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Revista HISTEDBR On-line Artigo Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n.26, p.144 –159, jun. 2007 - ISSN: 1676-2584 144 VELHICE, POLÍTICA E AUTONOMIA: O movimento social do idoso e as políticas da terceira idade no Brasil Marcos Augusto de Castro Peres 1 Centro Universitário UNIARARAS [email protected] RESUMO: Este artigo discute o movimento social do idoso e as políticas públicas da velhice no Brasil, pretendendo mostrar que estes eventos, tidos pela opinião pública como conquistas de cidadania dos idosos, integram, na realidade, um processo de transformação da velhice em mercadoria, fenômeno este que é retratado pela própria idéia de terceira idade. A ausência dos idosos desse movimento, bem como a sua institucionalização nas organizações representativas da velhice, tornam questionável a real validade das atuais políticas da velhice, que não são capazes de proporcionar autonomia aos idosos, fazendo com que muitos aposentados tenham que continuar trabalhando para suprir suas necessidades. Palavras-chave: Velhice, movimentos sociais, políticas públicas, autonomia. OLDNESS, POLICY AND AUTONOMY: The social movement of elders and the third age politics in Brazil ABSTRACT: This paper analyzes the social movement of the elder and the public politics of oldness, showing that this events, considered for the public opinion as conquests of citinzenship to elders, are inserted, in true, a process of transmormation of the oldness in merchandise, a question portraied for the third age idea. The absence of the elders of this movement and its institutionalization in the representative organizationals of the oldness, become questionable the true validity of the current politics of oldness, which they are not capable of provide autonomy the elders, compelling many elders need to continue working to supply their necessities. Key-words: Oldness, social movements, public politics, autonomy. 1 Professor de Sociologia e Antropologia do Centro Universitário UNIARARAS Mestre em Sociologia pela UNICAMP e Doutor em Educação pela USP

Velhice Politica Autonomia

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Discussão acerca da autonomia dessa população e a implantação de políticas públicas que efetivem seus direitos.

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    VELHICE, POLTICA E AUTONOMIA: O movimento social do idoso e as polticas da terceira idade no Brasil

    Marcos Augusto de Castro Peres1 Centro Universitrio UNIARARAS

    [email protected]

    RESUMO: Este artigo discute o movimento social do idoso e as polticas pblicas da velhice no Brasil, pretendendo mostrar que estes eventos, tidos pela opinio pblica como conquistas de cidadania dos idosos, integram, na realidade, um processo de transformao da velhice em mercadoria, fenmeno este que retratado pela prpria idia de terceira idade. A ausncia dos idosos desse movimento, bem como a sua institucionalizao nas organizaes representativas da velhice, tornam questionvel a real validade das atuais polticas da velhice, que no so capazes de proporcionar autonomia aos idosos, fazendo com que muitos aposentados tenham que continuar trabalhando para suprir suas necessidades. Palavras-chave: Velhice, movimentos sociais, polticas pblicas, autonomia.

    OLDNESS, POLICY AND AUTONOMY: The social movement of elders and the third age politics in Brazil

    ABSTRACT: This paper analyzes the social movement of the elder and the public politics of oldness, showing that this events, considered for the public opinion as conquests of citinzenship to elders, are inserted, in true, a process of transmormation of the oldness in merchandise, a question portraied for the third age idea. The absence of the elders of this movement and its institutionalization in the representative organizationals of the oldness, become questionable the true validity of the current politics of oldness, which they are not capable of provide autonomy the elders, compelling many elders need to continue working to supply their necessities. Key-words: Oldness, social movements, public politics, autonomy.

    1 Professor de Sociologia e Antropologia do Centro Universitrio UNIARARAS

    Mestre em Sociologia pela UNICAMP e Doutor em Educao pela USP

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    I. Introduo

    Este trabalho visa analisar o movimento social do idoso no Brasil e as recentes polticas pblicas e leis dele resultantes (a Poltica Nacional do Idoso e o Estatuto do Idoso), sob uma perspectiva crtica, considerando a ausncia dos idosos nessas reivindicaes e o papel das organizaes representativas da velhice (SESC, SBGG, ANG e COBAP)2 enquanto as principais protagonistas. Levando em conta que tal movimento insere-se num contexto scio-poltico-demogrfico de transformao da velhice em questo social, pretendemos compreend-lo como um fenmeno anlogo s chamadas redes de movimentos sociais, nas quais observamos um processo de institucionalizao ou terceirizao das aes coletivas, coerente lgica neoliberal de controle das massas e de privatizao dos direitos sociais.

    Nesta perspectiva, o movimento social do idoso sem a presena do idoso na linha de frente , bem como as polticas pblicas dele resultantes, podem ser entendidos como estratgias para controlar um grupo social que cresce rapidamente em virtude do envelhecimento populacional e que, por isso, passa a ser interessante do ponto de vista poltico-eleitoral e mercadolgico. Isso problematiza a idia de representatividade institucional na medida em que no so contempladas, nestas polticas e aes, demandas primordiais dos idosos, como a elevao do poder de compra da aposentadoria, por exemplo, fazendo com que estes tenham que continuar trabalhando mesmo depois de aposentados para suprir suas necessidades, no podendo desfrutar de tempo livre que poderia ser destinado reflexo e participao poltica.

    II. Objetivos gerais e especficos

    Esse trabalho tem como objetivo geral analisar a relao entre velhice e autonomia, tendo como base o movimento social do idoso protagonizado pelas organizaes representativas da velhice no Brasil e as polticas pblicas dele derivadas, que, por no mexerem eficazmente na questo da aposentadoria, s fazem perpetuar a alienao poltica e a sujeio ao trabalho das classes menos favorecidas, mantendo a diviso entre os que podem e os que no podem desfrutar de um tempo livre para a reflexo e participao poltica. Assim, a autonomia dos idosos, preconizada pelas polticas pblicas da velhice, acaba sendo uma autonomia relativa, atrelada condio de classe.

    Portanto, de forma mais detalhada e especfica, os nossos objetivos so: (1) analisar o suposto movimento social do idoso, protagonizado por algumas organizaes representativas da velhice no Brasil, principalmente o SESC, a SBGG, a ANG e a COBAP, e as recentes polticas pblicas e leis de ateno velhice dele resultantes: a PNI e o Estatuto do Idoso, numa perspectiva crtica, procurando situ-los dentro do contexto de surgimento da velhice como questo social, que, sendo um fenmeno scio-poltico-demogrfico, se d principalmente merc da ao dos prprios idosos; (2) sob a perspectiva da no-participao dos idosos desse movimento social, caracteriz-lo como uma rede de movimentos sociais, de dimenses supranacionais, no sentido dado por Scherer-Warrer (2001) e Gohn (2000), onde se tem observado um processo de institucionalizao e terceirizao das aes coletivas, que coerente lgica neoliberal de

    2 SESC Servio Social do Comrcio; SBGG Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia;

    ANG Associao Nacional de Gerontologia; COBAP Confederao Brasileira de Aposentados e Pensionistas.

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    reestruturao produtiva do capital, de globalizao econmica e de privatizao dos direitos sociais conforme a interpretao de Montao (2003) e dentro da qual pode ser situado o fenmeno de mercantilizao da velhice presente na idia de terceira idade; (3) mostrar que a excluso do idoso desse movimento reivindicatrio por polticas pblicas coloca em xeque a questo da representatividade institucional medida que no so contempladas necessidades primordiais desse grupo social, como a elevao do poder de compra da aposentadoria, por exemplo, da qual se eximem tanto a PNI quanto o Estatuto do Idoso; e (4) por fim, analisar o trabalho no ps-aposentadoria como um cerceamento da autonomia dos idosos, que os impede de desfrutar do tempo livre depois de uma vida toda explorada pelo trabalho alienado. Tempo esse que poderia ser destinado reflexo e participao poltica, enfim, efetiva prtica da autonomia.

    III. Aspectos metodolgicos

    No desenvolvimento da pesquisa utilizamos trs tipos de fontes para a obteno de dados/informaes: 1) pesquisa bibliogrfica, 2) anlise documental e 3) entrevistas. Pretendemos tratar do tema proposto tendo como principal ponto de partida o suposto movimento social do idoso no Brasil, e as polticas pblicas dele resultantes: PNI e Estatuto do Idoso, procurando levar em conta a ao das organizaes representativas da velhice consideradas na anlise: SESC, SBGG, ANG e COBAP, que figuram entre as principais protagonistas desse movimento no Brasil, conforme mostra Belo (2002), e que tiveram papel decisivo na transformao da velhice em questo social. A principal problemtica considerada foi a no-participao do idoso desse movimento, fato que identificado claramente pela pesquisa de Santos (1998), e que coloca em cheque tanto a integridade da ao das organizaes representativas da velhice, quanto a idia de representatividade institucional, alm de lanar dvidas sobre a eficincia das recentes polticas pblicas voltadas ao idoso, que no atendem necessidades bsicas como a elevao da renda da aposentadoria, um direito social do trabalhador, causando o fenmeno do trabalho no ps-aposentadoria.

    Procuramos, assim, estudar a problemtica inicialmente com levantamento bibliogrfico acerca de temas fundamentais, como: a construo social da velhice, velhice e capitalismo, a idia de terceira idade, o envelhecimento populacional, os antigos e novos movimentos sociais, o debate sobre a centralidade do trabalho, o terceiro setor e a institucionalizao/terceirizao das aes coletivas, o neoliberalismo, a globalizao, a reestruturao produtiva, a democracia representativa, as polticas sociais, a aposentadoria e o trabalho dos idosos enquanto prtica de resistncia e subjetividade.

    A anlise documental privilegiou a consulta de documentos pertinentes: 1) ao das organizaes representativas da velhice na demanda por polticas pblicas; 2) obteno de privilgios e interesses particulares/corporativos por parte dessas organizaes; 3) excluso dos idosos do movimento social que afirma lutar pela cidadania, autonomia e integrao desse grupo social; 4) s estratgias de controle e tutela exercidas pelas organizaes representativas da velhice frente a um dos segmentos da populao que mais cresce na atualidade em virtude do envelhecimento populacional no Brasil; 5) s aes dessas organizaes referentes aposentadoria e Previdncia Social, exatamente a parte mais falha e tmida tanto na PNI quanto no Estatuto do Idoso, polticas que afirmam ter por objetivo, contraditoriamente, promover a autonomia do idoso. Pretendemos analisar diversos tipos de documentos, tais como: regimento interno das organizaes, seus planos de ao e programas relacionados s polticas pblicas, leis e artigos componentes da PNI e do Estatuto do Idoso, ou a eles relacionados, manifestaes, memorandos, circulares referentes ao Frum Regional da PNI no Rio de Janeiro,

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    organizado pela ANG. O nosso lcus de investigao foi: as prprias organizaes, os eventos por elas promovidos e o Conselho Nacional dos Direitos do Idoso.3

    Nas entrevistas, coletamos os discursos: 1) dos membros estratgicos das organizaes representativas da velhice (mnimo de um por organizao), referentes s aes em prol da cidadania e integrao dos idosos, que constam da PNI, focando essencialmente a questo da autonomia.4 Assim, ao debatermos sobre a aposentadoria, buscamos identificar as oposies de sentido e contradies presentes nos discursos dos entrevistados, seguindo o caminho apontado por Schein (1992) relativo anlise dos pressupostos inconscientes5; 2) dos aposentados que podem participar dos fruns de debate promovidos pelas organizaes representativas da velhice (em mdia quatro); 3) dos aposentados que ainda desenvolvem trabalho remunerado (em mdia quatro), questionando-os acerca da necessidade de trabalhar em virtude da precariedade dos benefcios previdencirios pagos pelo Estado, bem como acerca das polticas pblicas de ateno velhice, enfocando a questo da aposentadoria. Procuramos identificar na fala desses idosos as prticas de subjetividade, resistncia e autonomia real no sentido apontado por Guattari (1987) verificadas no plano da conscincia, ou seja, na crtica feita por eles ao Estado6, burocracia das organizaes representativas da velhice e lgica de excluso que permeia a sociedade capitalista, que no garante autonomia aos trabalhadores aps a aposentaria.7

    IV. O cenrio scio-poltico e as novas perspectivas da velhice no Brasil

    A aposentadoria e o surgimento da terceira idade

    3 Tal conselho responsvel pela fiscalizao e acompanhamento da PNI em mbito nacional, sendo

    composto por membros do corpo tcnico do Estado e dos ministrios e por integrantes das organizaes representativas da velhice. Cf. Santos (1998).

    4 Dita o Art. 1o da Lei 8.842/94: A PNI tem por objetivo assegurar os direitos sociais do idoso,

    criando condies para promover sua autonomia, integrao e participao efetiva na sociedade. Grifos meus.

    5 Schein (1992) divide a cultura de uma organizao em trs nveis: os artefatos visveis (facilmente

    observveis porque mais aparentes), os valores compartilhados (s obtidos por meio de anlise documental e da observao das polticas institucionais) e os pressupostos inconscientes (de mais difcil observao, porque mais profundos, s obtidos por meio de entrevistas com membros-chave da organizao).

    6 interessante notar como esto presentes no discurso de aposentados que ainda

    trabalham uma postura crtica frente idia do Estado democrtico como representante dos interesses do povo, principalmente em virtude da precariedade das polticas e direitos sociais, conforme mostra a pesquisa de Witczak (2003).

    7 A palavra aposentadoria, tanto em ingls (retired) quanto em francs (retraite), significa retirar-se,

    ou seja, diz respeito ao direito do trabalhador de desfrutar do tempo livre aps uma vida toda dedicada ao trabalho. Direito esse que dever do Estado garantir. Cf. Ramos (2001).

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    interessante notarmos que, com o aumento do nmero de aposentados decorrente do envelhecimento populacional, principalmente a partir da dcada de 1980, o Estado, as classes empresariais e a comunidade cientfica comeariam a dar maior ateno questo da velhice, a nvel mundial. O Estado passa a querer se livrar do nus referente ao crescente aumento de benefcios previdencirios a serem pagos aos trabalhadores8 e, ao mesmo tempo, controlar um contingente eleitoral cada vez mais expressivo (RAMOS, 2001). Os empresrios estariam atentos ao novo filo de mercado consumidor que se projetava, cujos integrantes conciliavam tempo livre e renda para o consumo (DEBERT & SIMES, 1998). Os especialistas em gerontologia/geriatria, por sua vez, procurariam delimitar e legitimar o seu campo de atuao na sociedade (LOPES, 2000).

    Sabe-se que os direitos sociais e trabalhistas, dentre os quais a aposentadoria, foram sendo incorporados ao Estado em virtude das presses exercidas pelos movimentos de trabalhadores. Isso fez com que o Estado aumentasse de tamanho, necessitando trazer para si funes destinadas ao bem-estar da sociedade. Com a ofensiva neoliberal verifica-se um processo de desmonte desse Estado social. A reestruturao produtiva, a automao, a flexibilizao dos direitos trabalhistas e o desemprego estrutural serviriam para desmobilizar e enfraquecer os movimentos operrio e sindical de pocas anteriores, deixando livre o caminho para o Estado se desresponsabilizar dos custos com o social. Dessa forma, os direitos sociais passam a ser privatizados. Desenvolve-se um mercado de planos privados de sade e de previdncia, assim como proliferam as escolas particulares, as empresas de turismo e lazer e a prpria assistncia social passa a ser privatizada, surgindo as organizaes no-governamentais (ONGs) para desempenharem essa funo (MONTAO, 2003).

    Ademais, o aumento do nmero de idosos seria tambm do interesse do Estado democrtico medida que estes passam a significar uma considervel massa de eleitores. Talvez isso explique porque a Constituio de 1988 no Brasil dedicou uma ateno especial velhice, tratando-a como direito humano fundamental e incluindo, pela primeira vez numa constituio brasileira, leis referentes assistncia social e previdncia social, alm de proibir qualquer forma de discriminao baseada na idade. (RAMOS, 2001). interessante notar, como destaca Ramos (2001), que a velhice j havia se tornado, quando da promulgao da Constituio de 1988: temtica a merecer aes responsveis direcionadas a assegurar os direitos fundamentais das pessoas pertencentes a essa faixa etria (213).

    Coerente aos propsitos privatistas do Estado neoliberal, conforme mostram Debert & Simes (1998), forma-se um mercado voltado para a velhice, onde observamos o surgimento de inmeras empresas de previdncia privada (ligadas aos bancos), de sade, reabilitao ou rejuvenescimento, de lazer/turismo e de educao (universidades da terceira idade), todas elas especializadas em servios destinados aos idosos aposentados, principalmente queles de maior poder aquisitivo, que alm de disporem de maior tempo livre, tinham maior potencial de consumo que os idosos de classe baixa. Bobbio (1997) ilustra essa situao da seguinte forma: Em uma sociedade de consumo onde tudo pode

    8 O Estado tambm visa se livrar dos custos relativos principalmente sade do idoso, que

    geralmente necessita de tratamentos mais caros e prolongados, dada a sua maior vulnerabilidade fsica. Cf. Haddad (1986).

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    ser comprado e vendido, onde tudo tem um preo, tambm a velhice pode se transformar em uma mercadoria (p. 25).

    neste contexto que surgem a geriatria e a gerontologia como especialidades cientficas, delimitando como objeto de estudo a velhice e o envelhecimento. De acordo com Lopes (2000): O ano de 19829 pode ser considerado o marco internacional da legitimao da gerontologia como campo de saber multidisciplinar autorizado a tratar das questes do envelhecimento (p. 39). Os especialistas em gerontologia e geriatria passariam, assim, a ser os agentes sociais encarregados do gerenciamento da velhice, detendo o monoplio da autoridade cientfica sobre as questes referentes ao processo de envelhecimento, bem como o poder social (e poltico) de opinar, conduzir e interferir em tais questes (LOPES, 2000).

    Tanto a ateno do Estado referente ao envelhecimento da populao, quanto o surgimento de um mercado da velhice e da geriatria/gerontologia como especialidades cientficas contribuiriam ativamente para a inveno do termo conhecido como terceira idade. Originria na Frana, na dcada de 1970, essa expresso surge a partir da criao das Universidades da Terceira Idade (Universits du Troisime Age), sendo incorporada posteriormente pelo vocabulrio anglo-saxo, com a criao das Universities of the Third Age em Cambridge, na Inglaterra, em 1981 (LASLETT, 1987). O termo universalizou-se rapidamente nos pases que apresentavam um relativo envelhecimento da sua populao, tendo o Servio Social do Comrcio (SESC) papel primordial na popularizao da expresso terceira idade no Brasil, atravs da implantao, no incio da dcada de 1980, das primeiras Universidades Abertas Terceira Idade (CACHIONI, 1999).

    Contudo, a criao das Universidades Abertas Terceira Idade (UNATI) no Brasil carrega um grande paradoxo quando consideramos o alto ndice de analfabetismo entre os idosos no pas. Segundo dados do IBGE do Censo 2000, 34,6% do total dos brasileiros (homens e mulheres) com 60 anos ou mais so analfabetos. Tal fato refora o carter elitista das UNATI, bem como o forte rano burgus presente na idia de terceira idade. Com isso, cabe lanar a seguinte questo: qual a validade de se investir na criao de universidades para idosos num pas que necessita urgentemente de polticas de educao fundamental para todas as faixas etrias?

    Parece que a prpria origem da expresso terceira idade, ligada criao das UNATI , reflete o carter paliativo inerente a determinadas polticas pblicas, que ao invs de estarem direcionadas soluo efetiva dos problemas sociais, em seus aspectos mais emergenciais, restringem-se a medidas superficiais, que muitas vezes no suprem as reais necessidades dos destinatrios das polticas sociais, pois estes raramente participam do professo de formulao dessas polticas. So as organizaes representativas dos diversos grupos sociais, em conjunto com nossos representantes polticos dos poderes Legislativo e Executivo, nas esferas federal, estadual e municipal, que de fato elaboram as polticas sociais, muitas vezes merc das demandas efetivas da sociedade (VIEIRA, 1987).

    Da mesma forma, observa-se que o surgimento do termo terceira idade no ocorreu em virtude da iniciativa dos prprios idosos de criarem para si uma denominao nova e menos pejorativa do que a de velho, mas envolveu uma multiplicidade de agentes cuja funo especfica era tratar da velhice, fazendo com que essa adquirisse uma visibilidade social cada vez maior (DEBERT, 1997). Isso nos leva a crer que o fato de a velhice estar se transformando hoje em questo social, em diversos pases do mundo e no Brasil, no decorre somente do aumento do nmero de idosos e da condio de marginalidade ou excluso social vivida por muitos deles, mas tambm e principalmente da mercantilizao da velhice presente na idia de terceira idade.

    9 A ONU recomendou que os pases-membros considerassem o ano de 1982 como o Ano Nacional

    do Idoso. Cf. Lopes (2000).

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    Um movimento social do idoso... sem o idoso?

    Ao considerarmos os trs elementos principais que levaram a velhice a ganhar visibilidade pblica e a emergir enquanto uma questo social relevante na sociedade contempornea em sntese: o envelhecimento populacional, a excluso social vivida pelos idosos e o surgimento da aposentadoria e dos agentes e instituies especializadas na velhice , necessrio atentar para o fato de que foi principalmente a partir da ao ou presso, no sentido dado por Lnoir (1989) dos atores sociais encarregados da questo da velhice que esta passa a adquirir reconhecimento (visibilidade social), legitimao (ateno da sociedade) e novas formas de expresso (terceira idade).

    Contudo, deve-se perceber tambm que ao se considerar a velhice como uma questo social est-se referindo no s importncia e visibilidade que esta adquire perante a sociedade, mas, fundamentalmente, ateno que o Estado passa a dar a ela (COHN, 2000). Assim, o envelhecimento populacional e o aumento do nmero de idosos, bem como a excluso social vivida por eles, no so os nicos fatores responsveis pela recente ateno do Poder Pblico com relao s questes pertinentes velhice, tanto no Brasil como em diversos pases do mundo, tal como querem fazer crer os formuladores de polticas pblicas.10 Essa ateno depende principalmente da rearticulao de interesses e demandas poltico-mercadolgicas empreendida pelas organizaes representativas da velhice (DEBERT, 1997).

    Ademais, conforme destaca Belo (2002), a ateno poltica dada questo da velhice insere-se numa perspectiva internacional de ao, tendo a Organizao das Naes Unidas (ONU) como a principal promotora, que passa a fundamentar suas aes no envelhecimento da populao mundial. A I Assemblia Mundial sobre o Envelhecimento, realizada em Viena em 1982, adota o Plano de Ao Internacional que se constitui na base das polticas pblicas elaboradas para este grupo de populao. Um conjunto de aes, portanto, seguem-se. Em 1991 a ONU aprova os princpios a favor das pessoas idosas em torno de cinco eixos: independncia, participao, cuidados, auto-realizao e dignidade. O ano de 1999 nomeado pela ONU como Ano Internacional do Idoso, instituindo como tema: Uma sociedade para todas as idades, em referncia necessidade de insero social dos idosos. Em 2002 se realiza a II Assemblia Internacional sobre o Envelhecimento, na Comunidade Europia, que conta com a presena da Organizao Internacional do Trabalho (OIT) e vem reforar o conceito de envelhecimento ativo, fundado nas idias de produtividade e qualidade de vida e coerente aos princpios ideolgicos da terceira idade (BELO, 2002).

    No Brasil, o plano de ao referente velhice passa a ser protagonizado, conforme mostra Belo (2002), por um conjunto de organizaes da sociedade civil, cujos principais representantes so: 1) o Servio Social do Comrcio (SESC), especializado no atendimento ao idoso nas reas de lazer, cultura e educao, tem uma produo bibliogrfica considervel sobre a velhice e o envelhecimento e figura como o pioneiro na promoo da Universidade Aberta Terceira Idade no Brasil11; 2) a Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG), entidade de natureza tcnico-cientfica, composta por mdicos e gerontlogos, auto-intitula-se como uma das pioneiras na frente de defesa do

    10 Cf. Barros (1999), Mendona (1999) e Peppe (1999).

    11 Cf. Haddad (1986).

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    idoso, promove cursos, simpsios e congressos visando difundir os conhecimentos acerca dos processos biolgicos e sociais do envelhecimento12; 3) a Associao Nacional de Gerontologia (ANG), tambm de natureza tcnico-cientfica, composta por gerontlogos sociais e tem por objetivo despertar a conscincia gerontolgica na sociedade em prol de melhorias nas condies de vida dos idosos. A entidade conta com publicaes prprias e promove o Frum Permanente da Poltica Nacional do Idoso13; e 4) a Confederao Brasileira de Aposentados e Pensionistas (COBAP), uma entidade organizada de aposentados, em sua maioria sindicalistas, que se auto-define como: uma autntica e legtima entidade representativa desse segmento social no pas.14 Procura conscientizar os aposentados e pensionistas acerca dos problemas referentes Previdncia Social no Brasil e atua junto ao Poder Pblico por meio de articulaes e lobbies polticos.15

    Essas organizaes compem a linha de frente da luta pelos direitos dos idosos e tm atuado no sentido de dar visibilidade questo da velhice na sociedade brasileira e reivindicar, junto ao Estado, polticas pblicas de ateno a esse grupo etrio. Tiveram papel decisivo na elaborao e implementao da Poltica Nacional do Idoso (PNI), disposta atravs da Lei 8.842, de 04 de janeiro de 1994 e regulamentada em 03 de julho de 1996. Sua atuao tambm foi intensa na criao e aprovao do Conselho Nacional dos Direitos do Idoso (CNDI)16, em 13 de maio de 2002, que integrava a proposta original da PNI e foi vetado pelo governo FHC em 1996, e no qual tomam acendo membros dessas entidades. A mais recente conquista viabilizada pela ao das entidades representativas da velhice foi a consolidao do Estatuto do Idoso em 2003.17

    Se a PNI tem por objetivo: assegurar os direitos sociais do idoso, criando condies para promover sua autonomia, integrao e participao efetiva na sociedade,18 o CNDI, por sua vez, ter o papel de: supervisionar e avaliar a PNI,19 bem como de: zelar pela participao de organizaes representativas dos idosos na implementao de polticas, planos, programas e projetos de atendimento ao idoso.20 Quanto ao Estatuto: discorre sobre os direitos do idoso e seus fundamentos ticos e legais, bem como aborda a responsabilidade das entidades de atendimento aos idosos, transpondo para a prtica os princpios expostos na PNI.21

    Esse conjunto de legislaes e polticas pblicas referentes velhice representam planos de ao do governo brasileiro que, seguindo uma tendncia mundial, procuram estabelecer estratgias de combate excluso social vivida por muitos idosos, incluindo-os

    12 Cf. Lopes (2000).

    13 Cf. Borges (2003).

    14 Cf. pgina na internet: Consultada em 27/01/2004.

    15 Cf. Haddad (2001).

    16 Lei 4.227/02.

    17 Lei 10.741/03.

    18 Lei 8.842/94, Art. 1o.

    19 Lei 4.227/02, Art. 3o, pargrafo I.

    20 Lei 4.227/02, Art. 3o, pargrafo VI.

    21 Comentrios ao Estatuto do Idoso, Estatuto do Idoso, Cmara Municipal de Campinas/SP,

    2004, p. 01.

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    e integrando-os sociedade. Essa a idia-chave do discurso proferido tanto pelos organismos internacionais quanto pelo Estado e pelas organizaes representativas da velhice no Brasil, ao procurarem justificar as suas aes em prol dos idosos (SANTOS, 1998).

    Contudo, um fato em particular bastante curioso nesse processo: a ausncia quase completa dos prprios idosos em meio s aes que visam promover a sua cidadania. So as organizaes representativas da velhice, e no os idosos, que tm se mobilizado no sentido de solicitar aes do Estado. Ao entrevistar membros do Conselho Estadual do Idoso do Estado de So Paulo, Santos (1998) revela a no-participao dos idosos na reivindicao por polticas pblicas. Um dos entrevistados afirma o seguinte: Mas a grande crtica que eu fao ainda ao nvel extremamente baixo do envolvimento da populao idosa com relao PNI. (...) um segmento que acostumou a esperar que medidas venham de cima para baixo e que no teve a oportunidade de exercitar a capacidade de organizao e reivindicao necessria (...). Eles se retiram desse cenrio porque no tiveram oportunidade de ser protagonistas ao longo da histria (p. 76). Outro entrevistado tambm se refere falta de participao dos idosos: Os idosos ainda no sabem que so parte viva da sociedade, eles mesmos se excluem (p. 79).

    A partir dos depoimentos, percebe-se que a excluso do idoso do processo de reivindicao por polticas pblicas clara. Neste sentido, Santos (1998) afirma que: O aspecto negativo mais presente a falta do comprometimento e da participao dos idosos, apontada por todos os entrevistados (p. 79). Tambm Neri (2003) destaca a ausncia do idoso desse processo, afirmando que: pessoas oriundas do SESC, da SBGG e profissionais engajados na defesa dos direitos dos idosos que, por muitos anos, fizeram lobby junto a polticos, agregaram pessoas, promoveram discusses e eventos e levantaram publicamente a questo da velhice, mostrando sociedade que esse um tema digno de merecer investimentos. Ningum a citar nominalmente, mas simplesmente eu quis dizer que no houve uma presso organizada proveniente dos idosos. Sobre os Conselhos [de idosos], h vrios tipos de insero e vrias formas de organizao, mas os idosos no esto na linha de frente (informao verbal).22

    Conforme j mostramos, a prpria transformao da velhice em questo social, medida que desperta a ateno do Estado, passa longe de ser conseqncia da ao poltica dos idosos, mas resultado de um processo scio-poltico que tem as organizaes representativas da velhice como as principais protagonistas. No entanto, nota-se no discurso dessas organizaes uma referncia freqente a um movimento social do idoso. Observe-se, por exemplo, o Manifesto do Frum Permanente da PNI do Rio de Janeiro, organizado pela ANG: O Frum, em sua reunio ordinria (...) deliberou por manifestar sua indignao quanto ao decreto (...) aprovado pelo Presidente da Repblica, tendo em vista que o mesmo foi conduzido sem atender Lei 8.842 e o desejado pelo Movimento Social do Idoso.23

    22 Texto escrito pela Profa. Dra. Anita Liberalesso Neri, Coordenadora do mestrado em Gerontologia

    Social da Faculdade de Educao da UNICAMP, por correio eletrnico, em 26/08/2003, respondendo a um questionamento meu acerca dos reais protagonistas das mobilizaes que resultaram na PNI. Entre colchetes, complementao minha.

    23 Cf. pgina na internet: (consultada em

    27/01/2004). Grifos meus.

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    Tambm entre os membros do governo responsveis pela gesto da PNI possvel notar uma referncia quanto ao papel do idoso num suposto movimento reivindicatrio por polticas pblicas. Escrevendo sobre as polticas do Ministrio da Justia que integram a PNI,24 Barros (1999) salienta que: os idosos tambm so responsveis pelo direcionamento da ao do governo; na medida em que mais se organizarem, suas vitrias sero maiores; suas carncias sero supridas e seus direitos sero respeitados (p. 53).25 A prpria PNI se refere a um movimento do idoso: Na rea de cultura, esporte e lazer [pretende-se] incentivar os movimentos de idosos a desenvolver atividades culturais.26

    Se o movimento social do idoso aqui referido no , na verdade, protagonizado pelos idosos, mas sim por uma rede de atores sociais envolvidos com a questo da velhice, ele se assemelha ao que Scherer-Warrer (2002) chama de rede de movimentos sociais. Tais redes representam a nova tendncia observada atualmente nos movimentos sociais,27 que aglutinam um conjunto de atores, dentre os quais destacam-se as organizaes no-governamentais (ONGs) e outras entidades da sociedade civil como entidades cientficas, clubes e associaes diversas , nacionais e internacionais, num processo de institucionalizao das aes coletivas, que ocorre simultaneamente globalizao da economia e ao fenmeno de reestruturao produtiva do capital (MONTAO, 2003).

    Se o movimento operrio do incio do sculo XX e os movimentos feminista e negro que ocorrem a partir da dcada de 1950 eram protagonizados efetivamente pelos trabalhadores, pelas mulheres e pelos negros, hoje so as organizaes representativas desses grupos que agem por eles, numa espcie de terceirizao da defesa da cidadania (MONTAO, 2003). Parece haver uma cooptao28 por parte do Estado, das ONGs e das demais entidades que compem o chamado setor social ou terceiro setor29, das aes reinvindicatrias que eram praticadas anteriormente pelas camadas populares contra a excluso. O embate capital/trabalho, dos trabalhadores contra as classes proprietrias e o Estado, passa a ser substitudo pelas parcerias e acordos. Nesse contexto, os direitos trabalhistas e sociais conquistados a duras penas pela classe trabalhadora passam a ser gradativamente privatizados e flexibilizados (MONTAO, 2003).

    24 De acordo com Santos (1998), a PNI est subdividida em seis eixos principais de atuao, cuja

    conduo de competncia dos respectivos ministrios, a saber: I. Sade; II. Educao; III. Trabalho e Previdncia Social; IV. Habitao e Urbanismo; V. Justia; e VI. Cultura, esporte e lazer.

    25 Grifos meus.

    26 Lei 8.842/94, Art. 10, pargrafo VII, item c. Grifos meus. Entre colchetes, complementao

    minha. 27

    Gohn (2000) denomina essas redes como a modernidade da participao social e poltica. 28

    Bobbio (1994) define cooptao como um termo usado para: designar o acolhimento, por parte de um grupo dirigente, de idias, orientaes e programas polticos propostos por grupos da oposio, com o fim de eliminar ou reduzir as conseqncias dos ataques vindos de fora (p. 286).

    29 De acordo com Fernandes (1994): A idia de um terceiro setor supe um primeiro e um

    segundo, e nesta medida faz referncia ao Estado e ao mercado. A referncia, no entanto, indireta, obtida pela negao nem governamental e nem lucrativo (p. 126).

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    Esse mecanismo de cooptao se torna claro quando observamos como a PNI incita os idosos participao poltica: o idoso deve ser o principal agente e o destinatrio das transformaes a serem efetivadas atravs dessa poltica.30 Conforme afirma Demo (1995), quando o Estado estimula a participao, isso no mnimo suspeito, pois provavelmente est escamoteando estratgias de controle e tutela dos grupos sociais envolvidos. E exatamente isso o que parece estar acontecendo com as recentes polticas de ateno ao idoso. Note-se, por exemplo, que dentre as diretrizes da PNI inclui-se a: participao do idoso, atravs de suas organizaes representativas, na formulao, implementao e avaliao das polticas, planos, programas e projetos a serem desenvolvidos.31 Pode-se ver claramente como a PNI privilegia as organizaes representativas da velhice, principalmente o SESC e as entidades de gerontologia/geriatria, concedendo-lhes o monoplio da representao e da participao nas questes referentes ao idoso no Brasil (SANTOS, 1998).

    Por outro lado, interessante observar como a parte referente previdncia social exatamente aquela que representa um dos principais direitos do trabalhador e na maioria das vezes a sua nica fonte de renda na velhice32 demasiadamente tmida e fraca tanto na PNI quanto no Estatuto do Idoso. Por exemplo, estabelece-se como competncia dos rgos e entidades pblicos, na implementao da PNI, na rea de previdncia social, somente os seguintes aspectos: priorizar o atendimento ao idoso nos benefcios previdencirios e: criar e estimular a manuteno de programas de preparao para aposentadoria.33 Nota-se que tambm o Estatuto do Idoso: foi tmido no Captulo VII (Previdncia Social), pois no incluiu medidas salariais que viessem suavizar o dia-a-dia do aposentado idoso.34

    Conforme mostra o Boletim Estatstico da Previdncia Social do ano de 2003, 65% da totalidade de aposentados no Brasil recebe um salrio mnimo de renda, e 12,5% recebem de um a dois salrios mnimos. Considerando o baixssimo poder de compra do salrio mnimo dentro da economia brasileira,35 fica clara a situao de precariedade social vivida por muitos idosos no pas, a qual as recentes polticas pblicas parecem no apresentar solues eficazes na medida em que se eximem nos aspectos referentes melhoria da renda previdenciria, tida como condio primeira para a autonomia e integrao do idoso sociedade (CAMARANO, 1999).

    30 Lei 8.842/94, Art. 3o, pargrafo IV.

    31 Lei 8.842/94, Art. 4o, pargrafo II. Grifos meus.

    32 Cf. Camarano (1999).

    33 Lei 8.842/94, Art. 10o, pargrafo IV, itens b e c.

    34 Comentrios ao Estatuto do Idoso, de autoria do advogado Luiz Faria e Souza, apud: Estatuto

    do Idoso, Cmara Municipal de Campinas, 2004, p. 08. 35

    Conforme mostra o Boletim DIEESE, Edio Especial Dia do Trabalho, de maio de 2004, o salrio mnimo, em moeda atual, equivalia proporcionalmente a R$834,97 em 1952 e a R$1.036,10 em 1957, at valer R$259,70 em 2003. Se em 1959 um salrio mnimo comprava 85kg de carne, 192kg de feijo, 202kg de arroz e 230kg de po, por exemplo, em 2003 passa a comprar 29kg de carne, 78kg de feijo, 134kg de arroz e 48kg de po. Isso retrata a queda radical no poder de compra do salrio mnimo ocorrida em pouco mais de 50 anos.

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    A nfase em aspectos secundrios de incluso, como o acesso gratuito a transportes pblicos, cinemas e outras atividades culturais e de lazer, dada pela PNI e pelo Estatuto do Idoso, vm na verdade apresentar medidas paliativas para o problema da excluso do idoso da sociedade. Fazendo isso, o Estado foge da responsabilidade e dos gastos que teria com a melhoria da renda previdenciria (HADDAD, 2001). O depoimento de uma idosa aposentada, de 65 anos, ilustra bem o carter contraditrio das polticas pblicas da velhice: Sou aposentada e me mantenho, exclusivamente, com a merreca que recebo do INSS. (...) Se o idoso tivesse um benefcio de acordo com o valor contribudo para a sua aposentadoria, no precisaria passar pelo constrangimento de esmolar uma sesso de cinema.36

    Sendo assim, o suposto movimento social do idoso, sem o idoso, passa a resultar na formulao de polticas pblicas que no atendem s reais necessidades desse grupo social. Vieira (1987) explica esse fenmeno afirmando que: A poltica social desde 1964 reduziu-se a uma srie de decises setoriais na Educao, na Sade, na Previdncia Social e na Assistncia Social, servindo geralmente para desmobilizar as massas carentes da sociedade. Ela ofereceu servios sem antes perguntar quais eram as necessidades reais. Duvida-se de que isso se chame de poltica social (p. 232).

    V. Descrio dos resultados

    Diante desse cenrio, pode-se questionar o seguinte: como possvel ao idoso ter autonomia sendo que o prprio Estado tolhe essa autonomia restringindo a principal fonte de renda dos idosos (a aposentadoria) e atribuindo s organizaes representativas da velhice o papel de controlar a participao deles na vida poltica? Que autonomia essa que quer garantir a PNI, sendo que no permite nem mesmo que o idoso se manifeste autonomamente sobre as suas reais necessidades?

    Tal raciocnio coloca em xeque tanto a idia do Estado como representante dos interesses da populao, quanto a prpria noo de representatividade, da qual se servem as organizaes da velhice, na mesma lgica dos partidos polticos e sindicatos, que utilizam um discurso pseudo-revolucionrio de defesa dos oprimidos.37 A sociedade burocrtica que emerge com o capitalismo industrial traz um contexto em que as decises poltico-econmicas e empresariais passam a ser tomadas pelas cpulas hierrquicas. O

    36 Jornal Correio Popular, 30/03/2004, pg. 02, Primeiro Caderno, Correio do Leitor, ttulo do

    artigo: Cinema X idosos. 37

    Motta (1986) destaca que: no se pode afirmar que os partidos polticos de vanguarda e os sindicados de trabalhadores to-somente participam do modo de produo dominante. preciso ficar claro que o seu papel duplo e que sua total cooptao pela classe dirigente implicaria sua completa descaracterizao e muito provavelmente seu desaparecimento. A classe trabalhadora, bem como outros grupos sociais oprimidos, s sustenta essas organizaes medida que elas permanecem na oposio, por frgil que seja. Acreditar, porm, que tais organizaes sejam em si revolucionrias ignorar a natureza do fenmeno burocrtico (p. 60).

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    discurso da democracia representativa38 de que as bases tm poder de deciso utilizado pelo capitalismo burocrtico como estratgia de dominao, controle e passivizao das massas populares, conforme defendem Dias (1999) e Tragtenberg (1980), dentre outros.39

    Isso nos faz pensar sobre o papel da COBAP enquanto entidade ligada ao sistema sindical e que se autodefine como defensora legtima dos direitos dos aposentados. Essa organizao representativa da velhice teve atuao fundamental no movimento dos aposentados das dcadas de 1980/90, fazendo lobby poltico e organizando manifestaes que ganharam grande repercusso pblica na poca, conforme mostram Haddad (2001) e Simes (2000). Teve um papel importante tambm na elaborao e aprovao do Estatuto do Idoso em 2003.40 Contudo, como explicar, por exemplo, a j comentada timidez dos artigos referentes Previdncia Social nesse Estatuto? Isso lana dvidas sobre a atuao revolucionria dessa organizao especializada na questo previdenciria, que parece privilegiar interesses particulares de cunho poltico-eleitoral.41

    Para Motta (1986), a autonomia a nica alternativa revolucionria e desenvolve-se necessariamente no mbito da prtica cotidiana dos indivduos e dos seus discursos de contestao ordem. O autor defende que o mais importante : a autotransformao social, que se refere ao fazer social e poltico dos homens na sociedade e nada mais. O fazer pensante e o pensar poltico implicam-se numa unidade indestrutvel (...). E este fazer-se o contrrio das hierarquias burocrticas (p. 28).

    Neste sentido, sabe-se que a precariedade dos benefcios previdencirios obriga muitos aposentados a continuarem trabalhando, seja para garantir a sobrevivncia prpria ou da famlia, ou para evitar quedas violentas do padro de vida, conforme mostrado por Camarano (1999). E na necessidade de continuar trabalhando aps a aposentadoria que se tornam claros a sujeio e o aprisionamento dos trabalhadores por um sistema que no permite a liberdade. A reflexo, o pensar poltico e o fazer pensante, parafraseando Prestes Motta (1986), so as reais prticas de autonomia. Essa liberdade de reflexo ou seja, a prtica do cio reflexivo ou criativo retirada dos aposentados que necessitam trabalhar.

    VI. Concluso Portanto, na possibilidade de debaterem as polticas pblicas que lhes dizem

    respeito, nos fruns de discusso ou mesmo em outros mbitos da vida cotidiana, que se expressam prticas de resistncia, subjetividade e autonomia real entre os idosos. Assim, a crtica dos idosos tanto s polticas da velhice quanto participao restrita e limitada

    38 De acordo com Demo (1996) a democracia representativa limitada por restringir os canais de

    participao poltica s eleies e ao voto/plebiscito popular, facilmente manipulveis por meio de marketing eleitoral ou por outras estratgias de convencimento/induo das massas.

    39 Cf. tambm Wood (2003) e Motta (1990).

    40 Cf. pgina na internet: (consultada em 27/01/2004) e tambm

    os Comentrios ao Estatuto do Idoso, Estatuto do Idoso, Cmara Municipal de Campinas, 2004. 41

    Na Apresentao do Estatuto do Idoso, da Cmara Municipal de Campinas, op. cit., o Senador Paulo Paim (PT/RS), ligado COBAP, ressalta a importncia dessas leis para a consolidao da cidadania do idoso e enfatiza o seu papel como principal articulador poltico na aprovao do Estatuto.

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    oferecida pelo atual modelo de democracia, bem como explorao do trabalho que lhes cerceia a liberdade, constituem micropoderes potencialmente revolucionrios, porque se opem lgica de controle burocrtico inerente ao capitalismo, dentro de uma dimenso molecular, na concepo de Guattari (1987) ou micropoltica, na definio de Foucault (1999). Tais prticas de resistncia, por ocorrerem no plano da subjetividade e da vida cotidiana dos indivduos, passam despercebidas numa sociedade fundada na lgica institucional. Segundo essa lgica, tudo deve ser institucionalizado. Isso ocorre, at mesmo, com as prticas revolucionrias vigentes at ento, protagonizadas pelos partidos de esquerda, sindicatos e demais organizaes representativas de categorias ou grupos sociais.

    Contudo, todas essas alternativas se encontram capturadas pela lgica burocrtica. Por isso que qualquer forma de resistncia que seja realmente autnoma deve ocorrer fora dessa lgica e, principalmente, opondo-se a ela. Conforme afirma Dallari (1984): A atitude de resistncia sempre possvel no plano da conscincia (p. 54). Sem exagero, poderamos dizer que a resistncia que ocorre no plano da conscincia , na verdade, uma das nicas formas efetivamente possveis dentro da atual ordem do capital, caracterizada pelos mecanismos de controle e vigilncia institucional, que se encontram muitas vezes ocultos sob a aparncia falaciosa da boa inteno.

    VII. Referncias bibliogrficas: BARROS, Herbert. Polticas do Ministrio da Justia. In: Revista A Terceira Idade SESC. Editorial: Polticas governamentais de ateno velhice para o prximo sculo, n. 17, agosto de 1999. BELO, Isolda. Vejez y accin poltica: surge un nuevo movimiento social? Tese de doutorado em Cincias Sociais e Sade. Universidade de Barcelona, 2002. BOBBIO, Norberto. Dicionrio de Poltica. Braslia/DF: UnB, 1994. ________________. O tempo da memria: de senectude e outros escritos autobiogrficos. Rio de Janeiro: Campus, 1997. BORGES, Maria. Gesto participativa em organizaes de idosos. Dissertao de mestrado em Educao. FE-UNICAMP, 2003. CACHIONI, Meire; Universidades da terceira idade: das origens experincia brasileira. In: Velhice e sociedade, DEBERT & NERI (orgs.). Campinas/SP: Papirus, 1999. CAMARANO, Ana. Muito alm dos 60: os novos idosos brasileiros. Rio de Janeiro: IPEA, 1999. COHN, Amlia. A questo social no Brasil: a difcil construo da cidadania. In: MOTA, Carlos (org.). Viagem incompleta: a experincia brasileira (1500-2000): a grande transao. So Paulo: SENAC, 2000. DALLARI, Dalmo. O que participao poltica. So Paulo: Brasiliense, 1984. DEBERT, Guita. A inveno da terceira idade e a rearticulao de formas de consumo e demandas polticas. In: Revista Brasileira de Cincias Sociais, vol. 12, n. 34, jun./1997, p. 39-56. ______________. & SIMES, Jlio A. A aposentadoria e a inveno da terceira idade. In: DEBERT, Guita (org.). Antropologia e velhice. Textos Didticos IFCH-UNICAMP, n. 13, jan./1998, p. 29-44.

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