprio autor os fariseus eram os que defendiam essa tese Entatildeo se a resposta de Jesus confirmava a tese dos fariseus por que cargas drsquoaacutegua esse segmento fez oposiccedilatildeo tatildeo ferrenha a Jesus O natural seria interpretar que eles considerariam Jesus um aliado Mais estranha ainda eacute a sua intepretaccedilatildeo de que os exorcismos praticados por Jesus eram uma forma de derrotar o Impeacuterio Romano (ver p 108)

Outra intepretaccedilatildeo natildeo menos estranha eacute a sua anaacutelise do episoacutedio dos democircnios que entraram nos porcos e consequentemente se precipitaram no mar em Marcos 5 Para ele como o nome dos democircnios era ldquolegiatildeordquo isso significava a derrota dos soldados romanos por Jesus E mais que as pessoas que presenciaram o fato se lembrariam do episoacutedio do Mar Vermelho quando os exeacutercitos de Faraoacute submergiram sob o poder de Deus Muito estranha essa anaacutelise para dizer o miacutenimo

O quinto e uacuteltimo capiacutetulo trata do conceito de alianccedila e o ideal de vida em comunidade e cooperaccedilatildeo Segundo o autor a populaccedilatildeo estava oprimida sobrecarregada de diacutevidas e as formas sociais fundamentais da famiacutelia e da sociedade se desintegravam Ele insiste que as possessotildees demoniacuteacas eram representaccedilotildees da opressatildeo romana e que ao expulsar esses democircnios Jesus estava expulsando os romanos e suas ldquolegiotildeesrdquo da terra de Israel Para ele cada histoacuteria de cura natildeo era uma cura individual mas cura social das comunidades subsequentes (p 120) O povo precisava ser renovado E para essa renovaccedilatildeo segundo o autor a cooperaccedilatildeo comunitaacuteria era a chave Por fim essa renovaccedilatildeo comunitaacuteria passa obrigatoriamente pela resoluccedilatildeo de conflitos econocircmicos e sociais da comunidade Aqui o leitor perceberaacute uma linguagem muito se-melhante agrave dos proponentes da Teologia da Libertaccedilatildeo Em momento algum o autor aborda a necessidade do povo de Israel como sendo espiritual Para ele o problema do povo natildeo eacute com Deus e sim com as estruturas opressoras Pecado se haacute eacute pecado em esfera totalmente social e foi para isso que Jesus veio para libertar o povo simples da opressatildeo para fazer uma revoluccedilatildeo social Isso fica evidente quando ele afirma que a promessa de Jesus ldquoe no futuro a vida eternardquo eacute uma observaccedilatildeo sem importacircncia (ver p 135)

Uma observaccedilatildeo necessaacuteria a se fazer eacute quanto agrave hermenecircutica do autor e seus pressupostos Como para ele os aspectos sociais e econocircmicos satildeo os problemas reais da naccedilatildeo de Israel toda a leitura que ele faz dos evangelhos natildeo apenas eacute influenciada por esses pressupostos mas determinada por eles Ele se tornou prisioneiro de sua cosmovisatildeo O texto natildeo o desafia corrige

141

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 137-141

ou questiona como deveria fazer em um processo hermenecircutico normal Eacute fato que todos noacutes nos aproximamos do texto com pressupostos Poreacutem ateacute que ponto esses pressupostos determinam o sentido intentado pelo autor eacute algo com que precisamos ter cuidado

ExcElecircncia E PiEdadE a SErviccedilo do rEino dE dEuS

CENTRO PRESBITERIANO DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO ANDREW JUMPERVenha estudar conosco

Cursos modulares corpo docente poacutes-graduado convecircnio com instituiccedilotildees internacionais bi-blioteca teoloacutegica com mais de 40000 volumes acervo bibliograacutefico atualizado e informatizado

Educaccedilatildeo agrave distacircncia (Ead)Cursos anuais totalmente online que visam agrave instruccedilatildeo e ao aperfeiccediloamento biacuteblico-teoloacutegico de pastores e crentes que possuam graduaccedilatildeo em qualquer aacuterea Satildeo eles Estudos em Teologia Sistemaacutetica Estudos em Teologia Biacuteblica Estudos em Teologia Aplicada e Estudos em Missotildees

REvitalizaccedilatildeo E Multiplicaccedilatildeo dE igREjas (RMi)O RMI objetiva capacitar pastores e liacutederes na conduccedilatildeo do processo de restauraccedilatildeo do mi-nisteacuterio pastoral da oraccedilatildeo e da expansatildeo da igreja por meio de missotildees usando ferramentas biacuteblico-teoloacutegicas e de outras aacutereas das ciecircncias

EspEcializaccedilatildeo EM Educaccedilatildeo cRistatilde (EEc)O programa de especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Cristatilde eacute destinado a pais pastores professores e demais interessados em educaccedilatildeo eclesiaacutestica ou escolar Seu principal objetivo eacute promover uma reflexatildeo a respeito da dimensatildeo pedagoacutegica a partir dos pressupostos cristatildeos e oferecer ferramentas para o exerciacutecio intencional e planejado da atividade educacional a partir desses pressupostos

Ma lEadERship in chRistian Education (MaE)Este programa eacute um mestrado semipresencial biliacutengue (portuguecircsinglecircs) ministrado em par-ceria com o Gordon College (Boston EUA) Eacute dirigido agrave educaccedilatildeo escolar cristatilde com ecircnfase em lideranccedila compreendendo a gestatildeo escolar e suas bases conceituais Uacutetil para a lideranccedila e gestatildeo de Departamentos de Educaccedilatildeo Cristatilde em igrejas bem como para seminaacuterios institutos biacuteblicos e outras instituiccedilotildees teoloacutegicas

MEstRado EM divindadE (Magister Divinitatis ndash Mdiv)Trata-se do mestrado eclesiaacutestico do CPAJ Eacute anaacutelogo aos jaacute tradicionais mestrados profissio-nalizantes diferindo entretanto do Master of Divinity norte-americano apenas no fato de que natildeo constitui e nem pretende oferecer a formaccedilatildeo baacutesica para o ministeacuterio pastoral Oferece uma visatildeo geral das grandes aacutereas do conhecimento teoloacutegico Natildeo eacute submetido agrave avaliaccedilatildeo e natildeo possui credenciamento da CAPES

MEstRado EM tEologia (sacrae theologiae Magister ndash stM)Esse mestrado acadecircmico difere do Magister Divinitatis por sua ecircnfase na pesquisa e sua har-monizaccedilatildeo com os mestrados acadecircmicos em teologia oferecidos em universidades e escolas de teologia internacionais Eacute oferecido para aqueles que possuem o MDiv ou graduaccedilatildeo em Teologia e mestrado em qualquer aacuterea Natildeo eacute submetido agrave avaliaccedilatildeo e natildeo possui credenciamento da CAPES

doutoRado EM MinisteacuteRio (dMin)Curso oferecido em parceria com o Reformed Theological Seminary (RTS) de Jackson Mis-sissippi O programa possui o reconhecimento da JETIPB e da Association of Theological Schools (ATS) nos Estados Unidos O corpo docente inclui acadecircmicos brasileiros americanos e de outras nacionalidades com soacutelida formaccedilatildeo em suas respectivas aacutereas

Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper Rua Maria Borba 4044 ndash Vila Buarque ndash Satildeo Paulo ndash SP ndash Brasil ndash CEP 01221-040

Telefone +55 (11) 2114-86448759 ndash atendimentocpajmackenziebr cpajmackenziebr ndash httpswwwfacebookcomcppaj

Editoraccedilatildeo eletrocircnicaLibro Comunicaccedilatildeo

EDITORIAL

Eacute com satisfaccedilatildeo que apresentamos aos nossos leitores o volume XXVI no 1 da revista Fides Reformata dando continuidade a mais de duas deacutecadas de contribuiccedilatildeo ininterrupta agrave pesquisa teoloacutegica na Ameacuterica Latina Nos uacuteltimos anos a publicaccedilatildeo de artigos em inglecircs tem ampliado a contribuiccedilatildeo de Fides tambeacutem no cenaacuterio mundial Conheccedila todo esse acervo em formato eletrocircnico no site oficial do Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper e em bancos de dados como ATLA Serials e Fuente Academica

Nesta ediccedilatildeo o primeiro artigo de autoria do Dr Leandro de Lima ldquoO chamado para o martiacuterio em Apocalipse as sete igrejas da Aacutesiardquo nos desafia a refletir sobre o niacutevel de perseguiccedilatildeo que os leitores originais do livro de Apo-calipse enfrentavam em seus dias Segundo o autor a situaccedilatildeo ainda natildeo era extrema mas os cristatildeos jaacute comeccedilavam a demonstrar sinais de acomodaccedilatildeo agrave cultura vigente para tentar manter os benefiacutecios da paz Dessa forma o livro de Apocalipse cumpre seu papel de confrontar tal acomodaccedilatildeo

No segundo artigo pelo professor Solano Portela ldquoDesconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo o poacutes-modernismo da teologia da esperanccedila agrave teologia da nova era e seus reflexos no campo educacionalrdquo o autor demonstra que o tema subjacente de desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo de pontos fundamentais com um progressivo desvio dos direcionamentos biacuteblicos estaacute sempre presente na teologia modernacontemporacircnea Segundo ele as tendecircncias que aparecem nessas reflexotildees teoloacutegicas satildeo similares ao que se observa no campo da edu-caccedilatildeo e algumas delas impactam profundamente o processo cristatildeo de ensino--aprendizagem O desafio feito pelo autor eacute para que um soacutelido alicerce biacuteblico venha a fundamentar qualquer filosofia de educaccedilatildeo escolar cristatilde

O terceiro artigo pelo professor Heber Carlos de Campos Juacutenior ldquolsquoCor meum tibi offero Domine prompte et sincerersquo um ensaio introdutoacuterio sobre espiritualidade reformadardquo apresenta a espiritualidade reformada como uma aacuterea ainda desconhecida em meios populares e acadecircmicos e carente de ser redescoberta No intuito de resgatar o aspecto piedoso e devocional da tradiccedilatildeo reformada seu artigo apresenta uma introduccedilatildeo agrave teologia praacutetica de perso-nagens como Joatildeo Calvino os puritanos ingleses o movimento reformado holandecircs ldquoNadere Reformatierdquo e Jonathan Edwards aleacutem de representantes contemporacircneos da piedade reformada

O quarto artigo por Paulo Eduardo Vieira da Veiga ldquoAs implicaccedilotildees missioloacutegicas do triunfo de Cristo uma anaacutelise da questatildeo juriacutedica no contexto da Grande Comissatildeo (Mt 2818-20)rdquo analisa o termo ἐξουσία (autoridade) mencionado no versiacuteculo 18 no contexto da teologia biacuteblica do Antigo e do Novo Testamentos reflete sobre a autoridade perdida por Adatildeo e reconquis-tada por Cristo e avalia como o triunfo e a exaltaccedilatildeo de Cristo satildeo a garantia de sucesso da missatildeo

No quinto artigo ldquoIgrejas e histoacuteria um modelo para interpretar a di-ferenccedila entre o catolicismo romano e o protestantismordquo Paul Wells aborda o conceito de tradiccedilatildeo a maneira pela qual um grupo religioso apresenta no desenvolvimento da histoacuteria a relaccedilatildeo entre o mundo espiritual e o mundo histoacuterico material Para abordar o tema igreja e histoacuteria o autor propotildee fazer uma comparaccedilatildeo entre essas duas posiccedilotildees em trecircs aacutereas a Igreja e os sacra-mentos a Escritura e a tradiccedilatildeo o Espiacuterito Santo e a vida cristatilde

O sexto artigo de Isaias DrsquoOleo Ochoa ldquoOn how Herman Bavinck res-ponds to the theory of evolution The primacy of biblical revelationrdquo (Sobre o modo como Herman Bavinck responde agrave teoria da evoluccedilatildeo a primazia da revelaccedilatildeo biacuteblica) oferece uma teoria de desenvolvimento modificada a qual estaacute fundamentada natildeo em uma cosmovisatildeo mecanicista e naturalista como vemos em Darwin mas em uma estrutura ldquoteiacutesta-amigaacutevelrdquo Nesse artigo o autor argumenta que a discussatildeo de Bavinck sobre evoluccedilatildeo em termos gerais endossa uma estrutura aristoteacutelicatomista modificada a fim de entender a teoria de desenvolvimento e assim superar os desafios suscitados pela cosmovisatildeo naturalista de Darwin agrave revelaccedilatildeo biacuteblica

A seccedilatildeo de resenhas traz avaliaccedilotildees de obras relevantes para o contexto atual da igreja Catolicidade Reformada A Promessa da Recuperaccedilatildeo para a Teologia e a Interpretaccedilatildeo Biacuteblica de Michael Allen e Scott R Swain resenha-da por Heber Carlos de Campos Juacutenior Francis Schaeffer e a Vida Cristatilde A Espiritualidade Contracultural de W Edgar resenhada por Wendell Gonzaga da Paixatildeo e Jesus e o Impeacuterio O Reino de Deus e a Nova Desordem Mundial de Richard A Horsley resenhada por Norval da Silva

Mantendo o compromisso da revista em proporcionar e incentivar uma reflexatildeo teoloacutegica reformada entrego aos leitores mais esta ediccedilatildeo de Fides Reformata desejoso de que estes artigos despertem mais uma vez o interesse por pesquisas que visam contribuir para a edificaccedilatildeo do povo de Deus servindo sua igreja ao redor do mundo

Boa leitura

Dr Daniel SantosEditor

SUMAacuteRIO

ARTIGOS

O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIALeandro A de Lima 9

DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO O POacuteS-MODERNISMO DA TEOLOGIA DA ESPERANCcedilA Agrave TEOLOGIA DA NOVA ERA E SEUS REFLEXOS NO CAMPO EDUCACIONALSolano Portela 29

ldquoCOR MEUM TIBI OFFERO DOMINE PROMPTE ET SINCERErdquo UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADAHeber Carlos de Campos Juacutenior 47

AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO ndash UMA ANAacuteLISE DA QUESTAtildeO JURIacuteDICA NO CONTEXTO DA GRANDE COMISSAtildeO (MT 2818-20)Paulo Eduardo Vieira da Veiga 71

IGREJAS E HISTOacuteRIA UM MODELO PARA INTERPRETAR A DIFERENCcedilA ENTRE O CATOLICISMO ROMANO E O PROTESTANTISMOPaul Wells 91

ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION THE PRIMACY OF BIBLICAL REVELATIONIsaias DrsquoOleo Ochoa 103

RESENHAS

CATOLICIDADE REFORMADA A PROMESSA DA RECUPERACcedilAtildeO PARA A TEOLOGIA E A INTERPRETACcedilAtildeO BIacuteBLICA (MICHAEL ALLEN SCOTT R SWAIN)Heber Carlos de Campos Juacutenior 125

FRANCIS SCHAEFFER E A VIDA CRISTAtilde A ESPIRITUALIDADE CONTRACULTURAL (W EDGAR)Wendell Gonzaga da Paixatildeo 131

JESUS E O IMPEacuteRIO O REINO DE DEUS E A NOVA DESORDEM MUNDIAL (RICHARD A HORSLEY)Norval da Silva 137

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

9

O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

Leandro A de Lima

RESUMONo final do primeiro seacuteculo quando Joatildeo recebeu a visatildeo e a registrou

no livro do Apocalipse as igrejas da Aacutesia natildeo enfrentavam o pior periacuteodo de perseguiccedilatildeo Muito embora existissem perseguiccedilotildees pontuais e alguma som-bra de intensificaccedilatildeo de perseguiccedilatildeo se apresentasse no horizonte boa parte dos cristatildeos vivia em relativa paz e seguranccedila desfrutando de privileacutegios e benefiacutecios vindos do rico comeacutercio imperial que permeava a regiatildeo da Aacutesia Menor e de seu status como cidadatildeos romanos O desejo de permanecer des-frutando de certos benefiacutecios levou muitos crentes a seguirem o caminho de acomodaccedilatildeo cultural proposto por falsos mestres eloquentes da eacutepoca Contra essa disposiccedilatildeo o Apocalipse demonstra que os crentes verdadeiros precisam seguir o exemplo de Cristo que foi fiel ateacute a morte e recebeu a recompensa na ressurreiccedilatildeo Desse modo se estiverem dispostos a viverem fieacuteis a Cristo e enfrentarem a proacutepria morte por causa disso daratildeo o verdadeiro testemunho ao mundo bem como participaratildeo da recompensa de Cristo

PALAVRAS-CHAVESete igrejas da Aacutesia Apocalipse Martiacuterio Testemunho Perseguiccedilatildeo

INTRODUCcedilAtildeOGeralmente o livro do Apocalipse eacute considerado um tratado que objetiva

trazer consolo agrave igreja que experimenta perseguiccedilatildeo e sofrimento Muitos cren-

O autor eacute ministro presbiteriano e professor de Novo Testamento no Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper Tem doutorado em Literatura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e atualmente cursa outro doutorado em Novo Testamento pela Universidade de Kampen na Holanda

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

10

tes acreditam que nos dias em que Joatildeo recebeu o Apocalipse e o registrou a igreja enfrentava grande e incessante perseguiccedilatildeo e que em parte por causa disso era uma igreja extremamente fiel disposta a viver e morrer por Cristo No entanto haacute fortes razotildees no proacuteprio livro do Apocalipse para entender que essas duas expectativas estatildeo erradas e natildeo descrevem a realidade dos fatos daqueles dias no final do primeiro seacuteculo O livro parece ter sido escrito como uma exortaccedilatildeo para alguns grupos de cristatildeos que estavam experimentando relativo fracasso em seu testemunho perante o mundo1 O objetivo do livro foi mostrar para aqueles crentes o ponto exato em que estavam falhando e chamaacute-los ao arrependimento e agrave mudanccedila de atitude

Eacute nossa convicccedilatildeo de que esse entendimento eacute importante natildeo apenas para compreender melhor o livro do Apocalipse como um todo mas tam-beacutem para ldquoaproximarrdquo leitores modernos do livro O livro natildeo descreve uma ldquoigreja dos sonhosrdquo em termos de fidelidade ou como se costuma dizer uma ldquoigreja fiel porque era perseguidardquo Isso nos mostra que em todos os tempos precisamos da exortaccedilatildeo de Deus para que sejamos fieacuteis ateacute agrave morte seja em tempos de intensa perseguiccedilatildeo ou de relativa paz e seguranccedila

1 MARTIacuteRIO EM APOCALIPSEA noccedilatildeo comum de que o livro de Apocalipse descreve uma eacutepoca histoacute-

rica de intensa e incessante perseguiccedilatildeo2 tem sido questionada por muitos estu-diosos3 A percepccedilatildeo da ameaccedila de perseguiccedilatildeo causada por eventos pontuais4

1 Eacute nossa convicccedilatildeo de que a chave hermenecircutica para entender o pano de fundo histoacuterico do Apocalipse estaacute nas cartas agraves sete igrejas Ver Elizabeth Schuumlssler-Fiorenza Priester fur Gott Studien zum Herrschafts-und Priestermotiv in der Apokalypse NtAbhNF 7 (Munster Aschendorff 1972) p 155-166

2 Ver Elisabeth Schuumlssler-Fiorenza The Book of Revelation Justice and Judgment (2nd ed Minneapolis Fortress 1998) p 187-99 A autora defende que existia perseguiccedilatildeo mesmo que natildeo haja evidecircncia para provar isso

3 Principalmente por Leonard L Thompson The Book of Revelation Apocalypse and Empire New York Oxford University Press 1990 p 95-115 Segundo Thompson duas visotildees contrastantes de Domiciano podem ser encontradas nas fontes antigas a oficial que o descreve como um tirano e outras que o descrevem como um bom imperador Thompson prefere a segunda e por isso natildeo vecirc justificativa para perseguiccedilotildees generalizadas no final do primeiro seacuteculo Adela Yarbro Collins por outro lado sustenta que havia perseguiccedilotildees Ver ldquoPersecution and vengeance in the Book of Revelationrdquo In Apocalypticism in the Mediterranean World and the Near East p 729-749 Tuumlbingen JCB Mohr (Paul Siebeck) 1983 ver tambeacutem Adela Yarbro Collins Crisis and Catharsis The Power of the Apocalypse Philadelphia Westminster 1984 p 84-110 Yarbro Collins destaca a importacircncia de distinguir entre uma crise real e uma crise percebida (p 32)

4 Beale define o ldquoclimardquo do periacuteodo com as seguintes palavras ldquoA evidecircncia interna do livro aponta para uma situaccedilatildeo de relativa paz e perseguiccedilatildeo seletiva com uma expectativa iminente de intensificaccedilatildeo da perseguiccedilatildeo em uma escala cada vez mais programaacuteticardquo (G K Beale The Book of Revelation A Commentary on the Greek Text New International Greek Testament Commentary Grand Rapids MI Carlisle Cumbria Eerdmans Paternoster Press 1999 p 12)

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

11

(Ap 210 213) mais do que perseguiccedilatildeo contiacutenua parece descrever melhor o periacuteodo do final do primeiro seacuteculo na regiatildeo da Aacutesia Menor5 Isso entretanto natildeo diminui o impacto que os casos especiacuteficos de perseguiccedilatildeo produziam so-bre as igrejas daquela regiatildeo Na verdade a caracteriacutestica quase randocircmica da perseguiccedilatildeo parece ter produzido em muitos dos disciacutepulos das sete igrejas da Aacutesia a esperanccedila de poder escapar dela E o meio escolhido para isso em muitos casos parece ter sido a subserviecircncia disfarccedilada (ou natildeo) aos padrotildees idolaacutetricos romanos6 Contra esse cenaacuterio7 Joatildeo apregoou a bem-aventuranccedila da morte testemunhal8

Apocalipse menciona vaacuterias vezes a palavra ldquovitoacuteriardquo ou ldquovencerrdquo e descreve os vencedores em cada epiacuteteto das sete cartas Mas ao contraacuterio do que isso representava nas batalhas romanas o vencedor em Apocalipse natildeo eacute aquele que permanece vivo mas aquele que morre como Cristo que eacute o Cordeiro vencedor (Ap 55-6) Kowalski estaacute certo ao afirmar que ldquoo obje-tivo principal da metaacutefora do Cordeiro eacute encorajar o povo de Deus que estaacute passando por sofrimento e afliccedilatildeo dando-lhe a chance de se identificar com Cristo especialmente em seu sofrimento luta e ressurreiccedilatildeordquo9 De fato aleacutem de exaltar a nobreza e a dignidade da testemunha que fielmente recusa-se a ceder agraves exigecircncias idolaacutetricas e morre por Cristo Joatildeo igualmente destaca de maneira contiacutenua a recompensa desses mortos O simples fato de Joatildeo mencionar tantas vezes a expressatildeo ldquomortosrdquo ao longo do livro evidencia que

5 Nosso pressuposto eacute que o Apocalipse foi escrito pelo apoacutestolo Joatildeo por volta do ano 95 dC durante o reinado de Domiciano Sobre perseguiccedilatildeo ver Alan S Bandy ldquoPersecution and the purpose of Revelation with reference to Roman jurisprudencerdquo Bulletin for Biblical Research 23 n 3 (2013) 377-398 O autor argumenta convincentemente pelo caminho da jurisprudecircncia romana que tanto a ameaccedila quanto a perseguiccedilatildeo eram reais Para uma defesa de que Domiciano era um grande perseguidor ver WHC Frend Martyrdom and Persecution in the Early Church Oxford Basil Blackwell 1965 p 2211-2218

6 Price estabelece que no tempo de Domiciano havia uma expectativa em meio agrave populaccedilatildeo de expressotildees puacuteblicas de lealdade ao imperador cada vez mais fortes atraveacutes do culto imperial Essa pressatildeo era por parte dos proacuteprios cidadatildeos da Aacutesia Menor e era especialmente devotada nos momentos em que o imperador visitava as cidades ou nas datas nataliacutecias Frequentemente se associava a cultos locais e agraves aspiraccedilotildees das guildas comerciais da eacutepoca (S R F Price Rituals and Power The Roman Imperial Cult in Asia Minor Cambridge University Press 1984 p 78-222)

7 Ver a anaacutelise de Friesen onde ele conclui que os estudos em Apocalipse deveriam focar menos em supostos excessos de perseguiccedilatildeo sob Nero ou Domiciano e mais no caraacuteter normativo das atividades do culto imperial (Steven J Friesen Imperial Cults and the Apocalypse of John Reading Revelation in the Ruins Oxford University Press 2001 p 135-151)

8 Beale entende que ldquoo principal objetivo retoacuterico do argumento literaacuterio do Apocalipse de Joatildeo eacute exortar o povo de Deus a permanecer fiel ao chamado para seguir o exemplo paradoxal do Cordeiro e natildeo se comprometer tudo com o objetivo de herdar a salvaccedilatildeo finalrdquo (G K Beale The Book of Revelation p 171)

9 B Kowalski Martyrdom and Resurrection in The Revelation to John Andrews University Seminary Studies 411 (2003) p 55

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

12

o autor estaacute preocupado em explicar a situaccedilatildeo deles (Ap 15 69-11 1118 1413 1824 205 12-13) O livro encoraja os crentes a perseverarem ateacute o fim significando prioritariamente a necessidade de morrer por Cristo a fim de receber a grande recompensa de sua fidelidade (Ap 210 1211)

No entanto essas menccedilotildees expliacutecitas e diretas podem ser apenas a ponta do iceberg Haacute no nosso entendimento uma intrincada e desenvolvida teologia em favor do martiacuterio ao longo de todo o livro a qual se relaciona diretamente com o martiacuterio de Jesus Sweet lista quatro aspectos da relaccedilatildeo entre o martiacute-rio de Jesus e o martiacuterio de seus seguidores conforme o livro de Apocalipse estabelece

(a) O sofrimento dos cristatildeos eacute o resultado do testemunho que natildeo eacute apenas o testemunho acerca de Jesus mas o testemunho de Jesus que eles mantecircm

(b) Mantido fielmente este testemunho traz sofrimento para eles como trouxe para ele do mundo que provoca e atormenta

(c) Natildeo consiste no sofrimento mas em falar pelo Deus verdadeiro em palavra e comportamento contra a idolatria e imoralidade do mundo

(d) Em uacuteltima anaacutelise eacute vitorioso natildeo pelo efeito moral do sofrimento em que incorre mas pela vindicaccedilatildeo de Deus que destroacutei a oposiccedilatildeo10

A vitoacuteria sobre a morte aparece como a grande vindicaccedilatildeo dos maacutertires em Apocalipse A morte eacute um inimigo personificado no livro (68) Ela aparece como o grande adversaacuterio que Cristo jaacute conquistou exatamente por ter morrido (118) O uacuteltimo ato julgador de Cristo no final do livro eacute banir a morte para o lago de fogo (2014 214) Uma vez que essa morte ainda natildeo foi banida a igreja se vecirc diante dela tendo que enfrentaacute-la Do mesmo modo que Cristo obteve a vitoacuteria sobre esse inimigo tambeacutem para a igreja o melhor modo de vencer a morte eacute paradoxalmente morrer Assim o chamado ao martiacuterio eacute na verdade em Apocalipse natildeo a exaltaccedilatildeo de um momento miacutestico de sofri-mento (como muitas vezes parece ser na literatura posterior de martiacuterio) mas a certeza da verdadeira vitoacuteria Os crentes derrotam a morte quando morrem como Cristo morreu Tornam-se testemunhas vitoriosas perante o mundo e herdam o mundo vindouro

Desde o estudo de Trites eacute comum pensar que os termos maacutertir martiacuterio (μαρτυς μαρτυρία) e seus cognatos11 em Apocalipse natildeo tenham o significado semacircntico plenamente assumido de ldquomorte testemunhalrdquo que veio a ser am-

10 J P M Sweet Maintaining the Testimony of Jesus The Suffering of Christians in the Revelation of John In Suffering and Martyrdom in the New Testament William Horbory and Brian McNeil (Eds) Cambridge University Press 1981 p 101

11 Esses termos possuem grande peso semacircntico nos escritos atribuiacutedos a Joatildeo no Novo Testamento O conceito ocorre normalmente no iniacutecio e no final dos escritos Jo 17 e 1935 2124 1Jo 12 e 59 Ap 12 e 2220 (Ver A Pohl Die Offenbarung des Johanes Wuppertal Teil 1969 Ap 12)

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

13

plamente desenvolvido e generalizado no segundo seacuteculo a partir do Martiacuterio de Policarpo Trites estabelece cinco estaacutegios para a mudanccedila e consolidaccedilatildeo semacircntica do termo maacutertir (μαρτυς) Primeiro tinha apenas o sentido de teste-munho perante um tribunal sem implicaccedilatildeo de morte Em segundo lugar foi aplicado a algueacutem que testemunhou diante de um tribunal e foi morto como consequecircncia Em terceiro lugar a morte se tornou parte do testemunho Em quarto lugar a palavra μαρτυς assumiu o caraacuteter teacutecnico de morte Por uacuteltimo a noccedilatildeo de testemunho desapareceu do termo ficando exclusivamente a ideia de morte ou martiacuterio12 A conclusatildeo de Trites eacute que

O estudo do uso de μαρτυρία no Apocalipse leva agrave conclusatildeo de que a palavra ainda natildeo atingiu o estaacutegio em que sua definiccedilatildeo de dicionaacuterio eacute ldquomartiacuteriordquo Onde as ideias martiroloacutegicas estatildeo presentes elas devem ser deduzidas do contexto e natildeo de uma mudanccedila semacircntica no significado da palavra13

Assim para Trites a terminologia em Apocalipse estaacute ainda no terceiro estaacutegio movendo-se na direccedilatildeo do quarto e do quinto estaacutegios O estudo se-macircntico de Trites eacute uacutetil para nossa discussatildeo pois parece evidente que haacute uma evoluccedilatildeo terminoloacutegica poreacutem natildeo eacute possiacutevel localizar o conceito de martiacuterio em Apocalipse precisamente no terceiro estaacutegio justamente porque embora o termo natildeo signifique semanticamente ldquomorte testemunhalrdquo o conceito estaacute firmemente associado a isso pois a morte eacute praticamente uma consequecircncia necessaacuteria do testemunho A teologia martiroloacutegica do livro de Apocalipse se ancora no termo ldquotestemunhardquo Deste modo a definiccedilatildeo de Dragas precisa ser adicionada ldquoEacute preciso lembrar tambeacutem no entanto que no Apocalipse μαρτυς se refere agravequeles que testemunham atraveacutes da morte e que tanto An-tipas quanto o proacuteprio Jesus satildeo portanto as verdadeiras testemunhasrdquo14 De fato ldquoembora o vocabulaacuterio sobre testemunho no Apocalipse de um modo geral provavelmente natildeo se refira ao martiacuterio neste caso o termo μαρτυς estaacute relacionado com uma morte violentardquo15 Entendemos portanto que embora Apocalipse ainda natildeo use semanticamente o termo μαρτυς como substituto de morte testemunhal o livro foi grandemente responsaacutevel por essa identificaccedilatildeo posterior pois associou fortemente os sentidos Segundo a definiccedilatildeo de Van Henten ldquoum maacutertir eacute uma pessoa que se encontra em situaccedilatildeo extremamente hostil e prefere uma morte violenta a cumprir uma exigecircncia de autoridades

12 A A Trites ldquoμαρτυς and Martyrdom in the Apocalypse A Semantic Studyrdquo Novum Testamentum 15 (1973) p 72-73

13 Ibid p 7714 G Dragas ldquoMartyrdom and orthodoxy in the New Testament era the theme of martyria as

witness to the truthrdquo The Greek Orthodox Theological Review 30 n 3 (September 1985) p 29215 P H R van Houwelingen The Book of Revelation Full of Expectation Saacuterospataki Fuumlzetek

1 (2011) p 16

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

14

estrangeirasrdquo16 O conceito portanto nos parece presente no livro de Apoca-lipse fortemente associado ao uso do termo μαρτυς e seus cognatos

Existe uma noccedilatildeo bem estabelecida da importacircncia e do valor de uma morte testemunhal anterior ao Apocalipse17 E ao usar esse conceito associado ao termo μαρτυς o Apocalipse moldou fortemente o sentido nessa direccedilatildeo18 O termo martiacuterio em Apocalipse tem a conotaccedilatildeo de um testemunho a sustentaccedilatildeo de uma verdade que natildeo se abaixa diante das exigecircncias mundanas mas que persevera em fidelidade ateacute a morte Uma testemunha verdadeira soacute pode ser algueacutem que estaacute disposto a ir ateacute o fim nesse testemunho mesmo que even-tualmente ele natildeo seja morto violentamente Para definir o mais precisamente possiacutevel a discussatildeo entendemos que o testemunho em Apocalipse natildeo exige necessariamente uma morte violenta da testemunha mas exige a disposiccedilatildeo para tal morte

2 A PALAVRA DO TESTEMUNHOO Apocalipse expressa a ideia de que o comportamento esperado de

um verdadeiro cristatildeo eacute algo que entra em conflito direto com as condiccedilotildees exigecircncias e padrotildees de comportamento impostos pela sociedade romana da qual os cristatildeos das sete igrejas da Aacutesia faziam parte Ou seja de acordo com o Apocalipse se um cristatildeo realmente vivesse como devia viver em relaccedilatildeo a Deus isso de fato poderia levaacute-lo a sofrer consequecircncias como a perda de direitos comerciais aleacutem de ter que enfrentar processos judiciais complicados e perigosos pois ser acusado de falta de lealdade ao imperador romano era algo muito grave naqueles dias Aparentemente natildeo era todo dia que algum cristatildeo era levado perante as autoridades romanas por causa da sua feacute e isso mostra que por um lado a perseguiccedilatildeo natildeo era maciccedila mas por outro lado que provavelmente a maioria dos cristatildeos natildeo estivesse vivendo como um cristatildeo devia viver Roma natildeo os via como ameaccedila aos seus padrotildees sociais religiosos e culturais

16 Ver J W van Henten amp F Avemarie Martyrdom and Noble Death ndash Selected Texts from Graeco--Roman Jewish and Christian Antiquity London amp New York Routledge 2002 p 3-4

17 Como ficou estabelecido na tese de Van Henten que analisou o conceito de martiacuterio como herdado do judaiacutesmo especialmente de 2 e 4 Macabeus Van Henten estabelece que ldquoa figura do maacutertir eacute mais antiga que o Cristianismo e tem raiacutezes judaicasrdquo (J W van Henten The Maccabean Martyrs as Saviours of the Jewish people A Study of 2 and 4 Maccabees Leiden Brill 1997 p 7) A origem provavelmente estaacute nas histoacuterias contadas em Daniel 3 e 6 onde Daniel e seus trecircs amigos enfrentam a condenaccedilatildeo agrave morte diante das autoridades estrangeiras pelo motivo de se recusarem a descumprir ordens de seu Deus

18 Provavelmente eacute possiacutevel ver isso em livros canocircnicos anteriores ao Apocalipse como no livro de Atos onde os apoacutestolos e disciacutepulos satildeo chamados a serem μου μαρτυρες (At 18) O primeiro disciacute-pulo de Cristo a ser morto Estevatildeo eacute chamado de μαρτυρός σου Paulo ao ser comissionado tambeacutem recebe a designaccedilatildeo de testemunha (At 2616)

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

15

A mensagem central do livro pode ser entendida como um chamado divino para que os crentes das igrejas assumam a responsabilidade de serem testemunhas de Jesus diante da sociedade idoacutelatra Os cristatildeos nas sete igrejas precisavam seguir o exemplo de Cristo o qual sofreu perante as autoridades romanas na Judeia em razatildeo de ter permanecido fiel a Deus Jesus pagou o preccedilo da fidelidade atraveacutes de sua morte mas recebeu a recompensa disso em sua ressurreiccedilatildeo Portanto na visatildeo de Joatildeo os cristatildeos precisam entender o que significa ser uma testemunha de Jesus ou seja qual eacute o conteuacutedo desse testemunho quais satildeo os desafios e consequecircncias imediatas dessa atitude e finalmente quais satildeo as recompensas O Apocalipse foi escrito primordialmente para trazer esse conhecimento aos cristatildeos Eacute um chamado para uma atitude de mudanccedila e consagraccedilatildeo

Haacute uma frase que aparece diversas vezes no livro e que resume bem o significado desse chamado ou convocaccedilatildeo ldquopor causa da Palavra de Deus e do testemunho de Jesusrdquo Essas palavras de fato quase parecem um brado de guerra e resumem o senso de heroiacutesmo e fidelidade esperado dos verdadeiros cristatildeos conforme estabelecido no livro do Apocalipse Essas duas expressotildees aparecem com algumas variaccedilotildees seis vezes no livro atribuiacutedas a certas pes-soas que por causa delas enfrentam seacuterias dificuldades inclusive perseguiccedilotildees prisotildees e morte mas tambeacutem triunfam esplendidamente E ainda aparecem uma seacutetima vez de maneira resumida Listamos abaixo todas as sete vezes em que a frase pode ser vista (com pequenas modificaccedilotildees)19

Apocalipse 11-2 ndash Revelaccedilatildeo de Jesus Cristo que Deus lhe deu para mostrar aos seus servos as coisas que em breve devem acontecer e que ele enviando por intermeacutedio do seu anjo notificou ao seu servo Joatildeo o qual atestou a palavra de Deus e o testemunho de Jesus Cristo quanto a tudo o que viu

Apocalipse 19 ndash Eu Joatildeo irmatildeo vosso e companheiro na tribulaccedilatildeo no reino e na perseveranccedila em Jesus achei-me na ilha chamada Patmos por causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus

Apocalipse 69 ndash Quando ele abriu o quinto selo vi debaixo do altar as almas daqueles que tinham sido mortos por causa da palavra de Deus e por causa do testemunho que sustentavam

Apocalipse 1217s ndash Irou-se o dragatildeo contra a mulher e foi pelejar com os res-tantes da sua descendecircncia os que guardam os mandamentos de Deus e tem o testemunho de Jesus e se pocircs em peacute sobre a areia do mar20

19 As modificaccedilotildees na frase em suas apariccedilotildees parecem intencionais e fazem parte do estilo de Joatildeo que poderia ser denominado de ldquoparalelismo progressivordquo

20 Em Apocalipse 1217 haacute uma mudanccedila interessante nos termos com ldquopalavrardquo sendo substituiacuteda por ldquomandamentosrdquo

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

16

Apocalipse 1412 ndash Aqui estaacute a perseveranccedila dos santos os que guardam os mandamentos de Deus e a feacute em Jesus21

Apocalipse 204 ndash Vi tambeacutem tronos e nestes sentaram-se aqueles aos quais foi dada autoridade de julgar Vi ainda as almas dos decapitados por causa do testemunho de Jesus bem como por causa da palavra de Deus tantos quantos natildeo adoraram a besta nem tampouco a sua imagem e natildeo receberam a marca na fronte e na matildeo e viveram e reinaram com Cristo durante mil anos

Aleacutem dessas seis ocorrecircncias em Apocalipse 1211 haacute uma abreviaccedilatildeo que parece ser intencional para essa dupla declaraccedilatildeo palavramandamentos e testemunhofidelidade A expressatildeo eacute traduzida como ldquopalavra do testemunhordquo e eacute a causa da vitoacuteria dos crentes sobre o dragatildeo Ou seja eacute a disposiccedilatildeo deles de morrer por Cristo que garante sua vitoacuteria ldquoEles pois o venceram por causa do sangue do Cordeiro e por causa da palavra do testemunho que deram e mesmo em face da morte natildeo amaram a proacutepria vidardquo

Essa ldquopalavra do testemunhordquo eacute o ato de um cristatildeo verdadeiro em defen-der a verdade de Deus diante do mundo em viver de acordo com ela mesmo sabendo que isso acarretaraacute perseguiccedilotildees perdas sofrimentos e em uacuteltimo caso a proacutepria morte

Aleacutem disso nota-se que os termos correlatos ldquotestemunhardquo ldquotestemunhordquo ou o verbo ldquotestemunharrdquo tambeacutem aparecem em outros lugares do livro Em grego esses termos podem ser transliterados como ldquomaacutertirrdquo ldquomartiacuteriordquo ldquomar-tirizarrdquo (μαρτυς μαρτυρία μαρτυρειν) O termo testemunho como algo que deve ser sustentado e que causa a proacutepria morte daqueles que o datildeo aparece como a tarefa que eacute dada agraves duas testemunhas em Apocalipse 117 ldquoQuando tiverem entatildeo concluiacutedo o testemunho que devem dar a besta que surge do abismo pelejaraacute contra elas e as venceraacute e mataraacuterdquo Percebemos que as duas testemunhas satildeo mortas pela besta que sobe do abismo Em Apocalipse 204 a causa da morte das almas foi justamente ldquonatildeo adorar a bestardquo

O termo μαρτυρία ldquotestemunhordquo aleacutem das ocorrecircncias mencionadas acima tambeacutem aparece em Apocalipse 15 onde o proacuteprio Jesus eacute descrito como ldquoa testemunha fielrdquo (ο μαρτυς ο πιστός) Essa expressatildeo provavelmente indica sua morte na cruz (tambeacutem em Apocalipse 314) Por causa disso em Apocalipse 213 Antipas que foi morto em Peacutergamo eacute chamado pelo proacuteprio Cristo de ldquominha testemunha fielrdquo (μαρτυς μου ο πιστός μου)

O tabernaacuteculo celestial eacute denominado em Apocalipse 155 como o santuaacuterio do tabernaacuteculo do testemunho Essa expressatildeo provavelmente aponta para os maacutertires reunidos no ceacuteu que satildeo vingados pelos flagelos que comeccedilam

21 Em Apocalipse 1412 ldquopalavrardquo eacute substituiacuteda por ldquomandamentosrdquo e ldquotestemunhordquo por ldquofideli-daderdquo ou ldquofeacuterdquo

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

17

a ser derramados depois Em Apocalipse 176 a grande prostituta eacute descrita como becircbada com o sangue das testemunhas de Jesus Aleacutem disso a expressatildeo ldquotestemunho de Jesusrdquo aparece duas vezes em 1910 com uma relaccedilatildeo direta com 229 onde tambeacutem aparece a expressatildeo para guardar as palavras do livro

Finalmente nos uacuteltimos seis versiacuteculos do livro haacute trecircs usos do termo ldquotestemunhordquo em sua forma verbal Em 2216 Jesus relembra o envio do anjo para mostrar a Joatildeo a visatildeo (descrita primeiro em 11) ldquoEu Jesus enviei o meu anjo para vos testificar estas coisas agraves igrejasrdquo Em 2218 o termo testemunho eacute usado como um aviso contra acreacutescimos ou subtraccedilotildees sobre o conteuacutedo do livro Em 2220 Jesus se autodenomina ldquoaquele que daacute testemunhordquo e anuncia seu retorno em breve

Por isso o chamado ao testemunho eacute a grande mensagem do livro e eacute o aspecto central que queremos demonstrar neste artigo Apocalipse eacute um cha-mado ao verdadeiro testemunho Infelizmente as sete igrejas da Aacutesia estavam falhando em dar esse testemunho naqueles dias e do mesmo modo a igreja atual tambeacutem pode estar falhando

3 O CHAMADO AO MARTIacuteRIO NAS SETE CARTASOs cristatildeos das sete cidades imperiais natildeo eram oriundos apenas das clas-

ses mais baixas da populaccedilatildeo muitos eram comerciantes ricos e bem-sucedidos (Ap 317)22 Eles ajudavam a abastecer o comeacutercio imperial com bens e serviccedilos Muitos eram comerciantes navais (Ap 189-19)23 Para natildeo perderem privileacute-gios nesse sentido evitavam entrar em confronto com as autoridades romanas e com a populaccedilatildeo em geral Para esses cristatildeos o Apocalipse foi endereccedilado como um alerta contra o perigo de se acomodar ao status quo dominante e participar do culto imperial24 Eacute provaacutevel que como diz Collins muitos dos leitores para quem Joatildeo escreveu o Apocalipse nem sequer percebiam a crise que os cercava25 Estavam de tal modo envolvidos com a vida romana que nem

22 Ver o estudo de Wayne Meeks sobre a origem social dos crentes a partir das cartas paulinas Ele conclui que os crentes vinham menos dos extremos das classes sociais romanas altas e baixas sendo na sua maioria artesatildeos e pequenos comerciantes (WA Meeks The First Urban Christians The Social World of the Apostle Paul New Haven Yale University Press 1983 p 73 Ver tambeacutem A J Malherbe Social Aspects of Early Christianity Baton Rouge LA Louisiana State University Press 1977 p 29-32) Ver ainda o resumo sobre o status social dos cristatildeos em L L Thompson The Book of Revelation p 128-129

23 Ver nesse sentido a bem fundamentada tese de J Nelson Kraybill Imperial Cult and Commer-ce in Johnrsquos Apocalypse Journal for the Study of the New Testament Supplement Series 132 Shefield Academic Press 1996 Sobre a relaccedilatildeo entre economia e religiatildeo ver tambeacutem Leonard L Thompson The Book of Revelation p 171-197 R M Royalty The Streets of Heaven The Ideology of Wealth in the Apocalypse of John Macon GA Mercer University Press 1998

24 Price faz uma anaacutelise dos motivos pelos quais as pessoas da Aacutesia Menor participavam do culto imperial Ver Rituals and Power p 234-48

25 Adela Yarbro Collins Crisis and Catharsis The Power of the Apocalypse Philadelphia West-minster 1984 p 77 A autora entende que o culto imperial natildeo era um problema para a maioria das

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

18

percebiam os riscos de idolatria agrave sua volta Poreacutem apoacutes lerem o Apocalipse teriam que tomar uma decisatildeo26

As igrejas estavam sofrendo basicamente por dois motivos problemas internos e externos Externamente como dissemos havia um clima de ameaccedila de perseguiccedilotildees e tambeacutem algumas perseguiccedilotildees pontuais por parte das au-toridades do Impeacuterio Apocalipse daacute a entender que muitos cristatildeos estavam sentindo a ameaccedila de serem cerceados em seus direitos civis mesmo como cidadatildeos romanos com perda de funccedilotildees cargos e bens E alguns temiam sofrer sanccedilotildees ainda maiores como prisatildeo escravidatildeo e morte Como jaacute dis-semos ser cristatildeo no primeiro seacuteculo costumava envolver um certo risco de perder coisas a liberdade ou a proacutepria vida O proacuteprio Joatildeo apoacutestolo de Cristo se encontrava preso como grande evidecircncia do preccedilo a ser pago27 Ao que parece muitos cristatildeos natildeo estavam dispostos a pagar esse preccedilo e tentavam encontrar maneiras de fugir agraves puniccedilotildees sem necessariamente abandonar a feacute cristatilde Isso provavelmente gerava o segundo grave problema que a maioria das igrejas enfrentava a abertura para os falsos ensinos e a imoralidade Aleacutem dos pecados tradicionais como desuniatildeo brigas fornicaccedilatildeo etc um tipo de impureza doutrinaacuteria e moral parecia estar muito ligado agrave questatildeo da ameaccedila de perseguiccedilatildeo e ao desejo de escapar dela Informaccedilotildees histoacutericas mostram que o culto imperial permeava todos os aspectos da vida das cidades e vilas da Aacutesia Menor de maneira que era impossiacutevel uma pessoa aspirar a uma melhor condiccedilatildeo social e econocircmica sem participar em algum grau do culto romano28 Cidadatildeos tanto das classes altas quanto das baixas eram convocados a oferecer sacrifiacutecios ao imperador em vaacuterias ocasiotildees e nas cidades principais como Eacutefeso fundos puacuteblicos eram distribuiacutedos para que os cidadatildeos pudessem pagar pelos sacrifiacutecios de modo que natildeo participar desses eventos era considerado deslealdade e falta de patriotismo incorrendo nas penalidades legais29

igrejas ou seja muitos crentes da regiatildeo natildeo pensavam que eram proibidos de participar por causa de sua convicccedilatildeo cristatilde Kraybill sustenta que ldquoas comunidades cristatildes da Aacutesia Menor provavelmente ex-perimentaram mais desejo interno de se conformar agrave sociedade pagatilde do que pressatildeo externa no caminho da perseguiccedilatildeordquo (Imperial Cult p 196)

26 J P M Sweet diz ldquoA parte apocaliacuteptica natildeo eacute tanto um ataque ao mundo para encorajar a Igreja mas um ataque agrave Igreja que estaacute abraccedilando o mundo ndash para seu proacuteprio perigo mortal e na traiccedilatildeo de seu verdadeiro papel de convencer o mundo por seu testemunho para a salvaccedilatildeo do mundordquo (Mantaining the testimony of Jesus in Suffering and Martyrdom in the New Testament Eds William Horbory and Brian McNeil Cambridge University Press 1981 p 102-103)

27 Apesar de Thompson sugerir que Joatildeo pudesse ter ido a Patmos para pregar o Evangelho (Apo-calyse and Empire p 172-173) a maior parte dos inteacuterpretes inclusive os pais da igreja entende que ele havia sido aprisionado De fato os termos θλίψει e ὑπομονῇ que ele usa para descrever sua estada em Patmos sugerem prisatildeo mais do que apenas pregaccedilatildeo

28 Ver Price Rituals and Power p 101-132 Friesen Imperial Cults and the Apocalypse of John p 135-151

29 Ver Beale Revelation p 240-241 Price Rituals and Power p 78-121

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

19

Os falsos mestres ensinavam maneiras de as pessoas escaparem das perseguiccedilotildees pelo caminho da infidelidade A menccedilatildeo aos nicolaiacutetas30 aos seguidores de um tipo moderno de ldquoBalaatildeordquo e uma moderna ldquoJezabelrdquo que aparecem em quase todas as cartas satildeo indicaccedilotildees nesse sentido Suas doutri-nas claramente liberavam as pessoas do compromisso de santidade por isso tambeacutem logicamente as livravam das sanccedilotildees puacuteblicas

Eacutefeso em princiacutepio parece um exceccedilatildeo nesse sentido A igreja recebe um inesperado elogio quando Cristo diz ldquoTens contudo a teu favor que odeias as obras dos nicolaiacutetas as quais eu tambeacutem odeiordquo (26) A cidade era a metroacutepole da Aacutesia Menor31 Certamente continha a igreja mais importante daquela regiatildeo32 Os efeacutesios ao menos no comeccedilo recusaram seguir o caminho alternativo indicado pelos falsos apoacutestolos aquele que os liberava de ldquosofrer provas por causa do nome de Jesusrdquo ao contraacuterio mostraram ldquolabor e perseve-ranccedilardquo (κόπον καὶ τὴν ὑπομονήν) Eles seguiram o caminho do sofrimento da perda de direitos perante as autoridades mas natildeo da perda da fidelidade diante de Deus Mas ao que parece a situaccedilatildeo mudou depois de um tempo pois o Senhor acusa a igreja ldquoTenho poreacutem contra ti que abandonaste o teu primei-ro amorrdquo Provavelmente isso significava uma falta de zelo no testemunho puacuteblico do Evangelho33 O chamado ao arrependimento por certo significava um chamado viril ao testemunho para voltar a suportar fielmente as provas por causa de Cristo Portanto Eacutefeso natildeo deu espaccedilo aos falsos pregadores mas no final natildeo se saiu melhor do que as outras igrejas fracassando no testemunho perante o mundo por medo das consequecircncias

Esmirna era uma igreja fiel Ela recebe elogios e forte admoestaccedilatildeo de Cristo a permanecer fiel a continuar imitando a Cristo o que a coloca como igreja padratildeo no livro Para ela Cristo se reapresenta nos termos jaacute ouvidos no capiacutetulo 1 o ldquoprimeiro e uacuteltimo que esteve morto e tornou a viverrdquo O Cristo que experimentou o sofrimento e a morte se identifica com a igreja sofredora

30 Natildeo parece haver razatildeo para a ligaccedilatildeo feita por Irineu entre os nicolaiacutetas e o proseacutelito Nicolau mencionado em Atos 65 (Adv Haereses 1263 3111) Outros pais da igreja como Hipoacutelito (Hae-reses 724) disseram que se tratava de uma seita gnoacutestica que praticava imoralidade Segundo Beale ldquoos nicolaiacutetas ensinavam que algum grau de participaccedilatildeo na cultura idoacutelatra de Eacutefeso era permissiacutevelrdquo (Revelation 233) Thompson diz que eram forasteiros que tentavam se estabelecer na igreja de Eacutefeso (Apocalypse and Empire p 12) Fiorenza afirma que os nicolaiacutetas ldquoexpressam sua liberdade em um comportamento libertinordquo (Apocalyptic and Gnosis p 570)

31 Efeacuteso se tornou proeminente no tempo de Domiciano com a instalaccedilatildeo do culto provincial ao imperador (S J Friesen Twice Neokoros Ephesus Asia and the Cult of the Flavian Imperial Family Leiden Brill 1993 p 41-49)

32 G E Ladd A Commentary on the Revelation of John Grand Rapids Eerdmans 1972 p 30 Foi o lugar em que Paulo pastoreou e antes de ir embora advertiu contra os falsos mestres e falsos ensinos que poderiam vir apoacutes a sua partida (At 2028-31)

33 Beale Revelation p 230

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

20

de Esmirna com as palavras ldquoconheccedilo a tua tribulaccedilatildeordquo O estado paradoxal ldquopobreza (material) versus riqueza (espiritual)rdquo tambeacutem foi algo experimentado por Cristo E as blasfecircmias dos ldquofalsos judeusrdquo que parecem ter agido como acusadores perante as autoridades romanas tambeacutem estatildeo evocadas aqui A falta de explicaccedilotildees adicionais para a expressatildeo ldquosinagoga de Satanaacutesrdquo quanto agrave sinagoga judaica existente em Esmirna nos impede de ter certeza acerca da iden-tidade desses ldquofalsosrdquo judeus34 Poreacutem levando em consideraccedilatildeo que Satanaacutes eacute chamado de ldquogrande acusadorrdquo em Apocalipse 1210 parece justificar a ideia de que provavelmente se deva agrave atitude acusatoacuteria adotada pelos judeus contra os cristatildeos perante as autoridades romanas35 Essa parece ser a maior ameaccedila de perseguiccedilatildeo contemplada no livro de Apocalipse Os judeus de Esmirna natildeo queriam conceder aos cristatildeos o mesmo privileacutegio de praticar sua religiatildeo fora da Judeia e provavelmente acusavam os cristatildeos perante as autoridades de-monstrando que eles natildeo eram judeus e assim incitavam as autoridades contra os cristatildeos36 Por essa atitude sem misericoacuterdia aqueles judeus se revelavam como ldquofalsos judeusrdquo pois apesar do sangue e da descendecircncia judaica natildeo agiam como filhos de Deus e sim como ldquofilhos do diabordquo (Jo 844)37 Para essa igreja tatildeo identificada com ldquoa testemunha fielrdquo (Ap 15 ndash ο μαρτυς ο πιστός) o Senhor Jesus diz ldquoNatildeo temas as coisas que tens de sofrerrdquo Esse parece ser o grande incentivo do Apocalipse para uma disposiccedilatildeo ao martiacuterio Do mesmo modo como Cristo tocou Joatildeo quando este estava ldquocomo mortordquo e lhe disse ldquonatildeo temas eu sou o primeiro e o uacuteltimo e tenho as chaves da morte e do Hadesrdquo (Ap 117-18) agora ele conforta a igreja de Esmirna Certamente no sofrimento e morte estaacute a promessa da recompensa daquele que pode abrir

34 Van Henten observa que ldquoagrave exceccedilatildeo das referecircncias a Satanaacutes e ao diabo (29-10) o decreto permanece um tanto vago sobre quem eacute responsaacutevel pelo sofrimento dos fieacuteis em Esmirnardquo (Martyrdom p 590) Ver tambeacutem a discussatildeo na nota 14 da mesma paacutegina sobre autores que assumem posiccedilotildees diferentes sobre a identidade desses judeus

35 Friesen entende que Joatildeo fez uso de ironia e sarcasmo nesse ponto como uma forma de ldquovi-lificaccedilatildeordquo (termo de A Y Collins ldquoVilification and Self-Definition in the Book of Revelationrdquo HTR 79 (1986) 308ndash20) Steve Friesen Sarcasm in Revelation 2ndash3 Churches Christians True Jews and Satanic Synagogues In David L Barr The Reality of Apocalypse Rhetoric and Politics in the Book of Revelation Number 39 Leiden Boston Brill 2006 127-144

36 Segundo informaccedilotildees histoacutericas ateacute a segunda metade do primeiro seacuteculo os cristatildeos desfru-tavam de certa liberdade de culto debaixo do guarda-chuva do judaiacutesmo pois as autoridades romanas natildeo distinguiam o cristianismo do judaiacutesmo Os judeus desfrutavam de certa toleracircncia por parte dos romanos natildeo eram obrigados a sacrificar a Ceacutesar como deus mas apenas como governante Apoacutes o tempo de Nero novas religiotildees natildeo foram permitidas em Roma entatildeo os judeus tentaram mostrar aos romanos que o cristianismo natildeo era o judaiacutesmo Ver Beale Revelation p 240

37 No Martiacuterio de Policarpo existe uma descriccedilatildeo interessante nesse sentido quando o prococircnsul proclama diante da multidatildeo no estaacutedio que Policarpo eacute um cristatildeo Entatildeo a multidatildeo composta de gentios e judeus que habitavam em Esmirna testemunhara contra Policarpo dizendo que ele pregava contra os deuses e ensinava a natildeo oferecer sacrifiacutecios Por causa disso Policarpo foi condenado agrave morte (MPoly 121-2)

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

21

o Hades O Cristo que padeceu a morte nas matildeos dos romanos por causa da acusaccedilatildeo dos judeus anima sua igreja a passar pela mesma situaccedilatildeo pois ldquoeles sofreram por isso nas matildeos dos judeus os quais assim se mostraram servos de Satanaacutes (29 39)rdquo38 Que sejam portanto imitadores de Cristo Devem imitaacute-lo na maneira como satildeo acusados pelos judeus na maneira como satildeo julgados e condenados mas tambeacutem na maneira como Cristo triunfou

Ele anuncia prisatildeo prova e tribulaccedilatildeo de dez dias39 para a igreja Isso significava que a acusaccedilatildeo dos judeus perante as autoridades levaria agrave prisatildeo de alguns irmatildeos da igreja de Esmirna40 Provavelmente exista aqui uma inter-textualidade com o tempo de teste de Daniel e seus trecircs amigos em Babilocircnia que solicitaram dez dias ao rei para provar que comendo soacute legumes sem participar das iguarias da mesa do rei poderiam se manter mais saudaacuteveis do que os outros (Dn 112-15)41 Se essa interpretaccedilatildeo estaacute correta Joatildeo estava dizendo aos crentes de Esmirna que eles natildeo podiam se beneficiar das vanta-gens da cidadania romana uma vez que isso os obrigava a participar dos cultos idolaacutetricos A consequecircncia entretanto para essa recusa seria sofrimento certo e provavelmente morte

Do mesmo modo que Cristo que se apresentou como aquele que este-ve morto mas tornou a viver ou seja a ldquotestemunha fiel e o primogecircnito dos mortosrdquo a igreja tambeacutem eacute chamada a permanecer ldquofiel ateacute a morterdquo (πιστὸς ἄχρι θανατου) pois do mesmo modo experimentaraacute a gloriosa recompensa de receber ldquoa coroa da vidardquo (τὸν στέφανον τῆς ζωῆς) Isso soacute pode portanto ser uma referecircncia agrave ressurreiccedilatildeo42 Poreacutem a proacutexima declaraccedilatildeo parece esclarecer detalhadamente a que isso se refere ldquoO vencedor de nenhum modo sofreraacute dano da segunda morterdquo (Ap 211) Ou seja quem permanecer fiel ldquoateacute a morterdquo (ἄχρι θανατου) o que daacute a ideia natildeo de um periacuteodo de tempo ateacute a morte mas de uma fidelidade que pode resultar em morte43 natildeo sofreraacute a destruiccedilatildeo da

38 J P M Sweet Mantaining the testimony of Jesus p 10639 O tempo da tribulaccedilatildeo como sendo de ldquodez diasrdquo provavelmente natildeo seja uma referecircncia a

um periacuteodo literal antes aponta para o aspecto perverso e maligno dessa detenccedilatildeo O nuacutemero dez em Apocalipse estaacute associado agraves forccedilas malignas (Ap 916 123 131)

40 As autoridades romanas podiam lanccedilar pessoas em prisatildeo para manter a ordem puacuteblica mesmo antes de serem condenadas (At 1623-24) O aprisionamento permitia aos oficiais realizar a acusaccedilatildeo e pressionar o acusado ateacute obter uma confissatildeo como aparece na carta de Pliacutenio o Moccedilo (Ep 10963-4) As pessoas eram mantidas na prisatildeo indefinidamente ateacute que que a sentenccedila fosse imposta a qual podia ser multa banimento ou morte Ver Craig R Koester Revelation A New Translation with Introduction and Commentary org John J Collins vol 38A Anchor Yale Bible New Haven London Yale University Press 2014 p 276 Esse ato era chamado de procedimento cognitio

41 Beale Revelation p 24242 Ver B Kowalski Martyrdom and Resurrection p 5843 A construccedilatildeo significa ldquonatildeo fiel ateacute a hora da morte mas fiel ateacute uma medida que suportaraacute a

morte por amor de Cristo Eacute um termo intensivo natildeo extensivordquo (Marvin Richardson Vincent Word

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

22

ldquosegunda morterdquo O proacuteximo lugar no Apocalipse onde a expressatildeo ldquosegunda morterdquo aparece eacute justamente 206 onde se diz que os participantes da ldquoprimeira ressurreiccedilatildeordquo estatildeo livres da segunda morte Nesse mesmo texto eacute declarado que as almas dos decapitados reinam com Cristo durante os mil anos Portan-to eacute possiacutevel concluir preliminarmente que ldquoa coroa da vidardquo prometida aos vencedores em Esmirna era participar da primeira ressurreiccedilatildeo Tal aconteceria se os crentes se mantivessem fieacuteis ateacute o ponto de morrerem por causa disso Entatildeo semelhantemente a Cristo tambeacutem viveriam novamente A coroa da vida portanto parece ser uma recompensa especial para os mortos fieacuteis uma distinccedilatildeo de participar diretamente do reinado de Cristo (204) passando pe-las portas do Hades diretamente para o ceacuteu Em resumo vale a pena ser uma testemunhamaacutertir de Cristo

A ameaccedila da morte que ainda era uma sombra futura para os crentes de Esmirna aparece como um fato consumado ao menos para uma pessoa em Peacutergamo A igreja ficava numa cidade imperial uma antiga cidade fortaleza conquistada por Roma e transformada num importante centro de adoraccedilatildeo ao imperador romano44 Peacutergamo era um centro do culto a Ascleacutepio uma divin-dade representada por uma serpente poreacutem isso natildeo parece estar agrave altura do desafio pretendido pela expressatildeo ldquotrono de Satanaacutesrdquo Eacute mais seguro identificar a expressatildeo como uma alusatildeo ao forte paganismo de Peacutergamo simbolizado no grande altar que provavelmente dominava a acroacutepole onde ficava o centro de adoraccedilatildeo ao Ceacutesar45

A menccedilatildeo agrave morte de um cristatildeo daquela igreja se reveste de grande significado Aparentemente eacute a uacutenica pessoa que recebe um nome proacuteprio em Apocalipse aleacutem do proacuteprio Joatildeo46 Eacute possiacutevel concordar com Kraybill que ldquoo fato de Antipas ser o uacutenico maacutertir mencionado no Apocalipse sugere que a perseguiccedilatildeo letal era possiacutevel mas ainda natildeo era comum para os cristatildeos na Aacutesia Menorrdquo47 Isso reforccedila a ideia de que o martiacuterio era uma possibilidade um tanto remota para os cristatildeos das sete igrejas48 De fato talvez por ser remota

studies in the New Testament New York Charles Scribnerrsquos Sons 1887 2445) A referecircncia natildeo eacute ldquoateacuterdquo mas ldquomesmo querdquo (Henry Alford The Greek Testament Boston Lee and Shepard 1872 4567)

44 W Ramsay The Letters to the Seven Churches of Asia London Hodder amp Stoughton 1904ss45 H B Swete Apocalypse of St John the Greek Text Grand Rapids Eerdmans 1951 p 34-35

Aune lista ao menos oito possibilidades de interpretar a expressatildeo ldquotrono de Satanaacutesrdquo (D E Aune Re-velation Word Biblical Commentary Dallas Word 1998 52A 182-183)

46 Considerando que Jezabel mencionada na carta agrave igreja de Tiatira natildeo seja realmente um nome proacuteprio

47 Imperial Cult p 3448 Eacute preciso reconhecer que claramente o episoacutedio de Antipas fazia parte do passado (Paul B

Duff The Synagogue of Satan Crisis Mongering and the Apocalypse of John In David L Barr The Reality of Apocalypse p 161) Poreacutem aparentemente um passado recente (M Gilbertson God and History in the Book of Revelation New Testament Studies in Dialogue with Pannenberg and Moltmann Cambridge University Press 2003 p 110)

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

23

era uma possibilidade que natildeo os preocupasse cotidianamente Se eles natildeo se indispusessem de algum modo diretamente contra Roma provavelmente natildeo sofreriam grandes consequecircncias No entanto essa tepidez eacute condenada no Apocalipse A posiccedilatildeo de Antipas eacute destacada Se Esmirna eacute o grande exem-plo de igreja Antipas eacute o grande exemplo de cristatildeo que o livro quer destacar Natildeo eacute apenas a menccedilatildeo ao nome mas principalmente os termos aplicados a ele por Cristo que chamam a atenccedilatildeo Antipas minha testemunha meu fiel

(Ἀντιπᾶς ο μαρτυς μου ο πιστός μου) Natildeo pode haver nenhuma duacutevida de que com essas palavras Antipas estaacute sendo descrito como algueacutem que morreu por Cristo49 Esses termos foram usados para descrever a execuccedilatildeo de Jesus em Apocalipse 15 E isso foi exatamente o que aconteceu com Antipas50 pois Joatildeo diz ldquoo qual foi morto entre voacutes onde Satanaacutes habitardquo A expressatildeo pode ser traduzida como ldquoo qual foi executado diante de vocecircs aiacute onde Satanaacutes habitardquo (ὃς ἀπεκτανθη παρʼ ὑμιν ὅπου ο Σατανᾶς κατοικει) Sem duacutevida sugere-se uma execuccedilatildeo puacuteblica51 forense52 semelhante agrave de Jesus Natildeo haacute registro do motivo ou mesmo do meacutetodo da execuccedilatildeo de Antipas mas pode se deduzir que ele se recusou a fazer aquilo que era defendido pelos nicolaiacutetas e baalamitas que eram admirados em Peacutergamo ou seja recusou-se a participar do culto ao imperador53 e deve ter feito isso de maneira irredutiacutevel Entatildeo foi executado como testemunha de Jesus

O notaacutevel exemplo de Antipas entretanto natildeo parece ter produzido muito efeito positivo nos demais cristatildeos de Peacutergamo os quais natildeo parecem valorizar o fato e pode ter produzido ateacute mesmo uma reaccedilatildeo contraacuteria Provavelmente temerosos de ter que enfrentar um destino tatildeo cruel quanto a execuccedilatildeo por traiccedilatildeo perante as autoridades os cristatildeos de Peacutergamo seguiram o caminho alternativo oferecido pelos falsos mestres

49 Natildeo parece haver razatildeo para a aparente duacutevida de Thompson nesse sentido Ver L L Thomp-son Ordinary Lives John and His First Readers In David L Barr Reading the Book of Revelation A Resource for Students Atlanta Society of Biblical Literature 2003 p 41

50 Nenhuma informaccedilatildeo adicional eacute dada sobre Antipas Provavelmente o nome seja a abreviaccedilatildeo de Antipater um nome comum tanto entre judeus quanto entre gregos A tradiccedilatildeo posterior descreveu Antipas sendo morto apoacutes o interrogatoacuterio pelo prefeito romano Ele foi colocado dentro da estaacutetua oca de um touro de bronze posto sobre o fogo e assado ateacute a morte (Ver Acta Sanc 23-5)

51 Aune traduz a expressatildeo como ldquoque foi publicamente executado onde Satanaacutes habitardquo David E Aune Revelation 1-5 vol 52A p 1178

52 Collins Persecution and Vengeance p 73353 Thompson natildeo vecirc motivos para conectar a morte de Antipas com a adoraccedilatildeo ao imperador Ele

argumenta que a referecircncia ao trono de Satanaacutes provavelmente se refere ao ldquogrande altar de Zeus em Peacutergamordquo ou talvez ldquoao culto de Ascleacutepio e ao centro meacutedico laacute existenterdquo (The Book of Revelation p 173) Poreacutem eacute mais provaacutevel que tivesse relaccedilatildeo com o culto ao imperador pois eacute difiacutecil pensar numa execuccedilatildeo nesses outros dois casos apenas Ou mesmo uma conjunccedilatildeo de fatores pela negaccedilatildeo de Antipas em participar de qualquer um desses cultos

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

24

O mesmo se deu com Tiatira e Sardes igrejas que natildeo recebem nenhum elogio da parte de Cristo mas aparecem como comprometidas com a visatildeo dos grupos condenados por Joatildeo Um desses grupos Joatildeo o compara a Bala-que rei dos moabitas e ao profeta Balaatildeo do Antigo Testamento (Nm 22-25) Balaque contratou Balaatildeo para amaldiccediloar o povo de Israel que marchava no deserto poreacutem o profeta se viu impedido de fazer isso por restriccedilatildeo divina Consequentemente orientou Balaque a armar ciladas contra os israelitas oferecendo mulheres a fim de seduzir os homens de Israel para que pecassem contra Deus (Nm 3116) Portanto duas praacuteticas estavam sendo incentivadas em Peacutergamo como um modo de provavelmente fugir das sanccedilotildees imperiais comer carnes sacrificadas aos iacutedolos (no mercado e nas festas)54 e talvez ateacute mesmo participar de orgias sexuais com as prostitutas cultuais que ficavam nos vaacuterios templos de Peacutergamo55 Existe alguma possibilidade de que esses falsos mestres fossem um tipo de ldquognoacutesticos primitivosrdquo56 que ensinavam uma espeacutecie de ldquoseparaccedilatildeordquo entre os aspectos carnais e espirituais da vida Assim talvez dissessem que participar das festas e orgias era uma atitude carnal que no entanto natildeo afetava o espiacuterito tranquilizando a consciecircncia dos crentes Os nicolaiacutetas que foram rejeitados em Eacutefeso foram aceitos em Peacutergamo A frase ldquotambeacutem tu tens os que da mesma forma sustentam a doutrina dos nicolaiacutetasrdquo estabelece uma similaridade entre as praacuteticas dos dois grupos57 No entanto o fato de Jesus mencionaacute-los aqui como um grupo separado pode levar agrave de-finiccedilatildeo da posiccedilatildeo especiacutefica dos nicolaiacutetas eles defendiam a participaccedilatildeo no culto ao imperador

A cidade de Tiatira era famosa na antiguidade por causa de seu comeacutercio de roupas e tinturas (At 1614)58 Era uma cidade na qual as mulheres de-sempenhavam funccedilotildees importantes Segundo o entendimento do Apocalipse certa mulher estava exercendo uma autoridade nefasta sobre a igreja Ela se autoproclamava ldquoprofetisardquo e ensinava os crentes a praticarem a prostituiccedilatildeo e a comerem coisas sacrificadas Joatildeo a chama de ldquoJezabelrdquo numa referecircncia agrave

54 Apesar do ensino paulino sobre comer tudo o que eacute vendido no mercado sem questionar a procedecircncia (1Co 1025) para os crentes de Peacutergamo isso era difiacutecil pois a procedecircncia das carnes era praticamente uma soacute o culto pagatildeo

55 Para uma anaacutelise da figura de Balaatildeo no Apocalipse ver Jan Willem van Henten ldquoBalaam in Revelation 214rdquo In The Prestige of the Pagan Prophet Balaam in Judaism Early Christianity and Islam George H van Kooten e Jacques van Ruiten (Orgs) Leiden Brill 2008 p 233-46

56 R H Charles A Critical and Exegetical Commentary on The Revelation of St John ndash The In-ternational Critical Commentary Edinburgh T amp T Clark 1920 1979 p 63 WHC Frend ldquoThe Gnostic Sects and the Roman Empirerdquo JEH 5 (1954) p 25-37

57 Beale sugere que ldquonicolaiacutetasrdquo (Νικολαϊτῶν) pudesse ser o tiacutetulo da seita dos seguidores de Balaatildeo pois o significado de Nicolau eacute ldquoaquele que conquista as pessoasrdquo enquanto que uma possiacutevel traduccedilatildeo para Balaatildeo (Βαλαάμ) seja ldquoaquele que consome as pessoasrdquo (Revelation p 251)

58 Ramsay The Letters to the Seven Churches of Asia p 325

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

25

mulher feniacutecia de Acabe rei de Israel que era profetiza de Baal e perseguiu o profeta Elias aleacutem de conduzir o povo agrave idolatria (1Rs 16) Talvez com isso Joatildeo estivesse identificando a esposa de alguma personalidade importante da igreja em Tiatira ou mesmo algueacutem importante na cidade como um todo59

Uma possiacutevel conjectura diz que essa mulher seguia o mesmo princiacutepio adotado em Peacutergamo poreacutem adaptado agrave situaccedilatildeo de Tiatira Para poderem participar ativamente do proacutespero comeacutercio da cidade as pessoas eram con-vidadas a tomar parte nas celebraccedilotildees puacuteblicas das empresas comerciais nas quais havia celebraccedilotildees cuacutelticas com alimentos oferecidos a iacutedolos60 A recusa em participar desses eventos poderia acarretar dificuldades em participar do comeacutercio imperial

Assim como a recompensa para os crentes fieacuteis de Peacutergamo seria muito maior do que os benefiacutecios puacuteblicos e civis advindos da participaccedilatildeo na ado-raccedilatildeo idolaacutetrica para os crentes de Tiatira que vencerem aquela tentaccedilatildeo o Senhor promete ldquoautoridade sobre as naccedilotildeesrdquo (ἐξουσίαν ἐπὶ τῶν ἐθνῶν) As duas palavras aparecem em Mateus 2818-19 no texto da chamada Grande Comissatildeo O texto natildeo estaacute fazendo referecircncia a um reino milenar futuro61 pois Jesus diz que jaacute recebeu autoridade sobre as naccedilotildees ou seja ele jaacute estaacute reinando sobre elas pois recebeu do Pai toda autoridade nos ceacuteus e na terra Portanto eacute possiacutevel que a recompensa dos crentes fieacuteis aqueles que estivessem dispostos a enfrentar o sofrimento e a morte esteja sendo aqui descrita como uma recompensa celeste desfrutando do reinado de Cristo sobre as naccedilotildees

Do mesmo modo os vencedores de Filadeacutelfia recebem a exortaccedilatildeo para permanecerem fieacuteis ldquopara que ningueacutem tome a tua coroardquo o que no caso natildeo parece ser uma ameaccedila de perder a salvaccedilatildeo mas uma garantia de receber a recompensa especial dos maacutertires Jesus igualmente os elogia porque guardaram ldquoa palavra da minha perseveranccedilardquo (τὸν λόγον τῆς ὑπομονῆς μου) Provavel-mente τὸν λόγον aqui significa ldquoordem ou comandordquo62 Eacute o senhor que ordena que seu povo sofra com paciecircncia Filadeacutelfia constitui junto com Esmirna as duas igrejas fieacuteis em Apocalipse Ambas estatildeo sendo acusadas por judeus falsos e ambas permanecem fieacuteis ao seu Senhor mesmo pagando o preccedilo

59 Charles Revelation p 70 Natildeo fica claro ateacute onde eacute possiacutevel estender a imaginaccedilatildeo ao pensar em Jezabel agindo em Tiatira A comparaccedilatildeo parece apropriada tanto para designar uma mulher gentiacutelica que foi influente na igreja ou que usou sua influecircncia para fazer a congregaccedilatildeo participar de atividades sacrificiais (Ver S Friesen Sarcasm in Revelation 2-3 p 134)

60 Ver L L Thompson The Book of Revelation 122-123 Ver tambeacutem o estudo de Theissen sobre o conflito em Corinto a respeito das comidas sacrificadas a iacutedolos (G Theissen The Social Setting of Pauline Christianity Philadelphia Fortress 1982 p 127-132)

61 Ladd Revelation p 43 Ver J F Walvoord The Revelation of Jesus Christ Chicago Moody Press 1966 p 77

62 Van Henten Martyrdom p 591 Ver nota 18

LEANDRO A DE LIMA O CHAMADO PARA O MARTIacuteRIO EM APOCALIPSE AS SETE IGREJAS DA AacuteSIA

26

Aparentemente em Laodiceacuteia ficavam os crentes mais abastados entre todas as cidades Todas as expressotildees pejorativas que Joatildeo usa apontam para a inversatildeo de epiacutetetos de destaque na cidade de Laodiceia aos quais os morado-res se apegavam e dos quais se orgulhavam63 Eles pensavam que eram felizes mas eram infelizes e miseraacuteveis Pensavam que eram ricos mas eram pobres Pensavam que enxergavam bem por causa do famoso coliacuterio feito a partir do poacute friacutegio da cidade mas eram cegos Pensavam que se vestiam bem por causa das famosas confecccedilotildees e da latilde negra preciosa produzida na regiatildeo mas eram nus ou insuficientemente trajados como a palavra tambeacutem pode ser traduzida64 Ou seja pensavam que eram cidadatildeos romanos bem-vestidos nobres famosos com todos os cuidados meacutedicos mas Cristo os descreve como mendigos cegos e mal trajados O status que eles desfrutavam diante dos homens era exatamente o contraacuterio diante de Deus Humanamente eram ricos e saudaacuteveis espiritual-mente eram miseraacuteveis A exortaccedilatildeo de Cristo portanto era para que a igreja se tornasse ldquouma verdadeira testemunhardquo65 abrindo matildeo do conforto de uma religiatildeo submissa ao mundo para uma feacute viva e atuante mesmo que isso lhe custasse o ldquoouro de tolordquo do mundo pois assim experimentaria o ldquoverdadeiro ourordquo da feacute purificada

CONCLUSAtildeOJoatildeo vecirc a situaccedilatildeo da maior parte das igrejas como traacutegica justamente

porque boa parte dos cristatildeos natildeo parecia sequer entender a necessidade de testemunho perante o mundo Muitos deles estavam engajados em negoacutecios mundanos entrelaccedilados com idolatria outros estavam se entregando agraves dis-soluccedilotildees carnais e seguiam falsos mestres que tranquilizavam a consciecircncia deles Em contraste com essas posturas ele os chama para o testemunho autecircntico para a ldquoperseveranccedilardquo (ὑπομονή) ou seja para a disposiccedilatildeo de enfrentar perseguiccedilotildees e a proacutepria morte Ao contraacuterio de isso ser uma perda como muitos poderiam pensar a respeito do que aconteceu com Antipas Joatildeo mostra que a verdadeira recompensa aguarda aqueles que perseverarem ateacute o fim no testemunho

Assim percebemos que o contexto do primeiro seacuteculo guarda semelhanccedilas com vaacuterias eacutepocas que a igreja enfrenta inclusive a atual na qual existem focos de perseguiccedilatildeo em vaacuterias partes do mundo Ao mesmo tempo ser um cristatildeo fiel mesmo em paiacuteses livres pode trazer prejuiacutezos agrave pessoa por perseguiccedilotildees indiretas escaacuternio desprezo e dificuldades em ascender socialmente Contudo a mensagem do Apocalipse continua ecoando em todo ouvido verdadeiramente cristatildeo secirc fiel ateacute a morte

63 Swete Apocalypse p 61 Charles Revelation p 9664 Ladd Revelation p 5265 Beale Revelation p 306

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 9-27

27

ABSTRACTAt the end of the first century when John received the vision and recorded

it in the book of Revelation the churches in Asia did not face the worst period of persecution Even though there were occasional persecutions and some shadow of intensification of regular persecution was on the horizon many Christians as Roman citizens found themselves in relative peace and security enjoying privileges and benefits from the rich imperial trade in the region of Asia Minor The desire to remain enjoying certain benefits led many believers to follow the path of cultural accommodation proposed by eloquent false teachers of the time Against this behavior Revelation demonstrates that true believers need to follow the example of Christ who was faithful unto death and received the reward at the resurrection In this way if they are willing to live faithfully to Christ and face their own death because of it they will give true testimony to the world as well as participate in the reward of Christ

KEYWORDSSeven churches of Asia Revelation Martyrdom Witness Persecution

29

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO O POacuteS-MODERNISMO DA TEOLOGIA DA ESPERANCcedilA

Agrave TEOLOGIA DA NOVA ERA E SEUS REFLEXOS NO CAMPO EDUCACIONAL

Solano Portela

RESUMOEste artigo traccedila o desenvolvimento teoloacutegico do seacuteculo 20 dividindo-o

em duas partes a primeira mostra a transiccedilatildeo do liberalismo alematildeo consoli-dado do seacuteculo 19 agrave teologia modernacontemporacircnea A segunda parte trata da pavimentaccedilatildeo do caminho ao advento da teologia poacutes-moderna O autor demonstra que o tema subjacente de desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo de pontos fundamentais com um progressivo desvio dos direcionamentos biacuteblicos estaacute sempre presente na teologia modernacontemporacircnea Essa vertente pode ser vista especialmente em cinco escolas de pensamento teoloacutegico Teologia da Esperanccedila Teologia da Libertaccedilatildeo Teologia Feminista Teologia do Pro-cesso e Teologia da Nova Era Todas elas compartilham do pensamento poacutes--Moderno e diminuem a Biacuteblia como Palavra de Deus inerrante enquanto simultaneamente retroalimentam a Teologia Poacutes-Moderna lanccedilando duacutevidas sobre princiacutepios e valores eternos biacuteblicos e tradicionais As tendecircncias que aparecem nessas reflexotildees teoloacutegicas satildeo similares ao que se observa no cam-po da educaccedilatildeo e algumas delas impactam profundamente o processo cristatildeo de ensino-aprendizagem Com uma abordagem proacutepria agrave realidade o poacutes-

Graduado em Matemaacutetica Aplicada (BA Magna Cum Laude) pelo Shelton College (Cape May Nova Jersey) Mestre em Divindade (MDiv) pelo Biblical Theological Seminary (Hatfield Pennsylvania) Litterarum Humanarum Doctor (LHD) pelo Gordon College (Boston Massachusetts) Eacute professor-coordenador de Educaccedilatildeo Cristatilde no CPAJ e professor de Teologia Sistemaacutetica no Seminaacuterio Presbiteriano Rev Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo em Satildeo Paulo

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

30

-modernismo subverteu conceitos pedagoacutegicos chaves diminuiu o papel do professor e submergiu escolas em uma crise de autoridade Eacute feito um apelo para que um soacutelido alicerce biacuteblico venha a fundamentar qualquer filosofia de educaccedilatildeo escolar cristatilde

PALAVRAS-CHAVEEducaccedilatildeo cristatilde Construtivismo Desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo Piaget

Poacutes-modernismo Teologia poacutes-moderna Teologia contemporacircnea Libera-lismo teoloacutegico

INTRODUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO Eacute UMA FILOSOFIAO Dr John Feinberg (1946-) da Trinity Evangelical Divinity School

(Deerfield Illinois) em uma de suas palestras sobre teologia contemporacircnea1 indica que o termo poacutes-modernismo natildeo define uma filosofia ou teologia especiacutefica em si mas eacute um entendimento da vida que questiona os postula-dos da modernidade os quais considera como meras proposiccedilotildees dualistas simplistas Nesse sentido o poacutes-modernismo se faz presente em quase todas as proposiccedilotildees teoloacutegicas modernas e contemporacircneas Pelo menos todas as correntes de teologia que aqui seratildeo abordadas tecircm a sua contribuiccedilatildeo ao ou pontos de intersecccedilatildeo marcantes com o poacutes-modernismo tendo como carac-teriacutestica comum a criacutetica ao pensamento cartesiano ou a rejeiccedilatildeo da existecircncia de uma verdade absoluta O poacutes-modernismo portanto natildeo eacute uma escola de pensamento que apresenta as suas proacuteprias proposiccedilotildees mas uma persuasatildeo contemporacircnea que admite a coexistecircncia paciacutefica de muitas assertivas Nesse caldeiratildeo de pensamentos postulados pluralistas desconexos ou ateacute contraditoacuterios encontram o seu proacuteprio espaccedilo na arena filosoacutefico-teoloacutegica das uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo 20 estendendo-se ateacute este primeiro quarto do seacuteculo 21

O propoacutesito deste artigo eacute mostrar que existe uma conectividade e um tema sempre presente em cinco escolas de teologia modernacontemporacircnea Teologia da Esperanccedila Teologia da Libertaccedilatildeo Teologia Feminista Teologia do Processo e Teologia da Nova Era2 Todas essas entendemos floresceram de-

1 FEINBERG John Contemporary Theology II ndash Lecture 21 Institute of Theological Studies Grand Rapids Outreach Inc 1998 Palestras disponiacuteveis como miacutedia eletrocircnica gravada

2 Todas as citaccedilotildees de publicaccedilotildees ou livros em inglecircs neste artigo satildeo de traduccedilatildeo do autor Este artigo eacute baseado em pesquisas iniciadas em setembro de 2002 e continua como um projeto em andamento Citaccedilotildees de documentos postados na Internet (Web) satildeo precisas na ocasiatildeo em que os textos estavam postados Todos os esforccedilos foram empreendidos para acessar e atualizar os endereccedilos eletrocircnicos ateacute 6 de maio de 2021 mas uns poucos documentos podem ter sido deslocados para diferentes paacuteginas ou siacutetios desde o acesso original ou removidos inteiramente da Web por falta de manutenccedilatildeo ou por qualquer outra razatildeo natildeo detectaacutevel

31

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

baixo do guarda-chuva do poacutes-modernismo contribuiacuteram com ele e abraccedilaram a desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo como eixo norteador do ldquofazer teologiardquo As conclusotildees a que chegam refletem um sentimento de necessidade de apresentar a quebra do tradicional concretizando essa acircnsia em uma sanha demolidora de valores passados uma desconsideraccedilatildeo para com acircncoras metafiacutesicas tais como o entendimento das Escrituras como Palavra de Deus que conteacutem verdades proposicionais absolutas e confiaacuteveis Essa desconsideraccedilatildeo resulta em formulaccedilotildees teoloacutegicas fluidas nas quais a apreensatildeo humana eacute colocada como norteadora da compreensatildeo do transcendente Descartam-se princiacutepios que eram aceitos como alicerces de uma boa teologia e subjuga-se a Escritura ao contexto social acatando-se este como aacuterbitro e chave hermenecircutica de in-terpretaccedilatildeo Resumindo o poacutes-modernismo latente nessas correntes naturaliza a religiatildeo e extirpa o sobrenatural do relacionamento e comunicaccedilatildeo entre o Criador e suas criaturas

1 A ORIGEM SIacuteNTESE DO DESENVOLVIMENTO HISTOacuteRICO DE FORMULACcedilOtildeES TEOLOacuteGICAS DESDE A REFORMA DO SEacuteCULO 16

O pensamento teoloacutegico foi liberto da escravatura da tradiccedilatildeo medieval catoacutelica romana com suas adiccedilotildees humanas agrave mensagem e liturgia da igreja pela Reforma do Seacuteculo 16 Desde entatildeo um cerne de ortodoxia biacuteblica tem marcado a sua presenccedila ateacute os nossos dias Apesar dessa resiliecircncia da teologia reformada nesse ponto marcante de inflexatildeo na histoacuteria da igreja existe um registro contiacutenuo de desvios em sistemas teoloacutegicos propostos de um caminho estritamente direcionado pela Escritura para esquemas mais dilatados que aco-modem especulaccedilotildees humanas Estes surgiram com frequecircncia sob a forma de rebuscados trabalhos acadecircmicos e com a aparecircncia de volumosas pesqui-sas Entretanto na realidade refletiram correntes de pensamentos seculares e filosoacuteficos que inundavam as academias Uma tentativa recorrente de siacutentese pode ser observada com a cosmovisatildeo de um mundo secularizado buscando uma zona de conforto na qual pensadores e teoacutelogos formais pudessem acolher visotildees religiosas distorcidas e obter legitimidade para seus voos intelectuais de destinos incertos e seguranccedila duacutebia

Nesse sentido observamos no periacuteodo poacutes-Reforma do seacuteculo 16 a ascensatildeo do misticismo religioso no campo protestante seguido pelo raciona-lismo do liberalismo teoloacutegico alematildeo3 Estes deixaram suas marcas nas eras

3 Ainda que contraditoriamente grandes expoentes do liberalismo fossem miacutesticos em sua preacutedica e escritos pessoais como nos relembra Blackwell um estudioso de Friedrich Schleiermacher Ele registra que de um lado ldquoSchleiermacher natildeo tinha paciecircncia com conceitos abstratos quer fossem poliacuteticos filosoacuteficos ou teoloacutegicosrdquo que natildeo tivessem ldquorelaccedilatildeo direta com e afetassem a vida realrdquo Por outro lado

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

32

preacute-moderna e moderna enquanto em paralelo grandes desenvolvimentos intelectuais afloravam nas academias bem como o mundo experimentava o surgimento das induacutestrias e profundas reorganizaccedilotildees socioloacutegicas Isso ocorreu primeiramente na Europa e subsequentemente no chamado Novo Mundo

Essas duas correntes do seacuteculo 19 o misticismo exemplificado pelos Quakers Shakers4 e outros ldquoprotomovimentosrdquo miacutesticos5 que resultaram no pentecostalismo do seacuteculo 20 e o racionalismo alematildeo que adentrou de forma avassaladora grandes seminaacuterios de renome dos Estados Unidos6 dominaram o cenaacuterio teoloacutegico avant garde ateacute as primeiras deacutecadas do uacuteltimo seacuteculo Naquela ocasiatildeo uma reaccedilatildeo que se apresentou inicialmente como um res-gate da religiatildeo verdadeira e da teologia biacuteblica adentra a arena teoloacutegica ndash a neo-ortodoxia Entretanto no cocircmputo final a neo-ortodoxia eacute cooptada pelo subjetivismo do racionalismo alematildeo e se revela natildeo uma contestaccedilatildeo biacuteblica do liberalismo teoloacutegico mas um escape miacutestico agraves questotildees mais difiacuteceis como a veracidade dos milagres e a realidade da ressurreiccedilatildeo questotildees que satildeo empurradas a uma supra histoacuteria (Heilsgeschichte) que natildeo se relaciona objetivamente com a chamada ldquohistoacuteria brutardquo

Possivelmente poderiacuteamos classificar a primeira metade do seacuteculo 20 como um periacuteodo de transiccedilatildeo entre a teologia moderna e a contemporacircnea Referimo-nos agrave progressatildeo do pensamento de Georg Wilhelm Friedrich He-gel (1770-1831) passando por Soslashren Kierkegaard (1813-1855) Karl Barth

continua Blackwell o seu misticismo aflora como uma ldquoconscientizaccedilatildeo iacutentima e remanescente de que todas as coisas fazem parte de um todordquo e que ldquonossa origem uacuteltima permanece aleacutem do que eacute possiacutevel conhecerrdquo Muitas de suas expressotildees miacutesticas satildeo encontradas em cartas escritas em 1802 para Eleonore Grunow uma mulher casada com quem Schleiermacher tencionava se casar apoacutes o divoacutercio dela ndash o que nunca ocorreu BLACKWELL Albert ldquoSchleiermacherrsquos Mysticism A Letter to His Distant Belovedrdquo Blog Modalities 13 de marccedilo de 2015 Disponiacutevel em httpsalbertblackwellblogspotcom201503schleiermachers-mysticism-letter-to-hishtml Acesso em 6 maio 2021 Essa via dupla do racionalismo e do misticismo demonstra como os extremos se tocam pois em ambas as posiccedilotildees estaacute ausente a cen-tralidade da Escritura como chave para compreensatildeo de noacutes mesmos da Terra em que habitamos do Universo que nos cerca e do Deus que tudo criou

4 FERNANDES Rubeneide O L ldquoMovimento pentecostal Assembleia de Deus e o estabeleci-mento da educaccedilatildeo formalrdquo Dissertaccedilatildeo natildeo publicada Mestrado em Educaccedilatildeo Piracicaba UNIMEP p 31-32

5 Ver por exemplo MATOS Alderi S ldquoEdward Irving precursor do movimento carismaacutetico na igreja reformadardquo Fides Reformata I-2 (1996) Disponiacutevel em httpscpajmackenziebrwp-contentuploads2019021_Edward_ Irving_Precursor_do_Movimento_CarismC3A1tico_na_Igreja_Re-formada_Alderi_Souza_Matospdf Acesso em 6 maio 2021

6 BROWN Ira ldquoThe Higher Criticism Comes to America 1880-1900rdquo Journal of The Presbyte-rian Historical Society 38 (4) Philadelphia The Presbyterian Historical Society dez 1960 p 193-212 Disponiacutevel em jStor httpwwwjstororgstable23325229 Acesso em 6 maio 2021

33

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

(1886-1968) Paul Tillich (1886-1965) Rudolf Bultmann (1884-1976)7 e os filoacutesofos analiacuteticos8 encerrando-se com os teoacutelogos da ldquoMorte de Deusrdquo9

Este foi um periacuteodo marcado por um novo subjetivismo e por uma abor-dagem individualista no qual definiccedilotildees e expressotildees linguiacutesticas foram consi-deradas amorfas e reduzidas a praticamente serem sem sentido em si proacuteprias adaptaacuteveis agrave compreensatildeo e intenccedilatildeo individuais tanto dos proponentes como de seus ouvintes ou leitores

Semelhantemente enquanto esse periacuteodo de transiccedilatildeo constroacutei uma ponte entre o moderno e o contemporacircneo podemos afirmar que praticamente todas as proposiccedilotildees teoloacutegicas novas que surgiram no seacuteculo 20 a partir da deacutecada de 1960 poderiam ser classificadas como degraus para a ascensatildeo do periacuteodo e pensamento poacutes-moderno no qual como civilizaccedilatildeo estamos sub-mersos Visualizamos em cada expressatildeo dos pensamentos teoloacutegicos desde os ldquoTeoacutelogos da Morte de Deusrdquo elementos do poacutes-modernismo quer de maneira incipiente quer de forma bastante expliacutecita e madura ateacute que eles se juntam em um amalgamado que pode ser denominado Teologia Poacutes-Moderna

Concentrando nossa anaacutelise da teologia modernacontemporacircnea das uacuteltimas deacutecadas ndash desde a Teologia da Esperanccedila10 agrave Teologia Poacutes-Moderna encontramos alguns temas subjacentes que se fazem presentes em cada variaccedilatildeo ou ramo e esses natildeo dependem dos roacutetulos que os proponentes atribuem (ou recebem) em cada escola de pensamento

Por exemplo John Feinberg indica que uma caracteriacutestica presente nas formulaccedilotildees teoloacutegicas desse periacuteodo eacute ldquoa divinizaccedilatildeo do homem e a huma-nizaccedilatildeo de Deusrdquo11 Devemos acatar a pertinecircncia dessa anaacutelise pois nunca

7 Para a afinidade desses teoacutelogos com o pensamento de Hegel ver CREMER Douglas J ldquoPro-testant Theology in Early Weimar Germany Barth Tillich and Bultmannrdquo Journal of the History of Ideas 56 n 2 (1995) 289-307 Doi1023072709839 Acesso em 23 dez 2020

8 Tambeacutem conhecida como ldquofilosofia da linguagemrdquo procura expressar uma anaacutelise racional loacutegica e matemaacutetica do pensamento ndash levando a conclusotildees puramente naturalistas sobre as grandes questotildees do universo e da vida Como maiores expoentes podemos citar Gottlob Frege (1848-1925) Ludwig Wittgenstein (1889-1951) e Bertrand Russell (1872-1970) autor do famoso livro Porque Natildeo Sou Cristatildeo As raiacutezes no pensamento alematildeo satildeo evidentes em seus escritos ainda que a grande popu-larizaccedilatildeo da corrente tenha ocorrido nas academias dos Estados Unidos e da Inglaterra

9 Os ldquoTeoacutelogos da Morte de Deusrdquo reavivaram o conceito hegeliano de que ldquoDeus estaacute mor-tordquo ndash indicando que a ideia de Deus do mundo ocidental tinha que ser revista e substituiacuteda por uma transcendecircncia centrada na humanidade Os dois expoentes modernos mais conhecidos foram William Hamilton (1924-2012) e Thomas J J Altizer (1927-2018) Os dois foram coautores do livro Teologia Radical e a Morte de Deus e forneceram combustiacutevel aos movimentos alienados hedonistas sensuais e existenciais da deacutecada de 1970 como os Provos na Europa e a onda hippie que tomou conta das Ameacutericas nas deacutecadas 1960-1970

10 Um resumo dos pontos principais dessa vertente teoloacutegica seraacute apresentado adiante Ela surgiu no livro mais famoso do seu autor originalmente publicado na Alemanha em 1964 MOLTMANN Juumlrgen Teologia da esperanccedila Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005

11 FEINBERG Lecture 1

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

34

houve um periacuteodo como o dessas deacutecadas na histoacuteria mundial ou da igreja que tratou Deus como sujeito e natildeo soberano e as pessoas mais como regentes dos seus proacuteprios destinos do que como criaturas caiacutedas necessitadas de redenccedilatildeo

Submeto entretanto que existe outro tema que se faz igualmente presente nessas correntes teoloacutegicas recentes ndash a ideia de que eacute necessaacuterio desconstruir e reconstruir ou a ideia de que as atividades de desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo se constituem em tarefas necessaacuterias ao campo da teologia Nesse sentido o teoacutelogo deve desconstruir ideias conceitos metaacuteforas ideologias esquemas de pensamento e convicccedilotildees Por outro lado eacute necessaacuterio reconstruir ou cons-truir todos esses aspectos com base no sentimento de quais estruturas devem ser estabelecidas para trazer a sensaccedilatildeo empiacuterica de liberdade da opressatildeo (de onde quer que proceda) aos proponentes e aos seus seguidores objetivados Eacute essa temaacutetica da desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo que queremos prescrutar seguindo e explorando as suas consequecircncias e principalmente avaliando os reflexos no campo educacional cristatildeo

2 DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO DA TEOLOGIA DA ESPERANCcedilA Agrave TEOLOGIA DA NOVA ERA

Vamos examinar brevemente os conceitos de desconstruccedilatildeo e recons-truccedilatildeo nessas vertentes teoloacutegicas que preparam o caminho e reforccedilam os fundamentos do pensamento poacutes-moderno dentro da teologia e seus efeitos no campo educacional

21 Teologia da EsperanccedilaJuumlrgen Moltmann iniciou esse periacuteodo na teologia contemporacircnea com

a sua Teologia da Esperanccedila12 na qual a escatologia ndash ou a esperanccedila de um futuro que eacute possiacutevel e real ndash eacute o alicerce sobre o qual toda a interpretaccedilatildeo teoloacutegica do mundo e da vida deve ser construiacuteda Apesar do termo ldquodescon-truirrdquo natildeo aparecer com ecircnfase na obra de Moltmann sua abordagem teoloacutegica conceitualmente eacute exatamente isso reverter a ordem pela qual a teologia tem sido abordada que tradicionalmente comeccedila com a avaliaccedilatildeo dos dados sobre Deus na Escritura sua natureza e suas obras postulando que a escatologia eacute na realidade a fundaccedilatildeo da teologia Com a intenccedilatildeo de ldquofazer teologiardquo Molt-mann desconstruiu a estrutura teoloacutegica que tem sido utilizada haacute seacuteculos Natildeo deveria surpreender que John B Cobb um teoacutelogo moderno (do Processo) faz a seguinte afirmaccedilatildeo sobre a Teologia da Esperanccedila ldquoA abordagem de Molt-mann eacute praticamente revolucionaacuteria em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo cristatilde dominanterdquo13

12 MOLTMANN Teologia da esperanccedila13 COBB John ldquoNorth American Theology in the Twentieth Centuryrdquo ago 1991 Disponiacutevel

em httpwwwreligion-onlineorgcgi-binrelsearchddllshowarticleitem_id=42 Acesso em 23 mar 2003

35

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

Na sequecircncia Moltmann daacute andamento agrave construccedilatildeo de sua proacutepria teo-logia especificamente redefinindo escatologia esperanccedila e salvaccedilatildeo trazendo todos esses termos a um relacionamento corporativo com a vida aqui e agora Essa reconstruccedilatildeo inova menos do que pretende porque natildeo chega a se desli-gar completamente da Teologia Existencial Como Moltmann enfatiza o lado corporativo da religiatildeo e traz o foco para a vida no presente ndash como sendo essencialmente uma vida de esperanccedila futura ndash ele acabou por construir uma base adequada para as ideias da Teologia da Libertaccedilatildeo

22 Teologia da LibertaccedilatildeoEste ramo da teologia geralmente associado aos escritos de Gustavo

Gutierrez14 popularizou-se essencialmente na Ameacuterica Latina e em outros paiacuteses em desenvolvimento (anteriormente rotulados de subdesenvolvidos) A Teologia da Libertaccedilatildeo tambeacutem desconstroacutei os conceitos tradicionais do pensamento cristatildeo especialmente aqueles relacionados agraves accedilotildees que devem ser empreendidos em meio a uma sociedade que eacute considerada socialmente injusta Ela preconiza que concentrar a visatildeo no futuro gera aniquilaccedilatildeo e cega os olhos agraves injusticcedilas presentes A perspectiva da igreja deve ser reconstruiacuteda considerando a libertaccedilatildeo como a tarefa primaacuteria da teologia do cristianis-mo e da sociedade como um todo Essa libertaccedilatildeo ou salvaccedilatildeo eacute de todas as formas de opressatildeo mas eacute definida prioritariamente como libertaccedilatildeo de condiccedilotildees de pobreza de uma classe que se encontra sob a regecircncia de outra classe dominante ndash a classe opressora A classe oprimida deve ser salva tam-beacutem da opressatildeo econocircmica e poliacutetica Cobb registra a conexatildeo da Teologia da Libertaccedilatildeo com a Teologia da Esperanccedila quando afirma ldquoNa praacutetica a Teologia da Libertaccedilatildeo da Ameacuterica Latina segue um modelo semelhante ao de Moltmannrdquo15 Chamo atenccedilatildeo para terminologia utilizada por Cobb que mostra o conceito de desconstruccedilatildeoreconstruccedilatildeo impliacutecito em seus elogios proferidos na anaacutelise da Teologia da Esperanccedila Referindo-se a teoacutelogos da libertaccedilatildeo ele diz ldquoEles foram brilhantemente bem-sucedidos em construir um sistema teoloacutegico completo com base nessa [nova] hermenecircuticardquo16

Encontramos tambeacutem a Teologia da Libertaccedilatildeo providenciando uma zona de conforto para outras formas de teologias de ldquoclassesrdquo ou de ldquominoriasrdquo que se consideram ldquooprimidasrdquo por qualquer outro segmento da sociedade Este eacute o caso da Teologia Gay Robert Goss explicando e defendendo essa vertente ldquoteoloacutegicardquo deixa clara a conexatildeo ldquoA Teologia da Libertaccedilatildeo eacute provavel-mente o melhor termo para servir de guarda-chuva para o que estaacute acontecendo [no cenaacuterio teoloacutegico] Porque ela atinge a raiz da cultura os conservadores

14 GUTIERREZ Gustavo Teologia da libertaccedilatildeo 2 ed Satildeo Paulo Vozes 198515 COBB ldquoNorth American Theologyrdquo16 Ibid

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

36

tecircm problemas com ela como nos dias de Jesus Esses conservadores como os entendo estatildeo na realidade interessados na conservaccedilatildeo do status quo de relaccedilotildees de poderrdquo17 A ideia de desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo fica bem evi-dente na apresentaccedilatildeo do livro de Goss

O trabalho do Rev Goss eacute um de desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo Ele descons-troacutei o Cristo que se assenta entronizado e abenccediloa com decretos divinos os preconceitos e as relaccedilotildees de poder e encontra no meio de tudo isso o Jesus que questiona os relacionamentos de poder dos seus dias e que [ele proacuteprio] desconstroacutei agrave sua proacutepria maneira18

Um exemplo adicional desses ramos teoloacutegicos enxertados ou que bro-tam da Teologia da Libertaccedilatildeo eacute visto na ldquoTeologia Racialrdquo na qual tambeacutem encontramos os conceitos de desconstruirconstruir Fazendo referecircncia nesse sentido ao artigo de Maria-Cristina Ventura ldquoDesconstruccedilatildeo e Reconstruccedilatildeo Teoloacutegica na Luta contra o Racismordquo lemos o seguinte em sua introduccedilatildeo ldquoA desconstruccedilatildeo teoloacutegica que leva a uma reconstruccedilatildeo eacute essencial para um en-tendimento da teologia na luta contra o racismo O exerciacutecio de desconstruccedilatildeo implica em questionamento e na confrontaccedilatildeo da teologiardquo19 Mais recente-mente os pontos fundamentais da Teologia da Libertaccedilatildeo tecircm sido veiculados no meio protestante como Teologia Puacuteblica e Teologia da Missatildeo Integral (TMI)

23 Teologia FeministaNatildeo precisamos ir muito aleacutem do tiacutetulo do livro de Elisabeth Schuumlssler

Fiorenza para localizar o tema de ldquodesconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeordquo na Teologia Feminista Essa famosa porta-voz feminista tambeacutem constroacutei sobre a base fornecida pela Teologia da Libertaccedilatildeo para desenvolver um Gestalt teoloacutegico que busca libertar as mulheres de uma estrutura supostamente dominada pelo sexo masculino Ela escreveu ldquoEm Memoacuteria Dela Uma Reconstruccedilatildeo Teoloacute-gica Feminista das Origens Cristatildesrdquo20 Em outro livro Fiorenza indica que a hermenecircutica feminista de libertaccedilatildeo deve desconstruir tradiccedilotildees opressoras e identificar imagens e argumentos diferentes daqueles que satildeo identificados com o sexo masculino21

17 GOSS Robert Jesus Acted Up A Gay and Lesbian Christian Manifesto Nova York Harper amp Row 1993

18 Ibid19 VENTURA Maria-Cristina ldquoTheological Deconstruction and Reconstruction in the Fight against

Racismrdquo Disponiacutevel em httpwwwwcc-coeorgwccwhatjpcechoesechoes-17-06html Acesso em 6 maio 2021

20 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler In Memory of Her A Feminist Theological Reconstruction of Christian Origins New York Crossroads 1983

21 FIORENZA Elisabeth Schuumlssler Jesus Miriamrsquos Child Sophiarsquos Prophet Critical Issues in Feminist Christology New York Continuum Publishing Group 1995 p 33

37

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

Desconstruccedilatildeo eacute tambeacutem um tema baacutesico para a Teologia Feminista no entendimento de David Rutledge que escreveu ldquoLeitura Marginal Feminis-mo Desconstruccedilatildeo e a Biacutebliardquo22 De acordo com a compreensatildeo da Teologia Feminista deve-se desconstruir todas as metaacuteforas e linguagem opressoras que falseiam o entendimento da divindade e ajudam a perpetuar a opressatildeo das mulheres em toda parte Semelhantemente eacute necessaacuterio reconstruir estruturas teoloacutegicas centradas em um simbolismo e terminologia feministas que mais adequadamente refletem os cuidados e a nutriccedilatildeo que fluem da divindade dessa forma se promoveraacute a alforria e libertaccedilatildeo das mulheres e seraacute atribuiacutedo um papel mais justo para os homens

24 Teologia do ProcessoA Teologia do Processo contesta o ldquoTeiacutesmo Claacutessicordquo e se propotildee a

descrever mais adequadamente a divindade e o entendimento metafiacutesico da estrutura da realidade Para atingir esse objetivo necessita desconstruir a apreensatildeo transcendente de Deus e reconstruiacute-lo em torno de sua imanecircncia e de sua ldquopreensatildeordquo23 dos outros seres reais Ela se apresenta como sendo uma forma mais cientiacutefica de olhar a realidade e de abordar o pensamento teoloacutegico mas ao desconstruir informaccedilotildees disponiacuteveis sobre o Deus da Biacuteblia termina por reconstruiacute-lo como um deus totalmente passivo praticamente impotente que procura atrair e persuadir e pretende influenciar mas que nunca age posi-tivamente para estabelecer sua vontade e seu propoacutesito James Ashbrook um teoacutelogo do processo do Garrett Evangelical Theological Seminary mostra esse vieacutes desconstrucionista quando apresentando uma das caracteriacutesticas dessa linha de pensamento ndash convicccedilotildees ou crenccedilas que estatildeo sempre mutantes ou em processamento ndash descreve-se a si mesmo dessa maneira

Sou um ceacutetico miacutestico um crente descrente Participo daquilo que eu questiono mais especificamente construo a realidade de acordo com o paradigma de um Deus cheio de graccedila exemplificado nas tradiccedilotildees judaico-cristatildes (plurais) e que faz sentido agrave luz do que aprendemos nas neurociecircncias Sou influenciado por praacuteticas Zen medito e oro regularmente como parte de minha vida Tento desconstruir a teologia com a finalidade de reconstruiacute-la agrave luz da experiecircncia e em um mundo carregado de opressatildeo compartilho com outros como testemunho uma realidade iluminada pela justiccedila e pelo amor24

22 RUTLEDGE David Reading Marginally Feminism Deconstruction and the Bible Leiden New York Brill 1996

23 ldquoPreensatildeordquo (prehension) na terminologia da Teologia do Processo eacute um tipo de compreensatildeo sem o elemento cognitivo ou uma forma inconsciente de relacionamento e de compartilhamento das atividades da vida pela e com a divindade

24 ASHBROOK James ldquoOur Illusory Relation to God ndash A Neurotheological Approachrdquo (palestra) Texto da nota autobiograacutefica na programaccedilatildeo da workshop ldquoInstitute on Religion in an Age of Science

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

38

25 Teologia da Nova EraJohn Feinberg aponta que a Teologia da Nova Era natildeo surgiu como um

ramo que cresceu dos ciacuterculos acadecircmicos mas eacute uma importante linha de pensamento que deve ser considerada devido aos raacutepidos avanccedilos feitos na sociedade e pela popularidade observada em alguns segmentos da igreja cristatilde25 Ela tem produzido uma abundacircncia de escritos a maioria desses com caracteriacutesticas populares mas deles podemos aferir seus temas principais Em um relatoacuterio que esboccedila ldquoAs atividades da Nova Era na Igreja Episcopalrdquo observamos os avanccedilos que essa filosofia mais do que uma teologia tecircm feito naquela denominaccedilatildeo aleacutem de trazerem agrave tona os sempre presentes temas de desconstruccedilatildeoreconstruccedilatildeo O relatoacuterio registra as seguintes palavras do Rev Matthew Fox

O que eacute a redescoberta do Cristo coacutesmico se natildeo uma desconstruccedilatildeo da ldquocris-tologia do poderrdquo que estabeleceu o impeacuterio cristatildeo no Conciacutelio de Niceacuteia no quarto seacuteculo e uma reconexatildeo com a tradiccedilatildeo biacuteblica mais antiga de Cristo como a sabedoria coacutesmica presente em todos os seres26

Vemos esse posicionamento de desconstruccedilatildeo neste e em outros traba-lhos escritos de teoacutelogos da Nova Era de conceitos tradicionais do teiacutesmo e da histoacuteria da redenccedilatildeo ndash como sendo um caminho exclusivo apresentado pela feacute cristatilde ndash pois essa ldquoteologiardquo reconstroacutei a conexatildeo com a divindade como sendo algo que estaacute presente em todos nesta religiosidade inclusiva agora denominada de ldquoreligiatildeo coacutesmicardquo ou de ldquosabedoria coacutesmicardquo

Encerramos este segmento da nossa anaacutelise indicando que Groothuis quando relaciona os temas principais que caracterizam a teologia da Nova Era destaca este em primeiro lugar ldquoTudo eacute um Quaisquer diferenccedilas perceptiacute-veis satildeo apenas aparentes e natildeo reaisrdquo 27 Este eacute o resultado do conceito de reconstruccedilatildeo da Teologia da Nova Era e podemos ver a harmonia e sobrepo-siccedilatildeo com as ideias do Poacutes-Modernismo que enfatiza construccedilotildees subjetivas Considerando que tudo eacute o mesmo aponta Feinberg28 uma pedra pode natildeo ser uma pedra eacute apenas percebida como uma pedra e assim por diante Dessa maneira estaacute preparado o palco para o Poacutes-Modernismo

38th Annual Star Island Conferencerdquo (Portsmouth NH 2707 a 03081991) Disponiacutevel em wwwirasorgconferences abs1991pdf Acesso em 20 mar 2003

25 FEINBERG Lecture 1726 COHEN Elaine ldquoMatthew Fox Techno Cosmic Mass Heralds New Spiritualityrdquo In Conscious

Life julho 1999 p 11 Citado por PENN Lee (1999 2004) ldquoThe New Age Movement in the Episcopal Churchrdquo Disponiacutevel em httpswwwevangelizationstationcomhtm_htmlNew20Agenew_age_movement_in_the_epishtm Acesso em 6 maio 2021

27 GROOTHUIS Douglas Unmasking the New Age Downers Grove IL IVP 1986 p 1828 FEINBERG Lecture 17

39

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

3 DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO NA TEOLOGIA POacuteS-MODERNA

Se o tema de desconstruccedilatildeoreconstruccedilatildeo esteve presente em cada uma dessas cinco escolas de pensamento teoloacutegico eacute no poacutes-modernismo que en-contramos o seu aacutepice Daniel J Adams depois de apresentar e discutir trecircs caracteriacutesticas do poacutes-modernismo ndash 1) decliacutenio do Ocidente e do pensamento ocidental (dilema do secularismo x devoccedilatildeo pessoal) 2) questionamento das metanarrativas (verdades fundacionais autoritativas) e 3) disseminaccedilatildeo da informaccedilatildeo (o ldquomercadordquo intelectual) ndash relaciona a quarta da seguinte forma ldquoUma quarta caracteriacutestica da era poacutes-moderna eacute aquela que ficou conhecida como o processo de desconstruccedilatildeo Desconstruccedilatildeo eacute exatamente o que estaacute expresso no significado impliacutecito da palavra eacute desmembrar textos de maneira semelhante a tirar as camadas de uma cebola Eacute um processo intencionalrdquo29

Jacques Derrida o famoso filoacutesofo poacutes-moderno de origem argelina mas de nacionalidade francesa que tem tido um impacto substancial no pensamento filosoacutefico e poacutes-moderno escreveu

Por que se envolver em um processo de desconstruccedilatildeo em vez de deixar as coisas como estatildeo etc Nada aqui se processa sem uma medida de forccedilas em algum momento Desconstruccedilatildeo tenho insistido natildeo eacute algo neutro Eacute uma intervenccedilatildeo30

Adams anteriormente citado analisa o pensamento do poacutes-modernista Ernest Gellner que escreveu sobre razatildeo e religiatildeo31 afirmando

hellip desconstruccedilatildeo tem uma implicaccedilatildeo profunda para a teologia considerando que a ldquoverdade objetiva deve ser substituiacuteda pela verdade hermenecircuticardquo Isso significa que os textos sagrados como a Biacuteblia natildeo possuem um significado uacuteltimo nem satildeo textos autoritativos Na realidade a rede ou a teia de relacio-namentos fora do texto podem determinar tanto o significado do texto como a natureza de sua autoridade Um exemplo disso dentro da tradiccedilatildeo presbiteriana--reformada eacute a controveacutersia formada em torno da eacutetica sexual e as maneiras nas quais posiccedilotildees diferentes tecircm sido propostas apoiadas na interpretaccedilatildeo dos textos biacuteblicos Uma leitura tradicional do texto e uma desconstruccedilatildeo poacutes-moderna do texto resultam em interpretaccedilotildees com enormes diferenccedilas entre si32

29 ADAMS Daniel J ldquoToward a Theological Understanding of Postmodernismrdquo publicado ini-cialmente em Metanoia (Praga) primavera-veratildeo 1997 Disponiacutevel em httpwwwcrosscurrentsorgadamshtm Acesso em 6 maio 2021

30 Extraiacutedo de uma carta de Jacques Derrida a Jean-Louis Houdebine citado em DERRIDA Jacques Positions Trad Alan Bass Chicago University of Chicago Press 1981 p 93

31 GELLNER Ernest Postmodernism Reason and Religion London Routledge 1992 p 3532 ADAMS ldquoToward a Theological Understandingrdquo

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

40

Podemos observar consequentemente a contradiccedilatildeo que existe entre o pensamento e a teologia poacutes-moderna (com essa ecircnfase na desconstruccedilatildeo) e os absolutos do teiacutesmo claacutessico especialmente a noccedilatildeo da existecircncia da verda-de absoluta que pode ser percebida por seres racionais mesmo natildeo sendo de forma exaustiva mas pelo menos de forma parcial e ainda assim verdadeira Um artigo por Robert Goizueta professor de teologia do Boston College aborda essa questatildeo com clareza

A desconstruccedilatildeo poacutes-moderna do sujeito e a rejeiccedilatildeo de todas as chamadas me-tanarrativas levam agrave duacutevida sobre a proacutepria possibilidade de se fazer quaisquer declaraccedilotildees normativas Simplificando a verdade eacute frequentemente reduzida a uma questatildeo de um significado ambivalente ou utilitaacuterio a feacute eacute algo que tem significado ou tem utilidade para mim A feacute dos pobres tem significado ou utilidade para eles Ela os auxilia Ela os liberta33

Aleacutem disso essa identificaccedilatildeo do poacutes-modernismo com desconstruccedilatildeo eacute estabelecida e definida pelo pesquisador e historiador Robert Chandler que escreve ldquoO poacutes-modernismo ou a lsquodesconstruccedilatildeorsquo postula que nada eacute neutro ndash observaccedilatildeo linguagem preservaccedilatildeo de registros documentos narra-dores ou escritos Objetividade eacute um mito e valores absolutos natildeo existemrdquo34 Consequentemente o poacutes-modernismo eacute em sua proacutepria essecircncia contraacuterio agrave noccedilatildeo dualiacutestica que contrasta verdade com falsidade certo com errado e assim por diante Obviamente o cristatildeo natildeo eacute dualista no sentido de que existe um Deus regente do universo no qual ele crecirc que rege todas as coisas e natildeo forccedilas sempre opostas que regem impessoalmente os destinos das pessoas No entanto a Biacuteblia expressa que existem sim posiccedilotildees e situaccedilotildees contrastantes em vaacuterias aacutereas Eacute interessante observarmos como o poacutes-modernismo perturba ateacute o pensamento oriental dualista (e equivocado) ao extremo mas que reco-nhece alguns contrastes inevitaacuteveis da realidade que natildeo se encaixam na visatildeo amorfa do poacutes-modernismo Nesse sentido sem que tenhamos que concordar com tudo um partidaacuterio da filosofia oriental Balbinder Singh Bhogal ex--professor visitante da University of Derby (atualmente um escritor proliacutefico e membro do corpo docente da Hofstra University)35 expressa sua criacutetica ao poacutes-modernismo assim

33 GOIZUETTA Robert God First Loved Us Reflections on the Theological Grounds of Liberation Disponiacutevel em httpswwwlivedtheologyorgwp-contentuploads20150520120424PPR01-Roberto--S-Goizueta-God-First-Loved-Us-Reflections-on-the-Theological-Grounds-of-Liberationpdf p 8 Acesso em 6 maio 2021

34 CHANDLER Robert J Resenha de ldquoContested Eden California Before the Gold Rushrdquo GU-TIERREZ Ramon e ORSI Richard (Orgs) The Journal of San Diego History 44 n 4 (outono 1998) p 44 (4) Disponiacutevel em httpssandiegohistoryorgjournal1998octobereden Acesso em 6 maio 2021

35 Long Island NY Ver httpshofstraacademiaeduBalbinderSinghBhogal Acesso em 6 maio 2021

41

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

O pensamento poacutes-moderno desafia dualidades hieraacuterquicas e herdadas e revela uma nova forma de pensar que emerge desses dualismos como um processo natural de desconstruccedilatildeo-construccedilatildeo-desconstruccedilatildeo Esse pensamento obscuro esmaece os limites de um dualismo que existe agraves claras como o sagrado e o secular luz e trevas o bem e o mal certo e errado Deus e o homem o infinito e o finito o numenal e o fenomenal o espiacuterito e a mateacuteria deus-pai e matildee terra36

David Griffin na introduccedilatildeo ao seu trabalho de muacuteltiplos autores identi-fica um ramo do poacutes-modernismo que para no estaacutegio da desconstruccedilatildeo sendo assim harmocircnico com suas premissas ndash se o pluralismo e a diversidade eacute o que conta por que reconstruir Ele aponta para o pensamento desconstrutivo ou eliminador do poacutes-modernismo ldquoO poacutes-modernismo filosoacutefico eacute inspirado de diversas formas pelo pragmatismo e fisicalismo por Ludwig Wittgenstein Martin Heidegger e Jacques Derrida e outros pensadores franceses recentesrdquo37

No entanto no final das contas em um sistema onde a desconstruccedilatildeo reina descontroladamente segue-se a reconstruccedilatildeo de uma forma subjetiva sem padrotildees que foram igualmente desconstruiacutedos com o restante A recons-truccedilatildeo ocorreraacute na linguagem nas artes no pensamento teoloacutegico e religioso com cada pessoa construindo sua proacutepria imagem da realidade de acordo com a apreensatildeo subjetiva das realidades ndash o que quer que sejam estas Thomas Hopko presidente do St Vladimir Seminary escreveu pertinentemente sobre essa condiccedilatildeo na qual encontramos o mundo poacutes-moderno

Em uma sociedade moderna e secularizada a linguagem as estruturas os siacutembolos e rituais claacutessicos e o cristianismo biacuteblico permanecem enquanto os seus conteuacutedos e significados satildeo radicalmente alterados Na desconstruccedilatildeo poacutes-moderna da cosmovisatildeo moderna ndash por intermeacutedio de um existencialis-mo radical cultural e pessoal pela revoluccedilatildeo sexual pela busca incessante do miacutestico pela politizaccedilatildeo da teologia e da eacutetica e pela explosatildeo do hedonismo e avareza espiritual e material ndash a linguagem tradicional as estruturas os siacutembolos e rituais satildeo recriados ao ponto em que os seus conteuacutedos e significados originais natildeo mais existem mas satildeo substituiacutedos por uma completa nova reconstruccedilatildeo da realidade38

36 BHOGAL Balbinder Singh (1995) ldquoGlimpses of Postmodernism (Deconstruction) and Reli-gionrdquo Palestra proferida no School of Oriental and African Studies Post-Graduate Seminar nov 1995 Disponiacutevel em httpwwwmultifaithnetorgmfnopenaccessresearchonlineseminarbbglimpseshtm Acesso em 16 mar 2003

37 GRIFFIN David Ray BEARDSLEE William A HOLLAND Joe Varieties of Postmodern Theology Albany State of New York University Press 1989 p xii

38 HOPKO Thomas ldquoOrthodoxy in Pluralistic Post-Modern Societiesrdquo The Ecumenical Review 51 p 364-371 Disponiacutevel em httpsdoiorg101111j1758-66231999tb00404x Acesso em 6 maio 2021

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

42

Assim temos visto esse tema recorrente de desconstruccedilatildeoreconstruccedilatildeo nesse periacuteodo contemporacircneo de desenvolvimento teoloacutegico desde a Teologia da Esperanccedila em diante e a sua forte presenccedila no pensamento filosoacutefico e teoloacutegico poacutes-moderno Aonde isso levaraacute quando tratamos dessas influecircncias no campo da educaccedilatildeo

4 O QUE ACONTECE QUANDO NAtildeO HAacute NADA A DESCONSTRUIR

E se existir uma aacuterea da realidade onde natildeo haacute estrutura de pensamento para desconstruir Se ela existe entatildeo natildeo haacute que se falar sobre reconstruir algo que natildeo foi desconstruiacutedo A aacuterea de educaccedilatildeo mais especificamente a educaccedilatildeo das crianccedilas se apresenta para o enquadramento nesta categoria Natildeo me refiro aos processos metodoloacutegicos da educaccedilatildeo pois nesses certamente a mente poacutes-moderna encontraraacute amplo campo para desconstruccedilatildeo e reconstru-ccedilatildeo Faccedilo referecircncia agrave aacuterea cognitiva da crianccedila o que ocorre na sua mente nos primeiros estaacutegios de aprendizado em sua existecircncia como o conhecimento chega ateacute ela O que na realidade eacute conhecimento Eacute algo que eacute transmitido comunicado e ao qual ela eacute conduzida e levada a assimilar

Os trabalhos escritos nesta aacuterea tecircm mantido paridade com o pensamento contemporacircneo e com desenvolvimentos teoloacutegicos especialmente neste pe-riacuteodo poacutes-moderno onde se questiona a realidade de tudo (ou o conhecimento concreto) exceto as apreensotildees subjetivas na mente das pessoas Tratando da mente de crianccedilas admitem que natildeo haacute nada para desconstruir mas sim para construir No entanto nessa abordagem o conhecimento natildeo eacute e nem deve ser transmitido ndash de alguma forma indescritiacutevel esse conhecimento vai brotar ou ser construiacutedo autonomamente Tentativas de transmissatildeo a algueacutem de dados da realidade como em processos de ensino-aprendizagem tradicionais resultam tatildeo somente em distorccedilatildeo da realidade subjetiva dessa pessoa que deve ser facilitada tatildeo somente para caminhar por um processo de construccedilatildeo de sua proacutepria compreensatildeo do mundo e da vida E assim nasce o construtivismo

41 A ferramenta adequada do poacutes-modernismoO Construtivismo ainda que plantado na primeira metade do seacuteculo 20

tomou forma desenvolveu-se e popularizou-se na segunda metade daquele seacute-culo Cresceu portanto paralelamente e em sobreposiccedilatildeo ao poacutes-modernismo Podemos afirmar que o construtivismo se encaixa perfeitamente no subjeti-vismo de pensadores poacutes-modernos de tal forma a poder funcionar como a ferramenta educacional do poacutes-modernismo Dennis McCallum conhecido conferencista e autor sobre esta filosofia coloca a conexatildeo da seguinte maneira

O construtivismo eacute a teoria de aprendizagem principal subjacente agrave educaccedilatildeo poacutes-moderna De acordo com construtivistas o conhecimento natildeo eacute descoberto

43

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

como afirmam os modernistas Todo conhecimento eacute inventado ou ldquoconstruiacutedordquo na mente do aprendiz Natildeo poderia ser de outra maneira dizem os poacutes-moder-nistas porque as ideias que os professores ensinam e os alunos aprendem natildeo correspondem a qualquer realidade objetiva Satildeo tatildeo somente construccedilotildees hu-manas Conhecimento ideias e linguagem satildeo criados por pessoas natildeo porque sejam ldquoverdaderdquo mas porque tecircm utilidade39

Jaacute haacute algumas deacutecadas o construtivismo tem sido ldquovendidordquo como uma metodologia de ensino mas ele se apresenta na realidade como um sistema filosoacutefico do processo de ensino-aprendizagem chegando adicionalmente a postular teorias sobre a formaccedilatildeo de valores morais e do julgamento do certo e errado na concepccedilatildeo mental das crianccedilas Suas raiacutezes foram fincadas em solo europeu pelo pesquisador Jean Piaget (1896-1980) e suas conclusotildees adota-das amplamente por psicopedagogos A popularizaccedilatildeo na Ameacuterica Latina foi uma consequecircncia inevitaacutevel da influecircncia europeia na aacuterea educacional dessa regiatildeo especialmente no Brasil onde tornou-se o cerne majoritaacuterio do ensino nos cursos de pedagogia de universidades Professores cristatildeos assim treina-dos iludidos pela ideia de que estatildeo apenas aprendendo uma ldquometodologiardquo de vanguarda absorvem pontos cruciais que contradizem a revelaccedilatildeo biacuteblica Via de regra experimentam o sentimento de que ldquoalgo estaacute erradordquo mas tecircm dificuldade em fazer uma anaacutelise depuradora mais profunda que identifique as falhas metafiacutesicas epistemoloacutegicas e teoloacutegicas do construtivismo40

Nos Estados Unidos da Ameacuterica berccedilo de tantas escolas de pensamento na aacuterea educacional o construtivismo tem feito avanccedilos significativos Jaacute em 1999 a revista especializada do campo ldquoEducational Leadershiprdquo devotou um exemplar inteiro agrave ldquosala de aula construtivistardquo no qual vaacuterios artigos relatoacute-

39 MCCALLUM Dennis The Death of Truth What is wrong with Multiculturalism the Rejection of Reason and the New Postmodern Diversity Minneapolis Bethany House 1996 p 99

40 Natildeo eacute a intenccedilatildeo neste artigo fazer uma exposiccedilatildeo e refutaccedilatildeo detalhada do construtivismo O objetivo eacute demonstrar a ligaccedilatildeo do construtivismo com o poacutes-modernismo e os conceitos teoloacutegicos precedentes Sobre o construtivismo em todos os seus aspectos o autor jaacute publicou diversos ensaios e livros aos quais direciona os leitores interessados no aprofundamento e estudo do tema PORTELA NETO F S O que estatildeo ensinando aos nossos filhos Fides Reformata V-1 (2000) p 71-96 PORTELA NETO F S Pensamentos Preliminares Direcionados a uma Pedagogia Redentiva Fides Reformata XIII-2 (2008) p 125-154 PORTELA NETO F S Resgatando o Papel do Professor na Es-cola Confessional como Transmissor de Conhecimento e da Verdade Reflexotildees e Propostas Seminais Fides Reformata XXV-1 (2020) p 63-75 PORTELA NETO F S O que estatildeo ensinando aos nossos filhos uma avaliaccedilatildeo criacutetica da pedagogia contemporacircnea apresentando a resposta da educaccedilatildeo escolar cristatilde Satildeo Joseacute dos Campos Editora Fiel 2012 PORTELA NETO F S ldquoConstrutivismo no Cenaacuterio Brasileirordquo In Fundamentos Biacuteblicos e Filosoacuteficos da Educaccedilatildeo Seacuterie Perspectivas Cristatildes da Educaccedilatildeo Satildeo Paulo ACSI Brasil 2005 PORTELA NETO F S ldquoIssues Faced by Education in the 21st Centuryrdquo Fides Reformata XXVI-1 (2021) PORTELA NETO F S Visatildeo cristatilde sobre educaccedilatildeo escolar Campina Grande PB Visatildeo Cristatilde 2015

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

44

rios e ateacute os colunistas regulares concentraram os textos em uma exposiccedilatildeo elogiosa que destacava a excelecircncia do construtivismo41

Simplificadamente o ldquoconstrutivismo postula que o conhecimento eacute algo que cresce subjetiva e individualmenterdquo ldquoNesse sentido natildeo eacute algo que deve ser ministrado ou transmitido pelo professorrdquo O mestre diferente de antiga-mente deve ser um mero ldquoagente facilitador nesse processo de crescimentordquo cognitivo42

O relacionamento entre o poacutes-modernismo e o construtivismo eacute deixado claro por Dennis McCallum analisando o posicionamento dos poacutes-modernistas quanto ao papel dos professores e agrave questatildeo da verdade

De acordo com os poacutes-modernistas os educadores satildeo facilitadores que abrigam preconceitos e satildeo co-construidores do conhecimento Se toda realidade natildeo existe ldquolaacute forardquo mas somente na mente daqueles que a percebem entatildeo ningueacutem pode reclamar para si o papel de autoridade Todas as versotildees da verdade satildeo meramente criaccedilotildees humanas Educadores ndash quer sejam professores em salas de aula pesquisadores ou autores de livros didaacuteticos ndash natildeo satildeo objetivos nem autoridades legiacutetimas Em vez disso visualizam a educaccedilatildeo partindo de suas proacuteprias perspectivas construiacutedas e cheias de preconceitos Consequentemente natildeo possuem qualquer relacionamento ldquoprivilegiadordquo com a verdade43

42 Incompatibilidades com o conceito biacuteblico da educaccedilatildeoJaacute verificamos que a teologia contemporacircnea nos vaacuterios ramos principais

aqui tratados e o poacutes-modernismo convivem em perfeita e plena harmonia Esse relacionamento eacute possibilitado pela temaacutetica desconstruccedilatildeoreconstruccedilatildeo que costura todas essas correntes de pensamento Nesse solo feacutertil um enten-dimento construtivista no campo educacional se encaixa sem dissonacircncia Mas a preocupaccedilatildeo maior eacute com a educaccedilatildeo escolar cristatilde Muitas vezes o conceito pedagoacutegico de escolas e educadores procura amparo em teologias que teimam em se utilizar de terminologia biacuteblica para destruir as proacuteprias diretrizes das Escrituras Assim terminam confundindo estas escolas e educadores pela suposta ldquocristianizaccedilatildeordquo de conceitos totalmente antagocircnicos ao que a Palavra de Deus ensina sobre a natureza humana a assimilaccedilatildeo cognitiva e a necessi-dade de firmar a praacutetica pedagoacutegica em princiacutepios e valores eternos que dela emanam Tanto pelas premissas poacutes-modernistas como pela dos construtivistas nunca teriacuteamos condiccedilatildeo de saber se a verdade objetiva existe Qualquer dado pode significar uma seacuterie de ldquoverdadesrdquo diferentes dependendo das pessoas que tomam contato com esses dados McCallum elucida ldquoUma visatildeo plena-

41 Educational Leadership 57 n 3 (novembro de 1999)42 PORTELA NETO F S O que estatildeo ensinando aos nossos filhos Fides Reformata V-1 (2000)

p 7243 MCCALLUM The Death of Truth p 99

45

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 29-46

mente construtivista e pressuposiccedilotildees metafiacutesicas estaacuteticas satildeo mutuamente excludentesrdquo44

A feacute cristatilde eacute fundamentada e o processo de ensino-aprendizagem cristatildeo deveria ser ordenado na existecircncia de acircncoras metafiacutesicas estaacuteticas Natildeo so-mente Deus eacute transcendente (estaacute aleacutem da realidade fiacutesica) e eacute imutaacutevel mas ele nos lega realidades objetivas a partir de sua pessoa Deus eacute a fonte das coisas reais ele elucida a realidade (Deus imanente) e nele natildeo haacute sombra de mudanccedilas (Tg 117 e Ml 36) A verdade eacute personificada (Jo 146) em Cristo (Deus conosco) e eacute objetivamente relatada nas Escrituras (Jo 177) A ressur-reiccedilatildeo por exemplo eacute realidade objetiva relatada por testemunhas e natildeo um reflexo subjetivo do objeto com a mente ou uma ilusatildeo criada na mente de pessoas alucinadas (1 Co 15)

Em outra faceta o processo pedagoacutegico contemporacircneo tem enaltecido o conceito da educaccedilatildeo disruptiva como ldquouma das palavras-chave do seacuteculo 21rdquo na qual toda praacutetica deve ser questionada e todo paradigma tradicional descar-tado ou desconstruiacutedo ldquorompendo com o estabelecidordquo45 A educaccedilatildeo escolar cristatilde natildeo deve ser refrataacuteria a novas metodologias mas preza e constroacutei em cima de verdades estabelecidas Ela pode reverter transitoriamente o processo mas natildeo romper com ldquoo estabelecidordquo principalmente se este ldquoestabelecidordquo forem conceitos e princiacutepios biacuteblicos A Biacuteblia aponta para a importacircncia de sermos fieacuteis ao corpo de doutrinas (ensinamentos) previamente reveladas ou seja a manutenccedilatildeo da ldquoanalogia da feacuterdquo (Rm 126)

Semelhantemente a ideia contemporacircnea da sala de aula invertida (flipped classroom)46 deve ser utilizada com cuidado por educadores e escolas cristatildes Se falamos de momentos em que os alunos satildeo levados a reverter os papeis em algumas ocasiotildees ou intermitentemente vemos paralelo com as diretrizes de Jesus aos disciacutepulos para que fossem de dois em dois a colocar em praacutetica o que estavam aprendendo (Mc 67) Ou no caso da mulher samaritana que tendo sido ensinada (Jo 47-26) passa a ensinar (Jo 439) No entanto essa metodologia educacional poacutes-moderna postula mais uma vez a desconstru-ccedilatildeo completa das praacuteticas de ensino pois o momento do encontro presencial contempla tatildeo somente discussatildeo dos assuntos reduzindo o papel do professor a um dos pares na classe

44 Ibid45 Publicaccedilatildeo Institucional do Grupo Espanhol Iberdrola sem designaccedilatildeo de autor ldquoUma educaccedilatildeo

disruptiva para enfrentar os desafios do futurordquo Disponiacutevel em httpswwwiberdrolacomtalentoseducacao-disruptiva Acesso em 6 maio 2021

46 Meacutetodo de ensino atraveacutes do qual a loacutegica da organizaccedilatildeo de uma sala de aula eacute invertida por completo Ver CARVALHO Rafael ldquoComo funciona a sala de aula invertidardquo 18 de maio de 2018 Disponiacutevel em httpswwwedoolscomsala-de-aula-invertida Acesso em 6 maio 2021

SOLANO PORTELA DESCONSTRUCcedilAtildeO E RECONSTRUCcedilAtildeO POacuteS-MODERNISMO E EDUCACcedilAtildeO

46

CONCLUSAtildeOO pensamento e a teologia poacutes-moderna quando acoplados ao constru-

tivismo na esfera educacional com essa forccedila demolidora de desconstruccedilatildeoreconstruccedilatildeo e uma negaccedilatildeo latente da possibilidade de aquisiccedilatildeo do conhe-cimento do real contrasta com a cosmovisatildeo cristatilde seus princiacutepios e valores extraiacutedos da Biacuteblia Como cristatildeos natildeo devemos temer revisotildees de comporta-mentos procedimentos ou processos desde que as mudanccedilas sejam efetivadas de acordo com padrotildees esquecidos ou negligenciados Na realidade nessas situaccedilotildees devemos ateacute liderar as ldquodesconstruccedilotildeesrdquo A Reforma do Seacuteculo 16 fez exatamente isso Devemos estar sempre alerta para desconstruccedilotildees e recons-truccedilotildees que sejam um fim em si mesmas descartando a sabedoria do passado e os princiacutepios da Palavra de Deus A teologia da Reforma com sua ecircnfase nas Escrituras Sagradas como uacutenica fonte autoritativa e inerrante de conhecimento religioso metafiacutesico e epistemoloacutegico deve se posicionar no centro de todos os esforccedilos intelectuais e pedagoacutegicos de cristatildeos comprometidos com a verdade

ABSTRACTThis article traces the theological development of the 20th century dividing

it into two parts the first half showing the transition from consolidated 19th century liberalism to moderncontemporary theology and the second half the road paved to postmodern theology The author demonstrates that the underlying theme of deconstruction and reconstruction of major tenets with an increasing departure from biblical directives is always present in moderncontemporary theology This is shown especially in five schools of theological thought Theology of Hope Liberation Theology Feminist Theology Process Theology and New Age Theology All these share the postmodern thought and belittle the Bible as the inerrant Word of God At the same time they provide feedback to Postmodern Theology raising doubts about biblical and traditional eternal principles and values Trends that appear in these theological schools of thought are similar to those being experienced in the field of education some of which have profound impact on the Christian teaching-learning pro-cess With its subjective approach to reality postmodernism has subverted key pedagogical concepts has undermined the role of the teacher and has submerged schools in a crisis of authority An appeal is made to have a solid biblical foundation for any philosophy of Christian school education which should be grounded in sound theology

KEYWORDSChristian education Constructivism Contemporary theology Decon-

struction and reconstruction Piaget Postmodernism Postmodern theology Theological liberalism

47

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

ldquoCOR MEUM TIBI OFFERO DOMINE PROMPTE ET SINCERErdquo UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO

SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADAHeber Carlos de Campos Juacutenior

RESUMOEste artigo apresenta a espiritualidade reformada como uma aacuterea ainda

desconhecida em meios populares e acadecircmicos e carente de ser redescoberta O conceito de que essa natildeo eacute uma aacuterea forte entre os reformados somado aos referenciais vagos sobre praacuteticas devocionais tecircm levado muitos a procurar espiritualidades alternativas No intuito de resgatar o aspecto piedoso e de-vocional da tradiccedilatildeo reformada este artigo intenta apresentar uma introduccedilatildeo agrave teologia praacutetica de personagens como Joatildeo Calvino os puritanos ingleses o movimento reformado holandecircs Nadere Reformatie e Jonathan Edwards aleacutem de representantes contemporacircneos da piedade reformada Num segundo momento o artigo apresenta alguns distintivos dessa espiritualidade e conclui apresentando a necessidade de resgatar essa histoacuteria para o movimento refor-mado brasileiro

PALAVRAS-CHAVEEspiritualidade Teologia reformada Joatildeo Calvino Puritanos Nadere

Reformatie Jonathan Edwards

Doutor em Teologia Histoacuterica (PhD Calvin Theological Seminary) Mestre em Teologia His-toacuterica (ThM Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper) professor de Teologia Histoacuterica no CPAJ e de Teologia Sistemaacutetica no Seminaacuterio Rev Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

48

INTRODUCcedilAtildeO PROCURA-SE UMA ESPIRITUALIDADE REFORMADAEspiritualidade eacute uma palavra relativamente recente no vocabulaacuterio

teoloacutegico protestante O estudioso do assunto James Houston1 observou na deacutecada de 1980 que o interesse dos evangeacutelicos pela espiritualidade era novo e o termo ateacute entatildeo natildeo aparecia em dicionaacuterios biacuteblicos ou teoloacutegicos2 Isso natildeo significa que o assunto fosse novo pois no passado eram mais utilizados termos como ldquopiedaderdquo ldquodevoccedilatildeordquo ldquosantidaderdquo ldquoandar com Deusrdquo Ateacute poucas deacutecadas atraacutes espiritualidade era um termo mais associado ao ascetismo de religiosidades orientais ou ao misticismo do monasticismo medieval Alister McGrath observa que o termo moderno ldquoespiritualidaderdquo nasce no contexto catoacutelico do seacuteculo 17 mas recentemente ldquotem recebido grande aceitaccedilatildeo como a maneira preferida de referir-se aos aspectos da praacutetica devocional de uma religiatildeo especificamente as experiecircncias individuais interiores dos cristatildeosrdquo em oposiccedilatildeo agrave religiatildeo meramente intelectual e acadecircmica3

Definir o conceito de espiritualidade eacute desafiador por ser muito abran-gente (o todo da vida cristatilde)4 e por depender dos referenciais teoloacutegicos de cada um A verdade eacute que espiritualidade eacute um guarda-chuva muito amplo com direito a definiccedilotildees vagas ou perigosamente plurais Houston define espiritua-lidade como ldquoo estado de relacionamento profundo com Deusrdquo5 e McGrath define espiritualidade cristatilde como a ldquobusca de uma vida religiosa autecircntica e satisfatoacuteriardquo6 expressotildees que natildeo oferecem paracircmetros claros para a experiecircn-cia de vida cristatilde No entanto o proacuteprio McGrath mostra que a teologia do seacuteculo 20 dissociou o estudo teoloacutegico da espiritualidade criando uma cisatildeo natildeo saudaacutevel entre o conteuacutedo objetivo da feacute e o ato subjetivo da confianccedila7

A verdade eacute que essa dicotomia entre teologia e espiritualidade tem preju-dicado conceituar o que seria uma espiritualidade reformada Afinal ldquoreforma-dordquo tem sido compreendido como sinocircnimo de ldquolinha teoloacutegicardquo natildeo de praacutetica

1 James Houston membro da Sociedade dos Irmatildeos (Plymouth Brethren) sempre se interessou por educaccedilatildeo teoloacutegica voltada para a formaccedilatildeo espiritual dos evangeacutelicos e por isso fundou o Regent College com esse interesse em resgatar a espiritualidade cristatilde ao longo dos seacuteculos MCGRATH Alister J I Packer A Biography Grand Rapids Baker 1997 p 223-231

2 HOUSTON James M ldquoEspiritualidaderdquo In ELWELL Walter A (Org) Enciclopeacutedia Histoacuterico--Teoloacutegica da Igreja Cristatilde Trad Gordon Chown Satildeo Paulo Vida Nova 1992 vol 2 p 60

3 MCGRATH Alister E Uma introduccedilatildeo agrave espiritualidade cristatilde Trad William Lane Satildeo Paulo Vida 2008 p 21 25

4 Para um resumo das complexidades dessa definiccedilatildeo ver a discussatildeo do catoacutelico SHELDRAKE Philip Spirituality A Brief History 2ordf ed Malden MA Wiley-Blackwell 2013 p 3-9

5 HOUSTON ldquoEspiritualidaderdquo p 606 MCGRATH Uma introduccedilatildeo agrave espiritualidade cristatilde p 207 Ibid p 60-62

49

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

cristatilde Popularmente reformado eacute sinocircnimo de ldquocabeccedila granderdquo e ldquocoraccedilatildeo friordquo com pouca ecircnfase em avivamento8 Curiosamente vaacuterios evangeacutelicos simpaacuteticos agrave teologia reformada talvez conseguissem enumerar particularidades da ldquoespiritualidade catoacutelicardquo ou da ldquoespiritualidade pentecostalrdquo mas teriam dificuldade em arrolar os distintivos de uma ldquoespiritualidade reformadardquo Se essa constataccedilatildeo estaacute correta deve-se concluir que essa espiritualidade ou eacute inexistente enquanto tradiccedilatildeo (isto eacute apenas presente em alguns poucos indiviacuteduos) ou eacute desconhecida do puacuteblico

Philip Ryken discordaria de que ela seja inexistente pois ele define o cal-vinista verdadeiro como algueacutem cuja espiritualidade consiste em ter uma mente centrada em Deus um espiacuterito penitente um coraccedilatildeo grato uma vontade sub-missa ao Todo-Poderoso uma vida santa e um propoacutesito de glorificar o Senhor9 Essa eacute a sua tentativa de enumerar as caracteriacutesticas de uma espiritualidade reformada em resposta agravequeles que tem uma visatildeo quanto aos reformados de intransigecircncia em sua militacircncia teoloacutegica Eacute verdade que uma descoberta do calvinismo que se torna beacutelica e quase que exclusivamente cognitiva (ortodoxia sem devoccedilatildeo) natildeo tem ajudado pelo contraacuterio parece reforccedilar a imagem de que o calvinista natildeo eacute piedoso Todavia mesmo para os que discordam dessa visatildeo popular natildeo satildeo muitos que conseguiriam enumerar uma boa histoacuteria resumida da teologia praacutetica entre os reformados

Mesmo o meio acadecircmico natildeo tem facilidade em identificar quais seriam os contornos de uma espiritualidade reformada Supreendentemente por vezes ateacute questiona se de fato existe uma espiritualidade distinta dos reformados O acadecircmico presbiteriano Hughes Oliphant Old numa palestra proferida no iniacutecio da deacutecada de 199010 disse que muitos se surpreenderam quando uma grande coletacircnea sobre os claacutessicos da espiritualidade ocidental quase natildeo incluiu protestantes e os que foram colocados nem representavam bem a es-piritualidade protestante (por exemplo Jacob Boehme os Quakers William Law etc) Ele lamentou que essa lista natildeo tivesse incluiacutedo os salmos metrifi-cados de Clement Marot e Teodoro Beza as cartas de Joatildeo Calvino e Samuel Rutherford a Fiel Narrativa de Jonathan Edwards o diaacuterio de David Brainerd o comentaacuterio devocional de Matthew Henry e os escritos de Richard Baxter dentre outros claacutessicos reformados Isso levou muitos a perguntarem se de

8 Kenneth Stewart comprova que esse preconceito eacute um dos vaacuterios mitos entre os reformados jaacute que haacute uma longa lista de envolvimento de reformados com avivamentos Cf STEWART Kenneth Ten Myths about Calvinism Recovering the Breadth of the Reformed Tradition Downers Grove IL InterVarsity 2011 p 99-120

9 RYKEN Philip Graham ldquoO que eacute um calvinista de verdaderdquo In LUCAS Sean Michael et al (Orgs) Seacuterie Feacute Reformada Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2015 vol 1 p 10-29

10 OLD Hughes Oliphant ldquoWhat is Reformed Spirituality Played Over Again Lightlyrdquo In LEITH J H (Org) Calvin Studies VII John Calvin Studies Davidson NC 1994 p 61-68

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

50

fato existe tal coisa como uma ldquoespiritualidade reformadardquo11 Essa ausecircncia de uma histoacuteria bem contada sobre a piedade reformada levou a um conceito popular negativo sobre o calvinismo

Por conta desse vaacutecuo histoacuterico surgiu ateacute entre pessoas que pertencem a igrejas reformadas uma busca por espiritualidades alternativas Tem havido um movimento de resgate do que eacute antigo como se a modernidade tivesse sufocado a vida piedosa12 O prefaciador brasileiro da obra de Alister McGrath sobre espiritualidade escreve ldquoEacute tempo de deixarmos as teacutecnicas de marke-ting e administraccedilatildeo e voltarmo-nos ao testemunho dos santos e profetas que habitaram o deserto e os mosteiros especialmente entre os seacuteculos VI e XV e conhecer o Deus que estaacute mais interessado em nossos afetos do que em nossos feitos mais atento ao nosso caraacuteter do que aos nossos discursosrdquo13 Kenneth Stewart narra que existe uma onda de livros evangeacutelicos norte-americanos apontando para o monasticismo como o ideal de espiritualidade a ser resga-tado pelos evangeacutelicos No entanto ele mesmo avalia que tem havido uma apropriaccedilatildeo de praacuteticas contemplativas sem discernimento teoloacutegico14 Esse tipo de espiritualidade alternativa por vezes estaacute unido a interesses por certas doutrinas reformadas criando um pluralismo eclesiaacutestico bem diversificado em nossos dias

Essa apropriaccedilatildeo evangeacutelica miacutestica do legado romanista parece nova mas tem elementos bem antigos Michael Horton observa como a valorizaccedilatildeo do interior sobre o exterior do espiacuterito antes que a instituiccedilatildeo eacute tatildeo antigo quanto o gnosticismo cujas pressuposiccedilotildees platocircnicas natildeo foram todas rejeitadas pela igreja15 Na Idade Meacutedia o dualismo interior-exterior levou a vaacuterios movimen-tos miacutesticos de desprezo da igreja institucionalizada (pregaccedilatildeo sacramentos disciplina) em favor de disciplinas espirituais privadas Isso foi apropriado natildeo soacute por movimentos religiosos como os anabatistas entusiastas (ldquoDeus dentrordquo) mas ateacute de modo ainda mais influente nas filosofias iluministas ldquoSeja conce-bida em termos da razatildeo interior (Descartes) lsquoda lei moral interiorrsquo (Kant) ou do lsquosentimento piedosorsquo (Schleiermacher) a modernidade fez ouvidos moucos

11 OLD ldquoWhat is Reformed Spiritualityrdquo p 6112 Robert Webber foi um dos que defenderam a necessidade de um resgate da tradiccedilatildeo para promo-

ver uma mistura de antigo e poacutes-moderno em vaacuterias aacutereas da teologia inclusive na espiritualidade Cf WEBBER Robert Ancient-Future Faith Rethinking Evangelicalism for a Postmodern World Grand Rapids Baker 1999 p 117-138

13 Osmar Ludovico da Silva ldquoPrefaacutecio agrave ediccedilatildeo brasileirardquo In MCGRATH Uma introduccedilatildeo agrave espiritualidade cristatilde p 12

14 STEWART Kenneth J In Search of Ancient Roots The Christian Path and the Evangelical Identity Crisis Downers Grove IL InterVarsity 2017 p 173-186

15 HORTON Michael A Grande Comissatildeo O resgate da estrateacutegia divina para o discipulado Trad Odayr Olivetti Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2014 p 287

51

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

para toda e qualquer autoridade externardquo16 Isso se vecirc entre evangeacutelicos como o quaker Richard Foster o qual natildeo inclui nas disciplinas espirituais os meios de graccedila (pregaccedilatildeo e sacramentos) ordenados por Cristo enquanto trata como essenciais meacutetodos para a piedade pessoal que natildeo satildeo ordenados na Escritura (por exemplo simplicidade e celebraccedilatildeo)17 Se conectarmos o misticismo antigo com representantes atuais da espiritualidade individualista podemos concluir que o movimento emergente e o de desigrejados natildeo eacute nada poacutes-moderno mas totalmente moderno

A dicotomia entre teologia e espiritualidade explica a falta de criteacuterio com o qual muitos tem se apropriado de outras espiritualidades Richard Foster eacute um dos grandes mentores de espiritualidade no mundo evangeacutelico atual Ele eacute um exemplo dessa apropriaccedilatildeo indiscriminada da tradiccedilatildeo quando funda uma instituiccedilatildeo (Renovare) cujo objetivo eacute ldquouma visatildeo integral da espiritualidade cristatilderdquo O que se entende por ldquointegralrdquo eacute uma amaacutelgama de seis tradiccedilotildees de espiritualidade (contemplativa de santidade carismaacutetica de justiccedila social evangelical sacramental) num mesmo pacote uacutetil para fomentar a espiritua-lidade do cristatildeo18 Quando se tem esse tipo de referencial vago e plural fica mesmo difiacutecil conhecer o que seria uma espiritualidade reformada

Outro evangeacutelico que enfatiza o interior em detrimento do institucio-nal eacute Dallas Willard que diminui o ldquoevangelho do perdatildeordquo em prol de uma ldquotransformaccedilatildeo interior da almardquo e parafraseia a Grande Comissatildeo de Mateus 28 substituindo os meios de graccedila (Palavra e sacramento) por nossas ativida-des19 Numa entrevista ao perioacutedico Modern Reformation Willard enfatizou disciplinas espirituais como ldquosolitude e silecircnciordquo e uma ecircnfase muito maior na vida cristatilde individual do que coletiva e terminou o texto menosprezando a importacircncia dos meios de graccedila como a pregaccedilatildeo e os sacramentos20 Esse tipo de espiritualidade comum entre evangeacutelicos tem que nos preocupar em tempos atuais quando a igreja tem perdido referenciais fiacutesicos e congregacionais onde uma visatildeo virtual e passiva de culto tem proliferado

Diante desse cenaacuterio evangeacutelico pode-se deduzir erroneamente que natildeo tem havido vozes procurando ensinar acerca de espiritualidade a partir da tra-diccedilatildeo reformada Na verdade existe um esforccedilo contemporacircneo para resgatar

16 HORTON A Grande Comissatildeo p 28917 Ibid p 29018 FOSTER Richard Celebraccedilatildeo da disciplina o caminho do crescimento espiritual 2ordf ed Satildeo

Paulo Vida 2007 p 303-304 Cf FOSTER Richard J e GRIFFIN Emilie Celebrando as 12 disciplinas espirituais textos claacutessicos sobre as disciplinas interiores exteriores e comunitaacuterias Trad Elizabeth Gomes Satildeo Paulo Vida 2010

19 HORTON A Grande Comissatildeo p 290-29120 ldquoSpiritual Disciplines and Means of Grace Contrast or Continuum QampA with Dallas Willardrdquo

Modern Reformation vol 22 n 4 (jul-ago 2013) p 23-25

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

52

uma identidade reformada de piedade por parte de autores de teologia histoacuterica e praacutetica tanto do meio acadecircmico como pastores e pensadores com uma lente reformada Alguns deles se especializaram em escritos de formaccedilatildeo espiritual e devoccedilatildeo como Jerry Bridges21 Donald Whitney22 e Tom Schwanda23 Aleacutem destes podemos mencionar teoacutelogos que natildeo satildeo conhecidos por essa aacuterea da teologia mas que tem exercido enorme influecircncia sobre a percepccedilatildeo reformada de espiritualidade como eacute o caso de Francis Schaeffer24 John Piper25 Michael Haykin26 e Joel Beeke27 Eacute certo que outros nomes poderiam ser citados poreacutem estes satildeo suficientes para ilustrar a tentativa de resgate de parte da tradiccedilatildeo reformada ainda relativamente desconhecida

Ainda que jaacute tenhamos alguma literatura em portuguecircs a espiritualidade reformada parece ser uma descoberta que ainda precisa ser feita em nosso paiacutes O crescimento do interesse pela teologia reformada natildeo tem sido ampla-mente marcado pela descoberta de sua espiritualidade Como este eacute um artigo histoacuterico-teoloacutegico seu intento eacute fazer um resgate introdutoacuterio desse legado e mostrar que a espiritualidade reformada existe desde as origens do movimen-to Na primeira parte do artigo seratildeo apresentados alguns representantes da tradiccedilatildeo em seu interesse por promover devoccedilatildeo de forma solidamente teoloacute-gica Na segunda parte seratildeo destacadas algumas caracteriacutesticas tipicamente reformadas a fim de se concluir que sua espiritualidade eacute de fato resultado de sua visatildeo teoloacutegica

21 Jerry Bridges (1929-2016) sempre esteve associado a uma entidade paraeclesiaacutestica (Naviga-tors) poreacutem suas ecircnfases teoloacutegicas mais marcantes foram obras da tradiccedilatildeo reformada das quais vaacuterias jaacute foram traduzidas para o portuguecircs Para um resumo de suas origens e seu legado ver httpswwwthegospelcoalitionorgblogsjustin-taylorjerry-bridges-1929-2016 Acesso em 4 jun 2021

22 Cf WHITNEY Donald Disciplinas espirituais para a vida cristatilde Satildeo Paulo Batista Regular 2009 Para mais recursos de Don Whitney ver httpsbiblicalspiritualityorg Acesso em 4 jun 2021

23 Cf SCHWANDA Tom Soul Recreation The Contemplative-Mystical Piety of Puritanism Eugene OR Wipf amp Stock 2012

24 Cf SCHAEFFER Francis A Verdadeira espiritualidade 2ordf ed Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2018 EDGAR William Francis Schaeffer e a vida cristatilde a espiritualidade contracultural Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2018

25 John Piper eacute muito conhecido do puacuteblico brasileiro e natildeo se faz necessaacuterio mencionar os vaacuterios livros de sua autoria que jaacute foram traduzidos para o portuguecircs Todavia o destaque ao seu nome se daacute pelo fato de sua principal ecircnfase sempre girar em torno da vida cristatilde da piedade e do seu interesse por tantos personagens histoacutericos que marcaram a tradiccedilatildeo reformada especialmente Jonathan Edwards

26 Michael Haykin natildeo soacute eacute estudioso da patriacutestica e da histoacuteria da ala batista reformada mas tem escrito livros que mostram o lado devocional e praacutetico da espiritualidade reformada Cf HAYKIN Michael The God Who Draws Near An Introduction to Biblical Spirituality Webster NY Evangelical Press 2007 8 mulheres de feacute Satildeo Joseacute dos Campos Fiel 2017

27 BEEKE Joel Espiritualidade reformada uma teologia praacutetica para a devoccedilatildeo a Deus Trad Valter Graciano Martins Satildeo Joseacute dos Campos Fiel 2014 BEEKE Joel R e PEDERSON Randall J Paixatildeo pela pureza Satildeo Paulo PES 2011

53

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

1 REPRESENTANTES HISTOacuteRICOS DE UMA ESPIRITUALIDADE REFORMADA

Hughes Oliphant Old afirma que a Reforma do seacuteculo 16 reformou a es-piritualidade assim como o fez com a teologia Se por seacuteculos a espiritualidade havia sido enclausurada atraacutes das paredes dos mosteiros separada da sujeira das atividades cotidianas deste mundo a espiritualidade protestante articulou a vida cristatilde ldquocom a famiacutelia laacute fora nos campos na oficina na cozinha ou no comeacuterciordquo28 De fato essa eacute a santificaccedilatildeo da vida comum (cf Ef 518-69) Em contraste com o monasticismo medieval a piedade reformada entendia a reclusatildeo e meditaccedilatildeo moderaccedilatildeo e preocupaccedilatildeo com a eternidade mas seu ascetismo era apenas espiritual29 Arie de Reuver diz que enquanto o monas-ticismo fugia do mundo com janelas fechadas para uma espiritualidade de solidatildeo os reformados abriram suas janelas para o barulho da rua para uma espiritualidade de solidariedade30 Alguns exemplos da histoacuteria reformada se-ratildeo vistos de forma panoracircmica nesta seccedilatildeo alguns mais conhecidos e outros menos conhecidos apenas com o intuito de mostrar que essa tradiccedilatildeo tem uma longa histoacuteria de piedade

A pesquisa de autores apresentados no paraacutegrafo anterior revela que os representantes histoacutericos da espiritualidade reformada seratildeo apresentados na maneira como interagem com o restante da tradiccedilatildeo Isto eacute ao inveacutes de apre-sentar apenas a piedade desses teoacutelogos num vaacutecuo histoacuterico haveraacute maior preocupaccedilatildeo em destacar como eles lidaram com a devoccedilatildeo cristatilde ao seu redor e como se apropriaram da tradiccedilatildeo cristatilde de piedade de forma criteriosa segundo o filtro de suas convicccedilotildees teoloacutegicas Tal ecircnfase demonstraraacute primeiramente a catolicidade de nossa feacute e praacutetica provando que os reformados natildeo soacute liam os gigantes da patriacutestica e do medievo mas se apropriavam de vaacuterios aspectos dessas expressotildees histoacutericas do cristianismo Os reformados se apropriaram natildeo soacute da teologia de gigantes como Agostinho mas inclusive da espiritualidade de autores como Bernardo de Claraval e Tomaacutes agrave Kempis os dois pietistas medievais mais citados entre os reformados holandeses31 Em complemento agrave catolicidade da espiritualidade a ecircnfase desta seccedilatildeo mostraraacute em segundo lugar que a apropriaccedilatildeo da tradiccedilatildeo foi cautelosa e condizente com a feacute reformada Este eacute possivelmente o ponto mais importante desta seccedilatildeo

Arie de Reuver resume a diferenccedila entre o misticismo medieval e a espiri-tualidade dos reformadores agrave medida que interagiram com essa teologia miacutestica

28 OLD ldquoWhat is Reformed Spiritualityrdquo p 6129 DE REUVER Arie Sweet Communion Trajectories of Spirituality from the Middle Ages

through the Further Reformation Grand Rapids Baker 2007 p 10130 Ibid31 Cf DE REUVER Sweet Communion

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

54

A rejeiccedilatildeo do misticismo pelos reformadores envolveu somente certa forma dele Essa forma incluiacutea em primeiro lugar um misticismo que funcionava como uma uniatildeo experimental na qual a fronteira entre Deus e a humanidade era obliterada Ela incluiacutea em segundo lugar um misticismo que era prezado e praticado como uma condiccedilatildeo preacutevia meritoacuteria para a salvaccedilatildeo que ignorava a graccedila Ela incluiacutea em terceiro lugar um misticismo restrito a observacircncias monaacutesticas Em quarto lugar ela envolvia um misticismo que frustrava o equi-liacutebrio entre feacute e amor prejudicando a feacute32

Esses quatro pontos levantados na citaccedilatildeo acima ajudam a delimitar o que da espiritualidade medieval foi aceito pelos reformadores e o que foi descartado Eacute especialmente importante destacar o quarto e uacuteltimo ponto pois revela mais imitatio Christi do que unio Christi entre os miacutesticos medievais Os reformado-res iratildeo lutar por esse equiliacutebrio entre feacute e amor perdido na teologia medieval

O mesmo tipo de filtro da tradiccedilatildeo aparece na forma como os reformados holandeses Willem Teellinck (1579-1629) e Wilhelmus agrave Brakel (1635-1711) interagiram com o miacutestico medieval Tomaacutes agrave Kempis (c 1379-1471) Teellinck tem apreccedilo pela obra de Kempis A Imitaccedilatildeo de Cristo e a cita vaacuterias vezes em seus escritos embora reconheccedila imperfeiccedilotildees em sua espiritualidade Teellinck procura transpor a forma e o sabor de boa parte da literatura devocional preacute--Reforma para um contexto reformado Afinal muitas dessas obras contecircm trecircs erros a ilusatildeo da perfeiccedilatildeo justificaccedilatildeo em conjunto com as boas obras e desvalorizaccedilatildeo da Escritura33 Brakel tambeacutem considera A Imitaccedilatildeo de Cristo de Kempis um excelente tratado mas observa como Kempis teve pouco a dizer ldquosobre o Senhor Jesus como o resgate e a justiccedila dos pecadores ndash sobre como ele por uma feacute verdadeira deve ser usado para a justificaccedilatildeo e aproximaccedilatildeo de Deus praticando a verdadeira santidade como algo originado nele e em nossa uniatildeo com elerdquo34 O que o reformado Brakel quer dizer eacute que o escritor medieval apresentou alguns oacutetimos aspectos de vida cristatilde mas sem o funda-mento objetivo dessa espiritualidade isto eacute ele observa que haacute uma proposta de discipulado (inclui carregar a cruz humildade autoexame meditaccedilatildeo etc) sem estar calcado na obra objetiva de Cristo Nas palavras do estudioso Arie de Reuver o Cristo que eacute nosso substituto ficou na sombra do Cristo que nos chama a segui-lo35 Essa preocupaccedilatildeo eacute semelhante agrave de Michael Horton quando diz que o evangelicalismo moderno tem se preocupado mais com o que Cristo faria numa determinada situaccedilatildeo (ldquoEm seus passos o que faria Jesusrdquo) ao inveacutes do que Cristo fez por vocecirc isto eacute mais lei do que evangelho (espiritualidade

32 Ibid p 2233 Ibid p 112-11334 BRAKEL Wilhelmus agrave The Christianrsquos Reasonable Service Grand Rapids Reformation

Heritage Books 1992 vol 2 p 64135 DE REUVER Sweet Communion p 99

55

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

moralista)36 Esse eacute o tipo de discernimento do qual tanto carecem os evangeacute-licos que se simpatizam com aspectos da tradiccedilatildeo reformada

Tendo feito um panorama da forma como o movimento reformado lidou com a tradiccedilatildeo cristatilde de vida devocional veremos agora alguns representantes histoacutericos do movimento

11 Joatildeo CalvinoA frase latina que daacute tiacutetulo a este artigo (que pode ser traduzida por ldquoMeu

coraccedilatildeo te ofereccedilo Senhor de modo pronto e sincerordquo) eacute encontrada em selos de Genebra logo apoacutes a morte de Calvino e por vezes eacute atribuiacuteda a ele37 Independentemente da fonte exata da frase ela expressa a espiritualidade de um homem que se destaca por sua teologia doutrinaacuteria Eacute preciso resgatar a espiritualidade de quem eacute frequentemente considerado gigante apenas em sua teologia

Muito jaacute foi escrito sobre a espiritualidade de Joatildeo Calvino38 poreacutem alguns traccedilos gerais seratildeo suficientes para demonstrar a riqueza desse reformador no toacutepico da pietas (piedade) a palavra mais utilizada por ele para se referir ao nosso tema O contexto do monasticismo medieval e a resposta de Calvino seratildeo apresentados em primeiro lugar para depois realccedilar o trecho das Insti-tutas mais conhecido por sua ecircnfase em diferentes aspectos da devoccedilatildeo cristatilde

David Steinmetz39 analisa a criacutetica que Calvino faz da instituiccedilatildeo e da ideologia do monasticismo e a situa no contexto medieval de debates sobre o

36 Cf HORTON Michael Cristianismo sem Cristo o evangelho alternativo da igreja atual Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2010

37 Os selos utilizados por Calvino tinham a figura de matildeos segurando um coraccedilatildeo mas sem estarem acompanhados de palavras Para uma breve histoacuteria do selo de Calvino ver o artigo de Barbara Carvill ldquoThe Calvin Sealrdquo em httpscalvineduabouthistorycalvin-sealhtml Acesso em 4 jun 2021 Todavia temos uma frase parecida de Calvino numa carta que escreveu a Guilherme Farel quando relutantemente cedeu ao pedido do amigo para que retornasse a Genebra em 1541 ldquoOfereccedilo meu coraccedilatildeo apresentado como sacrifiacutecio ao Senhorrdquo CALVINO Joatildeo ldquoPara William Farelrdquo In Cartas de Joatildeo Calvino Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2009 p 49

38 Apenas a tiacutetulo de introduccedilatildeo bibliograacutefica ver as seguintes obras RICHARD Lucien Joseph The Spirituality of John Calvin Atlanta John Knox Press 1974 SIMPSON Henry William ldquoPietas in the Institutes of Calvinrdquo In VAN DER WALT Barend Johannes (Org) Our Reformational Tradition A Rich Heritage and Lasting Vocation Potchefstroom Potchefstroom University for Christian Higher Education 1984 p 179-191 BOWSMA William J ldquoThe Spirituality of John Calvinrdquo In RAITT Jill (Org) Christian Spirituality High Middles Ages and Reformation New York Crossroad 1987 p 318-333 GAMBLE Richard C ldquoCalvin and Sixteenth-Century Spirituality Comparison with the Anabaptistsrdquo Calvin Theological Journal vol 31 n 2 (1996) p 335-358 GLEASON Randall C John Calvin and John Owen on Mortification a comparative study on reformed spirituality New York Peter Lang 1995 BEEKE Espiritualidade reformada p 23-60 HORTON Michael Calvino e a vida cristatilde para glorificar a Deus e alegrar-se nele para sempre Trad Jader Santos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2017

39 STEINMETZ David C ldquoCalvin and the Monastic Idealrdquo In STEINMETZ David C Calvin in Context 2 ed Oxford Oxford University Press 2010 p 185-196

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

56

status da vida religiosa Tomaacutes de Aquino (1225-1274) enxerga os monges em um estado de perfeiccedilatildeo pois eles natildeo soacute cumprem os mandamentos biacuteblicos (obrigaccedilatildeo de todo cristatildeo) mas tambeacutem os conselhos evangeacutelicos (celibato e voto de pobreza) Portanto aqueles que fazem parte das ordens mendicantes estatildeo em vantagem na busca da santidade pois suas obras tecircm maior valor meritoacuterio Depois de sintetizar as criacuteticas medievais ao movimento monaacutestico por parte de Jean Gerson (1363-1429) e Johann Pupper von Goch (1400-1475) Steinmetz resume a criacutetica de Calvino de que o movimento eacute cismaacutetico pois cria uma dicotomia entre os monges e o resto da igreja quando de fato Cristo estabeleceu uma regra de vida com mandamentos e conselhos para todos os cristatildeos Calvino tambeacutem confronta o celibato como uma lei para todo cleacuteri-go concluindo que o voto monaacutestico pode ser dissolvido pois Deus natildeo nos prende a votos iliacutecitos40 Acima de tudo Calvino advogava a unidade cristatilde e o estado de perfeiccedilatildeo como sendo o estado de todo cristatildeo41

Eacute lamentaacutevel que as Institutas tenham ganhado um caraacuteter mais dogmaacutetico na histoacuteria e tenham sido negligenciadas como um livro catequeacutetico e portanto para a vida cristatilde comum Nela Calvino considera a piedade como a ldquoreverecircncia unida ao amor por Deusrdquo induzida pelo ldquoconhecimento de seus benefiacuteciosrdquo42 A raiz dessa piedade eacute a uniatildeo miacutestica com Cristo uma doutrina que permeia as suas obras e que permite que tenhamos ldquocomunhatildeordquo com Cristo e ldquopartici-paccedilatildeordquo nos seus benefiacutecios43 A doutrina da justificaccedilatildeo eacute o solo de onde brota a piedade e a santificaccedilatildeo eacute o contiacutenuo remodelar do Espiacuterito consagrando-nos a Deus Joel Beeke destaca as dimensotildees eclesioloacutegicas da piedade de Calvino quando fala da igreja da palavra dos sacramentos e do salteacuterio44 Quanto agraves dimensotildees praacuteticas de sua piedade Beeke destaca a importacircncia da oraccedilatildeo (o segundo capiacutetulo mais longo das Institutas) depois aborda o arrependimento e entatildeo dedica o restante do tempo agraves Institutas III6-1045

Esse trecho das Institutas eacute tatildeo significativo que desde 1550 ele foi pu-blicado separadamente vaacuterias vezes sob o tiacutetulo O Livreto Dourado da Vida Cristatilde uma espeacutecie de resumo da piedade calvinista Nesse trecho Calvino fala de abnegaccedilatildeo carregar a cruz e frugalidade na vida presente por ter em mente a vida futura Calvino introduz essa seccedilatildeo das Institutas dizendo que o seu propoacutesito eacute mostrar ao homem de Deus como ele pode direcionar a sua trajetoacuteria para uma vida ordeira e apresentar brevemente algumas regras para

40 STEINMETZ ldquoCalvin and the Monastic Idealrdquo p 192-19341 Cf CALVIN John The Institutes of the Christian Religion Philadelphia The Westminster

Press 1960 IVxiii42 CALVIN Institutes of the Christian Religion Iii143 BEEKE Espiritualidade reformada p 27-2944 Ibid p 33-4845 Ibid p 48-56

57

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

determinar as suas tarefas46 Essa instruccedilatildeo apresenta uma eacutetica que envolve tanto virtudes como regras pois fala do amor pela justiccedila que eacute infundido em nossos coraccedilotildees mas tambeacutem de uma regra que natildeo nos deixa desviar em nosso zelo pela justiccedila47 No capiacutetulo sobre abnegaccedilatildeo Calvino assevera que natildeo somos nossos mas vivemos e morremos para a gloacuteria de Deus48 explica o conceito de autonegaccedilatildeo conforme Tito 249 e a apresenta nas relaccedilotildees com o proacuteximo (marcadas por humildade espiacuterito de serviccedilo e amor sincero)50 e na relaccedilatildeo com Deus51 No capiacutetulo sobre carregar a cruz Calvino demonstra que a nossa cruz nutre esperanccedila nos treina em paciecircncia e obediecircncia e trata medicinalmente de nossa carne rebelde52 ao mesmo tempo que discorre sobre como suportar o sofrimento em distinccedilatildeo do espiacuterito estoico53 No capiacutetulo 9 do livro 3 Calvino fala de como a vida presente eacute motivo de gratidatildeo na medida que experimentamos a doccedilura da generosidade divina e almejamos sua plena revelaccedilatildeo54 Calvino ensina a desejar deixar esta vida somente na medida em que ela nos prende ao pecado e reprende severamente aqueles que se deixam vencer pelo medo da morte55 No uacuteltimo capiacutetulo dessa seccedilatildeo Calvino ensina como viver esta vida piedosamente atraveacutes do uso adequado das daacutedivas divi-nas do princiacutepio da frugalidade e da vocaccedilatildeo que Deus concedeu a cada um56

46 CALVIN Institutes of the Christian Religion IIIvi147 Ibid IIIvi248 Ibid IIIvii1 Joel Beeke comenta ldquoa abnegaccedilatildeo natildeo eacute centrada no ego como se dava com

frequecircncia no monasticismo medieval e sim centrada em Deus Nosso maior inimigo natildeo eacute o diabo nem o mundo e sim noacutes mesmosrdquo BEEKE Espiritualidade reformada p 53

49 CALVIN Institutes of the Christian Religion IIIvii350 Ibid IIIvii4-751 Ibid IIIvii8-10 Ronald Wallace julga que os toacutepicos de carregar a cruz e autonegaccedilatildeo estatildeo

claramente em continuidade com a obra de Tomaacutes agrave Kempis Todavia Wallace faz uma distinccedilatildeo entre o misticismo medieval e a piedade de Calvino ldquoEntretanto no ensino dos miacutesticos medievais o chamado para a negaccedilatildeo de si mesmo era frequentemente considerado uma obra de iniciativa humana merecendo recompensa e resposta de Deus Calvino todavia sempre considera nosso sacrifiacutecio de negaccedilatildeo de noacutes mesmos como possiacutevel apenas mediante a graccedila de Deus em Cristordquo WALLACE Ronald Calvino Genebra e a Reforma Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2003 p 160

52 CALVIN Institutes of the Christian Religion IIIviii3-5 Beeke comenta ldquoEnquanto a abne-gaccedilatildeo focaliza a conformidade interior com Cristo o levar a cruz se centra na externa semelhanccedila com Cristordquo BEEKE Espiritualidade Reformada p 54

53 CALVIN Institutes of the Christian Religion IIIviii9-1154 Ibid IIIix355 Ibid IIIix4-556 Ibid IIIx2 5-6 Beeke comenta ldquoCalvino natildeo era asceta ele desfrutava a boa literatura

o bom alimento e as belezas da natureza No entanto rejeitou todas as formas do excesso terreno O crente eacute chamado agrave moderaccedilatildeo de Cristo a qual inclui modeacutestia prudecircncia abstenccedilatildeo de ostentaccedilatildeo e o contentamento com nossa sorte pois eacute a esperanccedila da vida por vir que nos fornece o propoacutesito e o desfrute de nossa presente vidardquo BEEKE Espiritualidade reformada p 55-56

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

58

12 Os puritanos inglesesFalar resumidamente da piedade puritana das Ilhas Britacircnicas nos seacuteculos

16 e 17 eacute quase impossiacutevel jaacute que a literatura que aborda o movimento eacute quase toda voltada para a sua devoccedilatildeo multifacetada Ainda que os puritanos tenham se mostrado excelentes em sua teologia eacute possiacutevel argumentar que o movimento puritano eacute prioritariamente um movimento de espiritualidade reformada na medida em que seus adeptos visavam purificar a Igreja da Inglaterra de suas imperfeiccedilotildees ldquopapistasrdquo Richard Lovelace traccedila um panorama da literatura devocional inglesa no iniacutecio do seacuteculo 17 como uma criacutetica agrave tradiccedilatildeo catoacutelica romana em sua origem e esboccedila a anatomia da piedade puritana composta de marcas de uma verdadeira conversatildeo vida de santidade crescimento em piedade e percepccedilatildeo da astuacutecia de Satanaacutes os meios de graccedila o amor pelo proacuteximo e a comunhatildeo com Deus57 Um exemplo dessa literatura explorado por Lovelace eacute o claacutessico de Lewis Bayly (c 1575-1631) A Praacutetica da Piedade que se tornou uma referecircncia de literatura devocional jaacute no seacuteculo 17 sendo reimpresso em dezenas e dezenas de novas ediccedilotildees

Em nosso idioma a espiritualidade dos puritanos eacute bem explorada em livros de J I Packer58 Leland Ryken59 e Joel Beeke Packer por exemplo apre-senta um panorama dos escritos praacuteticos de puritanos ingleses como Richard Greenham William Perkins mas principalmente Richard Baxter e observa tal literatura como sendo popular no sentido de ser simples mas certamente natildeo no sentido de ser teologicamente inepta60 Packer observa cinco qualida-des nesses escritos eles revelam os puritanos como verdadeiros meacutedicos da alma como expositores da Escritura que dirigiam seu ensino agraves consciecircncias e aos afetos dos ouvintes como educadores da mente como inculcadores da verdade e como homens espirituais61 Em sua exposiccedilatildeo da espiritualidade de John Owen Packer explora natildeo somente a santificaccedilatildeo nas trecircs obras de Owen que falam de luta contra o pecado mas analisa principalmente a sua obra Co-munhatildeo com Deus Packer diz que nossa geraccedilatildeo tende a pensar na comunhatildeo com Deus de modo subjetivo nossa consciente experiecircncia com Deus mas os puritanos pensavam nessa comunhatildeo de modo objetivo na aproximaccedilatildeo divina a noacutes ldquoIsso livrou-os do perigo do falso misticismo que tem poluiacutedo

57 LOVELACE Richard C ldquoPuritan Spirituality The Search for a Rightly Reformed Churchrdquo In DUPREacute Louis e SALIERS Don E (Orgs) Christian Spirituality Post-Reformation and Modern New York Crossroad 1989 p 294-323

58 PACKER J I Entre os gigantes de Deus uma visatildeo puritana da vida cristatilde Satildeo Joseacute dos Campos Fiel 1996

59 RYKEN Leland Santos no mundo os puritanos como realmente eram 2 ed Satildeo Joseacute dos Campos Fiel 2013

60 PACKER Entre os gigantes de Deus p 6861 Ibid p 69-84

59

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

muito da suposta devoccedilatildeo em tempos recentesrdquo diz Packer O contexto e a causa da comunhatildeo ldquoeacute a eficaz comunhatildeo de Deus conosco transmitindo-nos vida a primeira coisa sempre deve ser concebida como uma consequecircncia ou mesmo um aspecto da uacuteltimardquo62

Embora por vezes seja alvo de caricatura ou criacutetica63 a espiritualidade dos puritanos eacute uma das grandes contribuiccedilotildees desse movimento agrave espiritualidade de nossos dias Haacute temas interessantiacutessimos como a questatildeo da consciecircncia e a seguranccedila da salvaccedilatildeo (casuiacutestica de William Perkins e William Ames)64 a guarda do dia do Senhor65 e a visatildeo que tinham de culto66 Todavia essa piedade puritana seraacute ilustrada apenas com o conceito que possuiacuteam da meditaccedilatildeo Joel Beeke fala sobre a negligenciada praacutetica da meditaccedilatildeo ressaltando diferentes temas e propoacutesitos meditar sobre Cristo para ter nosso coraccedilatildeo inflamado pelo seu amor meditar no pecado para odiaacute-lo meditar nas verdades de Deus para ser transformado por elas67 e meditar para alargar nossa feacute aumentar santas afeiccedilotildees e fomentar arrependimento e reforma de vida68 Os puritanos falavam de meditaccedilotildees ocasionais (como ser levado a meditar em Deus por causa de algo belo na natureza) e meditaccedilotildees deliberadas habituais a ocasional era alvo de cuidados para natildeo se tornar supersticiosa69 e a meditaccedilatildeo ordinaacuteria sobre a Palavra de Deus era cuidadosamente dissecada para que fosse uma praacutetica constante70 O puritano Thomas Brooks dizia que a meditaccedilatildeo eacute o estocircmago que digere as verdades espirituais o cristatildeo mais forte natildeo eacute o que lecirc mais mas o que medita mais71 Richard Baxter dizia que alguns fieacuteis tecircm anorexia espiritual (natildeo tem apetite por verdades biacuteblicas e nem as digerem) outros tem bulimia espiritual (tem apetite mas natildeo a digerem)72 Que aplicaccedilatildeo adequada para tempos em que algumas pessoas escolhem ouvir uma ldquomaratonardquo de sermotildees na web mas que natildeo sabem digerir

62 Ibid p 221 Packer termina esse capiacutetulo fazendo trecircs contrastes entre a espiritualidade de Owen e a atual (p 233-236) Para um panorama mais abrangente da teologia praacutetica de Owen ver BARRETT Matthew e HAYKIN Michael A G Owen on the Christian Life Living for the Glory of God in Christ Wheaton Crossway 2015

63 James Houston critica a espiritualidade puritana por natildeo ter a vida contemplativa do catolicismo romano a qual em sua opiniatildeo a teria enriquecido HOUSTON ldquoEspiritualidaderdquo p 66

64 Cf PACKER Entre os gigantes de Deus p 115-132 BEEKE Espiritualidade reformada p 229-261 381-402

65 PACKER Entre os gigantes de Deus p 253-26466 Ibid p 265-278 RYKEN Santos no mundo p 193-23267 BEEKE Espiritualidade reformada p 112-113 68 Ibid p 13769 Ibid p 11470 Ibid p 124-13071 Ibid p 13972 Ibid p 135

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

60

13 Nadere ReformatieUm movimento menos conhecido nosso eacute a versatildeo holandesa do purita-

nismo inglecircs a Nadere Reformatie (literalmente ldquoreforma posteriorrdquo ldquorefor-ma que foi mais adianterdquo) um movimento dos seacuteculos 17 e iniacutecio do 18 que demonstrou grande zelo pela piedade aliado agrave teologia reformada Joel Beeke afirma que o crescimento da membresia das igrejas reformadas na Holanda no seacuteculo 17 gerando grande nuacutemero de membros nominais somado agrave influecircncia do puritanismo inglecircs e outras fontes de piedade fez surgir uma geraccedilatildeo de acadecircmicos e pregadores que enfatizaram uma ldquoteologia experimentalrdquo des-tacando a primazia de uma resposta interior a Deus73 A Nadere Reformatie foi um movimento holandecircs que primou por uma ldquorevitalizaccedilatildeo interna da doutrina reformada e uma santificaccedilatildeo radical da vidardquo e junto com o purita-nismo anglo-saxocircnico e o pietismo alematildeo estava em busca da piedade74 O movimento holandecircs com representantes como Willem Teellinck Gisbertus Voetius Johannes Hoornbeeck Wilhelmus agrave Brakel e Herman Witsius entendia que o processo de reforma precisava avanccedilar para acircmbitos pessoais

Jaacute foi mencionado neste artigo como os reformados holandeses procu-raram articular uma espiritualidade catoacutelica Willem Teellinck (1579-1629) considerado o ldquopairdquo da Nadere Reformatie mostrou aspectos de espirituali-dade ao final de sua vida que satildeo semelhantes aos escritos de Bernardo de Claraval75 Sua apropriaccedilatildeo de Bernardo provavelmente via Tomaacutes agrave Kempis eacute um testemunho de sua catolicidade76 Seu principal livro sobre a santifica-ccedilatildeo The Path of True Godliness eacute um manual da vida cristatilde todo dividido em triacuteades no qual ele apresenta os desafios do reino das trevas para a vida espiritual e como o reino da graccedila promove piedade Ele fala no livro sobre os meios de atingir os verdadeiros propoacutesitos da vida (ordenanccedilas obras e promessas divinas) e sobre as motivaccedilotildees para a praacutetica da piedade77 Wilhel-mus agrave Brakel eacute outro que conecta interesses sistemaacuteticos com aplicabilidade pastoral em sua principal obra O Serviccedilo Razoaacutevel do Cristatildeo Brakel diz que os miacutesticos natildeo se apoiam na obra objetiva de Cristo para a sua espiritualidade (Cristo como o nosso resgate como a nossa justiccedila) todo verdadeiro piedoso soacute pode aproximar-se de Deus por meio de Cristo Todavia alguns miacutesticos (Quakers Quietistas Franccedilois de Feacutenelon) falam de negar a si mesmo amar

73 BEEKE Joel R ldquoThe Dutch Second Reformation (Nadere Reformatie)rdquo Calvin Theological Journal vol 28 n 2 (nov 1993) p 308-320

74 DE REUVER Sweet Communion p 1675 BEEKE Espiritualidade reformada p 411-41276 DE REUVER Sweet Communion p 16077 BEEKE Espiritualidade reformada p 421-425 Beeke tenta defendecirc-lo de certos legalismos

(p 425-427) mas parece que o decliacutenio religioso e moral que possivelmente marcava a Holanda de seus dias natildeo legitima tais legalismos

61

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

contemplar a Deus tudo sem fazer uso de Cristo78 Brakel diz que Deus soacute pode ser ldquoobjetordquo de nossa contemplaccedilatildeo se for Deus em Cristo pois toda a sua espiritualidade estaacute fundada em Cristo Esse fundamento ldquoprotege o seu misticismo de espiritualismordquo79

14 Jonathan EdwardsJonathan Edwards eacute conhecido por sua participaccedilatildeo em avivamentos e

um pouco de sua piedade jaacute foi retratada em livros traduzidos para o nosso idioma80 Dentre os escritos do proacuteprio Edwards poucos contribuem para uma visatildeo da espiritualidade reformada do seacuteculo 18 como A Vida de David Brainerd Contudo em geral o puacuteblico brasileiro desconhece os seus escritos pessoais (Diaacuterio Narrativa Pessoal) que retratam muitas experiecircncias de devoccedilatildeo a Deus George S Claghorn descreve seus escritos pessoais como um vislumbre autobiograacutefico da religiosidade de Edwards que cobrem

desde os seus primeiros embates espirituais e autodisciplina nas ldquoResoluccedilotildeesrdquo e no ldquoDiaacuteriordquo ateacute sua busca por uma companheira piedosa em ldquoSobre Sarah Pierrepontrdquo [que viria a ser sua esposa] chegando ao resumo retrospectivo de suas experiecircncias religiosas avivalistas em sua ldquoNarrativa Pessoalrdquo81

Nesta uacuteltima obra Edwards narra suas constantes caminhadas pela natureza para um tempo de contemplaccedilatildeo e de oraccedilatildeo no qual suas afeiccedilotildees eram mo-vidas a experimentar a doccedilura da majestade e da graccedila de Deus que por vezes o levavam a chorar em alta voz82

Charles Hambrick-Stowe pontua de forma perspicaz que nessa meditaccedilatildeo sobre a natureza um haacutebito que adquirira desde a sua juventude sempre tinha a Biacuteblia aberta diante de si pois Edwards negava que pudesse haver qualquer conhecimento de Deus agrave parte da revelaccedilatildeo biacuteblica83 Para Edwards a fonte da graccedila natildeo deveria ser buscada dentro de sua alma pois na proacutepria Narrati-va Pessoal ele afirma que suas mais doces alegrias natildeo surgiram de um bom estado de sua alma mas de uma visatildeo das coisas gloriosas do evangelho84

78 BRAKEL The Christianrsquos Reasonable Service vol 2 p 64279 DE REUVER Sweet Communion p 25880 Cf PIPER John A paixatildeo de Deus por sua gloacuteria vivendo a visatildeo de Jonathan Edwards Satildeo

Paulo Cultura Cristatilde 2008 LAWSON Steven J As firmes resoluccedilotildees de Jonathan Edwards Satildeo Joseacute dos Campos Fiel 2010

81 CLAGHORN George S (Org) The Works of Jonathan Edwards Online vol 16 p 74182 Cf Ibid p 790-80483 HAMBRICK-STOWE Charles E ldquoSpirituality and Devotionrdquo In SWEENEY Douglas A e

STIEVERMANN Jan (Orgs) The Oxford Handbook of Jonathan Edwards Oxford Oxford University Press 2021 p 357

84 Ibid p 355

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

62

O foco de suas meditaccedilotildees enquanto perambulava na natureza natildeo era Deus o Criador muito menos as aacutervores ou as nuvens mas a pessoa de Jesus Cristo85 Essa natureza bibliocecircntrica da piedade de Edwards era o ponto de conexatildeo entre sua vida devocional e sua vida intelectual entre seus escritos pessoais e seu ministeacuterio puacuteblico de escrita e pregaccedilatildeo fazendo com que sua piedade pessoal transbordasse para o seu ministeacuterio eclesiaacutestico86

Semelhante desconhecimento ocorre com o aspecto esteacutetico de sua religio-sidade Dentre as palavras mais usadas no seu corpo literaacuterio estatildeo ldquoexcelecircnciardquo e especialmente ldquobelezardquo a ponto de Dane Ortlund considerar a ldquobelezardquo como o fulcro da teologia edwardsiana87 A filosofia natural de Edwards estaacute repleta de alusotildees aos sentidos espirituais de elementos da natureza e enxergar a revelaccedilatildeo geral repleta de ldquosinaisrdquo do divino eacute a base de sua constante tipologia

2 DISTINTIVOS TEOLOacuteGICOS DE UMA ESPIRITUALIDADE REFORMADA

Ao apresentar caracteriacutesticas peculiares da espiritualidade reformada muitas outras ecircnfases ficaratildeo de fora Natildeo seratildeo trabalhadas a oraccedilatildeo ou a im-portacircncia dos cacircnticos e ateacute mesmo a leitura devocional das Escrituras ficaraacute de fora de um escrutiacutenio adequado A razatildeo de omitir essas e outras praacuteticas eacute para focalizar aspectos que satildeo mais proacuteprios da tradiccedilatildeo reformada e que natildeo aparecem tatildeo comumente em outras tradiccedilotildees cristatildes nem mesmo as evangeacuteli-cas Todavia como os reformados natildeo satildeo os uacutenicos a ensinar tais realidades trataremos de cada item abaixo em termos de ldquoecircnfasesrdquo pois os reformados as destacam de tal forma que se tornaram distintivas

21 Uma ecircnfase na graccedila gratuita e capacitadoraEm oposiccedilatildeo ao romanismo a espiritualidade reformada daacute ecircnfase agrave gra-

ccedila gratuita e capacitadora A maioria das propostas romanas de espiritualidade seguem uma teologia semipelagiana na qual a iniciativa eacute do homem em busca da graccedila (seguindo o famoso ditado medieval facientibus quod in se est Deus non denegat gratiam cuja versatildeo popular eacute ldquofaccedila a sua parte e eu o ajudareirdquo) e ateacute aqueles que natildeo satildeo semipelagianos falam em conquistar ou ldquoalcanccedilar uma graccedilardquo Em contraste com isso os reformados sempre enfatizaram o aspecto to-talmente gratuito da graccedila isto eacute ela natildeo eacute conquistada por nosso esforccedilo nem mesmo quando somos impulsionados pela graccedila interna ldquoEnquanto o monge ascende ao Deus de majestade atraveacutes da contemplaccedilatildeo especulaccedilatildeo e meacuterito no evangelho Deus desce a noacutes em humildade em nossa carne para nos resgatarrdquo88

85 Ibid p 35786 Ibid p 354 35687 ORTLUND Dane C Jonathan Edwards e a vida cristatilde Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2017 p 21-3688 HORTON Michael S ldquoThe Reformation amp Spiritual Formationrdquo Modern Reformation vol 22

n 4 (jul-ago 2013) p 29

63

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

Nelson Kloosterman destaca que certas definiccedilotildees catoacutelicas apresentam uma visatildeo teleoloacutegica de espiritualidade na qual ela se apresenta como o cami-nho para a santidade e uniatildeo com Deus Em contrapartida a visatildeo protestante e reformada de piedade procede da justificaccedilatildeo forense da justiccedila imputada de Cristo Sendo assim a ldquosantidade natildeo eacute simplesmente o objetivo mas prima-riamente o fundamento ou solo da verdadeira espiritualidade cristatilderdquo89 Esta eacute a visatildeo biacuteblica de santificaccedilatildeo apresentada nas epiacutestolas paulinas Indicativos fundamentam e motivam os imperativos nas epiacutestolas (Rm 121 Ef 41 Cl 31-11) Os indicativos nos definem enquanto os imperativos nos convocam Isso significa que a obra redentora do Deus trino eacute descrita primeiro para nos informar do que foi feito por noacutes a fim de buscarmos nos tornar aquilo que jaacute somos em Cristo

Essa graccedila natildeo soacute eacute o fundamento de nossa peregrinaccedilatildeo santificadora mas eacute o impulso dessa santificaccedilatildeo A tradiccedilatildeo reformada recente tem procurado resgatar o entendimento deixado pela Reforma de uma santificaccedilatildeo impulsio-nada pelo evangelho90 A obra de Cristo natildeo eacute necessaacuteria apenas para o iniacutecio da vida cristatilde (conversatildeo justificaccedilatildeo adoccedilatildeo) como se depois da conversatildeo entatildeo dependesse de nossa resposta ao amor de Cristo (santificaccedilatildeo) Esse tipo de dicotomia faz com que caiamos num cristianismo moralista A espiritualidade reformada em contrapartida destaca que a proacutepria forccedila motora da santifica-ccedilatildeo vem da obra consumada de Cristo (Rm 61-4 Tt 214 1 Pe 114-19) A Confissatildeo de Feacute de Westminster afirma que somos santificados pessoalmente ldquopela virtude da morte e ressurreiccedilatildeo de Cristordquo (131) Portanto a obra de Cristo natildeo eacute apenas o que acontece primeiro natildeo eacute apenas o que nos estimula agrave obediecircncia ela eacute a proacutepria habilitadora de nosso esforccedilo santificador

Ateacute a obra do Espiacuterito no iniacutecio de nossa vida cristatilde ndash conversatildeo justi-ficaccedilatildeo adoccedilatildeo ndash serve de motivaccedilatildeo para uma busca de santidade Michael Horton chama a atenccedilatildeo para a linguagem paulina em Romanos 6 a fim de dizer que natildeo temos que entregar nosso corpo agrave crucificaccedilatildeo para que o peca-do seja morto mas o velho homem jaacute ldquofoi crucificado com ele para que o corpo do pecado seja destruiacutedordquo (Rm 66) Ele natildeo ordena que natildeo deixemos o pecado nos dominar mas afirma que ldquoo pecado natildeo teraacute domiacutenio sobre voacutesrdquo (Rm 614) Portanto algo jaacute aconteceu conosco e devemos buscar a santidade (o ldquoainda natildeordquo de nossa redenccedilatildeo) calcados na obra jaacute realizada pelo Espiacuterito91

89 KLOOSTERMAN Nelson D ldquoStudying Spirituality in a Reformed Seminary A Calvinist Modelrdquo Mid-America Journal of Theology vol 6 n 2 (1990) p 127

90 Ver esse texto de Jerry Bridges httpswwwmonergismcomgospel-driven-sanctification Acesso em 4 jun 2021

91 HORTON Michael S ldquoThe Indicative and The Imperative A Reformed View of Sanctificationrdquo Disponiacutevel em httpswwwmonergismcomindicative-and-imperative-reformation-view-sanctification Acesso em 4 jun 2021

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

64

22 Uma ecircnfase nos meios de graccedila e na comunidade santificadora

Em oposiccedilatildeo ao evangelicalismo a espiritualidade reformada coloca uma ecircnfase nos meios de graccedila e na comunidade santificadora Enquanto o evangelicalismo eacute conhecido por enfatizar uma espiritualidade individual isto eacute a importacircncia da devoccedilatildeo privada (o momento a soacutes com Deus) a feacute refor-mada natildeo a negligencia mas destaca que grande parte de nossa santificaccedilatildeo acontece no acircmbito puacuteblico onde haacute troca de dons (Ef 411-16) Os meios de graccedila conforme articulados no culto puacuteblico satildeo chave para o crescimento espiritual Foi nos documentos de Westminster que se instituiu a importacircncia do culto domeacutestico de maneira formal como exemplo de zelo pela comunidade menor enquanto formadora de nossa devoccedilatildeo Antes do que conceitos vazios de subjetividade a feacute reformada defende uma espiritualidade da Palavra que se consegue mediante a pregaccedilatildeo puacuteblica a meditaccedilatildeo e o estudo pessoal92 Por isso Wilhelmus agrave Brakel enfatizava o amor pela verdade (Palavra) e a estima pela igreja93

Enquanto os evangeacutelicos tendem a enxergar a igreja como uma associaccedilatildeo voluntaacuteria de pessoas que alegam terem passado por uma mesma experiecircncia religiosa a eclesiologia reformada conforme expressa em suas confissotildees reforccedila a indispensabilidade da pregaccedilatildeo para gerar e nutrir vida cristatilde a necessidade dos meios de graccedila e a dos ofiacutecios autorizados por Cristo para proteger e nutrir a piedade cristatilde94 Calvino soube se apropriar da eclesiologia catoacutelica e chamar a igreja de ldquomatildee dos fieacuteisrdquo porque ele sabia que a igreja era o lugar ordinaacuterio no qual cristatildeos seriam gerados nutridos e protegidos95 Franccedilois Wendel descreve a eclesiologia de Calvino afirmando que a Igreja eacute necessaacuteria para a nossa ldquosantificaccedilatildeo coletivardquo e para promover o ldquoconsenso da feacuterdquo mediante a pregaccedilatildeo e o ensino Ainda que Deus esteja livre para usar outros meios ordinaacuterios aleacutem da pregaccedilatildeo da Palavra e dos sacramentos como ele os instituiu noacutes natildeo estamos livres desses meios de santificaccedilatildeo96

Michael Horton afirma que enquanto a piedade de muitos evangeacutelicos eacute quase exclusivamente privada e orientada por meacutetodos a piedade da Reforma eacute mais comunitaacuteria e pactual Enquanto os evangeacutelicos focalizam os meios de compromissos que os conduzem agrave graccedila os reformados pensam em meios de graccedila que produzem compromisso Ao inveacutes de sair do mundo em solidatildeo

92 OLD ldquoWhat is Reformed Spiritualityrdquo p 6393 Cf BRAKEL The Christianrsquos Reasonable Service vol 2 p 644-65394 KLOOSTERMAN ldquoStudying Spirituality in a Reformed Seminaryrdquo p 13295 CALVINO Institutas IV14 Cf Confissatildeo de Feacute de Westminster 25296 WENDEL Franccedilois Calvin Origins and Development of His Religious Thought Grand Rapids

Baker 2002 p 292-293 Cf CALVINO Institutas IV15

65

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

os reformados pensam mais numa piedade que nos leva para o mundo pois a piedade da Reforma eacute mais extrospectiva do que introspectiva97 Horton con-testa a espiritualidade evangeacutelica que eacute prioritariamente individual e privada onde o que salva eacute o que o indiviacuteduo faz com a Palavra natildeo o que a Palavra faz com o indiviacuteduo onde o batismo eacute o compromisso do fiel antes do que de Deus onde a ceia simplesmente oferece uma oportunidade para o indiviacuteduo refletir sobre a morte de Cristo e renovar o seu compromisso mas natildeo eacute a daacutediva de Cristo com todos os seus benefiacutecios98 Diante desse cenaacuterio Horton mostra no restante do artigo como a espiritualidade reformada eacute marcada pela vida comunitaacuteria com os meios de graccedila

23 Uma ecircnfase na uniatildeo com Cristo conjugando becircnccedilatildeos objetivas e subjetivas

Na espiritualidade reformada o objetivo e o subjetivo o externo e o interno satildeo ligados inseparavelmente por essa realidade Cristo eacute a fonte da santidade do cristatildeo Isso significa que a santidade dele passa a ser do fiel numa uniatildeo miacutestica que se tem com o Salvador A uniatildeo eacute comumente chamada de ldquomiacutesticardquo porque natildeo tem paralelo na realidade transcende todas as analogias terrenas mesmo as que satildeo utilizadas na Escritura (casamento edifiacutecio e fun-damento videira e ramos corpo e cabeccedila) Todavia a espiritualidade que dela procede natildeo eacute miacutestica no sentido de inexplicaacutevel irracional O ministeacuterio de Jesus sempre foi marcado por ensino por explicaccedilatildeo de vida cristatilde Jesus era um mestre por excelecircncia

Os reformados percebem que haacute aspecto objetivo da uniatildeo que acontece federativamente na eternidade e na histoacuteria e que garante as becircnccedilatildeos recebidas pelos cristatildeos o qual eacute distinto da uniatildeo miacutestica que se refere agrave experiecircncia subjetiva de sermos unidos a Cristo pelo Espiacuterito99 Anthony Hoekema diz que a doutrina da uniatildeo miacutestica ajuda a contrabalanccedilar o aspecto legal com o aspecto vital da redenccedilatildeo o Cristo por noacutes com o Cristo em noacutes100 Jaacute foi mencionada neste artigo a importacircncia da doutrina da uniatildeo com Cristo na teologia de Joatildeo Calvino algo atestado por vaacuterios escritos101 Todavia John Fesko vai aleacutem de

97 HORTON ldquoThe Reformation amp Spiritual Formationrdquo p 2898 Ibid p 3199 A A Hodge tambeacutem distingue a uniatildeo com Cristo em seu aspecto ldquofederalrdquo e em seu aspecto

ldquovital e espiritualrdquo HODGE Archibald A Outlines of Theology New York Hodder amp Stoughton 1878 p 482

100 HOEKEMA Anthony A Saved by Grace Grand Rapids Baker 1986 p 66-67 101 Como satildeo muitos os escritos que exploram Calvino acerca de uniatildeo com Cristo citaremos ape-

nas duas fontes TAMBURELLO Dennis E Union with Christ John Calvin and the Mysticism of St Bernard Louisville Westminster John Knox 1994 JOHNSON Marcus ldquoLuther and Calvin on Union with Christrdquo Fides et Historia 39 n 2 (VeratildeoOutono 2007) p 59-77

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

66

Calvino ao fazer um apanhado histoacuterico dos contornos da uniatildeo com Cristo que une justificaccedilatildeo e santificaccedilatildeo nos escritos de reformados como Henrique Bullinger Pedro Maacutertir Vermigli Jerocircnimo Zanchi William Perkins John Owen Richard Baxter Francisco Turretino e Herman Witsius102

Podemos resumir a uniatildeo em trecircs caracteriacutesticas com implicaccedilotildees para a nossa espiritualidade Em primeiro lugar eacute uma uniatildeo mediadora da uniatildeo com o Deus trino103 Como Cristo eacute o nosso mediador no relacionamento pactual com Deus por ela recebemos todos os benefiacutecios do pacto da graccedila de Deus ser o nosso Deus e noacutes sermos o seu povo tanto em sermos reconciliados com ele por obra do Deus trino como de conformidade com ele tornando-nos participantes da natureza divina agrave medida que somos transformados agrave sua ima-gem (2 Pe 13-4) A vitoacuteria de Cristo concedeu-nos o Espiacuterito o qual efetiva a nossa uniatildeo com Cristo Jesus disse que seriacuteamos habitados pelo Pai pelo Filho e pelo Espiacuterito (Jo 1416-20 23) Em segundo lugar eacute uma uniatildeo vital Somos ligados de forma orgacircnica a Cristo (analogias do corpo e da videira) de tal forma que a vida dele nos eacute comunicada Isto eacute aleacutem de Cristo ser o nosso representante ele tambeacutem eacute ldquoformadordquo em noacutes (Gl 419) nascemos de novo experimentamos uma vida de sofrimento humilhaccedilatildeo e enfim exaltaccedilatildeo tudo segundo a natureza humana de Jesus104 Somos tornados participantes de seu triunfo (Cl 220 31) Em terceiro lugar eacute uma uniatildeo reciacuteproca Se Cristo primeiramente nos une a ele por obra do Espiacuterito na regeneraccedilatildeo o crente responde em feacute unindo-se a Cristo e recebendo todos os benefiacutecios da sua vida (Jo 154-5 Gl 220 Ef 317)

24 Outras ecircnfases reformadasHaacute vaacuterios outros distintivos da tradiccedilatildeo reformada que natildeo satildeo tatildeo evi-

dentes em outras tradiccedilotildees da feacute cristatilde Em primeiro lugar a observacircncia do Dia do Senhor funciona como antecipaccedilatildeo da gloacuteria por vir Enquanto muitas discussotildees em torno desse assunto tecircm se detido em minuacutecias praacuteticas perde--se o propoacutesito de resgatar esse dia como deleitoso para a alma Em segundo lugar as obras de misericoacuterdia satildeo parte da espiritualidade reformada Inclusive essa eacute a razatildeo pela qual essa deveria ser uma das atividades do dia do Senhor como o proacuteprio Jesus o fez Em terceiro lugar a piedade reformada sempre enxergou a lei em um contexto de graccedila Enquanto Lutero enxergava a lei

102 Cf FESKO J V Beyond Calvin Union with Christ and Justification in Early Modern Reformed Theology (1517-1700) Gottingen Vandenhoeck amp Ruprecht 2012

103 A A Hodge escreve ldquoEssa uniatildeo eacute entre o cristatildeo e a pessoa do Deus-homem em seu ofiacutecio como Mediador Seu oacutergatildeo imediato eacute o Espiacuterito Santo que habita em noacutes e atraveacutes dele noacutes somos virtualmente unidos e comungamos com toda a Divindade sendo que ele eacute o Espiacuterito do Pai assim como do Filhordquo HODGE Outlines of Theology p 484

104 BERKHOF Louis Teologia sistemaacutetica Campinas Luz Para o Caminho 1990 p 452-453

67

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

primordialmente como uma antiacutetese ao evangelho Calvino iraacute observar que o uso pedagoacutegico da lei de ressaltar o pecado eacute ldquoacidentalrdquo (linguagem aristoteacute-lica para afirmar que natildeo eacute essencial) pois seu propoacutesito principal eacute servir de norma de conduta que o Deus benevolente nos deixou Em contraste com os legalismos catoacutelico-romanos e ateacute evangeacutelicos os puritanos conseguiram ver a lei de forma deleitosa no contexto do pacto da graccedila105

Em quarto lugar os reformados natildeo fazem dicotomia entre vida contem-plativa e vida ativa (Tomaacutes de Aquino) pois a cosmovisatildeo reformada santifica o trabalho com os conceitos de vocaccedilatildeo e mordomia Kloosterman destaca como o conceito de vocaccedilatildeo na Reforma permitiu que toda a criaccedilatildeo fosse usufruiacuteda e empregada sob a contiacutenua norma da Palavra de Deus106 Enquanto os luteranos introduziram o elemento de vocaccedilatildeo de forma inovadora foram os reformados que ampliaram o elemento holiacutestico de vida cristatilde com a aplica-ccedilatildeo da cosmovisatildeo Por isso Kloosterman contrasta o misticismo catoacutelico e ateacute a piedade evangeacutelica como muito voltada para o pecado orientada para dentro ou para o futuro e apresenta a espiritualidade reformada afirmando a vida em relacionamentos criacionais107 Isto eacute existe espiritualidade em obediecircncia ao triacuteplice mandato que nos foi dado na criaccedilatildeo mandato espi-ritual (relacionamento com Deus) mandato social (relacionamento com o proacuteximo) e mandato cultural (relacionamento com o restante da criaccedilatildeo) Tal integralidade que envolve os trecircs mandatos estaacute disponiacutevel a todos os fieacuteis e natildeo somente aos monges natildeo haacute espiritualidade especiacutefica do ldquoclerordquo como asseverava a doutrina romana

Estes satildeo apenas alguns raacutepidos traccedilos de aspectos ricos e com vasta literatura na histoacuteria do movimento reformado Tais distintivos servem apenas para ressaltar que existe uma espiritualidade proacutepria da teologia reformada e condizente com o seu legado doutrinaacuterio

CONCLUSAtildeO ldquoA IMPORTAcircNCIA DE RESGATAR UMA ESPIRITUALIDADE DA TRADICcedilAtildeO REFORMADArdquoAo concluir esse panorama de personagens e distintivos da espiritua-

lidade reformada especialmente em contraste com outras versotildees cristatildes de espiritualidade fica evidente que a teologia molda a piedade A espiritualidade natildeo acontece num vaacutecuo teoloacutegico Algueacutem pode natildeo estar ciente da teologia que alimenta sua espiritualidade mas como disse McGrath acertadamente ldquoA teologia tem profundo impacto sobre a espiritualidaderdquo108 Sendo assim eacute

105 Cf KEVAN Ernest The Grace of Law A Study of Puritan Theology London Carey Kingsgate 1965

106 KLOOSTERMAN ldquoStudying Spirituality in a Reformed Seminaryrdquo p 129107 Ibid p 130108 MCGRATH Uma introduccedilatildeo agrave espiritualidade cristatilde p 29

HEBER CARLOS DE CAMPOS JUacuteNIOR UM ENSAIO INTRODUTOacuteRIO SOBRE ESPIRITUALIDADE REFORMADA

68

necessaacuterio que os reformados sejam mais conscientizados das implicaccedilotildees que a sua teologia traz para a vida cristatilde Eis a razatildeo de elaborarmos este breve histoacuterico da teologia reformada de espiritualidade Afinal piedade com teologia defeituosa eacute enganosa e sem proveito como Paulo ensinou aos colossenses (Cl 216-23) Portanto eacute necessaacuterio que os reformados se aprofundem no conhecimento dessa histoacuteria e como ela se adequa a uma praacutetica condizente

Enquanto os criacuteticos tendem a julgar que a teologia reformada eacute prio-ritariamente cognitiva e teoacuterica os reformados tecircm historicamente exaltado o aspecto afetivo e praacutetico da teologia O grande acadecircmico reformado do seacuteculo 17 Francisco Turretino explica que a despeito de seu elemento teoacuteri-co (contemplaccedilatildeo do Deus revelado conhecimento da verdade) a teologia eacute mormente praacutetica pois todo o seu conhecimento (crer) deve redundar em adoraccedilatildeo e obediecircncia (observar)109 Na filosofia reformada todo coraccedilatildeo eacute por natureza religioso e por isso produz algum tipo de devoccedilatildeo ou espiri-tualidade Todavia nem toda espiritualidade eacute virtuosa porque nem toda feacute eacute saudaacutevel Por exemplo uma vida de oraccedilatildeo para encher nosso ministeacuterio de poder perde de vista que a sauacutede de uma vida de oraccedilatildeo estaacute em nos esvaziar-mos de noacutes mesmos isto eacute a oraccedilatildeo natildeo busca poder para si mas expressa dependecircncia e fraqueza para que o poder de Deus opere em noacutes Portanto teologia molda espiritualidade

Talvez o leitor se pergunte ldquoOnde eacute que o estudo da espiritualidade de-veria se encaixar numa grade de formaccedilatildeo teoloacutegicardquo Kloosterman responde na eacutetica E ele fundamenta essa resposta dizendo que se alguns evangeacutelicos tendem a olhar para a espiritualidade como ldquoerupccedilotildees espontacircneasrdquo antes que ldquoexerciacutecios padronizadosrdquo eles seratildeo levados a estudar a piedade sob a nor-ma da Palavra de Deus Analisar tais exerciacutecios espirituais natildeo tira o ldquopoderrdquo que lhes eacute atribuiacutedo mas ajuda-nos a averiguar praacuteticas que satildeo biblicamente certas ou erradas Por isso a eacutetica constitui um bom espaccedilo para o ensino da espiritualidade110

Se essa sugestatildeo parecer estranha ao leitor pode ser que a estranheza se explique pela ignoracircncia da bela tradiccedilatildeo eacutetica reformada que ensina acerca de vida cristatilde mediante a exposiccedilatildeo dos Dez Mandamentos Esse natildeo soacute eacute o ensino da Escritura (Rm 138-10 Gl 513-15) mas tem amplo respaldo nos catecismos da tradiccedilatildeo reformada Poreacutem introduzir essa mateacuteria seria conteuacutedo para outro artigo

109 TURRETINI Franccedilois Compendio de teologia apologeacutetica Trad Valter Graciano Martins Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011 vol 1 p 61-65 (Ivii)

110 KLOOSTERMAN ldquoStudying Spirituality in a Reformed Seminaryrdquo p 135-136

69

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 47-69

ABSTRACTThis article presents Reformed Spirituality as a field still unknown in

popular and academic circles a part of the tradition that needs to be redis-covered The concept that this is not a strong area among the Reformed plus the elusive standards of devotional practices have led many to seek alternative spiritualities Wanting to rescue the devotional and pious aspect of the Reformed tradition this article introduces the practical theology of figures such as John Calvin the English Puritans the Dutch Reformed movement called Nadere Reformatie and Jonathan Edwards besides some contemporary representa-tives of Reformed piety Later on the article presents a few distinctives of such spirituality and concludes showing the need to rescue this story for the benefit of the Reformed movement in Brazil

KEYWORDSSpirituality Reformed Theology John Calvin Puritans Nadere Refor-

matie Jonathan Edwards

71

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO ndash UMA ANAacuteLISE DA QUESTAtildeO JURIacuteDICA NO CONTEXTO DA GRANDE COMISSAtildeO (MT 2818-20)

Paulo Eduardo Vieira da Veiga

RESUMOO contexto juriacutedico no qual foi dada a Grande Comissatildeo envolve os quatro

grandes temas das Escrituras criaccedilatildeo queda redenccedilatildeo e consumaccedilatildeo Quando colocado no Eacuteden Adatildeo recebeu a missatildeo de governar tudo o que Deus havia criado Ao pecar de algum modo essa autoridade foi usurpada por Satanaacutes Quando Cristo morreu e ressuscitou cumpriu assim o seu propoacutesito redentor e como o uacuteltimo Adatildeo recuperou e ampliou juridicamente a autoridade perdida pelo primeiro Dessa forma a Grande Comissatildeo em Mateus 2818-20 comeccedila natildeo no versiacuteculo 19 mas jaacute no versiacuteculo 18 quando o Senhor ressurreto com base nesta mesma autoridade ordena a seus disciacutepulos irem pelo mundo e fa-zerem disciacutepulos de todas as naccedilotildees Portanto o presente artigo visa analisar a palavra ἐξουσία (autoridade) mencionada no versiacuteculo 18 no contexto da teologia biacuteblica do Antigo e do Novo Testamentos refletir sobre a autorida-de perdida por Adatildeo e reconquistada por Cristo e avaliar como o triunfo e a exaltaccedilatildeo de Cristo satildeo a garantia de sucesso da missatildeo datildeo sentido ao ldquoiderdquo revestem a igreja com autoridade e impulsionam os disciacutepulos no cumprimento da Grande Comissatildeo apontando para o escaton1

O autor eacute bacharel em teologia pelo Seminaacuterio Presbiteriano do Sul e mestrando em Estudos Biacuteblico-Hermenecircuticos do Novo Testamento no Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper

1 Este artigo foi escrito inicialmente para atender agraves exigecircncias da disciplina ldquoPrincipados e Potestadesrdquo ministrada em 2020 pelo Prof Dr Leandro A de Lima no CPAJ como parte do curso de Mestrado em Estudos Biacuteblico-Hermenecircuticos Vaacuterias das ideias expostas no artigo especialmente a questatildeo juriacutedica da autoridade conquistada por Cristo refletem o ensino do referido professor ministrado durante a disciplina e tambeacutem em seus escritos em especial sua tese de doutorado de 2012 (LIMA

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

72

PALAVRAS-CHAVETeologia biacuteblica Novo Testamento Grande Comissatildeo Reino Evangelho

Autoridade Batalha juriacutedica

INTRODUCcedilAtildeOOs debates recentes entre os exegetas sobre o entendimento da Grande

Comissatildeo giram em torno do verbo πορευθέντες (ir) Alguns defendem que esse verbo deva ser traduzido como ldquoiderdquo no imperativo outros defendem que seja traduzido como ldquoindordquo no geruacutendio Ambas as anaacutelises exegeacuteticas trazem implicaccedilotildees missioloacutegicas importantes seja a ecircnfase no discipulado local seja nas missotildees transculturais e na plantaccedilatildeo de novas igrejas Eacute certo que tudo isso estaacute incluiacutedo na Grande Comissatildeo

David Hesselgrave ao analisar o texto de Mateus 2818-20 defende que existe um elemento baacutesico que eacute ldquofazei disciacutepulos de todas as naccedilotildeesrdquo Segundo ele a importacircncia do fazer disciacutepulos (μαθητεύσατε) eacute ressaltada pelo fato de este ser o uacutenico imperativo no texto da Grande Comissatildeo Ele ainda destaca que ldquofazei disciacutepulos de todas as naccedilotildeesrdquo requer que se tenha missionaacuterios em todas as naccedilotildees2 O professor Carl Bosma em suas pesquisas sobre as posiccedilotildees exegeacuteticas acerca de Mateus 2818-20 apresenta quatro atitudes em relaccedilatildeo a esses termos (1) forte ecircnfase no particiacutepio traduzido como imperativo (ldquoIderdquo) (2) maior ecircnfase em ldquofazer disciacutepulosrdquo (3) subordinaccedilatildeo plena do ldquoirrdquo ao ldquofazer disciacutepulosrdquo tornando-o quase irrelevante (4) ecircnfase igual nos dois conceitos Bosma defende a quarta posiccedilatildeo enfatizando que o ldquoirrdquo faz parte do mandamento de se fazer disciacutepulos Para ele tanto eacute importante o discipulado local (fazer disciacutepulos e ensinar) quanto as missotildees transculturais (ldquoindo)rdquo3 Jaacute o professor Chun Kwang Chung faz uma anaacutelise da mudanccedila recente na traduccedilatildeo do verbo πορευθέντες como ldquoindordquo em vez de ldquoiderdquo traduccedilatildeo esta que sempre foi adotada por diversas sociedades biacuteblicas Segundo ele traduzir πορευθέντες como ldquoindordquo gera implicaccedilotildees missioloacutegicas fundamentais no entendimento da Grande Comissatildeo pois tal interpretaccedilatildeo eacute defendida pelos proponentes do ministeacuterio de discipulado nas igrejas locais e pelo movimento de igrejas missionais Poreacutem ele defende que os tradutores estavam corretos ao traduzirem o particiacutepio πορευθέντες como imperativo ldquoiderdquo4

Leandro Antocircnio de ldquoApocalipse como literatura um estudo sobre a importacircncia da anaacutelise da arte literaacuteria em apocalipse 12-13rdquo Dissertaccedilatildeo (Doutorado em Letras) Satildeo Paulo Universidade Presbite-riana Mackenzie 2012) e seu livro A Grande Batalha Escatoloacutegica (Satildeo Paulo Editora Agathos 2016)

2 HESSELGRAVE David J A comunicaccedilatildeo transcultural do Evangelho Satildeo Paulo Vida Nova 1994 p 69

3 BOSMA Carl ldquoMissotildees e sintaxe grega em Mateus 2818-20rdquo Fides Reformata XIV-1 2009 p 9

4 CHUNG Chun Kwang ldquoIde ou Indo Igrejas Missionais e o uso do particiacutepio na Grande Comissatildeo de Mateus 2818-20rdquo Fides Reformata XXIV-2 2019 p 51

73

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

Toda essa discussatildeo teoloacutegica eacute saudaacutevel vaacutelida e uacutetil para o entendi-mento da missatildeo da igreja Sem duacutevida eacute preciso considerar esses aspectos Contudo parece-me que ao longo destes debates tem sido deixado de lado o contexto no qual estas palavras foram ditas pelo Senhor Jesus perdendo-se de vista a base a seguranccedila e a motivaccedilatildeo principal para a missatildeo que eacute o triunfo e a exaltaccedilatildeo do Cristo ressurreto que ascendeu aos ceacuteus e que garante sua presenccedila constante com seus disciacutepulos em missatildeo Ele tambeacutem garante que as portas do inferno natildeo prevaleceratildeo contra a sua igreja (Mt 1618) Porque Jesus conquistou todo poder e toda autoridade nos ceacuteus e terra ele tem o direito legal de exercecirc-los sobre todas as coisas Sua morte e ressurreiccedilatildeo deram-lhe o direito legal de restaurar a criaccedilatildeo a qual fora colocada debaixo do cativeiro do pecado e de salvar aqueles por quem ele morreu pois levou sobre si todos os pecados deles tambeacutem num sentido legal Logo focar ape-nas na traduccedilatildeo do verbo πορευθέντες deixa muita coisa de fora pois omite a base da argumentaccedilatildeo racional da Grande Comissatildeo5 Portanto analisar a promessa que impele a Grande Comissatildeo eacute fundamental para o cumprimento dessa tarefa dada agrave igreja

1 TODA A AUTORIDADE (πᾶσα ἐξουσία)A palavra ἐξουσία (autoridade poder) eacute amplamente usada no Novo Tes-

tamento Tendo em vista os evangelhos e o livro de Atos encontramos o termo ἐξουσία nove vezes em Mateus (729 89 96 8 101 2123 24 27 2818) No evangelho de Marcos a palavra tambeacutem aparece nove vezes Jaacute Lucas e Joatildeo a utilizam dezesseis vezes e oito vezes respectivamente6 Analisando a autoridade de Cristo no contexto do livro de Mateus percebemos que Jesus se apresenta como aquele que tem autoridade sobre a terra para perdoar pecados (Mt 96) Eacute dito que as multidotildees se maravilhavam de sua doutrina porque ele as ensinava como quem tem autoridade (Mt 729) e o proacuteprio Jesus ainda afirma que tudo lhe havia sido entregue pelo Pai (Mt 1127) Logo apoacutes ressuscitar Jesus se apresenta aos seus disciacutepulos como algueacutem que tem toda a autoridade nos ceacuteus e na terra (Mt 2818) Curiosamente sempre que Mateus faz uso do termo ἐξουσία (autoridade) ele o faz somente com referecircncia a Jesus Quando se trata de seres humanos a palavra utilizada por ele eacute δύναμις (poder)7 De acordo com Craig Keener ldquoa autoridade de Jesus inclui a autoridade de dizer aos seus subordinados para iremrdquo8 Sua autoridade eacute singular eacute a uacutenica que

5 HORTON Michael A Grande Comissatildeo Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2014 p 276 LEE k VILJOEN F P ldquoThe Ultimate Comission the key for the gospel according to Matthewrdquo

Acta Theologica University of the Free State South Africa vol 30 n 1 (jun 2010) p 64-83 7 LAWRENCE Louise Joy An ethnography of the Gospel of Matthew A critical assessment of

the use of the honour and shame model in New Testament studies Tuumlbingen Mohr Siebeck 2010 p 1178 KEENER Craig S The Gospel of Matthew A Socio-Rhetorical Commentary Grand Rapids

Eerdmans 2009 p 178

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

74

pode ser declarada como autoridade absoluta autoridade da verdade autoridade de Deus9 Eacute com base nessa autoridade que Jesus ordena aos seus disciacutepulos para que vatildeo ao mundo e faccedilam disciacutepulos de todas as naccedilotildees batizem-nos em nome do Pai do Filho e do Espiacuterito Santo e os ensinem a guardar todas as coisas que Jesus havia ordenado aos doze David Bauer ainda destaca que a autoridade de Jesus pode ser vista em seus ensinamentos milagres nas pessoas que respondem a ele em seus tiacutetulos e em sua posiccedilatildeo uacutenica como uma figura divina ou messiacircnica10

Eacute importante observar que Jesus profere essas palavras apoacutes a sua ressur-reiccedilatildeo Assim todas as restriccedilotildees vinculadas agrave sua encarnaccedilatildeo agora natildeo mais estatildeo ligadas agrave sua natureza humana pois ele natildeo eacute mais o homem de dores ferido de Deus e oprimido Agora tendo triunfado sobre o pecado e a morte ele recebe autoridade divina sobre ceacuteus e terra11 Logo a autoridade que foi dada a Cristo refere-se agrave autoridade que ele recebe enquanto Deushomem A palavra ἐξουσία poderia ser traduzida como um estado de controle sobre algo liberdade de escolha o direito de agir ou decidir capacidade de fazer algo poder absoluto legitimidade12 O Novo Testamento emprega duas palavras para se referir a ldquopoderrdquo satildeo os termos ἐξουσία e δύναμις sendo que ἐξουσία eacute um termo mais abrangente do que δύναμις pois se refere tanto agrave posiccedilatildeo quanto agrave funccedilatildeo Logo nada na criaccedilatildeo estaacute fora da autoridade de Cristo o que denota sua autoridade divina13 Eacute desta forma que ele emprega essa palavra no contexto da Grande Comissatildeo Contudo em que sentido Cristo recebe essa autoridade apenas apoacutes a sua morte e ressurreiccedilatildeo Sendo Deus ele jaacute natildeo possuiacutea toda essa autoridade mesmo antes disso

Para tornar isso claro precisamos analisar o aspecto legal desta autori-dade ou seja o direito e o poder que Cristo tem sobre todas as coisas derivado de sua posiccedilatildeo como o segundo Adatildeo como aquele que veio para reverter a Queda O Dr Leandro de Lima ao abordar o tema da primeira vinda de Cris-to a denomina a grande batalha escatoloacutegica na qual a libertaccedilatildeo do povo de Deus estava sendo conquistada visto que era uma batalha juriacutedica ou legal uma batalha por autoridade Assim ele destaca que ldquoa vinda de Cristo foi uma

9 DODD C H The Authority of the Bible London Fontana Books 1960 p 23210 BAUER David R The Structure of Matthewrsquos Gospel A Study in Literary Design Sheffield

Almond 1988 p 115-11711 MORRIS Leon The Gospel according to Matthew Grand Rapids Eerdmans 1992 p 745-74612 LENSKI R C H The Eisenach Gospel Selections An Exegetical-Homiletical Treatment

Columbus The Lutheran Book Concern 1928 p 57713 OSBORNE Grant R The Resurrection Narratives A Redactional Study Grand Rapids Baker

1984 p 90

75

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

declaraccedilatildeo de guerra contra os inimigos [] mas uma guerra por direito por legitimidaderdquo14

11 A autoridade usurpadaEssa guerra por legitimidade teve iniacutecio no Eacuteden Quando Deus colocou

Adatildeo e Eva no jardim e lhes deu a missatildeo de governar tudo o que ele havia criado (Gn 126-27) eles eram na linguagem de Gerard Van Groningen os vice-gerentes de Deus Bruce Waltke comentando Gecircnesis 126-27 destaca que ldquoo texto estaacute dizendo que exercer domiacutenio real sobre a terra como repre-sentante de Deus eacute o propoacutesito baacutesico para o qual Deus criou o homemrdquo15 Van Groningen lanccedila luz sobre a questatildeo

Deus tinha um propoacutesito predeterminado para a humanidade Ela deveria ter um papel superior uma influecircncia dominante e um serviccedilo responsaacutevel Homem e mulher deveriam ser governadores sobre a criaccedilatildeo natural deveriam ser os representantes reais dentro do reino coacutesmico16

Dessa forma o homem foi colocado como mordomo de Deus junto agrave criaccedilatildeo Todas as coisas foram postas sob sua autoridade Ele deveria gover-nar sobre o que havia sido criado exercendo assim suas prerrogativas reais desenvolvendo o cosmos e mantendo-o Ao conferir esta autoridade e domiacutenio ao homem o Senhor estava colocando a humanidade em um relacionamento singular com o cosmos17 O homem tinha essas prerrogativas por direito o qual lhe tinha sido concedido pelo proacuteprio Deus pois como escreve o salmista ldquoFizeste-o no entanto por um pouco menor do que Deus e de gloacuteria e de honra o coroaste Deste-lhe domiacutenio sobre as obras de tua matildeo e sob seus peacutes tudo lhe pusesterdquo (Sl 85-6) Obviamente que Deus natildeo concedeu sua deidade aos seres humanos mas os colocou na mais alta posiccedilatildeo real na criaccedilatildeo e os dotou com o privileacutegio e a responsabilidade de serem cotrabalhadores com ele nas tarefas reais a serem executadas na criaccedilatildeo18 A terra foi criada para o domiacutenio e governo humanos Tal domiacutenio era expressatildeo do reino de Deus e representava o governo divino19

14 LIMA Leandro A de A grande batalha escatoloacutegica Satildeo Paulo Editora Agathos 2016 p 715 WALTKE Bruce Comentaacuterios do Antigo Testamento Genesis Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019

p 7716 VAN GRONINGEN Gerard Criaccedilatildeo e consumaccedilatildeo o reino a alianccedila e o Mediador Satildeo

Paulo Cultura Cristatilde 2018 vol 1 p 7917 Ibid p 9018 Ibid p 85 19 DEMPSTER Stephen G Dominion and Dynasty A Biblical Theology of the Hebrew Bible

New Studies in Biblical Theology 15 Downers Grove Illinois IVP Academic 2006 p 62

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

76

Se Adatildeo e Eva tivessem cumprido devidamente o mandato recebido de Deus Satanaacutes natildeo teria nenhum direito e legalidade sobre o cosmos e nem sobre os vice-gerentes de Deus Pois embora Satanaacutes tivesse acesso ao Eacuteden pelo fato de ser um anjo e por sua posiccedilatildeo no cosmos ele natildeo era capaz de introduzir o mal e o pecado diretamente dentro do Eacuteden e do cosmos pois natildeo lhe foram concedidas as prerrogativas reais e o status que foram concedidos por Deus a Adatildeo e Eva20 Por isso ele buscava para si o controle do reino coacutesmico de Deus mas para atingir seu objetivo era preciso encontrar uma brecha ele precisava usurpar este direito que pertencia ao primeiro casal e a uacutenica maneira de fazecirc--lo era entrar no Eacuteden e ganhar controle e influecircncia sobre os vice-gerentes de Deus Em Gecircnesis 215 Deus toma o homem e o coloca no jardim do Eacuteden para o cultivar e o guardar Um aspecto interessante da atividade do homem eacute que o termo guardar incluiacutea guardar o jardim contra a usurpaccedilatildeo de Satanaacutes Adatildeo e Eva natildeo eram apenas os sacerdotes de Deus mas tambeacutem os guardiotildees do jardim Eles que deveriam expulsar a serpente acabaram sendo expulsos por ela21 Ao inveacutes de prontamente se opor denunciar e expulsar o tentador blasfemo eacute digno de nota o fato de Adatildeo ter ficado passivo enquanto via sua esposa receber um tutorial deste estranho mestre de teologia a serpente22 Sa-tanaacutes estava desafiando a autoridade de Deus ao compelir o homem a escolher entre dois mestres23 Era a autoridade de Deus versus o desafio do mundo sob o domiacutenio de Satanaacutes24 Dessa maneira ao darem ouvidos agrave voz da serpente Adatildeo e Eva estavam deixando a autoridade de Deus e de sua palavra para se colocarem debaixo da autoridade do diabo e de suas mentiras submetendo-se ao pecado e ao poder do mal ficando destinados agrave morte25

Ao enganar e seduzir o primeiro casal Satanaacutes foi bem-sucedido em seu plano de introduzir o mal e o pecado no mundo (Gn 31-13) levando-os a duvidar de Deus e desobedececirc-lo Adatildeo e Eva quebraram o seu relacionamento com Yahweh com o cosmos e um com o outro Agora eles eram os quebradores do pacto natildeo mais tinham o senso de serem governadores reais e vice-gerentes de Deus Eles abdicaram do trono que Deus lhes havia dado renderam-se a Satanaacutes completamente e pecaram contra o Criador26 Com isso Satanaacutes obteve

20 GRONINGEN Criaccedilatildeo e consumaccedilatildeo p 12521 WALTKE Comentaacuterios do Antigo Testamento p 10322 GOLDINGAY John Old Testament Theology Israelrsquos Gospel Downers Grove IL IVP Aca-

demic 2003 p 13123 KLINE M G Kingdom Prologue Genesis Foundations for a Covenantal Worldview Eugene

OR Wipf amp Stock 2006 p 12324 ARNOLD Bill T Encountering the Book of Genesis Grand Rapids Baker Books 1998 p 4125 Segundo Gordon Wenham ldquoa serpente simboliza o pecado a morte e o poder do malrdquo WENHAM

Gordon J Genesis 1-15 World Biblical Commentary Waco TX 1987 p 14826 GRONINGEN Criaccedilatildeo e consumaccedilatildeo p 127

77

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

o domiacutenio sobre os vice-gerentes pactuais de Deus e consequentemente ob-teve domiacutenio sobre o cosmos O pecado que passou a fazer parte da natureza humana caiacuteda deu poder a Satanaacutes e seus anjos para serem acusadores dos seres humanos e tambeacutem para os dominarem e possuiacuterem Foi o princiacutepio da legalidade Satanaacutes conseguiu estabelecer o seu reino seu trono e seu domiacutenio substitutos dentro do cosmos27 Poreacutem seu reino eacute parasita ou seja natildeo pode existir independentemente pois depende do reino coacutesmico de Deus Ele eacute um intruso maligno querendo entronizar-se como o mestre dos seres humanos e do reino coacutesmico sobre o qual eles haviam recebido o domiacutenio e o mandato de zelar cultivar e governar28

Por meio da desobediecircncia de Adatildeo e Eva Satanaacutes foi capacitado a im-plantar seu reino parasita dentro do cosmos Sua intenccedilatildeo eacute ter domiacutenio com-pleto o que nunca seraacute consumado Seu reino eacute de oposiccedilatildeo espiritual ao reino de Deus e a todo o cosmos O ataque de Satanaacutes foi totalmente planejado pois visava destruir toda estrutura que Deus havia criado no jardim O interesse do inimigo natildeo era simplesmente conseguir que o homem pecasse contra Deus muito mais do que isso ele queria invadir cada estrutura de autoridade cada siacutembolo de reino e governo que Deus havia instituiacutedo29 Ele queria subverter toda a estrutura da criaccedilatildeo e queria que Deus fosse humilhado Eacute aqui que temos o estabelecimento da antiacutetese da linha divisoacuteria do abismo e da oposi-ccedilatildeo entre o reino de Deus e o reino parasita de Satanaacutes Logo apoacutes a queda do primeiro casal o Senhor pronuncia uma maldiccedilatildeo contra a serpente e declara inimizade entre a semente de Satanaacutes e os seguidores de Yahweh (cf Gn 315) Van Groningen mais uma vez traz clareza agrave questatildeo

Eacute basicamente uma luta pelo coraccedilatildeo pelo serviccedilo real e os benefiacutecios re-sultantes destes Deus Yahweh requereu o direito de posse Satanaacutes tambeacutem Ter os coraccedilotildees a proacutepria pessoa de Adatildeo e Eva natildeo era somente tecirc-los como servos mas tambeacutem reivindicar o cosmos sobre o qual tinham sido colocados como vice-gerentes Desse modo reivindicar os vice-gerentes era reivindicar o seu domiacutenio Reivindicar os seres reais era reivindicar suas prerrogativas reais dentro do domiacutenio Ter domiacutenio espiritual era tambeacutem ter o domiacutenio coacutesmico todos os aspectos do reino coacutesmico estariam envolvidos na luta quando Deus Yahweh sustentasse por declaraccedilatildeo a oposiccedilatildeo ie a antiacutetese30

Com a entrada do pecado no mundo o homem a quem Deus havia criado com liberdade de escolha usa seu livre arbiacutetrio para rebeliatildeo Adatildeo e Eva quebram o Pacto que Deus havia feito com eles caem do seu estado de

27 Ibid28 Ibid p 12629 Ibid p 15730 Ibid p 156

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

78

inocecircncia e tornam-se pecadores traindo a Deus num ato de rebeldia pois foi uma traiccedilatildeo universal (coacutesmica) uma traiccedilatildeo contra o Rei do cosmos31 Sua natureza que antes era santa agora estaacute corrompida pelo mal e manchada pelo pecado Seus pensamentos consciecircncia vontade e emoccedilotildees satildeo atingidos pela corrupccedilatildeo e pervertidos eles satildeo despojados de sua justiccedila original E assim condenam todos os seus descendentes a nascerem em iniquidade culpados corrompidos e destinados agrave morte32 Agora toda a criaccedilatildeo eacute colocada debaixo do cativeiro do pecado Aqui os vice-gerentes de Deus entregam nas matildeos da serpente o domiacutenio que tinham recebido do Criador perdendo seu status real e a autoridade de dominar e sujeitar toda criaccedilatildeo33 Contudo como assinala Derek Kidner ldquograccedilas agrave misericoacuterdia a maldiccedilatildeo recai sobre os domiacutenios do homem natildeo sobre o homem propriamente ditordquo34 Pois embora Adatildeo tenha ouvido palavras como fadiga suor morte e poacute sendo associadas agrave sua expe-riecircncia humana como consequecircncia de sua rebeliatildeo contudo a maldiccedilatildeo recai sobre a terra que se torna maldita por causa do pecado e porque seu domiacutenio eacute entregue a Satanaacutes Ademais o objetivo da serpente de minar a autoridade de Deus entre o povo que ele mesmo criou natildeo seraacute alcanccedilado pois no final ela seraacute destruiacuteda pela semente da mulher (cf Gn 315)35

12 A autoridade recuperada e ampliadaA fim de que esta autoridade fosse recuperada ou reconquistada algo

precisava ser feito E ningueacutem menos que o Filho de Deus foi quem realizou tal obra por meio de sua vitoacuteria na batalha juriacutedica da cruz Ao retrocedermos para muito antes da crucificaccedilatildeo temos de considerar a conversa que o diabo tem com Jesus por ocasiatildeo da tentaccedilatildeo no deserto Em Lucas 45-6 Satanaacutes num momento mostra a Cristo todos os reinos do mundo e a gloacuteria deles A seguir declara que daraacute toda essa autoridade sobre os reinos a Cristo se ele prostrado o adorar o que Cristo se recusou a fazer Mas um fato importante nesse episoacutedio eacute que o diabo afirma que a autoridade sobre todos os reinos do mundo foi entregue a ele por isso ele pode concedecirc-la a quem quiser O curioso eacute que Jesus natildeo o desmente e nem o questiona sobre tal afirmaccedilatildeo Apesar de ser o pai da mentira o diabo parece estar falando a verdade quando afirmou que tinha toda aquela autoridade sobre as naccedilotildees e reinos Pois no Eacuteden por ocasiatildeo da queda do ser humano ele recebeu autoridade para enganar as naccedilotildees e mantecirc-las sob cegueira espiritual Eacute digno de nota que ao tentar a Cristo

31 SPROUL R C A verdade da cruz Satildeo Paulo Fiel 2019 p 35-36 32 CALVINO Joatildeo Salmos Vol 2 Satildeo Paulo Fiel 2011 p 418-419 33 CHUNG Chun Kwang Missatildeo primordial os fundamentos da missatildeo em Gecircnesis 1-11 Satildeo

Paulo Missioloacutegica 2019 p 7334 KIDNER Derek Genesis introduccedilatildeo e comentaacuterio Satildeo Paulo Vida Nova 1979 p 6735 LONGMAN III Tremper Como ler Genesis Satildeo Paulo Vida Nova 2009 p 137

79

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

no deserto ele natildeo sabia que natildeo teria mais esta autoridade por muito tempo Porque Cristo por meio de sua morte e ressurreiccedilatildeo cassaria este direito legal de Satanaacutes e tomaria dele as naccedilotildees36

Quando comparamos as passagens de Lucas 46 com Mateus 2818 podemos perceber uma forte semelhanccedila entre as palavras que Satanaacutes usou para oferecer a autoridade dos reinos deste mundo a Jesus e a afirmaccedilatildeo de Jesus sobre o Pai ter-lhe concedido toda autoridade nos ceacuteus e na terra Em Lucas 46 Satanaacutes declara ldquoΣοὶ δώσω τὴν ἐξουσίαν ταύτην ἅπασαν καὶ τὴν δόξαν αὐτῶν ὅτι ἐμοὶ παραδέδοταιrdquo (ldquoA ti darei toda esta autoridade e a gloacuteria deles porque a mim foi entreguerdquo) Em Mateus 2818 Jesus decla-ra ldquoἘδόθη μοι πᾶσα ἐξουσία ἐν οὐρανῷ καὶ ἐπὶ τῆς γῆςrdquo (ldquoFoi dada a mim toda autoridade no ceacuteu e sobre a terrardquo) Jesus proclama sua autoridade nos ceacuteus e na terra repetindo quase que cada palavra proferida pelo diabo37 Podemos perceber que a batalha juriacutedica travada por Cristo eacute determinada pela antiacutetese entre o reino dos ceacuteus e o domiacutenio de Satanaacutes A tentaccedilatildeo com respeito aos reinos deste mundo (cf Lc 45ss e Mt 48ss) revela em que consistia o conflito entre Jesus e Satanaacutes O priacutencipe deste mundo (o diabo) estava se opondo ao reino de Deus por saber que Jesus disputaria essa autoridade com ele em nome de Deus sendo que Cristo jamais poderia fazer uso arbitraacuterio da autoridade que lhe fora dada antes deveria conquistaacute-la natildeo da maneira proposta por Satanaacutes mas da maneira determinada por Deus38 Enquanto a autoridade de Satanaacutes foi algo usurpado pela legalidade deixada por Adatildeo a autoridade de Cristo por sua vez foi um direito conquistado e recebido das matildeos um Deus soberano Ele natildeo usurpou tal autoridade antes ela lhe foi dada por Deus como uma capacitaccedilatildeo para um encargo39 Jesus eacute digno da autoridade que recebeu (Apocalipse 5) O que Satanaacutes ofereceu a Jesus foi ldquotoda autoridaderdquo sobre os reinos deste mundo mas o que Deus lhe concedeu foi toda autoridade nos ceacuteus e na terra dando-lhe um nome acima de todo nome (Fp 29-10) Isso aponta para o se-nhorio coacutesmico de Cristo

Fica claro que refletir sobre a obra realizada por Cristo em sua morte ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo eacute imprescindiacutevel para compreendermos o aspecto juriacutedico que envolve o plano da redenccedilatildeo A obra de Cristo efetua por assim dizer uma total renovaccedilatildeo coacutesmica colocando todos os reinos deste mundo sob seu domiacutenio conquistando a salvaccedilatildeo natildeo soacute de almas mas de corpos e natildeo soacute de seres humanos mas de toda a criaccedilatildeo40 Eacute com base nisto que pode-

36 LIMA A grande batalha escatoloacutegica p 29-3037 Ibid p 2938 RIDDERBOS Herman A vinda do Reino de Deus Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019 p 6439 KLAIBER Walter ldquoThe Great Commission of Matthew 2816-20rdquo American Baptist Historical

Quarterly vol XXXVII n 2 p 108-122 40 HORTON A Grande Comissatildeo p 72-73

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

80

mos entender o protoevangelho em gecircnesis 315 ldquoPorei inimizade entre ti e a mulher entre a tua descendecircncia e o seu descendente Este te feriraacute a cabeccedila e tu lhe feriraacutes o calcanharrdquo Na maldiccedilatildeo sobre a serpente veio embutida uma semente de esperanccedila para a humanidade uma esperanccedila genealoacutegica41

Eacute neste contexto mais amplo da alianccedila da graccedila que teve seu iniacutecio com a promessa divina de um redentor em Gecircnesis 315 que a Grande Comissatildeo eacute dada Jesus eacute o descendente da mulher que ao morrer na cruz e ressuscitar feriu a cabeccedila de Satanaacutes Ele esmagou a cabeccedila da serpente e estaacute pondo prisioneiros em liberdade pois lhe foi dada toda a autoridade nos ceacuteus e na terra42 Esta autoridade foi reivindicada por ele algumas vezes nos evangelhos quando falava de si mesmo como o ldquoFilho do Homemrdquo Tal expressatildeo aparece em Daniel 713-14 e eacute uma das mais usadas por Jesus para referir-se a si proacute-prio para falar de sua majestade de sua autoridade para perdoar pecados do seu poder legislador sobre o dia de saacutebado e da gloacuteria de sua segunda vinda (cf Mt 96 128 1627 2430 2531) Mateus 2818 parece ser uma alusatildeo consciente a Daniel 71443

Podemos dizer que Jesus estaacute edificando a sua igreja sobre a sua palavra e uma dessas palavras ocorre no evangelho de Mateus 2818-20 exatamente o texto da Grande Comissatildeo Mateus 2818 eacute o equivalente real a Daniel 714 ldquoE foi-lhe dado o domiacutenio e a honra e o reino para que todos os povos naccedilotildees e liacutenguas o servissem o seu domiacutenio eacute um domiacutenio eterno que natildeo passa-raacute e o seu reino tal que natildeo seraacute destruiacutedordquo Jesus reivindica ser este Filho do Homem profetizado por Daniel44 Eacute com base em sua proacutepria identidade que ele entrega a Grande Comissatildeo aos seus disciacutepulos Portanto Cristo eacute o centro de toda proclamaccedilatildeo missionaacuteria45 ele eacute o personagem central da missatildeo sua pessoa eacute o centro da Escritura (Lc 2427 44) e eacute ele mesmo quem deve ser proclamado (Lc 2446-47) Os disciacutepulos devem proclamar o evangelho com base no direito de Cristo o qual veio a este mundo para impor o direito divino sobre Satanaacutes e assim libertar os cativos O evangelho iraacute prevalecer46 Cristo veraacute o fruto do penoso trabalho de sua alma e ficaraacute satisfeito pois agrave medida que o evangelho for sendo proclamado a todas as naccedilotildees o Senhor atrairaacute muitos pecadores a si e justificaacute-los-aacute (Is 5311)

41 DEMPSTER Dominion and Dynasty p 6842 LIMA A grande batalha escatoloacutegica p 8243 CARSON Donald A O comentaacuterio de Mateus Satildeo Paulo Shedd 2011 p 68744 KLAIBER ldquoThe Great Commissionrdquo p 108-12245 PIPER John Alegrem-se os povos a supremacia de Deus em missotildees Satildeo Paulo Cultura

Cristatilde 2001 p 23446 LIMA A grande batalha escatoloacutegica p 45

81

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

2 O PODER DO EVANGELHOToda menccedilatildeo ao evangelho feita neste artigo tem como base a seguinte

definiccedilatildeo ldquoO evangelho eacute a mensagem de Deus para a redenccedilatildeo de sua igreja Eacute o poder de Deus que se manifesta na transformaccedilatildeo de pessoas Eacute o proacuteprio Senhor Jesus quem ele eacute o que ele fez na cruz e na ressurreiccedilatildeordquo47 Posto isto o poder o triunfo e os efeitos do evangelho satildeo infinitamente maiores do que a maioria de noacutes imagina

Em Colossenses 214 Paulo faz uso de uma metaacutefora tirada do mundo juriacutedico ele fala de uma espeacutecie de certificado de diacutevida uma cobranccedila de nossa diacutevida legal Ao comentar este versiacuteculo James Dunn diz que o pano de fundo aqui por meio da expressatildeo ldquocontra noacutesrdquo confirma que o documento em questatildeo era de condenaccedilatildeo era um registro de nossas transgressotildees hostil a noacutes Dunn ainda argumenta que a redenccedilatildeo realizada na cruz sob estas imagens efetua o cancelamento ou apagamento dos registros de um livro A eliminaccedilatildeo dos registros confirma que nenhuma destas transgressotildees eacute mais mantida contra noacutes em outras palavras a metaacutefora eacute outra maneira de dizer que ldquoele perdoou todas as nossas transgressotildeesrdquo48 Paulo usa uma imagem viacutevida ao afirmar que Cristo ao ser crucificado removeu destruiu o registro de diacutevida que era contra noacutes A ideia eacute de a acusaccedilatildeo estar sendo destruiacuteda por meio da crucificaccedilatildeo como se a proacutepria acusaccedilatildeo estivesse sendo crucificada Nossas transgressotildees foram absorvidas na morte sacrifical de Cristo49 Em Colossenses 215 Paulo daacute ecircnfase ao triunfo do Senhor ressurreto sobre principados e potestades Se em Colossenses 214 a cruz eacute siacutembolo de destruiccedilatildeo no sentido de cancelar ou destruir o escrito de diacutevida agora em Colossenses 215 ela eacute transformada em uma imagem puacuteblica de triunfo50

A versatildeo Todayrsquos New International Version traduz a expressatildeo ldquodespojan-do principados e potestadesrdquo como ldquotendo desarmado os principados e potes-tadesrdquo Douglas Moo ao analisar exegeticamente esses versiacuteculos afirma que foi na cruz que Deus desarmou tirou as armas dos dominadores deste mundo mas que foi na ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo de Cristo que Deus exibiu publicamente a realidade do triunfo de Cristo sobre os principados e potestades Para Moo o apoacutestolo Paulo ao usar a sequecircncia dos versiacuteculos 14 e 15 parece sugerir uma ligaccedilatildeo entre o perdatildeo de nossos pecados e o desarmamento dos poderes

47 LIDOacuteRIO Ronaldo Revitalizaccedilatildeo de igrejas avaliando a vitalidade de igrejas locais Satildeo Paulo Vida Nova 2016 p 21

48 DUNN James D G The Epistles to the Colossians and to Philemon Grand Rapids Eerdmans 2016 p 164-166

49 Ibid50 Ibid

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

82

das trevas51 Mais uma vez podemos perceber o aspecto juriacutedico da obra de Cristo seu direito e senhorio sobre todas as coisas

Esta verdade tambeacutem eacute encontrada em Efeacutesios 120-21 quando Paulo afirma que Deus ressuscitou a Jesus dentre os mortos e o fez assentar acima de todo governo domiacutenio principado e potestade Ele ensina a mesma verdade em Romanos 13-4 ao afirmar que Jesus foi designado Filho de Deus com poder por meio da ressurreiccedilatildeo Eacute quando ele ascende aos ceacuteus para assentar-se agrave direita do Pai que ele proclama sua vitoacuteria sobre os seres espirituais malignos (1Pe 318-22)52

1Pedro 318-22 eacute outro texto que apresenta a vitoacuteria da Cristo na batalha juriacutedica do Calvaacuterio Aqui o apoacutestolo Pedro fala acerca da morte e ressurreiccedilatildeo de Cristo seu triunfo e a proclamaccedilatildeo de sua vitoacuteria sobre os principados e potestades No versiacuteculo 19 Pedro usa o verbo ἐκήρυξεν (proclamar) para dizer que Jesus apoacutes ressuscitar proclamou sua vitoacuteria aos anjos caiacutedos (espiacuteritos em prisatildeo) anunciou o seu triunfo sobre seus adversaacuterios O texto termina dando destaque ao fato de que Jesus Cristo apoacutes ter subido aos ceacuteus estaacute agrave matildeo direita de Deus estando-lhe sujeitos os anjos autoridades e potestades (322) Pedro objetiva deixar claro que natildeo haacute nada nos ceacuteus e na terra que tenha ficado fora do domiacutenio de Cristo O alvo de Cristo ao fazer uma proclamaccedilatildeo especiacutefica a esses anjos em prisatildeo foi mostrar que nem mesmo aqueles antigos anjos caiacutedos que estavam haacute tanto tempo aprisionados ficaram alheios ao senhorio de Jesus53 ldquoO Senhor ressuscitado eacute o evangelho vivordquo54 ndash isto quer dizer que o evangelho venceu triunfou A ecircnfase do texto estaacute na obra de Cristo na cruz e no que ele conquistou ou seja a morte e a ressurreiccedilatildeo de Cristo garantem a libertaccedilatildeo dos seres humanos dos poderes dos espiacuteritos malignos55 Cristo se manifestou para tirar os pecados e para destruir as obras do diabo (1Jo 35 8) aleacutem de conquistar o direito de restaurar toda a criaccedilatildeo libertando-a do cativeiro do pecado (Rm 821)

Apocalipse 59-10 eacute mais um texto que apresenta essa questatildeo juriacutedica da morte e ressurreiccedilatildeo de Cristo e de como ele tem o direito de exercer seu senhorio sobre todas as coisas e de salvar pessoas que procedem dos quatro cantos da Terra No versiacuteculo 9 Joatildeo declara que Jesus ἠγόρασας (comprou) para Deus pessoas que procedem de toda tribo povo liacutengua e naccedilatildeo Cristo comprou a libertaccedilatildeo do seu povo da maldiccedilatildeo e da penalidade do pecado Mais do que isso ele comprou pessoas elas lhe pertencem Por meio de sua

51 MOO Douglas J The Letters to the Colossians and Philemon Grand Rapids Eerdmans 2008 p 215

52 Ibid p 21553 LIMA A grande batalha escatoloacutegica p 11054 DALTON William Joseph Christrsquos Proclamation to the Spirits A Study of 1 Peter 318-46

Roma Editrice Pontificio Istituto Biblico 1989 p 9 55 Ibid

83

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

morte sacrificial Cristo comprou um povo para si O verbo ἠγόρασας eacute usado como uma metaacutefora comercial para a libertaccedilatildeo de um prisioneiro de guerra da escravidatildeo Desta forma sua morte foi um resgate um preccedilo pago pelo qual Deus comprou um povo O texto mostra que o preccedilo foi o sangue incorrup-tiacutevel de Cristo que garante natildeo soacute a liberdade do seu povo mas que tambeacutem o coloca em uma nova condiccedilatildeo espiritual Agora esse povo eacute escravo de Deus comprado para fazer sua vontade Eacute o povo de propriedade exclusiva de Deus A redenccedilatildeo efetuada confere uma nova condiccedilatildeo56

Cristo possui toda a autoridade no ceacuteu e na terra Com base em sua vitoacuteria na terra ele expulsou Satanaacutes do santuaacuterio do ceacuteu onde ele acusava os santos dia e noite (Apocalipse 12)57 Apoacutes prender ou amarrar o valente Cristo estaacute saqueando sua casa na terra tomando de volta o que por justiccedila lhe pertence (Mt 1229) Douglas Moo ao abordar a visatildeo claacutessica da expiaccedilatildeo mostra que haacute uma conexatildeo entre o poder que Satanaacutes e seus correligionaacuterios tinham sobre os seres humanos por causa do seu pecado Contudo Deus com a provisatildeo de Cristo pagou a diacutevida que os homens tinham com Satanaacutes O Pai ao enviar seu Filho agrave cruz resolveu de maneira final e definitiva o problema do pecado e removeu qualquer poder que os espiacuteritos malignos possam ter sobre os se-res humanos Moo ainda destaca que a vitoacuteria de Cristo celebrada e exibida na sua ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo precisa ser entendida pelos crentes como se fosse deles Logo a autoridade de Cristo sobre os principados e potestades foi manifestada e em Cristo os crentes compartilham dessa autoridade58 A obra realizada por Cristo em sua morte ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo pode ser bem definida nestas palavras de Horton

Nosso Senhor realizou algo na Histoacuteria ndash em sua vida morte ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo ndash que o qualifica para ser juiz e justificador dos iacutempios Jesus eacute tanto o Senhor da Alianccedila que comanda quanto o Servo da Alianccedila que cumpre toda a justiccedila e obteacutem para noacutes o perdatildeo o novo nascimento a ressurreiccedilatildeo e a renovaccedilatildeo de toda a criaccedilatildeo Como Deus ele eacute Senhor como ser humano ele ldquofoi designado Filho de Deus com poder segundo o espiacuterito de santidade pela ressurreiccedilatildeo dos mortos a saber Jesus Cristo nosso Senhorrdquo (Rm 14)59

56 OSBORNE Grant Comentaacuterio exegeacutetico Apocalipse Satildeo Paulo Vida Nova 2014 p 290-29157 Antes da morte e ressurreiccedilatildeo de Cristo ao que tudo indica Satanaacutes tinha livre acesso ao ceacuteu

onde atuava como uma espeacutecie de promotor de justiccedila acusando os seres humanos de suas transgressotildees da lei divina Ao morrer Cristo pagou todo o preccedilo do resgate do ser humano destronando o acusador que jaacute natildeo tem mais base para continuar acusando o povo de Deus Satanaacutes perdeu seu posto de acu-sador no ceacuteu sua cadeira ficou vazia ele natildeo tem mais legitimidade para agir como acusador no ceacuteu LIMA Leandro Antocircnio de ldquoApocalipse como literatura um estudo sobre a importacircncia da anaacutelise da arte literaacuteria em apocalipse 12-13rdquo Dissertaccedilatildeo (Doutorado em Letras) Satildeo Paulo Universidade Presbiteriana Mackenzie 2012 p 188-189

58 MOO The Letters to the Colossians and Philemon p 21659 HORTON A Grande Comissatildeo p 42

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

84

Walter Klaiber afirma que a ressurreiccedilatildeo de Jesus jaacute eacute sua exaltaccedilatildeo60 Este eacute um ponto importante em nossa discussatildeo pois ao ressuscitar Cristo triunfa sobre o pecado sobre a morte e sobre Satanaacutes e seus anjos Em Romanos 14 lemos ldquoe foi designado Filho de Deus com poder segundo o espiacuterito de santidade pela ressurreiccedilatildeo dos mortos a saber Jesus Cristo nosso Senhorrdquo Sobre este texto John Stott declara que ldquoa ressurreiccedilatildeo eacute o ponto decisivo na existecircncia do Filho de Deus Antes de ressuscitar ele era o Filho de Deus em fraqueza a humildade Por meio da ressurreiccedilatildeo torna-se o Filho de Deus em poderrdquo61 Eacute digno de nota que Jesus soacute entrega a Grande Comissatildeo aos seus disciacutepulos apoacutes ressuscitar ldquoA ressurreiccedilatildeo marca a vitoacuteria incontestaacutevel de Cristordquo62 Ele obteve toda autoridade nos ceacuteus e na terra por meio de sua humilhaccedilatildeo sofrimento e morte63 A ressurreiccedilatildeo de Cristo deu iniacutecio agrave nova criaccedilatildeo de Deus sendo os cristatildeos as primiacutecias desta nova criaccedilatildeo Eacute por isso que Paulo escrevendo aos coriacutentios afirma ldquoMas de fato Cristo ressuscitou dentre os mortos sendo ele as primiacutecias dos que dormemrdquo (1Co 1517-20) Sua ressurreiccedilatildeo eacute a garantia de redenccedilatildeo do seu povo mas tambeacutem de todo o cos-mos Ademais ldquofoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de mortos como de vivosrdquo (Rm 149) Jesus morreu natildeo apenas para salvar seu povo dos pecados deles mas para ter o controle absoluto da nova criaccedilatildeo64 Diante dele todo joelho tem de se dobrar e toda liacutengua con-fessar que ele eacute o Senhor (Fp 29-11) ldquoEle estaacute agora amplamente instalado e declarado como Juiz e somente ele pode receber os apelos para absolviccedilatildeordquo65 Desta maneira o conceito de salvaccedilatildeo implica render-se ao senhorio de Cristo pois Jesus foi designado Juiz de todos os povos graccedilas agrave sua ressurreiccedilatildeo e foi colocado por Deus como o centro de toda a obra salvadora de Deus66 As implicaccedilotildees missioloacutegicas do seu triunfo como Juiz universal satildeo a base para a Grande Comissatildeo ldquoA ordem dada por Jesus de pregar o arrependimento e o perdatildeo de pecados repousava sobre sua ressurreiccedilatildeo Esse eacute o conteuacutedo da comissatildeordquo67 Com base nisto o Senhor Jesus comissiona seus disciacutepulos a irem pelo mundo e pregarem o evangelho a toda criatura

60 KLAIBER ldquoThe Great Commissionrdquo p 108-12261 STOTT John R W A mensagem de Romanos Satildeo Paulo ABU Editora 2007 p 5162 LIMA A grande batalha escatoloacutegica p 90 63 RIDDERBOS A vinda do Reino de Deus p 9964 SILVA Norval Oliveira da A mensagem de salvaccedilatildeo num contexto animista A questatildeo indiacutegena

uma luta desigual Minas Gerais Editora Ultimato 2008 p 20065 PIPER Alegrem-se os povos p 150 66 Ibid p 142 e 15067 STETZER Ed Plantando igrejas missionais como plantar igrejas biacuteblicas saudaacuteveis e rele-

vantes agrave cultura Satildeo Paulo Vida Nova 2015 p 64

85

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

3 AS GARANTIAS DO EVANGELHOSobre a questatildeo levantada no iniacutecio a respeito da traduccedilatildeo do verbo

πορευθέντες o autor deste artigo concorda com a posiccedilatildeo do professor Bos-ma de que o ldquoirrdquo faz parte do mandamento de se fazer disciacutepulos pois tanto eacute importante o discipulado local (fazer disciacutepulos e ensinar) quanto as missotildees transculturais Ademais estaacute claro que o Ide tem forccedila imperativa Logo natildeo faz sentido criar uma tensatildeo entre discipulado e missotildees pois as duas coisas estatildeo incluiacutedas e interligadas na Grande Comissatildeo ambas estatildeo debaixo da autoridade de Cristo

A ordem para que o evangelho fosse proclamado entre todas as naccedilotildees foi dada por Cristo aos seus disciacutepulos logo apoacutes sua vitoacuteria na batalha juriacute-dica travada na cruz e consumada na ressurreiccedilatildeo O Pai concedeu-lhe toda a autoridade nos ceacuteus e na terra bem como o direito de exercer essa autoridade sobre principados e potestades e abriu as portas para que o evangelho fosse pregado a todas as naccedilotildees sem impedimento algum68 Eric Kayayan declara que ldquoa proclamaccedilatildeo do evangelho de Jesus Cristo eacute o cetro por meio do qual Deus deseja governar o mundo e sua autoridade divina eacute expressa para que todos se submetam a elardquo69 Jesus deteacutem o direito de controlar todas as coisas e de exigir obediecircncia70 Faz-se necessaacuterio destacar que todos os eventos associados agrave primeira vinda de Cristo desde sua encarnaccedilatildeo ateacute a coroaccedilatildeo satildeo decisi-vos para a expulsatildeo de Satanaacutes do ceacuteu e seu aprisionamento para cercear sua influecircncia enganadora entre as naccedilotildees (cf Ap 121-6) Agrave medida que a igreja cumpre a Grande Comissatildeo a verdade do evangelho vai tomando o lugar da mentira do diabo e Cristo atrai a si todos os eleitos dentre as naccedilotildees A igreja enquanto uma poderosa organizaccedilatildeo missionaacuteria que proclama o evangelho entre as naccedilotildees natildeo pode ser destruiacuteda pelo diabo71 Michael Horton eacute asser-tivo ao dizer que ldquoa Grande Comissatildeo comeccedila com um triunfante anuacutencio de que toda a autoridade nos ceacuteus e na terra pertence a Jesus Cristo O evangelho

68 De acordo com a interpretaccedilatildeo amilenista do texto de Apocalipse 121-6 por ocasiatildeo da primeira vinda de Cristo Satanaacutes foi aprisionado no sentido de natildeo poder enganar as naccedilotildees para impedi-las de aprender a verdade acerca de Deus Logo durante a era do evangelho ele natildeo pode congregar todos os inimigos de Cristo para atacarem conjuntamente a igreja E embora sua influecircncia natildeo seja eliminada ela eacute tatildeo restringida que ele eacute incapaz de impedir a disseminaccedilatildeo do evangelho entre as naccedilotildees do mundo Por causa do aprisionamento de Satanaacutes na atualidade as naccedilotildees natildeo podem conquistar a igreja mas a igreja estaacute conquistando as naccedilotildees HOEKEMA Anthony A A Biacuteblia e o futuro Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2012 p 243-245

69 KAYAYAN Eric ldquoChristrsquos Fourfold Declaration of Authorityrdquo Unio Cum Cristo Philadeplphia v 5 n 2 (out 2019) p 5-13

70 CARSON Donald A Os perigos da interpretaccedilatildeo da Biacuteblia Satildeo Paulo Vida Nova 2011 p 5271 HENDRIKSEN William Mais que vencedores os misteacuterios do Apocalipse desvendados com

profundidade e fidelidade Trad Wadislau Martins Gomes Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011 p 220-222

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

86

que traz salvaccedilatildeo tambeacutem orienta a igreja em sua missatildeordquo72 Dessa maneira a afirmaccedilatildeo de que toda a autoridade em todo o reino coacutesmico de Deus foi dada ao Cristo ressurreto eacute um preluacutedio apropriado para a ordem que se segue pois a posse de tal autoridade era um requisito para a emissatildeo efetiva de tal ordem73 ldquoPor causa de sua autoridade seus seguidores podem ir confiantes de que seu Senhor estaacute no controle soberano de tudo nos ceacuteus e na terrardquo74

Assim as duas declaraccedilotildees que estruturam as palavras de Jesus na Grande Comissatildeo podem ser consideradas como a ldquoGrande Garantiardquo A primeira eacute que Cristo tem toda a autoridade nos ceacuteus e na terra que eacute a capacitaccedilatildeo dada por Deus para um encargo A segunda declaraccedilatildeo eacute a garantia de sua presen-ccedila constante pois Cristo garante que seus disciacutepulos natildeo estaratildeo sozinhos ele estaraacute com eles enquanto cumprem sua missatildeo75 Na teologia biacuteblica do evangelho de Mateus Jesus eacute apresentado como o ldquoEmanuelrdquo que quer dizer ldquoDeus conoscordquo (cf Mt 123 e 2820) Eacute essa consciecircncia da presenccedila do Cristo ressurreto e glorificado entre os seus disciacutepulos que garante o cumprimento da missatildeo76 Logo podemos dizer que o evangelho antecede a missatildeo porque o sucesso na tarefa depende inteiramente daquilo que Cristo jaacute realizou em sua primeira vinda

Esta autoridade de Cristo natildeo eacute um poder (δύναμις) que um grande con-quistador pode reivindicar Mas refere-se agrave autoridade (ἐξουσία) que eacute sua por direito a qual lhe foi conferida por aquele que tem o direito de concedecirc-la77 Donald Carson ao comentar sobre a autoridade de Jesus neste texto diz que as esferas em que ele agora exerce autoridade absoluta foram ampliadas para incluir os ceacuteus e a terra ou seja o universo O pai estaacute desobrigado da autori-dade do Filho Jesus eacute aquele por meio de quem a autoridade do Pai eacute mediada Carson ainda comenta que esta eacute uma guinada na histoacuteria da redenccedilatildeo pois o reino do Messias manifesta-se com novo poder78 Ao ressuscitar Jesus vence a morte e conquista a salvaccedilatildeo de sua igreja Sua ressurreiccedilatildeo abastece o mandato missionaacuterio79 Por meio de sua ressurreiccedilatildeo Cristo estaacute introduzindo uma nova era e sua igreja tem a tarefa de testemunhar essa verdade por todo o mundo

72 HORTON A Grande Comissatildeo p 2373 MCGARVEY John William The New Testament Commentary Matthew and Mark Delight

AR Gospel Light Publishing Company 1875 p 25374 CARSON O comentaacuterio de Mateus p 68875 KLAIBER ldquoThe Great Commissionrdquo p 108-122 76 ZABATIERO Juacutelio Paulo Tavares LEONEL Joatildeo Biacuteblia literatura e linguagem Satildeo Paulo

Paulus 2011 p 9677 Dr Constablersquos Expository Bible Study Notes Disponiacutevel em httpsplanobiblechapelorg

tconnotespdfmatthewpdf Acesso em 12 fev 202178 CARSON Donald A O comentaacuterio de Mateus p 68779 STOTT John R W Ouccedila o Espiacuterito ouccedila o mundo Satildeo Paulo Editora ABU 1997 p 409

87

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

Apoacutes ressuscitar ele ordena que em seu nome seja pregado o arrependimento e a remissatildeo dos pecados em todas as naccedilotildees (Lc 2446-47) Ele conquistou o direito legal para que a missatildeo seja cumprida Todas as barreiras satacircnicas caiacuteram pois Cristo conquistou o direito sobre toda a criaccedilatildeo Portanto eacute com base nessa nova ordem das coisas que Jesus envia seus disciacutepulos para a mis-satildeo de evangelizar o mundo dando certeza de sua presenccedila vitoriosa como uma garantia de que o evangelho triunfaraacute80 Posto isto Deus eacute quem cria e sustenta a existecircncia e o crescimento de sua igreja por meio de sua Palavra Esta mesma Palavra deve ser proclamada ao mundo a fim de que o reino de Cristo se expanda ateacute aos confins da terra Como Horton diz ldquoA decisatildeo do Pai eacute irrevogaacutevel A missatildeo de Cristo jaacute foi realizada e o Espiacuterito teraacute igual ecircxito em seus labores Segue-se pois que a Grande Comissatildeo natildeo falharaacuterdquo81

Na anaacutelise de Walter Klaiber isso fica bastante claro

A Grande Comissatildeo nada mais eacute do que a consequecircncia da Grande Garantia Portanto vaacute porque eu Jesus tenho toda autoridade sobre as naccedilotildees em minhas matildeos A missatildeo da igreja natildeo eacute uma cruzada para subjugar as naccedilotildees para Cristo sua tarefa eacute introduzir as naccedilotildees na realidade do domiacutenio de Cristo82

Uma vez mais o professor Michael Horton traz sua contribuiccedilatildeo ao dizer que ldquoo mandato da Grande Comissatildeo eacute como a estrela-guia para reajustar o foco da nossa missatildeo como cristatildeos e como igrejas na vocaccedilatildeo central para este periacuteodo entre as duas vindas de Cristordquo83 Logo satildeo os indicativos do evan-gelho que impulsionam e direcionam a igreja em sua missatildeo de proclamaacute-lo

CONSIDERACcedilOtildeES FINAISA Grande Comissatildeo exigiu uma resposta por parte dos primeiros dis-

ciacutepulos Eles eram servos inadequados e hesitantes Natildeo obstante foram chamados para cumprir o propoacutesito divino ao continuarem a ensinar aquilo que Jesus iniciou84 Eles enfrentariam tempos difiacuteceis pois estavam sendo enviados a um mundo hostil a Deus e ao evangelho Jesus lhes disse que seriam perseguidos accediloitados presos e ateacute martirizados (cf Jo 1518ndash164) Mas o reino de Deus iria avanccedilar o evangelho triunfaria a despeito de todos os ataques do inimigo (cf At 1920) Por semelhante modo a Grande Co-missatildeo exige uma resposta de todos os verdadeiros disciacutepulos de todas as eacutepocas A resposta adequada que devemos dar a estas palavras de Cristo eacute

80 LIMA A grande batalha escatoloacutegica p 8281 HORTON A Grande Comissatildeo p 3682 KLAIBER ldquoThe Great Commissionrdquo83 HORTON A Grande Comissatildeo p 984 FRANCE R T The Gospel of Matthew Grand Rapids Eerdmans 2007 p 1109

PAULO EDUARDO VIEIRA DA VEIGA AS IMPLICACcedilOtildeES MISSIOLOacuteGICAS DO TRIUNFO DE CRISTO

88

a de unir-nos aos onze disciacutepulos em adoraccedilatildeo e obediecircncia ao Senhor dos ceacuteus e da terra a fim de cumprirmos nosso papel na proclamaccedilatildeo das boas novas de salvaccedilatildeo do reino de Deus a todas as naccedilotildees e deleitarmo-nos com a certeza de que mesmo diante de um mundo hostil a Deus e ao seu povo mesmo em face da perseguiccedilatildeo que este mundo possa nos oferecer natildeo temos de temer porque se a presenccedila fiacutesica de Jesus com seus disciacutepulos estava limitada a seu periacuteodo de vida terrena por sua vez a presenccedila espiritual do Senhor ressurreto natildeo tem semelhante limitaccedilatildeo pois Cristo garante que sempre estaraacute entre seu povo obediente Ele eacute o Deus conosco85

Ainda podemos dizer que a proacutepria analogia usada no Novo Testamento para descrever a tarefa a ser cumprida na Grande Comissatildeo eacute a de embaixado-res arautos oficiais que foram designados pelo chefe da naccedilatildeo para anunciar algo de grande importacircncia para o mundo em geral Por semelhante modo o termo ldquoevangelhordquo era usado para se referir agrave boa notiacutecia que um oficial era comissionado a anunciar na sede a saber que tinha havido vitoacuteria no campo de batalha86 ldquoO evangelho antecede a evangelizaccedilatildeordquo87 Eacute a boa nova daquilo que Deus fez em Cristo e por meio dele que libera e impulsiona a igreja a adentrar o mundo com o evangelho As boas novas do evangelho falam da vitoacuteria de Cristo mostram que as portas estatildeo abertas por todo o mundo pois as barreiras satacircnicas caiacuteram Agora o reino de Deus avanccedila pelo mundo in-teiro vai a todas as naccedilotildees ningueacutem pode deter o avanccedilo do evangelho ele vai por todo o mundo

Sem duacutevida a igreja eacute embaixadora de um reino indestrutiacutevel Cristo estaacute presente entre noacutes atraindo pecadores a si Ele estaacute edificando a sua igreja e as portas do inferno jamais prevaleceratildeo contra ela (Mt 1618) Eacute somente Jesus quem pode formar ou edificar a igreja porque a igreja eacute dele e natildeo nossa Somos conclamados a anunciar em todas as naccedilotildees o evangelho do reino o reino do Filho do Homem um reino inabalaacutevel o qual natildeo pode ser frustrado por nossa infidelidade justamente porque natildeo se trata de um reino que noacutes mesmos estamos edificando e sim um reino que estamos recebendo (Hb 1228) pois Jesus edifica sua igreja empregando meios estabelecidos por ele mesmo e garantindo sua presenccedila salviacutefica88

O evangelho natildeo pode ser contido A despeito de toda perseguiccedilatildeo nada o segura Ele eacute universal e alcanccedila todas as naccedilotildees Por isso antes de colocar o imperativo Jesus deu o maior dos estiacutemulos e o grande fundamento missio-naacuterio o seu triunfo A autoridade que Cristo conquistou por ocasiatildeo de sua ressurreiccedilatildeo eacute a uacutenica razatildeo pela qual os disciacutepulos satildeo convocados a irem pelo

85 Ibid86 HORTON A Grande Comissatildeo p 1587 Ibid p 2688 Ibid p 332

89

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 71-89

mundo e fazerem disciacutepulos dele89 O Mestre estava lhes mostrando que sua obra jaacute foi consumada e mesmo que eles ainda natildeo vissem os efeitos dela por completo ela foi realizada em sua primeira vinda de maneira que o reino de Deus agora cresce e nada pode contecirc-lo

A compreensatildeo dessa realidade cristoloacutegica exerce uma enorme diferenccedila em nossa motivaccedilatildeo confianccedila e esperanccedila para cumprimos nosso papel na Grande Comissatildeo A vitoacuteria foi conquistada por Cristo e noacutes como os seus arautos devemos apenas proclamaacute-la natildeo esquecendo obviamente de fazer disciacutepulos de todas as naccedilotildees batizaacute-los e ensinaacute-los em tudo aquilo que Cristo ordenou Quando a igreja cumpre a Grande Comissatildeo estaacute honrando e respei-tando o senhorio de Cristo pois ele tem o direito de exigir nossa obediecircncia

Portanto a missatildeo da igreja aponta para o escaton Quando o presente estado de coisas terminar e ceacuteus e terra forem renovados uma multidatildeo de redimidos estaraacute diante do trono adorando ao Cordeiro de Deus pois a Grande Comissatildeo foi cumprida ldquoE ouvi a toda a criatura que estaacute no ceacuteu e na terra e debaixo da terra e que estatildeo no mar e a todas as coisas que neles haacute dizer Ao que estaacute assentado sobre o trono e ao Cordeiro sejam dadas accedilotildees de graccedilas e honra e gloacuteria e poder para todo o sempre (Ap 513)90

ABSTRACTThe legal context in which the Great Commission was given involves the

four great themes of Scripture creation fall redemption and consummation When placed in Eden Adam was tasked with governing all that God had created When he sinned he gave this authority to Satan When Christ died and rose again he fulfilled his redemptive purpose and as the last Adam recovered and extended the authority lost by the first The Great Commission in Matthew 2818-20 begins not in verse 19 but already in verse 18 when the risen Lord based on this same authority commands his disciples to go out into the world and make disciples of all nations Therefore this article aims to analyze the word ldquoἐξουσίαrdquo (authority) especially in the context of the Gospel of Matthew in order to reflect on the authority lost by Adam and regained by Christ and to evaluate how the triumph and exaltation of Christ are the guarantee of the missionrsquos success how they give meaning to the ldquogordquo invest the church with authority and propel the disciples to the fulfillment of the Great Commission pointing to the eschaton

KEYWORDSBiblical theology New Testament Great Commission Kingdom Gospel

Authority Legal battle

89 KAYAYAN ldquoChristrsquos Fourfold Declaration of Authorityrdquo p 5-1390 PIPER Alegrem-se os povos p 13

91

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 91-101

IGREJAS E HISTOacuteRIA UM MODELO PARA INTERPRETAR A DIFERENCcedilA ENTRE O CATOLICISMO ROMANO

E O PROTESTANTISMOPaul Wells

RESUMOEste artigo1 aborda o conceito de tradiccedilatildeo a maneira pela qual um grupo

religioso apresenta no desenvolvimento da histoacuteria a relaccedilatildeo entre o mundo espiritual e o mundo histoacuterico material A tradiccedilatildeo situa o grupo em relaccedilatildeo agraves suas origens transmite crenccedilas e quando se trata de outro mundo evoca o ceacuteu e daacute esperanccedila No cristianismo existem duas maneiras de considerar e representar a relaccedilatildeo entre o mundo espiritual e o mundo material O catolicismo romano representa essa relaccedilatildeo como comparaacutevel agrave que existe entre um ato e a intenccedilatildeo por traacutes do ato O protestantismo considera tal relaccedilatildeo comparaacutevel agrave que existe entre uma palavra e seu sentido Para abordar o tema Igreja e histoacuteria o autor propotildee fazer uma comparaccedilatildeo entre essas duas posiccedilotildees em trecircs aacutereas a Igreja e os sacramentos a Escritura e a tradiccedilatildeo o Espiacuterito Santo e a vida cristatilde Ao concluir explica por que a posiccedilatildeo protestante expressa pela Reforma representa o cristianismo autecircntico e como essa posiccedilatildeo estaacute ameaccedilada no presente

PALAVRAS-CHAVECatolicismo Protestantismo Histoacuteria Igreja Tradiccedilatildeo Escritura

Professor de teologia sistemaacutetica na Faculdade Livre de Teologia Reformada de Aix-en-Provence no sul da Franccedila atual Faculdade de Teologia Joatildeo Calvino

1 O artigo foi publicado originalmente em La Revue Reformeacutee nordm 221 20031 Traduccedilatildeo Paulo Seacutergio Athayde Ribeiro

PAUL WELLS IGREJAS E HISTOacuteRIA

92

INTRODUCcedilAtildeOAs comunidades religiosas tecircm por funccedilatildeo apresentar uma mensagem

que ofereccedila a seus fieacuteis acesso ao mundo invisiacutevel Elas manifestam no mundo temporal o que eacute divino Elas existem para falar do mundo invisiacutevel e espiri-tual e tornaacute-lo presente na realidade material fiacutesica Igrejas de todos os tipos procuram ser a ponte entre o terreno e o que estaacute aleacutem

Se o mundo invisiacutevel eacute permanente o mundo terrestre evolui e se modi-fica progressivamente Tudo parece estar em constante movimento O mundo tem uma histoacuteria E nessa histoacuteria as igrejas que apresentam a mensagem do mundo invisiacutevel assumem feiccedilotildees distintas e encontram formas diferentes de apresentar essa mensagem A relaccedilatildeo entre os mundos espiritual e material eacute sempre o palco de desenvolvimentos destinados a exprimir como o homem pode alcanccedilar o outro mundo

Esses desenvolvimentos constituem o que podemos chamar de ldquotradi-ccedilatildeordquo o que foi recebido e transmitido agrave geraccedilatildeo seguinte e por ela de novo apropriado atraveacutes de novas formulaccedilotildees ou adaptaccedilotildees Uma tradiccedilatildeo viva cresce no curso da histoacuteria Suas justificaccedilotildees tornam-se mais completas as explicaccedilotildees da sua verdade e suas praacuteticas tornam-se mais profundas Cada agrupamento humano ndash famiacutelia igreja naccedilatildeo ou clube esportivo ndash tem suas tradiccedilotildees e ritos Eacute inevitaacutevel porque uma comunidade sem tradiccedilatildeo estaacute destinada a desaparecer

Agraves vezes alguns catoacutelicos romanos pensam que os protestantes natildeo tecircm tradiccedilotildees e que as recusam totalmente Eacute verdade que alguns protestantes deram essa impressatildeo quando disseram ldquoNoacutes natildeo temos tradiccedilotildees somos contra toda tradiccedilatildeo noacutes precisamos somente da Biacutebliardquo No entanto no Novo Testamento vemos que precisamos guardar a tradiccedilatildeo apostoacutelica como ldquoo bom depoacutesitordquo e pretender natildeo ter tradiccedilotildees torna-se uma atitude tradicional Tal ponto de vista resulta em sectarismos

A tradiccedilatildeo de um grupo religioso eacute entatildeo sua maneira de apresentar progressivamente no desenvolvimento da histoacuteria a relaccedilatildeo entre o mundo espiritual e o mundo histoacuterico material Assim a tradiccedilatildeo situa o grupo em relaccedilatildeo agraves suas origens transmite crenccedilas e quando se trata de outro mundo evoca o ceacuteu e daacute uma esperanccedila No cristianismo ndash se deixarmos de lado a Igreja Ortodoxa que quanto agrave tradiccedilatildeo tem uma visatildeo muito proacutexima do catolicismo romano ndash existem duas maneiras de considerar e de representar a relaccedilatildeo entre o mundo espiritual e o mundo material

O catolicismo romano representa a relaccedilatildeo entre o material e o espiri-tual como sendo comparaacutevel agrave relaccedilatildeo que existe entre um ato e a intenccedilatildeo por traacutes do ato Como um beijo ganha significado do amor que exprime o mundo material e tudo o que acontece ganham significado daquilo que representam e fazem conhecer ou seja de uma realidade espiritual que os

93

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 91-101

supera Assim para o catolicismo a histoacuteria e os desenvolvimentos histoacutericos das representaccedilotildees do espiritual satildeo muito importantes A religiatildeo catoacutelica acentuou como eacute o caso em Newman por exemplo a importacircncia dos de-senvolvimentos registrados a partir das origens A verdadeira realidade se encontra nos desenvolvimentos o original natildeo eacute a melhor representaccedilatildeo da coisa ela se torna mais expliacutecita nos desenvolvimentos Esta concepccedilatildeo acen-tua a importacircncia da continuidade da tradiccedilatildeo a marcha em direccedilatildeo a uma expressatildeo mais perfeita do espiritual e a importacircncia da Igreja em velar por esses desenvolvimentos histoacutericos

O protestantismo que representa uma ruptura no processo de desen-volvimento da Igreja no seacuteculo XVI considera a relaccedilatildeo entre o material e o espiritual comparaacutevel agrave relaccedilatildeo que haacute entre uma palavra e seu sentido A palavra eacute o meio pelo qual um sentido eacute apreendido o qual ultrapassa o seu caraacuteter simboacutelico A realidade do beijo eacute maior do que a palavra e a palavra remete ao que a transcende Assim para o protestantismo o importante estaacute nas origens A mensagem se reporta a qualquer coisa que eacute maior do que a palavra e que se exprime nessa palavra Eacute por essa razatildeo que o protestantismo eacute um retorno agraves fontes ao sentido original e acentua a centralidade da Palavra de Deus Jesus Cristo e as palavras apostoacutelicas inspiradas que fazem com que o conheccedilamos Eacute aqui que a relaccedilatildeo entre o mundo material e o mundo espiritual eacute estabelecida

Propomos fazer uma comparaccedilatildeo entre essas duas posiccedilotildees para apro-ximar a questatildeo ao nosso tema sobre Igreja e histoacuteria e isso em trecircs aacutereas

bull A Igreja e os sacramentosbull A Escritura e a tradiccedilatildeobull O Espiacuterito Santo e a vida cristatilde

Ao concluirmos diremos por que a posiccedilatildeo protestante expressa pela Reforma representa para noacutes o cristianismo autecircntico e como essa posiccedilatildeo atualmente estaacute ameaccedilada

1 A IGREJA E OS SACRAMENTOSNa Idade Meacutedia foi desenvolvida a ideia de que o papel da Igreja era

o de suplementar a ausecircncia de Cristo Por meio dela Cristo se comunica com o mundo Ela constitui uma extensatildeo histoacuterica sob forma diferente da encarnaccedilatildeo de Cristo A proacutepria Igreja torna-se um instrumento da revelaccedilatildeo e mesmo que natildeo tenha acesso ao texto sagrado o homem pode conhecer a Deus atraveacutes dela Essa opiniatildeo sobre o papel histoacuterico da Igreja Romana corrente na eacutepoca da Reforma e rejeitada pelos reformadores permaneceu intocada

PAUL WELLS IGREJAS E HISTOacuteRIA

94

11 A sacramentalidade da IgrejaAssim atualmente um teoacutelogo como Edward Schillebeeckx2 em seu

livro Cristo o Sacramento do Encontro com Deus pode chamar Cristo de ldquoo sacramento primordialrdquo e a Igreja de ldquoo sacramento do Cristo ressuscitadordquo Como tambeacutem nos textos do Vaticano II a Constituiccedilatildeo Lumen Gentium sobre a Igreja (sect7) mostra uma noccedilatildeo muito materialista do corpo de Cristo ldquoNesse Corpo a vida do Cristo eacute infundida nos crentes que satildeo unidos ao Cristo sofredor e glorificadordquo

O irmatildeo Daniel Bourgeois comenta ldquoNa perspectiva catoacutelica essa sacra-mentalidade natildeo se limita ao sistema de sinais que acompanham os atos funda-dores da alianccedila entre Deus e os homens o sistema de sinais que acompanha o povo de Deus natildeo eacute um sistema fechadordquo3 A Igreja e sua vida constituem ldquoum sistema de significaccedilatildeo vivo que se move rico de dinamismo e de uma capacidade inesgotaacutevel em perceber a verdade dos atos da alianccedilardquo Assim haacute uma reatualizaccedilatildeo constante na histoacuteria da Igreja e de seus membros e isso eacute fundamental O grande exemplo dessa operaccedilatildeo eacute a missa como representaccedilatildeo natildeo sangrenta do sacrifiacutecio da cruz No ex opere operato se efetua pelo proacuteprio ato o que nele eacute representado Assim por atos histoacutericos no mundo material o mundo espiritual se faz presente de maneira real e eficaz

A Igreja como sacramento da redenccedilatildeo eacute o meio pelo qual a uniatildeo entre Cristo e o homem se efetua Ela eacute tambeacutem o elo entre o eterno e o temporal em todos os atos que realiza ao longo da histoacuteria Neste sentido os integristas do Monsenhor Lefebvre4 natildeo estatildeo errados ao defender a missa em latim O rito age independentemente da compreensatildeo que dele se tenha conforme a intenccedilatildeo do ato

12 A histoacuteria da Igreja e o reino de DeusLumen Gentium afirma que a Igreja ldquoprovida de dons de seu fundador

recebe a missatildeo de anunciar o reino de Cristo e de Deus e de instauraacute-lo em todas as naccedilotildees formando o germe que daacute iniacutecio a esse reino sobre a terrardquo (sect5) Apesar do caraacuteter discreto dessa formulaccedilatildeo em relaccedilatildeo a outras afirma-ccedilotildees podemos notar sempre a ideia de que a Igreja que faz a ligaccedilatildeo entre este mundo e o mundo espiritual eacute o meio pelo qual o mundo futuro penetra no mundo material e estende progressivamente sua influecircncia Esta ideia que tem sua origem em Agostinho propotildee que o reino de Cristo sobre a terra jaacute

2 NR O teoacutelogo belga Edward Schillebeeckx nasceu em 1914 e faleceu em 20093 BOURGEOIS Daniel ldquoEnsaio de anaacutelise teoloacutegica do integrismo catoacutelicordquo La Revue Reformeacutee

n 174 (1992) p 414 NR Marcel Lefebvre (1905-1991) arcebispo francecircs e rigoroso defensor do movimento tradi-

cionalista catoacutelico destacou-se por sua resistecircncia a algumas decisotildees do Conciacutelio Vaticano II

95

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 91-101

estaacute presente e se manifesta na Igreja Antes da eacutepoca moderna a missatildeo do papa era organizar o reino de Deus sobre a terra e estender sua influecircncia so-bre toda a vida O agente dessa presenccedila era o clero Essa ideia secularizada resultou no marxismo no qual o partido reina sobre toda a vida atraveacutes de seus membros Essa atitude dominante explica em parte por que as naccedilotildees catoacutelicas ou ortodoxas foram os bastiotildees do marxismo-leninismo

A Igreja tem portanto a missatildeo histoacuterica de manifestar a obra redentora de Deus e de adaptar a realidade deste mundo ao outro mundo da mesma ma-neira como o materialismo dialeacutetico anunciou a futura nova humanidade Aqui encontramos a mesma estrutura responsaacutevel pela sacramentalidade da Igreja

13 A Igreja como testemunha da Palavra de DeusNo protestantismo temos uma configuraccedilatildeo totalmente diferente a qual

representa a relaccedilatildeo entre a palavra e seu sentido Haacute aqui uma concepccedilatildeo diferente da relaccedilatildeo entre o tempo e a eternidade Da mesma maneira que uma palavra eacute diferente da realidade que evoca e eacute autocircnoma em relaccedilatildeo a ela haacute para o protestantismo uma distinccedilatildeo radical entre o tempo e a eternidade Esta distinccedilatildeo natildeo eacute ultrapassada pela Igreja que continuaria a encarnaccedilatildeo mas unicamente por Cristo que desce do ceacuteu Cristo eacute a Palavra de Deus que traz a revelaccedilatildeo aos homens ldquoNestes uacuteltimos dias Deus nos falou pelo Filho pelo qual tambeacutem fez o universordquo (Hb 1) Essa revelaccedilatildeo que foi concluiacuteda nas palavras apostoacutelicas eacute a uacuteltima palavra de Deus aos homens

Natildeo mais estamos no periacuteodo da encarnaccedilatildeo e sofrimento de Cristo mas no da sua ressurreiccedilatildeo e reino celeste A Igreja natildeo daacute continuidade agrave encar-naccedilatildeo porque esta foi encerrada pela ressurreiccedilatildeo Considerar a Igreja como continuaccedilatildeo da encarnaccedilatildeo eacute natildeo respeitar o reloacutegio da histoacuteria da revelaccedilatildeo retardando-o a uma hora que jaacute passou Eacute por esta razatildeo tambeacutem que os pro-testantes com razatildeo rejeitaram a utilizaccedilatildeo do crucifixo

O protestantismo propotildee um retorno agraves origens pela fidelidade agrave Pala-vra de Deus A Igreja estaacute onde a Palavra de Deus eacute fielmente pregada Para Calvino a sucessatildeo apostoacutelica natildeo reside nas coisas e nos homens mas na doutrina Calvino recusou crer que a Igreja tenha poderes espirituais particu-lares transmitidos por seus ldquooficiaisrdquo A Igreja se submete agrave Escritura e recebe sua autoridade dela Ela eacute canonizada pela Escritura e natildeo o contraacuterio Assim a autoridade da Igreja tem sua origem na Palavra de Deus e por ela eacute limita-da Nenhuma nova doutrina eacute permitida e natildeo se admite nenhuma doutrina estranha agraves Escrituras A verdadeira Igreja eacute espiritual e celeste Ela inclui os eleitos os filhos de Deus por ele conhecidos e ela se manifesta e se congrega onde a Palavra eacute pregada Assim a Palavra que reuacutene os filhos de Deus daacute o verdadeiro sentido ao povo comprado pelo Cordeiro que foi imolado antes da fundaccedilatildeo do mundo

PAUL WELLS IGREJAS E HISTOacuteRIA

96

Eacute por isso que para o protestantismo os dois sacramentos satildeo ldquopalavras visiacuteveisrdquo que acompanham e explicam a palavra pregada A eficaacutecia do sacra-mento natildeo estaacute propriamente no ato mas na compreensatildeo que dele temos na uniatildeo com Cristo pela instrumentalidade do Espiacuterito Santo A palavra visiacutevel o siacutembolo remete a seu sentido fundamental a purificaccedilatildeo pela morte de Cris-to a comunhatildeo presente com o mesmo Cristo e a expectativa de seu retorno Portanto os sacramentos protestantes requerem inteligecircncia espiritual

Aleacutem disso para o protestantismo o reino de Deus se faz presente natildeo pela Igreja mas pela praacutetica da Palavra O reino tem um caraacuteter global mas que se distingue da influecircncia da Igreja sobre a sociedade e de seus ldquooficiaisrdquo sobre os leigos Cada cristatildeo eacute um sacerdote da nova alianccedila e sua missatildeo eacute servir a Deus em todos os aspectos da vida Ele obedece a Deus na famiacutelia e no mundo do comeacutercio tanto quanto na Igreja

A perspectiva tambeacutem eacute diferente Natildeo se trata do reino futuro que se manifestaraacute no mundo da eternidade no tempo O reino futuro eacute ldquoo novo ceacuteu e a nova terra onde habitaraacute a justiccedilardquo Esse reino eacute anunciado desde o momento em que a Palavra vivida pelo cristatildeo livra a antiga criaccedilatildeo da servidatildeo do pe-cado Este eacute o sentido da ceacutelebre palavra de Lutero ldquoSe eu soubesse que Cristo voltaria amanhatilde hoje eu plantaria uma aacutervorerdquo Plantar uma aacutervore natildeo tem nenhum reflexo sobre a vinda do reino futuro mas o anuncia na criaccedilatildeo atual

Para o protestante a vinda do reino natildeo tem nada a ver com o ldquosobrenatu-ralrdquo que invade e metamorfoseia a natureza mas com a justiccedila que suplanta o pecado Eacute a graccedila da justificaccedilatildeo anunciada na Palavra e para noacutes completada em Cristo que realiza essa libertaccedilatildeo

Nessa perspectiva o protestantismo tem interpretado a histoacuteria muito concretamente pelo esquema criaccedilatildeo queda e redenccedilatildeo Toda a vida religiosa social poliacutetica familiar e pessoal eacute criada por Deus submissa ao pecado mas resgatada pela Palavra de Deus A Igreja tem a funccedilatildeo de pocircr em evidecircncia esta situaccedilatildeo pela Palavra que anuncia

2 A ESCRITURA E A TRADICcedilAtildeOEacute bastante compreensiacutevel que o catolicismo romano com sua ecircnfase sobre

o papel central da Igreja como ponte na histoacuteria entre este mundo e o mundo futuro tenha concebido a ideia do desenvolvimento do dogma A continuida-de eacute assegurada pela autoridade da instituiccedilatildeo histoacuterica da Igreja A principal justificaccedilatildeo do desenvolvimento da tradiccedilatildeo ao lado da Escritura reside na convicccedilatildeo de que a Igreja eacute a continuaccedilatildeo da encarnaccedilatildeo sob a direccedilatildeo do Es-piacuterito Assim a Igreja regulamenta a feacute de seus membros pela Escritura mas tambeacutem pela tradiccedilatildeo que tambeacutem eacute a verdade A Igreja interpreta aumenta e completa a Biacuteblia por suas tradiccedilotildees

97

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 91-101

21 A autoridade da tradiccedilatildeoDessa maneira a Igreja desenvolveu ensinos que ultrapassam o que eacute

ensinado na Biacuteblia Antes de 1500 a tradiccedilatildeo que o padre Gabriel Moran chama ldquoconstitutivardquo em seu livro Escritura e Tradiccedilatildeo tornou-se autocircnoma por direito proacuteprio Essas tradiccedilotildees satildeo os ensinos recebidos pela Igreja e satildeo normativos para a feacute Entre eles podemos destacar o purgatoacuterio a transubs-tanciaccedilatildeo as doutrinas marianas o primado papal a oraccedilatildeo aos santos etc

Quanto agrave origem dessas tradiccedilotildees reconhecidas pela Igreja como pos-suindo autoridade diferentes proposiccedilotildees foram formuladas o papa porque ele representa Cristo para a Igreja os conciacutelios da Igreja ou a tradiccedilatildeo oral veiculada apoacutes a eacutepoca apostoacutelica Quanto agraves duas questotildees fundamentais ndash a da relaccedilatildeo entre a Biacuteblia e a tradiccedilatildeo e a de identificar qual das duas tem a primazia ndash a posiccedilatildeo de Roma natildeo variou muito atraveacutes dos seacuteculos O padre Yves Congar afirmou que a posiccedilatildeo romana reconhece a insuficiecircncia das Escrituras O padre Georges Tavard em seu livro Santa Escritura ou Santa Igreja diz o seguinte ldquoA Escritura e a Igreja se completam mutuamente A Escritura conserva o primado ontoloacutegico e a Igreja o primado histoacuterico porque eacute somente ao recebecirc-la que os homens tomam consciecircncia da Palavrardquo

Assim historicamente a Escritura e a tradiccedilatildeo vecircm da Igreja A Igreja transmite a Escritura de uma geraccedilatildeo a outra com um conhecimento mais profundo sobre o seu sentido A tradiccedilatildeo eacute essencialmente a interpretaccedilatildeo da Escritura agrave qual se acrescentam os ensinos que ultrapassam as afirmaccedilotildees claras do texto sagrado O Conciacutelio de Trento respondeu aos reformadores ao afirmar a autoridade da Escritura e da tradiccedilatildeo Congar comenta ldquoAo afirmar o valor normativo das tradiccedilotildees apostoacutelicas natildeo contidas nas Escrituras o Conciacutelio fez da tradiccedilatildeo um princiacutepio formal paralelo agraves Escrituras senatildeo autocircnomo em relaccedilatildeo a elasrdquo

Natildeo entraremos aqui na discussatildeo recente sobre a interpretaccedilatildeo dos textos de Trento Basta dizer que de fato muitos protestantes adotaram em princiacutepio a noccedilatildeo da insuficiecircncia da Escritura como mostram as discussotildees da Confe-recircncia de Feacute e Constituiccedilatildeo em Montreal sobre ldquoA tradiccedilatildeo e as tradiccedilotildeesrdquo Um consenso atual entre catoacutelicos modernistas e protestantes liberais afirmaria a seguinte posiccedilatildeo ldquoA Escritura eacute o primeiro elo da tradiccedilatildeo cristatilde Como toda tradiccedilatildeo humana ela eacute faliacutevel e insuficiente A Escritura e as tradiccedilotildees satildeo ambas suscetiacuteveis de errarrdquo Podemos chamar esta posiccedilatildeo de traditio sola

22 A posiccedilatildeo dos reformadoresOs reformadores natildeo comeccedilaram seu conflito com a Igreja Romana por

causa da tradiccedilatildeo Foi quando Eck disse a Lutero que sua doutrina da justi-ficaccedilatildeo estava de acordo com o Novo Testamento mas natildeo de acordo com a tradiccedilatildeo da Igreja que o problema da autoridade da tradiccedilatildeo surgiu Em 1518

PAUL WELLS IGREJAS E HISTOacuteRIA

98

em Leipzig Eck obrigou Lutero a admitir que nem os Pais nem o direito ca-nocircnico mas somente as Escrituras tecircm autoridade uacuteltima sobre a Igreja

Acusaram os reformadores de natildeo terem antecedentes histoacutericos de romper com tudo o que o Espiacuterito havia feito ao conduzir o povo de Deus Contra o argumento segundo o qual a Igreja Romana tinha o apoio dos Pais dos cinco primeiros seacuteculos Calvino respondeu que sua autoridade natildeo provinha de sua antiguidade nem de seu reconhecimento pela Igreja mas que derivava das Escrituras Calvino honrou Agostinho ao citaacute-lo perto de trecircs mil vezes na sua Instituiccedilatildeo Cristatilde mas igualmente o criticou por suas ideias quanto ao celibato ao purgatoacuterio agrave autoridade eclesiaacutestica e sua interpretaccedilatildeo alegoacuterica da Escritura Para Calvino os Pais da Igreja podem ser reconhecidos enquanto permanecerem fieacuteis agrave Escritura e sua autoridade estaacute sempre subordinada a esta Calvino se sentiu completamente agrave vontade ao recusar as tradiccedilotildees roma-nas natildeo biacuteblicas ndash suas cerimocircnias doutrinas sacramentos e ministeacuterios ndash por duas razotildees Primeiramente os Pais da Igreja constantemente afirmaram que a Igreja deve se submeter somente agrave Palavra escrita mas a Igreja romana foi sempre atraiacuteda para o lado contraacuterio Em segundo lugar os Pais cometeram erros e nessa aacuterea a Igreja os seguiu contra o ensinamento Biacuteblico Como Lutero Calvino tomou como princiacutepio de autoridade para a vida da Igreja tatildeo somente a Escritura

23 O princiacutepio de Sola Scriptura contra ldquoEscritura e tradiccedilatildeordquo A ruptura entre os protestantes e Roma diz respeito a esta questatildeo fun-

damental quem tem a autoridade final em mateacuteria de feacute e praacutetica A posiccedilatildeo de Calvino sobre isso se resume nos seguintes pontos

bull Quando lemos a Escritura ouvimos a proacutepria voz de Deus Nada de origem humana se mistura a isso Sem a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo Isaiacuteas ou Jeremias teriam dito palavras impuras e tolas Mas quando o Espiacuterito comeccedilou a usaacute-los como instrumentos seus laacutebios se tornaram puros e santos

bull Uma vez que Deus fala na Escritura e em nenhum outro lugar natildeo haacute outra fonte de onde possa vir sua Palavra

bull Em razatildeo de sua origem uacutenica as Escrituras tecircm a autoridade e a suficiecircncia da Palavra de Deus Elas contecircm tudo o que Deus quer falar aos homens

bull Elas tecircm a autoridade suprema sobre a vida do cristatildeobull Ao estudarmos a natureza ou a histoacuteria podemos aumentar nossos

conhecimentos sobre Deus unicamente porque primeiramente somos iluminados pela Palavra biacuteblica

99

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 91-101

Foi assim que a doutrina protestante claacutessica formulou a finalidade das Escrituras ldquoDepois de Deus mesmo ter falado diz Calvino ele natildeo deixou mais nada a ser dito por outrosrdquo A Palavra eacute o viacutenculo entre o tempo e a eternidade porque por ela noacutes ouvimos Deus falar em nossa linguagem humana Aqui vemos que a concepccedilatildeo protestante implica num viacutenculo atraveacutes da Palavra que veicula o sentido da realidade Essa perspectiva eacute criacutetica em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo segundo a qual os atos e as tradiccedilotildees da Igreja representam a intenccedilatildeo divina na salvaccedilatildeo

Por esta razatildeo tambeacutem Calvino rejeita o sistema catoacutelico no qual as aparecircncias exteriores satildeo uma usurpaccedilatildeo da autoridade de Cristo resultando numa Igreja falsa Consequentemente longe de ser um pecado separar-se de Roma eacute uma ocasiatildeo para reencontrar pela Palavra a verdadeira Igreja em suas origens

3 O ESPIacuteRITO SANTO E A VIDA CRISTAtildePara o catolicismo romano a histoacuteria representa uma sucessatildeo de atos que

realizam a intenccedilatildeo divina Este mundo estaacute em relaccedilatildeo orgacircnica com o mundo futuro Deus usa as realidades externas como instrumentos eficazes Eacute por essa razatildeo que o esquema natureza e graccedila eacute capital no pensamento catoacutelico em particular a partir da Idade Meacutedia A graccedila eacute o ato divino que vem completar a natureza e preparaacute-la para a sua transfiguraccedilatildeo final

31 Encarnaccedilatildeo e vida cristatilde no catolicismo romanoNesse sentido a encarnaccedilatildeo de Jesus Cristo apresenta uma forma nova

de humanidade que realiza a intenccedilatildeo da criaccedilatildeo A vinda de Jesus Cristo torna a humanidade completa A Igreja como continuaccedilatildeo da encarnaccedilatildeo eacute uma nova humanidade sob a direccedilatildeo especial do Espiacuterito Santo Isto cons-titui a principal justificaccedilatildeo para o desenvolvimento do dogma e da praacutetica da Igreja no decorrer da histoacuteria

As consequecircncias satildeo importantes para a vida cristatilde Na Igreja Romana a pessoa realiza progressivamente sua nova humanidade num processo em que o homem se prepara para o outro mundo ao receber a graccedila sobrenatural atraveacutes dos sacramentos Fora da Igreja natildeo haacute salvaccedilatildeo e a graccedila eacute recebida pela natildeo resistecircncia do indiviacuteduo Este processo de aperfeiccediloamento continua mesmo aleacutem-tuacutemulo no purgatoacuterio

32 O Espiacuterito Santo e a vida cristatilde no protestantismoNo protestantismo com seu modelo palavrasentido a encarnaccedilatildeo eacute a

revelaccedilatildeo da Palavra de Deus Longe de completar a humanidade esta reve-laccedilatildeo de Deus em carne eacute necessaacuteria porque a natureza estaacute caiacuteda e o homem eacute incapaz de agradar a Deus Deus se revela em Cristo que em particular se

PAUL WELLS IGREJAS E HISTOacuteRIA

100

revela na cruz como Salvador abolindo o pecado por seu sacrifiacutecio Por essa razatildeo o protestantismo destaca o ldquouma vez por todasrdquo da epiacutestola aos Hebreus

Ao rejeitar a hierarquia romana Lutero e Calvino demoliram a noccedilatildeo de uma Igreja sacramental Como a graccedila eacute recebida O Espiacuterito Santo fala ao crente de maneira direta pela Palavra de Deus O Evangelho diz que somos pecadores mas justificados pela justiccedila da cruz ndash ldquoCristo em nosso lugarrdquo ndash quando nele cremos Assim o Espiacuterito de Deus efetua o novo nascimento do indiviacuteduo que se torna unido a Cristo pela feacute e eacute feito nova criaccedilatildeo Eacute pela Palavra e pelo Espiacuterito que ele eacute convertido

O padre Tavard afirma que o calvinismo eacute uma pneumatologia Ele destacou um ponto importante Para Calvino a Igreja deve abandonar sua proacutepria sabedoria e se colocar sob a direccedilatildeo do Espiacuterito pelas Escrituras Os dois andam sempre juntos O Espiacuterito como Autor das Escrituras eacute seu uacutenico inteacuterprete e natildeo o magisteacuterio da Igreja Ele ilumina o entendimento do cristatildeo que recebe a oferta de salvaccedilatildeo e o faz reconhecer a verdade da Palavra de Deus O Espiacuterito natildeo se dissocia jamais da Palavra biacuteblica e natildeo a contradiz porque eacute a sua Palavra

O Espiacuterito age sobre a Igreja Pela Palavra ele vivifica os crentes e assim acrescenta ao corpo de Cristo aqueles que creem Eacute neste sentido afirma Cal-vino que devemos compreender a expressatildeo ldquofora da Igreja natildeo haacute salvaccedilatildeordquo Por sua Palavra o Espiacuterito reina tambeacutem sobre a Igreja e a conduz Para que uma Igreja seja autecircntica eacute preciso que ela viva da vida do Espiacuterito que vem somente pela Palavra Assim a Palavra e a Igreja satildeo unidas pelo poder do Espiacuterito A Igreja resulta entatildeo da obra da Palavra e do Espiacuterito Ela vem deles e eacute subalterna a eles A Palavra e o Espiacuterito satildeo divinos a Igreja visiacutevel eacute humana

CONCLUSAtildeOPor que sou protestante Porque creio que o pensamento protestante eacute

o que estaacute mais proacuteximo da revelaccedilatildeo biacuteblica em particular em seu ponto central Jesus Cristo eacute a Palavra-revelaccedilatildeo de Deus para a nossa salvaccedilatildeo sob uma forma limitada e rebaixada a carne humana A encarnaccedilatildeo representa o rebaixamento de Deus que se revela como servo ateacute agrave morte de cruz Deus o Filho sofreu a consequecircncia do nosso pecado Limitaccedilatildeo obediecircncia e serviccedilo satildeo as palavras de ordem na Igreja submissa agrave Palavra de Deus A Igreja eacute posta natildeo sob o signo da dominaccedilatildeo divina e da gloacuteria mas sob a cruz Para compreender a relaccedilatildeo do nosso mundo com o outro Deus nos chama a considerar o sacrifiacutecio o abandono mesmo de sua Palavra encarnada Este eacute o centro da histoacuteria e seu sentido Noacutes estamos nos extremos de uma sucessatildeo de atos divinos que realizam progressivamente o propoacutesito de Deus

Entretanto um perigo existe Hoje a crise provocada pela criacutetica racio-nalista agrave Escritura minou a feacute na Biacuteblia como Palavra de Deus A Escritura eacute

101

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 91-101

considerada como insuficiente porque eacute reconhecida apenas como um teste-munho humano sobre uma revelaccedilatildeo que a ultrapassa Quando isso acontece a Biacuteblia eacute submetida ao julgamento de uma autoridade superior a razatildeo os sentimentos as tradiccedilotildees histoacutericas ou o imediatismo de um encontro com Deus Entatildeo a Biacuteblia natildeo eacute mais a autoridade final para a Igreja ou para o cristatildeo ela eacute somente um dos fatos constitutivos da vida cristatilde

A questatildeo fundamental destacada pelos reformadores permanece sempre ldquoEacute biacuteblico Sim ou natildeordquo Tudo o que exigir uma resposta negativa deve ser descartado de nossa vida Dizer e repetir essa eacute a vocaccedilatildeo histoacuterica da Igreja5

ABSTRACTThis article deals with the concept of tradition the manner in which a

religious group presents in the course of history the relationship between the spiritual and the historical material world Tradition positions a group in regard to its origins transmits beliefs and as far as another world is concerned evokes heaven and brings hope In Christianity there are two ways of considering and representing the relationship between the spiritual and the material worlds Roman catholicism represents such relationship as comparable to one between an act and the intention behind it Protestantism considers this relationship as comparable to one between a word and its meaning In order to approach the theme Church and history the author proposes to make a comparison of these two positions in three areas Church and sacraments Scripture and tradition and the Holy Spirit and Christian life In conclusion he explains why the Protestant position expressed by the Reformation represents authentic Christianity and how such position is under threat in the present time

KEYWORDSCatholicism Protestantism History Church Tradition Scripture

5 Aleacutem dos autores catoacutelicos romanos a que fiz referecircncia aproveitei a anaacutelise de dois protestantes hoje esquecidos HEIM Karl Das Wesen des Evangelischen Christentums (1929) tiacutetulo em inglecircs Spirit and Truth (Lutterworth 1935) e QUICK Oliver C Catholic and Protestant Elements in Christianity (Longmans Green 1924)

103

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION THE PRIMACY OF BIBLICAL REVELATION

Isaias DrsquoOleo Ochoa

ABSTRACTIn his discussion of evolution Bavinck offers a modified theory of

development rooted not under a mechanistic and naturalistic worldview as Darwin does but under a ldquotheistic-friendlyrdquo framework This article argues that Bavinckrsquos discussion of evolution as a whole endorses a modified AristotelianThomistic framework in order to understand the theory of development and thus overcomes the challenges raised by Darwinrsquos naturalistic worldview to biblical revelation

KEYWORDSDarwinism Evolution Evolutionary worldview Theology-science dia-

logue Theory of development

INTRODUCTIONCurrent scholarship on Herman Bavinckrsquos view of the theory of evolution

has tended to be unified in affirming that despite his criticism of it Bavinck seems to provide some room for evolution On one hand from his discussion in Reformed Dogmatics (originally published in Dutch between 1895-1901) and other writings1 it may be concluded that Bavinck fights fiercely against

The author is a minister of Word and Sacrament in the Reformed Church of America He is currently pursuing a PhD degree at Calvin Theological Seminary with concentration in Philosophical Theology He received his Master of Theology degree at Calvin Seminary (2017) and his Master of Divinity at Western Theological Seminary (2015)

1 Cf Herman Bavinck Reformed Dogmatics II ed John Bolt trans John Vriend (Grand Rapids MI Baker Academic) 407-529 Bavinck ldquoCreation or Developmentrdquo trans Hendrik De Vries in The Methodist Review (1901) 849ndash74 Bavinck ldquoEvolutionrdquo in Essays on Religion Science and Society ed John Bolt (Grand Rapids MI Baker Academic 2008) 105-118

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

104

Darwinrsquos evolutionary project and seems to reject it completely One the other hand in those same discussions where he treats the topic one also observes that Bavinck seems to be willing to concede some kind of ldquoevolutionrdquo as well For those who believe that Bavinck retains the notion of biological develop-ment of natural creatures in the Darwinian sense in order to integrate it into his understanding of biblical revelation one issue emerges while Bavinck appropriates the concept of ldquodevelopmentrdquo from the theory of evolution he seems to use the term in an opposite sense from that of Darwinism Taking this into account it is the thesis of this paper that in his discussion of evolution Bavinck progressively endorses a modified AristotelianThomistic notion of development in order to overcome the challenges raised by Darwinrsquos method-ology and naturalistic worldview to biblical revelation

When Bavinck debated evolution he objected to a series of features of Darwinrsquos theory of development These objections include the theoryrsquos features of naturalism its mechanistic understanding of the world its atheistic world-view and its teleological characteristic of natural organisms Although there exists scholarship that discusses Bavinckrsquos approach to evolution however it largely overlooks how Bavinck understands the notion of development in his dialogue with the theory of evolution In this respect and in order to narrow this research I will focus exclusively on Rob P W Visser and Abraham C Flipsersquos works which develop the theme of evolution in greater detail2

Rob P W Visserrsquos study ldquoDutch Calvinists and Darwinism 1900-1960rdquo in Nature and Scripture in the Abrahamic Religions offers an historical analysis of the reception of Darwinrsquos theory of evolution among the Cal-vinists in the Netherlands Visserrsquos work emphasizes the role that Abraham Kuyper and Herman Bavinck played in the theological renewal at the be-ginning of the twentieth century in the Dutch community (VISSER 1998 p 312) Visser suggests that although Darwinrsquos theory of evolution was rapidly integrated into the Dutch university system by the last two decades of the nineteenth century the Dutch Calvinist response tended to be slow and negative (VISSER 1998 p 293) Both Kuyper and Bavinck emphasized the necessity of differentiating Darwinrsquos theory of evolution as a scientific theory from its metaphysics Visser claims (VISSER 1998 p 294) In his view unlike Kuyper Bavinck was more positive about the theory of evolution for two main reasons First he believed that evolution relays part of the truth

2 See Rob Visser ldquoDutch Calvinists and Darwinism 1900-1960rdquo Nature and Scripture in the Abrahamic Religions (Leiden Brill 2008) 293-316 Abraham C Flipse ldquoThe Origins of Creationism in the Netherlands The Evolution Debate among Twentieth-Century Dutch Neo Calvinistsrdquo Church History 81 n 1 (March 2012) 104ndash47 For background information read George Harinck ldquoTwin Sisters with a Changing Character How neo-Calvinists Dealt with the Modern Discrepancy between Bible and Natural Sciencesrdquo In Nature and Scripture in the Abrahamic Religions 1700-Present Leiden Brill 2008 317-370

105

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

about the natural world Second Bavinck believed that current species were not identical with those that God originally created In this respect Visser writes

Bavinck did not subscribe to Darwinrsquos explanation of evolutionary development Natural selection ruled out divine intervention and was for this reason unac-ceptable He defended the idea that evolution was a teleological and organic rather than a mechanical process which opened its existence to an intelligent cause lsquoDesign law goal and directionrsquo and not selection where the keywords to understand and explain organic evolution Bavinck like Kuyper regarded God as the ultimate cause of evolution Bavinck presented his combination of creation and evolution as a Christian alternative for Darwinrsquos theory (VISSER 1998 p 296)

Visser reads Bavinck as one who seems willing to accept the development of natural species but finds unacceptable Darwinrsquos proposal of natural selection because of its rejection of a teleological character3 It is such a reading that leads Visser to affirm that both Kuyper and Bavinck succeeded in integrating evolution and biblical revelation

Kuyper and Bavinck removed the controversial elements [of Darwinrsquos theory of evolution] notably natural selection and the descent of man Evolutionary change was the only aspect of the theory that they could acceptThey [introduced] organic mutability into divine providence which enabled them to incorporate their modified view of biological evolution in their theology (VISSER 1998 p 297)4

Furthermore it is noteworthy to mention the context in which such integration happens In this respect Visser writes

The response of Kuyper and Bavinck to Darwin occurred in the context of attempting to develop a new understanding of Scripture as revelation resulting from both divine and human action They referred to this new understanding as organic insertion It contrasted with the mechanical inspiration that became dominant in the seventeenth century In this Calvinist orthodoxy God was believed to have verbally dictated the text with no contribution by the human writer As a result God became the warrant for a text that was considered ob-jective and could be used in rational argument The Bible became a source of objective factual information about nature and history (VISSER 1998 p 298)5

3 Cf Harry R Boer ldquoEvolution and Herman Bavinckrdquo Reformed Journal 37 n 12 (December 1987) 3-4 p 3

4 See also Eduardo J Echeverria ldquoReview Essay The Philosophical Foundations of Bavinck and Dooyeweerdrdquo Journal of Markets amp Morality 14 n 2 (2011) 463-483 pp 465ndash67

5 For further discussion see also James Eglinton ldquoBavinckrsquos Organic Motif Questions Seeking Answersrdquo Calvin Theological Journal 45 (1) 20120 51-71

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

106

There are many layers to debate within Visserrsquos previous citation One issue is with the suggestion that Bavinckrsquos interest in exploring the theory of evolution is connected to his desire to redefine his understanding of Scripture as revelation But Visser joins together what Bavinck kept distinct In that regard Visser does not seem to describe Bavinck correctly

Despite his criticism of Darwinrsquos theory of evolution Bavinck seems to be attracted to this topic and engages seriously with it In 2011 Willem J de Wit published a collection of essays titled On the Way to the Living God A Cathartic Reading of Herman Bavinck and An Invitation to Overcome the Plausibility Crisis of Christianity6 When writing briefly about Bavinckrsquos worldview and evolution he asks ldquoWhy will [Bavinck] later feel so attracted by the theory of evolution that he does not reject it once and for all but comes back to it again and againrdquo (DE WIT 2011 p 15) De Witrsquos way of posing this question is itself debatable because it suggests a personal and subjective crisis within Bavinck However I think de Witrsquos question is important to approach

De Wit discusses the prominence of worldviews in Bavinckrsquos theological work He states

From Creation or Development (1901) to The Philosophy of Revelation (19081909) the antithesis between the two worldviews is not just a theme but probably the most important issue for Bavinck He identifies evolution as the key concept of the modern worldview and revelation as the key concept of the Christian worldview In his publications on morals science education family social relations etcetera he seeks to make clear how different views in these areas are related to a difference in worldview and reflects on these areas from the perspective of his Christian worldview (DE WIT 2011 pp 55-56)

The reason behind Bavinckrsquos interest in evolution has less to do with his obsession than with the reality of the modern spirit which trumpeted Darwinism In any case as de Wit suggests the topic of evolution is not of secondary value in Bavinckrsquos theological discussion Rather part of Bavinckrsquos interest is in studying carefully the Christian against the naturalistic worldview Without understanding properly such a significant aspect Bavinckrsquos writings can be easily misunderstood especially those containing dated information

Another historical study is Abraham Flipsersquos ldquoThe Origins of Creationism in the Netherlands The Evolution Debate among Twentieth-Century Dutch Neo-Calvinistsrdquo It was published in 2012 and complements Visserrsquos work Flipse explores the role of Calvinists and their interest ldquoto formulatehellip[a] coherent view of science society and culturerdquo (FLIPSE 2012 p 107) This

6 Willem J de Wit On the Way to the Living God A Cathartic Reading of Herman Bavinck and An Invitation to Overcome the Plausibility Crisis of Christianity (Amsterdam VU University Press 2011) 16-94

107

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

exploration sets up the framework for this paperrsquos discussion Flipse offers his readers another of the main reasons why Bavinck rejected the theory of evolution besides discussing Bavinckrsquos position on the possibility to rescue the theory itself of some crucial elements Flipse writes

The ldquomechanistic worldviewrdquo that according to Bavinck underlies the Dar-winistic view of evolution a priori excluded supernatural interventions and prescribed that everything lsquoshould be reduced to mechanical motionrsquo Therefore Darwinists claim that mankind has descended from animals and that life has emerged spontaneously from inorganic matter How could it have happened otherwise If the mechanistic or ldquomodernrdquo worldview were to be abandoned Bavinck believed a different worldview could produce a different theory This theory could contain elements of Darwinism and would still be in harmony with belief in creation (FLIPSE 2012 p 112)

Like Visser Flipse reads Bavinck as not totally opposed to the theory of evolu-tion This would allow in Flipsersquos understanding of Bavinck that some ele-ments of the theory of evolution could be reinterpreted into a new framework that may be consistent with biblical revelation This line of reasoning was based in part because of the emphasis of Bavinck and other Dutch neo-Calvinists on the infallible character of the Scriptures (FLIPSE 2012 p 113) That is human knowledge and Scripture ought to be unified Of interest to this paper is Flipsersquos accurate conclusion in his first section that one of the greatest contributions of Bavinck and Kuyper to the evolution debate was not merely a matter of responding to specific questions Rather one of the greatest con-tributions was their approach to science based on the analysis of worldviews and presuppositions (FLIPSE 2012 p 116)

To address this issue Part I of this paper recounts how Bavinck understood and criticized Darwinism in the second volume of Reformed Dogmatics focus-ing primarily on his discussion of human origins in sect279-83 Here Bavinck shows a sympathetic reading of Aristotle and his particular use of the term lsquoevolutionrsquo In this section it is demonstrated that a) Bavinckrsquos understand-ing of lsquoevolutionrsquo or lsquodevelopmentrsquo differs significantly from the interpretation of Darwin and modern evolutionary theory and b) Bavinck is open to the possibility of accepting some features of Darwinism to be compatible with Scripture but only in a very limited sense Part II draws upon Bavinckrsquos two essays ldquoCreation or Developmentrdquo and ldquoEvolutionrdquo This second part ana-lyzes how Bavinck responded to Darwinism while also holding a high view of biblical revelation By analyzing the first essay listed above I demonstrate that Bavinck reframes his discussion on evolution as a worldview issue By analyzing the second essay I demonstrate that Bavinck endorses a notion of evolution in a modified Aristotelian sense

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

108

1 DARWINISM IN BAVINCKrsquoS REFORMED DOGMATICSIn his Reformed Dogmatics Bavinck introduces the topic of creation

and lsquoevolutionrsquo in relation to Darwinism Although he seems to remain open to the possibility of any eventual appropriation of aspects that might not be in contradiction with biblical revelation such openness must be understood in a very limited sense In order to establish a distinction between the former theory of evolution which had a Christian-Aristotelian framework from the modern interpretation of evolution which clings to a materialistic and naturalistic frame-work Bavinck tries to detach the term lsquodevelopmentrsquo or lsquoevolutionrsquo from its association with Darwinism and the eighteen century non-teleological theories To achieve his purpose Bavinck proceeds to sympathetically read Aristotle and his understanding of lsquoevolutionrsquo and lsquodevelopmentrsquo and from such a position becomes critical of Darwinrsquos theory of evolution

11 Evolution is not a modern construct Bavinck argues that the notion of evolution was developed by the Greek

philosophers Among those he cites Aristotle is a significant reference7 For Bavinck Aristotle rightly ldquoattributed an organic and teleological characterrdquo to the notion of development the transition from potentiality into actuality (BAVINCK 2004 p 513)8 With such understanding Christianity and the notion of lsquoevolutionrsquo would not contradict each other In this respect Bavinck writes ldquoFrom the Christian position there is not the least objection to the notion of evolution or development as conceived by Aristotle on the contrary it is creation alone that makes such evolution possiblerdquo (BAVINCK 2004 p 513) One observes that Bavinck here offers a sympathetic reading of Aristotlersquos view on lsquoevolutionrsquo and seems to agree with him at least in general terms

More useful for this paperrsquos argument is Bavinckrsquos assertion that during the eighteenth century the notion of evolution departed from this Aristotelian notion of development into other philosophical positions ldquoBut in the eigh-teenth century evolution was torn from its basis in theism and creation and made serviceable to a pantheistic or materialistic systemrdquo (BAVINCK 2004 p 513) Bavinck correctly charges Rousseau Kant Goethe Hegel and others of promoting such departure However one difference Bavinck claims existed between the position of these philosophers listed earlier and the modern approach to evolution the notion of lsquoevolutionrsquo still held its organic and teleological

7 Among those Greek philosophers who discussed the topic of lsquodevelopment or evolutionrsquo Bavinck cites the natural philosophers (eg Anaximenes Heraclitus) and the Atomists Bavinck clari-fies that while Heraclitus presented his theory with a pantheistic view the Atomists used a materialistic framework instead

8 Herman Bavinck Reformed Dogmatics II ed John Bolt trans John Vriend Grand Rapids Mich Baker Academic 2004 407-529 p 513

109

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

character Bavinck argues that it was through French naturalists J B Pierre de Lamarck and E G Saint-Hilaire along with English biologist and philosopher Herbert Spencer among other scholars that this ldquo[Aristotelian] evolutionary theory was so refashioned that it led to the descent of humanity from animal ancestryrdquo (BAVINCK 2004 p 513)

Although in the previous sentence Bavinck does not explicitly include the term lsquoAristotelianrsquo he seems to refer to it Bavinck first rightly claims that the departure of the lsquotheistic-creationistrsquo evolutionary theory had started before Darwin and secondly that Darwinrsquos observations about humanity and animals were ldquoserviceable to a hypothesis that was already dominantrdquo (BAVINCK 2004 p 513) In sum the notion of lsquoevolutionrsquo for Bavinck must not be understood exclusively as a product of Darwinism or modern theories

Interlude how did Bavinck understand DarwinismWhen Bavinck discusses Darwinrsquos theory of evolution or Darwinism he

understands it as

the theory that the various species into which organic entities used to be divided possess no constant properties but are mutable that the higher organic beings have evolved from the lower and that man in particular has gradually evolved in the course of centuries from an extinct genus of ape that the organic in turn emerged from the inorganic and that evolution is therefore the way in which under the sway of purely mechanical and chemical laws the present world has come into being (BAVINCK 2004 p 514)

This concise definition allows us to better comprehend how Bavinck understood Darwinism Careful attention must be paid into the series of con-siderations Bavinck offers of Darwinrsquos theory of evolution naturersquos struggle for life natural and sexual selection certain properties passing to future gen-erations and perfection of the organism by and through mutations Bavinck argues that all these considerations constitute mere ldquoassumptions and interpreta-tionsrdquo (BAVINCK 2004 p 514) For him scholars particularly theologians philosophers and scientists rightly recognized Darwinrsquos theory as a flawed and even a contradictory system (BAVINCK 2004 p 514-15) Therersquos no doubt that Bavinck shares such assessments and agrees with them His posi-tion however is reflected more clearly when he offers his major criticism to the modern theory of evolution

One notable aspect that must be clarified is Bavinckrsquos distinction between Darwinism in the broader sense versus its restricted sense While the latter refers to the ldquoexplanation that Darwin with his theory of natural selection offered for the origin of speciesrdquo the former refers to ldquothe opinion that the higher or-ganism evolved from the lower organisms and that the human species therefore gradually evolved from animal ancestryrdquo (BAVINCK 2004 p 516) Bavinck

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

110

believes that the restricted sense of Darwinism was generally discarded and the broader sense still enjoyed a good reputation during his era as it had earlier (BAVINCK 2004 p 516) Even as Bavinck pays little attention to the restricted sense of Darwinrsquos theory in relation to the broader one it does not mean he accepts it or finds it compatible with biblical revelation On the contrary Bavinck seems to reject the theory of natural selection without further consideration

12 Darwinism is incompatible with science and revelationBavinck offers four major critiques to the modern theory of evolution The

first one is that the theory of descent has not clearly demonstrated the origin of life Bavinck argues that evolution makes matter movement and life eternal By doing so the modern evolutionary theory adds a metaphysical dimension to the notion of evolution (BAVINCK 2004 p 517)9 This situation may be problematic for an eventual integration with biblical revelation especially if the new added metaphysical dimension is in tension with what Scripture says regarding human protology

Second Bavinck argues that Darwinism has not successfully explained the development of organic life in contrast to the Genesis narrative which ndash by claiming that animals and plants have come forth from the earth by divine order since the beginning of creation ndash gives sense to evolution (BAVINCK 2004 p 517) By using the notion of diversity and dissimilarity Bavinck claims that Darwinism is unable to explain the development of organic life In Bavinckrsquos view this proves the failure of Darwinism Thus he writes ldquo[N]atural and sexual selection are insufficient to make possible such changes in the species and have accordingly already been significantly limited and modified by Dar-win himselfrdquo (BAVINCK 2004 p 518) In addition empirical observation or science Bavinck claims has not shown a gradual transition of species from one to another On the contrary they have demonstrated that ldquoall kinds of spe-cies existed side by side from the beginningrdquo (BAVINCK 2004 p 518)10 In a few words what Bavinck suggests here is that Darwinism if true science must necessarily bases its theories and conclusions only on demonstrable facts

In this respect Bavinck believes that ldquo[m]aterialism and Darwinism are both historically and logically the result of philosophy not of experimental science Darwin himself in any case states that many of the views he presented were highly speculativerdquo (BAVINCK 2004 p 518-19)11 With this assertion

9 See also footnote 19 on p 51710 Besides this Bavinck gives two other reasons in order to support his point the lack of abundant

transitional forms of species and the belief that acquired properties are not passed on through heredity Regarding the latter point nevertheless Bavinck acknowledges that scholarship is enormously divided

11 In this respect Bavinck adds ldquoAccording to Haeckel Darwin did not discover any new facts what he did was combine and utilize the facts in a unique way The profound kinship between humans and ani-

111

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

Bavinck claims that Darwin was basically offering a philosophical response to the problem of evolution By this he suggests that Darwinrsquos account of evolu-tion was not based on scientific facts but on mere philosophical speculation

The third aspect in which Bavinck criticizes Darwinism is regarding the serious issues this system encounters when it tries to explain human origin To support his criticism Bavinck argues that there does not truly exist any positive proof that demonstrates humans have indeed descended from animal ancestry Bavinck offers two arguments the actual difference between humans and animals has always existed as well as the assumption of some transitional species These arguments are closely related to Bavinckrsquos belief that Darwinism is highly speculative

The fourth criticism Bavinck makes is the failure of Darwinism to explain humanity from a mentalpsychic dimension One of the main problems Bavinck finds in that sense is that Darwin tries ldquoto derive all the mental phenomena [eg consciousness] to be found in humansrdquo from the analogy of animal phenomena (BAVINCK 2004 p 519) Unlike biblical revelation Bavinck believes natural science has limitations in addressing mental phenomena and answering ultimate questions

It becomes clear that with this general criticism of Darwinrsquos approach to science Bavinck proceeds to reject Darwinism The problem further com-plicates with the close connection of Darwinism and materialism Bavinck argues that Darwinism significantly relies on a materialistic framework Even worse it ldquopaves the way for the subversion of religion and morality and the destruction of our humannessrdquo (BAVINCK 2004 p 520) Besides its tension with empirical science Bavinck argues that the theory of descent is also in tension with biblical revelation by ldquoviolat[ing] the image of Godrdquo in humanity and ldquodegrad[ing] the human into an image of the orangutan and chimpanzeerdquo (BAVINCK 2004 p 520) From this one concludes that in Bavinckrsquos view the doctrine of the image of God and evolutionary thinking are simply incompatible

13 Biblical revelation has priority over scienceBavinck defends one single kind of science where biblical revelation has

priority over worldviews and natural science However one must be cautious in that regard Bavinckrsquos theology is anti-dualistic and strongly dichotomizing revelation against science would be an error What Bavinck seems to defend is that scientific data must be interpreted in light of biblical revelation and not vice versa In this respect Bavinck defends the position that Scripture is

mals comes through in the concept of lsquorational animalrsquo But in earlier times this fact was not yet combined with the monistic philosophy which says that from a pure potency which is nothing ndash like such things as atoms chaos or cells ndash everything can nevertheless evolverdquo BAVINCK 2004 pp 518-19 Noteworthy to observe is Bavinckrsquos reference to Aristotlersquos concept of potency and his monistic philosophy

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

112

the one that offers a real account of humanityrsquos origins and of the different languages cultures races and alike For him all these human dimensions point ldquoto a single act of God by which he intervened in the development of humanityrdquo (BAVINCK 2004 p 525) Bavinckrsquos commitment to finding in Scripture ultimate questions is prominent Despite the diversity of languages and human ideas he claims there is still unity and that against such unity Darwinism is unable to provide an objection (BAVINCK 2004 pp 525-26)

One can observe that Bavinck seems to be open to the possibility of ap-propriation of some evolutionary ideas In that regard current scholarship on Bavinck is correct Nonetheless one must also consider that Bavinck allows such an appropriation only if it does not enter conflict with biblical revelation For instance discussing the diversity of current organisms Bavinck concedes that perhaps Darwinism might be useful to clarify the truth He writes ldquoDar-winism indeed furnishes the conceptual means of explaining the possibility of a wide assortment of changes within a given species as a result of various climatic and lifestyle influences To that extent it renders excellent service to the defense of truthrdquo (BAVINCK 2004 p 526) As seen Bavinck considers that the notion of lsquobiological changersquo can be a tool for biblical revelation One must not assume nonetheless that such lsquochangersquo must be understood in the Darwinian sense as Visser and Flipse seem to have concluded The fact that Darwinism might have some elements of truth does not mean the entire system does

Furthermore in discussing the different views on the interpretation of paradise and the Garden of Eden in Genesis 2 Bavinck again gives priority to biblical revelation over any other system of interpretation and in this case science Bavinck for example boldly claims that there is nothing in science that ldquocompels us to abandon the stipulation of Holy Scripturerdquo in regard to the earthly paradise and the first human beings despite the fact that we do not know the original place where the first humans resided (BAVINCK 2004 p 528-29) For Bavinck biblical revelation must be trusted and we should believe that despite being unknown the first humans beings lived in a defined and particular place at the beginning of the creation of humanity This demon-strates that Bavinck is committed to understand the insight offered by science under the biblical framework and not vice versa It is important to mention that one should not confuse what biblical revelation establishes in Scripture with our particular reading or interpretation of such revelation

As appreciated in Part I with such critical assessment Bavinck seems not to provide a lot of room for the theory of evolution to be understood as compatible with Scripture Besides the areas where Darwinrsquos theory is openly incompatible with biblical revelation there are other incompatibility issues that

113

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

arise12 In light of Bavinckrsquos preliminary view Darwinism has transgressed its limits as a plausible theory to reinterpret lsquoevolutionrsquo Darwinism moved from interpreting scientific data objectively to the field of explaining ultimate questions If there is something to be appropriated from Darwinism such ele-ments must not contradict biblical revelation which has priority Therefore Bavinckrsquos openness regarding an eventual appropriation from the theory of evolution must be understood in a very limited sense

2 HOW DOES BAVINCK TRY TO INTEGRATE EVOLUTION AND BIBLICAL REVELATION

In his essays ldquoCreation or Developmentrdquo (1901) and ldquoEvolutionrdquo (1908) Bavinck examines in-depth Darwinism and evolutionary theory In both essays readers will be able to appreciate Bavinckrsquos argumentative progression and deeper engagement with evolution along with a thought-provoking response on what aspects Bavinck believes evolution might be or not be compatible with biblical revelation

21 In the essay ldquoCreation or DevelopmentrdquoIn his essay ldquoCreation or Developmentrdquo Bavinck presents to his readers

the issue of evolution as he previously did in his Reformed Dogmatics This time nonetheless Bavinck reframes his discussion on evolution as a world-view issue Bavinck discusses how the human being has tried to explain the world in terms that leave out God and spirituality and instead has focused on ldquodata of matter and forcerdquo13 For him eighteenth century philosophers such as Spinoza later Hegel and Feuerbach have all failed in the task of success-fully explaining the origin of the world It is within this challenging context Bavinck claims that Darwinrsquos theory of development appears and embraces a ldquonew worldview which undertakes to interpret [all things] without exception independent of Godrdquo (BAVINCK 1901 Intro Par1) Bavinck in this essay introduces Darwinism as a lsquotheory of developmentrsquo In doing so Bavinck acknowledges that Darwinism constitutes a theory that has tried to explain

12 The previous four critiques discussed in this section are not the only ones Bavinck made against Darwinism Bavinck also argues other aspects such as a) that evolution also contradicts the Scriptures in other aspects than humanity origin ldquo[T]he age the unity and the original abode of the human racerdquo are areas where evolution and biblical revelation also differs Par sect281 ldquoThe Age of Humanity in Bavinckrdquo BAVINCK 2004 p 520-22 b) that Darwinism is unable to successfully respond to questions about the origin of humanity and its age because in the large period of time that it assumes is difficult to point out a first human being Par sect282 ldquoThe Unity of the Human Racerdquo in BAVINCK 2004 p 525 c) that science including Darwinism has not said anything certain about the home of humanity except ldquoconjuncturesrdquo since it ldquoknows nothing about the origin and abode of the first humansrdquo Par sect283 ldquoThe Original Abode of Humanityrdquo in BAVINCK 2004 p 528

13 Herman Bavinck ldquoCreation or Developmentrdquo The Methodist Review (1901) transl Hendrik De Vries 849ndash74 Introduction Par 1

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

114

the issue of evolution although such attempt has failed This is an important fact for this paper in light of Bavinckrsquos assumed interest in appropriating and reframing key aspects of Darwinism and evolution which might not conflict with biblical revelation

211 Darwinism is not science but a worldviewOne observes that Bavinck is not interested in responding a list of ques-

tions regarding evolution and how it challenges Christianity Rather Bavinck departs from another point where he rejects the idea that Darwinism is a solid scientific theory In this respect Bavinck in his Reformed Dogmatics claims that Darwinism is mere speculation and a philosophical system He reinforces this position and argues Darwinism is also a worldview in the first section of ldquoCreation or Developmentrdquo

Bavinck clarifies his understanding of natural science as ldquoan insight into the essence of things and an understanding of the idea the logic and the uni-versal which is to be observed in thingsrdquo (BAVINCK 1901 Section I Par1) Such a notion sets the framework from which Bavinck evaluates lsquoevolutionrsquo and its relation to biblical revelation He proceeds to discuss some ultimate questions such as the origin of life and all things He asserts that Darwinismrsquos theory of evolution (the development theory) addresses the ultimate question about the source of things In this respect Bavinck states ldquo[Its answer is that] there is no origin and no beginning of things All what is always was though it be in other forms and always shall berdquo (BAVINCK 1901 Section I Par4)

The issue Bavinck finds here is the philosophical suggestion on the eter-nity of matter and substance Substance has become according to Bavinck the ldquoDeity of the newer worldviewrdquo (BAVINCK 1901 Section I Par6) Therefore development or evolution has ldquodisplace[d] Divine Providencerdquo by becoming an ldquoeternal lawrdquo (BAVINCK 1901 Section I Par7) Despite Bavinckrsquos as-sertion that this law has tried to explain the origin of the universe and how the earth has become a habitable place for organisms through a process of development Bavinckrsquos tone is one of irony in order to make his point that current development theory has indeed displaced providence This seems to be confirmed with the following paragraph where Bavinck describes the new state of affairs under the newer theory of development

This is the new and newest interpretation of the origin of things There is some-thing imposing something which takes hold of one mightily in this view There is contained in its unity of thought boldness of conception and sequence of principle It is readily understood that it charms many Yes when one does not believe in revelation which furnishes another interpretation of all creatures one is bound in a similar way to render the origin of things in some measure intel-ligible to himself They must have come from somewhere and have originated in some way The theory may still be incomplete and leave many phenomena in

115

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

the physical and psychical world unexplained nevertheless according to Straus Darwin is hailed as the greatest benefactor of the human race because he has opened the door through which a more fortunate posterity will be able to cast out the miracle for good An age which denies the supernatural and even shakes off all religion cannot do other all opposition notwithstanding than expect all salvation from the reason its own thinking and to see the solution of all the riddles of the world in development (BAVINCK 1901 Section I Par8)

After this criticism Bavinck continues further and states that the theory of development ldquois not a product of science but of imagination It is no science in any serious sense no science exact as it is claimed to be but a worldviewa philosophy as uncertain as any system of the philosophersrdquo (BAVINCK 1901 Section I Par9) Because idealism is entirely based on imagination such a worldview becomes contradictory when it addresses human origin Idealism has failed to provide convincing evidence in favor of humanity having an animal ancestry (BAVINCK 1901 Section I Par14) In sum one notes that for Bavinck Darwinismrsquos claims are based on philosophical assumptions and imagination rather than on actual facts

212 Darwinism misappropriates the notion of developmentIn the second section of his essay Bavinck focuses on the essence of things

For Bavinck in this new worldview all creatures are just one constituted by a single substance that changes indefinitely an idea that suggests there is no God and spiritual world (BAVINCK 1901 Section II Par2) This would make the creation a big ldquomachine which has construed itself which continuously holds itself in motion and which completely blind without reason and pur-pose eternally runs on and never downrdquo With such properties creation is no longer a ldquoliving animated organic unityrdquo but an ldquoeternal existence of one and the same sortrdquo (BAVINCK 1901 Section II Par2)

Bavinck goes on with his critical assessment and offers a series of philo-sophical characteristics of the modern theory of development the lack of an ontological difference between humanity and animals the negation of the human soul and other human dimensions the reductionist view of humanityrsquos spiritual dimension and the promotion of anthropocentrism

The implications of a system with such features are important In this new worldview and in contrast to biblical revelation ldquothere is no difference of good and evil of right and wrong of truth and falsehood Everything is good and beautiful and true in its time and place according to the individual faith and choicerdquo (BAVINCK 1901 Section II Par6) This leads Bavinck among other factors to argue that this development theory is a failure in being unable to ldquointerpret the richness and variety of creationrdquo Therefore evolutionists for Bavinck have misappropriated the concept of development by understanding

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

116

it under a mechanical framework and thus concealing the drawbacks of their system of thought (BAVINCK 1901 Section II Par10)

Due to this fact Bavinck argues that lsquodevelopmentrsquo itself is not against the notion of creation ldquobut is only possible upon its foundation and belong to its confessionrdquo (BAVINCK 1901 Section II Par10) To that end Bavinck clarifies what he means and writes

Development produces nothing of itself it is not the mother of being or of life it is only a form of motion which can only reveal what lies hidden inwardly in the germ But the so-called development theory has no knowledge of germs it knows nothing of disposition or capacity of fitness and susceptibility In its sys-tem there is no room for anything save atoms and complexes of atoms which are altogether passive in themselves and are collocated only and alone in a mechanical or chemical manner by circumstances from without This makes no mention of development in its real sense (BAVINCK 1901 Section II Par10)

Bavinck here seems to defend a concept of development In doing so he sug-gests that development understood from a creationist perspective could be retrieved This retrieval would be possible if it is conceded that ldquobeings by way of [a process of] organic growthrdquo can become ldquowhat in germ and principle they already arerdquo This can be so because development itself ldquorefers to thought plan law endrdquo and ldquohe who names development names Godrdquo (BAVINCK 1901 Section II Par10)

One may observe Bavinckrsquos reference to Aristotlersquos notion of potentiality and actuality In effect he indeed seems to adopt an AristotelianThomistic framework to understand development the transition between potentiality (what a being is in germ and principle) and actuality (what the being has become in accordance to what they already are) Understanding development in this way is what I think allows Bavinck to incorporate the notion of lsquodevelopmentrsquo in his theological thought while having a high view of biblical revelation This is demonstrated by Bavinckrsquos words when he states

So little does development stand over against creation that there is scarcely any choice left between creation with the richest development on one side and mechanical combination by the accident of a host of similar atoms on the other Development stands between origin and end under Godrsquos providence it leads from the first to the last and unfolds all the riches of being and of life to which God gave existence (BAVINCK 1901 Section II Par10)

Bavinckrsquos redefinition of lsquodevelopmentrsquo allows him to ldquoembrace not merely a few but all phenomenardquo of the Christian worldview This is because in the Christian worldview the world is ldquoan organic living whole [containing] not only matter and force but also spirit and consciousness reason and willrdquo For Bavinck Godrsquos creation (eg the world) is a unity which ldquoreveals itself in the

117

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

richness and most beautiful varietyrdquo (BAVINCK 1901 Section II Par11) Unlike Darwinism all organic life follows its own law and nature In this respect Bavinck claims

And although the creatures are thus distinguished they are not separated from each other Together they form one whole one organism one art product of which God himself is the artist and the master builder In him in his counsel in his will all created things find their origin and maintain their existence (BAVINCK 1901 Section II Par11)

Bavinck concludes his second section of his essay emphasizing that the newer worldview has no knowledge of biblical revelation Thus the difference be-tween evolution in Darwinist terms and evolution in AristotelianThomistic sense becomes clearer

213 Darwinism lacks an adequate teleologyIn the third section of his essay Bavinck addresses the teleological aspect

of the things He commences his essay claiming that by this third section he has shown the theory of development (Darwinism) fails again because of its ldquoinsufficiency and unsatisfactory characterrdquo (BAVINCK 1901 Section III Par2) Such lacking is teleological the theory does not provide space for universal history For Bavinck although evolutionists speak sometimes of purpose in their theory such purpose is futile and without warrant He writes

The system of the development theory offers no room for a plan or a purpose Nothing is dominant then save the compulsion of fate or the capriciousness of accident Everything is as it is without reason and without purpose The theory of evolution furnishes no answer whatever to the inquiry to what purpose everything serves On this question it remains silent (BAVINCK 1901 Section III Par2)

Bavinckrsquos critique here is about the lack of an adequate teleology that can explain the purpose of humanity yet not limited to it In a non-teleological system in which the spiritual dimension is lacking Bavinck suggests there is no purpose at all If the created order does not have purpose the importance of history is undermined In other words ldquo[H]istoryhellipis dominated just like the physical world and with equal necessity by mechanical forces and lawsrdquo (BAVINCK 1901 Section III Par3-4) Having this line of reasoning in mind Bavinck asserts that ldquothe development of humanity cannot be taken as end-lessly progressingrdquo The end would be chaos and destruction which ultimately would lead to the extinction of the created order where ldquodeath [will be] the end of the world as well as of the individual man and of the entire human racerdquo (BAVINCK 1901 Section III Par5) Therefore this theory of development lacks an adequate eschatological aspect in its worldview

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

118

As appreciated in this part unlike biblical revelation the evolutionary worldview denies the teleological aspect of humanity and the created order For this reason Bavinck writes the following critical assessment ldquo[C]om-plete bankruptcy moral and spiritual is the end of the modern worldviewrdquo (BAVINCK 1901 Section III Par12) Bavinck entirely discards Darwinrsquos interpretation of the theory of development By reframing it as worldview Bavinck demonstrates that Darwinism is not true science but an interpreta-tive system imposed on scientific data And as such Bavinck claims that this interpretative system is flawed This becomes clearer when Bavinck claims that the lsquotruersquo development theory is to be found only in biblical revelation where history has a teleological course shaped by Scripture and there is an ldquoexpectation of the futurerdquo (BAVINCK 1901 Section III Par13)

22 In the essay ldquoEvolutionrdquoIn his ldquoEvolutionrdquo essay Bavinck begins by warning his readers about

the unstable character of the term lsquoevolutionrsquo throughout history and thus the diversity of the termrsquos meanings Bavinck clarifies the term making a refer-ence to Leibniz who was the first one to use the Latin term ldquoevolutiordquo with the connotation of ldquobecoming of things in naturerdquo14 Such an aspect is of high weight for this paper because of the different ways Bavinck has used the term Alongside previous criticism the fact that Bavinck redefines evolution as lsquodevelopmentrsquo in an Aristotelian sense shows that he has indeed endorsed an AristotelianThomistic framework to understand evolution Bavinck has already justified the reasons of such redefinition and now he has taken a further step in the progression of his ideas at the intersection of evolution and biblical revelation

221 The Christian idea of development is based on Aristotlersquos notion of evolution

Bavinck had previously discussed that although the term lsquoevolutionrsquo was not used by Greek philosophers they did discuss the idea behind it The idea of being Bavinck tells us was known to the Greeks especially Heraclitus who rejected the notion of being in favor of only becoming (BAVINCK 2008 p 106) The balance between being and becoming was then a topic later phi-losophers discussed such as Empedocles Anaxagoras the Atomists Plato and Aristotle among others For Bavinck however it is Aristotle the first Greek philosopher to present a development theory Bavinck writes

14 Herman Bavinck ldquoEvolutionrdquo in Essays on Religion Science and Society ed John Bolt Grand Rapids Mich Baker Academic 2008 105-118 p 105

119

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

And one can rightly say that the last-named philosopher [Aristotle] was the first to devise a lsquosystem of developmentrsquo Aristotle conceived of that which is as the being that is developing in the phenomena True being does not consist in isolation above and beyond but it is within things However it does not im-mediately and initially fully exist there but it gradually comes into being by way of a process All becoming (happening moving) consists in the transition from potential to actualityhellip

Aristotle therefore does not explain what came to pass ndash as the Atomists do ndash from mechanical pleasure to impact but he borrows his idea of development from organic life For him becoming is an actualizing a realization of what is potentially and germinally present in the phenomena he explains the becoming from the being for him the genesis exists for the sake of the ousia With this thinking Aristotle is far ahead of the Atomists because he considers becoming not as determined entirely from the outside through accidental circumstances but as guided from the beginning in a certain direction The nature the char-acter the being the idea of something indicates the direction in which the development will take place Since evolution is thought to be organic it is also thoroughly teleological And since Aristotle applies this idea of development not only to particular things but also to the world in its entirely he discovers order and planning movement and upward mobility in the world of creatures (BAVINCK 2008 p 106)

Bavinck argues that Christianity developed Aristotlersquos notion of de-velopment although he does not mention any name The important aspect to highlight in this respect is Bavinckrsquos assertion that ldquoChristianity did not replace or dispute [the Aristotelian] idea of development but took it over and enriched itrdquo (BAVINCK 2008 p 106) The claim that ldquomatter also originated from and through the word and therefore was a part of divine thoughtrdquo was the first great contribution of Christianity to Aristotlersquos development project a project that in its original form Bavinck finds very dualistic In this respect Bavinck believes ldquonature is not a dark demonic mass but incarnate wordrdquo With this anti-dualistic line of reasoning Bavinck rightly concludes that the theory of development presented by Aristotle was ldquoimmeasurably enrichedrdquo (BAVINCK 2008 p 107)

The second way Christianity benefited Aristotlersquos system of develop-ment was that it provided a coherent history of humanity which starts from a particular point toward eternal life In that regard Bavinck writes ldquoChristianity presents a history of humanity a development that proceeds from a certain point and moves toward a specific goal progressing toward the absolute ideal toward true being toward eternal liferdquo (BAVINCK 2008 p 107) So far Bavinck has held that Christianity appropriated Aristotlersquos development system and has enriched it He calls this the ldquoChristian idea of developmentrdquo an idea which ldquomade its way into the newer philosophy [of the seventeenth

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

120

century]rdquo (BAVINCK 2008 p 107) Bavinckrsquos sympathetic reading and af-finity to Aristotelesrsquos notion of development seems to be something that cur-rent scholarship has slightly ignored There is no doubt that Bavinck clings to Aristotle Such fact has implications on what Bavinck may accept or reject from Darwinrsquos theory of evolution

222 Darwinism has departed from AristotleChristianityPreviously in his Reformed Dogmatics Bavinck affirmed that the eigh-

teenth-century philosophers left the theistic development system Here Bavinck writes ldquowith many the idea of development is detached from the theistic founda-tion of which it rests in Christianityrdquo (BAVINCK 2008 p 107) Earlier in this essay we learned that the system was Aristotlersquos development theory enriched by Christianity therefore it can be concluded that Bavinck seems to endorse a modified Aristotelian framework to understand the theory of evolution If this claim is true as has been argued throughout this paper it will not only help readers better understand Bavinckrsquos position but also clarify to what extend he provides room for evolution (in the modern use of the term) with his high view of biblical revelation

ldquoEvolution is organic and teleological and for that reason it has a pro-gressive characterrdquo Bavinck has argued (BAVINCK 2008 p 106) Now he reaffirms such a vision claiming the different changes that people observe in the created order constitute a ldquodevelopment from withinrdquo This means that such development has been conceived ldquoorganically and for that reason retains its teleological characterrdquo (BAVINCK 2008 p 107) This development is not merely accidental according to Bavinck When poets and philosophers speak of ldquounity in the developmentrdquo in their ldquosearchinghellip for gradual transitionsrdquo they refer to a ldquological ideal order in the progression [development] of crea-turesrdquo and not ldquoa physical descent [of humanity]rdquo (BAVINCK 2008 p 108) Bavinck clings to this among other aspects to claim that philosophers of the nineteenth century departed from such a notion of development and replaced it with ldquoa totally different ideahellip[yet] was not completely new for it had been proposed already in antiquity by Leucippus Democritus and Epicurus [reemerging] with Descartesrdquo (BAVINCK 2008 pp 108-9) Supported by French naturalists and appropriated by some philosophers ldquothe [new] idea of development displayed a character that was too philosophicrdquo (BAVINCK 2008 p 108) Once again Bavinck highlights the difference between the two kinds of theories of development ndash the Aristotelian theory of development and Darwinism

Important to notice here is Bavinckrsquos assertion that Darwin provided the scientific character that the new understanding of development needed in order to become a theory of evolution In this respect Bavinck writes

121

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

The modern idea of evolution existed already before Darwin just as socialist expectations had prophets already before Marx But Darwin endeavored to give this idea of evolution a solid foundation in the facts in the same way in which Marx according to the opinion of his followers changed utopian socialism into a scientific socialism And Darwin did not leave it at that Not only did he show us in an amazing mass of facts striking analogies that exist between organic creatures which had been categorized in species by [Carolus] Linnaeus and on which he constructed his theory of descent he also tried to explain this descent by this hypothesis of lsquonatural selectionrsquo which in the lsquostruggle for lifersquo assures the lsquosurvival of the fittestrsquo and thus assures the development also as progressAs a result evolution received a completely different meaning in the newer science than it had before (BAVINCK 2008 p 108-9)

Bavinck here is bold about his rejection of Darwinism and Darwinrsquos appropria-tion of the notion of development which was previously understood as ldquoan organic progressive teleological processrdquo that has the purpose of ldquoposit[ing] a logical idealistic order between creaturesrdquo (BAVINCK 2008 p 109) Although Bavinck does not indicate it he seems to make a reference to Aristotlersquos Great Chain of Being especially with his explanation of the purpose of the former theory of development

Rightly after his clarification about Darwinrsquos misappropriation Bavinck proceeds to offer a brief explanation of the claims made by the new theory of development (Cf BAVINCK 2008 p 109) Modern readers must not assume that the previous list is exhaustive in the aspects Bavinck rejects from Darwinism Such an integral perspective is only reached when taking into account at least his exposition in Reformed Dogmatics and his ldquoCreation or Developmentrdquo essay among other brief references Bavinck makes to evolution in other parts of his theological thought15

223 Failure of the Darwinist methodology Once Bavinck offers his brief list of the characteristics of the new theory

of development he moves on to discuss some methodological aspects of Dar-winrsquos theory of evolution Bavinck criticizes the lack of purpose or guidance in the new theory of development as well as its inability to ldquoprovide norms by which to measure progress or declinerdquo While evolutionists speak of ldquoa con-tinuing improvement of the human racerdquo such a naiumlve notion of improvement is used by some to manipulate people and their ldquoexpectations to the other side

15 In this respect Bavinck writes ldquoSo many and such weighty objections exist against this theory that it is impossible to consider it seriously as a solution to the problems of this world The short space available for this controversy permits only a few comments but these may already be sufficient to justify any counterargument that mechanical monism experiences in many circles both within and outside the realm of scholarshiprdquo (ldquoChristianity and Natural Sciencerdquo in Essays on Religion Science and Society ed John Bolt Grand Rapids Mich Baker Academic 2008 81-104 p 100)

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

122

of the graverdquo (BAVINCK 2008 p 109) Bavinck ironically writes ldquohellip[I]f a monkey can evolve gradually into a human being there is a good possibility than in the next life humans will gradually change into angels (BAVINCK 2008 p 110) He offers this example as a way of noticing the absurd ldquomechanical non-teleologicalrdquo characteristic of the new theories of development and descent

As Flipse notices Bavinck argues that the mechanical worldview is deficient It is not enough to claim that ldquothe world is a machinerdquo because believing such an idea requires a lot of faith from us ldquo[W]hen natural science limits itself to its own realm it does not have to concernrdquo about the ldquoorigin of thingsrdquo Bavinck asserts (BAVINCK 2008 p 110) The issue arises when the limits of science are transgressed into the metaphysical or philosophical realm ldquoThe mechanical idea which is fully justified in some areas of nature is then expanded into a mechanical worldview and proclaims the dogma of the eternity of the matterrdquo For Bavinck in the moment such a situation happens the scientist becomes a philosopher (BAVINCK 2008 p 110)

Bavinckrsquos point opens the door to evaluating Darwinism in light of its metaphysical claims It is not a surprise that Bavinck claims a ldquoperpetual motion machine is self-contradictionrdquo as a critique to Darwinismrsquos mechani-cal worldview a view that lacks mystery This goes in contradiction to ldquothe mystery of beingrdquo (BAVINCK 2008 p 110) Bavinck concedes however that the only mystery that this newer theory of development and its mechani-cal worldview has is about ldquothe origin of thingsrdquo (BAVINCK 2008 p 111) One should note that this concession does not necessarily mean that Bavinck would include such elements in an eventual Christian account of lsquoevolutionrsquo as Flipse seems to understand

Bavinck also argues that believing in the concept of a rational human being assumes that there is a difference between human beings and animals Such a difference is made evident not only in body structure but also in body organs and embryonic development (BAVINCK 2008 p 113) This claim is significant especially if one tries to contend that Bavinck seems to be open with some elements of the evolutionary theory Bavinckrsquos critique is clear the embrace of the theory of descent is a product of leaving the faith and ne-glecting scientific data (BAVINCK 2008 p 113) Therefore arguments from the theory of descent are not based on pure facts but on hypotheses As seen Bavinck does not criticize Darwinism only from the claims it makes but also for the methods it uses

For instance Bavinck becomes critical of the comparison method that Darwin uses for the theory of descent He argues that the theory of descent relies too much on comparison (eg comparative anatomy physiology and psychology) Darwinismrsquos method fails because despite all similarities be-tween man and animal humankind is separate from all creatures (BAVINCK 2008 p 114) Such differentiation is not merely physiologically but also of

123

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 103-124

the metaphysical dimension of man In this respect Bavinck relies on this fact to assert that other areas of study such as religion philosophy and psychology have important insights to provide when the theory of descent is assessed (BAVINCK 2008 p 115) As he has done in other parts Bavinck rejects the notion that there is a gradual transition which supports the theory of descent

In sum Bavinck rejects not only the content of Darwinism and how it has interpreted the theory of evolution but its own flawed methodology

224 Development can be accepted but only in the Aristotelian sense

After offering arguments to what extent evolution and biblical revelation may not contradict each other Bavinck argues that there is room for develop-ment in the ldquotrue sense of the wordrdquo but such development assumes ldquoplan and law direction and goalhellipbeginning and endrdquo (BAVINCK 2008 p 118) It is not a coincidence that Bavinckrsquos last sentences refer to Aristotle ldquo[He] already understood that becoming exists for the sake of being not the reverse There is becoming only if and because there is beingrdquo (BAVINCK 2008 p 118) Here Bavinck claims there is space for lsquodevelopmentrsquo in biblical revelation However he restricts such possibility significantly one should understand lsquodevelopmentrsquo in the real meaning or true sense of the term As it was shown previously in this paper Darwinist or non-teleological theories of evolution do not give such real meaning to the term but the lsquoChristian-Aristotelianrsquo framework does

CONCLUDING REMARKSBavinckrsquos engagement with the theory of evolution is noteworthy Unlike

his general criticism to Darwinism in his discussion of human origins in RD sect279-83 the essays studied here analyze the theory of evolution in a further in-depth fashion While in ldquoCreation or Developmentrdquo Bavinck approaches Darwinism as an interpretative system of scientific data in his essay ldquoEvolu-tionrdquo Bavinck reclaims the notion of lsquodevelopmentrsquo and lsquoevolutionrsquo under a modified Aristotelian-Christian account of lsquoevolutionrsquo It is a framework that seems to be compatible with Scripture but rejects Darwinism as a whole and not only a particular feature of it Current scholarship is partially right

What this paper departs from modern scholarship is that Bavinckrsquos notion of lsquodevelopmentrsquo is not merely a kind of Christianized Darwinism or theistic evolution It is true that Bavinck might allow certain changes in organisms but only within their kinds without any notion of metaphysical change improve-ment or retrogression such as the change of an organism of a kind evolving into another kind When Bavinck speaks of lsquodevelopmentrsquo his use of the term is strictly in accordance to the Aristotelian metaphysics being as becoming

ISAIAS DrsquoOLEO OCHOA ON HOW HERMAN BAVINCK RESPONDS TO THE THEORY OF EVOLUTION

124

Modern readers must take into consideration that this Aristotelian posi-tion has traditionally been understood as opposed to evolution in the modern sense Bavinck has modified the Aristotelian notion of development to allow certain changes in the material constitution of organisms but not in their es-sence With this understanding of lsquodevelopmentrsquo Bavinck indeed overcomes the challenges on the intersection of evolution and biblical revelation but does not leave much room to appropriate evolutionary thinking

RESUMOEm sua anaacutelise da evoluccedilatildeo Bavinck oferece uma teoria modificada de

desenvolvimento radicada natildeo em uma cosmovisatildeo mecanicista e naturalista como Darwin faz mas em uma estrutura ldquoamistosa ao teiacutesmordquo Este artigo sugere que a discussatildeo de Bavinck acerca da evoluccedilatildeo como um todo endossa uma estrutura modificada aristoteacutelica-tomista a fim de compreender a teoria do desenvolvimento e assim supera os desafios levantados pela cosmovisatildeo naturalista de Darwin para a revelaccedilatildeo biacuteblica

PALAVRAS-CHAVEDarwinismo Evoluccedilatildeo Cosmologia evolutiva Diaacutelogo teologia-ciecircncia

Teoria do desenvolvimento

125

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 125-129

RESENHA

Heber Carlos de Campos Juacutenior

ALLEN Michael SWAIN Scott R Catolicidade reformada a pro-messa da recuperaccedilatildeo para a teologia e a interpretaccedilatildeo biacuteblica Brasiacutelia DF Monergismo 2021 223 p

A Editora Monergismo nos presenteou com um livro que enriquece mui-tiacutessimo o cenaacuterio teoloacutegico brasileiro quanto agrave autoria e quanto ao tema Mi-chael Allen e Scott Swain satildeo pouco conhecidos do puacuteblico brasileiro embora capiacutetulos de sua autoria jaacute tenham sido publicados em nosso idioma (Teologia da Reforma org Matthew Barrett Thomas Nelson Brasil 2017) Ambos satildeo professores de teologia sistemaacutetica do Reformed Theological Seminary no campus da cidade de Orlando nos Estados Unidos Satildeo autores jovens mui proliacuteficos e extremamente haacutebeis no lidar com teologia contemporacircnea Neste uacuteltimo quesito quero dizer que eles satildeo teoacutelogos que interagem frequente e perspicazmente com autores recentes inclusive de outras tradiccedilotildees cristatildes Portanto ambos fazem teologia sistemaacutetica natildeo somente reproduzindo as vozes de autores do passado mas mediante um rico diaacutelogo criacutetico com dife-rentes linhas doutrinaacuterias modernas Uma variedade de fontes pode ser vista no livro que estamos resenhando prova de que os autores estatildeo encarnando um espiacuterito ldquocatoacutelicordquo

Isso me leva ao segundo aspecto no qual este livro enriquece o cenaacuterio protestante brasileiro o tema A catolicidade agrave qual o livro se refere natildeo eacute uma referecircncia agrave Igreja de Roma nem um aspecto meramente eclesioloacutegico (universalidade geograacutefica e antropoloacutegica da igreja) mas um resgate e incor-poraccedilatildeo da tradiccedilatildeo teoloacutegica cristatilde Cientes de que existem vaacuterios movimentos

Doutor em Teologia Histoacuterica (PhD Calvin Theological Seminary) Mestre em Teologia His-toacuterica (ThM Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper) professor de Teologia Histoacuterica no CPAJ e de Teologia Sistemaacutetica no Seminaacuterio Presbiteriano Rev Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo

CATOLICIDADE REFORMADA A PROMESSA DA RECUPERACcedilAtildeO PARA A TEOLOGIA

126

recentes que tecircm retornado agraves fontes antigas ndash desde catoacutelicos (Yves Congar e Henri de Lubac) passando por anglicanos (John Milbank e Graham Ward) protestantes de denominaccedilotildees liberais (Donald Bloesch e Thomas Oden) e ateacute evangeacutelicos (Robert Webber e D H Williams) ndash Allen e Swain se unem a essas tendecircncias recentes de renovaccedilatildeo teoloacutegica mediante a recuperaccedilatildeo de recursos da tradiccedilatildeo cristatilde (p 19-30) No entanto os autores natildeo estatildeo apenas seguindo a tendecircncia de nosso tempo mas estatildeo seguindo o modelo de refor-mados do passado como William Perkins em seu livro Reformed Catholicke (1597) a Ortodoxia Reformada do seacuteculo 17 e ateacute Philip Schaff no seacuteculo 19 (p 31 213) para os quais ldquoser reformado significa ir mais fundo na verdadeira catolicidaderdquo (p 18) Em outras palavras as diversas teologias de recuperaccedilatildeo da tradiccedilatildeo catoacutelica natildeo devem ser assimiladas num espiacuterito de colagem aceacute-fala de autores antigos mas devem alertar-nos para pensar numa apropriaccedilatildeo consistentemente protestante da tradiccedilatildeo (p 29-30) Os autores natildeo prometem uma metodologia completa para tal apropriaccedilatildeo mas lanccedilam um manifesto que precisa ser ouvido por protestantes que natildeo satildeo suficientemente catoacutelicos e por ecumecircnicos que natildeo satildeo suficientemente protestantes

Apoacutes a introduccedilatildeo o livro possui cinco capiacutetulos da pena dos autores e um posfaacutecio escrito por J Todd Billings o qual apresenta uma proposta de re-descoberta da tradiccedilatildeo para a renovaccedilatildeo da igreja (p 199-223) Este eacute professor no Western Theological Seminary de linha teologicamente mais aberta que o Reformed Todavia Billings faz coro com os autores do livro ao afirmar que a tradiccedilatildeo catoacutelico-reformada oferece uma alternativa agrave leitura individualista das Escrituras que muitos evangeacutelicos fazem buscando respostas no texto para confirmar a ldquorelevacircnciardquo de Jesus Em contraposiccedilatildeo a tal tendecircncia o propoacutesito de recuperar vozes do passado eacute para que elas revelem os pontos cegos de nossa eacutepoca e superemos as idolatrias ocultas do presente (p 211-213)

No primeiro capiacutetulo Allen e Swain afirmam que o ressourcement (lit ldquoretorno agraves fontesrdquo alusatildeo ao movimento catoacutelico romano do seacuteculo 20 deno-minado Nouvelle Theacuteologie) reformado natildeo eacute uma proposta tradicionalista mas um programa de natureza trinitaacuteria e cristoloacutegica que relaciona o Espiacuterito de Cristo e a mente renovada da igreja De acordo com 1Joatildeo 227 o ldquoEspiacuterito de Cristo ensina a igreja em veracidade tatildeo suficiente e pura que a igreja natildeo precisa buscar entendimento teoloacutegico em qualquer outra fonte ou princiacutepiordquo de tal forma que a igreja eacute o canteiro da teologia o uacutenico terreno criacional feacutertil no qual a instruccedilatildeo de Cristo promete ldquoflorescer em entendimento humano renovadordquo (p 37) Os autores acreditam que a tradiccedilatildeo eacute instituiccedilatildeo divina na qual buscamos progresso na busca por entendimento O fato de a tradiccedilatildeo poder errar natildeo desqualifica o seu status de instituiccedilatildeo divina Diferentemente do que George Lindbeck propocircs em seu livro The Nature of Doctrine a teologia natildeo eacute meramente um fenocircmeno lsquolinguiacutestico-culturalrsquo de construccedilatildeo credal a

127

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 125-129

teologia reformada de recuperaccedilatildeo acredita que ldquoa igreja recebe e transmite o ensino apostoacutelico como frutos do Espiacuteritordquo (p 46)

O restante do primeiro capiacutetulo eacute uma articulaccedilatildeo pneumatoloacutegica de como chegamos ao conhecimento da verdade O Espiacuterito estaacute por traacutes do ato da igreja de criar tradiccedilatildeo (p 53) O Espiacuterito natildeo a igreja eacute a fonte da verdade teoloacutegica e a tradiccedilatildeo eacute a postura da igreja de permanecer no ensino apostoacutelico ao longo do tempo (p 57) Enquanto a Escritura ldquoeacute a fonte divina-mente autoritativa e suficiente da teologiardquo ndash contra a teoria das duas fontes propagada pelo Vaticano II ndash a tradiccedilatildeo eacute ldquoa recepccedilatildeo da Escritura capacitada pelo Espiacuterito eacute o alvo divinamente designado da teologiardquo (p 60) A Escritura eacute o fundamento e a obra iluminadora do Espiacuterito renovando nossas mentes permite agrave igreja construir tradiccedilatildeo em cima da Escritura ldquoEmbora o depoacutesito apostoacutelico natildeo possa crescer o entendimento da igreja desse depoacutesito pode e de fato deve crescerrdquo (p 70)

Nos capiacutetulos 2 e 3 os autores articulam uma defesa do Sola Scriptura e sua relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo Sola Scriptura na Reforma nunca intentou ser ldquouma censura absoluta agrave tradiccedilatildeo ou uma negaccedilatildeo da autoridade eclesiaacutestica genuiacutenardquo (p 75) Pelo contraacuterio os autores acreditam que o compromisso com o Sola Scriptura na verdade aumenta nossa recepccedilatildeo da rica tradiccedilatildeo catoacutelica (p 77) Contrapondo-se a criacuteticos do princiacutepio de ldquoSomente a Escriturardquo tan-to do passado (Alexis de Tocqueville) como do presente (Brad Gregory e A N Williams) que alegam que tal princiacutepio significa ausecircncia da autoridade interpretativa da tradiccedilatildeo e abre a porta para todo tipo de pluralismo herme-necircutico nossos autores revelam que a leitura dos criacuteticos eacute equivocadamente ldquodonatistardquo (como se o princiacutepio fosse um purismo biacuteblico que fecha os olhos para a conduccedilatildeo providencial de uma igreja imperfeita) e ldquodeiacutestardquo (como se o processo de reflexatildeo teoloacutegica fosse uma atividade exclusivamente humana ou natural) Ateacute quando os reformados defenderam o ldquoprinciacutepio regulador de cultordquo ndash pelo qual se entende que todo elemento do culto deve ser autorizado pela Escritura ndash eles removeram certas praacuteticas romanas e introduziram novos padrotildees lituacutergicos que deveriam ser seguidos por geraccedilotildees vindouras (p 102) Isto eacute os reformados nunca deixaram de produzir tradiccedilatildeo mas sempre dirigida pela Escritura

Em seguida calcados em passagens como o Salmo 145 Atos 15 e as Epiacutestolas Pastorais aleacutem do escrito de Lutero sobre conciacutelios eclesiaacutesticos Allen e Swain concluem que somos mais biacuteblicos natildeo quando somos ldquobibli-cistasrdquo mas quando estamos envolvidos no processo de ldquoformar tradiccedilatildeordquo Somente a Escritura (Sola Scriptura) natildeo eacute sinocircnimo de a Escritura Sozinha (Solo Scriptura) ldquoum filho bastardo amamentado no seio do racionalismo e individualismo modernosrdquo assim como a perspicuidade da Escritura natildeo sig-nifica que qualquer investigador do texto sagrado provido dos devidos meios sempre o interpreta adequadamente como se o sacerdoacutecio universal signifi-

CATOLICIDADE REFORMADA A PROMESSA DA RECUPERACcedilAtildeO PARA A TEOLOGIA

128

casse que natildeo precisamos de mestres (p 123-124) De modo bem protestante eles encerram o capiacutetulo 3 dizendo que a igreja eacute criatura da Palavra que ela eacute nutrida ao ouvir a Palavra e que sua autoridade ministerial eacute delegada pela Palavra (p 125-134)

O quarto capiacutetulo trata do papel dos escritos confessionais na interpre-taccedilatildeo biacuteblica Allen e Swain satildeo organizadores de uma seacuterie de comentaacuterios de interpretaccedilatildeo teoloacutegica da Escritura (TampT Clark International Theological Commentary) e seguindo essa tendecircncia de interpretaccedilatildeo credalconfessional eles propotildeem uma ldquoleitura reguladardquo da Escritura com base em princiacutepios te-oloacutegicos e eclesioloacutegicos reformados (p 136-137) A leitura da Biacuteblia eacute uma empreitada comunitaacuteria e por isso o indiviacuteduo que faz dogmaacutetica o faz como ldquouma persona autoconscientemente eclesiaacutesticardquo (p 139) Inspirados pelo fa-moso escrito sobre a Escritura de William Whitaker os autores afirmam que a igreja ldquoguarda discerne proclama e interpretardquo a Palavra de Deus (p 142-144) O direito privado de investigaccedilatildeo eacute um privileacutegio de todos os fieacuteis mas natildeo deve ser confundido com o poder de interpretaccedilatildeo puacuteblica concedido a homens chamados e dotados para o ministeacuterio do ensino A devida distinccedilatildeo leva os autores a concluir ldquoA autoridade de ensino da igreja natildeo existe para excluir outros da interpretaccedilatildeo e compreensatildeo da Palavra de Deus Pelo contraacuterio a autoridade de ensino da igreja existe para comunicar (ie ldquotornar comunsrdquo) os tesouros da Palavra de Deus para todos do povo de Deus de forma que eles tambeacutem possam ter completa comunhatildeo (ie ldquodividir igualmenterdquo) nesses tesourosrdquo (p 151) A ldquoregra de feacuterdquo ou escritos confessionais nos habilitam a ler as vaacuterias partes da Escritura agrave luz do todo fazendo com que Sola Scriptura funcione conjuntamente com Tota Scriptura (p 156 162)

O quinto e uacuteltimo capiacutetulo se propotildee a fazer uma defesa da utilizaccedilatildeo da Escritura na forma de citaccedilatildeo de ldquotextos-provardquo (dicta probanda) uma praacutetica tatildeo maculada por criacuteticos modernos A acusaccedilatildeo contra essa praacutetica se baseia em trecircs erros ela desconsidera os contextos de textos especiacuteficos (por ex cita partes do texto sem atentar para o gecircnero literaacuterio) natildeo demonstra sensibilidade para com o horizonte hermenecircutico do inteacuterprete (por ex pretende resolver o debate sobre desarmamento ao fazer exegese das porccedilotildees relevantes da Escri-tura) interage com a histoacuteria eclesiaacutestica antes que com a histoacuteria biacuteblica (por ex encaixa textos em suas categorias de teologia sistemaacutetica para integrar a verdade em um sistema) Allen e Swain reconhecem que essas acusaccedilotildees tecircm elementos verdadeiros (p 175-180) Poreacutem a proacutepria Escritura pode ser acusada dos mesmos trecircs ldquoerrosrdquo e eles fornecem exemplos dos trecircs Tal alegaccedilatildeo natildeo serve para desqualificar a hermenecircutica que os autores do Novo Testamento fazem do Antigo ou dizer que eles tecircm passe livre para fazer o que quiserem com o texto primevo Natildeo Tudo o que os autores pretendem provar eacute isto ldquoNatildeo devemos confundir teacutecnicas de citaccedilatildeo (por exemplo textos-prova) com meacutetodo hermenecircutico seja ao considerarmos o uso da Escritura pela Escritura

129

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 125-129

ou o uso da Escritura pela teologiardquo (p 182) Por isso calcados nos exemplos de Tomaacutes de Aquino e Joatildeo Calvino eles terminam o capiacutetulo encorajando os teoacutelogos sistemaacuteticos a serem mais frequentes na exegese da Escritura e os teoacutelogos biacuteblicos a se familiarizarem com a histoacuteria da interpretaccedilatildeo biacuteblica e perceberem que eles proacuteprios tambeacutem se utilizam de categorias sinteacuteticas para trabalhar com o texto seletivamente quem sabe tais encorajamentos promovam maior simbiose entre exegese e dogmaacutetica (p 192-198)

Conforme dito no comeccedilo desta resenha a Editora Monergismo nos in-troduz a teoacutelogos reformados da nova geraccedilatildeo que demonstram grande lastro de pesquisa e interaccedilatildeo perspicaz com diversas fontes aleacutem de apresentar um tema muito importante para o evangelicalismo individualista que possui ten-taacuteculos inclusive no movimento reformado brasileiro Temos muito a aprender sobre a maneira como os reformados do passado e do presente interagem com a tradiccedilatildeo cristatilde de forma criteriosa Catolicidade eacute um tema que requer mais reflexatildeo em nosso meio para desmitificarmos uma compreensatildeo estreita de Sola Scriptura respondermos adequadamente agrave acusaccedilatildeo romana de que a doutrina protestante da Escritura abriu as portas para o individualismo de pensamento que culminou em pluralismos e apontarmos um caminho melhor de uso da tradiccedilatildeo e da Escritura tanto para teoacutelogos biacuteblicos como sistemaacuteticos

Haacute pouquiacutessimos momentos em que discordo de detalhes propostos pelos autores Eles dizem que a investigaccedilatildeo teoloacutegica moderna se exauriu na forma de investigaccedilatildeo teoloacutegica e carece de renovaccedilatildeo mediante o resgate de fontes (p 19) Eu natildeo diria que a investigaccedilatildeo se exauriu mas diria que a teologia moderna expressou a soberba progressista proacutepria do Iluminismo e se esqueceu da importacircncia do aprendizado com a comunidade cristatilde atraveacutes dos seacuteculos Outro exemplo de discordacircncia acontece quando eles impotildeem a John Owen categorias ndash de ldquoautoridaderdquo e ldquounccedilatildeordquo ndash que natildeo estatildeo na obra do puritano (v 68) Embora natildeo seja errado criarmos categorias para explicar o pensamento de autores do passado creio que as categorias utilizadas por Allen e Swain natildeo satildeo as mais precisas jaacute que autoridade e unccedilatildeo satildeo termos que possuem certo grau de sobreposiccedilatildeo

Mesmo com essas observaccedilotildees criacuteticas tangenciais minha avaliaccedilatildeo em nada desmerece a contribuiccedilatildeo tatildeo necessaacuteria que esses teoacutelogos trazem para a tradiccedilatildeo reformada contemporacircnea como um todo e mais especificamente ao cenaacuterio teoloacutegico protestante no Brasil Fariacuteamos bem em ouvir esse manifesto e buscar fontes passadas de nossa tradiccedilatildeo para estimular continuidade credal que promove comunhatildeo intergeracional Aleacutem de seu conteuacutedo precioso a Editora Monergismo fez um excelente trabalho editorial (traduccedilatildeo formataccedilatildeo) e produziu uma capa muito mais bonita que a original

131

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 131-135

RESENHAWendell Gonzaga da Paixatildeo

EDGAR W Francis Schaeffer e a vida cristatilde a espiritualidade con-tracultural Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2018 224 pp

William Edgar eacute professor de apologeacutetica no Westminster Theological Seminary em Filadeacutelfia Obteve o bacharelado em muacutesica da Harvard Uni-versity em 1966 o grau de M Div do Westminster Theological Seminary em 1969 e o PhD em teologia da Universiteacute de Genegraveve na Suiacuteccedila em 19931 Teve um privileacutegio que poucos tiveram pois conviveu e trabalhou com Francis Schaeffer no LrsquoAbri Fellowship e estudou com Cornelius Van Til no Westminster Theological Seminary Ateacute onde pude pesquisar aleacutem desse livro que estamos resenhando William Edgar tem ainda os seguintes mate-riais traduzidos para o portuguecircs o livro Razotildees do Coraccedilatildeo2 e trecircs ensaios publicados em 20113 e 20174

O livro Francis Schaeffer e a Vida Cristatilde A Espiritualidade Contra-cultural encontra-se dividido de uma maneira um pouco incomum Apoacutes o

O autor eacute bacharel em Teologia pelo Seminaacuterio Presbiteriano do Norte e poacutes-graduado em Teologia Pastoral tambeacutem pelo SPN Estaacute cursando o Mestrado em Teologia com ecircnfase em Teologia Filosoacutefica no CPAJ Conclui neste ano o curso de licenciatura em Filosofia pela UNICAP

1 Disponiacutevel em httpsfacultywtsedufacultyedgar Acesso em 6 ago 20202 EDGAR William Razotildees do coraccedilatildeo reconquistando a persuasatildeo Cristatilde Brasiacutelia Ministeacuterios

Refuacutegio 1996 3 EDGAR William ldquoA luz de Schleiermacher na restauraccedilatildeo da Franccedila os precedentes de Samuel

Vincent e Merle DrsquoAubigneacuterdquo In LILLBACK Peter A (Org) O calvinismo na praacutetica uma introduccedilatildeo agrave heranccedila reformada e presbiteriana Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011 p 217-234

4 EDGAR William ldquoAs artes e a tradiccedilatildeo reformadardquo In HALL David W PADGETT Marvin (Orgs) Calvino e a cultura Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2017 p 58-84 Idem ldquoDois guerreiros cristatildeos uma comparaccedilatildeo entre Cornelius Van Til e Francis Schaefferrdquo In ARAUacuteJO NETO Felipe Sabino de (Org) Coram Deo a vida perante Deus ensaios em honra a Wadislau Gomes Brasiacutelia Monergismo 2017 p 801-832

FRANCIS SCHAEFFER E A VIDA CRISTAtilde A ESPIRITUALIDADE CONTRACULTURAL

132

primeiro capiacutetulo os demais estatildeo inseridos dentro de trecircs partes A primeira parte tem por tiacutetulo ldquoO homem e seu tempordquo e conteacutem os capiacutetulos dois e trecircs A segunda tem por tiacutetulo ldquoVerdadeira espiritualidaderdquo e conteacutem os capiacutetulos quatro a seis A terceira tem por tiacutetulo ldquoConfiando em Deus para tudo na vidardquo e vai dos capiacutetulos sete ao dez O livro ainda conteacutem um posfaacutecio

Diferentemente de outras biografias de Schaeffer este livro tem como diferencial dois aspectos importantes Em primeiro lugar ele explora com certo niacutevel de profundidade algo diferenciado do LrsquoAbri ndash ldquoa sua mais importante razatildeo de ser ou seja a espiritualidade cristatilderdquo (p 14) Em segundo lugar ainda muito jovem Willian Edgar conheceu Schaeffer Nas suas proacuteprias palavras ldquoVisto que tive o privileacutegio de testemunhar pessoalmente muitos dos temas e personalidades relacionadas com Francis Schaeffer e LrsquoAbri comecei e terminei a narrativa com alguns fatos que envolvem a minha proacutepria narra-tivardquo (p 14) Isso jaacute torna o livro bastante envolvente e com uma narrativa bastante peculiar

O primeiro capiacutetulo tem por tiacutetulo ldquoUma introduccedilatildeo pessoal a Francis Schaefferrdquo Aqui William Edgar nos apresenta como de maneira comovente conheceu Schaeffer em LrsquoAbri William Edgar chegou ao LrsquoAbri com 19 anos e como um descrente poreacutem diz que ldquoem menos de 24 horas depois da minha chegada em LrsquoAbri minha vida tinha virado de cabeccedila para baixo completa-menterdquo (p 24) Posteriormente Schaeffer se tornou natildeo soacute um mentor mas um amigo

O segundo capiacutetulo tem por tiacutetulo ldquoA jornada para o LrsquoAbrirdquo Aqui William Edgar mostra fatos importantes na vida de Francis Schaeffer que incluem o seu nascimento (p 42-43) conversatildeo (p 43-44) formaccedilatildeo superior (p 44-49) casamento (p 45) nascimentos das filhas ainda nos Estados Unidos (p 49 50 51) pastorado e ida para Suiacuteccedila momento de crise nascimento do filho (p 58) e finalmente como se deu a expulsatildeo dos Schaeffers do cantatildeo de Valais (p 60)

O terceiro capiacutetulo tem por tiacutetulo ldquoLrsquoAbri e aleacutemrdquo Nele William Edgar narra a histoacuteria desde a chegada dos Schaeffers em Hueacutemoz (p 65) e tambeacutem apresenta a contribuiccedilatildeo de Schaeffer para a criaccedilatildeo de um jargatildeo teoloacutegico proacuteprio (p 70-71) Por fim faz uma bela apresentaccedilatildeo dos vaacuterios livros escritos por Schaeffer

O quarto capiacutetulo tem por tiacutetulo ldquoFundamentosrdquo Nesse capiacutetulo nos satildeo apresentados ldquoos pontos de vista de Francis Schaeffer sobre a vida cristatilderdquo (p 87) O objetivo de William Edgar eacute tratar de forma panoracircmica temas que satildeo muito caros ao pensamento de Schaeffer tais como ldquoFundamentos do Evangelhordquo (p 89) ldquoA autoridade da Verdaderdquo (p 91) a ldquoEspiritualidade da cosmovisatildeordquo (p 94) e por fim ldquoOs contornos da realidaderdquo Essa parte merece ser lida com bastante apreccedilo principalmente por aqueles que insistem em apre-sentar uma apologeacutetica agressiva Schaeffer valorizava tanto a ortodoxia como

133

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 131-135

a ortopraxia No dizer de William Edgar Schaeffer iraacute ldquoenfatizar a necessidade de doutrina soacutelida juntamente com a praacutetica soacutelida A primeira lsquorealidadersquo eacute a satilde doutrina O segundo lsquoconteuacutedorsquo eacute respostas honestas a perguntas honestasrdquo (p 101) Em outras palavras o cristatildeo deveraacute demonstrar uma ldquoespiritualidade verdadeirardquo e a ldquobeleza das relaccedilotildees humanasrdquo

O quinto capiacutetulo tem por tiacutetulo ldquoLiberdade na vida cristatilderdquo Este capiacutetulo tem como alvo analisar a primeira parte do livro Verdadeira Espiritualidade William Edgar apresenta a contribuiccedilatildeo de Schaeffer na anaacutelise que nos permite detectar se estamos cobiccedilando Segundo ele Schaeffer apresenta dois testes O primeiro faz referecircncia a Deus no tocante ao contentamento que temos nele Pois ldquose eu amo a Deus o suficiente para estar contente entatildeo eu estou sendo adequadamente espiritualrdquo (p 105) O segundo teste por sua vez tem uma relaccedilatildeo com o meu proacuteximo ldquoseraacute que eu amo o meu proacuteximo o suficiente para natildeo o invejarrdquo (p 106) Nesse capiacutetulo ainda satildeo elencados temas sobre a vida cristatilde no que se refere ao aspecto passivo e ativo

O sexto capiacutetulo tem por tiacutetulo ldquoAplicaccedilotildeesrdquo O seu principal objetivo eacute analisar a segunda parte do livro Verdadeira Espiritualidade Aqui eacute apresentado um ponto de controveacutersia pois ldquoSchaeffer coloca o mundo do pensamento no centro da vida cristatilderdquo (p 119) William Edgar discorda do seu mentor e diz que ldquocertamente a ideia biacuteblica do coraccedilatildeo eacute mais rica do que a mente e seus pensamentos (embora ela inclua a mente)rdquo (p 119) Satildeo abordados outros temas mas sem discordacircncia entre o autor e Schaeffer

O seacutetimo capiacutetulo tem por tema ldquoOraccedilatildeo e Orientaccedilatildeordquo William Edgar oferece uma apresentaccedilatildeo rica em detalhes sobre a abordagem de Schaeffer acerca da oraccedilatildeo ldquoEmbora Francis Schaeffer natildeo tenha deixado um legado de extensos escritos sobre o tema oraccedilatildeo ele pregou pelo menos um conjun-to bastante completo de mensagens sobre o assuntordquo (p 137) Sobre o tema orientaccedilatildeo William Edgar afirma que se no tema oraccedilatildeo Schaeffer natildeo nos deixou um legado extenso muito menos deixou sobre o tema orientaccedilatildeo Algo interessante eacute que ldquoEdith foi mais proliacutefica do que Fran na abordagem da orientaccedilatildeordquo (p 142)

ldquoUma das oraccedilotildees constantes de Edith era que o Senhor deixasse claro o que ela devia fazer em uma determinada situaccedilatildeo ndash em outras palavras que o Senhor a guiasserdquo (p 142) William Edgar demonstra por meio do caso da poliomielite do filho do casal como se dava na praacutetica essa busca da orientaccedilatildeo do Senhor

O capiacutetulo oito tem por tema ldquoAfliccedilatildeordquo Novamente Edith se destaca na abordagem do assunto pois foi ela ldquoquem mais escreveu extensivamente sobre sofrimento enquanto o material de Fran reflete de passagem ou o aborda mais filosoficamente e em grande profundidade quando trata do problema do malrdquo (p 147)

FRANCIS SCHAEFFER E A VIDA CRISTAtilde A ESPIRITUALIDADE CONTRACULTURAL

134

ldquoO livro Affliction5 de Edith representa o auge de seus pontos de vista sobre o sofrimentordquo (p 147) William Edgar tambeacutem mostra que concernente ao problema do mal Schaeffer tem uma abordagem proacutexima daquela de Van Til ldquoDe uma maneira sugestiva de Cornelius Van Til Schaeffer afirma que existem realmente apenas duas explicaccedilotildees possiacuteveis para o problema do malrdquo (p 151) ou seja uma causa metafiacutesica e outra eacutetica

O capiacutetulo nove tem por tema ldquoVida na igrejardquo Nesse capiacutetulo aparecem dois assuntos controversos na apresentaccedilatildeo que Wiliam Edgar faz dos escritos de Schaeffer O primeiro assunto controverso tem a ver com a seguinte de-claraccedilatildeo do personagem registrada por Edgar ldquoO mundo atual tem o direito de julgar se nossa feacute cristatilde eacute autecircntica Pode julgar com base em nosso amor muacutetuordquo (p 161) Cornelius Van Til vai discordar veementemente de Francis Schaeffer acerca dessa declaraccedilatildeo6 O segundo ponto controvertido eacute sobre pedir perdatildeo Schaeffer diz que ldquonatildeo precisamos esperar a outra pessoa dar o primeiro passo Devemos ter um espiacuterito de perdatildeo de qualquer maneirardquo (p 162) William Edgar aceita tal posiccedilatildeo embora reconheccedila que essa abor-dagem natildeo eacute aceita por todos os teoacutelogos reformados7 No fim do capiacutetulo satildeo apresentadas oito ldquonormas estruturais que governam a igreja visiacutevel (p 173 174) Por fim embora William Edgar jaacute tenha falado sobre a igreja fundada por Schaeffer (p 59 60) agora vai aprofundar o surgimento e como se daacute a vivecircncia na International Presbyterian Church (p 175)

Finalmente chegamos ao uacuteltimo capiacutetulo O capiacutetulo dez tem por tiacutetulo ldquoEngajando o mundordquo Nele encontramos uma espeacutecie de panorama dos temas que Schaeffer trabalhou em diversas obras Contudo novamente queremos destacar algo que William Edgar diz sobre Schaeffer Segundo ele Schaeffer ldquoconcorda que os filoacutesofos natildeo cristatildeos desde os gregos ateacute pouco antes da modernidade tinham trecircs coisas em comum o racionalismo o respeito pela racionalidade e o otimismordquo (p 191)8 Aqui Schaeffer parece ser um tanto ingecircnuo em acreditar que os filoacutesofos do passado foram bem-sucedidos na apresentaccedilatildeo de um campo de conhecimento unificado Por isso que ldquoVan Til

5 Esse livro foi lanccedilado em 2019 pela Editora Monergismo SCHAEFFER Edith Afliccedilatildeo um olhar compassivo sobre a realidade da dor e do sofrimento Brasiacutelia Monergismo 2019 344 p

6 VAN TIL Cornelius The apologetic methodology of Francis Schaeffer Westminster Theological Seminary 1974 p 48s

7 Jay Adams discorda desse ponto de vista de Schaeffer e de William Edgar Ver ADAMS Jay De perdoado a perdoador aprendendo a perdoar uns aos outros da forma de Deus Brasiacutelia Monergismo 2015 220 p

8 Para mais informaccedilotildees sobre como Schaeffer aborda o assunto ver SCHAEFFER F Como viveremos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2003 p 96s

135

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 131-135

o acusa de natildeo reconhecer a dialeacutetica perpeacutetua do pensamento racionalistairracionalista em cada eacutepocardquo (p 191)9

Finalizamos afirmando que William Edgar fez um beliacutessimo trabalho oferecendo-nos grande riqueza de detalhes uma vez que foi testemunha ocu-lar de muitas coisas que aqui estatildeo registradas A traduccedilatildeo de Neuza Batista da Silva foi muito eficiente natildeo nos deixando em duacutevida sobre o sentido das frases O livro tambeacutem possui uma diagramaccedilatildeo bem-feita proporcionado uma leitura apraziacutevel

A Editora Cultura Cristatilde estaacute de parabeacutens pelo excelente trabalho Que-remos recomendaacute-lo para todo estudante interessado em apologeacutetica e anaacutelise cultural Certamente faratildeo bem em lecirc-lo Essa obra tambeacutem seraacute de grande ajuda para os iniciantes nos estudos acerca da vida de Francis Schaeffer Contudo ateacute mesmo os mais experientes poderatildeo se beneficiar da riqueza de detalhes oferecida pelo autor A ediccedilatildeo eacute apresentada sob o selo ldquoSeacuterie Teoacutelogos e a Vida Cristatilderdquo que jaacute conta com outros volumes em portuguecircs

9 Para mais informaccedilotildees ver VAN TIL Cornelius The apologetic methodology of Francis Schaeffer Westminster Theological Seminary 1974 p 39ss

137

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 137-141

RESENHANorval da Silva

HORSLEY Richard A Jesus e o impeacuterio o Reino de Deus e a nova desordem mundial Satildeo Paulo Paulus 2014 177 p

Atualmente haacute muitas perspectivas quando se tenta fazer uma anaacutelise de quem foi Jesus e de suas ecircnfases e propoacutesitos No livro Jesus e o Impeacuterio O Reino de Deus e a Nova Desordem Mundial da editora Paulus Richard Horsley faz uso dos estudos socioloacutegicos como paracircmetro de anaacutelise da vida e dos ensinos de Jesus

Horsley eacute conhecido por sua abordagem social das Escrituras Ele foi professor de artes liberais e religiatildeo na Universidade de Massachusetts em Boston ateacute sua aposentadoria em 2007 Aleacutem do livro ora resenhado eacute tambeacutem autor de Jesus e a Espiral da Violencia da mesma editora

O livro Jesus e o Impeacuterio estaacute dividido em cinco capiacutetulos Poreacutem o leitor natildeo deve saltar a introduccedilatildeo Laacute jaacute podemos perceber a linha adotada pelo autor e sua intenccedilatildeo qual seja desconstruir a ideia tradicional que se tem do Jesus histoacuterico Do iniacutecio ao fim sua hermenecircutica eacute conduzida pelo pensamento ideoloacutegico de que Jesus foi um libertador agrave moda dos libertado-res campesinos cansados de pagar impostos aos tiranos que arrebanhou um grupo de camponeses e produziu uma revoluccedilatildeo para reverter a ordem social

De certa forma Horsley atribui aos americanos a leitura tradicional de um Jesus completamente religioso e que natildeo se envolve nas questotildees poliacuteti-cas e sociais A identidade ambiacutegua dos Estados Unidos poreacutem foi sacudida apoacutes o evento de 11 de setembro e segundo o autor jaacute natildeo se pode mais ldquoficar com essas representaccedilotildees domesticadas de Jesusrdquo (p 9) Para ele a naccedilatildeo judaica como um todo reagiu agrave ocupaccedilatildeo romana e seria muito difiacutecil

Mestre em exegese biacuteblica e linguiacutestica pelo Dallas Theological Seminary Tradutor do Novo Testamento para uma liacutengua indiacutegena pela Agecircncia Presbiteriana de Missotildees Transculturais (APMT) Aluno do STM-NT no CPAJ

JESUS E O IMPEacuteRIO O REINO DE DEUS E A NOVA DESORDEM MUNDIAL

138

imaginar um Jesus alheio agraves accedilotildees do seu proacuteprio povo Segundo o autor haacute quatro pressupostos que contribuem para uma anaacutelise do Jesus despolitizado (1) O pressuposto ocidental de que a religiatildeo estaacute separada da poliacutetica e da economia (2) A religiatildeo eacute uma esfera separada e pertence ao indiviacuteduo (3) A orientaccedilatildeo cientiacutefica dos acadecircmicos (4) Inteacuterpretes eliminaram falas de Jesus considerando inautecircntico tudo o que parecesse embaraccediloso Ele entatildeo conclui que esses pressupostos satildeo equivocados e revelam uma cosmovisatildeo ocidental e moderna longe da realidade cultural e histoacuterica do Oriente Meacutedio Esses pressupostos satildeo poreacutem indefensaacuteveis quando se trata da pesquisa e reconstruccedilatildeo histoacutericas (p 10) O autor defende a necessidade de que se olhe para Jesus a partir do contexto social poliacutetico e econocircmico da eacutepoca Ele afirma que ldquose queremos compreender o Jesus histoacuterico num contexto histoacuterico mais completo e adequado precisamos sem duacutevida conceber uma abordagem mais abrangente e relacionalrdquo (p 15-16)

Ao afirmar ldquoBaseados num levantamento dos vaacuterios movimentos de resistecircncia entre os galileus e os judeus podemos comeccedilar a suspeitar que Jesus natildeo era uma figura absolutamente rarardquo (p 16) o autor prepara o terreno para o que seraacute de fato a sua visatildeo e metodologia Para saber quem Jesus era natildeo devemos olhar para Jesus propriamente mas para o contexto em que ele viveu E aqui se encontra o primeiro perigo pois Horsley comete o mesmo equiacutevoco em que acusa os outros de terem caiacutedo ou seja deixar que o contexto em si determine o sentido das coisas A loacutegica eacute mais ou menos a seguinte se Jesus viveu em uma palestina ocupada onde a rebeliatildeo e insurgecircncia contra o impeacuterio eram as marcas do povo judeu especialmente dos galileus ele deve ter agido da mesma forma Ele deve ter sido um guerrilheiro e revolucionaacuterio Com esse pressuposto agrave matildeo tudo o que Jesus disser teraacute que passar pelo filtro desse pensamento Assim o contexto eacute absoluto e o texto apenas um pretexto para o que se quer entender

O capiacutetulo 1 trata do surgimento e expansatildeo do Impeacuterio Romano Eacute uma anaacutelise de como a pequena vila fundada por Rocircmulo e Remo se tornou um grande impeacuterio derrotando impeacuterios anteriores Na visatildeo do autor o que moti-vou o impeacuterio natildeo foi apenas o domiacutenio militar e poliacutetico em si mas a questatildeo econocircmica ou seja dominar os outros para se beneficiar economicamente Assim surgiu o populismo democraacutetico (p 23) uma nova forma de imperia-lismo Essa nova ordem mundial que favorecia os romanos trazia desordem e miseacuteria para os povos dominados (p 24) A conquista sempre implicava em devastaccedilatildeo do interior queima de aldeias pilhagem de cidades morticiacutenio e escravidatildeo da populaccedilatildeo Para manter os povos dominados cativos os impe-rialistas usavam o terrorismo e a barbaacuterie com execuccedilotildees puacuteblicas de qualquer um que se levantasse contra o impeacuterio

O capiacutetulo 2 eacute uma anaacutelise das constantes revoltas perpetradas pelos gali-leus e judeus contra o imperialismo romano Segundo o autor esses dois povos

139

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 137-141

se destacavam entre os subjugados por sua rebeldia Houve quatro revoltas principais A primeira quando Herodes foi designado rei pelo impeacuterio em 40 aC Muitos natildeo o aceitaram e lanccedilavam ataques de guerrilha que duraram trecircs anos A segunda foi em 4 dC no final do governo de Herodes Durante a Paacutescoa ecoaram protestos em Jerusaleacutem que produziram revoltas na zona rural e demais regiotildees da Palestina A terceira foi a revolta generalizada de 66 d C Na ocasiatildeo a populaccedilatildeo atacou sumos sacerdotes e suas mansotildees Essas accedilotildees culminaram com a destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem e do templo em 70 dC Por fim mesmo apoacutes a destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem revoltas e insurreiccedilotildees continuaram pelas matildeos de Simatildeo bar Kokhba sessenta anos mais tarde (132-135 dC)

No capiacutetulo 3 o autor chega de fato agrave sua tese principal se considerarmos o contexto em que o Jesus histoacuterico viveu traccedilaremos um quadro bem diferente de quem ele eacute e do que ensinou O autor inicia o capiacutetulo fazendo uma criacutetica aos estudos tradicionais do Jesus histoacuterico por buscarem analisar Jesus com base apenas em seus ditos uma vez que os ditos satildeo fragmentos artificiais que natildeo podem se constituir em unidades de comunicaccedilatildeo (p 64) Ele tem razatildeo ao afirmar que precisamos do contexto em que os ditos foram proferidos para entendermos a real significaccedilatildeo do que foi dito O restante do capiacutetulo eacute uma apresentaccedilatildeo de aspectos desse contexto histoacuterico que satildeo relevantes ao processo interpretativo do Jesus histoacuterico nos evangelhos Por exemplo havia divisotildees de classes De um lado a elite composta por governantes romanos e sacerdotes do outro o povo Outro exemplo seriam as formas sociais de vida moradia em aldeias e cidades vida comunitaacuteria e agraacuteria etc O autor conclui que considerando a natureza da comunicaccedilatildeo e analisando os evangelhos com base nessa natureza devemos imaginar o texto como enriquecido de sentido contextual pleno e objetivo para comunidades especiacuteficas de fala hebraica Para ele por exemplo o Evangelho de Marcos foi escrito para demonstrar aos cristatildeos como Jesus estabeleceu o Reino de Deus e se insurgiu contra o Impeacuterio Romano ao propor a renovaccedilatildeo de Israel (p 85)

O capiacutetulo 4 eacute o desenvolvimento da tese mencionada Segundo o autor ao anunciar a renovaccedilatildeo de Israel Jesus pronuncia a sentenccedila sobre o impeacute-rio e sobre a lideranccedila religiosa de Israel Aqui algumas de suas afirmaccedilotildees satildeo exageradas e sua hermenecircutica duvidosa Ao analisar por exemplo a expressatildeo ldquofilhos do Reinordquo ele considera como uma referecircncia aos liacutederes judaicos o que me parece ser uma interpretaccedilatildeo conveniente uma vez que uma melhor opccedilatildeo contextual seria considerar como referecircncia agrave naccedilatildeo de Israel de forma geral ou pelo menos agravequeles que rejeitavam Jesus como Messias independentemente de serem parte da lideranccedila religiosa ou natildeo Segundo ele Mateus e Lucas de fato usam a expressatildeo para se referir agrave naccedilatildeo como um todo mas isso se deu somente apoacutes a destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem A fonte original usada por Mateus e Lucas o hipoteacutetico documento Q natildeo trazia essa perspectiva Natildeo creio que haja duacutevida da parte de qualquer estudioso de que

JESUS E O IMPEacuteRIO O REINO DE DEUS E A NOVA DESORDEM MUNDIAL

140

Jesus se contrapocircs aos liacutederes de Israel Os textos demonstram isso Mas daiacute a afirmar que denunciar essa lideranccedila e promover uma revoluccedilatildeo social dos pobres era o propoacutesito final de Jesus haacute uma longa distacircncia

Ainda outro caso curioso eacute sua anaacutelise da resposta de Jesus agrave pergunta se era liacutecito pagar imposto a Ceacutesar Segundo o autor todo mundo que ouviu a resposta de Jesus entendeu que sua resposta era ldquonatildeo natildeo se deve pagar imposto a Ceacutesarrdquo Ora segundo o proacuteprio autor os fariseus eram os que defendiam essa tese Entatildeo se a resposta de Jesus confirmava a tese dos fariseus por que cargas drsquoaacutegua esse segmento fez oposiccedilatildeo tatildeo ferrenha a Jesus O natural seria interpretar que eles considerariam Jesus um aliado Mais estranha ainda eacute a sua intepretaccedilatildeo de que os exorcismos praticados por Jesus eram uma forma de derrotar o Impeacuterio Romano (ver p 108)

Outra intepretaccedilatildeo natildeo menos estranha eacute a sua anaacutelise do episoacutedio dos democircnios que entraram nos porcos e consequentemente se precipitaram no mar em Marcos 5 Para ele como o nome dos democircnios era ldquolegiatildeordquo isso significava a derrota dos soldados romanos por Jesus E mais que as pessoas que presenciaram o fato se lembrariam do episoacutedio do Mar Vermelho quando os exeacutercitos de Faraoacute submergiram sob o poder de Deus Muito estranha essa anaacutelise para dizer o miacutenimo

O quinto e uacuteltimo capiacutetulo trata do conceito de alianccedila e o ideal de vida em comunidade e cooperaccedilatildeo Segundo o autor a populaccedilatildeo estava oprimida sobrecarregada de diacutevidas e as formas sociais fundamentais da famiacutelia e da sociedade se desintegravam Ele insiste que as possessotildees demoniacuteacas eram representaccedilotildees da opressatildeo romana e que ao expulsar esses democircnios Jesus estava expulsando os romanos e suas ldquolegiotildeesrdquo da terra de Israel Para ele cada histoacuteria de cura natildeo era uma cura individual mas cura social das comunidades subsequentes (p 120) O povo precisava ser renovado E para essa renovaccedilatildeo segundo o autor a cooperaccedilatildeo comunitaacuteria era a chave Por fim essa renovaccedilatildeo comunitaacuteria passa obrigatoriamente pela resoluccedilatildeo de conflitos econocircmicos e sociais da comunidade Aqui o leitor perceberaacute uma linguagem muito se-melhante agrave dos proponentes da Teologia da Libertaccedilatildeo Em momento algum o autor aborda a necessidade do povo de Israel como sendo espiritual Para ele o problema do povo natildeo eacute com Deus e sim com as estruturas opressoras Pecado se haacute eacute pecado em esfera totalmente social e foi para isso que Jesus veio para libertar o povo simples da opressatildeo para fazer uma revoluccedilatildeo social Isso fica evidente quando ele afirma que a promessa de Jesus ldquoe no futuro a vida eternardquo eacute uma observaccedilatildeo sem importacircncia (ver p 135)

Uma observaccedilatildeo necessaacuteria a se fazer eacute quanto agrave hermenecircutica do autor e seus pressupostos Como para ele os aspectos sociais e econocircmicos satildeo os problemas reais da naccedilatildeo de Israel toda a leitura que ele faz dos evangelhos natildeo apenas eacute influenciada por esses pressupostos mas determinada por eles Ele se tornou prisioneiro de sua cosmovisatildeo O texto natildeo o desafia corrige

141

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 1 (2021) 137-141

ou questiona como deveria fazer em um processo hermenecircutico normal Eacute fato que todos noacutes nos aproximamos do texto com pressupostos Poreacutem ateacute que ponto esses pressupostos determinam o sentido intentado pelo autor eacute algo com que precisamos ter cuidado

ExcElecircncia E PiEdadE a SErviccedilo do rEino dE dEuS

CENTRO PRESBITERIANO DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO ANDREW JUMPERVenha estudar conosco

Cursos modulares corpo docente poacutes-graduado convecircnio com instituiccedilotildees internacionais bi-blioteca teoloacutegica com mais de 40000 volumes acervo bibliograacutefico atualizado e informatizado

Educaccedilatildeo agrave distacircncia (Ead)Cursos anuais totalmente online que visam agrave instruccedilatildeo e ao aperfeiccediloamento biacuteblico-teoloacutegico de pastores e crentes que possuam graduaccedilatildeo em qualquer aacuterea Satildeo eles Estudos em Teologia Sistemaacutetica Estudos em Teologia Biacuteblica Estudos em Teologia Aplicada e Estudos em Missotildees

REvitalizaccedilatildeo E Multiplicaccedilatildeo dE igREjas (RMi)O RMI objetiva capacitar pastores e liacutederes na conduccedilatildeo do processo de restauraccedilatildeo do mi-nisteacuterio pastoral da oraccedilatildeo e da expansatildeo da igreja por meio de missotildees usando ferramentas biacuteblico-teoloacutegicas e de outras aacutereas das ciecircncias

EspEcializaccedilatildeo EM Educaccedilatildeo cRistatilde (EEc)O programa de especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Cristatilde eacute destinado a pais pastores professores e demais interessados em educaccedilatildeo eclesiaacutestica ou escolar Seu principal objetivo eacute promover uma reflexatildeo a respeito da dimensatildeo pedagoacutegica a partir dos pressupostos cristatildeos e oferecer ferramentas para o exerciacutecio intencional e planejado da atividade educacional a partir desses pressupostos

Ma lEadERship in chRistian Education (MaE)Este programa eacute um mestrado semipresencial biliacutengue (portuguecircsinglecircs) ministrado em par-ceria com o Gordon College (Boston EUA) Eacute dirigido agrave educaccedilatildeo escolar cristatilde com ecircnfase em lideranccedila compreendendo a gestatildeo escolar e suas bases conceituais Uacutetil para a lideranccedila e gestatildeo de Departamentos de Educaccedilatildeo Cristatilde em igrejas bem como para seminaacuterios institutos biacuteblicos e outras instituiccedilotildees teoloacutegicas

MEstRado EM divindadE (Magister Divinitatis ndash Mdiv)Trata-se do mestrado eclesiaacutestico do CPAJ Eacute anaacutelogo aos jaacute tradicionais mestrados profissio-nalizantes diferindo entretanto do Master of Divinity norte-americano apenas no fato de que natildeo constitui e nem pretende oferecer a formaccedilatildeo baacutesica para o ministeacuterio pastoral Oferece uma visatildeo geral das grandes aacutereas do conhecimento teoloacutegico Natildeo eacute submetido agrave avaliaccedilatildeo e natildeo possui credenciamento da CAPES

MEstRado EM tEologia (sacrae theologiae Magister ndash stM)Esse mestrado acadecircmico difere do Magister Divinitatis por sua ecircnfase na pesquisa e sua har-monizaccedilatildeo com os mestrados acadecircmicos em teologia oferecidos em universidades e escolas de teologia internacionais Eacute oferecido para aqueles que possuem o MDiv ou graduaccedilatildeo em Teologia e mestrado em qualquer aacuterea Natildeo eacute submetido agrave avaliaccedilatildeo e natildeo possui credenciamento da CAPES

doutoRado EM MinisteacuteRio (dMin)Curso oferecido em parceria com o Reformed Theological Seminary (RTS) de Jackson Mis-sissippi O programa possui o reconhecimento da JETIPB e da Association of Theological Schools (ATS) nos Estados Unidos O corpo docente inclui acadecircmicos brasileiros americanos e de outras nacionalidades com soacutelida formaccedilatildeo em suas respectivas aacutereas

Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper Rua Maria Borba 4044 ndash Vila Buarque ndash Satildeo Paulo ndash SP ndash Brasil ndash CEP 01221-040

Telefone +55 (11) 2114-86448759 ndash atendimentocpajmackenziebr cpajmackenziebr ndash httpswwwfacebookcomcppaj

Editoraccedilatildeo eletrocircnicaLibro Comunicaccedilatildeo