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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Educao e Humanidades
Instituto de Psicologia
Vera Schroeder
O paradoxo na comunicao humana: mltiplos e duplos vnculos
Rio de Janeiro
2006
Vera Schroeder
O paradoxo na comunicao humana: mltiplos e duplos vnculos
Dissertao apresentada, como requisito parcial
para obteno do ttulo de Mestre, ao Programa
de Ps-Graduao em Psicologia Social, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Orientador: Prof. Dr. Ronald Joo Jacques Arendt
Rio de Janeiro
2006
CATALOGAO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEH/A
Autorizo, apenas para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou parcial desta
dissertao
________________________________ _____________________
Assinatura Data
V476 Schroeder, Vera. O paradoxo na comunicao humana : mltiplos e duplos vnculos /
Vera Schroeder. 2006. 99f.
Orientador: Ronald Joo Jacques Arendt.
Dissertao (Mestrado) Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Instituto de Psicologia.
1. Antipsiquiatria Teses. 2. Cincia Filosofia Teses. 3.
Racionalismo Teses. I. Arendt, Joo Jacques. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. III. Ttulo.
CDU 616.89
Vera Schroeder
O paradoxo na comunicao humana: mltiplos e duplos vnculos
Dissertao apresentada, como requisito parcial
para obteno do ttulo de Mestre, ao Programa
de Ps-Graduao em Psicologia Social, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Aprovada em 29 de junho de 2006.
Banca Examinadora:
______________________________________________
Prof. Dr. Ronald Joo Jacques Arendt (Orientador) Instituto de Psicologia da UERJ
______________________________________________
Prof Dr Heliana de Barros Conde Rodrigues
Instituto de Psicologia da UERJ
______________________________________________
Prof. Dr. Silvio Donizetti de Oliveira Gallo
Universidade Estadual de Campinas
Rio de Janeiro
2006
DEDICATRIA
Para meu pai, meu guri, em memria.
E para minha me.
Porque me ensinaram e ainda me ensinam a conversar com a vida.
AGRADECIMENTOS
Esta dissertao foi tecida a vrias mos. Como num palimpsesto, trago aqui outras
anotaes, feitas por mim mesma numa outra poca. E ainda por detrs, deixo transparecer os
comentrios de tantas pessoas que souberam me ouvir criativamente. Esses comentrios se
misturaram aos meus, renovaram-se e ganharam um sentido prprio. Como eles tambm sero
lidos, tenho a obrigao de dizer quem so essas pessoas. Mas acima de tudo, o que tenho
mesmo o prazer em agradecer a cumplicidade nesta caminhada que aqui se encerra em
novos rumos.
Nesse sentido, gostaria de agradecer primeiramente ao meu orientador, professor Dr.
Ronald Joo Jacques Arendt pela acolhida e, acima de tudo, por ter me orientado de maneira
to serena e atenta s minhas incompreenses. Agradeo tambm aos comentrios e sugestes
do grupo de pesquisa, com trocas sempre to precisas.
Alguns comentrios ou sugestes de leitura provocaram verdadeiras guinadas no norte
da minha escrita. Gostaria, portanto, de agradecer as marcas indelveis deixadas por algumas
pessoas neste palimpsesto: professora Dr. Margareth Rago, indicando a genealogia do
paradoxo como um importante rumo a ser seguido; ao professor e Doutor Amir Geiger, pelas
conversas antropolgicas e sugestes de textos; ao professor Doutor Etienne Samain, pelo
carinho e generosidade no envio de textos complementares e por construir vnculos to
importantes em torno da obra de Bateson.
Por fim, gostaria de agradecer queles que arrancaram pedaos deste texto. Seus
rasgos deixaram este pergaminho menos retilneo e suas interferncias possibilitaram uma
construo muito mais surpreendente e apaixonada. Comeo agradecendo s rupturas feitas
por Roberto Freire e pelo nosso Incrvel Exrcito de Brancaleone (Joo da Mata, Jorge Goia,
Stfanis Caiaffo e Marcelo Leal). Branca, Branca, Branca! Leone, Leone, Leone! Muito
obrigada a Guaraciny Vieira de Assis pelas longas e anrquicas conversas. E ao professor
Doutor Paulo Pavo, pela cumplicidade neste caminho que s vezes se mostra to solitrio.
Agradeo ainda delicada compreenso cortante nas longas leituras de Renata Folhas e
Stfanis Caiaffo, nas tradues de ltima hora de Irene Ernest Dias, no apoio imagtico de
Eneida Dchery e Clarice Soter, aos meus irmos (to longe, to perto!), bem como ao
carinho maternal das Fulres (Joana Corra, Soraya Oliveira e Christiane Alcntara).
T bem de baixo pr poder subir
T bem de cima pr poder cair
T dividindo pr poder sobrar
Desperdiando pr poder faltar
Devagarinho pr poder caber
Bem de leve pr no perdoar
T estudando pr saber ignorar
Eu t aqui comendo para vomitar
Eu t te explicando
Pr te confundir
Eu t te confundindo
Pr te esclarecer
T iluminado
Pr poder cegar
T ficando cego
Pr poder guiar
Suavemente pr poder rasgar
Olho fechado pr te ver melhor
Com alegria pr poder chorar
Desesperado pr ter pacincia
Carinhoso pr poder ferir
Lentamente pr no atrasar
Atrs da vida pr poder morrer
Eu t me despedindo pr poder voltar
(T, de Elton Medeiros e Tom Z)
RESUMO
SCHROEDER, Vera. O paradoxo na comunicao humana: mltiplos e duplos vnculos.
2006. 99f. Dissertao (Mestrado em Psicologia Social) Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
O objetivo deste estudo discutir o conceito de duplo vnculo, presente nas pesquisas
sobre o paradoxo na comunicao humana realizadas pela Escola de Palo Alto com a
coordenao de Gregory Bateson. Para isso, ser analisado de que maneira o paradoxo foi
empregado pela filosofia e pelos estudos matemticos em alguns momentos da histria do
conhecimento humano, sempre se opondo Verdade e Cincia. Assim, atravs de Deleuze,
Stengers, Despret e Latour, outros modelos cientficos e epistemolgicos sero apresentados,
contribuindo para uma melhor compreenso do pensamento de Bateson.
Palavras-chave: Batson, Gregory. Antipsiquiatria. Paradoxo. Duplo vnculo.
ABSTRACT
This study aims to discuss the concept of double bind, presented in the researches
about paradox in human communication developed by the Palo Alto school, under the
coordination of Gregory Bateson. For that, it will analyze in which manners the concept of
paradox was used by philosophy and mathematics studies in some moments of the knowledge
history, always opposing to Truth and Science. In this way, through Deleuze, Stengers,
Despret and Latour, other scientific and epistemological designs will be presented,
contributing to a better comprehension of Batesons ideas.
Keywords: Bateson, Gregory. Paradox. Double bind.
SUMRIO
INTRODUO .............................................................................................. 11
1 DO ESPANTO AO RACIONALISMO CIENTFICO ............................... 16
1.1 Incomodando a doxa e contrariando a altheia ........................................... 17
1.2 Contradio e opinio: a cincia de coisa alguma ....................................... 20
1.3 A matematizao da vida .............................................................................. 22
1.4 Russell e Gdel: limites iniludveis para a razo humana ......................... 24
1.5 A Modernidade e o Paradoxo ....................................................................... 28
1.6 A crtica Modernidade: Razo versus Razo ............................................ 29
1.6.1 A Teoria Crtica ............................................................................................... 31
1.6.2 Popper e a verdade falsevel ........................................................................... 32
2 A CINCIA NO PROVA NADA .............................................................. 34
2.1 Pontos de Vida: resultado de encontros ....................................................... 35
2.2 Adeus Epistemologia ................................................................................... 37
2.3 Por uma Epistemologia Poltica .................................................................... 39
2.4 Abandonando o Mito da Caverna ................................................................ 40
2.5 Jamais fomos platnicos ................................................................................ 43
3 POR UMA ANTROPOLOGIA SIMTRICA ............................................ 49
3.1 Sujeitos e Objetos: humanos falantes e o mundo calado ............................ 50
3.2 Caminhar nos labirintos com astcia .......................................................... 53
3.3 De Homo faber a fatiches ............................................................................... 54
3.4 Coletivo: uma arena de atores ....................................................................... 57
3.4.1 Recalcitrncia ................................................................................................... 58
3.4.2 Comunicao de Duplo-Clique: informao versus transformao ................ 60
3.5 Fatos e Valores na nova separao de poderes ........................................... 62
4 UMA EPISTEMOLOGIA DA COMUNICAO ..................................... 66
4.1 Seguindo os passos de Gregory Bateson ...................................................... 67
4.2 Cismas e ambigidades: O Cerimonial Naven ............................................ 68
4.3 Mead, Bateson e o Carter Balins .............................................................. 71
4.4 Teoria Geral da Comunicao e a Escola de Palo Alto ............................... 74
4.5 Linguagem Analgica e Digital ..................................................................... 75
4.6 Duplo Vnculo ................................................................................................ 78
4.7 A Antipsiquiatria e o Duplo Vnculo ............................................................ 80
4.8 Lgica + Patologia .......................................................................................... 83
4.9 Transcontextualidade: transcendendo a contradio ................................. 84
PERSPECTIVAS ........................................................................................... 88
REFERNCIAS .............................................................................................. 94
11
INTRODUO
Este projeto de dissertao procurou dar algumas respostas a antigas
inquietaes. E, assim como eu imaginava e temia, trouxe uma srie de novas
indagaes. Todas elas das antigas s mais recentes procuram compreender melhor
as relaes humanas e, mais precisamente, os aspectos ligados ao paradoxo na
comunicao humana.
O interesse em estudar esses assuntos surgiu no cotidiano do meu trabalho
ligado Somaterapia, uma terapia corporal e em grupo criada pelo escritor e ex-
psicanalista Roberto Freire. Desde o meu primeiro contato com a Somaterapia, em
1994, os estudos sobre a comunicao humana no mbito teraputico despertaram um
novo interesse. Pesquisas transdisciplinares que envolviam a psicologia, a comunicao
e a psiquiatria eram discutidas e trabalhadas nos grupos de formao e, posteriormente,
eram levadas para os grupos de terapia. De certo modo, essas pesquisas no mbito
teraputico apoiadas em estudos comunicacionais me remetiam graduao em
Comunicao Social (1990-1994), que sempre me pareceu ser um campo insatisfatrio,
sem muitas respostas ou perguntas inquietantes. Pelo contrrio, parecia oferecer
instrumentos cada vez mais acticos e adaptadores, sufocados por conceitos
deterministas, como a mass media e a indstria cultural. Por esse aspecto, esse texto a
concretizao de um elo entre o curso de graduao, em Comunicao Social, e o
trabalho que venho desenvolvendo na Somaterapia.
Num ambiente teraputico como o proposto pela Soma, a comunicao pautada
pelo racional e pela lgica se mostram insuficientes para compreender a imensa teia de
emoes e controles impostos socialmente e seu impacto sobre a individualidade.
justamente nesta relao indivduo versus sociedade que surgem os paradoxos
comunicacionais: como escapar das relaes hierrquicas e autoritrias com todas as
suas extenses emocionais, influenciadas por algo que muitas vezes no tangvel, nem
to pouco racional? Este "algo mais", para alm da razo, que j foi objeto de estudos de
filsofos, matemticos e psiclogos, foi tambm o questionamento que levou Roberto
Freire a criao da Soma, no incio dos anos 70.
12
Roberto Freire foi militante clandestino na Ao Popular (AP) na luta contra a
ditadura militar. A organizao clandestina denominada Ao Popular Marxista
Leninista (APML) surgiu da transformao do grupo de orientao catlica, a Ao
Popular, em agremiao de diretrizes marxistas. A matriz da APML, a antiga Ao
Popular (AP), liderou durante muitos anos o movimento estudantil. Foi formada em
Belo Horizonte em 1962, a partir de grupos de operrios e estudantes ligados Igreja
Catlica a Juventude Operria Catlica (JOC) e a Juventude Estudantil Catlica
(JEC). Durante esses anos, Freire trabalhava tambm com o teatro estudantil na
Pontifcia Universidade Catlica (PUC) de So Paulo, na premiada pea Morte e Vida
Severina, de Joo Cabral de Melo Neto, alm de outras incurses artsticas.
Suas inquietaes polticas traziam questionamentos ainda mais fortes frente
sua atuao enquanto psicanalista. Freire no encontrava na Psicanlise nem na
Psicologia tradicional, ferramentas necessrias para auxiliar nos conflitos emocionais e
psicolgicos de seus companheiros de luta que o procuravam, muito menos ferramentas
que pudessem ajudar na compreenso daquele momento scio-poltico. Da mesma
forma, a crtica marxista se mostrava to autoritria quanto o pensamento conservador.
Ser, portanto, atravs dos anarquismos que Freire ir criar a sua anarquia, o seu
pensamento libertrio.
Foi atravs da pea Paradise Now do grupo de teatro Linving Theatre, que
Roberto Freire entrou em contato com as pesquisas de um cientista, que na dcada de
1930 foi expulso da Sociedade de Psicanlise e do Partido Comunista Alemo: Wilhelm
Reich. Este grupo, liderado por Julian Beck e Judith Malina, desenvolveu um intenso
trabalho corporal na preparao dos atores, o que chamou a ateno de Freire.
Reich propunha um trabalho clnico que observava atentamente o corpo, alm de
estar muito prximo e muitas vezes atuante, como no caso das experincias da SexPol,
de 1934 a 1938 do momento poltico que a Alemanha vivia ento. Apesar de ser o
momento da ascenso do nazismo, muitos tericos achavam inaceitvel e entediante
querer misturar poltica e psicanlise. Mas essa no era a opinio de Freire. Foi, ento, a
partir dos estudos de Reich que ele criou a Soma, vinculando a tcnica teraputica
corporal e em grupo com a proposta libertria.
Alm dos referenciais trazidos pelo Socialismo Libertrio e pelas pesquisas de
Wilhelm Reich sobre o corpo e a emoo, Freire inicia, na dcada de 1990, uma
pesquisa em torno da Capoeira Angola. Seu objetivo era intensificar a prtica
bioenergtica, utilizando a riqueza da Capoeira Angola enquanto cultura popular como
um importante instrumento teraputico. Os dilogos de corpos que no fogem ao
13
enfrentamento e que se somam malcia e teatralidade visvel na mandinga dos
angoleiros, ser um novo campo de atuao na Somaterapia.
Os conceitos de organizao vital da Gestalterapia, atravs das pesquisas de
Frederick S. Perls, e as influncias do movimento antipsiquitrico, com os estudos de
David Cooper, Ronald Laing, Franco Basaglia, tambm serviro como importantes
alicerces tericos na Soma.
A Antipsiquiatria provocou importantes transformaes no campo psicolgico e
psiquitrico, questionando o modelo tradicional que havia at ento. O tratamento dado
aos pacientes, o papel da famlia na gnese dos problemas psicolgicos, alm do
significado social do que se entende por loucura sero alguns dos questionamentos
feitos pelo movimento antipsiquitrico. Este movimento estabelece uma importante
relao com a equipe da Escola Alto, coordenada pelo antroplogo ingls Gregory
Bateson, que ser uma espcie de mentor intelectual da antipsiquiatria.
Bateson investigar durante toda a sua vida de que maneira nos conectamos
com os outros. Isto , de que maneira tudo se entrelaa, criando tramas, laos e ns que,
segundo ele, a antropologia de maneira isolada era incapaz de compreender. Assim
como havia um algo mais para alm da razo em Reich, em Bateson havia tambm
um algo mais na comunicao humana.
A comunicao paradoxal, ilgica, ser um dos conceitos mais importantes da
obra de Bateson, que mais tarde serviro de referencial terico no s para a
Antipsiquiatria, como tambm para a Terapia Familiar Sistmica. Ambas identificam a
gnese da esquizofrenia na famlia que produz uma comunicao paradoxal, isto , uma
comunicao repleta de duplos vnculos.
Porm, a residia minha primeira inquietao, j que o paradoxo comunicacional
era sempre visto de maneira um tanto pejorativa, associado manipulao, controle,
enfim, algo que deve ser banido. Mas seu sentido tambm estava muito prximo da
incoerncia anrquica e das rebeldias presentes nas linguagens, sejam elas verbais ou
gestuais.
As pesquisas de Bateson me pareciam, ento, cada vez mais intrigantes e ao
mesmo tempo mais intransponveis, j que pouco estudadas no Brasil. Ao mesmo
tempo, Bateson um autor freqentemente citado, como no caso de Deleuze&Guattari,
que utilizam o conceito de plat a partir da obra Steps to an Ecology of Mind de
Bateson. Assim, procurando mais informaes, participei em 2001 como ouvinte de
uma disciplina sobre as pesquisas de Bateson, ministrada pelo professor Doutor Otvio
Velho, no Programa de Ps Graduao em Antropologia Social/Museu Nacional.
14
Mesmo sem estar formalmente ligada ao curso, estas aulas possibilitaram um acesso
importante compreenso do pensamento de Bateson.
A entrada no Programa de Ps-Graduao em Psicologia Social da UERJ
(PPGPS), com a orientao do professor Ronald Arendt, alm das disciplinas cursadas
durante esse perodo, trouxeram um importante contato com referenciais terico-
metodolgicos. As pesquisas desenvolvidas pelo grupo coordenado pelo prof. Ronald
Arendt foram significativas, j que estavam sempre atentas s contribuies recentes de
autores que problematizam as dicotomias intrnsecas Cincia, o que se aproxima
bastante do pensamento de Bateson.
Porm, para se comear a falar de paradoxo comunicacional, percebi a
necessidade de se discutir as mltiplas possibilidades de definio que a filosofia e a
matemtica foram empregando nos diversos momentos da histria do conhecimento
humano ocidental. Este ser o tema do primeiro captulo deste texto. Vale ressaltar que,
de modo algum, procuro esgotar as discusses filosficas em torno das contradies e
paradoxos. Busco apenas algumas linhas-guia que possam me auxiliar neste caminho.
No segundo captulo, procuro compreender de que maneira a gnese do
paradoxo est atrelada diretamente razo e necessidade de dicotomias
epistemolgicas. Para isso, trago a crtica de Deleuze&Guattari ao modelo binrio, as
reflexes epistemolgicas de Isabelle Stengers e a distino feita por Bruno Latour entre
Cincia, como produo de verdades, e cincias, que no trabalham em esferas
compartimentadas e isoladas. Por fim, trago a anlise de nossa herana platnica e a
teoria das emoes de Vinciane Despret.
No Captulo III proponho um aprofundamento nas contribuies de Bruno
Latour, que levantar a impossibilidade de se produzir conhecimento a partir das
dicotomias natureza e cultura, humanos e no-humanos, indivduo e sociedade, e assim
por diante. O pensamento hbrido de Latour ser fundamental para percorrermos os
caminhos trilhados por Bateson, apresentados no Captulo IV. Neste ltimo captulo
iremos percorrer seus importantes conceitos, desde sua primeira obra Naven at
chegar ao conceito de duplo vnculo.
Os captulos talvez se apresentem muito independentes, ou demasiadamente
autnomos. Algumas relaes j sero apontadas no transcorrer dos captulos, mas a
anlise de como eles dialogam e se vinculam ser melhor aprofundada nas
perspectivas finais.
15
Por ltimo, gostaria de ressaltar que as citaes em ingls, francs e espanhol
sero mantidas conforme o texto original no corpo da pgina, seguindo sempre uma
traduo em nota de rodap.
16
CAPTULO I
DO ESPANTO AO RACIONALISMO CIENTFICO
O paradoxo pode ser definido como uma confuso que toma o lugar da
coerncia, da exatido. Pensamentos incompletos e enigmticos. Caminhos de idias
que se bifurcam e se ignoram num enorme labirinto que parece no haver sada. A sada
mais do que a diferena. mais do que o dilema numa encruzilhada. o absurdo e o
extraordinrio. O devir daquilo que ainda no foi experimentado. A realidade ainda
inominvel. Movimento abrupto, desestabilizador. Anormalidade que provoca
perplexidades. E frente ao espanto, uma quietude ensurdecedora. Contradio e
ambigidade em cada palavra, em cada gesto. A certeza de que tudo, naquele momento,
incerto demais. Contraditrio demais. Inslito.
O paradoxo sempre fascinou a mente humana. Desde a Antigidade, tudo aquilo
que ia de encontro ao que estava estabelecido como verdade e contrariava o senso
comum, mas que mesmo assim fizesse sentido, inquietava matemticos e filsofos.
Estudos de diferentes pocas tentaro completar equaes que ainda estavam
abertas e geravam incompreenses. O sculo XIX ter importante destaque nesse
sentido, oferecendo novas e importantes compreenses a partir do pensamento
paradoxal. Estudos aprofundaram conceitos paradoxais tanto na rea da lgica, como da
epistemologia, da lingstica e da matemtica, sobretudo no desenvolvimento da teoria
da prova.
O paradoxo passa a ser uma palavra que, no toa, vem sendo to
freqentemente empregada para explicar e atacar a contemporaneidade. Para que
possamos compreend-la melhor, trago aqui alguns pontos que podero auxiliar a nossa
caminhada. No tenho aqui o objetivo de realizar um mapeamento filosfico completo.
Mas sim trazer para a reflexo os elos que se estabelecem entre a construo do
conhecimento humano com suas experincias e trocas e a suscetibilidade de incorrer
em contradies e paradoxos.
17
1.1. Incomodando a doxa e contrariando a altheia
Todos os mitos gregos eram repletos de espanto (t thaumzein). Um espanto
cheio de admirao, que atravessava a dificuldade e movia o conhecimento. O que
igual pode ser tambm diferente? O que , pode tambm no ser? H alguma essncia
que me singulariza? E o que , pode ser dividido? Somos unos ou somos mltiplos?
Propores, nmeros e oposies marcaro as Escolas Pr-Socrticas (sculo VI a.C. ao
incio do sculo IV a.C.) e so o incio e o desenvolvimento da filosofia grega. Assim
como a soma dos quadrados dos catetos igual ao quadrado da hipotenusa (Pitgoras),
outros teoremas iro matematizar o universo, ordenando com rigor, atravs de nmeros,
tudo aquilo que fugia regra.
Dos deuses e tragdias para a cosmologia. Essa passagem, que marca a busca
por explicaes racionais sobre a origem e a ordem do mundo, tambm a criao de
uma srie de instrumentos conceituais da civilizao ocidental. Para se compreender a
natureza e todas as coisas que dela fazem parte, so criadas leis que partem da
observao de todas essas coisas (phsis). A Via da Verdade (altheia) estar sempre
sendo questionada pela Via da Opinio (doxa1). E ser neste conflito que surgir o
termo paradoxo ou aporia com o filsofo pr-socrtico Zeno.
Zeno de Elia (490-425 a.C.) tornou-se famoso pela sua maneira de
argumentar, sempre permeada de dilemas. Discpulo de Parmnides primeiro filsofo
a expor suas idias em verso e considerado o iniciador da lgica, isto , de um
pensamento que opera segundo exigncias internas de rigor, sem se preocupar se o que
pensado ou dito corresponde ou no experincia imediata que temos das coisas por
meio de nossos sentidos. (Chau, 2002, p.96).
Zeno segue os ensinamentos de Parmnides, defendendo suas teses e refutando
as crticas de outros filsofos. Mais do que criar novas verdades, Zeno procura
demonstrar de que maneira as contestaes adversrias se reduziam ao absurdo
(reductio ad absurdum). Para isso, cria uma argumentao baseada naquilo que os
gregos chamavam de aporia, isto , uma impossibilidade de chegar a algum lugar, uma
dificuldade insolvel. Seu raciocnio sem soluo procurava defender as teses de
imobilidade e o princpio da unidade, partindo sempre do pressuposto que o
deslocamento de tempo era igual ao deslocamento no espao. Trilha, portanto, o
1 Esta palavra possui vrios sentidos diferentes, porm comumente aceita como se conformar com a
norma estabelecida pelo grupo; adotar opinies j consagradas; deliberar e julgar segundo os dados
oferecidos pela situao e suas regras j estabelecidas.
18
raciocnio lgico de Parmnides: aquilo que , ; e impossvel que aquilo que , no
seja.
No famoso Paradoxo de Aquiles, Zeno nos coloca frente a uma hipottica
corrida entre o heri grego Aquiles, o dos ps ligeiros, e o mais lento de todos os
animais: a tartaruga. Nesta corrida, procurando diminuir possveis desvantagens,
generosamente oferecido tartaruga sair 80 metros frente da linha de largada. Porm,
quando Aquiles percorre os 80 metros, a tartaruga j teria percorrido 8 metros. No
intervalo de tempo que Aquiles percorrer esta distncia, a tartaruga teria andado mais
outra, e assim por diante.
Ou seja, sendo o espao divisvel, haver sempre a metade da metade da metade,
e assim por diante, da distncia entre os dois corredores. E mesmo havendo uma linha
de chegada, a idia de tempo finito e de distncia infinita de pontos se tornar
incompatvel, pois contraria o pressuposto inicial de que a variao de instantes dever
ser igual variao de pontos.
Os mesmos princpios sero demonstrados na aporia do arqueiro e sua flecha,
provando que jamais o arqueiro atingir seu alvo. Isto por que a flecha, ao voar, ocupa
um espao idntico a si mesma, ou seja, ela estar sempre em repouso. Mas para atingir
o alvo ela deveria estar em movimento. Zeno afirma, ento, que a flecha est em
movimento porque est em repouso; e estando em repouso, ela est tambm em
movimento, o que mais uma vez contraditrio.
Seus argumentos procuravam se opor s teses do ser descontnuo e divisvel dos
pitagricos e ao pensamento de Herclito, para quem todo ser uno porque mltiplo e
mltiplo porque um. Sua tese, que diz ser impossvel entrar duas vezes no mesmo rio,
busca a compreenso da vida como um devir eterno.
Mas, importante ressaltar, Zeno no procurava atravs de raciocnios
aporticos negar qualquer possibilidade de experincias de movimento, multiplicidade
ou unidade. Como ressalta a filsofa Marilena Chau (id., pp.100-1),
O que ele faz outra coisa: submete os dados da percepo e da opinio s exigncias lgicas do pensamento. Usando
exclusivamente o pensamento e lanando mo exclusivamente
de raciocnios, ele mostra que a experincia do movimento e a
multiplicidade so irracionais, isto , contraditrias e absurdas. (...) somente com os eleatas a filosofia chega compreenso de
que o pensamento no s difere da experincia sensorial, mas
possui leis prprias de operao e tem o poder para refutar o
testemunho dos sentidos.
19
Para defender, portanto, o pensamento de Parmnides e seus princpios de
identidade o que , e o princpio de no-contradio o que , , o seu contrrio,
no , Zeno utilizava a lgica para explicitar tambm as contradies entre
pensamento e os sentidos. Atravs da lgica demonstrava como o pensamento lgico
era insuficiente para compreender as experincias vividas. E se atravs da lgica elas
eram contraditrias, ento eram falsas. Para Aristteles, atravs de Zeno que surge
tambm a dialtica (dialektik), o confronto de duas idias opostas onde apenas uma
verdadeira.
Segundo o filsofo francs Michel Serres (1990, p.103), Zeno teria recebido o
apelido de Anfoteroglosso, alcunha cujo sentido o acusa de ter uma lngua bastante
solta e bfida, como a das vboras. Para Serres, o mtodo dialtico divide sempre em
dois segmentos at o infinito, levando no s abstrao, mas cria uma confuso
construda a partir de contradies, demonstraes e redues ao absurdo. Para ilustrar
melhor sua astcia, Serres traz o seguinte dilogo, relatado por Herclito, entre Zeno e
seu rei:
Revela o nome dos teus cmplices, ordena o rei. Os teus guardas, responde Zeno, os teus amigos e a tua corte. (...) Mas, de sbito, Zeno de Elia declara que tem revelaes
confidenciais que no pode nem deve fazer seno em voz muito
baixa e junto de quem de direito. Solto, aproxima-se do tirano, o
nico habilitado para o escutar, enquanto a sua boca se
aproxima do ouvido: no, ele no fala, mas ataca e morde. Com
os queixos apertados, como sanguessuga, vampiro, carraa, o
inventor da dialtica s largou a presa depois de morto. (ibid.)
Interessante notar que com a lgica de Parmnides formulada a Via da
Verdade (altheia), que atravs da dialtica ir invalidar o pensamento contraditrio,
por sua vez, a Via da Opinio (doxa). Mas, para que esse pensamento se sustente, surge
Zeno e logo aps a aporia, ou o paradoxo. Ou seja, para caminhar sem maiores
atropelos, a lgica ter que andar amparada na sua busca de compreenso do ser:
necessariamente de mos dadas com a contradio e o paradoxo. Sem uma contradio
no h a dialtica e, portanto, no ser eliminada a opinio falsa e escolhida a
verdadeira. E para sustentar essa verdade, perguntas ficariam sem respostas: as aporias.
A filosofia grega surge, portanto, da ligao e oposio entre altheia e doxa,
com fases muito distintas. Na fase inicial os filsofos falavam como adivinhos, poetas e
polticos. Com Pitgoras e Parmnides a doxa afastada, voltando apenas mais tarde
20
com os sofistas2, palavra utilizada para se referir aos grandes poetas antigos, os
primeiros educadores da Grcia. Finalmente, com Scrates e Plato, haver um esforo
gigantesco (Chau, 2002, p.44) para colocar a altheia no lugar da doxa. O discurso
filosfico, enquanto exerccio do pensamento e da linguagem, se utilizar da
contemplao desinteressada (theora), refutando mais uma vez os sentidos para se
chegar razo, cincia.
Este esforo socrtico e platnico nos mostra duas questes epistemolgicas. A
primeira se refere questo da diferena: tudo aquilo que de incio se colocava
diferente, aos poucos se viu como lados contrrios de uma mesma unidade. Logo
depois, como opostos irreconciliveis e, ento, como oponentes. A segunda questo nos
remete ao empirismo, j que a teoria contemplativa das cincias no criar nem
inventar seus objetos. A Cincia passa a estar sempre encarregada de descobrir algo
que, a priori, j estava l na Natureza.
1.2. Contradio e opinio: a cincia de coisa alguma
Dialgein significa desenvolver de forma completa um discurso. Este talvez seja
o sentido mais freqentemente atribudo a esta palavra. Mas este apenas um
significado possvel. A gnese dessa apalavra formada pelas palavras di e pelo verbo
lgein. Ambos riqussimos de significados. Di assume valores espao-temporais (entre,
durante, atravs), modais (com) e de diviso, separao, contraste ou oposio. Lgein
pode assumir a conotao de declarar, sentenciar, selecionar, optar; ou diviso,
separao; assim como raciocinar, dialogar ou conversar com.
Marilena Chau (2002, p.238) aponta a dialtica como o exerccio no violento
da linguagem. Porm, citando o helenista I.M. Crombie, a filsofa lembra que a
dialtica uma derivao de um verbo na voz mdia, dialegmai. A voz mdia, situada
entre a voz passiva e a voz ativa, seria como o verbo reflexivo da lngua portuguesa, na
qual o agente sofre o efeito da ao. Assim, na voz mdia, a palavra dialtica significa
entreter-se com algum, argumentar com algum no sentido de tambm ser afetado pela
fala. Podemos observar aqui a relao com o sentido comum da palavra dialtica,
apontando para o discurso. Todavia, esse verbo tambm era freqentemente empregado
2 Como observa Chau (id.), a palavra sofista se origina dos sinnimos sophists e sophs. Inicialmente os
gregos utilizavam a palavra sophists para indicar o ensino e a arte de saber, e sophs como um perito em
seu ofcio, um conhecimento tcnico que se ope ao saber terico ou contemplativo. Somente mais tarde,
nas disputas com Plato, que passa a ter o sentido pejorativo de mentiroso e charlato.
21
na voz ativa. E na voz ativa esse verbo se diz dialgo e significa escolher, classificar,
discriminar (id., p.238). Para dar respostas a uma boa pergunta, a dialtica aqui assume
um sentido muito mais prximo de um julgamento que um dilogo. A est, novamente,
o sentido e a medida do vigor dialtico: a capacidade de refutar o adversrio. E como
explica Chau (id., p.239), Plato aprendeu com Scrates a empregar as duas vozes do
verbo e esse emprego propriamente a dialtica platnica.
A multiplicidade e ambigidade de sentidos fazem com que a dialtica seja
compreendida por alguns como uma cincia, por outros como arte do debate. Mas, sem
dvida, foi o instrumento que se ops aos Duplos Dizeres (antilogias) relativistas dos
sofistas, que empregavam a mesma fora a duas opinies contrrias. Para a dialtica
platnica isso era inadmissvel: visto que essa contrariedade prpria da opinio, esta
no pode ser cincia de coisa alguma. (id., p.244).
A dialtica, portanto, evidencia a contradio, a negatividade do Homem e do
mundo ao seu redor. Ou seja, todas as coisas encerram em si mesmas uma oposio dual
forte ou fraco; bonito ou feio; 0 ou 1. Dessa oposio se tem a diferena e com ela o
conhecimento. No se pode negar aqui o vasto campo das descobertas e criaes feitas a
partir deste instrumento. Porm, um conhecimento que utiliza um mtodo dicotmico,
que separa para chegar ao uno, ao verdadeiro. Tomando como metfora o Mito da
Caverna de Plato, temos a dialtica ascendente como a construo a partir da
escurido. E a descendente como a tarefa de quem retorna caverna depois de ter
contemplado a verdade. Ou seja, respectivamente, das idias contraditrias essncia e
da verdade aos fragmentos desconexos. Seja ascendente ou descendente, ser atravs de
Plato que se inaugura no pensamento ocidental a idia de Razo. Uma Razo
determinada e com limites impostos apreenso da idia.
Como explica Chau,
a cada diviso (dicotomia) o que estava sob a idia do Indeterminado torna-se mais determinado ou delimitado,
ficando sob a idia do Limite, at que se consiga a
determinao completa do objeto, isto , a essncia ou a
definio verdadeira da coisa procurada, que, sendo sempre
uma idia complexa, coloca-se sob a idia do Misto. Por isso a
essncia a que se chega uma idia boa, bela, justa e
verdadeira na qual se est unindo o que a pstis [f, crena] e a doxa costumavam separar e est separado o que elas costumam
juntar (id., p.280).
Ou seja, operando por um processo criado por Plato, conhecido como
dicotomia (dikhotomia), purifica-se e se separa tudo o que era contraditrio e
22
heterogneo, mas que estava unido. Contemplando os termos que restam conservados,
tem-se o uno, a definio verdadeira, que servir de regra e critrio para separar outros
opostos e unir semelhantes.
Muito alm de estabelecer a diferenciao entre prs e contras, sim e no, a
dialtica passa a criar uma relao entre os princpios de razo e juzo, bem como suas
leis de direito. Como define Serres (1990) de maneira categrica, ela passa a ser
a arte de se impor atravs do dilogo ou de interrogar o adversrio at o confundir, mtodo que sem dvida herdou de
Scrates e de todos aqueles para quem a verdade se define pela
derrota de outrem, conduta imposta pelo debate judicirio e que
o conduz fatalmente ao tribunal (p.103).
Isto , atravs do racionalismo, da logicizao e da moral, na filosofia socrtica
tomam acento, com um gosto de tdio da boca, a cientifizao e, ao seu lado, o
otimismo dialtico como evoluo e progresso social.
1.3. A matematizao da vida
A coerncia do pensamento, o mtodo dialtico e a verdade so proposies que
se tornaro os princpios elementares do pensamento lgico-matemtico e filosfico.
Clareza e consistncia, mtodo dedutivo e axiomas (aceitar sem prova certas
proposies) so os fundamentos que norteiam, portanto, no s a filosofia e a
matemtica, mas toda a Cincia. E assim como o que resta conservado aps a
purificao dialtica servir como regra futura, na matemtica, dos axiomas sero
derivados teoremas e postulados, a superestrutura lgica.
Interessante notar como um nmero extremamente pequeno de axiomas
formulou e sustentou numerosas proposies a partir de dedues. Durante mais de dois
mil anos a geometria era admirada por sua forma axiomtica, sendo reconhecida como o
modelo cientfico no que ele tinha de melhor. Essa renomada base axiomtica se inicia
com os gregos, com a geometria euclidiana.
Euclides de Alexandria (360-295 a.C.) foi o grande sistematizador da
matemtica grega. Pai da geometria plana, em trs dimenses, apresentou o axioma das
retas paralelas que mesmo no infinito jamais se tocariam. Dessa premissa tomada como
verdadeira foi possvel postular importantes teoremas. Porm, a matemtica ortodoxa se
viu frente a um dilema. Sem questionar a veracidade isto , a auto-evidncia deste
axioma, seria possvel deduzir uma srie de novos axiomas importantes para a lgebra e
23
a geometria. Contudo, essa era uma premissa que no fazia sentido, j que os gregos
intuam que haveria, sim, linhas que se encontravam no infinito. Como se poderia
resolver, ento, este problema?
Mais uma vez a lgica parecia contrariar o senso comum. Ao que tudo indicava,
era muito mais simples e fcil para os matemticos e porque no dizer, para os
cientistas solucionarem dificlimos problemas a partir de um raciocnio que se iniciava
com verdades pr-estabelecidas (axiomas), trazendo inclusive brilhantes dedues. Mas
colocar prova suas premissas isso s no era muito mais complexo, como parecia estar
no campo da intuio, portanto fora da realidade, da Razo e da Cincia.
Este caminho, o da metamatemtica3, foi iniciado somente no sculo XIX por
Gauss, Bolyai, Labachewsky e Riemann, comprovando que haveria uma
impossibilidade de deduo. Para muitos matemticos (Nagel&Newman, 2003),
Este resultado foi da mxima importncia intelectual. Em primeiro lugar, chamava ateno da maneira mais impressionante para o fato de que se pode dar uma prova da
impossibilidade de provar certas proposies dentro de um
dado sistema (p.19).
Estes estudos mostraram uma matemtica muito mais abstrata do que se
imaginava, preocupada apenas com a estrutura de seus enunciados lgicos. Sua deduo
deveria ter clareza e ser consistente, sem levar em considerao a natureza de seus
temas. A consistncia parecia bastar em se tratando de modelos finitos. O impasse
frente a essas contradies surgia nos modelos no-finitos, ou seja, modelos que no
esto cerrados em hipotticos teoremas que copiam e congelam a vida, na pretenso de
compreend-la.
A contradio relacionada aos estudos lgico-matemticos (antinomia) foi ainda
mais aprofundada nas teorias dos nmeros infinitos, desenvolvida pelo matemtico
russo por Georg Cantor (1845-1918), atravs da Teoria dos Conjuntos. Seus estudos
mostraram que mesmo um modelo claro pode ser tambm pouco consistente,
contrariando mais uma vez as leis mais elementares da lgica. Seus estudos relacionam
membros (ou sentenas) e classes (ou conjuntos) ao infinito. Isto , um hipottica classe
que pertence a outra, que pertence a outra, e assim ad infinitum.
Para ficar mais claro, um exemplo clssico de uma antinomia semntica (para
sair um pouco do campo da matemtica pura): Esta sentena falsa. Ou seja, esta
sentena somente ser verdadeira se for falsa. E ser falsa somente se for verdadeira.
3 Este termo foi pela primeira vez empregado pelo matemtico alemo David Hilbert (1862-1943),
sugerindo uma linguagem matemtica que versasse sobre a prpria matemtica.
24
Assim como na frase de Epimnides de Creta: Todos os cretenses so mentirosos.
Esta frase seria falsa, j que ele tambm de Creta. Ento ele mente e, mentindo, a frase
verdadeira. Ou no mente e, dizendo a verdade, a frase falsa.
Seja como for, podemos aqui definir uma caracterstica essencial da antinomia: a
sentena ou equao somente ser verdadeira se, e somente se, ela for falsa. E vice-
versa. Diferentemente dos paradoxos de Zeno, onde as contradies mostravam um
muro intransponvel para a lgica daquela poca, as antinomias apresentam auto-
contradies que, mesmo assim, possvel se chegar a algum entendimento. A soluo
da ambigidade se d na referncia a si mesma (sim, se e somente se; ou no, se e
somente se).
Porm, quando essa relao de membros e classes se torna ainda mais abstrata
ou subjetiva ( estudada em sistemas infinitos ou que suas variveis no podem ser
controladas), a antinomia passa a ser insolvel. Passa a se configurar um paradoxo.
As propostas de Cantor foram inaugurais para as teorias dos conjuntos. Ser
neste campo de pesquisas que Cantor tentar compreender a classe de nmeros infinitos,
ou seja, qual o tamanho ou a continuidade do infinito. Dividindo os nmeros em
naturais (0, 1, 2, 3...), racionais (que podem ser divididos em nmeros inteiros) e
irracionais (3,1415926), Cantor conclui que os nmeros reais seriam a soma dos
nmeros racionais e irracionais. Concluiu tambm que a maioria dos nmeros so
irracionais (ou transcendentais), perdendo assim sua finitude, sua totalidade. Seguindo
seu raciocnio, um nmero infinito poderia ser equiparado a uma de suas partes. Caa
por terra o velho axioma que o todo maior as partes.
1.4. Russell e Gdel: limites iniludveis para a razo humana
A teoria dos tipos lgicos, apresentada por Russell em 1901, mostrou novamente
um impasse na relao entre membros de uma determinada classe e as classes entre si.
Bertrand Russell (1872-1970) e Alfred North Whitehead (1861-1947) seguem este
princpio de antinomia nos estudos sobre a relao entre classes e membros na obra
monumental de 3 volumes Principia Mathematica, de 1910. Esta obra procurava reduzir
os problemas apresentados pela matemtica em problemas de consistncia da prpria
lgica formal.
Russell e Whitehead provaram que as vrias noes empregadas na anlise
matemtica (lgebra e clculo infinitesimal) so exclusivamente definidas por termos
25
aritmticos. Mostraram tambm que todas as noes aritmticas so axiomas dedutveis
de tautologias, isto , uma verdade lgica para todos os mundos possveis (por exemplo,
A = A). Alm disso, a matemtica no parecia estar muito atenta a possveis regras de
inferncia no explicitamente formuladas. Todas essas crticas levaram a concluses
que derrubaram quase 2 mil anos de codificaes e dedues aristotlicas. Para os
matemticos Ernest Nagel e James R. Newman, Russell e Whitehead confirmaram a
hiptese de que a lgica tradicional gravemente incompleta e falha mesmo em dar
conta de muitos princpios de inferncia empregados de maneira muito elementar no
raciocnio matemtico (Nagel&Newman, 2003, p.41).
Partindo do epigrama de Russell, que descreve a matemtica pura como o
asssunto em que no sabemos acerca do que estamos falando e se o que estamos
dizendo verdadeiro (id., p.21), talvez fique mais fcil compreender por que o
Principia Mathematica procurou vasculhar a enorme caixa-preta da matemtica. O
grande legado desses filsofos da cincia mostrar que o enunciado 1 + 1 = 2 apenas,
e somente apenas, poder ser compreendido como uma equao que parte de axiomas
fornecidos pela lgica formal. Dedues e frmulas podero nascer deste enunciado
seguindo regras pr-estabelecidas. um exemplo de enunciado claro e consistente e,
alm disso, possui um mnimo de inferncias. Com ele possvel se chegar a uma prova
absoluta. Mas a interpretao do enunciado ficar fatalmente limitada pelas tautologias
e axiomas dessa mesma lgica formal, caindo sempre em dilemas.
A teoria dos tipos lgicos, porm, no conseguiu eliminar construes auto-
contraditrias. Sua contribuio est em explicitar as regras de inferncia que ficavam
escondidas por detrs de teoremas. Para tanto, Russell props um paradoxo, atravs da
teoria dos tipos lgicos.
Em sntese, ele propunha o mundo dividido em classes. Imaginemos que h
apenas dois tipos de classes diferentes no Universo. Uma classe se chamar normal
se, e somente se, no contiver a si mesma como membro. E outra, que se chamar no-
normal se contiver a si mesma como membro da classe. Poderamos imaginar como
uma classe normal a classe dos psiclogos. Isto por que a prpria classe no um
psiclogo. E como no-normal todas as coisas pensveis, j que a classe das coisas
pensveis , em si, pensvel.
Seja N, por definio, o representante da classe de todas as classes normais,
pergunto: N uma classe normal? Se o for, dever pertencer a sua classe, o que seria
impossvel. Ento no-normal, j que por definio a classe que contm a si mesma
como membro. Mas N da classe dos normais, no poderia ser no-normal. Em
26
sntese, N normal porque no-normal. Dizer, portanto que N normal ser tanto
verdadeiro quanto falso.
Russell mostrava que cada vez que se eleva a relao de membros e classes a um
nvel superior, exigindo uma abstrao maior, a contradio deixava de ficar to clara.
O que teremos um paradoxo. Esse paradoxo apresentado por Russell evidenciou as
armadilhas dos tipos lgicos. O que houve, de fato, foi uma confuso quando se
relacionaram membros e classes. Pois para Russell (Watzlawick,Beavin&Jackson s/d,
p.173), tudo o que envolva a totalidade de um conjunto no deve ser parte do
conjunto. Isto , a pergunta confunde tipos lgicos diferentes. N no poderia ser
classe e membro ao mesmo tempo. A no ser que tivssemos, por exemplo, N e
N, distinguindo os nveis. dessa maneira que so feitas distines entre nmero e
quantidade, palavras e sentidos. Quando no h uma distino clara entre dois tipos
lgicos, parte-se para uma outra estrutura, a metamatemtica ou a metalinguagem. Um
outro nvel (ou uma outra classe) surgiria resolvendo assim a antinomia, saindo do
quadro circular, sempre auto-referente que, por ser contraditrio, invalida as duas
possibilidades. Ou seja, haveria sempre uma classe hierarquicamente maior que as
classes pr-estabelecidas.
Importante ressaltar que paradoxos e antinomias so considerados por muitos
autores como sinnimos (Nagel&Newman, 2003; Quine, 1976), j que nos dois casos
temos o princpio de auto-contradio e auto-referncia. Isto , uma frase contradiz a
outra, que por sua vez se volta contra a primeira e assim por diante. Porm, no caso da
antinomia, mesmo provocando uma certa confuso, h uma clareza final (se
verdadeira, ento falsa). J no caso do paradoxo, esclarece W. V. Quine (1976), a
auto-referncia no oferece clareza alguma, excluindo qualquer possibilidade de
coerncia. Assim, para Quine, o paradoxo de Zeno hoje, luz de novas leis da fsica
e da matemtica uma antinomia. Assim como o paradoxo dos Tipos Lgicos de Russell,
que considerada uma obra muito importante, porm datada quanto aos seus dilemas
lgicos (Winkin, 1991). Como explica Quine (id., p.12), one mans antinomy can be
another mans veridical paradox, and one mans veridical paradox can be another
mans platitude4.
De qualquer maneira, a pesquisa matemtica e a estrutura da lgica tero
grandes avanos a partir destas teorias e iro influenciar sobremaneira outros saberes,
como no caso de um dos alunos de Russell, Ludwig Wittgenstein (1889-1951), o qual
4 A antinomia para um ser humano pode ser para outro um verdadeiro paradoxo. E um verdadeiro
paradoxo para um ser humano pode ser para outro uma trivialidade.
27
aprofunda estes conceitos no campo da linguagem. Outras pesquisas, ligadas a outras
reas do saber, estaro trazendo perguntas igualmente instigantes. Mecanicistas e
Vitalistas, dois lados de uma mesma moeda, que, aps Newton, sero influenciados pela
Relatividade proposta por Einstein. O paradoxo da flecha do tempo e outras perguntas
sero desafios que a cincia busca novas respostas at hoje.
O Princpio da Incerteza, proposto por Werner Heisenberg em 1927, enquanto
um enunciado ligado s estruturas qunticas da matria, ir influenciar mais uma vez o
campo da filosofia, principalmente atravs de Prigogine e Stengers (Winkin, 1991). Para
Stengers, a qumica e a fsica formulam boas perguntas a partir de um outro universo
de linguagens, que supera em certa medida o modelo matemtico proposto por Russell.
Porm, j em 1931, um jovem matemtico alemo, Kurt Gdel, ento com 25
anos, publicou um artigo com um ttulo no mnimo provocativo: Uber formal
unentscheidbare Stze der Principia Mathematica und verwandter Systeme (Sobre as
Proposies Indecidveis dos Principia Mathematica e Sistemas Correlatos). At hoje
este pequeno artigo considerado um marco na histria da lgica e da matemtica.
Gdel foi alm em suas crticas matemtica, Cincia e filosofia feitas por
Cantor e Russell&Whitehead. Seus estudos so reconhecidos at hoje como
revolucionrias em sua larga significao filosfica (Nagel&Newman, 2003, p.14).
Gdel conclui que uma prova absoluta na aritmtica poder ser construda de maneira
lgica. Porm, ela ser totalmente improvvel. Em seu Teorema da Incompletude,
Gdel (id., p.82) fundamenta o seguinte enunciado: Se a aritmtica consistente, ela
incompleta. Isto , a matemtica parte de verdades lgicas tautolgicas e axiomticas
que so indemonstrveis nos enunciados matemticos. Ou seja, sempre haveria
limites iniludveis para a razo humana. (id.,p.:87). Neste caso, no s a interpretao
matemtica fica limitada, mas os prprios fundamentos bsicos da matemtica se
mostram incompletos.
Seus estudos mostraram tambm que h inmeros enunciados verdadeiros que
somente poderiam ser deduzidos de axiomas a partir de regras de inferncia muito bem
definidas. Ou seja, se com Cantor, Russell e Whitehead havia a possibilidade, atravs da
aritmtica e da lgica, de criar modelos de tipos lgicos ou nmeros que pudessem levar
a alguma interpretao, com a Prova de Gdel nem mesmo os nmeros inteiros podem
ser axiomatizados.
28
1.5. A Modernidade e o Paradoxo
Eis em que consiste acima de tudo o destino da nossa poca, com a racionalidade e a intelectualizao que lhes so
prprias: o desencantamento (Entzauberung) do mundo, isto o
facto de precisamente os ltimos e mais sublimes valores se
terem retirado do espao pblico. (Einaudi, 1997, p.195).
Entretanto, o caminho proposto pela viso platnica e dualstica do mundo
separando e classificando sujeito-objeto, indivduo-sociedade, razo-emoo, cincia-
poltica, natureza-cultura ser o caminho seguido pelo Iluminismo (Aufklrung) e pelo
Positivismo nos sculos XVII e XVIII. Ou seja, h uma busca por mais clareza
(esclarecimento), ordem, consistncia que, logicamente, possam acelerar o progresso da
civilizao. O projeto de Modernidade ter o importante papel de realizar cortes
dicotmicos ainda mais cirrgicos.
A Modernidade descrita e, para muitos tericos (Einaudi, 1997), fundada por
Max Weber atravs da obra A tica Protestante e o Esprito do Capitalismo busca
desenvolver um processo de racionalizao atravs de uma eficincia funcional,
baseada em leis, que procuram compreender estruturalmente o homem e o mundo. Sua
especificidade e verdades absolutas so a expresso de uma maturidade capaz de
enfrentar, com certezas e segurana, o obscurantismo. No h limites para o uso da
razo, como demonstrou Kant com sua autocrtica que eliminava qualquer passividade
atravs de um racionalismo crtico transcendental. Assim como a mente isolada e
distante, defendida por Descartes, nica capaz de respostas absolutas, e no relativas,
frente ao mundo exterior. O pensamento cartesiano exige um bem julgar atravs da
razo e de um crebro extirpado do corpo e das emoes. O olhar supremo sentido da
razo contempla de dentro para fora essa estranha realidade.
Assim tambm o fez Marx e Hegel. Em Hegel o saber se diferencia da totalidade
platnica revelado atravs da graa de Deus -, e passa a ser circular. No h um ponto
essencial ou imutvel. Como afirma Kojve (2002), a filosofia hegeliana torna
necessria a negao da identidade o no-ser criando um sistema circular que ser a
nica garantia da totalidade, isto , da verdade absoluta do saber (p.272). A
Fenomenologia do Esprito proposta por Hegel ter como o objetivo principal, portanto,
o desvelamento total para se produzir o saber absoluto. O real passa a ser ainda mais
racional e a dialtica em trs tempos (tese anttese sntese) passa a ser o fio que une
de um ponto ao outro a cincia, a conscincia, o trabalho com forma de transcendncia.
29
Assim, a fenomenologia ir descrever o processo de transformao do real em
certeza, da certeza em verdade. Mesmo combatendo o racionalismo crtico
transcendental de Kant, considerando sua filosofia servil para com a Natureza, Hegel
radicaliza a passividade Kantiana trazendo tona o conceito de alienao: o eu
temporal/histrico que precisa se desconectar, sair, para ser aquilo que . Ou seja, num
processo dialtico, a alienao hegeliana pressupe a negao da negao para retomar
a essncia de si.
Em Hegel, o Esprito a verdadeira essncia do homem, e a verdadeira forma
desse Esprito seu pensamento, sua lgica especulativa. Sua filosofia da moral estar,
portanto, atrelada ao Zeigeist (Esprito do tempo), o indivduo vivendo em
conformidade com os costumes do seu povo, resistindo s crticas e aos ataques
revolucionrios. Seno, perece: como criminoso ou louco (Kojeve, 2002, p.63). Com
isso, a subjetividade desconectada da realidade e que no busca a verdade, passa a ser
tratada como secundria; ou como restos inslitos.
O principal herdeiro intelectual da construo hegeliana, Karl Marx desloca o
processo de racionalizao para a transformao social, luta de classes e aos modos de
produo. Segundo Japiass e Marcondes (1996), em Hegel a dialtica era movimento
racional que permitia a superao das contradies, j
Marx faz da dialtica um mtodo. Insiste na necessidade de considerarmos a realidade socioeconmica de determinada
poca como um todo articulado, atravessado por contradies especficas, entre as quais a luta de classes (p.71).
A verdade deixa de ser abstrata e passa a se localizar no campo poltico e
econmico. Mais-valia e troca, mercantilizao, lucros e fetichizaes sero ao mesmo
tempo as condies de existncia e alienao. O processo hegeliano de superao da
alienao passa, portanto, a ser teorizado atravs do Materialismo Histrico e pela
dialtica marxista, objetivando a superao de antagonismos presentes nos meios de
produo.
1.6. A crtica Modernidade: Razo versus Razo.
O filosofo francs Henri Lefebvre (1901-1991), um importante crtico do assim
chamado mundo moderno, apontava como um trao caracterstico da Modernidade a
contradio. A linguagem, seu grande apoio no plano da cultura, da arte, passa a ser, ao
30
mesmo tempo, concreta e abstrata. Tomando Baudelaire como um poeta maldito da
Modernidade, Lefebvre (1969) o descreve como um poeta que apodera-se da
dualidade e do dilaceramento (p.203).
A contradio tambm se expressa pela fragmentao do indivduo, atomizado,
quebrado, dividido e confuso no meio da multido. Da mesma maneira que se tentava
compreender as antinomias matemticas atravs da metamatemtica, procurou-se
resgatar a identidade do homem moderno atravs de uma unidade de sentido, auto-
referente e circular. Seguindo novamente o olhar de Lefebvre, para chegar a pensar
em nossa Modernidade, indo mais longe do que a cultura e os sintomas culturais (arte, poesia, linguagem, etc.), h somente
um mtodo: descobrir as contradies, compreender a
contradio ou as contradies essenciais. Este mtodo,
bastante conhecido sob o nome de dialtica, no fcil de ser utilizado. As contradies formam geralmente ns bem
cerrados, tramas finas. Nos ns, nas tramas, como pegar as
pontas do fio e segui-las? O que mais freqente, seno sempre, cortar-se os fios (id., p.220).
O processo teleolgico da Modernidade passa a ser, portanto, um princpio cada
vez mais ntido, considerando frmulas tais como: todo o real racional, todo racional
real ou a razo a certeza de ser toda a realidade. Alm disso, assinala importantes
separaes entre o Antigo e o Moderno, numa ruptura ainda maior na continuidade do
tempo. Com o avano do capitalismo, as contradies passaram a ser alvos ainda mais
colossais e, ao mesmo tempo, insolveis. Cidades e sujeitos cada vez mais novos e
solitrios. Mas, como aponta Lefebvre,
A impresso de solido no nova. Inquietude e angstia foram ditas vrias vezes e quase recentemente com a maior
fora pelos romnticos que se apresentaram como modernos no tempo deles. O novo, o verdadeiramente moderno no seria a contradio entre a solido individual e a reunio de
multides ou de massas nas cidades gigantes, nas empresas
colossais, nos escritrios gigantescos, nos exrcitos, nos
partidos? (id., p.221).
Ou seja, como compreender a rede de relaes que se estabelece na
Modernidade, com suas comunidades cada vez mais densas e com a possibilidade cada
vez maior graas ao avano industrial e tecnolgico de ampliar estas relaes? A
atomizao do sujeito se ope superorganizao dos grandes centros urbanos, num
exemplo claro de como a oposio dialtica servir ainda como um modelo para o
entendimento da modernidade. Porm, suas contradies formam tramas cada vez mais
31
finas e sutis, com as quais a dialtica parecia se mostrar no s difcil de ser empregada,
como insuficiente.
1.6.1. A Teoria Crtica
Procurando refletir sobre as conseqncias do racionalismo no Mundo Moderno,
surgem importantes questes levantadas pela Teoria Crtica da Escola de Frankfurt.
Designao criada da dcada de 1950, seu pensamento traz cena, de imediato, as
figuras de Adorno, Horkheimer, Marcuse e Benjamin, membros da primeira gerao, a
partir dos quais tomou forma seu programa de investigao interdisciplinar. Resultado
de um esforo coletivo, no qual foram colocados em questo os limites tradicionais
entre cada disciplina isoladamente, filsofos, socilogos, economistas, historiadores e
psiclogos foram convocados a se organizar numa comunidade de trabalho duradoura
visando dar conta da amplitude das questes suscitadas pelo desenrolar do projeto da
modernidade ocidental e capitalista.
Inicialmente reunidos no Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt criado na
Alemanha em 1923, fechado em 1933 com a ascenso do nazismo, reinstalado nos
Estados Unidos em meados da dcada de 1930 e restabelecido, com grandes honrarias,
em Frankfurt, em princpios da dcada de 1950 os membros desta primeira gerao
mantiveram-se fiis aos seus propsitos. Desenvolveram e decantaram suas idias por
mais de quatro dcadas, at o fim da dcada de 1970, quando da morte, em 1979 do
ltimo deles, Herbert Marcuse. Com inspiraes hegelianas e marxistas, defenderam um
marxismo aberto e crtico, mantiveram-se hostis, quer ao capitalismo quer ao socialismo
na sua verso sovitica, vendo ambos, nas suas expresses concretas, como projetos
sociais no emancipadores para os seres humanos. Isto lhes valeu, permanentemente,
crticas acerbas, quer dos defensores do capitalismo, quer tambm dos setores de
esquerda, engajados politicamente em tentativas de aes diretas de mudana social,
que acusaram os frankfurtianos de inrcia poltica diante de um mundo que, segundo
eles, exigia mais ao e menos reflexo. A esta esquerda militante institucionalizada, os
representantes da Escola de Frankfurt continuaram respondendo com suas anlises
crticas contundentes, tentando tornar compreensvel a lgica da sociedade como
totalidade, com anlises desveladoras da sociedade burguesa e das perspectivas tericas
que consagravam a sua existncia.
As violncias nos contextos mundial e local, contextos de fome e tragdia que
deixam irreconhecveis os sonhos de progresso humano, trazem uma sensao de
impossibilidade terico-explicativa e, pior, de impotncia na ao vital. Adorno,
32
Horkheimer, Marcuse, Erich Fromm, Franz Neumann e outros pensadores ligados
Escola de Frankfurt nos deixaram a possibilidade de um pessimismo crtico: o homem
o nico animal que pode assumir um projeto de ocupao para o planeta; at agora,
escolheu o pior deles.
A Escola de Frankfurt, portanto, estabelece uma crtica modernidade. Mas o
faz substituindo o conceito de progresso da sociedade capitalista, pelo de catstrofe e
destruio. Adorno e Horkheimer, importantes membros da Escola de Frankfurt, iro
constatar que (Lwy, 1992 a razo teria servido civilizao moderna como um
instrumento que permitiu sua utilizao a servio da barbrie e de regresso social
(p.123).
A Escola de Frankfurt segue, portanto, os j conhecidos caminhos, procurando
reencontrar o sentido da razo atravs da prpria razo: uma razo sensvel em oposio
razo instrumental, que opera e mantm funcionando as engrenagens da Revoluo
Industrial e do capitalismo moderno. Isto , uma razo que pudesse abarcar tambm a
intuio, a emoo e a sensibilidade revelando outras verdades , em oposio razo
pautada em interesses utilitrios e que vinha dominando a racionalidade (racionalidade
substantiva) no projeto moderno.
A dicotomia mais uma vez agravada, como se precisssemos, racionalmente,
compreender as runas da razo. E quem vem sempre frente a razo, ou seria
possvel para os frankfurtinos uma sensibilidade racional? Acredito que no. De
qualquer modo, as runas por essa Escola vislumbradas so as mesmas de Weber: mais
uma vez, o que se constata a razo sendo a causa do desencantamento do mundo.
O ponto de toro proposto por Adorno apenas refora suas leis, oferecendo um
recorte ainda mais preciso entre natureza, poltica e discurso. Atravs da dialtica
negativa, a Teoria Crtica ope um Eu que reage ao no-Eu, alienado e irracional.
1.6.2. Popper e a verdade falsevel
Procurando obter critrios para a compreenso do que era Cincia e, portanto, o
que eram proposies verdadeiras e falsas, o filsofo Karl Popper (1902-1994)
prope um outro caminho que no o da dialtica. Sua crtica atingiu em cheio no s a
Teoria Crtica Adorno e Popper faro debates histricos sobre esses conceitos como
tambm o positivismo lgico, o marxismo e a psicanlise. Tomando sempre Einstein
como uma referncia de cientista, para Popper haveria um grande nmero de
pretendentes ilegtimos para a condio de cincia. E estes eram, antes de tudo, o
marxismo e a psicanlise (Stengers, 2002). Atravs do princpio de falseabilidade,
33
Popper afirma que somente poder ser considerada cincia aquela que aceita confrontos,
que possa ser falsevel. Alm disso, a lgica no seria suficientemente conclusiva,
apenas provisria. Comentando as proposies de Popper, Stengers (id.,p.39) explica
que, ao passo que nenhum acmulo de fatos, seja qual for, basta para confirmar uma
proposio universal, um nico fato basta para refutar (falsear) tal proposio.
Um de seus mais importantes pontos de partida a no aceitao de igualdade
entre as proposies no-cientficas e as proposies destitudas de sentido. Imre
Lakatos (1922-1974) e Paul Feyerabend (1924-1994), renomados discpulos de Popper,
daro continuidade investigativa em torno do racionalismo lgico no mbito das
cincias. Enquanto Lakatos buscava uma espcie de reconstruo racional dos critrios
acerca de uma possvel metodologia cientfica, Feyerabend destri qualquer
possibilidade de crena na objetividade e na razo. Seja como for, Popper abrir novas e
originais perspectivas para se pensar e repensar a contemporaneidade, onde as
constataes possam andar lado a lado com as intuies e as emoes. E, acima de tudo,
influenciar autores que no estaro mais obsessivamente preocupados nas demarcaes
racionais e metodolgicas para se pensar e fazer! cincia.
34
CAPTULO II
A CINCIA NO PROVA NADA
La ciencia a veces mejora las hiptesis y otras veces las refuta, pero probarlas es otra cuestin, y esto tal vez no se
produzca jams salvo en el reino de la tautologa totalmente
abstracta.5 (Bateson, 2002, p.37)
Como conhecer e, mais ainda, como se d o conhecimento do que o indivduo
e o coletivo na sociedade ps Contracultura da dcada de sessenta, ps Muro de Berlim
que trouxe a queda de tantos outros muros em 1989, mas que ainda vive a
construo de outros muros? Terrorismos e globalizaes, biopoder e de sociedade de
controle, chips e silicones esto na ordem dia. Uma Cincia preocupada com a
consistncia e clareza na busca por verdades absolutas, promovendo dicotomias que
expurgam contradies, fica catatnica frente a essas novas questes.
A filosofia francesa contempornea, por exemplo, tem optado por um outro
caminho, problematizando cada vez mais os instrumentos fornecidos pela razo
ocidental, como Verdade, Identidade e Dialtica. No entanto, a caixa de ferramentas
que dispomos para se abrir a caixa preta da Cincia parece muitas vezes estar
obsoleta. Nesse sentido, Deleuze (in Foucault, 1979) sugere que:
Uma teoria como uma caixa de ferramentas. (...) preciso que sirva, preciso que funcione. E no para si mesma. Se no
h pessoas para utiliz-la, a comear pelo prprio terico que
deixa ento de ser terico, que ela no vale nada, ou que o
momento ainda no chegou. No se refaz uma teoria, fazem-se
outras; h outras a serem feitas (p.71).
Entretanto, um outro olhar torna-se possvel quando se questiona a tal caixa de
ferramentas, colocando perguntas tais como: quais normas devero ser seguidas para
que se estabelea um conhecimento? possvel estabelecer novos vnculos com os
objetos de estudo? E mais ainda, se um modelo dogmtico vem sendo seguido, ser que
a crise do sculo XX poder delimitar novos estudos ou apenas destruir os antigos?
5 A cincia s vezes melhora as hipteses e outras vezes as refuta, mas provar outra questo. Isto
talvez no se produza jamais, salvo no reino da tautologia totalmente abstrata. Grifo do autor.
35
Partindo destes questionamentos, a Cincia ganha novas e instigantes sugestes
de olhares, porque deixa de ser contemplativa (terica) e tautolgica (dogmtica e
universalista). Arrisca-se numa aproximao das diferenas. Diferenas que sugerem
multiplicidades, temporalidades; provocam movimentos que sem divises e teoremas
podem auxiliar na compreenso do sujeito contemporneo.
2.1. Pontos de Vida: resultado de encontros
Deleuze concebe o pensamento como sinestsico, o que significa que a Idia inseparvel do afecto, da sensao da
diferena que faz nascer o pensar no pensamento e a
sensibilidade no sentido (Lins, 2004, p.44).
Esta , por exemplo, a proposta de Gilles Deleuze e Flix Guattari (1995),
filsofos que desafiaram a imagem de um mundo velho e cansado, onde toda a reflexo
parte de um Uno que depois se divide em dois. Esta lgica binria e dicotmica no
corresponderia natureza ou ao mundo: Refletir sobre a natureza seria, para
Deleuze&Guattari, compreender sua fragmentao catica. Sua no-linearidade se
expressa atravs da ausncia de uma raiz-piv, que pudesse servir de princpio para as
novas construes. No h mais um a priori, a partir do qual se inicia um teorema.
O modelo arborescente da modernidade necessita de uma unidade para ser
purificada aps a diviso ou para ser tomada enquanto verdade da qual, dedutivamente,
se chegar a outras verdades. Como explicam esses autores:
As relaes biunvocas entre crculos sucessivos apenas substituram a lgica binria da dicotomia. A raiz pivotante no compreende a multiplicidade mais que o conseguido pela raiz
dicotmica. Uma opera no objeto, enquanto a outra opera no
sujeito. A lgica binria e as relaes biunvocas dominam
ainda a psicanlise (a rvore do delrio na interpretao
freudiana de Schreber), a lingstica e o estruturalismo, e at a
informtica (id., p.13).
Corpo e alma, indivduo e coletivo e demais categorias passam a compor novas
dimenses. O homem e o mundo no poderiam mais ser a imagem de uma rvore,
vertical e fortemente enraizada. Esta imagem se aproxima muito mais do ideal
Iluminista e cartesiano, de um corpo esquecido que carrega a grande chama da razo.
Para as novas dimenses e multiplicidades do mundo, surge a imagem do rizoma,
palavra empregada na botnica para designar a extenso ramificada das ervas-daninhas
36
ou da grama. Atravs do rizoma, cria-se a possibilidade de compreender no s as
conexes e organizaes que se estabelecem, como tambm suas rupturas e linhas de
fuga daquilo que no se completa. No caminhar sem partida nem chegada do nmade,
nas trilhas heterogneas dos lobos e suas matilhas ou nas gavinhas e suas razes
mltiplas, a essncia se dissolve na rede. Como afirmam Deleuze e Guattari (id., p.15)
torna-se necessrio subtrair o nico da multiplicidade a ser constituda; escrever a n-
1.
Importante ressaltar que esses autores utilizam a imagem de plat na obra Mil
Plats, capitalismo e esquizofrenia a partir de uma descrio dos jogos relacionais
presentes na cultura de Bali, feita pelos antroplogos Margaret Mead e Gregory
Bateson. Deleuze e Guattari (id., p.33) descrevem um plat como aquele lugar que
sempre se localiza entre outros pontos geogrficos, evitando toda orientao sobre
um ponto culminante ou em direo a uma finalidade exterior. Bateson criou esse
termo para definir melhor essa estranha estabilizao intensiva nas relaes entre
mes e filhos e entre membros daquela tribo.
Como veremos com mais profundidade no captulo IV, Bateson em 1942 j
propunha uma anlise que, de certa maneira, antecipava a idia de uma rede conectada,
com deslocamentos e estabilizaes provisrias. Era assim que observava a
comunicao e a gestualidade corporal nas interaes balinesas, que nunca chegavam a
atingir um ponto culminante. Citando Bateson, o plat evitava, assim, a finalidade ou a
determinao atravs daquilo que vem de fora, a interao era produzida num plano de
imanncia segundo seu valor em si (ibid.).
Apesar de optar por um modelo no determinista, que questiona o papel da
verdade e da transcendncia, a filosofia deleuziana pressupe uma verdade. Como
esclarece o filsofo Daniel Lins (2004, p.56), embora esta afirmao, aparentemente,
parea paradoxal, essa nica verdade mltipla, e se afirma como multiplicidade. Ou
seja, a verdade estaria nas variaes e deslocamentos, em sublimes ocasies
intempestivas. A verdade se diz no encontro, transformando pontos de vista em pontos
de vida. Assim, a cincia passa a operar no intermezzo, no durante, lidando o tempo
todo com a bricolage de sentidos.
A relao que a verdade e o poder estabelecem ir se opor coero do discurso
unitrio, formal e metodolgico que a cincia vm oferecendo, tendo sempre alvos e
metas a serem cumpridas. Problemas que necessitam de respostas definidas. Esses
estudos surpreendem e sugerem a possibilidade de experimentao ao invs de
interpretao. Ou degustaes do pensamento enquanto corpo-pensamento. Paixes,
37
xtases e interesses sensveis ao invs de desvios da boa natureza, erro ou pensamento
negativo.
Porm, a recusa em Deleuze dos modelos cientficos que regem os enunciados
arborescentes, ou do modelo estruturalista para Foucault, antes de tudo a compreenso
de que o que est em jogo uma relao de poder. A produo de verdades passa a
entrar num campo necessariamente poltico, no qual a dialtica no poderia mais dar
conta das questes intrnsecas deste campo de batalha, j que evita a realidade aleatria
e dociliza platonicamente a acidez dos contrrios.
2.2. Adeus Epistemologia
Porm interessa-me, sobretudo, a qualidade do riso. No quero um riso de troa ou um riso que seja de desprezo, da ironia que identifica sempre e sem risco o mesmo para alm das
diferenas. Eu gostaria de tornar possvel o riso de humor que
compreende, aprecia sem esperar a salvao e pode recusar
sem se deixar aterrorizar. (Stengers, 2002, p.29)
As contribuies de Foucault, mas principalmente de Deleuze e Guattari
ganharo novas tonalidades na obra da filsofa francesa Isabelle Stengers, que dar seu
adeus epistemologia na obra A Inveno das Cincias Modernas (Stengers, 2002,
p.50), numa aluso ao adeus de Feyerabend Razo.
Relacionando a conduta cientfica s vantagens que a etiqueta de cientificidade
nos fornece alm de suas lucrativas linhas de financiamento , Stengers procura
indagar acerca de como se poderia reinventar a cincia a partir de uma nova base
epistemolgica, sem tomar o sentido de verdade que, segundo Stengers (id., p.196) vem
sendo empregado de Plato a Heidegger, de Santo Agostinho a Lacan. Nesta busca,
Stengers prope um retorno aos sofistas para que tenhamos em nossas prprias mos a
medida de todas as coisas. Medida assume aqui o sentido de um devir, de uma
construo que une fatos e fices e no uma legitimao de padres. Prtica, tica e
esttica, ou seja, poltica e opinio restabelecem o fluxo desafiador de Protgoras, o
maior inimigo de Plato (Chau, 2002).
Ao invs de paisagens hierarquizadas, repletas de conquistas e redues (sejam
estas ao absurdo ou unidade essencial, Stengers (id., p.188) prope uma cincia da
ordem do acontecimento e no do direito. Os fatos no estariam mais na natureza,
38
espera da racionalidade de cientistas-juzes. Em seu lugar tomam acento cientistas bem
humorados que compartilham a paixo por se tornarem capazes de serem afetados por
todas as coisas, criando sentidos e inventando significados.
Procurando dar voz aos pesquisadores que investem contra o ideal de uma
cincia pura(id., p.11) Stengers faz interagir as propostas rizomticas aos estudos de
pesquisadores reunidos em torno dos Sciences studies, em instituies universitrias da
Europa, Amrica do Norte e Amrica Latina ou em centros de pesquisas como o Centre
de Sociologie de L'innovation, European Association for the Study of Science and
Technology e a 4S - Society for Social Studies of Science.
Estes estudos recebem tambm a denominao de antropologia das cincias, pela
abrangncia do seu campo de conhecimento, oferecendo um olhar que possibilita uma
nova proposta epistemolgica. So pesquisas desenvolvidas numa espcie de Colgio
Invisvel, com importantes alianas de estudo, assim como no caso dos trabalhos
desenvolvidos por Stengers em parceria com o russo Ilya Prigogine. Porm, vou me
deter mais nas alianas feitas com o socilogo francs Bruno Latour e a belga Vinciane
Despret.
Latour assim define a rea de conhecimento a que pertence:
Por falta de opes, nos autodenominamos socilogos, historiadores, economistas, cientistas, polticos, filsofos,
antroplogos. Mas, a estas disciplinas venerveis,
acrescentamos sempre o genitivo: das cincias e das tcnicas.
Sciences studies a palavra inglesa; ou ainda este vocbulo por
demasiado pesado: Cincias, tcnicas, sociedades Qualquer que seja a etiqueta, a questo sempre a de reatar o n grdio
atravessando, tantas vezes quantas forem necessrias, o corte
que separa os conhecimentos exatos e o exerccio do poder,
digamos a natureza e a cultura (Latour, 1994, p.09).
Para compreender a proposta epistemolgica oferecida por Latour, torna-se
imprescindvel dissociar as cincias da Cincia. Esta distino procura tornar clara e
colocar mais uma vez em cheque de que maneira a Cincia fez calar a poltica e as
opinies no consagradas, h vinte e cinco sculos, desde que ela buscou as verdades
sobre o mundo objetivo. Para a Cincia, esta objetividade est fora, na Natureza,
assim como a mente estaria dentro; embaixo, o social nada mais era que a multido, a
mixrdia incapaz de lidar com questes cientficas; acima deus, a espiritualidade.
As cincias, muito mais plurais e sem um saber compartimentado e dividido,
procuram sempre construir pontes que possam ligar todas essas reas, que na realidade
opera como um grande arranjo. A Cincia, portanto, se define para Latour (2004)
39
como a politizao pela epistemologia, a fim de tornar impotente a via pblica
ordinria, fazendo pesar sobre ela a ameaa de uma natureza indiscutvel (p.26).
Para Latour, mais do que uma caixa preta de fatos cientficos que ficou
hermeticamente fechada, quando seguimos as pistas deixadas e os passos dos cientistas
na produo de verdades da Cincia, nos deparamos com a caixa de Pandora, aludindo
ao mito grego que narra a histria da bela Pandora, a que possui todos os dons, e sua
imprudncia em abrir um grande vaso trazido do Olimpo como presente de casamento
dos deuses: todos os males escapam da caixa (ou do vaso), com a exceo da esperana.
Utilizando este mito para compreender o mundo atual, Latour (2001) avalia que
esgotamos os males escapados caixa da desastrada Pandora. Embora a curiosidade irrefrevel que tenha instigado a
donzela artificial a abrir a caixa, no h motivo para deixarmos
de investigar o que restou l dentro. A fim de encontrar a
Esperana, que ficou bem l no fundo da caixa, precisamos de
um artifcio novo e mais complexo (p.343).
Discordando de Scrates, para quem s os cientistas poderiam falar de cincia,
Latour prope seguir os caminhos dos fatos at chegar aos pontos indiscutveis onde a
Cincia parece seqestrar as cincias.
2.3. Por uma Epistemologia Poltica
A crtica de Latour Cincia freqentemente taxada de irracional e relativista
ao extremo, como se suas teorias no levassem em conta a existncia de uma realidade,
com fatos e leis indiscutveis, como a lei da gravidade, por exemplo. Ou ainda porque,
discutindo a objetividade e a racionalidade conceitos to caros Cincia , estivesse
propondo caminhos desprovidos de qualquer rigor cientfico.
Talvez a crtica mais ferrenha tenha vindo do professor de fsica na Universidade
de Nova York, Alan Sokal. Seu artigo, que no passava de uma grande provocao s
teorias ps-modernas, procurava defender as cincias naturais das ameaas dos
efeitos perniciosos do jargo obscurantista e do relativismo visceral (Sokal e
Bricmont, 1998). Dessa forma, Sokal parece ter contribudo belicamente para essa
verdadeira guerra das cincias, procurando atingir no s conceitos de Latour, como
tambm de Derrida, Lakan, Lyotard, Bergson, Merleau-Ponty, Deleuze, Guattari,
Feyerabend e outros pensadores que de alguma maneira questionaram a realidade e a
verdade descritas pela Cincia.
40
Frente a essa querela e para definir melhor o que seriam as cincias, Latour
utiliza a expresso epistemologia poltica6, como forma de estabelecer uma interlocuo
com o senso comum, a prtica cotidiana. Uma epistemologia dita poltica estaria lidando
com estas complexas ligaes que foram separadas pela dupla ruptura.
Como esclarece Latour (2004):
Tenho o maior respeito por epistemlogos, meus colegas que se esforam por compreender, com outras ferramentas que no
as minhas, o segredo das prticas cientficas. Eu respeito
igualmente estes epistemlogos polticos que concordam em
tratar como um mesmo problema de filosofia a teoria das
cincias e a politologia. Por outro lado no tenho o menor
respeito por aqueles que pretendem que o problema do conhecimento seja distinguido da questo poltica, a fim de manter sob controle o frenesi do mundo social. Contra estes
epistemlogos necessrio lutar (p.31).
Assim como o fez Stengers que d seu adeus epistemologia procurando criar
novas bases para as cincias , Latour aposta em uma epistemologia poltica frente
polcia epistemolgica, disposta a sempre anular o conhecimento ordinrio. A
concluso a que chega Latour que a Cincia no seqestrou as cincias. Havia uma
outra maneira, muito mais fcil. Ela simplesmente lhe roubou a poltica, calando o
mundo social atravs de fragmentaes.
2.4. Abandonando o Mito da Caverna
Para Latour (2001, 2004), a herana deste imbrglio comea l trs, na filosofia
grega. Para ele, ser atravs do Mito da Caverna, contada por Plato no Livro Stimo da
Repblica, que poderemos compreender melhor de que maneira se definiu a relao
entre Cincia e Sociedade.
A Carta Stima procurava expor a teoria do conhecimento dividindo os objetos
do conhecimento em mundo inteligvel e sensvel. Alm disso, colocava de um lado os
modos intelectuais e racionais, e de outro as crenas, opinies e imaginao. Operando
atravs da dialtica, as diversas hierarquias e graus de conhecimento sero superadas at
se chegar episteme, isto , cincia do saber verdadeiro. Como esclarecem Japiass e
Marcondes (1996),
6 Latour cria esta expresso procurando distingui-la da epistemologia (poltica) ou policial, que
continua calando as vozes da multido, e da epistemologia, que no est preocupada com as relaes de poder que se estabelecem no interior das cincias.
41
O termo grego episteme, que significa cincia, por oposio a doxa
(opinio) e a techn (arte, habilidade), foi reintroduzido na linguagem
filosfica por Michael Foucault com um sentido novo, para designar o
espao historicamente situado onde se reparte o conjunto dos enunciados que se referem a territrios empricos constituindo o objeto de um
conhecimento positivo (no-cientfico). Fazer a arqueologia dessa episteme
descobrir as regras de organizao mantidas por tais enunciados (p.84).
Procurando esclarecer ao jovem Glauco, seu pupilo, de que maneira se chega ao
conhecimento verdadeiro, Scrates narra o Mito da Caverna, onde seres humanos
acorrentados vivem na escurido, sem poder sequer ver a si mesmos. H apenas uma
fresta, por onde passa alguma luz. E dentro da caverna, abaixo de um muro, um fogo
ilumina seu interior. Com a pequena fresta de luz, imagens de pessoas e coisas do lado
de fora so projetadas na parede. Assim como a sombra de artefatos internos, feitos
pelos prisioneiros, era projetada pela luz do fogo. Os prisioneiros julgam, ento, que as
imagens das pessoas do lado fora ou de seus artefatos so reais. Tomam sombras por
realidade. Aps geraes, um dos prisioneiros, inconformado, decide sair da caverna,
quebrando os grilhes e escalando o enorme muro. Chegando ao mundo l fora, ele ter
que vencer dois desafios: a dor da luz e o espanto com toda a realidade exterior; e a
disposio de retornar a caverna, habituar-se novamente s trevas e convencer os outros,
cticos, a abandon-la.
Como analisa Chau (2002), conhecer a verdade seria, portanto, ver a realidade.
Todos os nossos sentidos estariam relacionados com o que sentimos. Mas a viso ser o
supremo instrumento da alma racional e da inteligncia. Sob a analogia da luz, a
ignorncia e a opinio seriam a cegueira e a escurido, ou seja, sem a viso no haver
um elo entre o mundo sensvel (o Sol) e o inteligvel (o Bem) e, portanto, no haver
produo de conhecimento. Alm disso, o artefato que liberta o prisioneiro (o filsofo) e
que permite a ascenso a graus hierarquicamente mais altos do conhecimento humano
(o muro) a dialtica.
Para Latour, somos todos herdeiros dessa alegoria que define claramente as leis
que regem a relao entre a Cincia e a sociedade a partir de duas rupturas. A prime