Vera Schroeder - the Paradox in Human Communication Multiple and Double Bonds (2006)

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  • Universidade do Estado do Rio de Janeiro

    Centro de Educao e Humanidades

    Instituto de Psicologia

    Vera Schroeder

    O paradoxo na comunicao humana: mltiplos e duplos vnculos

    Rio de Janeiro

    2006

  • Vera Schroeder

    O paradoxo na comunicao humana: mltiplos e duplos vnculos

    Dissertao apresentada, como requisito parcial

    para obteno do ttulo de Mestre, ao Programa

    de Ps-Graduao em Psicologia Social, da

    Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

    Orientador: Prof. Dr. Ronald Joo Jacques Arendt

    Rio de Janeiro

    2006

  • CATALOGAO NA FONTE

    UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEH/A

    Autorizo, apenas para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou parcial desta

    dissertao

    ________________________________ _____________________

    Assinatura Data

    V476 Schroeder, Vera. O paradoxo na comunicao humana : mltiplos e duplos vnculos /

    Vera Schroeder. 2006. 99f.

    Orientador: Ronald Joo Jacques Arendt.

    Dissertao (Mestrado) Universidade do Estado do Rio de

    Janeiro. Instituto de Psicologia.

    1. Antipsiquiatria Teses. 2. Cincia Filosofia Teses. 3.

    Racionalismo Teses. I. Arendt, Joo Jacques. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. III. Ttulo.

    CDU 616.89

  • Vera Schroeder

    O paradoxo na comunicao humana: mltiplos e duplos vnculos

    Dissertao apresentada, como requisito parcial

    para obteno do ttulo de Mestre, ao Programa

    de Ps-Graduao em Psicologia Social, da

    Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

    Aprovada em 29 de junho de 2006.

    Banca Examinadora:

    ______________________________________________

    Prof. Dr. Ronald Joo Jacques Arendt (Orientador) Instituto de Psicologia da UERJ

    ______________________________________________

    Prof Dr Heliana de Barros Conde Rodrigues

    Instituto de Psicologia da UERJ

    ______________________________________________

    Prof. Dr. Silvio Donizetti de Oliveira Gallo

    Universidade Estadual de Campinas

    Rio de Janeiro

    2006

  • DEDICATRIA

    Para meu pai, meu guri, em memria.

    E para minha me.

    Porque me ensinaram e ainda me ensinam a conversar com a vida.

  • AGRADECIMENTOS

    Esta dissertao foi tecida a vrias mos. Como num palimpsesto, trago aqui outras

    anotaes, feitas por mim mesma numa outra poca. E ainda por detrs, deixo transparecer os

    comentrios de tantas pessoas que souberam me ouvir criativamente. Esses comentrios se

    misturaram aos meus, renovaram-se e ganharam um sentido prprio. Como eles tambm sero

    lidos, tenho a obrigao de dizer quem so essas pessoas. Mas acima de tudo, o que tenho

    mesmo o prazer em agradecer a cumplicidade nesta caminhada que aqui se encerra em

    novos rumos.

    Nesse sentido, gostaria de agradecer primeiramente ao meu orientador, professor Dr.

    Ronald Joo Jacques Arendt pela acolhida e, acima de tudo, por ter me orientado de maneira

    to serena e atenta s minhas incompreenses. Agradeo tambm aos comentrios e sugestes

    do grupo de pesquisa, com trocas sempre to precisas.

    Alguns comentrios ou sugestes de leitura provocaram verdadeiras guinadas no norte

    da minha escrita. Gostaria, portanto, de agradecer as marcas indelveis deixadas por algumas

    pessoas neste palimpsesto: professora Dr. Margareth Rago, indicando a genealogia do

    paradoxo como um importante rumo a ser seguido; ao professor e Doutor Amir Geiger, pelas

    conversas antropolgicas e sugestes de textos; ao professor Doutor Etienne Samain, pelo

    carinho e generosidade no envio de textos complementares e por construir vnculos to

    importantes em torno da obra de Bateson.

    Por fim, gostaria de agradecer queles que arrancaram pedaos deste texto. Seus

    rasgos deixaram este pergaminho menos retilneo e suas interferncias possibilitaram uma

    construo muito mais surpreendente e apaixonada. Comeo agradecendo s rupturas feitas

    por Roberto Freire e pelo nosso Incrvel Exrcito de Brancaleone (Joo da Mata, Jorge Goia,

    Stfanis Caiaffo e Marcelo Leal). Branca, Branca, Branca! Leone, Leone, Leone! Muito

    obrigada a Guaraciny Vieira de Assis pelas longas e anrquicas conversas. E ao professor

    Doutor Paulo Pavo, pela cumplicidade neste caminho que s vezes se mostra to solitrio.

    Agradeo ainda delicada compreenso cortante nas longas leituras de Renata Folhas e

    Stfanis Caiaffo, nas tradues de ltima hora de Irene Ernest Dias, no apoio imagtico de

    Eneida Dchery e Clarice Soter, aos meus irmos (to longe, to perto!), bem como ao

    carinho maternal das Fulres (Joana Corra, Soraya Oliveira e Christiane Alcntara).

  • T bem de baixo pr poder subir

    T bem de cima pr poder cair

    T dividindo pr poder sobrar

    Desperdiando pr poder faltar

    Devagarinho pr poder caber

    Bem de leve pr no perdoar

    T estudando pr saber ignorar

    Eu t aqui comendo para vomitar

    Eu t te explicando

    Pr te confundir

    Eu t te confundindo

    Pr te esclarecer

    T iluminado

    Pr poder cegar

    T ficando cego

    Pr poder guiar

    Suavemente pr poder rasgar

    Olho fechado pr te ver melhor

    Com alegria pr poder chorar

    Desesperado pr ter pacincia

    Carinhoso pr poder ferir

    Lentamente pr no atrasar

    Atrs da vida pr poder morrer

    Eu t me despedindo pr poder voltar

    (T, de Elton Medeiros e Tom Z)

  • RESUMO

    SCHROEDER, Vera. O paradoxo na comunicao humana: mltiplos e duplos vnculos.

    2006. 99f. Dissertao (Mestrado em Psicologia Social) Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.

    O objetivo deste estudo discutir o conceito de duplo vnculo, presente nas pesquisas

    sobre o paradoxo na comunicao humana realizadas pela Escola de Palo Alto com a

    coordenao de Gregory Bateson. Para isso, ser analisado de que maneira o paradoxo foi

    empregado pela filosofia e pelos estudos matemticos em alguns momentos da histria do

    conhecimento humano, sempre se opondo Verdade e Cincia. Assim, atravs de Deleuze,

    Stengers, Despret e Latour, outros modelos cientficos e epistemolgicos sero apresentados,

    contribuindo para uma melhor compreenso do pensamento de Bateson.

    Palavras-chave: Batson, Gregory. Antipsiquiatria. Paradoxo. Duplo vnculo.

  • ABSTRACT

    This study aims to discuss the concept of double bind, presented in the researches

    about paradox in human communication developed by the Palo Alto school, under the

    coordination of Gregory Bateson. For that, it will analyze in which manners the concept of

    paradox was used by philosophy and mathematics studies in some moments of the knowledge

    history, always opposing to Truth and Science. In this way, through Deleuze, Stengers,

    Despret and Latour, other scientific and epistemological designs will be presented,

    contributing to a better comprehension of Batesons ideas.

    Keywords: Bateson, Gregory. Paradox. Double bind.

  • SUMRIO

    INTRODUO .............................................................................................. 11

    1 DO ESPANTO AO RACIONALISMO CIENTFICO ............................... 16

    1.1 Incomodando a doxa e contrariando a altheia ........................................... 17

    1.2 Contradio e opinio: a cincia de coisa alguma ....................................... 20

    1.3 A matematizao da vida .............................................................................. 22

    1.4 Russell e Gdel: limites iniludveis para a razo humana ......................... 24

    1.5 A Modernidade e o Paradoxo ....................................................................... 28

    1.6 A crtica Modernidade: Razo versus Razo ............................................ 29

    1.6.1 A Teoria Crtica ............................................................................................... 31

    1.6.2 Popper e a verdade falsevel ........................................................................... 32

    2 A CINCIA NO PROVA NADA .............................................................. 34

    2.1 Pontos de Vida: resultado de encontros ....................................................... 35

    2.2 Adeus Epistemologia ................................................................................... 37

    2.3 Por uma Epistemologia Poltica .................................................................... 39

    2.4 Abandonando o Mito da Caverna ................................................................ 40

    2.5 Jamais fomos platnicos ................................................................................ 43

    3 POR UMA ANTROPOLOGIA SIMTRICA ............................................ 49

    3.1 Sujeitos e Objetos: humanos falantes e o mundo calado ............................ 50

    3.2 Caminhar nos labirintos com astcia .......................................................... 53

    3.3 De Homo faber a fatiches ............................................................................... 54

    3.4 Coletivo: uma arena de atores ....................................................................... 57

  • 3.4.1 Recalcitrncia ................................................................................................... 58

    3.4.2 Comunicao de Duplo-Clique: informao versus transformao ................ 60

    3.5 Fatos e Valores na nova separao de poderes ........................................... 62

    4 UMA EPISTEMOLOGIA DA COMUNICAO ..................................... 66

    4.1 Seguindo os passos de Gregory Bateson ...................................................... 67

    4.2 Cismas e ambigidades: O Cerimonial Naven ............................................ 68

    4.3 Mead, Bateson e o Carter Balins .............................................................. 71

    4.4 Teoria Geral da Comunicao e a Escola de Palo Alto ............................... 74

    4.5 Linguagem Analgica e Digital ..................................................................... 75

    4.6 Duplo Vnculo ................................................................................................ 78

    4.7 A Antipsiquiatria e o Duplo Vnculo ............................................................ 80

    4.8 Lgica + Patologia .......................................................................................... 83

    4.9 Transcontextualidade: transcendendo a contradio ................................. 84

    PERSPECTIVAS ........................................................................................... 88

    REFERNCIAS .............................................................................................. 94

  • 11

    INTRODUO

    Este projeto de dissertao procurou dar algumas respostas a antigas

    inquietaes. E, assim como eu imaginava e temia, trouxe uma srie de novas

    indagaes. Todas elas das antigas s mais recentes procuram compreender melhor

    as relaes humanas e, mais precisamente, os aspectos ligados ao paradoxo na

    comunicao humana.

    O interesse em estudar esses assuntos surgiu no cotidiano do meu trabalho

    ligado Somaterapia, uma terapia corporal e em grupo criada pelo escritor e ex-

    psicanalista Roberto Freire. Desde o meu primeiro contato com a Somaterapia, em

    1994, os estudos sobre a comunicao humana no mbito teraputico despertaram um

    novo interesse. Pesquisas transdisciplinares que envolviam a psicologia, a comunicao

    e a psiquiatria eram discutidas e trabalhadas nos grupos de formao e, posteriormente,

    eram levadas para os grupos de terapia. De certo modo, essas pesquisas no mbito

    teraputico apoiadas em estudos comunicacionais me remetiam graduao em

    Comunicao Social (1990-1994), que sempre me pareceu ser um campo insatisfatrio,

    sem muitas respostas ou perguntas inquietantes. Pelo contrrio, parecia oferecer

    instrumentos cada vez mais acticos e adaptadores, sufocados por conceitos

    deterministas, como a mass media e a indstria cultural. Por esse aspecto, esse texto a

    concretizao de um elo entre o curso de graduao, em Comunicao Social, e o

    trabalho que venho desenvolvendo na Somaterapia.

    Num ambiente teraputico como o proposto pela Soma, a comunicao pautada

    pelo racional e pela lgica se mostram insuficientes para compreender a imensa teia de

    emoes e controles impostos socialmente e seu impacto sobre a individualidade.

    justamente nesta relao indivduo versus sociedade que surgem os paradoxos

    comunicacionais: como escapar das relaes hierrquicas e autoritrias com todas as

    suas extenses emocionais, influenciadas por algo que muitas vezes no tangvel, nem

    to pouco racional? Este "algo mais", para alm da razo, que j foi objeto de estudos de

    filsofos, matemticos e psiclogos, foi tambm o questionamento que levou Roberto

    Freire a criao da Soma, no incio dos anos 70.

  • 12

    Roberto Freire foi militante clandestino na Ao Popular (AP) na luta contra a

    ditadura militar. A organizao clandestina denominada Ao Popular Marxista

    Leninista (APML) surgiu da transformao do grupo de orientao catlica, a Ao

    Popular, em agremiao de diretrizes marxistas. A matriz da APML, a antiga Ao

    Popular (AP), liderou durante muitos anos o movimento estudantil. Foi formada em

    Belo Horizonte em 1962, a partir de grupos de operrios e estudantes ligados Igreja

    Catlica a Juventude Operria Catlica (JOC) e a Juventude Estudantil Catlica

    (JEC). Durante esses anos, Freire trabalhava tambm com o teatro estudantil na

    Pontifcia Universidade Catlica (PUC) de So Paulo, na premiada pea Morte e Vida

    Severina, de Joo Cabral de Melo Neto, alm de outras incurses artsticas.

    Suas inquietaes polticas traziam questionamentos ainda mais fortes frente

    sua atuao enquanto psicanalista. Freire no encontrava na Psicanlise nem na

    Psicologia tradicional, ferramentas necessrias para auxiliar nos conflitos emocionais e

    psicolgicos de seus companheiros de luta que o procuravam, muito menos ferramentas

    que pudessem ajudar na compreenso daquele momento scio-poltico. Da mesma

    forma, a crtica marxista se mostrava to autoritria quanto o pensamento conservador.

    Ser, portanto, atravs dos anarquismos que Freire ir criar a sua anarquia, o seu

    pensamento libertrio.

    Foi atravs da pea Paradise Now do grupo de teatro Linving Theatre, que

    Roberto Freire entrou em contato com as pesquisas de um cientista, que na dcada de

    1930 foi expulso da Sociedade de Psicanlise e do Partido Comunista Alemo: Wilhelm

    Reich. Este grupo, liderado por Julian Beck e Judith Malina, desenvolveu um intenso

    trabalho corporal na preparao dos atores, o que chamou a ateno de Freire.

    Reich propunha um trabalho clnico que observava atentamente o corpo, alm de

    estar muito prximo e muitas vezes atuante, como no caso das experincias da SexPol,

    de 1934 a 1938 do momento poltico que a Alemanha vivia ento. Apesar de ser o

    momento da ascenso do nazismo, muitos tericos achavam inaceitvel e entediante

    querer misturar poltica e psicanlise. Mas essa no era a opinio de Freire. Foi, ento, a

    partir dos estudos de Reich que ele criou a Soma, vinculando a tcnica teraputica

    corporal e em grupo com a proposta libertria.

    Alm dos referenciais trazidos pelo Socialismo Libertrio e pelas pesquisas de

    Wilhelm Reich sobre o corpo e a emoo, Freire inicia, na dcada de 1990, uma

    pesquisa em torno da Capoeira Angola. Seu objetivo era intensificar a prtica

    bioenergtica, utilizando a riqueza da Capoeira Angola enquanto cultura popular como

    um importante instrumento teraputico. Os dilogos de corpos que no fogem ao

  • 13

    enfrentamento e que se somam malcia e teatralidade visvel na mandinga dos

    angoleiros, ser um novo campo de atuao na Somaterapia.

    Os conceitos de organizao vital da Gestalterapia, atravs das pesquisas de

    Frederick S. Perls, e as influncias do movimento antipsiquitrico, com os estudos de

    David Cooper, Ronald Laing, Franco Basaglia, tambm serviro como importantes

    alicerces tericos na Soma.

    A Antipsiquiatria provocou importantes transformaes no campo psicolgico e

    psiquitrico, questionando o modelo tradicional que havia at ento. O tratamento dado

    aos pacientes, o papel da famlia na gnese dos problemas psicolgicos, alm do

    significado social do que se entende por loucura sero alguns dos questionamentos

    feitos pelo movimento antipsiquitrico. Este movimento estabelece uma importante

    relao com a equipe da Escola Alto, coordenada pelo antroplogo ingls Gregory

    Bateson, que ser uma espcie de mentor intelectual da antipsiquiatria.

    Bateson investigar durante toda a sua vida de que maneira nos conectamos

    com os outros. Isto , de que maneira tudo se entrelaa, criando tramas, laos e ns que,

    segundo ele, a antropologia de maneira isolada era incapaz de compreender. Assim

    como havia um algo mais para alm da razo em Reich, em Bateson havia tambm

    um algo mais na comunicao humana.

    A comunicao paradoxal, ilgica, ser um dos conceitos mais importantes da

    obra de Bateson, que mais tarde serviro de referencial terico no s para a

    Antipsiquiatria, como tambm para a Terapia Familiar Sistmica. Ambas identificam a

    gnese da esquizofrenia na famlia que produz uma comunicao paradoxal, isto , uma

    comunicao repleta de duplos vnculos.

    Porm, a residia minha primeira inquietao, j que o paradoxo comunicacional

    era sempre visto de maneira um tanto pejorativa, associado manipulao, controle,

    enfim, algo que deve ser banido. Mas seu sentido tambm estava muito prximo da

    incoerncia anrquica e das rebeldias presentes nas linguagens, sejam elas verbais ou

    gestuais.

    As pesquisas de Bateson me pareciam, ento, cada vez mais intrigantes e ao

    mesmo tempo mais intransponveis, j que pouco estudadas no Brasil. Ao mesmo

    tempo, Bateson um autor freqentemente citado, como no caso de Deleuze&Guattari,

    que utilizam o conceito de plat a partir da obra Steps to an Ecology of Mind de

    Bateson. Assim, procurando mais informaes, participei em 2001 como ouvinte de

    uma disciplina sobre as pesquisas de Bateson, ministrada pelo professor Doutor Otvio

    Velho, no Programa de Ps Graduao em Antropologia Social/Museu Nacional.

  • 14

    Mesmo sem estar formalmente ligada ao curso, estas aulas possibilitaram um acesso

    importante compreenso do pensamento de Bateson.

    A entrada no Programa de Ps-Graduao em Psicologia Social da UERJ

    (PPGPS), com a orientao do professor Ronald Arendt, alm das disciplinas cursadas

    durante esse perodo, trouxeram um importante contato com referenciais terico-

    metodolgicos. As pesquisas desenvolvidas pelo grupo coordenado pelo prof. Ronald

    Arendt foram significativas, j que estavam sempre atentas s contribuies recentes de

    autores que problematizam as dicotomias intrnsecas Cincia, o que se aproxima

    bastante do pensamento de Bateson.

    Porm, para se comear a falar de paradoxo comunicacional, percebi a

    necessidade de se discutir as mltiplas possibilidades de definio que a filosofia e a

    matemtica foram empregando nos diversos momentos da histria do conhecimento

    humano ocidental. Este ser o tema do primeiro captulo deste texto. Vale ressaltar que,

    de modo algum, procuro esgotar as discusses filosficas em torno das contradies e

    paradoxos. Busco apenas algumas linhas-guia que possam me auxiliar neste caminho.

    No segundo captulo, procuro compreender de que maneira a gnese do

    paradoxo est atrelada diretamente razo e necessidade de dicotomias

    epistemolgicas. Para isso, trago a crtica de Deleuze&Guattari ao modelo binrio, as

    reflexes epistemolgicas de Isabelle Stengers e a distino feita por Bruno Latour entre

    Cincia, como produo de verdades, e cincias, que no trabalham em esferas

    compartimentadas e isoladas. Por fim, trago a anlise de nossa herana platnica e a

    teoria das emoes de Vinciane Despret.

    No Captulo III proponho um aprofundamento nas contribuies de Bruno

    Latour, que levantar a impossibilidade de se produzir conhecimento a partir das

    dicotomias natureza e cultura, humanos e no-humanos, indivduo e sociedade, e assim

    por diante. O pensamento hbrido de Latour ser fundamental para percorrermos os

    caminhos trilhados por Bateson, apresentados no Captulo IV. Neste ltimo captulo

    iremos percorrer seus importantes conceitos, desde sua primeira obra Naven at

    chegar ao conceito de duplo vnculo.

    Os captulos talvez se apresentem muito independentes, ou demasiadamente

    autnomos. Algumas relaes j sero apontadas no transcorrer dos captulos, mas a

    anlise de como eles dialogam e se vinculam ser melhor aprofundada nas

    perspectivas finais.

  • 15

    Por ltimo, gostaria de ressaltar que as citaes em ingls, francs e espanhol

    sero mantidas conforme o texto original no corpo da pgina, seguindo sempre uma

    traduo em nota de rodap.

  • 16

    CAPTULO I

    DO ESPANTO AO RACIONALISMO CIENTFICO

    O paradoxo pode ser definido como uma confuso que toma o lugar da

    coerncia, da exatido. Pensamentos incompletos e enigmticos. Caminhos de idias

    que se bifurcam e se ignoram num enorme labirinto que parece no haver sada. A sada

    mais do que a diferena. mais do que o dilema numa encruzilhada. o absurdo e o

    extraordinrio. O devir daquilo que ainda no foi experimentado. A realidade ainda

    inominvel. Movimento abrupto, desestabilizador. Anormalidade que provoca

    perplexidades. E frente ao espanto, uma quietude ensurdecedora. Contradio e

    ambigidade em cada palavra, em cada gesto. A certeza de que tudo, naquele momento,

    incerto demais. Contraditrio demais. Inslito.

    O paradoxo sempre fascinou a mente humana. Desde a Antigidade, tudo aquilo

    que ia de encontro ao que estava estabelecido como verdade e contrariava o senso

    comum, mas que mesmo assim fizesse sentido, inquietava matemticos e filsofos.

    Estudos de diferentes pocas tentaro completar equaes que ainda estavam

    abertas e geravam incompreenses. O sculo XIX ter importante destaque nesse

    sentido, oferecendo novas e importantes compreenses a partir do pensamento

    paradoxal. Estudos aprofundaram conceitos paradoxais tanto na rea da lgica, como da

    epistemologia, da lingstica e da matemtica, sobretudo no desenvolvimento da teoria

    da prova.

    O paradoxo passa a ser uma palavra que, no toa, vem sendo to

    freqentemente empregada para explicar e atacar a contemporaneidade. Para que

    possamos compreend-la melhor, trago aqui alguns pontos que podero auxiliar a nossa

    caminhada. No tenho aqui o objetivo de realizar um mapeamento filosfico completo.

    Mas sim trazer para a reflexo os elos que se estabelecem entre a construo do

    conhecimento humano com suas experincias e trocas e a suscetibilidade de incorrer

    em contradies e paradoxos.

  • 17

    1.1. Incomodando a doxa e contrariando a altheia

    Todos os mitos gregos eram repletos de espanto (t thaumzein). Um espanto

    cheio de admirao, que atravessava a dificuldade e movia o conhecimento. O que

    igual pode ser tambm diferente? O que , pode tambm no ser? H alguma essncia

    que me singulariza? E o que , pode ser dividido? Somos unos ou somos mltiplos?

    Propores, nmeros e oposies marcaro as Escolas Pr-Socrticas (sculo VI a.C. ao

    incio do sculo IV a.C.) e so o incio e o desenvolvimento da filosofia grega. Assim

    como a soma dos quadrados dos catetos igual ao quadrado da hipotenusa (Pitgoras),

    outros teoremas iro matematizar o universo, ordenando com rigor, atravs de nmeros,

    tudo aquilo que fugia regra.

    Dos deuses e tragdias para a cosmologia. Essa passagem, que marca a busca

    por explicaes racionais sobre a origem e a ordem do mundo, tambm a criao de

    uma srie de instrumentos conceituais da civilizao ocidental. Para se compreender a

    natureza e todas as coisas que dela fazem parte, so criadas leis que partem da

    observao de todas essas coisas (phsis). A Via da Verdade (altheia) estar sempre

    sendo questionada pela Via da Opinio (doxa1). E ser neste conflito que surgir o

    termo paradoxo ou aporia com o filsofo pr-socrtico Zeno.

    Zeno de Elia (490-425 a.C.) tornou-se famoso pela sua maneira de

    argumentar, sempre permeada de dilemas. Discpulo de Parmnides primeiro filsofo

    a expor suas idias em verso e considerado o iniciador da lgica, isto , de um

    pensamento que opera segundo exigncias internas de rigor, sem se preocupar se o que

    pensado ou dito corresponde ou no experincia imediata que temos das coisas por

    meio de nossos sentidos. (Chau, 2002, p.96).

    Zeno segue os ensinamentos de Parmnides, defendendo suas teses e refutando

    as crticas de outros filsofos. Mais do que criar novas verdades, Zeno procura

    demonstrar de que maneira as contestaes adversrias se reduziam ao absurdo

    (reductio ad absurdum). Para isso, cria uma argumentao baseada naquilo que os

    gregos chamavam de aporia, isto , uma impossibilidade de chegar a algum lugar, uma

    dificuldade insolvel. Seu raciocnio sem soluo procurava defender as teses de

    imobilidade e o princpio da unidade, partindo sempre do pressuposto que o

    deslocamento de tempo era igual ao deslocamento no espao. Trilha, portanto, o

    1 Esta palavra possui vrios sentidos diferentes, porm comumente aceita como se conformar com a

    norma estabelecida pelo grupo; adotar opinies j consagradas; deliberar e julgar segundo os dados

    oferecidos pela situao e suas regras j estabelecidas.

  • 18

    raciocnio lgico de Parmnides: aquilo que , ; e impossvel que aquilo que , no

    seja.

    No famoso Paradoxo de Aquiles, Zeno nos coloca frente a uma hipottica

    corrida entre o heri grego Aquiles, o dos ps ligeiros, e o mais lento de todos os

    animais: a tartaruga. Nesta corrida, procurando diminuir possveis desvantagens,

    generosamente oferecido tartaruga sair 80 metros frente da linha de largada. Porm,

    quando Aquiles percorre os 80 metros, a tartaruga j teria percorrido 8 metros. No

    intervalo de tempo que Aquiles percorrer esta distncia, a tartaruga teria andado mais

    outra, e assim por diante.

    Ou seja, sendo o espao divisvel, haver sempre a metade da metade da metade,

    e assim por diante, da distncia entre os dois corredores. E mesmo havendo uma linha

    de chegada, a idia de tempo finito e de distncia infinita de pontos se tornar

    incompatvel, pois contraria o pressuposto inicial de que a variao de instantes dever

    ser igual variao de pontos.

    Os mesmos princpios sero demonstrados na aporia do arqueiro e sua flecha,

    provando que jamais o arqueiro atingir seu alvo. Isto por que a flecha, ao voar, ocupa

    um espao idntico a si mesma, ou seja, ela estar sempre em repouso. Mas para atingir

    o alvo ela deveria estar em movimento. Zeno afirma, ento, que a flecha est em

    movimento porque est em repouso; e estando em repouso, ela est tambm em

    movimento, o que mais uma vez contraditrio.

    Seus argumentos procuravam se opor s teses do ser descontnuo e divisvel dos

    pitagricos e ao pensamento de Herclito, para quem todo ser uno porque mltiplo e

    mltiplo porque um. Sua tese, que diz ser impossvel entrar duas vezes no mesmo rio,

    busca a compreenso da vida como um devir eterno.

    Mas, importante ressaltar, Zeno no procurava atravs de raciocnios

    aporticos negar qualquer possibilidade de experincias de movimento, multiplicidade

    ou unidade. Como ressalta a filsofa Marilena Chau (id., pp.100-1),

    O que ele faz outra coisa: submete os dados da percepo e da opinio s exigncias lgicas do pensamento. Usando

    exclusivamente o pensamento e lanando mo exclusivamente

    de raciocnios, ele mostra que a experincia do movimento e a

    multiplicidade so irracionais, isto , contraditrias e absurdas. (...) somente com os eleatas a filosofia chega compreenso de

    que o pensamento no s difere da experincia sensorial, mas

    possui leis prprias de operao e tem o poder para refutar o

    testemunho dos sentidos.

  • 19

    Para defender, portanto, o pensamento de Parmnides e seus princpios de

    identidade o que , e o princpio de no-contradio o que , , o seu contrrio,

    no , Zeno utilizava a lgica para explicitar tambm as contradies entre

    pensamento e os sentidos. Atravs da lgica demonstrava como o pensamento lgico

    era insuficiente para compreender as experincias vividas. E se atravs da lgica elas

    eram contraditrias, ento eram falsas. Para Aristteles, atravs de Zeno que surge

    tambm a dialtica (dialektik), o confronto de duas idias opostas onde apenas uma

    verdadeira.

    Segundo o filsofo francs Michel Serres (1990, p.103), Zeno teria recebido o

    apelido de Anfoteroglosso, alcunha cujo sentido o acusa de ter uma lngua bastante

    solta e bfida, como a das vboras. Para Serres, o mtodo dialtico divide sempre em

    dois segmentos at o infinito, levando no s abstrao, mas cria uma confuso

    construda a partir de contradies, demonstraes e redues ao absurdo. Para ilustrar

    melhor sua astcia, Serres traz o seguinte dilogo, relatado por Herclito, entre Zeno e

    seu rei:

    Revela o nome dos teus cmplices, ordena o rei. Os teus guardas, responde Zeno, os teus amigos e a tua corte. (...) Mas, de sbito, Zeno de Elia declara que tem revelaes

    confidenciais que no pode nem deve fazer seno em voz muito

    baixa e junto de quem de direito. Solto, aproxima-se do tirano, o

    nico habilitado para o escutar, enquanto a sua boca se

    aproxima do ouvido: no, ele no fala, mas ataca e morde. Com

    os queixos apertados, como sanguessuga, vampiro, carraa, o

    inventor da dialtica s largou a presa depois de morto. (ibid.)

    Interessante notar que com a lgica de Parmnides formulada a Via da

    Verdade (altheia), que atravs da dialtica ir invalidar o pensamento contraditrio,

    por sua vez, a Via da Opinio (doxa). Mas, para que esse pensamento se sustente, surge

    Zeno e logo aps a aporia, ou o paradoxo. Ou seja, para caminhar sem maiores

    atropelos, a lgica ter que andar amparada na sua busca de compreenso do ser:

    necessariamente de mos dadas com a contradio e o paradoxo. Sem uma contradio

    no h a dialtica e, portanto, no ser eliminada a opinio falsa e escolhida a

    verdadeira. E para sustentar essa verdade, perguntas ficariam sem respostas: as aporias.

    A filosofia grega surge, portanto, da ligao e oposio entre altheia e doxa,

    com fases muito distintas. Na fase inicial os filsofos falavam como adivinhos, poetas e

    polticos. Com Pitgoras e Parmnides a doxa afastada, voltando apenas mais tarde

  • 20

    com os sofistas2, palavra utilizada para se referir aos grandes poetas antigos, os

    primeiros educadores da Grcia. Finalmente, com Scrates e Plato, haver um esforo

    gigantesco (Chau, 2002, p.44) para colocar a altheia no lugar da doxa. O discurso

    filosfico, enquanto exerccio do pensamento e da linguagem, se utilizar da

    contemplao desinteressada (theora), refutando mais uma vez os sentidos para se

    chegar razo, cincia.

    Este esforo socrtico e platnico nos mostra duas questes epistemolgicas. A

    primeira se refere questo da diferena: tudo aquilo que de incio se colocava

    diferente, aos poucos se viu como lados contrrios de uma mesma unidade. Logo

    depois, como opostos irreconciliveis e, ento, como oponentes. A segunda questo nos

    remete ao empirismo, j que a teoria contemplativa das cincias no criar nem

    inventar seus objetos. A Cincia passa a estar sempre encarregada de descobrir algo

    que, a priori, j estava l na Natureza.

    1.2. Contradio e opinio: a cincia de coisa alguma

    Dialgein significa desenvolver de forma completa um discurso. Este talvez seja

    o sentido mais freqentemente atribudo a esta palavra. Mas este apenas um

    significado possvel. A gnese dessa apalavra formada pelas palavras di e pelo verbo

    lgein. Ambos riqussimos de significados. Di assume valores espao-temporais (entre,

    durante, atravs), modais (com) e de diviso, separao, contraste ou oposio. Lgein

    pode assumir a conotao de declarar, sentenciar, selecionar, optar; ou diviso,

    separao; assim como raciocinar, dialogar ou conversar com.

    Marilena Chau (2002, p.238) aponta a dialtica como o exerccio no violento

    da linguagem. Porm, citando o helenista I.M. Crombie, a filsofa lembra que a

    dialtica uma derivao de um verbo na voz mdia, dialegmai. A voz mdia, situada

    entre a voz passiva e a voz ativa, seria como o verbo reflexivo da lngua portuguesa, na

    qual o agente sofre o efeito da ao. Assim, na voz mdia, a palavra dialtica significa

    entreter-se com algum, argumentar com algum no sentido de tambm ser afetado pela

    fala. Podemos observar aqui a relao com o sentido comum da palavra dialtica,

    apontando para o discurso. Todavia, esse verbo tambm era freqentemente empregado

    2 Como observa Chau (id.), a palavra sofista se origina dos sinnimos sophists e sophs. Inicialmente os

    gregos utilizavam a palavra sophists para indicar o ensino e a arte de saber, e sophs como um perito em

    seu ofcio, um conhecimento tcnico que se ope ao saber terico ou contemplativo. Somente mais tarde,

    nas disputas com Plato, que passa a ter o sentido pejorativo de mentiroso e charlato.

  • 21

    na voz ativa. E na voz ativa esse verbo se diz dialgo e significa escolher, classificar,

    discriminar (id., p.238). Para dar respostas a uma boa pergunta, a dialtica aqui assume

    um sentido muito mais prximo de um julgamento que um dilogo. A est, novamente,

    o sentido e a medida do vigor dialtico: a capacidade de refutar o adversrio. E como

    explica Chau (id., p.239), Plato aprendeu com Scrates a empregar as duas vozes do

    verbo e esse emprego propriamente a dialtica platnica.

    A multiplicidade e ambigidade de sentidos fazem com que a dialtica seja

    compreendida por alguns como uma cincia, por outros como arte do debate. Mas, sem

    dvida, foi o instrumento que se ops aos Duplos Dizeres (antilogias) relativistas dos

    sofistas, que empregavam a mesma fora a duas opinies contrrias. Para a dialtica

    platnica isso era inadmissvel: visto que essa contrariedade prpria da opinio, esta

    no pode ser cincia de coisa alguma. (id., p.244).

    A dialtica, portanto, evidencia a contradio, a negatividade do Homem e do

    mundo ao seu redor. Ou seja, todas as coisas encerram em si mesmas uma oposio dual

    forte ou fraco; bonito ou feio; 0 ou 1. Dessa oposio se tem a diferena e com ela o

    conhecimento. No se pode negar aqui o vasto campo das descobertas e criaes feitas a

    partir deste instrumento. Porm, um conhecimento que utiliza um mtodo dicotmico,

    que separa para chegar ao uno, ao verdadeiro. Tomando como metfora o Mito da

    Caverna de Plato, temos a dialtica ascendente como a construo a partir da

    escurido. E a descendente como a tarefa de quem retorna caverna depois de ter

    contemplado a verdade. Ou seja, respectivamente, das idias contraditrias essncia e

    da verdade aos fragmentos desconexos. Seja ascendente ou descendente, ser atravs de

    Plato que se inaugura no pensamento ocidental a idia de Razo. Uma Razo

    determinada e com limites impostos apreenso da idia.

    Como explica Chau,

    a cada diviso (dicotomia) o que estava sob a idia do Indeterminado torna-se mais determinado ou delimitado,

    ficando sob a idia do Limite, at que se consiga a

    determinao completa do objeto, isto , a essncia ou a

    definio verdadeira da coisa procurada, que, sendo sempre

    uma idia complexa, coloca-se sob a idia do Misto. Por isso a

    essncia a que se chega uma idia boa, bela, justa e

    verdadeira na qual se est unindo o que a pstis [f, crena] e a doxa costumavam separar e est separado o que elas costumam

    juntar (id., p.280).

    Ou seja, operando por um processo criado por Plato, conhecido como

    dicotomia (dikhotomia), purifica-se e se separa tudo o que era contraditrio e

  • 22

    heterogneo, mas que estava unido. Contemplando os termos que restam conservados,

    tem-se o uno, a definio verdadeira, que servir de regra e critrio para separar outros

    opostos e unir semelhantes.

    Muito alm de estabelecer a diferenciao entre prs e contras, sim e no, a

    dialtica passa a criar uma relao entre os princpios de razo e juzo, bem como suas

    leis de direito. Como define Serres (1990) de maneira categrica, ela passa a ser

    a arte de se impor atravs do dilogo ou de interrogar o adversrio at o confundir, mtodo que sem dvida herdou de

    Scrates e de todos aqueles para quem a verdade se define pela

    derrota de outrem, conduta imposta pelo debate judicirio e que

    o conduz fatalmente ao tribunal (p.103).

    Isto , atravs do racionalismo, da logicizao e da moral, na filosofia socrtica

    tomam acento, com um gosto de tdio da boca, a cientifizao e, ao seu lado, o

    otimismo dialtico como evoluo e progresso social.

    1.3. A matematizao da vida

    A coerncia do pensamento, o mtodo dialtico e a verdade so proposies que

    se tornaro os princpios elementares do pensamento lgico-matemtico e filosfico.

    Clareza e consistncia, mtodo dedutivo e axiomas (aceitar sem prova certas

    proposies) so os fundamentos que norteiam, portanto, no s a filosofia e a

    matemtica, mas toda a Cincia. E assim como o que resta conservado aps a

    purificao dialtica servir como regra futura, na matemtica, dos axiomas sero

    derivados teoremas e postulados, a superestrutura lgica.

    Interessante notar como um nmero extremamente pequeno de axiomas

    formulou e sustentou numerosas proposies a partir de dedues. Durante mais de dois

    mil anos a geometria era admirada por sua forma axiomtica, sendo reconhecida como o

    modelo cientfico no que ele tinha de melhor. Essa renomada base axiomtica se inicia

    com os gregos, com a geometria euclidiana.

    Euclides de Alexandria (360-295 a.C.) foi o grande sistematizador da

    matemtica grega. Pai da geometria plana, em trs dimenses, apresentou o axioma das

    retas paralelas que mesmo no infinito jamais se tocariam. Dessa premissa tomada como

    verdadeira foi possvel postular importantes teoremas. Porm, a matemtica ortodoxa se

    viu frente a um dilema. Sem questionar a veracidade isto , a auto-evidncia deste

    axioma, seria possvel deduzir uma srie de novos axiomas importantes para a lgebra e

  • 23

    a geometria. Contudo, essa era uma premissa que no fazia sentido, j que os gregos

    intuam que haveria, sim, linhas que se encontravam no infinito. Como se poderia

    resolver, ento, este problema?

    Mais uma vez a lgica parecia contrariar o senso comum. Ao que tudo indicava,

    era muito mais simples e fcil para os matemticos e porque no dizer, para os

    cientistas solucionarem dificlimos problemas a partir de um raciocnio que se iniciava

    com verdades pr-estabelecidas (axiomas), trazendo inclusive brilhantes dedues. Mas

    colocar prova suas premissas isso s no era muito mais complexo, como parecia estar

    no campo da intuio, portanto fora da realidade, da Razo e da Cincia.

    Este caminho, o da metamatemtica3, foi iniciado somente no sculo XIX por

    Gauss, Bolyai, Labachewsky e Riemann, comprovando que haveria uma

    impossibilidade de deduo. Para muitos matemticos (Nagel&Newman, 2003),

    Este resultado foi da mxima importncia intelectual. Em primeiro lugar, chamava ateno da maneira mais impressionante para o fato de que se pode dar uma prova da

    impossibilidade de provar certas proposies dentro de um

    dado sistema (p.19).

    Estes estudos mostraram uma matemtica muito mais abstrata do que se

    imaginava, preocupada apenas com a estrutura de seus enunciados lgicos. Sua deduo

    deveria ter clareza e ser consistente, sem levar em considerao a natureza de seus

    temas. A consistncia parecia bastar em se tratando de modelos finitos. O impasse

    frente a essas contradies surgia nos modelos no-finitos, ou seja, modelos que no

    esto cerrados em hipotticos teoremas que copiam e congelam a vida, na pretenso de

    compreend-la.

    A contradio relacionada aos estudos lgico-matemticos (antinomia) foi ainda

    mais aprofundada nas teorias dos nmeros infinitos, desenvolvida pelo matemtico

    russo por Georg Cantor (1845-1918), atravs da Teoria dos Conjuntos. Seus estudos

    mostraram que mesmo um modelo claro pode ser tambm pouco consistente,

    contrariando mais uma vez as leis mais elementares da lgica. Seus estudos relacionam

    membros (ou sentenas) e classes (ou conjuntos) ao infinito. Isto , um hipottica classe

    que pertence a outra, que pertence a outra, e assim ad infinitum.

    Para ficar mais claro, um exemplo clssico de uma antinomia semntica (para

    sair um pouco do campo da matemtica pura): Esta sentena falsa. Ou seja, esta

    sentena somente ser verdadeira se for falsa. E ser falsa somente se for verdadeira.

    3 Este termo foi pela primeira vez empregado pelo matemtico alemo David Hilbert (1862-1943),

    sugerindo uma linguagem matemtica que versasse sobre a prpria matemtica.

  • 24

    Assim como na frase de Epimnides de Creta: Todos os cretenses so mentirosos.

    Esta frase seria falsa, j que ele tambm de Creta. Ento ele mente e, mentindo, a frase

    verdadeira. Ou no mente e, dizendo a verdade, a frase falsa.

    Seja como for, podemos aqui definir uma caracterstica essencial da antinomia: a

    sentena ou equao somente ser verdadeira se, e somente se, ela for falsa. E vice-

    versa. Diferentemente dos paradoxos de Zeno, onde as contradies mostravam um

    muro intransponvel para a lgica daquela poca, as antinomias apresentam auto-

    contradies que, mesmo assim, possvel se chegar a algum entendimento. A soluo

    da ambigidade se d na referncia a si mesma (sim, se e somente se; ou no, se e

    somente se).

    Porm, quando essa relao de membros e classes se torna ainda mais abstrata

    ou subjetiva ( estudada em sistemas infinitos ou que suas variveis no podem ser

    controladas), a antinomia passa a ser insolvel. Passa a se configurar um paradoxo.

    As propostas de Cantor foram inaugurais para as teorias dos conjuntos. Ser

    neste campo de pesquisas que Cantor tentar compreender a classe de nmeros infinitos,

    ou seja, qual o tamanho ou a continuidade do infinito. Dividindo os nmeros em

    naturais (0, 1, 2, 3...), racionais (que podem ser divididos em nmeros inteiros) e

    irracionais (3,1415926), Cantor conclui que os nmeros reais seriam a soma dos

    nmeros racionais e irracionais. Concluiu tambm que a maioria dos nmeros so

    irracionais (ou transcendentais), perdendo assim sua finitude, sua totalidade. Seguindo

    seu raciocnio, um nmero infinito poderia ser equiparado a uma de suas partes. Caa

    por terra o velho axioma que o todo maior as partes.

    1.4. Russell e Gdel: limites iniludveis para a razo humana

    A teoria dos tipos lgicos, apresentada por Russell em 1901, mostrou novamente

    um impasse na relao entre membros de uma determinada classe e as classes entre si.

    Bertrand Russell (1872-1970) e Alfred North Whitehead (1861-1947) seguem este

    princpio de antinomia nos estudos sobre a relao entre classes e membros na obra

    monumental de 3 volumes Principia Mathematica, de 1910. Esta obra procurava reduzir

    os problemas apresentados pela matemtica em problemas de consistncia da prpria

    lgica formal.

    Russell e Whitehead provaram que as vrias noes empregadas na anlise

    matemtica (lgebra e clculo infinitesimal) so exclusivamente definidas por termos

  • 25

    aritmticos. Mostraram tambm que todas as noes aritmticas so axiomas dedutveis

    de tautologias, isto , uma verdade lgica para todos os mundos possveis (por exemplo,

    A = A). Alm disso, a matemtica no parecia estar muito atenta a possveis regras de

    inferncia no explicitamente formuladas. Todas essas crticas levaram a concluses

    que derrubaram quase 2 mil anos de codificaes e dedues aristotlicas. Para os

    matemticos Ernest Nagel e James R. Newman, Russell e Whitehead confirmaram a

    hiptese de que a lgica tradicional gravemente incompleta e falha mesmo em dar

    conta de muitos princpios de inferncia empregados de maneira muito elementar no

    raciocnio matemtico (Nagel&Newman, 2003, p.41).

    Partindo do epigrama de Russell, que descreve a matemtica pura como o

    asssunto em que no sabemos acerca do que estamos falando e se o que estamos

    dizendo verdadeiro (id., p.21), talvez fique mais fcil compreender por que o

    Principia Mathematica procurou vasculhar a enorme caixa-preta da matemtica. O

    grande legado desses filsofos da cincia mostrar que o enunciado 1 + 1 = 2 apenas,

    e somente apenas, poder ser compreendido como uma equao que parte de axiomas

    fornecidos pela lgica formal. Dedues e frmulas podero nascer deste enunciado

    seguindo regras pr-estabelecidas. um exemplo de enunciado claro e consistente e,

    alm disso, possui um mnimo de inferncias. Com ele possvel se chegar a uma prova

    absoluta. Mas a interpretao do enunciado ficar fatalmente limitada pelas tautologias

    e axiomas dessa mesma lgica formal, caindo sempre em dilemas.

    A teoria dos tipos lgicos, porm, no conseguiu eliminar construes auto-

    contraditrias. Sua contribuio est em explicitar as regras de inferncia que ficavam

    escondidas por detrs de teoremas. Para tanto, Russell props um paradoxo, atravs da

    teoria dos tipos lgicos.

    Em sntese, ele propunha o mundo dividido em classes. Imaginemos que h

    apenas dois tipos de classes diferentes no Universo. Uma classe se chamar normal

    se, e somente se, no contiver a si mesma como membro. E outra, que se chamar no-

    normal se contiver a si mesma como membro da classe. Poderamos imaginar como

    uma classe normal a classe dos psiclogos. Isto por que a prpria classe no um

    psiclogo. E como no-normal todas as coisas pensveis, j que a classe das coisas

    pensveis , em si, pensvel.

    Seja N, por definio, o representante da classe de todas as classes normais,

    pergunto: N uma classe normal? Se o for, dever pertencer a sua classe, o que seria

    impossvel. Ento no-normal, j que por definio a classe que contm a si mesma

    como membro. Mas N da classe dos normais, no poderia ser no-normal. Em

  • 26

    sntese, N normal porque no-normal. Dizer, portanto que N normal ser tanto

    verdadeiro quanto falso.

    Russell mostrava que cada vez que se eleva a relao de membros e classes a um

    nvel superior, exigindo uma abstrao maior, a contradio deixava de ficar to clara.

    O que teremos um paradoxo. Esse paradoxo apresentado por Russell evidenciou as

    armadilhas dos tipos lgicos. O que houve, de fato, foi uma confuso quando se

    relacionaram membros e classes. Pois para Russell (Watzlawick,Beavin&Jackson s/d,

    p.173), tudo o que envolva a totalidade de um conjunto no deve ser parte do

    conjunto. Isto , a pergunta confunde tipos lgicos diferentes. N no poderia ser

    classe e membro ao mesmo tempo. A no ser que tivssemos, por exemplo, N e

    N, distinguindo os nveis. dessa maneira que so feitas distines entre nmero e

    quantidade, palavras e sentidos. Quando no h uma distino clara entre dois tipos

    lgicos, parte-se para uma outra estrutura, a metamatemtica ou a metalinguagem. Um

    outro nvel (ou uma outra classe) surgiria resolvendo assim a antinomia, saindo do

    quadro circular, sempre auto-referente que, por ser contraditrio, invalida as duas

    possibilidades. Ou seja, haveria sempre uma classe hierarquicamente maior que as

    classes pr-estabelecidas.

    Importante ressaltar que paradoxos e antinomias so considerados por muitos

    autores como sinnimos (Nagel&Newman, 2003; Quine, 1976), j que nos dois casos

    temos o princpio de auto-contradio e auto-referncia. Isto , uma frase contradiz a

    outra, que por sua vez se volta contra a primeira e assim por diante. Porm, no caso da

    antinomia, mesmo provocando uma certa confuso, h uma clareza final (se

    verdadeira, ento falsa). J no caso do paradoxo, esclarece W. V. Quine (1976), a

    auto-referncia no oferece clareza alguma, excluindo qualquer possibilidade de

    coerncia. Assim, para Quine, o paradoxo de Zeno hoje, luz de novas leis da fsica

    e da matemtica uma antinomia. Assim como o paradoxo dos Tipos Lgicos de Russell,

    que considerada uma obra muito importante, porm datada quanto aos seus dilemas

    lgicos (Winkin, 1991). Como explica Quine (id., p.12), one mans antinomy can be

    another mans veridical paradox, and one mans veridical paradox can be another

    mans platitude4.

    De qualquer maneira, a pesquisa matemtica e a estrutura da lgica tero

    grandes avanos a partir destas teorias e iro influenciar sobremaneira outros saberes,

    como no caso de um dos alunos de Russell, Ludwig Wittgenstein (1889-1951), o qual

    4 A antinomia para um ser humano pode ser para outro um verdadeiro paradoxo. E um verdadeiro

    paradoxo para um ser humano pode ser para outro uma trivialidade.

  • 27

    aprofunda estes conceitos no campo da linguagem. Outras pesquisas, ligadas a outras

    reas do saber, estaro trazendo perguntas igualmente instigantes. Mecanicistas e

    Vitalistas, dois lados de uma mesma moeda, que, aps Newton, sero influenciados pela

    Relatividade proposta por Einstein. O paradoxo da flecha do tempo e outras perguntas

    sero desafios que a cincia busca novas respostas at hoje.

    O Princpio da Incerteza, proposto por Werner Heisenberg em 1927, enquanto

    um enunciado ligado s estruturas qunticas da matria, ir influenciar mais uma vez o

    campo da filosofia, principalmente atravs de Prigogine e Stengers (Winkin, 1991). Para

    Stengers, a qumica e a fsica formulam boas perguntas a partir de um outro universo

    de linguagens, que supera em certa medida o modelo matemtico proposto por Russell.

    Porm, j em 1931, um jovem matemtico alemo, Kurt Gdel, ento com 25

    anos, publicou um artigo com um ttulo no mnimo provocativo: Uber formal

    unentscheidbare Stze der Principia Mathematica und verwandter Systeme (Sobre as

    Proposies Indecidveis dos Principia Mathematica e Sistemas Correlatos). At hoje

    este pequeno artigo considerado um marco na histria da lgica e da matemtica.

    Gdel foi alm em suas crticas matemtica, Cincia e filosofia feitas por

    Cantor e Russell&Whitehead. Seus estudos so reconhecidos at hoje como

    revolucionrias em sua larga significao filosfica (Nagel&Newman, 2003, p.14).

    Gdel conclui que uma prova absoluta na aritmtica poder ser construda de maneira

    lgica. Porm, ela ser totalmente improvvel. Em seu Teorema da Incompletude,

    Gdel (id., p.82) fundamenta o seguinte enunciado: Se a aritmtica consistente, ela

    incompleta. Isto , a matemtica parte de verdades lgicas tautolgicas e axiomticas

    que so indemonstrveis nos enunciados matemticos. Ou seja, sempre haveria

    limites iniludveis para a razo humana. (id.,p.:87). Neste caso, no s a interpretao

    matemtica fica limitada, mas os prprios fundamentos bsicos da matemtica se

    mostram incompletos.

    Seus estudos mostraram tambm que h inmeros enunciados verdadeiros que

    somente poderiam ser deduzidos de axiomas a partir de regras de inferncia muito bem

    definidas. Ou seja, se com Cantor, Russell e Whitehead havia a possibilidade, atravs da

    aritmtica e da lgica, de criar modelos de tipos lgicos ou nmeros que pudessem levar

    a alguma interpretao, com a Prova de Gdel nem mesmo os nmeros inteiros podem

    ser axiomatizados.

  • 28

    1.5. A Modernidade e o Paradoxo

    Eis em que consiste acima de tudo o destino da nossa poca, com a racionalidade e a intelectualizao que lhes so

    prprias: o desencantamento (Entzauberung) do mundo, isto o

    facto de precisamente os ltimos e mais sublimes valores se

    terem retirado do espao pblico. (Einaudi, 1997, p.195).

    Entretanto, o caminho proposto pela viso platnica e dualstica do mundo

    separando e classificando sujeito-objeto, indivduo-sociedade, razo-emoo, cincia-

    poltica, natureza-cultura ser o caminho seguido pelo Iluminismo (Aufklrung) e pelo

    Positivismo nos sculos XVII e XVIII. Ou seja, h uma busca por mais clareza

    (esclarecimento), ordem, consistncia que, logicamente, possam acelerar o progresso da

    civilizao. O projeto de Modernidade ter o importante papel de realizar cortes

    dicotmicos ainda mais cirrgicos.

    A Modernidade descrita e, para muitos tericos (Einaudi, 1997), fundada por

    Max Weber atravs da obra A tica Protestante e o Esprito do Capitalismo busca

    desenvolver um processo de racionalizao atravs de uma eficincia funcional,

    baseada em leis, que procuram compreender estruturalmente o homem e o mundo. Sua

    especificidade e verdades absolutas so a expresso de uma maturidade capaz de

    enfrentar, com certezas e segurana, o obscurantismo. No h limites para o uso da

    razo, como demonstrou Kant com sua autocrtica que eliminava qualquer passividade

    atravs de um racionalismo crtico transcendental. Assim como a mente isolada e

    distante, defendida por Descartes, nica capaz de respostas absolutas, e no relativas,

    frente ao mundo exterior. O pensamento cartesiano exige um bem julgar atravs da

    razo e de um crebro extirpado do corpo e das emoes. O olhar supremo sentido da

    razo contempla de dentro para fora essa estranha realidade.

    Assim tambm o fez Marx e Hegel. Em Hegel o saber se diferencia da totalidade

    platnica revelado atravs da graa de Deus -, e passa a ser circular. No h um ponto

    essencial ou imutvel. Como afirma Kojve (2002), a filosofia hegeliana torna

    necessria a negao da identidade o no-ser criando um sistema circular que ser a

    nica garantia da totalidade, isto , da verdade absoluta do saber (p.272). A

    Fenomenologia do Esprito proposta por Hegel ter como o objetivo principal, portanto,

    o desvelamento total para se produzir o saber absoluto. O real passa a ser ainda mais

    racional e a dialtica em trs tempos (tese anttese sntese) passa a ser o fio que une

    de um ponto ao outro a cincia, a conscincia, o trabalho com forma de transcendncia.

  • 29

    Assim, a fenomenologia ir descrever o processo de transformao do real em

    certeza, da certeza em verdade. Mesmo combatendo o racionalismo crtico

    transcendental de Kant, considerando sua filosofia servil para com a Natureza, Hegel

    radicaliza a passividade Kantiana trazendo tona o conceito de alienao: o eu

    temporal/histrico que precisa se desconectar, sair, para ser aquilo que . Ou seja, num

    processo dialtico, a alienao hegeliana pressupe a negao da negao para retomar

    a essncia de si.

    Em Hegel, o Esprito a verdadeira essncia do homem, e a verdadeira forma

    desse Esprito seu pensamento, sua lgica especulativa. Sua filosofia da moral estar,

    portanto, atrelada ao Zeigeist (Esprito do tempo), o indivduo vivendo em

    conformidade com os costumes do seu povo, resistindo s crticas e aos ataques

    revolucionrios. Seno, perece: como criminoso ou louco (Kojeve, 2002, p.63). Com

    isso, a subjetividade desconectada da realidade e que no busca a verdade, passa a ser

    tratada como secundria; ou como restos inslitos.

    O principal herdeiro intelectual da construo hegeliana, Karl Marx desloca o

    processo de racionalizao para a transformao social, luta de classes e aos modos de

    produo. Segundo Japiass e Marcondes (1996), em Hegel a dialtica era movimento

    racional que permitia a superao das contradies, j

    Marx faz da dialtica um mtodo. Insiste na necessidade de considerarmos a realidade socioeconmica de determinada

    poca como um todo articulado, atravessado por contradies especficas, entre as quais a luta de classes (p.71).

    A verdade deixa de ser abstrata e passa a se localizar no campo poltico e

    econmico. Mais-valia e troca, mercantilizao, lucros e fetichizaes sero ao mesmo

    tempo as condies de existncia e alienao. O processo hegeliano de superao da

    alienao passa, portanto, a ser teorizado atravs do Materialismo Histrico e pela

    dialtica marxista, objetivando a superao de antagonismos presentes nos meios de

    produo.

    1.6. A crtica Modernidade: Razo versus Razo.

    O filosofo francs Henri Lefebvre (1901-1991), um importante crtico do assim

    chamado mundo moderno, apontava como um trao caracterstico da Modernidade a

    contradio. A linguagem, seu grande apoio no plano da cultura, da arte, passa a ser, ao

  • 30

    mesmo tempo, concreta e abstrata. Tomando Baudelaire como um poeta maldito da

    Modernidade, Lefebvre (1969) o descreve como um poeta que apodera-se da

    dualidade e do dilaceramento (p.203).

    A contradio tambm se expressa pela fragmentao do indivduo, atomizado,

    quebrado, dividido e confuso no meio da multido. Da mesma maneira que se tentava

    compreender as antinomias matemticas atravs da metamatemtica, procurou-se

    resgatar a identidade do homem moderno atravs de uma unidade de sentido, auto-

    referente e circular. Seguindo novamente o olhar de Lefebvre, para chegar a pensar

    em nossa Modernidade, indo mais longe do que a cultura e os sintomas culturais (arte, poesia, linguagem, etc.), h somente

    um mtodo: descobrir as contradies, compreender a

    contradio ou as contradies essenciais. Este mtodo,

    bastante conhecido sob o nome de dialtica, no fcil de ser utilizado. As contradies formam geralmente ns bem

    cerrados, tramas finas. Nos ns, nas tramas, como pegar as

    pontas do fio e segui-las? O que mais freqente, seno sempre, cortar-se os fios (id., p.220).

    O processo teleolgico da Modernidade passa a ser, portanto, um princpio cada

    vez mais ntido, considerando frmulas tais como: todo o real racional, todo racional

    real ou a razo a certeza de ser toda a realidade. Alm disso, assinala importantes

    separaes entre o Antigo e o Moderno, numa ruptura ainda maior na continuidade do

    tempo. Com o avano do capitalismo, as contradies passaram a ser alvos ainda mais

    colossais e, ao mesmo tempo, insolveis. Cidades e sujeitos cada vez mais novos e

    solitrios. Mas, como aponta Lefebvre,

    A impresso de solido no nova. Inquietude e angstia foram ditas vrias vezes e quase recentemente com a maior

    fora pelos romnticos que se apresentaram como modernos no tempo deles. O novo, o verdadeiramente moderno no seria a contradio entre a solido individual e a reunio de

    multides ou de massas nas cidades gigantes, nas empresas

    colossais, nos escritrios gigantescos, nos exrcitos, nos

    partidos? (id., p.221).

    Ou seja, como compreender a rede de relaes que se estabelece na

    Modernidade, com suas comunidades cada vez mais densas e com a possibilidade cada

    vez maior graas ao avano industrial e tecnolgico de ampliar estas relaes? A

    atomizao do sujeito se ope superorganizao dos grandes centros urbanos, num

    exemplo claro de como a oposio dialtica servir ainda como um modelo para o

    entendimento da modernidade. Porm, suas contradies formam tramas cada vez mais

  • 31

    finas e sutis, com as quais a dialtica parecia se mostrar no s difcil de ser empregada,

    como insuficiente.

    1.6.1. A Teoria Crtica

    Procurando refletir sobre as conseqncias do racionalismo no Mundo Moderno,

    surgem importantes questes levantadas pela Teoria Crtica da Escola de Frankfurt.

    Designao criada da dcada de 1950, seu pensamento traz cena, de imediato, as

    figuras de Adorno, Horkheimer, Marcuse e Benjamin, membros da primeira gerao, a

    partir dos quais tomou forma seu programa de investigao interdisciplinar. Resultado

    de um esforo coletivo, no qual foram colocados em questo os limites tradicionais

    entre cada disciplina isoladamente, filsofos, socilogos, economistas, historiadores e

    psiclogos foram convocados a se organizar numa comunidade de trabalho duradoura

    visando dar conta da amplitude das questes suscitadas pelo desenrolar do projeto da

    modernidade ocidental e capitalista.

    Inicialmente reunidos no Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt criado na

    Alemanha em 1923, fechado em 1933 com a ascenso do nazismo, reinstalado nos

    Estados Unidos em meados da dcada de 1930 e restabelecido, com grandes honrarias,

    em Frankfurt, em princpios da dcada de 1950 os membros desta primeira gerao

    mantiveram-se fiis aos seus propsitos. Desenvolveram e decantaram suas idias por

    mais de quatro dcadas, at o fim da dcada de 1970, quando da morte, em 1979 do

    ltimo deles, Herbert Marcuse. Com inspiraes hegelianas e marxistas, defenderam um

    marxismo aberto e crtico, mantiveram-se hostis, quer ao capitalismo quer ao socialismo

    na sua verso sovitica, vendo ambos, nas suas expresses concretas, como projetos

    sociais no emancipadores para os seres humanos. Isto lhes valeu, permanentemente,

    crticas acerbas, quer dos defensores do capitalismo, quer tambm dos setores de

    esquerda, engajados politicamente em tentativas de aes diretas de mudana social,

    que acusaram os frankfurtianos de inrcia poltica diante de um mundo que, segundo

    eles, exigia mais ao e menos reflexo. A esta esquerda militante institucionalizada, os

    representantes da Escola de Frankfurt continuaram respondendo com suas anlises

    crticas contundentes, tentando tornar compreensvel a lgica da sociedade como

    totalidade, com anlises desveladoras da sociedade burguesa e das perspectivas tericas

    que consagravam a sua existncia.

    As violncias nos contextos mundial e local, contextos de fome e tragdia que

    deixam irreconhecveis os sonhos de progresso humano, trazem uma sensao de

    impossibilidade terico-explicativa e, pior, de impotncia na ao vital. Adorno,

  • 32

    Horkheimer, Marcuse, Erich Fromm, Franz Neumann e outros pensadores ligados

    Escola de Frankfurt nos deixaram a possibilidade de um pessimismo crtico: o homem

    o nico animal que pode assumir um projeto de ocupao para o planeta; at agora,

    escolheu o pior deles.

    A Escola de Frankfurt, portanto, estabelece uma crtica modernidade. Mas o

    faz substituindo o conceito de progresso da sociedade capitalista, pelo de catstrofe e

    destruio. Adorno e Horkheimer, importantes membros da Escola de Frankfurt, iro

    constatar que (Lwy, 1992 a razo teria servido civilizao moderna como um

    instrumento que permitiu sua utilizao a servio da barbrie e de regresso social

    (p.123).

    A Escola de Frankfurt segue, portanto, os j conhecidos caminhos, procurando

    reencontrar o sentido da razo atravs da prpria razo: uma razo sensvel em oposio

    razo instrumental, que opera e mantm funcionando as engrenagens da Revoluo

    Industrial e do capitalismo moderno. Isto , uma razo que pudesse abarcar tambm a

    intuio, a emoo e a sensibilidade revelando outras verdades , em oposio razo

    pautada em interesses utilitrios e que vinha dominando a racionalidade (racionalidade

    substantiva) no projeto moderno.

    A dicotomia mais uma vez agravada, como se precisssemos, racionalmente,

    compreender as runas da razo. E quem vem sempre frente a razo, ou seria

    possvel para os frankfurtinos uma sensibilidade racional? Acredito que no. De

    qualquer modo, as runas por essa Escola vislumbradas so as mesmas de Weber: mais

    uma vez, o que se constata a razo sendo a causa do desencantamento do mundo.

    O ponto de toro proposto por Adorno apenas refora suas leis, oferecendo um

    recorte ainda mais preciso entre natureza, poltica e discurso. Atravs da dialtica

    negativa, a Teoria Crtica ope um Eu que reage ao no-Eu, alienado e irracional.

    1.6.2. Popper e a verdade falsevel

    Procurando obter critrios para a compreenso do que era Cincia e, portanto, o

    que eram proposies verdadeiras e falsas, o filsofo Karl Popper (1902-1994)

    prope um outro caminho que no o da dialtica. Sua crtica atingiu em cheio no s a

    Teoria Crtica Adorno e Popper faro debates histricos sobre esses conceitos como

    tambm o positivismo lgico, o marxismo e a psicanlise. Tomando sempre Einstein

    como uma referncia de cientista, para Popper haveria um grande nmero de

    pretendentes ilegtimos para a condio de cincia. E estes eram, antes de tudo, o

    marxismo e a psicanlise (Stengers, 2002). Atravs do princpio de falseabilidade,

  • 33

    Popper afirma que somente poder ser considerada cincia aquela que aceita confrontos,

    que possa ser falsevel. Alm disso, a lgica no seria suficientemente conclusiva,

    apenas provisria. Comentando as proposies de Popper, Stengers (id.,p.39) explica

    que, ao passo que nenhum acmulo de fatos, seja qual for, basta para confirmar uma

    proposio universal, um nico fato basta para refutar (falsear) tal proposio.

    Um de seus mais importantes pontos de partida a no aceitao de igualdade

    entre as proposies no-cientficas e as proposies destitudas de sentido. Imre

    Lakatos (1922-1974) e Paul Feyerabend (1924-1994), renomados discpulos de Popper,

    daro continuidade investigativa em torno do racionalismo lgico no mbito das

    cincias. Enquanto Lakatos buscava uma espcie de reconstruo racional dos critrios

    acerca de uma possvel metodologia cientfica, Feyerabend destri qualquer

    possibilidade de crena na objetividade e na razo. Seja como for, Popper abrir novas e

    originais perspectivas para se pensar e repensar a contemporaneidade, onde as

    constataes possam andar lado a lado com as intuies e as emoes. E, acima de tudo,

    influenciar autores que no estaro mais obsessivamente preocupados nas demarcaes

    racionais e metodolgicas para se pensar e fazer! cincia.

  • 34

    CAPTULO II

    A CINCIA NO PROVA NADA

    La ciencia a veces mejora las hiptesis y otras veces las refuta, pero probarlas es otra cuestin, y esto tal vez no se

    produzca jams salvo en el reino de la tautologa totalmente

    abstracta.5 (Bateson, 2002, p.37)

    Como conhecer e, mais ainda, como se d o conhecimento do que o indivduo

    e o coletivo na sociedade ps Contracultura da dcada de sessenta, ps Muro de Berlim

    que trouxe a queda de tantos outros muros em 1989, mas que ainda vive a

    construo de outros muros? Terrorismos e globalizaes, biopoder e de sociedade de

    controle, chips e silicones esto na ordem dia. Uma Cincia preocupada com a

    consistncia e clareza na busca por verdades absolutas, promovendo dicotomias que

    expurgam contradies, fica catatnica frente a essas novas questes.

    A filosofia francesa contempornea, por exemplo, tem optado por um outro

    caminho, problematizando cada vez mais os instrumentos fornecidos pela razo

    ocidental, como Verdade, Identidade e Dialtica. No entanto, a caixa de ferramentas

    que dispomos para se abrir a caixa preta da Cincia parece muitas vezes estar

    obsoleta. Nesse sentido, Deleuze (in Foucault, 1979) sugere que:

    Uma teoria como uma caixa de ferramentas. (...) preciso que sirva, preciso que funcione. E no para si mesma. Se no

    h pessoas para utiliz-la, a comear pelo prprio terico que

    deixa ento de ser terico, que ela no vale nada, ou que o

    momento ainda no chegou. No se refaz uma teoria, fazem-se

    outras; h outras a serem feitas (p.71).

    Entretanto, um outro olhar torna-se possvel quando se questiona a tal caixa de

    ferramentas, colocando perguntas tais como: quais normas devero ser seguidas para

    que se estabelea um conhecimento? possvel estabelecer novos vnculos com os

    objetos de estudo? E mais ainda, se um modelo dogmtico vem sendo seguido, ser que

    a crise do sculo XX poder delimitar novos estudos ou apenas destruir os antigos?

    5 A cincia s vezes melhora as hipteses e outras vezes as refuta, mas provar outra questo. Isto

    talvez no se produza jamais, salvo no reino da tautologia totalmente abstrata. Grifo do autor.

  • 35

    Partindo destes questionamentos, a Cincia ganha novas e instigantes sugestes

    de olhares, porque deixa de ser contemplativa (terica) e tautolgica (dogmtica e

    universalista). Arrisca-se numa aproximao das diferenas. Diferenas que sugerem

    multiplicidades, temporalidades; provocam movimentos que sem divises e teoremas

    podem auxiliar na compreenso do sujeito contemporneo.

    2.1. Pontos de Vida: resultado de encontros

    Deleuze concebe o pensamento como sinestsico, o que significa que a Idia inseparvel do afecto, da sensao da

    diferena que faz nascer o pensar no pensamento e a

    sensibilidade no sentido (Lins, 2004, p.44).

    Esta , por exemplo, a proposta de Gilles Deleuze e Flix Guattari (1995),

    filsofos que desafiaram a imagem de um mundo velho e cansado, onde toda a reflexo

    parte de um Uno que depois se divide em dois. Esta lgica binria e dicotmica no

    corresponderia natureza ou ao mundo: Refletir sobre a natureza seria, para

    Deleuze&Guattari, compreender sua fragmentao catica. Sua no-linearidade se

    expressa atravs da ausncia de uma raiz-piv, que pudesse servir de princpio para as

    novas construes. No h mais um a priori, a partir do qual se inicia um teorema.

    O modelo arborescente da modernidade necessita de uma unidade para ser

    purificada aps a diviso ou para ser tomada enquanto verdade da qual, dedutivamente,

    se chegar a outras verdades. Como explicam esses autores:

    As relaes biunvocas entre crculos sucessivos apenas substituram a lgica binria da dicotomia. A raiz pivotante no compreende a multiplicidade mais que o conseguido pela raiz

    dicotmica. Uma opera no objeto, enquanto a outra opera no

    sujeito. A lgica binria e as relaes biunvocas dominam

    ainda a psicanlise (a rvore do delrio na interpretao

    freudiana de Schreber), a lingstica e o estruturalismo, e at a

    informtica (id., p.13).

    Corpo e alma, indivduo e coletivo e demais categorias passam a compor novas

    dimenses. O homem e o mundo no poderiam mais ser a imagem de uma rvore,

    vertical e fortemente enraizada. Esta imagem se aproxima muito mais do ideal

    Iluminista e cartesiano, de um corpo esquecido que carrega a grande chama da razo.

    Para as novas dimenses e multiplicidades do mundo, surge a imagem do rizoma,

    palavra empregada na botnica para designar a extenso ramificada das ervas-daninhas

  • 36

    ou da grama. Atravs do rizoma, cria-se a possibilidade de compreender no s as

    conexes e organizaes que se estabelecem, como tambm suas rupturas e linhas de

    fuga daquilo que no se completa. No caminhar sem partida nem chegada do nmade,

    nas trilhas heterogneas dos lobos e suas matilhas ou nas gavinhas e suas razes

    mltiplas, a essncia se dissolve na rede. Como afirmam Deleuze e Guattari (id., p.15)

    torna-se necessrio subtrair o nico da multiplicidade a ser constituda; escrever a n-

    1.

    Importante ressaltar que esses autores utilizam a imagem de plat na obra Mil

    Plats, capitalismo e esquizofrenia a partir de uma descrio dos jogos relacionais

    presentes na cultura de Bali, feita pelos antroplogos Margaret Mead e Gregory

    Bateson. Deleuze e Guattari (id., p.33) descrevem um plat como aquele lugar que

    sempre se localiza entre outros pontos geogrficos, evitando toda orientao sobre

    um ponto culminante ou em direo a uma finalidade exterior. Bateson criou esse

    termo para definir melhor essa estranha estabilizao intensiva nas relaes entre

    mes e filhos e entre membros daquela tribo.

    Como veremos com mais profundidade no captulo IV, Bateson em 1942 j

    propunha uma anlise que, de certa maneira, antecipava a idia de uma rede conectada,

    com deslocamentos e estabilizaes provisrias. Era assim que observava a

    comunicao e a gestualidade corporal nas interaes balinesas, que nunca chegavam a

    atingir um ponto culminante. Citando Bateson, o plat evitava, assim, a finalidade ou a

    determinao atravs daquilo que vem de fora, a interao era produzida num plano de

    imanncia segundo seu valor em si (ibid.).

    Apesar de optar por um modelo no determinista, que questiona o papel da

    verdade e da transcendncia, a filosofia deleuziana pressupe uma verdade. Como

    esclarece o filsofo Daniel Lins (2004, p.56), embora esta afirmao, aparentemente,

    parea paradoxal, essa nica verdade mltipla, e se afirma como multiplicidade. Ou

    seja, a verdade estaria nas variaes e deslocamentos, em sublimes ocasies

    intempestivas. A verdade se diz no encontro, transformando pontos de vista em pontos

    de vida. Assim, a cincia passa a operar no intermezzo, no durante, lidando o tempo

    todo com a bricolage de sentidos.

    A relao que a verdade e o poder estabelecem ir se opor coero do discurso

    unitrio, formal e metodolgico que a cincia vm oferecendo, tendo sempre alvos e

    metas a serem cumpridas. Problemas que necessitam de respostas definidas. Esses

    estudos surpreendem e sugerem a possibilidade de experimentao ao invs de

    interpretao. Ou degustaes do pensamento enquanto corpo-pensamento. Paixes,

  • 37

    xtases e interesses sensveis ao invs de desvios da boa natureza, erro ou pensamento

    negativo.

    Porm, a recusa em Deleuze dos modelos cientficos que regem os enunciados

    arborescentes, ou do modelo estruturalista para Foucault, antes de tudo a compreenso

    de que o que est em jogo uma relao de poder. A produo de verdades passa a

    entrar num campo necessariamente poltico, no qual a dialtica no poderia mais dar

    conta das questes intrnsecas deste campo de batalha, j que evita a realidade aleatria

    e dociliza platonicamente a acidez dos contrrios.

    2.2. Adeus Epistemologia

    Porm interessa-me, sobretudo, a qualidade do riso. No quero um riso de troa ou um riso que seja de desprezo, da ironia que identifica sempre e sem risco o mesmo para alm das

    diferenas. Eu gostaria de tornar possvel o riso de humor que

    compreende, aprecia sem esperar a salvao e pode recusar

    sem se deixar aterrorizar. (Stengers, 2002, p.29)

    As contribuies de Foucault, mas principalmente de Deleuze e Guattari

    ganharo novas tonalidades na obra da filsofa francesa Isabelle Stengers, que dar seu

    adeus epistemologia na obra A Inveno das Cincias Modernas (Stengers, 2002,

    p.50), numa aluso ao adeus de Feyerabend Razo.

    Relacionando a conduta cientfica s vantagens que a etiqueta de cientificidade

    nos fornece alm de suas lucrativas linhas de financiamento , Stengers procura

    indagar acerca de como se poderia reinventar a cincia a partir de uma nova base

    epistemolgica, sem tomar o sentido de verdade que, segundo Stengers (id., p.196) vem

    sendo empregado de Plato a Heidegger, de Santo Agostinho a Lacan. Nesta busca,

    Stengers prope um retorno aos sofistas para que tenhamos em nossas prprias mos a

    medida de todas as coisas. Medida assume aqui o sentido de um devir, de uma

    construo que une fatos e fices e no uma legitimao de padres. Prtica, tica e

    esttica, ou seja, poltica e opinio restabelecem o fluxo desafiador de Protgoras, o

    maior inimigo de Plato (Chau, 2002).

    Ao invs de paisagens hierarquizadas, repletas de conquistas e redues (sejam

    estas ao absurdo ou unidade essencial, Stengers (id., p.188) prope uma cincia da

    ordem do acontecimento e no do direito. Os fatos no estariam mais na natureza,

  • 38

    espera da racionalidade de cientistas-juzes. Em seu lugar tomam acento cientistas bem

    humorados que compartilham a paixo por se tornarem capazes de serem afetados por

    todas as coisas, criando sentidos e inventando significados.

    Procurando dar voz aos pesquisadores que investem contra o ideal de uma

    cincia pura(id., p.11) Stengers faz interagir as propostas rizomticas aos estudos de

    pesquisadores reunidos em torno dos Sciences studies, em instituies universitrias da

    Europa, Amrica do Norte e Amrica Latina ou em centros de pesquisas como o Centre

    de Sociologie de L'innovation, European Association for the Study of Science and

    Technology e a 4S - Society for Social Studies of Science.

    Estes estudos recebem tambm a denominao de antropologia das cincias, pela

    abrangncia do seu campo de conhecimento, oferecendo um olhar que possibilita uma

    nova proposta epistemolgica. So pesquisas desenvolvidas numa espcie de Colgio

    Invisvel, com importantes alianas de estudo, assim como no caso dos trabalhos

    desenvolvidos por Stengers em parceria com o russo Ilya Prigogine. Porm, vou me

    deter mais nas alianas feitas com o socilogo francs Bruno Latour e a belga Vinciane

    Despret.

    Latour assim define a rea de conhecimento a que pertence:

    Por falta de opes, nos autodenominamos socilogos, historiadores, economistas, cientistas, polticos, filsofos,

    antroplogos. Mas, a estas disciplinas venerveis,

    acrescentamos sempre o genitivo: das cincias e das tcnicas.

    Sciences studies a palavra inglesa; ou ainda este vocbulo por

    demasiado pesado: Cincias, tcnicas, sociedades Qualquer que seja a etiqueta, a questo sempre a de reatar o n grdio

    atravessando, tantas vezes quantas forem necessrias, o corte

    que separa os conhecimentos exatos e o exerccio do poder,

    digamos a natureza e a cultura (Latour, 1994, p.09).

    Para compreender a proposta epistemolgica oferecida por Latour, torna-se

    imprescindvel dissociar as cincias da Cincia. Esta distino procura tornar clara e

    colocar mais uma vez em cheque de que maneira a Cincia fez calar a poltica e as

    opinies no consagradas, h vinte e cinco sculos, desde que ela buscou as verdades

    sobre o mundo objetivo. Para a Cincia, esta objetividade est fora, na Natureza,

    assim como a mente estaria dentro; embaixo, o social nada mais era que a multido, a

    mixrdia incapaz de lidar com questes cientficas; acima deus, a espiritualidade.

    As cincias, muito mais plurais e sem um saber compartimentado e dividido,

    procuram sempre construir pontes que possam ligar todas essas reas, que na realidade

    opera como um grande arranjo. A Cincia, portanto, se define para Latour (2004)

  • 39

    como a politizao pela epistemologia, a fim de tornar impotente a via pblica

    ordinria, fazendo pesar sobre ela a ameaa de uma natureza indiscutvel (p.26).

    Para Latour, mais do que uma caixa preta de fatos cientficos que ficou

    hermeticamente fechada, quando seguimos as pistas deixadas e os passos dos cientistas

    na produo de verdades da Cincia, nos deparamos com a caixa de Pandora, aludindo

    ao mito grego que narra a histria da bela Pandora, a que possui todos os dons, e sua

    imprudncia em abrir um grande vaso trazido do Olimpo como presente de casamento

    dos deuses: todos os males escapam da caixa (ou do vaso), com a exceo da esperana.

    Utilizando este mito para compreender o mundo atual, Latour (2001) avalia que

    esgotamos os males escapados caixa da desastrada Pandora. Embora a curiosidade irrefrevel que tenha instigado a

    donzela artificial a abrir a caixa, no h motivo para deixarmos

    de investigar o que restou l dentro. A fim de encontrar a

    Esperana, que ficou bem l no fundo da caixa, precisamos de

    um artifcio novo e mais complexo (p.343).

    Discordando de Scrates, para quem s os cientistas poderiam falar de cincia,

    Latour prope seguir os caminhos dos fatos at chegar aos pontos indiscutveis onde a

    Cincia parece seqestrar as cincias.

    2.3. Por uma Epistemologia Poltica

    A crtica de Latour Cincia freqentemente taxada de irracional e relativista

    ao extremo, como se suas teorias no levassem em conta a existncia de uma realidade,

    com fatos e leis indiscutveis, como a lei da gravidade, por exemplo. Ou ainda porque,

    discutindo a objetividade e a racionalidade conceitos to caros Cincia , estivesse

    propondo caminhos desprovidos de qualquer rigor cientfico.

    Talvez a crtica mais ferrenha tenha vindo do professor de fsica na Universidade

    de Nova York, Alan Sokal. Seu artigo, que no passava de uma grande provocao s

    teorias ps-modernas, procurava defender as cincias naturais das ameaas dos

    efeitos perniciosos do jargo obscurantista e do relativismo visceral (Sokal e

    Bricmont, 1998). Dessa forma, Sokal parece ter contribudo belicamente para essa

    verdadeira guerra das cincias, procurando atingir no s conceitos de Latour, como

    tambm de Derrida, Lakan, Lyotard, Bergson, Merleau-Ponty, Deleuze, Guattari,

    Feyerabend e outros pensadores que de alguma maneira questionaram a realidade e a

    verdade descritas pela Cincia.

  • 40

    Frente a essa querela e para definir melhor o que seriam as cincias, Latour

    utiliza a expresso epistemologia poltica6, como forma de estabelecer uma interlocuo

    com o senso comum, a prtica cotidiana. Uma epistemologia dita poltica estaria lidando

    com estas complexas ligaes que foram separadas pela dupla ruptura.

    Como esclarece Latour (2004):

    Tenho o maior respeito por epistemlogos, meus colegas que se esforam por compreender, com outras ferramentas que no

    as minhas, o segredo das prticas cientficas. Eu respeito

    igualmente estes epistemlogos polticos que concordam em

    tratar como um mesmo problema de filosofia a teoria das

    cincias e a politologia. Por outro lado no tenho o menor

    respeito por aqueles que pretendem que o problema do conhecimento seja distinguido da questo poltica, a fim de manter sob controle o frenesi do mundo social. Contra estes

    epistemlogos necessrio lutar (p.31).

    Assim como o fez Stengers que d seu adeus epistemologia procurando criar

    novas bases para as cincias , Latour aposta em uma epistemologia poltica frente

    polcia epistemolgica, disposta a sempre anular o conhecimento ordinrio. A

    concluso a que chega Latour que a Cincia no seqestrou as cincias. Havia uma

    outra maneira, muito mais fcil. Ela simplesmente lhe roubou a poltica, calando o

    mundo social atravs de fragmentaes.

    2.4. Abandonando o Mito da Caverna

    Para Latour (2001, 2004), a herana deste imbrglio comea l trs, na filosofia

    grega. Para ele, ser atravs do Mito da Caverna, contada por Plato no Livro Stimo da

    Repblica, que poderemos compreender melhor de que maneira se definiu a relao

    entre Cincia e Sociedade.

    A Carta Stima procurava expor a teoria do conhecimento dividindo os objetos

    do conhecimento em mundo inteligvel e sensvel. Alm disso, colocava de um lado os

    modos intelectuais e racionais, e de outro as crenas, opinies e imaginao. Operando

    atravs da dialtica, as diversas hierarquias e graus de conhecimento sero superadas at

    se chegar episteme, isto , cincia do saber verdadeiro. Como esclarecem Japiass e

    Marcondes (1996),

    6 Latour cria esta expresso procurando distingui-la da epistemologia (poltica) ou policial, que

    continua calando as vozes da multido, e da epistemologia, que no est preocupada com as relaes de poder que se estabelecem no interior das cincias.

  • 41

    O termo grego episteme, que significa cincia, por oposio a doxa

    (opinio) e a techn (arte, habilidade), foi reintroduzido na linguagem

    filosfica por Michael Foucault com um sentido novo, para designar o

    espao historicamente situado onde se reparte o conjunto dos enunciados que se referem a territrios empricos constituindo o objeto de um

    conhecimento positivo (no-cientfico). Fazer a arqueologia dessa episteme

    descobrir as regras de organizao mantidas por tais enunciados (p.84).

    Procurando esclarecer ao jovem Glauco, seu pupilo, de que maneira se chega ao

    conhecimento verdadeiro, Scrates narra o Mito da Caverna, onde seres humanos

    acorrentados vivem na escurido, sem poder sequer ver a si mesmos. H apenas uma

    fresta, por onde passa alguma luz. E dentro da caverna, abaixo de um muro, um fogo

    ilumina seu interior. Com a pequena fresta de luz, imagens de pessoas e coisas do lado

    de fora so projetadas na parede. Assim como a sombra de artefatos internos, feitos

    pelos prisioneiros, era projetada pela luz do fogo. Os prisioneiros julgam, ento, que as

    imagens das pessoas do lado fora ou de seus artefatos so reais. Tomam sombras por

    realidade. Aps geraes, um dos prisioneiros, inconformado, decide sair da caverna,

    quebrando os grilhes e escalando o enorme muro. Chegando ao mundo l fora, ele ter

    que vencer dois desafios: a dor da luz e o espanto com toda a realidade exterior; e a

    disposio de retornar a caverna, habituar-se novamente s trevas e convencer os outros,

    cticos, a abandon-la.

    Como analisa Chau (2002), conhecer a verdade seria, portanto, ver a realidade.

    Todos os nossos sentidos estariam relacionados com o que sentimos. Mas a viso ser o

    supremo instrumento da alma racional e da inteligncia. Sob a analogia da luz, a

    ignorncia e a opinio seriam a cegueira e a escurido, ou seja, sem a viso no haver

    um elo entre o mundo sensvel (o Sol) e o inteligvel (o Bem) e, portanto, no haver

    produo de conhecimento. Alm disso, o artefato que liberta o prisioneiro (o filsofo) e

    que permite a ascenso a graus hierarquicamente mais altos do conhecimento humano

    (o muro) a dialtica.

    Para Latour, somos todos herdeiros dessa alegoria que define claramente as leis

    que regem a relao entre a Cincia e a sociedade a partir de duas rupturas. A prime