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Verdade e Progresso

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Richard Rorty, um dos mais importantes filósofos contemporâneos, apresenta em Verdade e Progresso a idéia de que a finalidade da ciência, da investigação ou de qualquer outra área da cultura não é atingir a verdade, mas sim solucionar problemas. Quando aceitarmos essa noção, poderemos abandonar a idéia de que a investigação caminha para um ponto estático e considerar que os horizontes da investigação estão em constante expansão, à medida que nos deparamos com novos problemas.

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VERDADE E PROGRESSO

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VERDADE E PROGRESSO

RICHARD RORTY

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Título do original em inglês: Truth and Progress – Philosophical Papers, Volume 3Published by the Press Syndicate of the University of CambridgeCopyright © Cambridge University Press 1998

Tradução: Denise R. SalesJornalista formada pela UFMG com especialização em tradução (inglês) pela USP

Editoração eletrônica: Deaazê ComunicaçãoRevisão técnica: Marco Casanova

Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da UERJVice-presidente da Sociedade Brasileira de Fenomenologia e HermenêuticaAutor de O instante extraordinário: Vida, história e valor na obra de Friedrich Nietzsche (2003) e Nada a caminho. Niilismo, impessoalidade e técnica na obra de Martin Heidegger (2005)

Capa e imagem da capa: Hélio de Almeida

Todos os direitos reservados.Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida, por qualquerprocesso, sem a permissão expressa dos editores.É proibida a reprodução por xerox.

1a edição brasileira – 2005

Direitos em língua portuguesa adquiridos pela:Editora Manole Ltda.Avenida Ceci, 672 – Tamboré06460-120 – Barueri – SP – BrasilFone: (11) 4196-6000 – Fax: (11) [email protected]

Impresso no BrasilPrinted in Brazil

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Rorty, RichardVerdade e progresso / Richard Rorty; tradução Denise R. Sales;

[revisão científica Marco Casanova]. – Barueri, SP: Manole, 2005.

Título original: Truth and progress.ISBN 85-204-1879-1

1. Ética 2. Pragmatismo 3. Progresso 4. Verdade (Filosofia) I. Título.

05-1485 CDD-100

Índices para catálogo sistemático:1. Filosofia 100

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S u m á r i o

Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .vii

Primeira Parte – Verdade e Alguns Filósofos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .11 Será que a verdade é um objetivo da investigação?

Donald Davidson versus Crispin Wright . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .32 Hilary Putnam e a ameaça relativista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .363 John Searle sobre o realismo e o relativismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . .634 Charles Taylor sobre a verdade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .915 Daniel Dennett sobre a intrinsecalidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .1106 Robert Brandom sobre as representações e as práticas sociais . . .1427 A verdadeira idéia da capacidade do ser humano de responder

ao mundo: a versão de John McDowell sobre o empirismo . . .1628 Armas contra o ceticismo: Michael Williams versus

Donald Davidson . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .182

Segunda Parte – Progresso Moral: Rumo a Comunidades MaisInclusivas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .197

9 Direitos humanos, racionalidade e sentimentalidade . . . . . . . . . . .19910 Racionalidade e diferença cultural . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .224

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VI VERDADE E PROGRESSO

11 Feminismo e pragmatismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .24512 O fim do leninismo, Havel e a esperança social . . . . . . . . . . . . . . .282

Terceira Parte – O Papel da Filosofia no Progresso Humano . . . . . .30313 A historiografia da filosofia: quatro gêneros . . . . . . . . . . . . . . . . . .30514 A contingência dos problemas filosóficos: Michael Ayers

sobre Locke . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .33915 Dewey entre Hegel e Darwin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .36116 Habermas, Derrida e as funções da filosofia . . . . . . . . . . . . . . . . . .38417 Derrida e a tradição filosófica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .411

Índice Onomástico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .443

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“Não existe verdade.” O que isso quer dizer? E por que alguém afir-ma isso?

Na realidade, praticamente ninguém (exceto Wallace Stevens) de fatoafirma isso.1 Mas, com freqüência, filósofos como eu são apontados comoautores dessa frase. E existe um porquê. Aprendemos (com Nietzsche eJames, entre outros) a suspeitar da distinção aparência-realidade. Acha-mos que há várias maneiras de enunciar o que está acontecendo, e nenhu-ma delas aproxima-se mais do que as outras da forma como as coisas sãoem si mesmas. Não temos nenhuma idéia do que significa “em si mesma”na frase “a realidade como ela é em si mesma”. Por isso sugerimos que adistinção entre aparência e realidade seja abandonada em favor da distin-ção entre modos de falar mais e menos úteis. No entanto, por acreditaremque a verdade corresponde à realidade como ela “realmente é”, muitas pes-soas pensam que negamos a existência da verdade.

1 “Foi quando eu disse, /‘Não existe essa tal de verdade,’/Que as uvas pare-ceram maiores,/A raposa saiu correndo de sua toca” (Wallace Stevens, “On theRoad Home”, em The collected poems. Nova York, Vintage, 1990, p. 203).

Introdução

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Nossos críticos – os filósofos que consideram ser a verdade exata-mente isso – acham que a distinção útil-inútil não pode tomar o lugar daantiga distinção aparência-realidade. Para eles, modos de falar menosúteis são apenas descrições das aparências, enquanto modos de falar maisúteis são descrições do que está de fato acontecendo. Por exemplo: cien-tistas primitivos ou membros conformistas de uma sociedade que defen-de a escravidão enunciariam o que parece estar acontecendo. Físicosmodernos, na qualidade de defensores dos direitos humanos universais,saberiam o que realmente está acontecendo. Nossos críticos precisam dadistinção realidade-aparência para evitar que a noção de “correspondên-cia com a realidade” torne-se trivial. Pois toda crença, independentemen-te de quão primitiva ou viciada ela seja, corresponde a algum “mundo” –o “mundo” que contém os objetos mencionados por ela (as esferas crista-linas de Ptolomeu ou a natureza subumana dos escravos). Portanto, aque-les que querem persistir na noção da “correspondência” devem levar asério a idéia de como as coisas realmente são.

Os ensaios deste volume sustentam que a filosofia progredirámelhor sem as noções de “natureza intrínseca da realidade” e “correspon-dência com a realidade”. Para os que consideram essas noções indispensá-veis, mas apenas para eles, esse parecerá um argumento de que não exis-te verdade. Quando afirmo que minhas visões pragmatistas ainda me per-mitem chamar algumas afirmações de “verdadeiras” e outras de “falsas” edefender essa classificação, meus críticos respondem que isso não basta.Segundo eles, retirei todo o sentido de termos como “verdadeiro” e“falso”; teríamos ficado sem um sentido “substantivo” para esses termos eapenas com um mero sentido “estético” ou “relativista”. É difícil livrar-sedessa carga de “relativismo”.

A verdade é, de fato, uma noção absoluta, no seguinte sentido: “ver-dadeiro para mim, mas não para você” e “verdadeiro na minha cultura,mas não na sua” são expressões estranhas, sem sentido. Bem como “ver-dadeiro naquela época, mas não agora”. Embora digamos com freqüên-cia “bom para esse propósito e não para aquele” e “certo nessa situação,mas não naquela”, parece paradoxalmente sem sentido relativizar a ver-dade conforme propósitos e situações. Por outro lado, “justificado paramim e não para você” (ou “justificado em minha cultura e não na sua”)faz todo sentido. Portanto, quando James disse que “o verdadeiro é o

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bom de acordo com a crença”, ele foi acusado de confundir justificaçãocom verdade, relativo com absoluto.

De fato, James teria feito melhor se houvesse dito que frases como “obom de acordo com a crença” e “em que é melhor acreditarmos” podem sersubstituídas por “justificado” mais do que por “verdadeiro”. Mas ele pode-ria ainda ter acrescentado que nós não temos outro critério para a verdadealém da justificação, e que a justificação e o melhor-para-acreditar vãodepender do público (e da série de candidatos à verdade) tanto quanto abondade depende dos propósitos e a justiça, das situações. Tendo admitidoque “verdadeiro” é um termo absoluto, suas condições de aplicação serãosempre relativas. Pois não existe tal coisa como uma crença sendo justifica-da sans phrase – justificada de uma vez por todas – pela mesma razão quenão existe uma crença que possa ser considerada indubitável agora e sem-pre. Há uma abundância de crenças (por exemplo:“Dois mais dois são qua-tro”; “O Holocausto aconteceu”) a respeito das quais ninguém com quemvale a pena discutir tem nenhuma dúvida. Mas não existem crenças quepossam estar acima de qualquer possibilidade de dúvida.

Esta última afirmação resume o antifundacionalismo que se tornouhoje a sabedoria convencional dos filósofos analíticos. Mas o antifunda-cionalismo, em epistemologia, não é suficiente para livrar-nos da distin-ção metafísica entre aparência e realidade, pois ele não diminui o apelodo seguinte argumento: já que a verdade é uma noção absoluta e consis-te na correspondência, a realidade deve ter uma natureza intrínseca, abso-luta e independente das descrições, natureza para a qual é necessárioencontrar uma correspondência. Ao admitir que o critério de verdade é ajustificação, e que a justificação é relativa, a natureza de verdade não é.

Para rebater esse argumento, nós, seguidores de James e de Nietzsche,negamos uma de suas premissas, a saber: que a verdade corresponde àrealidade. Mas então nos dizem que temos a obrigação de oferecer umateoria alternativa para a verdade, uma teoria capaz de explicar qual a realnatureza da verdade. Quando, como James e Nietzsche anteriormente,falhamos em produzir tal teoria, dizem que “o ataque pragmatista à cor-respondência falhou”.

A maior de todas as minhas inúmeras dívidas intelectuais comDonald Davidson é ter compreendido que ninguém deveria nem mesmotentar especificar a natureza da verdade. A fortiori, os pragmatistas não

INTRODUÇÃO IX

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deveriam. Quer concorde ou não com Davidson sobre a importância dedar uma definição de “verdade-em-L” para uma determinada linguagemnatural (por meio de uma “teoria da verdade” do tipo da de Tarski paraessa linguagem), alguém poderá concluir com base nos argumentos deleque não existe possibilidade de dar uma definição de “verdadeiro” quefuncione para todos esses tipos de linguagem. Davidson ajudou-nos aperceber que a simples incondicionalidade da verdade é uma boa razãopara considerar o “verdadeiro” indefinível e concluir que nenhuma teoriasobre a natureza da verdade é possível. Só há algo a dizer a respeito do rela-tivo. (É por isso que o Deus dos monoteístas ortodoxos, por exemplo, per-manece tão enfadonhamente inefável.)

O modo não representacionalista usado por Davidson para exami-nar a verdade surge de sua convicção de que Tarski é o único filósofo quedisse algo útil sobre a verdade, sendo dele a seguinte descoberta: nós nãotemos nenhuma compreensão da verdade que seja distinta da nossa com-preensão da tradução.2 Esta última doutrina é desconcertante para os filó-sofos que consideram nossa compreensão da verdade como compreensãode uma relação palavra-mundo do tipo “ajustamento”, “correspondência”ou “representação acurada”, mas resume o desfecho do ataque de Davidsonàs visões representacionalistas da linguagem.

Se os pragmatistas não podem oferecer uma teoria da verdade, o quepodem fazer então? Podem mostrar, como afirmo no primeiro ensaiodeste volume, que a verdade não é um objetivo de investigação. Se “verda-de” é o nome de tal objetivo, então, realmente, não há verdade. Pois aincondicionalidade da verdade faz com que ela não se preste a tal objeti-vo. Um objetivo é algo do qual você pode dizer se está mais próximo oumais distante. Mas não temos como saber a que distância estamos da ver-dade, nem mesmo se estamos mais próximos dela do que nossos ances-trais. Dessa forma, mais uma vez, o único critério que temos para aplicara palavra “verdade” é a justificação, e esta depende sempre de um públi-co. Assim, ela também depende das opiniões desse público – dos propó-

2 Veja Donald Davidson, “On the Very Idea of a Conceptual Scheme”, emTruth and interpretation: perspectives on the philosophy of Donald Davidson, ed.Ernest LePore (Oxford: Blackwell, 1986), p. 194.

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sitos que ele deseja atingir e da situação em que se encontra. Isso signifi-ca que a pergunta “Nossas práticas de justificação levam à verdade?” é tãoirrespondível quanto não pragmática. Ela é irrespondível porque não hácomo privilegiar nossos objetivos e interesses atuais. E ela é não pragmá-tica porque a sua resposta não faria qualquer diferença em nossa prática.

Mas, seguramente, irão objetar que sabemos que estamos mais pró-ximos da verdade. De fato temos feito progressos tanto morais quantointelectuais.

Com certeza temos feito progresso, segundo nosso ponto de vista.Em outras palavras, somos muito mais capazes de atender aos propósitosque desejamos atender e de lidar com as situações que acreditamos ter deenfrentar do que nossos ancestrais. Contudo, quando hipostasiamos oadjetivo “verdadeiro” em “Verdade” e investigamos nossa relação com ele,então não temos absolutamente nada a dizer.

Se quisermos, podemos usar essa hipostasialização da mesma formaque admiradores de Platão sempre usaram outras – Beleza, Bondade eJustiça. Ou seja, podemos contar uma história sobre como o desenvolvi-mento recente nas artes, nas ciências, na moral ou na política nos aproxi-ma dessas reificações majestosas. Não há, porém, razões claras para con-tar essas histórias, pois substantivar esses adjetivos não nos ajuda nem umpouco a responder às perguntas dos céticos – por exemplo: como sabe-mos que maior poder de predição e maior controle do meio (incluindomaior habilidade para curar doenças, construir bombas, explorar o espa-ço etc.) nos aproxima da verdade, entendida como uma representaçãoacurada de como as coisas são em si mesmas, sem considerar necessida-des e interesses humanos? Como sabemos que o aumento do padrão desaúde, segurança, igualdade de oportunidade, longevidade, supressão dahumilhação e de outros índices de maior florescimento humano sãosinais de progresso político ou moral?

Muitas pessoas ainda querem que os filósofos forneçam respostas inte-ressantes a essas perguntas. Tais pessoas não vão tirar nada de Nietzsche,James, Davidson ou dos ensaios deste volume. O vaticínio de Kant per-manece mais acertado do que nunca: ao tentarmos nos projetar do rela-tivo e condicional para o absoluto e incondicional, mantemos o pêndulooscilando entre o dogmatismo e o ceticismo. A única maneira de pararessa crescente e fatigante oscilação é mudar nossa concepção a respeito da

INTRODUÇÃO XI

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utilidade da filosofia. Mas isso não é algo que será alcançado por meio deargumentos pouco claros. Isso será alcançado, se algum dia o for, por umlongo e lento processo de mudança cultural, ou seja, de mudança nosenso comum, mudanças nas percepções disponíveis para ser impulsio-nadas por argumentos filosóficos.

Após abandonarmos a distinção aparência-realidade e a tentativa derelacionar coisas como o sucesso das predições e a diminuição da cruel-dade à natureza intrínseca da realidade, teremos de apresentar descriçõesdistintas para o progresso nas ciências e na moral. Chamamos algo deciência à medida que isso nos possibilita predizer o que vai acontecer e,conseqüentemente, influenciar esse acontecimento. Existem, é claro,diversos outros critérios, além do sucesso das predições, para classificarteorias científicas, e muitos motivos, além do desejo de ajudar a controlara natureza, para alguém se tornar um cientista natural. Mas a predição é,no entanto, uma condição necessária para que algo seja colocado no com-partimento com a etiqueta “ciência”. Hesitamos em colocar economia,sociologia, história ou crítica literária nesse compartimento porquenenhuma dessas disciplinas mostra-se capaz de responder a questões dotipo: “Se fizermos isso, o que acontecerá?”.

No que se percebe que “a ciência pode fazer predições à medida queapreende a realidade corretamente” é mais uma fórmula mágica do queuma explicação (porque não temos um teste para explanans distinto denosso teste para explanandum), parece suficiente definir o progresso cien-tífico simplesmente como uma crescente habilidade em fazer predições.Se abandonarmos a idéia de que nos tornamos menos cruéis e tratamosos outros melhor porque compreendemos de forma mais completa a ver-dadeira natureza dos seres humanos, dos direitos humanos ou das obri-gações humanas (mais pseudo-explicações), bastará definir progressomoral como a situação em que somos o que podemos ser de melhor (pes-soas que não são racistas, nem agressivas, nem intolerantes etc.). Mas oque dizer do progresso filosófico? Como ele está relacionado ao progres-so científico e moral?

A meu ver, o progresso filosófico ocorre à medida que encontramosuma maneira de integrar as visões de mundo e as percepções morais her-dadas de nossos ancestrais às novas teorias científicas ou às novas teoriase instituições sociopolíticas ou a outras inovações. Tenho citado freqüen-

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temente a doutrina de Dewey, segundo a qual “a questão principal, osproblemas e a ocupação característica da filosofia nascem dos estresses edas tensões da vida comunitária na qual determinada forma de filosofiasurge”.3 Os estresses e as tensões que Dewey tem em mente são os que sur-gem das tentativas de colocar novos líquidos borbulhantes e dilatáveis emvelhas garrafas. Também tenho citado com regularidade o seguinte ditode Dewey: “a filosofia não pode oferecer nada mais que hipóteses, e essashipóteses têm valor apenas à medida que tornam as mentes humanasmais sensíveis à vida ao seu redor”.4

Esse parece ser um modo estranho de descrever a atividade à qualse dedicaram homens como Platão, Descartes, Kant, Hegel e o próprioDewey. Mas isso fica mais plausível quando percebemos que uma formade nos tornarmos mais sensíveis aos avanços e às possibilidades da pró-pria época é parar de fazer perguntas formuladas em épocas passadas.Os grandes filósofos do Ocidente deveriam ser lidos como terapêuticosmais do que como construtivos, como aqueles que nos disseram quaisproblemas não devemos discutir: problemas escolásticos no caso deDescartes; cartesianos, no caso de Kant; kantianos, no caso de Hegel; emetafísicos (incluindo os levantados pela tentativa de Hegel de provarque a realidade tem caráter intrinsecamente espiritual) nos casos deNietzsche, James e Dewey.

Seria exagerada simplificação dizer que a tarefa da filosofia é fazercom que as pessoas parem de pensar sobre coisas em termos obsoletos,herdados dos grandes filósofos já falecidos – persuadi-las a jogar fora asescadas indispensáveis galgadas por nossa cultura no passado. Mas isso é,com certeza, uma grande parte do trabalho da filosofia. Se tentarmosimpor a terminologia aristotélica a Galileu, a terminologia cartesiana aDarwin ou a terminologia da filosofia moral de Kant a debates sobre oaborto, causaremos problemas desnecessários a nós mesmos. Abandonara terminologia obsoleta torna-nos mais sensíveis à vida ao nosso redor,pois nos ajuda a parar de tentar cortar materiais novos, recalcitrantes,para atender a antigos padrões.

INTRODUÇÃO XIII

3 John Dewey, Reconstruction in philosophy (Boston, Beacon Press, 1948).4 Ibid., p. 22.

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XIV VERDADE E PROGRESSO

Eu termino vários ensaios deste volume (em particular o primeiro eo terceiro) defendendo a idéia de que uma cultura na qual não levemosmais em conta a questão proposta pelo cético, que pergunta se estamosaproximando-nos da verdade, seria melhor do que aquela em que pedi-mos aos professores de filosofia que nos assegurem que estamos realmen-te fazendo isso. Em tal cultura, seríamos mais sensíveis à maravilhosadiversidade das linguagens humanas e das práticas sociais associadas aessas linguagens, pois teríamos parado de perguntar se elas “correspon-dem a” alguma entidade não-humana, eterna. Em vez de perguntar:“Existem verdades lá fora que nunca descobriremos?”, perguntaríamos:“Existem maneiras de falar e de agir que ainda não exploramos?”. Em vezde perguntar se a natureza intrínseca da realidade ainda está à vista (acontraparte secular de perguntar se as coisas são dis aliter visum), devería-mos perguntar se cada uma das diversas descrições de realidade emprega-das em nossas várias atividades culturais é a melhor que podemos imagi-nar – os melhores meios para os fins a que essas atividades se destinam.

Tal mudança em nossos hábitos intelectuais teria, no mínimo, maisduas vantagens. Em primeiro lugar, ajudar-nos-ia a parar de priorizaruma dessas atividades (a religião, por exemplo, ou uma ciência natural)em detrimento das outras. Em segundo lugar, ajudar-nos-ia a não nospreocuparmos mais com a objetividade, pois ficaríamos satisfeitos com aintersubjetividade. Isso nos faria parar de fazer perguntas inúteis, do tipo:“Existem fatos objetivos sobre o certo e o errado no mesmo sentido emque existem fatos objetivos sobre elétrons e prótons?”.

Dewey antecipou Habermas ao afirmar que não há nada na noção deobjetividade com exceção do acordo intersubjetivo – acordo alcançadopela discussão livre e aberta a respeito de todas as hipóteses e políticas dis-poníveis. Ele esperava que a ampla adoção dessa idéia nos conferisse maiorsensibilidade em relação à vida ao nosso redor. Isso colocaria um fim àstentativas de estabelecer uma hierarquia social entre as atividades culturaise entre as partes de nossas vidas. Ao nos livrarmos da distinção kantianaentre o cognitivo, o moral e o estético, por exemplo, faríamos com que asciências “rígidas” deixassem de olhar com ares de superioridade para asmaleáveis, com que essas duas deixassem de olhar com ares de superiori-dade para as artes, e poríamos um fim às tentativas de colocar a filosofiano seguro caminho de uma ciência. Isso faria com que as pessoas parassem

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de se preocupar com o status “científico” ou “cognitivo” de uma disciplinaou de uma prática social. Dessa forma, também os filósofos não mais ten-tariam isolar uma área especial para si mesmos, e seriam destruídas as dis-tinções entre, por exemplo, o transcendental e o empírico (Kant), o con-ceitual e o factual (Ryle), ou o ontológico e o ôntico (Heidegger).

Se quisermos prosseguir com as sugestões de Dewey, será útil pensarno progresso da maneira como Thomas Kuhn nos exortou a pensar:como uma habilidade para resolver não apenas os problemas solucionadospor nossos ancestrais, mas também problemas novos. Por isso Newtonprogrediu em relação a Aristóteles, e Einstein em relação a Newton, masnenhum deles se aproximou mais da verdade, ou do caráter intrínseco darealidade, do que o outro. Hume progrediu em relação a Leibniz, e Hegelem relação a Hume, mas os últimos não superaram os primeiros no quese refere a chegar mais perto da Solução Correta para os Problemas daFilosofia. Analogamente, a pólis ateniense registrou um progresso morale político em relação à monarquia persa; as nações-estado que aboliram aescravidão na Europa, no século XIX, também progrediram em compara-ção à pólis ateniense; as social-democracias dos tempos modernos, emrelação a suas predecessoras do mesmo século, empobrecedoras do prole-tariado. Mas nenhuma dessas sociedades chegou mais perto da Demandada Moralidade.

Aos que dizem que as sociedades recentes fizeram progresso emreconhecer a existência dos direitos humanos, argumento, no nonoensaio deste volume, que isso só quer dizer que elas se adequaram melhorà maneira como nós, habitantes saudáveis, seguros e educados do Primei-ro Mundo, pensamos que as pessoas devem tratar umas às outras. Temosboas razões para pensar assim, mas não podemos confrontar nossa opi-nião a respeito do problema com a natureza intrínseca da realidademoral. Não chegaremos a lugar nenhum se pedirmos a nossos professo-res de filosofia que se certifiquem da existência de coisas como direitoshumanos e confirmem se eles são de fato como nós os descrevemos. Damesma forma, não chegaremos a lugar nenhum se dissermos aos quepensam de forma diferente que eles não estão agindo de acordo com arealidade moral ou estão comportando-se irracionalmente.

A questão sobre a existência real dos direitos humanos é, do pontode vista que proponho, tão inútil quanto a questão sobre a existência real

INTRODUÇÃO XV

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XVI VERDADE E PROGRESSO

dos quarks. Os direitos humanos não são mais nem menos “objetivos”que os quarks, mas também podemos dizer que a referência aos direitoshumanos é tão indispensável aos debates do Conselho de Segurança daONU quanto a referência aos quarks, aos debates da Royal Society. Aindependência causal dos quarks em relação ao discurso humano não éuma marca de realidade em oposição à aparência; é apenas uma parte nãoquestionada de nossa conversa sobre quarks. Provavelmente, uma pessoaque desconheça esse fato a respeito dos quarks terá tão poucas chances decompreender o que eles são quanto alguém que pensa que os direitoshumanos existiam antes dos humanos. Podemos dizer, como Foucault,que tanto os direitos humanos quanto a homossexualidade são constru-ções sociais recentes, mas apenas se dissermos, como Bruno Latour, queos quarks também são. É inútil dizer que os primeiros são “simplesmen-te” construções sociais, pois todas as razões que poderiam ser usadas paradefender essa afirmação poderiam também ser aplicadas aos quarks.

Um dos benefícios de nos livrarmos da noção da natureza intrínse-ca da realidade é que ficamos livres da noção de que os quarks e os direi-tos humanos são diferentes no que diz respeito ao “status ontológico”.Isso, por sua vez, ajuda a rejeitar a sugestão de que a ciência natural deve-ria servir como um paradigma para o restante da cultura e, particular-mente, de que o progresso filosófico acontece quando os filósofos tor-nam-se mais científicos. Essas últimas más idéias desempenharam umpapel na gênese da tradição intelectual conhecida agora como “filosofiaanalítica”. Essa tradição, porém, tem estado, desde Kuhn, em uma posiçãoque lhe permite jogar fora essas escadas.

É comum pensar que um ataque à teoria correspondencionalistada verdade, ao “realismo”, é um ataque à própria filosofia analítica. Masisso é um erro. A tradição intelectual iniciada com Frege e Russell levoua Sellars e Davidson (filósofos analíticos, sem dúvida), assim como a tra-dição intelectual estabelecida por Galileu e Newton levou a Einstein. Nin-guém pensa que Einstein apunhalou a física moderna pelas costas aonegar algumas doutrinas centrais de Newton, e ninguém deveria pensarque Davidson apunhalou a filosofia analítica pelas costas ao recusar-se alevar a sério a distinção entre realismo e anti-realismo ou que Sellarsassim o fez ao recusar-se a levar a sério a distinção entre conhecimentopor familiaridade e conhecimento por descrição.

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De acordo com a concepção de progresso filosófico oferecida nestevolume, a filosofia progride ao se tornar não mais rigorosa, mas mais cria-tiva. O progresso nesse campo, bem como em muitos outros, é feito porpoucas pessoas, em cada geração, que vislumbram uma possibilidade atéentão não aproveitada. Frege e Mill, Russell e Heidegger, Dewey e Haber-mas, Davidson e Derrida são pessoas desse tipo. O restante de nós – ossubtrabalhadores, aos quais resta limpar e utilizar o que esses pioneiroscriativos consideraram como lixo – executa uma função social útil. Faze-mos o trabalho sujo. (Mas essa, é claro, não é nossa única função. Tam-bém fazemos muito do trabalho de pedagogia, divulgação e populariza-ção.) Dizer que executamos nosso trabalho “rigorosa” ou “profissional-mente” é apenas dizer que o fazemos da maneira aceitável pela, e adapta-da à, comunidade de professores de filosofia à qual pertencemos.

Existem, é evidente, várias dessas comunidades. Comparar umas àsoutras é o mesmo que comparar os legados dos pensadores originaisentre si. Cada legado tem vantagens e desvantagens óbvias. Afirmar que afilosofia continental deveria tornar-se analítica ou o contrário, ou aindaque deveríamos reviver a teologia natural ou a fenomenologia husserlia-na ou o essencialismo aristotélico, é afirmar que a balança das vantagense desvantagens dita certa decisão.

Eu não tenho uma afirmação desse tipo para oferecer nem uma opi-nião a respeito da forma que a filosofia deveria tomar. Não vejo utilidadeem dizer que a filosofia como tal deveria ser feita historicamente ou não,ou em dizer que uma ou outra área da filosofia é a “primeira filosofia”.Não há mais utilidade em discutir a “filosofia” num sentido amplo o sufi-ciente para incluir Parmênides, Averroes, Kierkegaard e Quine do que emdiscutir a “arte” num sentido amplo o suficiente para incluir Sófocles,Cimabue, Zola e Nijinsky. A tentativa de obter neutralidade por meio doaumento, até esse nível, do grau de abstração produz somente platitudesbanais ou slogans polêmicos. A tentativa de determinar a natureza, a tare-fa ou a missão da filosofia em geral é apenas uma tentativa de transfor-mar as próprias preferências filosóficas numa definição de “filosofia”.

A chamada divisão analítico-continental é ponto de convergência depropostas desse tipo e de muitas tentativas de excomungar filósofos quealgumas pessoas não desejam ler, criando uma definição de “filosofia” queexclui os trabalhos desses indesejados. A meu ver, essa divisão é, primeira-

INTRODUÇÃO XVII

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mente, uma divisão entre duas matrizes disciplinares – e, em particular,entre duas maneiras de formar os candidatos a professor de filosofia. Taismatrizes emergiram e solidificaram-se nos últimos cem anos, são realmen-te bem diferentes entre si, e é bastante improvável que venham a se juntaralgum dia. Se você optar por um curso “analítico”, será encorajado a seconcentrar nos problemas da “linha de frente”, nesses problemas discuti-dos nos artigos de revistas da atualidade por importantes filósofos analíti-cos. Você poderá fazer os cursos de história da filosofia, e talvez também osde lógica formal, como distração – bons para a alma, talvez, mas não paraa carreira. Por outro lado, se você optar por um curso “continental”, have-rá a expectativa de que você aprenda um bocado sobre a história da filo-sofia e escolha, conscientemente, uma das diferentes descrições que conec-tam os eventos dessa história (as oferecidas, por exemplo, por Hegel, Hei-degger e Blumenberg). Você poderá passar muito bem sem ler nenhumdos filósofos “analíticos”, com exceção, talvez, de Wittgenstein.

O curso escolhido influencia a lista de livros que devem ser lidos e otipo de filósofo que o aluno terá mais condições de admirar. Dos três filó-sofos discutidos mais extensamente neste volume, Davidson será muitomais apreciado por sua originalidade por aqueles educados “analitica-mente” do que Habermas e Derrida. No caso daqueles educados “conti-nentalmente”, ocorrerá o contrário. Mas tais diferenças de formação são,é claro, superadas todo o tempo.

Eu tenho sido, algumas vezes, condecorado erroneamente porminha originalidade só porque, com freqüência, coloco figuras aparente-mente nada similares – como Nietzsche e James, Davidson e Derrida – nomesmo saco. Existe, porém, uma diferença entre ser original e ser ecléti-co. O último é apenas o resultado de estar sempre entediado e olhar emvolta à busca de algo novo. Eu me inquieto, procuro novos heróis, maspermaneço razoavelmente leal aos antigos e, dessa forma, acabo tornan-do-me um sincrético.5 Mas mesmo o sincretismo mais bem-sucedido não

5 Na década de 1960, quando eu era um jovem e confiável filósofo analí-tico, ouvi um reverenciado colega mais experiente, Stuart Hampshire, descreveruma conferência internacional cheia de estrelas sobre algum tema vasto e preten-sioso – uma conferência da qual ele acabara de retornar e cujos resultados eledeveria resumir no final da sessão. “Não há segredos”, explicou Hampshire, “para

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pode sonhar em imitar os verdadeiros e heróicos avanços filosóficos:aqueles que nos deixam ver tudo de um novo ângulo, que induzem àmudança na Gestalt.

A indução dessa mudança é o avanço mais difícil, e mais raro, nafilosofia. Já não há motivos para esperar que tal avanço heróico surja datradição analítica e não da tradição continental, ou vice-versa. O gêniosempre nos pega de surpresa. Ele pode florescer em qualquer clima, sobqualquer sol. Quando perguntaram a Goethe quem era o maior poeta, eleou Schiller, ele replicou: “Apenas fique feliz em ter nós dois”. Essa me pare-ce a atitude apropriada para os filósofos de ambos os lados da divisãoentre analíticos e continentais.

A filosofia seguirá fazendo progressos desde que gênios continuemsurgindo. Os projetos dos não-gênios, descartados como lixo, ajudam alimpar e preparar o terreno para esse surgimento. Ou, para mudar ametáfora, eles acrescentam adubo aos grandes montes de onde, comsorte, algo inesperado surgirá. Esse crescimento inesperado não pode serencorajado pela adoção laboriosa de um “método” (por exemplo, pormeio da revelação de contra-sensos, agrupamento de experiências, análi-se ou desconstrução de conceitos, adoção do ponto de vista transcenden-tal ou de enunciados ontológicos). Os métodos desse tipo são simplesdescrições das atividades nas quais se envolveram os imitadores entusias-mados de uma ou outra mente original – o que Kuhn chamaria de “pro-gramas de pesquisa” gerados por seus trabalhos.

Deveríamos lembrar que é a mudança inicial na Gestalt, e não osresultados dos negócios triunfalistas e profissionalizados, que importa. Ahistória da filosofia é a história das mudanças na Gestalt, e não da reali-zação diligente de programas de pesquisa. No final, tais programas sem-pre acabam como gotas na areia, mas as mudanças na Gestalt podem per-manecer e possibilitar novas mudanças no futuro. Abandonar a idéia deque a filosofia se aproxima da verdade, e interpretá-la como o fez Dewey,significa dar primazia à imaginação sobre o intelecto argumentativo, aogênio sobre o profissionalismo.

INTRODUÇÃO XIX

um velho sincrético picareta como eu”. Naquele momento descobri o que eu que-ria ser quando crescesse.

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XX VERDADE E PROGRESSO

A primeira parte deste volume (“Verdade e Alguns Filósofos”) tratade várias coisas que os filósofos contemporâneos disseram sobre a verda-de. Nenhum dos oito ensaios desta seção traz uma teoria da verdade ouuma definição de “verdadeiro”. Em vez disso, eles apresentam argumentoscontra a teoria segundo a qual crenças ou afirmações verdadeiras corres-pondem à natureza intrínseca da realidade e também contra a idéia deque precisamos agora de uma nova teoria da verdade para substituir essateoria correspondencionalista da verdade. O tom desses artigos não é oque constrói, mas o que descarta: eles descartam diversas questões e con-trovérsias que não levam a lugar nenhum. Eles não propõem um progra-ma de pesquisa filosófica. Ao contrário, criticam vários programas de pes-quisa concebidos erroneamente. Eles se ocupam do que alguns filósofosdisseram acerca da verdade na esperança de desencorajar outros a dedicaratenção a esse tópico bastante infrutífero.

Esses ensaios podem ser considerados notas de rodapé da seguinteafirmação de Davidson: “ [nós] não deveríamos dizer que a verdade é cor-respondência, coerência, assertividade garantida, assertividade justificadaidealmente, o que é aceito nas conversas das pessoas decentes, o que aciência acabará por manter, o que explica a convergência para teorias úni-cas na ciência ou o sucesso de nossas crenças comuns”.6 Se “pragmatismo”é um nome adequado para o panorama filosófico resultante da aceitaçãodo conselho de Davidson, esse é um dos poucos pontos em que ainda dis-cordo de Davidson.

A segunda parte (“Progresso Moral: Rumo a Comunidades MaisInclusivas”) contém quatro ensaios sobre o progresso moral. Nela, afir-mo que esse tipo de progresso não deveria ser concebido como a conver-gência da opinião humana a respeito da Verdade Moral ou como o des-pontar de maior racionalidade, mas, muito mais, como um aumento emnossa habilidade de aceitar cada vez mais que as diferenças entre as pes-soas são moralmente irrelevantes. Essa habilidade – considerar as dife-renças de religião, nação, sexo, raça, condição econômica etc., irrelevan-tes para a decisão de cooperar com as pessoas a fim de alcançar um bene-

6 “The Structure and Content of Truth”, Journal of Philosophy 87 (Junhode 1990), p. 309.

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fício mútuo e de aliviar o sofrimento de todos – tem crescido bastantedesde o Iluminismo. Ela tem gerado comunidades humanas mais inclu-sivas do que parecia possível antes. A imagem liberal ocidental que faze-mos de uma utopia democrática global é a de um planeta no qual todosos membros da espécie estejam preocupados com os destinos de todos osoutros membros.

Em alguns desses ensaios, afirmo que não há nada de útil em enxer-gar no aumento da habilidade de compreender os sentimentos de pessoasdiferentes de nós um sinal de que usamos melhor a faculdade que buscaa verdade chamada Razão. Em outros (naqueles sobre feminismo e dife-renças culturais), argumento que é a imaginação, mais do que uma claracompreensão de nossas obrigações morais, que mais faz pela criação eestabilidade desse tipo de comunidade. Essa última afirmação é coerentecom a minha opinião, expressa em artigos anteriores, segundo a qual osromances, mais do que os tratados sobre a moral, são veículos úteis paraa educação moral.

Essas duas primeiras partes estão convenientemente unidas, demodo que a mesma linha de pensamento é reiterada em cada um deseus ensaios. Mas a terceira (“O Papel da Filosofia no Progresso Huma-no”) é mais variada. Seus cinco ensaios são metafilosóficos. Eles tentamdizer algo a respeito do que os filósofos – entendidos como pessoas quelêem Platão, Kant e o restante do cânone filosófico ocidental e pensamacerca das questões levantadas nesses textos – podem fazer pelo pro-gresso humano.

Os dois primeiros ensaios dessa parte versam sobre a historiografiada filosofia e argumentam que o que é considerado como “filosofia” estárelacionado a quem decide, e com quais propósitos, quais figuras históri-cas serão vistas como “filósofos” (mais do que, por exemplo, cientistas,teólogos, cientistas políticos ou literatos).

Os três últimos ensaios tentam contar a história da filosofia recente,dando a devida importância às contribuições de John Dewey, JürgenHabermas e Jacques Derrida. Considero a teoria de Habermas da “açãocomunicativa” um passo enorme para finalizar a tarefa iniciada porDewey – reformular as concepções da filosofia tradicional de forma atorná-la mais útil para a autodescrição de uma sociedade democrática. Oúnico ponto em que discordo de Habermas – a utilidade da noção de

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“validade universal” – é pouco importante, tendo em vista a superposiçãode nossas visões.7

Derrida é tão diferente de Dewey e Habermas quanto os dois últimossão similares entre si. Surpreendo-me voltando ao seu trabalho com fre-qüência, sempre incapaz de obter uma visão sinóptica clara de seu inten-to, mas sempre fascinado. Considero Derrida um análogo de Nietzsche doséculo XX. Minha intuição me diz que a assimilação de seu trabalho nestenovo século será tão prolongada, e tão discutida, quanto a assimilação deNietzsche no século XX.

Com duas exceções, registradas adiante, esses ensaios foram escritosao longo da década de 1990. Provavelmente quatro deles já terão sidopublicados quando este volume ficar pronto. As versões apresentadas aquisão apenas um pouco diferentes (uma mudança ocasional de frase, umaomissão de parágrafo, algumas notas de rodapé adicionais) das versões jápublicadas. A história de cada um deles é a seguinte:

1. “Será que a verdade é um objetivo da investigação? DonaldDavidson versus Crispin Wright” seria uma resenha de Truth and objecti-vity, de Crispin Wright, mas ultrapassou os limites de uma resenha. Ape-sar disso, os editores de Philosophical Quarterly gentilmente publicaram otexto no vol. 45 (julho de 1995), p. 281-300, e deram permissão para repu-blicação do ensaio neste livro.

2. “Hilary Putnam e a ameaça relativista” foi publicado como “Put-nam and the Relativist Menace” no Journal of Philosophy, vol. 90 (setem-bro de 1993), p. 443-61. Agradeço aos editores pela autorização parareimpressão.

3. “John Searle sobre o realismo e o relativismo” foi uma resposta aoconvite de Louis Menand para proferir uma série de palestras sobre liber-dade acadêmica na American Association of University Professors (AAUP).

7 Eu discuto a questão da validade universal detalhadamente em “SindAussagen universelle Geltungsansprüche?” (Enunciados são requisições universaisde validade?), em Deutsche Zeitschrift für Philosophie 42, no 6 (1994), p. 975-88. Nãoo reproduzi neste volume porque uma versão revisada desse ensaio aparecerá comoum capítulo de uma monografia que pretendo publicar daqui a poucos anos.

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Aproveitei esse convite como oportunidade para responder à opinião deSearle sobre a importância da teoria da correspondência para a política cul-tural. Meu artigo foi publicado com o título “Does Academic FreedomHave Philosophical Presuppositions?”, inicialmente na Academe, a revistada AAUP (vol. 80, novembro/dezembro de 1994, p. 52-63), e mais tarde naAcademic Freedom, ed. Louis Menand (Chicago: University of ChicagoPress, 1996). Agradeço a ambos pela permissão para republicação.

4. “Charles Taylor sobre a verdade” foi uma contribuição para Phi-losophy in an age of pluralism: the philosophy of Charles Taylor in question,ed. James Tully (Cambridge University Press, 1994). A resposta de Taylorao meu ensaio foi incluída naquele volume.

5. “Daniel Dennett sobre a intrinsecalidade” foi originalmentepublicado como “Holism, Intentionality and the Ambition of Transcen-dence” em Dennett and his critics: demystifying mind, ed. Bo Dahlbom(Oxford: Blackwell, 1993), reimpresso com permissão. Uma resposta deDennett ao meu ensaio foi incluída naquele volume.

6 e 7. Esses dois ensaios, respectivamente sobre o trabalho de RobertBrandom e John McDowell, não foram publicados antes. Fizeram parte deuma série de dez palestras que proferi na Catalunha, como professor con-vidado no âmbito do programa José Ferrater Mora, em Girona, em junhode 1996. Agradeço ao professor Josep-Maria Terrecabrias, diretor da cáte-dra Ferrater Mora, por essa oportunidade e por ter convidado Brandom eMcDowell para responder às minhas considerações sobre o trabalho deles.

8. “Armas contra o ceticismo: Michael Williams versus DonaldDavidson” foi proferido num simpósio sobre Unnatural doubts: epistemo-logical realism and the basis of scepticism, de Michael Williams, realizadono encontro anual da Central Division of the American PhilosophicalAssociation, em abril de 1995. Não foi publicado antes.

9. “Direitos humanos, racionalidade e sentimentalidade” foi escritopara a Oxford Amnesty Lecture, em 1993, e publicado em On humanrigths: the 1993 Oxford Amnesty Lectures, ed. Susan Hurley e StephenShute (Nova York: Basic Books, 1993). Agradeço a Basic Books pela per-missão para reimpressão.

10. “Racionalidade e diferença cultural” foi proferido numa confe-rência sobre esse tema, organizada pelo Indian Institute of Philosophy erealizada em Monte Abu, em 1991. Foi publicado com o título “A Prag-

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matist View of Rationality and Cultural Differences” em Philosophy Eastand West, vol. 42 (outubro de 1992), p. 581-96, e reimpresso com autori-zação da University of Hawaii Press.

11. “Feminismo e pragmatismo” foi proferido na Tanner Lecture, naUniversity of Michigan, em 1991, e publicado em The Tanner Lectures onHuman Values, vol. 13 (Salt Lake City: University of Utah Press, 1994).Reimpresso neste volume com a gentil permissão de Tanner Trustees.

12. “O fim do leninismo, Havel e a esperança social” foi escrito parauma conferência intitulada “O fim da história”, realizada em 1991, naMichigan State University, cujo debate girava em torno das idéias deFrancis Fukuyama. Uma versão revisada e mais curta foi publicada como título “The Intellectuals at the End of Socialism,” em Yale Review, vol.80, n. 1 e 2 (1992), p. 1-16. A versão completa foi publicada em Historyand the idea of progress, ed. Arthur M. Melzer et al. (Ithaca, Nova York:Cornell University Press, 1995), p. 211-26. Agradeço ao professor Melt-zer e seus colegas pelo estímulo inicial e à editora pela permissão pararepublicar esta versão.

13. “A historiografia da filosofia: quatro gêneros” é uma reimpressãodo texto publicado em Philosophy in history (Cambridge University Press,1984), um volume de ensaios sobre a historiografia da filosofia, editadopor mim em conjunto com J. B. Schneewind e Quentin Skinner.

14. “A contingência dos problemas filosóficos: Michael Ayers sobreLocke” foi escrito para uma conferência realizada em Göttingen, emhomenagem a Lorenz Krüger. Será publicado também num livro de con-ferências a ser editado por Wolfgang Carl e Lorraine Daston.

15. “Dewey entre Hegel e Darwin” foi escrito para uma conferênciaorganizada por Dorothy Ross e Olivier Zunz, realizada em Bellagio, em1991. Foi publicado pela primeira vez numa tradução francesa em RueDescartes, n. 5 e 6 (1992), p. 53-71, e em seguida em Modernist impulses inthe human sciences, ed. Dorothy Ross (Baltimore: Johns Hopkins Univer-sity Press, 1994). Foi incluído também em Rorty and pragmatism, ed. Her-man Saatkamp (Nashville, Tennessee: Vanderbilt University Press, 1995).Republicado aqui por cortesia da Johns Hopkins University Press.

16. “Habermas, Derrida e as funções da filosofia” foi publicado emRevue Internationale de Philosophie, n. 4 (1995), p. 437-60, e reimpressoaqui com permissão dos editores desse periódico.

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17. “Derrida e a tradição filosófica” é uma versão um pouco modifi-cada de uma resenha sobre Jacques Derrida, de Geoffrey Bennington eJacques Derrida, publicada em Contemporary Literature, vol. 36 (1995), p.173-200, sob o título “Is Derrida a Quasi-Transcendental Philosopher?”.Republicado aqui com a permissão dos editores desse periódico.

A tarefa de reunir esses artigos num único livro foi facilitada pelaajuda de Andrew Moser e Mary Racine.

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PARA MARY

pelos vinte e cinco anos