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UNIVERSIDADE FEDERAL DO TOCANTINS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU MESTRADO PROFISSIONAL INTERDISCIPLINAR EM PRESTAÇÃO JURISDICIONAL E DIREITOS HUMANOS JULIANNE FREIRE MARQUES CÍRCULOS DA PAZ: PRÁTICAS RESTAURATIVAS COMO INSTRUMENTO DE ACESSO À JUSTIÇA NAS ESCOLAS DO TOCANTINS PALMAS 2015

UNIVERSIDADE FEDERAL DO TOCANTINS PROGRAMA DE …repositorio.uft.edu.br/bitstream/11612/139/1/Julianne Freire... · Orientador: Prof. Dr. Paulo Fernando de Melo Martins Aprovada em

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO TOCANTINS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO STRICTO SENSU MESTRADO

    PROFISSIONAL INTERDISCIPLINAR EM PRESTAO JURISDICIONAL E

    DIREITOS HUMANOS

    JULIANNE FREIRE MARQUES

    CRCULOS DA PAZ: PRTICAS RESTAURATIVAS COMO INSTRUMENTO DE

    ACESSO JUSTIA NAS ESCOLAS DO TOCANTINS

    PALMAS

    2015

  • 1

    JULIANNE FREIRE MARQUES

    CRCULOS DA PAZ: PRTICAS RESTAURATIVAS COMO INSTRUMENTO DE

    ACESSO JUSTIA NAS ESCOLAS DO TOCANTINS

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao

    em Stricto Sensu em Prestao Jurisdicional e Direitos

    Humanos, Universidade Federal do Tocantins, na linha

    de pesquisa Instrumentos da Jurisdio, Acesso

    Justia e Direitos Humanos, como requisito parcial para

    obteno do ttulo de Mestre em Prestao Jurisdicional

    e Direitos Humanos.

    Orientador: Prof. Dr. Paulo Fernando de M. Martins

    PALMAS

    2015

  • Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) Sistema de Bibliotecas da Universidade Federal do Tocantins

    M357c MARQUES, Julianne Freire. Crculos da paz: prticas restaurativas como instrumento de acesso

    justia nas escolas do Tocantins. / Julianne Freire MARQUES. - Palmas, TO, 2015.

    67 f.

    Dissertao (Mestrado Profissional) - Universidade Federal do Tocantins - Campus Universitrio de Palmas - Curso de Ps-Graduao (Mestrado) em Prestao Jurisdicional em Direitos Humanos, 2015.

    Orientador: Paulo Fernando de M . MARTrNS

    1. Direitos humanos. 2. Justia restaurativa. 3. Violncia escolar. 4. Cultura da paz. I . Ttulo

    CDD342

    TODOS OS DIROTOS RESERVADOS - A reproduo total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio deste documento autorizado desde que citada a fonte. A violao dos direitos do autor (Lei n 9.610/98) crime estabelecido pelo artigo 184 do Cdigo Penal. Elaborado pelo sistema de gerao automtica de ficha catalogrfica da UFT com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

  • JULIANNE FREIRE MARQUES

    Crculos da Paz: prticas restaurativas como instrumento de acesso justia nas escolas do Tocantins.

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu Mestrado Profissional Interdisciplinar em Prestao Jurisdicional e Direitos Humanos da Universidade Federal do

    Tocantins, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Prestao Jurisdicional e Direitos Humanos.

    Linha de pesquisa:

    Instrumentos da Jurisdio, Acesso Justia e Direitos Humanos.

    Orientador: Prof. Dr. Paulo Fernando de Melo Martins

    Aprovada em 10 de dezembro de 2015.

    Comisso Examinadora

    Prof. Dr. Paulo Fernando de Melo Martins Universidade Federal do Tocantins

    Orientador

    Prof^^f^^e^r l spn Rodrigues de Melo UniversicTaae Federal do Tocantins

  • 4

    AGRADECIMENTOS

    Em primeiro lugar agradeo a Deus, por ter me concedido sade e perseverana para

    conquistar meus objetivos.

    Aos meus pais, Nemi e Julita, meu profundo agradecimento por seus ensinamentos e lies de

    vida, sempre juntos nas dificuldades e alegrias.

    minha amada filha Larissa Marques e ao meu companheiro Luciano Casaroti, por sempre

    me apoiarem na conquista dos meus sonhos.

    Agradeo ao meu professor orientador Dr. Paulo Fernando de M. Martins e a todos os

    professores do programa, cada um com sua maneira de ser e transmitir seus conhecimentos,

    que contriburam para ampliar e aprofundar a presente pesquisa, nos mais variados aspectos.

    Aos colegas de turma, pela convivncia e apoio mtuos.

    Ao juiz Leoberto Brancher, pela iniciativa pioneira na difuso da cultura da paz entre crianas

    e jovens e, por ser o guia da magistratura nacional na implantao e expanso da justia

    restaurativa.

    Agradeo, ainda, a todos os servidores, em especial a secretria Marcela Santa Cruz e,

    Diretores da Escola da Magistratura Tocantinense, pelo pronto atendimento das necessidades

    surgidas durante o curso.

  • 5

    RESUMO

    MARQUES, Julianne Freire. Crculos da Paz: prticas restaurativas como instrumento de

    acesso justia nas escolas do Tocantins. Dissertao (Programa de Ps-graduao Stricto

    Sensu em Prestao Jurisdicional e Direitos Humanos Mestrado Profissional

    Interdisciplinar). Universidade Federal do Tocantins, Palmas, 2015.

    O objetivo de nossa investigao refletir sobre o uso da justia restaurativa como

    instrumento de pacificao social autocompositivo e, meio adequado de concretizao dos

    direitos fundamentais da criana e do adolescente no mbito escolar da Comarca de

    Araguana do Estado do Tocantins. A presente dissertao explana sobre a Justia

    Restaurativa, suas origens, o debate conceitual travado pelos tericos e sua posio diante da

    Justia Retributiva, como forma alternativa de soluo de conflitos, onde so consideradas as

    necessidades da vtima e a restaurao das relaes rompidas pela infrao. O nosso estudo

    discorre sobre a implantao da Justia Restaurativa, em especial, no enfrentamento da

    violncia no ambiente escolar brasileiro, recorrendo s diferentes prticas restaurativas

    pioneiras no pas. Ao abordar a violncia nas escolas apresenta dados estatsticos e questiona

    a atual forma de encaminhamento do problema, propondo a implantao da justia

    restaurativa nas escolas, com a participao da comunidade na resoluo dos conflitos. Sob o

    enfoque crtico-dialtico e referenciando-se nos estudos de Howard Zehr promoveu-se a

    coleta dos dados sobre a violncia escolar na Comarca de Araguana, Tocantins, com anlise

    dos 136 processos relativos a atos infracionais noticiados no ano de 2013, buscando-se em

    quais casos os delitos foram praticados no interior de instituies de ensino na Educao

    Bsica. A pesquisa revela a inexistncia de projetos orientados pela Justia Restaurativa na

    educao bsica da rede pblica tocantinense para o enfretamento da violncia escolar. A

    investigao permite inferir que oportuna a imediata aplicao da Justia Restaurativa no

    mbito escolar, para que no haja uma escalada da violncia, o que pode resultar em atos

    infracionais mais graves. Alm disso, a pesquisa avalia que as prticas restaurativas podem

    viabilizar o desenvolvimento da cultura da paz que, por sua vez, colabora na promoo da

    ruptura do crculo vicioso da violncia escolar.

    Palavras-chave: Justia Restaurativa. Educao Restaurativa. Violncia escolar no

    Tocantins. Cultura de paz.

  • 6

    ABSTRACT

    MARQUES, Julianne Freire. Circles of Peace: restorative practices as a means of access to

    justice in the schools of Tocantins. Dissertation (Graduate Program in the Strictu Senso in

    Judicial Accountability and Human Rights Interdisciplinary Master). Federal University of

    Tocantins, Palmas, 2015.

    The goal of our research is to reflect aver the use of restorative justice as self-compositional

    social peacemaker instrument and appropriate means of achieving the fundamental rights of

    the children and adolescents in the school domain of Araguana County in Tocantins. This

    thesis talks about Restorative Justice, its origins, the conceptual debate between the theorists

    and their position in the face of Retributive Justice as an alternative form of dispute

    resolution, where are considered the needs of the victim and the restoration of relat ions

    broken by crime. Our study discusses the implementation of Restorative Justice, particularly

    in fighting violence in the Brazilian school environment, resorting to different pioneering

    restorative practices in the country. To address violence in schools it is presented statistical

    data and questions the current way of routing problem by proposing the implementation of

    Restorative Justice in the schools, with community participation in resolving conflicts. Under

    the critical-dialectical approach and referencing the studies of Howard Zehr, it promotes the

    collection of data on school violence in Araguana County, Tocantins, with analysis of 136

    cases involving infractions reported in 2013, seeking out in which of the crimes cases were

    practiced within Basic Education institutions. The research reveals the absence of projects

    guided by Restorative Justice in basic education of Tocantins public schools against, school

    violence. The research allows us to infer that it is timely for the immediate application of

    restorative justice in schools, so that there isnt an escalation of violence, which can result in

    more serious infractions. In addition, the survey estimates that restorative practices can

    facilitate the development of peace culture, which assists in the promotion of breaking the

    vicious circle of school violence.

    Keywords: Restorative Justice. Restorative Education. School violence in Tocantins. Peace

    culture.

  • 7

    LISTA DE SIGLAS

    AJURIS Associao dos Juzes do Rio Grande do Sul

    AMB Associao dos Magistrados Brasileiros

    CECIP Centro de Criao de Imagem Popular

    CEDECA Centro de Defesa da Criana e do Adolescente

    CEJUST Centro Judicirio de Soluo de Conflitos e de Cidadania do Programa

    Justia Restaurativa

    CMDCA Conselho Municipal de Direitos da Criana e Adolescente

    CNJ Conselho Nacional de Justia

    CNV Comunicao No-Violenta

    CPR Centrais de Prticas Restaurativas

    ECOSOC Conselho Social e Econmico da Organizao das Naes Unidas

    FACDO Faculdade Catlica Dom Orione

    FASC Fundao de Assistncia Social e Cidadania

    FASE Fundao de Atendimento Socioeducativo

    FASEPA Fundao do Atendimento Socioeducativo do Par

    FUNPAPA Fundao Papa Joo XXIII

    GGIM Gabinete de Gesto Integrada Municipal de Belm

    MEC Ministrio da Educao e Cultura

    NEMCONJUR Ncleo de Estudos em Negociao, Mediao, Conciliao e Justia

    Restaurativa

    NEJURE Ncleo de Estudos em Justia Restaurativa

    NUPECON Ncleo Permanente de Mtodos Consensuais de Soluo de Conflitos

    ONU Organizao das Naes Unidas

    PEMSEIS Programa de Execuo de Medidas Scio-Educativas de Privao de Liberdade

    PEMSE Programa de Execuo de Medidas Scio-Educativas de Meio Aberto

  • 8

    PAJUR Programa de Atendimento da Justia Restaurativa

    PNUD Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento

    PRAPAZ Programa Agentes da Paz

    RS Rio Grande do Sul

    SED Secretaria de Estado de Educao de Mato Grosso do Sul.

    SEE Secretaria de Estado da Educao

    SP So Paulo

    STF Supremo Tribunal Federal

    TJMS Tribunal de Justia do Estado do Mato Grosso do Sul

    TO Tocantins

    UFT Universidade Federal do Tocantins

    UNESCO Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura

    VORP Programas de reconciliao de vtima-ofensor

  • 9

    LISTA DE FIGURAS

    Figura 1. Marcos da Justia Restaurativa..................................................................................20

    LISTA DE TABELAS

    Tabela 1. Modelos de Justia Restaurativa...............................................................................27

    Tabela 2. Atos infracionais ocorridos nas escolas da Comarca de Araguana, em 2013..........58

  • 10

    SUMRIO

    INTRODUO ................................................................................................................................11

    CAPTULO 1 PERSPECTIVAS CONCEITUAIS DA JUSTIA RESTAURATIVA .....................16

    1.1 ORIGENS DA JUSTIA RESTAURATIVA .......................................................................16

    1.2 QUEBRA DO PAGADIGMA DA JUSTIA RETRIBUTIVA ...........................................20

    1.3 DEBATE CONCEITUAL SOBRE A JUSTIA RESTAURATIVA ..................................24

    1.4 CORRENTES TERICAS ...................................................................................................26

    1.5 PRINCPIOS DA JUSTIA RESTAURATIVA ..................................................................29

    CAPTULO 2 IMPLANTAO DA JUSTIA RESTAURATIVA NO BRASIL ..........................34

    2.1 PRTICAS RESTAURATIVAS ..........................................................................................34

    2.2 OS PRIMEIROS PROJETOS DESENVOLVIDOS NO BRASIL ......................................40

    2.2.1 JUSTIA RESTAURATIVA NO DISTRITO FEDERAL ...............................................40

    2.2.2 JUSTIA RESTAURATIVA EM SO CAETANO DO SUL / SO PAULO .................42

    2.2.3 JUSTIA RESTAURATIVA NO RIO GRANDE DO SUL .............................................43

    2.3 EXPANSO DA JUSTIA RESTAURATIVA ...................................................................45

    CAPTULO 3 AS PRTICAS RESTAURATIVAS NO CONTEXTO ESCOLAR ........................51

    3.1 A EDUCAO, A ESCOLA E OS CONFLITOS NO MBITO ESCOLAR ....................51

    3.2 JUSTIA RESTAURATIVA NAS ESCOLAS ....................................................................55

    3.3 OS CONFLITOS NO MBITO ESCOLAR TOCANTINENSE: desafios e perspectivas na

    Comarca de Araguana. ..............................................................................................................58

    CONCLUSO ..................................................................................................................................62

    REFERENCIAL BIBLIOGRFICO ...............................................................................................644

  • 11

    INTRODUO

    O estudo da Justia Restaurativa surgiu em decorrncia das atividades profissionais,

    exercidas desde o ano de 2007 como titular do Juizado da Infncia e Juventude da Comarca

    de Araguana/TO, onde diversas situaes de conflitos envolvendo crianas e adolescentes

    so criminalizadas e punidas.

    O nosso objetivo com a presente investigao refletir sobre o uso da Justia

    Restaurativa como instrumento de pacificao social autocompositivo e meio adequado de

    concretizao dos direitos fundamentais da criana e do adolescente no mbito escolar da

    Comarca de Araguana do Estado do Tocantins.

    Num ciclo recorrente o adolescente pratica atos infracionais de menor potencial

    ofensivo, proferindo ameaas, por exemplo, e acaba praticando atos infracionais com

    violncia contra outras pessoas, como o roubo, numa progresso da violncia. A avaliao de

    que o sistema de justia tradicional no oportuniza a busca das causas da violncia e a

    restaurao das relaes sociais dos jovens e de suas famlias nos leva a constatar que as

    medidas socioeducativas so rplicas das penas aplicadas aos adultos.

    Numa mudana de paradigma, a Lei 12.594, de 18 de janeiro de 2012, estabeleceu

    como um dos princpios das medidas socioeducativas a prioridade a prticas ou medidas que

    sejam restaurativas e, sempre que possvel, atendam s necessidades das vtimas. Assim,

    temos a primeira norma legal brasileira a prever o uso da justia restaurativa, sendo aplicvel

    nas execues de medidas socioeducativas, a qualquer tempo.

    Com a implantao, em agosto de 2012, do Ncleo de Estudos em Negociao,

    Mediao, Conciliao e Justia Restaurativa NEMCONJUR da Faculdade Catlica Dom

    Orione FACDO, em Araguana, Tocantins, desenvolvido e coordenado pelo Professor

    Mestre em Direito Maicon Rodrigo Tauchert, passamos a ter contato com a Justia

    Restaurativa, numa perspectiva acadmica, voltada num primeiro momento para a execuo

    das medidas socioeducativas.

    Na Escola Superior da Magistratura Tocantinense, em maio de 2013, organizamos o

    seminrio sobre a Lei n 12.594/2012, constando da programao a palestra Justia

    Restaurativa Juvenil e Socioeducao Luz da Lei n. 12.594, de 2012 - uma abordagem mais

    alm da vingana e do perdo sob a responsabilidade de Leoberto Brancher, Juiz da 3 Vara

  • 12

    da Infncia e Juventude de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, para melhor conhecimento da

    sua experincia, desde 2005, com a Justia Restaurativa no campo da execuo das medidas.

    A partir do debate e do conhecimento sobre o funcionamento do programa de Justia

    Restaurativa, aplicada na execuo das medidas, surgiu a inquietao da melhor forma de sua

    aplicao no Tocantins.

    A pesquisa do tema no curso das atividades do Mestrado Profissional Interdisciplinar

    no resultou apenas de aspectos profissionais e acadmicos, mas da convergncia destes com

    outros aspectos, dentre eles, da minha histria de vida, j que sou filha de professores, com a

    me pedagoga e professora de ensino fundamental, por 25 anos exercendo o cargo nas escolas

    pblicas do Estado do Tocantins. As eleies para o cargo de diretores de escolas, as festas

    juninas organizadas por professores e alunos, as comemoraes do dia dos professores, os

    projetos desenvolvidos na escola por minha genitora, sempre buscando despertar e introduzir

    as crianas no mundo da leitura, todos so fatos que marcaram a minha infncia e

    adolescncia. Alm disso, a experincia e a vivncia do professor orientador como educador

    no magistrio pblico da educao bsica colaboraram na definio do foco da investigao.

    A realidade da infncia vivida nas escolas pblicas do Tocantins nos anos de 1980,

    bem como acompanhando as experincias da vida profissional de uma professora, tambm da

    rede pblica de ensino, se revela distante ao constatar, nas atividades judicantes, a violncia

    presente no mbito escolar, tanto entre os alunos, quanto entre alunos e professores. Ao

    assumir a titularidade do Juizado da Infncia e Juventude me deparei ento com a realidade

    atual, onde h diversas situaes de conflito no cotidiano escolar, que, solucionados da forma

    tradicional acabam por extrapolar o mbito da escola e passam a fazer parte da vida de

    adolescentes, alguns deles agindo constantemente em conflito com a lei, reiterando condutas

    violentas.

    A situao inversa tambm verdadeira, pois em diversos casos adolescentes replicam

    na escola situaes de violncia vivida na famlia. Vale dizer que professores se sentem

    vtimas desta violncia e, alunos e familiares tambm, o que resulta numa situao de

    antagonismo latente em diversas unidades escolares, que resultam, nos casos mais extremos,

    no afastamento de adolescentes do sistema de ensino, seja de forma voluntria, seja pela

    transferncia, aplicada pelas entidades de ensino como forma de punio ao aluno

    indisciplinado.

  • 13

    No levantamento de material de pesquisa observamos que se trata de um tema muito

    recente, com reduzida produo cientfica e, ainda, com um pequeno nmero de iniciativas

    prticas, embora tenhamos uma dcada de experincias desenvolvidas pelos sistemas de

    justia do Rio Grande do Sul, So Paulo e Distrito Federal.

    No tocante aos projetos desenvolvidos nas escolas ainda mais incipiente a literatura

    existente sobre o assunto, o que revela a necessidade de aprofundamento no estudo do tema,

    com anlise das diversas prticas restaurativas utilizadas nos projetos em andamento no Brasil

    e, tambm em outros pases, a fim de verificar sua aplicabilidade na realidade tocantinense.

    A presente pesquisa sob o enfoque crtico-dialtico e imbuda de uma viso

    interdisciplinar reconhece na adoo da Justia Restaurativa mediada pela concepo

    histrico-social a possibilidade de enfrentar a violncia escolar numa perspectiva humanizada,

    obrigatoriamente, a partir do trabalho integrado da rede pblica de ensino e do Poder

    Judicirio e, destarte, compreendendo que uma dada estrutura no se transforma de modo

    completamente independente da vontade (conscincia) dos homens. Portanto, a nossa anlise

    se prope a apreender a historicidade do objeto em questo.

    A pesquisa bibliogrfica foi iniciada com Howard Zehr, Trocando as Lentes: um

    novo foco sobre o crime e a justia, obra referncia sobre o tema, por ser a primeira a

    discutir teoricamente a justia restaurativa, buscando sua sistematizao a partir das diferentes

    prticas restaurativas de comunidades tradicionais, seguida da leitura de sua outra obra

    Justia Restaurativa, onde se verifica uma mudana no pensamento do autor, com relao

    possibilidade de coexistncia dos sistemas retributivo e restaurativo. As reflexes do referido

    autor sobre a responsabilidade, o perdo, o empoderamento da vtima, do ofensor e da

    comunidade, os pilares da justia restaurativa levaram-me uma vez mais a questionar a

    eficcia, a efetividade alcanada pelo sistema jurdico vigente na preveno dos delitos e o

    direito da vtima participar de todo este processo. Lorraine Stutzman Amstutz e Judy H.

    Mullet foram as autoras de referncia no que tange disciplina restaurativa nas escolas, com a

    apresentao de programas em funcionamento nos Estados Unidos e casos emblemticos que

    ali ocorreram.

    A coletnea de textos editada em 2005 pelo Ministrio da Justia foi o marco inicial da

    busca bibliogrfica por referncias brasileiras sobre o tema, verificando-se a existncia de

    algumas teses de doutoramento, mestrado e artigos cientficos, alm de relatos de

    implementao dos projetos implantados no Brasil em 2005 e, atos normativos, atravs dos

  • 14

    quais se buscou verificar a expanso da justia restaurativa no Brasil, ocorrida na sua maior

    parte atravs do sistema de justia.

    Na pesquisa documental, em especial, recorreu-se a coleta dos dados sobre a violncia

    escolar na Comarca de Araguana foi feita atravs da anlise dos 136 (cento e trinta e seis)

    processos relativos a atos infracionais noticiados no ano de 2013, buscando-se em quais casos

    os delitos foram praticados no interior de instituies de ensino da educao bsica,

    individualizando-se ainda as vtimas - aluno ou professor - a fim de possibilitar o mapeamento

    da violncia nas escolas e seu estgio atual na comarca, assegurando o rigor tico na

    conduo da investigao de natureza acadmica.

    A participao no curso de crculos de justia restaurativa e de construo da paz,

    realizado pela Escola da Associao dos Juzes do Rio Grande do Sul AJURIS, em 2015, foi

    o mergulho final na pesquisa de campo referente s prticas restaurativas, buscando o

    entendimento do sistema de justia na sua realizao e o papel do facilitador na construo

    dos crculos.

    Com o propsito de adotar as prticas restaurativas nas escolas tocantinenses e o

    aprofundamento do estudo sobre a Justia Restaurativa no Tocantins, apresentando novas

    perspectivas para os problemas reais encontrados em nosso ambiente profissional,

    estruturamos o presente estudo em trs captulos.

    No primeiro captulo so apresentadas as origens da justia restaurativa, tanto no

    aspecto terico, quando na legislao de diversos pases, suas correntes tericas, utilizando

    como principal referncia o pensamento de Howard Zehr e os princpios basilares,

    estabelecidos pela Resoluo n 12/2002, do Conselho Econmico e Social da Organizao

    das Naes Unidas. A quebra do paradigma com o surgimento da justia restaurativa

    pontuada, principalmente atravs de comparaes com o sistema da justia retributiva, onde a

    vtima participa do processo apenas como meio de prova, com a realizao de um debate

    conceitual sobre o que justia restaurativa, um conceito ainda em construo, segundo

    autores como Renato Scrates Gomes Pinto.

    No segundo captulo buscou-se traar um retrato da implantao da justia restaurativa

    no Brasil, com as experincias dos projetos desenvolvidos no Distrito Federal, no Juizado

    Especial Criminal, em delitos de menor potencial ofensivo; em So Caetano do Sul/SP, nas

    escolas e, Porto Alegre/RS, com adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas,

  • 15

    todos iniciados no ano de 2005 e, que continuam a ser executados. Neste captulo relatamos a

    expanso da justia restaurativa no Brasil nestes ltimos dez anos, com desenvolvimento de

    projetos em diversos Estados e, a adoo da justia restaurativa como diretriz de gesto do

    Conselho Nacional de Justia para o binio 2015-2016, aps protocolo de cooperao

    interinstitucional, formalizado com a Associao dos Magistrados Brasileiros - AMB. As

    diversas prticas restaurativas, como reunies, encontros, conferncias familiares e crculos,

    utilizadas na Nova Zelndia, Austrlia, frica, Estados Unidos, Canad e, nos projetos

    desenvolvidos no Brasil, so estudadas no referido captulo.

    No terceiro captulo foram compilados os dados estatsticos da Comarca de

    Araguana/TO, referentes a atos de indisciplina/conflitos/atos infracionais que foram

    encaminhados ao Poder Judicirio no ano de 2013. No decorrer do estudo, as concepes de

    educao, disciplina, violncia escolar, conflitos, resoluo consensual de conflitos, e

    comunicao no-violenta foram analisados, a partir da viso de Patrice Canivez sobre

    disciplina. As experincias de justia restaurativas nas escolas brasileiras foram pontuadas,

    para se estabelecer um parmetro a ser utilizado na implementao de um programa nas

    escolas do Tocantins, com a atuao do sistema de justia e da rede de ensino estadual voltada

    para o incentivo a uma cultura da paz na sociedade.

    A par da proposio da implantao da justia restaurativa nas escolas do estado do

    Tocantins, projeto j sendo desenvolvido paralelamente concluso deste estudo e, decorrente

    dele, prope-se ainda a criao de um ncleo de justia restaurativa, com a participao da

    Escola Superior da Magistratura Tocantinense, Universidade Federal do Tocantins e

    Secretaria de Educao do Estado do Tocantins, para estudos sobre o assunto, alm da

    capacitao e difuso das prticas restaurativas, com a finalidade de possibilitar o acesso

    justia, num sentido amplo e, consequentemente efetivar os direitos humanos.

  • 16

    CAPTULO 1 PERSPECTIVAS CONCEITUAIS DA JUSTIA

    RESTAURATIVA

    1.1 ORIGENS DA JUSTIA RESTAURATIVA

    Diversas culturas, ocidentais e orientais, utilizaram formas consensuais de resoluo

    de conflitos, inclusive no tocante aos crimes, atravs de negociao direta ou mediada por

    terceiros. Prticas restaurativas, conforme se observa do estudo das tradies de diversos

    povos, so utilizadas h sculos, remontando at mesmo ao Cdigo de Hamurabi (1.700 antes

    de Cristo), quando este trata da restituio em casos de crime contra o patrimnio.

    Nas culturas indgenas, crists, judaicas, budistas, confuncionistas e hindustas

    tcnicas no adversariais eram utilizadas para a soluo de conflitos. Nas Amricas tambm

    eram utilizados meios no adversariais de soluo de conflitos, como o faziam os puritanos e

    os quaquers, nos Estados Unidos e Canad, sendo que o referido modelo de justia no foi

    absorvido pelos colonizadores, os quais impuseram aos nativos o sistema de justia dos pases

    de origem. As comunidades indgenas do Canad, ainda hoje, adotam os crculos

    restaurativos, com participao da comunidade e das pessoas envolvidas no conflito

    decorrente da prtica de um crime.

    A Justia Restaurativa se inspira nestes modelos tribais de justia, dentre eles as

    prticas das comunidades Maori, da Nova Zelndia, as quais foram incorporadas como

    instrumentos do processo judicial, com prevalncia dos interesses coletivos sobre os

    interesses individuais, com o objetivo primordial de restaurar as relaes sociais atingidas

    pelo delito.

    Nas sociedades indgenas e aborgenes, de onde surgem as prticas restaurativas, ao

    invs de isolar e punir o infrator, a meta da justia era atingir consenso, envolver famlia e

    comunidade na busca de harmonia e reconciliao, promovendo acordo entre as partes,

    possibilitando uma convivncia harmnica. Os fundamentos da Justia Restaurativa, portanto,

    remontam a tradies antigas de comunidades que tinham como prioridade o interesse

    coletivo e no o individual, buscando na soluo dos conflitos, o restabelecimento da paz nas

    comunidades.

    Zehr (2008) destaca a importncia das tradies das naes indgenas dos Estados

    Unidos e do Canad, alm da tribo Maori da Nova Zelndia, para a formao terica e prtica

    da justia restaurativa:

  • 17

    Hoje vejo a justia restaurativa como um modelo de legitimao e resgate dos

    elementos restaurativos das nossas tradies tradies que foram frequentemente

    desprezadas e reprimidas pelos colonizadores europeus. No entanto, a justia

    restaurativa moderna no uma simples recriao do passado, mas sim adaptao de

    alguns valores bsicos, princpios e abordagens dessas tradies combinados com a

    moderna realidade e sensibilidade quanto aos direitos humanos. Colocando de outra

    forma, um juiz maori de uma vara de menores da Nova Zelndia me disse uma vez

    que minha abordagem de justia restaurativa era uma forma de articular os

    elementos-chave de sua prpria tradio de modo que fossem compreensveis e

    aceitveis para um ocidental. (ZEHR, 2008, p. 256)

    Prudente (2008) relata que a primeira experincia de justia restaurativa no sistema

    judicial ocorreu em 28 de maio de 1974, no Canad, em Elmira, provncia de Ontrio, quando

    dois jovens vandalizaram vinte e duas propriedades e, aps indicao de um oficial da

    condicional, na sentena foi determinado que houvesse um encontro entre as vtimas e os dois

    jovens, para elaborarem um acordo sobre a reparao dos danos causados, sendo este o

    primeiro caso registrado de adoo de prticas restaurativas no sistema judicial. Dois anos

    depois, em 1976, foi fundado o Centro de Justia Restaurativa Comunitria de Victoria, no

    Canad.

    Nos Estados Unidos, o estado de Indiana foi o primeiro a implantar programas de

    reconciliao de vtima-ofensor (VORP), nos anos de 1977 e 1978. Bianchini (2012) afirma

    que, vinte anos depois da primeira experincia de justia restaurativa, em pesquisa realizada

    no ano 1994 foram identificados 123 programas de mediao vtima-ofensor nos Estados

    Unidos.

    No campo terico, o conceito de Justia Restaurativa surgiu no final dos anos de 1960

    e incio da dcada de 1970, com o questionamento dos resultados alcanados pela justia

    retributiva no mbito criminal.

    A denominao justia restaurativa atribuda a Albert Eglash, que em 1977,

    escreveu um artigo intitulado Beyond Restitution: Creative Restitution, publicado

    numa obra por Joe Hudson e Burt Gallaway, denominada Restitution in Criminal

    Justice (Van Ness e Strong, 2002:27). Eglash sustentou, no artigo, que haviam trs

    respostas ao crime a retributiva, baseada na punio; a distributiva, focada na

    reeducao; e a restaurativa, cujo fundamento seria a reparao. (PINTO, 2007, p. 3)

    Zehr (2008) prope uma mudana de paradigma, para que o olhar sobre o crime seja

    feito com novas lentes, restaurativas e no retributivas, na obra Trocando as Lentes: um novo

    foco sobre o crime e a justia. Na referida obra Zehr apresenta uma nova formulao do

    conceito de crime e da justia, sendo a obra terica de referncia para o movimento

    restaurativo, que se tornou um clssico.

  • 18

    No campo legal, o primeiro pas a introduzir o modelo restaurativo na legislao foi a

    Nova Zelndia, atravs do Children, Young Persons and Their Families Act (Lei Sobre

    Crianas, Jovens e suas Famlias), no ano de 1989, aplicvel aos delitos praticados por

    crianas e adolescentes, excetuando-se os delitos de homicdio, em substituio ao anterior

    sistema judicial da infncia e da juventude, com a participao da famlia e dos rgos

    estatais. Maxwell (2005) relata os motivos da alterao na legislao neozelandesa

    discorrendo sobre aquele momento histrico:

    Naquela dcada havia uma preocupao crescente entre a comunidade Maori sobre a

    forma pela qual as instituies que visavam bem-estar infantil e os sistemas de

    justia juvenil removiam os jovens e as crianas de seus lares, do contato com suas famlias estendidas e suas comunidades. Tambm se exigia processos culturalmente

    apropriados para os Maoris e estratgias que permitissem s famlias sem recursos a

    possibilidade de cuidar de suas prprias crianas mais eficazmente. Como resultado,

    os responsveis pela nova legislao voltada s crianas e aos jovens carentes de

    cuidado e proteo ou cujo comportamento era considerado anti-social procuraram

    desenvolver um processo mais eficiente para os Maoris e outros grupos culturais que

    desse mais apoio s famlias e que diminusse a nfase nos tribunais e na

    institucionalizao dos jovens infratores. (MAXWELL, 2005, p. 279/280)

    Aps estudos dos resultados alcanados pela justia restaurativa com a edio da

    referida legislao, esta tambm passou a ser aplicada nos casos de adultos autores de crimes,

    em 1995, em projetos piloto da Nova Zelndia.

    Na Amrica Latina, a Argentina criou um projeto piloto de mediao penal em 1998,

    envolvendo o Ministrio Nacional da Justia e a Universidade de Buenos Aires. Parker (2005)

    afirma que a mediao penal existe na legislao penal colombiana desde 1990. No ano de

    2002, o congresso alterou a Constituio da Colmbia, que passou a prever a Justia

    Restaurativa em seu bojo (art. 250, VIII) e, posteriormente, em 2004, inseriu a matria na

    legislao ordinria (art. 518 e seguintes, do Cdigo de Processo Penal), no livro intitulado

    Justia Restaurativa.

    Diante das diversas experincias de justia restaurativa, espalhadas pelo mundo, o

    assunto passa a ser pauta de debates e conferncias internacionais. A II Conferncia

    Internacional de Direitos Humanos, ocorrida em Viena, no ano de 1993, resultou na

    Declarao de Viena, onde se verifica o ressurgimento da preocupao com a vtima e a

    reparao do dano infligido a ela pela violao das leis, em particular, no pargrafo 29, numa

    proposta incipiente de prtica restaurativa:

    A Conferncia Mundial sobre Direitos do Homem expressa a sua grande preocupao com as violaes continuadas de Direitos do homem que ocorrem em

    todas as partes do mundo, em desrespeito das normas previstas em instrumentos

  • 19

    internacionais de direitos do homem e de direito internacional humanitrio, assim

    como com a falta de compensaes suficientes e efectivas destinadas s vtimas.

    Posteriormente, no ano de 1999, o Conselho Econmico e Social aprovou a Resoluo

    n. 28, de 1999, (Desenvolvimento e Implementao de Medidas de Mediao e Justia

    restaurativa na Justia Criminal), na qual o referido Conselho requisitou Comisso de

    Preveno do Crime e de Justia Criminal a formulao de padres no campo da mediao e

    da justia restaurativa. Na referida resoluo enfatiza-se que a mediao e a justia

    restaurativa, quando apropriadas, podem levar satisfao para as vtimas, bem como a

    preveno contra futuros comportamentos ilcitos. No ano seguinte sobreveio a Resoluo 14,

    de 27 de julho de 2000, do Conselho Econmico e Social da ONU, com o ttulo Princpios

    Bsicos para utilizao de Programas Restaurativos em Matria Criminal, onde foi abordada

    a justia restaurativa e sua aplicao nos processos criminais.

    Embora o Conselho, denominado ECOSOC, tenha editado estas duas resolues

    anteriores, o marco jurdico de referncia na matria a Resoluo n. 12, de 2002 do

    Conselho Social e Econmico da Organizao das Naes Unidas, (Princpios bsicos sobre o

    uso de programas de justia restaurativa em matria penal) que foi elaborada em face das

    discusses sobre os temas de preveno criminal, respeito s vtimas e a necessidade de

    desenvolver instrumentos e princpios para o uso da justia restaurativa. A Resoluo tomou

    como referncia o trabalho do Grupo de Especialistas em Justia Restaurativa, formulado num

    encontro ocorrido em Ottawa, Canad, no perodo de 29 de outubro a 1 de novembro de

    2001.

    A referida Resoluo estabelece alguns conceitos, dentre eles o de programa

    restaurativo, processo e resultados restaurativos, define as bases principiolgicas para um

    programa de justia restaurativa, aplicveis em quaisquer dos sistemas jurdicos dos Estados-

    membros, alm de buscar difundir sua utilizao ao redor do mundo, com sua insero no

    sistema legislativo dos pases, respeitando a diversidade cultural de cada nao. A citada

    norma traz ainda o conceito de parte e facilitador, bem como a preocupao com o

    desenvolvimento, pesquisa e monitorao dos programas restaurativos, com vistas a encontrar

    a prtica restaurativa mais adequada a cada realidade e seu contnuo aperfeioamento,

    garantindo o bem estar da comunidade e a preveno do crime.

    Na busca das origens da justia restaurativa verifica-se a existncia de diversos marcos

    legais, tericos e jurdicos, que lhe proporcionaram maior solidez, estabeleceram novos

  • 20

    parmetros e, possibilitaram sua expanso e crescimento no mundo, os quais podem ser

    sintetizados da seguinte forma:

    FIGURA 1: MARCOS DA JUSTIA RESTAURATIVA

    1974 1989 1990 2002

    Fonte: elaborado pela autora

    Alguns pases foram pioneiros na implantao da Justia Restaurativa, como o

    Canad, Estados Unidos, Nova Zelndia, Austrlia, frica do Sul e Gr-Bretanha, nos quais

    projetos piloto foram implantados e aperfeioados, levando em conta a realidade de cada um

    dos pases. Na Amrica Latina, a Colmbia em 1991 e a Argentina, no ano de 1998, com o

    projeto alternativo de resoluo de conflitos aplicvel no mbito criminal, foram os primeiros

    pases a adotar prticas restaurativas.

    Aps a edio da Resoluo n 12/2002, do Conselho Econmico e Social da ONU

    diversos outros pases passaram a adotar a Justia Restaurativa, inclusive o Brasil. No ano de

    2005, com trs projetos pilotos implantados no pas, deu-se incio a uma nova forma de

    abordar crimes e atos infracionais, com a utilizao da Justia Restaurativa em processos

    relativos a crimes de menor potencial ofensivo e atos infracionais.

    1.2 QUEBRA DO PAGADIGMA DA JUSTIA RETRIBUTIVA

    Com a positivao do Direito, tradies das sociedades indgenas e comunais caram

    em desuso e foi imposto um novo modelo de justia. Passa-se da vingana privada para o

    controle do Estado sobre a sociedade, atravs de um sistema penal punitivo, com a imposio

    de penas, buscando-se a punio do infrator.

    Esse monoplio do Estado sobre a justia e sobre o crime retirou toda e qualquer

    possibilidade do particular (vtima) participar da sua resoluo, embora seja o principal

    atingido pelos efeitos da infrao. A vtima foi totalmente alijada da soluo do conflito

    CANAD

    Adoo da justia

    restaurativa na

    resoluo de um

    crime de dano.

    ONU

    RESOLUO

    12/2002

    HOWARD ZEHR

    Changing Lenses: A

    New Focus for Crime

    and Justice

    NOVA ZELNDIA

    Children, Young Persons

    and Their Families Act

  • 21

    gerado pelo crime, sob o argumento da impossibilidade de uma justia privada. Ocorreu

    tambm a substituio dos usos e costumes pela lei escrita, por cdigos que descrevem as

    condutas, preveem a punio para cada diferente tipo de crime e estabelecem como vtima

    principal o Estado e, secundria, o ofendido. A partir da tem-se a justia retributiva como a

    nica forma existente para alcanar a pacificao social e, o Estado como nico ente apto a

    aplicar a justia e a punio.

    Destaca-se que, na justia retributiva trabalha-se com o conceito jurdico-normativo de

    crime, como um ato contra a sociedade representada pelo Estado, sob um aspecto

    eminentemente unidisciplinar. A culpabilidade individual voltada para o passado,

    decorrendo um processo de estigmatizao do indivduo infrator.

    No que se refere ao procedimento, a justia retributiva trabalha com o rito solene,

    dogmtico, contencioso, contraditrio e os atores principais so autoridades, profissionais do

    Direito e o infrator, sem possibilidade de interferncia da vtima, salvo nos casos em que se

    trata de ao penal privada, em que o ofendido detm a titularidade da ao. O foco da justia

    retributiva na preveno geral e especial, tendo como centro o infrator, com carter

    intimidador e punitivo. Privilegia a tutela de bens e interesses, com a punio do infrator e

    proteo da sociedade. A vtima e o infrator so isolados, desamparados e desintegrados,

    impondo uma ressocializao secundria e a construo da paz baseada na tenso e no

    medo.

    No que concerne aos efeitos para as vtimas, na justia retributiva esta ocupa um lugar

    perifrico e alienado no processo, pois praticamente no participa e no compreende os

    trmites judiciais, tendo sido alijada do processo no decorrer da evoluo do direito

    positivista, passando a ser tratada apenas como meio de prova. A assistncia psicolgica,

    social, econmica e jurdica para a vtima, deficiente e ineficaz, quando existente,

    desencadeando um processo de profunda frustrao e ressentimento com o sistema, tanto pela

    vtima, quanto por seus familiares e comunidade. Em casos extremos temos inclusive a

    conduo coercitiva da vtima para prestar depoimento no processo judicial, com a nica

    finalidade de obter provas e, no de ouvi-la sobre os danos sofridos e suas necessidades,

    decorrentes do delito.

    Na justia retributiva o autor do delito considerado como pessoa com m-formao.

    Participa atravs de representante (advogado), com oportunidade de se expressar

    pessoalmente apenas durante o interrogatrio. inibido de se aproximar e dialogar com a

  • 22

    vtima, desinformado e alienado quanto aos atos processuais, no responsabilizado e sim

    punido, e suas necessidades geralmente no so levadas em considerao. Este o quadro atual

    do sistema judicial criminal, o qual pode ser percebido no dia a dia forense, com a realizao

    das audincias e julgamentos proferidos nas aes penais, em que se observa a preocupao

    com os fatos e no com as pessoas.

    Em que pese a pena, na era moderna, tenha finalidade preventiva, punitiva e

    ressocializadora, verifica-se que ela no tem alcanado o fim preventivo, tampouco o

    ressocializador. Segundo o Mapa da Violncia 2014, realizado com o apoio da Secretaria de

    Polticas de Promoo da Igualdade Racial, da Secretaria Nacional de Juventude e da

    Secretaria-Geral da Presidncia da Repblica, 112.709 pessoas morreram em situaes de

    violncia no pas no ano de 2012, tendo ocorrido um aumento em relao aos ndices de anos

    anteriores. O percentual de reincidncia no Brasil de 47,4%, segundo o Informe Regional de

    Desenvolvimento Humano (2013-2014) do Programa das Naes Unidas para o

    Desenvolvimento (PNUD), p. 129(), um dos mais altos da Amrica Latina. O Conselho

    Nacional de Justia, por sua vez, aponta um ndice de reincidncia de 70%, quanto aos

    egressos do sistema penitencirio comum, com dados de 2014. Portanto, em presdios

    superlotados, dominados, na sua maioria, por faces criminosas e sem condies dignas para

    o apenado, resta apenas o carter punitivo da pena.

    Aps a implantao do sistema de justia, onde o Estado assume a responsabilidade

    pela punio dos delitos, estabeleceu-se uma crescente insatisfao de parcelas da sociedade

    com as respostas fornecidas por este Direito positivista s situaes de violncia e conflitos,

    diante da evidente falha na finalidade intimidatria e punitiva da pena e, tambm da falta de

    alcance do seu carter ressocializador, considerando-se a situao catica das prises e a

    superlotao, o que leva o infrator a voltar sociedade da mesma forma que antes, ou em

    alguns casos, mais violento. Passou-se a discutir, inclusive, at que ponto as penas podem

    transformar o autor do crime, quais os benefcios trazidos por ela para a vtima e para a

    sociedade como um todo. Luz (2012) afirma que a Justia Restaurativa

    fruto do movimento que pode ser denominado como acordar criminal, no qual os

    pensadores do direito penal passam a conceber uma forma de responsabilizao

    diferente da pena, atenta s necessidades de reparao das consequncias lesivas do

    crime, por meio de um acordo obtido em um processo de dilogo conciliatrio entre

    os protagonistas do fenmeno delitivo. (LUZ, 2012, p. 17)

    As relaes sociais contemporneas sofreram e sofrem profundas mudanas, as

    exigncias coletivizadas e difusas, configuram como caractersticas bsicas, a

  • 23

    transindividualidade dos anseios e das pretenses tanto sociais, quanto jurdicas. Estas novas

    nuances da sociedade, inseridas em um contexto de instituies pblicas tradicionais e

    burocrticas, desafiam sobremaneira criao de estratgias de reorganizao, tanto

    estruturais quanto nos contedos de suas respostas, a fim de que sejam oferecidos novos

    mecanismos de aperfeioamento da jurisdio, que respondam adequadamente s novas

    exigncias impostas pela sociedade. O nvel de complexidade das atuais relaes sociais

    transformam e fragilizam o desempenho das atribuies estatais, determinando um quadro de

    crise.

    Alguns dos aspectos dessa crise podem ser compreendidos como a crescente distncia

    entre a legislao e a realidade social, a dificuldade de efetivao e concretizao dos direitos

    fundamentais atravs das decises judiciais e na promoo do direito ao acesso justia, para

    alm do aspecto formal perante os rgos judicirios, como fundamentalmente o acesso a uma

    ordem jurdica justa. Portanto, surge a necessidade de interpenetrao entre as esferas pblica

    e privada, refletindo dessa maneira na necessidade de novas prticas administrativas,

    jurisdicionais, legislativas e polticas.

    O questionamento do modelo positivista traz tona a necessidade de novas formas de

    abordagem do delito, dentre as quais a adoo de mtodos restaurativos, que passam a ser

    discutidos e implementados, inicialmente de forma isolada, em algumas comunidades,

    conforme dito anteriormente. A necessidade de uma nova forma de resolver os conflitos

    advindos da prtica de crimes foi a base para o ressurgimento de tradies antigas, que deram

    origem Justia Restaurativa. Na Nova Zelndia as famlias (whanau) e as tribos (hapu)

    Maori questionavam o processo penal existente, ante a falta de sua participao e o

    encarceramento de grande parte de sua populao jovem. A ausncia de participao da

    vtima e da comunidade nos processos criminais e, a falta de compensao pelos danos

    sofridos, sejam emocionais ou materiais, passou a ser discutida pela sociedade.

    Na dcada de 60 e 70, nos Estados Unidos, vivenciou-se a crise do ideal

    ressocializador e da ideia de tratamento atravs da pena privativa de liberdade, a

    qual desencadeou, na dcada seguinte, o desenvolvimento de ideias de restituio

    penal e de reconciliao com a vtima e com a sociedade. Houve, ento naquele pas,

    duas propostas polticas-criminais: uma sugeria um retribucionismo renovado (teoria

    do just desert), enquanto outra propunha uma mudana de orientao no Direito

    Penal, focado agora na vtima do delito (movimento reparador). (PALLAMOLLA,

    2009, p. 34)

    Neste novo modelo proposto, o infrator visto como pessoa apta a se responsabilizar

    pelos danos e consequncias do delito, participa de forma ativa e direta, estimulado a

  • 24

    interagir com a vtima e com a comunidade, criando a oportunidade de desculpar-se ao

    sensibilizar-se com o trauma da vtima, informado sobre os atos do processo restaurativo e

    contribui para a deciso, alm de ser inteirado das consequncias do fato para a vtima e

    comunidade, envolvendo-se de forma importante e significativa com todo o processo, criando

    compromisso de aes no infratoras. Desta forma, h uma mudana no foco do conceito do

    crime, considerando-se esse como um fato que atinge as pessoas, suas relaes com o outro e

    com a sociedade.

    Numa dimenso social, a justia restaurativa traz a corresponsabilidade da sociedade e

    do poder pblico para pensar e buscar solues para os problemas relativos violncia, como

    foco nas necessidades das vtimas e infratores.

    1.3 DEBATE CONCEITUAL SOBRE A JUSTIA RESTAURATIVA

    Aristteles divide a justia em particular e universal, fazendo ainda uma subdiviso da

    justia particular, consistente em justia distributiva distribuio segundo o mrito de cada

    um - e corretiva, que busca corrigir as relaes entre os indivduos. A justia corretiva, por

    sua vez, subdivide-se em comutativa (visa a igualdade absoluta entre dano e indenizao) e

    reparadora (neste caso a igualdade seria proporcional, como forma de reparar ou indenizar o

    dano).

    O sistema penal considera a culpabilidade do infrator e a vtima no tem possibilidade

    de se expressar, uma vez que o crime cometido contra o Estado. Sendo assim, a justia

    restaurativa surge como forma de tratar os conflitos, fundada na responsabilidade do autor,

    concentrando-se nos prejuzos causados e na reconstruo das relaes, em sentido contrrio

    aos preceitos da justia retributiva, que considera o fato praticado e a punio do infrator. O

    professor ZEHR (2012) nos traz a seguinte definio de Justia Restaurativa:

    um processo para envolver, tanto quanto possvel, todos aqueles que tm interesse

    em determinada ofensa, num processo que coletivamente identifica e trata os danos, necessidades e obrigaes decorrentes da ofensa, a fim de promover o

    restabelecimento das pessoas e endireitar as coisas, na medida do possvel. (ZEHR,

    2012, p. 49)

    Na Resoluo 12/2002 do Conselho Econmico e Social da ONU, ao dispor sobre os

    princpios bsicos para utilizao do referido modelo, item um (1), conceitua a Justia

    Restaurativa como um processo atravs do qual todas as partes envolvidas em um ato que

    causou ofensa renem-se para decidir coletivamente como lidar com as circunstncias

    decorrentes desse ato e suas implicaes para o futuro.

  • 25

    Paul McCold e Ted Wachtel abordam a Justia sobre uma nova tica conceitual,

    partindo de questionamentos acerca das necessidades das pessoas afetadas pelo crime. Ambos

    sustentam que:

    crimes causam danos a pessoas e relacionamentos, e que a justia restaurativa no

    feita porque merecida e sim porque necessria, atravs de um processo

    cooperativo que envolve todas as partes interessadas principais na determinao da

    melhor soluo para reparar o dano causado pela transgresso - a justia restaurativa um processo colaborativo que envolve aqueles afetados mais diretamente por um

    crime, chamados de partes interessadas principais, para determinar qual a melhor

    forma de reparar o dano causado pela transgresso ( MCCOLD, WACHTEL, 2003,

    p. 3).

    Rolim (2006) nos traz a definio de Tony Marshal para a justia restaurativa, ou seja,

    um processo onde as partes envolvidas por um determinado erro ou delito

    encontram-se para resolver coletivamente como lidar com as conseqncias do fato

    e com suas implicaes futuras. Os infratores podero restaurar suas prprias

    reputaes atravs da reparao e estaro mais habilitados a uma reintegrao plena

    sociedade tendo resolvido sua culpa atravs desse caminho. Para Marshal, a reparao pode se dar atravs de pagamento em dinheiro vtima, por trabalho feito

    para a vtima, por trabalho para uma causa comunitria escolhida pela vtima,

    atravs de determinadas obrigaes ou tarefas por ele assumidas, como freqentar

    um curso ou iniciar um tratamento ou, ainda, por uma composio destas

    possibilidades. Para os casos onde no se conhece o infrator e para os casos onde as

    vtimas no desejem qualquer tipo de contato com o infrator, pode-se realizar

    encontros temticos para os quais so 15 selecionados, de um lado, um grupo de

    infratores que tenham cometido um mesmo tipo de infrao e, de outro, pessoas que

    foram vitimadas por esse tipo de infrao. Assim, mesmo na ausncia de uma

    relao direta e causal entre vtima e infrator, teramos um encontro que simbolizaria

    legitimamente esta relao. (ROLIM, 2006, p. 25)

    O sistema canadense nos traz como marco jurdico de referncia paradigmtico para o

    debate da justia restaurativa, a interpretao pela Suprema Corte do artigo 718.2 do Cdigo

    Criminal (casos Gladue v. the Queen e Proulx v. the Queen). Ao discutir o tema a Suprema

    Corte trouxe a seguinte definio:

    Justia restaurativa diz respeito restaurao das partes que foram afetadas pela

    prtica de uma ofensa. O crime, geralmente, afeta pelo menos trs partes: a vtima, a

    comunidade e o ofensor. A abordagem da justia restaurativa visa remediar os

    efeitos adversos do crime, de maneira a enfocar as necessidades de todas as partes

    envolvidas. Isto realizado, em parte, atravs da reabilitao do ofensor, reparao

    em favor da vtima e da comunidade e promoo de um senso de responsabilidade

    no ofensor e reconhecimento do dano causado vtima e comunidade (caso Proulx v. the Queen) (CANAD, 2006).

    A Colmbia tem a seguinte definio de Justia Restaurativa, prevista no art. 518, do

    Cdigo de Processo Penal:

    Se entender por programa de justicia restaurativa todo proceso en el que la vctima

    y el imputado, acusado o sentenciado participan conjuntamente de forma activa en la

    resolucin de cuestiones derivadas del delito en busca de un resultado restaurativo,

    con o sin la participacin de un facilitador.

  • 26

    Da anlise do debate conceitual, acima alinhavado, pode-se conceituar justia

    restaurativa como o procedimento onde as pessoas afetadas pelo delito, incluindo o prprio

    ofensor, se renem de forma voluntria para buscar a restaurao das relaes impactadas e a

    reparao dos danos sofridos.

    Observa-se que o conceito de Justia Restaurativa ainda no est posto de forma

    definitiva e se encontra em construo, j que se funda em tradies j existentes que, esto

    sendo estudadas e analisadas de forma cientfica aps a implantao de diversos programas ao

    redor do mundo, sendo que a Resoluo n.12/2002 estabelece a necessidade de estudo e

    aperfeioamento das prticas restaurativas para que se encontre a que melhor se aplique a

    cada caso concreto. O objeto deste estudo foi primeiramente colocado em prtica para depois

    ser conceituado, sendo que a multiplicidade de programas e prticas enseja a necessidade de

    averiguao das similaridades entre eles para se estabelecer um conceito e determinar o que

    justia restaurativa e o que apenas se aproxima desse novo modelo de justia.

    1.4 CORRENTES TERICAS

    Segundo Zehr (2012), a justia restaurativa est fundada em trs pilares: os danos

    vtima causados pelo delito e consequentes necessidades, as obrigaes decorrentes desses

    danos e a participao das partes afetadas pelo crime, inclusive a comunidade atingida. Para

    Zehr (2012) so princpios fundamentais da Justia Restaurativa o foco nos danos e nas

    necessidades da vtima, da comunidade e do ofensor, abordagem das obrigaes resultantes

    dos danos, a utilizao de processos inclusivos e cooperativos para soluo dos danos

    causados pelo crime, envolvimento de todos os atingidos pelo delito, como a vtima, ofensor,

    famlia, comunidade, sociedade e, a correo dos danos causados pelo crime.

    A apresentao de diversos pontos de distino entre a justia retributiva e a

    restaurativa, principalmente no tocante ao tratamento da vtima no sistema penal em vigor,

    alm das finalidades de cada uma delas, sem dvida, acaba por delinear uma nova perspectiva

    de justia (ZEHR, 2012).

    Dado o enfoque da justia restaurativa em bases diversas daquelas da justia penal

    atual, duas correntes tericas se destacam, uma que defende a possibilidade de substituio do

    modelo vigente de justia retributiva pelo modelo restaurativo e, a que coloca a Justia

    Restaurativa integrada ao sistema jurdico, de forma a complementar as lacunas existentes no

  • 27

    sistema vigente, ao permitir a escuta qualificada de todos os envolvidos no delito e que de

    alguma forma por ele foram atingidas.

    Para Jaccoud (2005), apenas os modelos centrados nas finalidades e aqueles centrados

    nos processos e finalidades podem ser considerados como justia restaurativa, posto que no

    interessa a forma como feito o encontro ou crculo e sim seu resultado. Segundo a autora,

    para a corrente minimalista basta que o procedimento utilizado para a soluo do conflito seja

    restaurativo, com a participao de todos os impactados por ele, sem que necessariamente o

    resultado alcanado seja reparador. Por outro lado, a corrente maximalista defende que o

    resultado restaurativo pode ser obtido atravs de qualquer processo, sendo importante que se

    alcance a finalidade, no importando os meios utilizados para que sejam observadas as

    necessidades das pessoas envolvidas no delito. Portanto, Jaccoud (2005) apresenta trs

    orientaes da justia restaurativa e, por meio de uma tabela, elaborada pela prpria,

    procurailustrar as principais diferenas e as coloca num escalonamento.

    TABELA 1 MODELOS DE JUSTIA RESTAURATIVA

    JUSTIA

    RESTAURATIVA

    PROCESSOS FINALIDADES EXEMPLOS

    I (modelo

    centrado nas

    finalidades)

    (secundrio) R e s t a u r a t i v a (centrais)

    Ordens de compensao

    Trabalhos comunitrios

    II (modelo

    centrado nos

    processos)

    Negociado

    (central)

    (secundrio) Crculos de

    sentena

    III (modelo

    centrado nos

    processos e nas

    finalidades)

    Negociado

    (central)

    R e s t a u r a t i v a

    (centrais)

    Mediao

    Fonte: reproduo da tabela apresentada por Mylne Jaccoud.

    No tocante integrao da justia restaurativa no sistema judicial, se afiguram duas

    tendncias contrrias, a minimalista e a maximalista. Para aqueles que defendem a perspectiva

    minimalista, tambm denominada de diversionista do sistema judicirio, a justia restaurativa

    no deve ser aplicada pelo Estado, mas por voluntrios, funcionando como uma alternativa ao

    sistema judicial. Jaccoud (2005) afirma que a tendncia maximalista defendida por Walgrave,

  • 28

    autor da obra La justice rparatrice: la recherche dune thorie et dun programme,, ao

    prever a integrao da justia restaurativa ao processo penal ou infracional, para que se possa

    obter uma transformao deste, instiga um polmico debate. Assim, temos alguns

    questionamentos que evidenciam a rica polmica:

    1) um sistema de justia estatal que mude para valorizar a reparao dos danos

    causados vtima convidando o ofensor a contribuir com isto em detrimento da

    pena. Este sistema no mais retributivo, mas sim restaurativo. Mesmo se o nvel de

    constrangimento for elevado e mesmo se, subjetivamente, o ofensor possa vivenciar

    a imposio de uma sano objetivando a correo do dano como punio. O

    termmetro que permite avaliar se um sistema restaurativo , vamos repetir, a finalidade (reparar as conseqncias) e no a percepo dos envolvidos. Neste

    contexto, o termo sistema penal poderia ser substitudo por sistema de justia;

    em tal sistema, a verdadeira alternativa tornar-se-ia a sano punitiva (o

    encarceramento), compreendida como uma ltima forma de sano punitiva em

    casos onde o autor representa uma real ameaa para a sociedade;

    2) um sistema de justia estatal que no transforma a finalidade das sanes

    (manuteno das finalidades punitivas), mas que acrescenta uma dimenso

    restaurativa s suas modalidades de aplicao das sanes. Este sistema permanece

    retributivo em sua essncia. de se perguntar se a adio de dimenses

    restaurativas, considerando-se o seu carter inevitavelmente coercitivo, no vir a

    endurecer um sistema que aumenta suas exigncias diante dos contraventores

    devendo os mesmos, alm de suas penas, engajar-se em iniciativas restaurativas. (JACCOUD, 2005, p. 173)

    Da anlise das questes propostas por Jaccoud (2005) pode-se verificar que a

    existncia de uma Justia Restaurativa, que mantenha sua essncia restauradora, tanto nos

    processos quanto nas finalidades no poder ser utilizada como forma de recrudescimento do

    sistema penal. Caso isso ocorra estar descaracterizada a prtica restaurativa, sendo que a

    Resoluo n.12/2002, do Conselho Econmico e Social da ONU veda expressamente a

    utilizao da falta de engajamento no processo restaurativo ou, da no obteno de um acordo

    restaurativo, no processo criminal subsequente. Assim, caso o ofensor no concorde em

    participar de uma prtica restaurativa, tal fato no poder ser considerado negativamente no

    processo penal.

    No que tange substituio do sistema de justia retributivo pela justia restaurativa,

    passando o primeiro a ser a alternativa existente, considera-se esta uma realidade ainda

    distante no mundo atual, em razo da existncia de crimes em que as pessoas diretamente

    envolvidas no sintam ter condies de participar do processo, devendo Estado exercer sua

    funo de garantir a segurana e responsabilizar os culpados pelos crimes, impondo-lhes as

    penas descritas em lei. Vale dizer que, nos casos em que h evidncias de doenas mentais,

    tais como a psicopatia, no h possibilidade de participao em processos restaurativos, os

    quais pressupem que as pessoas exponham suas verdades e se responsabilizem minimamente

    por seus atos.

  • 29

    Zehr (2012), apesar de ter feito uma clara distino entre a justia retributiva e a

    justia restaurativa nos seus primeiros escritos, na obra denominada Justia Restaurativa

    afirma que, alm de diferenas, existem semelhanas entre ambas, sendo comum a elas o fato

    de possurem defeitos e qualidades, as quais devem ser exploradas pela sociedade, ora

    utilizando-se de um sistema ora de outro, colocando a justia restaurativa como complementar

    ao sistema jurdico vigente.

    Esta viso da justia restaurativa possibilita seu uso numa gama ampla de situaes e

    etapas processuais, tanto pr-processual como no processo penal e, na execuo da pena ou da

    medida socioeducativa, ou seja, mesmo que tenha sido acionado o sistema retributivo ainda

    possvel tentar restaurar relaes e reparar danos atravs de um consenso obtido atravs das

    prticas restaurativas.

    1.5 PRINCPIOS DA JUSTIA RESTAURATIVA

    Alguns princpios bsicos da Justia Restaurativa, para que se possa alcanar a

    compreenso do dano causado por parte do infrator e a superao do dano pela vtima, so

    elencados na Resoluo n 12/2002, do Conselho Econmico e Social da Organizao das

    Naes Unidas, sendo eles:

    princpio da voluntariedade a participao no programa de justia restaurativa

    deve se dar de forma voluntria. Embora no seja necessria a espontaneidade, ou seja, as

    partes podem ser encaminhadas para o programa atravs de facilitadores e/ou outras pessoas

    capacitadas para tanto, deve se obter a concordncia das partes para participar das reunies,

    crculos ou conferncias.

    A adeso do infrator deve ser feita de forma consciente, sem qualquer tipo de coero,

    portanto, deve ser esclarecido todo o funcionamento do processo judicial e da abordagem

    restaurativa; da mesma forma, a vtima no obrigada a participar de uma prtica

    restaurativa, devendo ser consultada antes do incio do procedimento, de preferncia aps a

    consulta ao ofensor. Tanto vtima quanto ofensor podem ainda desistir a qualquer tempo de

    participar dos encontros ou reunies restaurativas, caso no estejam de acordo com as tcnicas

    utilizadas. O ponto 13 da Resoluo nmero 12/2002 dispe que:

    As garantias processuais fundamentais que assegurem tratamento justo ao ofensor e

    vtima devem ser aplicadas aos programas de justia restaurativa e particularmente

    aos processos restaurativos:

  • 30

    a) Em conformidade com o Direito nacional, a vtima e o ofensor devem ter o direito

    assistncia jurdica sobre o processo restaurativo e, quando necessrio, traduo

    e/ou interpretao. Menores devero, alm disso, ter a assistncia dos pais ou

    responsveis legais.

    b) Antes de concordarem em participar do processo restaurativo, as partes devero

    ser plenamente informadas sobre seus direitos, a natureza do processo e as possveis

    conseqncias de sua deciso;

    c) Nem a vtima nem o ofensor devero ser coagidos ou induzidos por meios ilcitos

    a participar do processo restaurativo ou a aceitar os resultados do processo.

    princpio da confidencialidade - a participao do infrator no poder ser usada

    como prova de admisso de sua culpa em eventual processo judicial, no implicando em

    confisso. As partes envolvidas no processo restaurativo devem guardar sigilo de todas as

    informaes obtidas durante seu desenvolvimento, sendo esta uma das diretrizes dos crculos

    restaurativos. A Resoluo supracitada estabelece a confidencialidade em seu item 14, ao

    dispor que: As discusses no procedimento restaurativo no conduzidas publicamente devem

    ser confidenciais, e no devem ser divulgadas, exceto se consentirem as partes ou se

    determinado pela legislao nacional.

    A participao do ofensor no processo restaurativo tambm no poder ser entendida

    como uma confisso da prtica do delito, se o caso for encaminhado posteriormente para o

    sistema judicial. Vale anotar que sequer a ausncia de sucesso no processo restaurativo poder

    ser usada no processo criminal ou processo infracional subsequentes, como fator negativo

    para o infrator ou justificativa para imposio de pena ou medida socioeducativa mais

    gravosa.

    princpio da consensualidade - os acordos devero ser pactuados voluntariamente,

    devendo alcanar alm da participao, a adeso ao regramento da prtica restaurativa e a

    compreenso sobre o instituto; O rito deve ser comunitrio, voluntrio, colaborativo e os

    atores principais so a vtima, o infrator e pessoas da comunidade, com o processo decisrio

    compartilhado com as pessoas envolvidas. A Resoluo n.12/2002 estabelece em seu artigo 8

    que, a vtima e o ofensor devem concordar sobre os fatos essenciais do caso discutido,

    portanto, a negativa de autoria por parte do infrator impossibilita a realizao de um processo

    restaurativo.

    b) Antes de concordarem em participar do processo restaurativo, as partes

    devero ser plenamente informadas sobre seus direitos, a natureza do processo e as

    possveis conseqncias de sua deciso;

    c) Nem a vtima nem o ofensor devero ser coagidos ou induzidos por meios ilcitos a participar do processo restaurativo ou a aceitar os resultados do

    processo.

  • 31

    princpio da celeridade - a rapidez do procedimento restaurativo no implica em

    sua curta durao, mas decorre da informalidade do procedimento e imediato

    encaminhamento dos casos aos facilitadores para uma resposta clere ao delito. Busca-se no

    processo restaurativo uma maior agilidade na conduo do que na justia convencional,

    sempre tachada de morosa. Os casos encaminhados para aplicao de prticas restaurativas

    devem ser remetidos para o sistema de justia comum, nos termos da resoluo citada, quando

    no for indicada ou possvel a realizao dos encontros, como podemos observar no ponto 16

    da mencionada resoluo: Quando no houver acordo entre as partes, o caso dever retornar

    ao procedimento convencional da justia criminal e ser decidido sem delonga. O insucesso do

    processo restaurativo no poder, por si, usado no processo criminal subsequente.

    Importante, neste aspecto, a fixao de prazos para conduo das prticas

    restaurativas, alm de ter o facilitador a sensibilidade de perceber se os encontros no esto

    sendo produtivos e no esto trilhando um caminho de restaurao, para que sejam de pronto

    encaminhados ao sistema de justia, o qual dever buscar uma soluo clere para o caso.

    princpio da urbanidade - as partes devem se respeitar mutuamente, tratando-se

    com respeito e civilidade durante todo o procedimento restaurativo. Trata-se de regra de

    convivncia basilar numa sociedade, a qual dever ser observada pela vtima e pelo ofensor

    durante as prticas restaurativas. As diferenas eventualmente existentes entre ambos, sejam

    de cor, raa, religio, etnia, gnero, devem ser respeitadas durante todo o processo

    restaurativo. Na construo de valores e diretrizes a serem observadas nos crculos

    restaurativos, e tambm nas outras prticas restaurativas, deve sempre constar o respeito ao

    outro e sua individualidade.

    princpio da adaptabilidade - a Justia Restaurativa pode ser aplicada de diversas

    formas, crculos restaurativos, conferncias, debates, dilogos e, em razo dessa diversidade

    de modelos restaurativos, deve se buscar aquele que melhor se adqua ao caso posto para

    discusso atravs do procedimento restaurativo. Tem-se, assim, um prvio estudo para

    verificar qual a melhor abordagem restaurativa para as partes envolvidas, adaptando-se esta s

    necessidades da vtima e do infrator. O que se busca no processo restaurativo a efetividade

    dos encontros, conferncias, dilogos ou reunies para a restaurao das relaes sociais, no

    devendo o formalismo ser um empecilho para se alcanar este objetivo.

  • 32

    Desta forma, deve-se considerar a prtica restaurativa eleita pelo facilitador apenas um

    meio para alcance da paz social, o qual poder ser adaptado s necessidades das partes,

    verificadas no decorrer do processo restaurativo.

    princpio da imparcialidade - todos devem ser tratados da mesma forma pelos

    profissionais que conduzirem as prticas restaurativas. A vtima e o infrator devero ser

    considerados de forma igual, sem que se parta de uma tica de superioridade da vtima e

    inferioridade do autor do delito. No artigo 18 da Resoluo, em destaque, registra-se de forma

    explcita que os facilitadores devem atuar de forma imparcial, com o devido respeito

    dignidade das partes. Nessa funo, os facilitadores devem assegurar o respeito mtuo entre

    as partes e capacita-las a encontrar a soluo cabvel entre elas. Portanto, extrai-se deste

    princpio a necessidade de uma adequada capacitao dos facilitadores, a fim de que no se

    envolva emocionalmente com o caso e as partes, influenciando de forma negativa os

    envolvidos. Importante, ainda, que os facilitadores conheam e compreendam as diferentes

    culturas regionais e das comunidades, para evitar que tais diferenas gerem desequilbrios

    durante o processo. Vtima e ofensor tambm devem estar preparados para essa conduo

    imparcial do processo restaurativo, para que ajam com respeito mtuo.

    Em Braslia, na Conferncia Internacional Acesso Justia por Meios Alternativos de

    Resoluo de Conflitos, no ano de 2005, elencaram-se dezoito princpios e valores dos

    procedimentos restaurativos, registrados na Carta elaborada ao final do evento, que

    expressaram a compreenso de responsabilidade social e do distanciamento da justia em

    relao ao cidado:

    1. plenas e precedentes informaes sobre as prticas restaurativas e os

    procedimentos em que se envolvero os participantes; 2. autonomia e voluntariedade

    na participao em prticas restaurativas, em todas as suas fases; 3. respeito mtuo

    entre os participantes do encontro; 4. co-responsabilidade ativa dos participantes; 5.

    ateno s pessoas envolvidas no conflito com atendimento s suas necessidades e

    possibilidades; 6. envolvimento da comunidade, pautada pelos princpios da

    solidariedade e cooperao; 7. interdisciplinariedade da interveno; 8. ateno s

    diferenas e peculiaridades scio-econmicas e culturais entre os participantes e a

    comunidade, com respeito diversidade; 9. garantia irrestrita dos direitos humanos e

    do direito dignidade dos participantes; 10. promoo de relaes equnimes e no

    hierrquicas; 11. expresso participativa sob a gide do Estado Democrtico de

    Direito; 12. facilitao feita por pessoas devidamente capacitadas em procedimentos restaurativos; 13. direito ao sigilo e confidencialidade de todas as informaes

    referentes ao processo restaurativo; 14. integrao com a rede de polticas sociais em

    todos os nveis da federao; 15. desenvolvimento de polticas pblicas integradas;

    16. interao com o sistema de justia, sem prejuzo do desenvolvimento de prticas

    com base comunitria; 17. promoo da transformao de padres culturais e a

    insero social das pessoas envolvidas; 18. monitoramento e avaliao contnua das

    prticas na perspectiva do interesse dos usurios.

  • 33

    Estes princpios vm ao encontro de alguns dos postulados fundamentais do Direito

    Penal, tais como o princpio da interveno mnima, da proporcionalidade, da adequao

    social e razoabilidade, os quais tambm norteiam a Justia Restaurativa.

    Portanto, ao se ter clara a importncia da justia restaurativa no tratamento no

    adversarial da resoluo de conflitos, na questo relativa concretizao dos direitos

    humanos, considerando-se seus princpios basilares, prope-se novas perguntas a serem feitas,

    tendo como foco as consequncias do dano, as necessidades da vtima, a obrigao de reparar

    o dano causado vtima e, os fatores que levaram o autor a cometer a infrao.

    Dessa maneira, com a preocupao voltada de forma especial vtima, proporcionam-

    se algumas transformaes no campo dos valores ticos e morais, adotando-se o conceito

    realstico de crime, como ato que traumatiza a vtima, causando-lhe danos, proporcionando a

    possibilidade de ser tratado multidisciplinarmente.

    Na justia restaurativa a responsabilidade pela restaurao ultrapassa a esfera

    individual e assume uma dimenso social, compartilhada coletivamente e voltada para o

    futuro. Por consequncia, cria vnculos de solidariedade responsvel que tero como

    expresso social, o compromisso pela cultura da paz. A vtima deve ocupar o centro do

    processo, desempenha o seu papel com voz ativa, participa e at mesmo tem controle sobre o

    processo restaurativo. A vtima deve receber assistncia, afeto, reparao emocional e

    restituio de perdas materiais nos casos possveis. Assim, poder haver a construo de

    confiabilidade no sistema, criao e fortalecimento dos laos familiares e comunitrios.

    Portanto, os ganhos so positivos e h o atendimento das necessidades individuais e coletivas

    da vtima, ofensor, famlia e comunidade.

    O objetivo primordial a reparao do trauma moral e dos prejuzos emocionais,

    proporcionando a restaurao e a incluso social. As medidas reparadoras, como a prestao

    de servios e a reparao de danos, dentre outras, tm mais eficincia e eficcia, pois se

    baseiam na proporcionalidade e na razoabilidade das obrigaes assumidas no acordo

    restaurativo.

    Destarte, as necessidades da vtima e do autor do delito so prioridades e a paz

    construda por todos, atravs de um processo decisrio conjunto, partilhado entre os

    participantes das prticas restaurativas, o que gera o empoderamento da comunidade, da

    vtima e, tambm do ofensor.

  • 34

    CAPTULO 2 IMPLANTAO DA JUSTIA RESTAURATIVA NO

    BRASIL

    2.1 PRTICAS RESTAURATIVAS

    A justia restaurativa pode ser aplicada de diversas formas, sendo que as principais,

    segundo Zehr (2012) so os encontros vtima-ofensor, as conferncias de grupos familiares e,

    os crculos de resoluo de conflitos, os quais podem ser utilizados conjuntamente. Como

    alhures mencionado, a participao em quaisquer destes modelos de prtica restaurativa

    pressupe o reconhecimento da responsabilidade, por parte do infrator (mesmo que no o faa

    de forma integral) e, a participao voluntria da vtima e do ofensor, conforme estabelece a

    Resoluo 12/2002 do Conselho Econmico e Social da ONU. de suma importncia, ainda,

    que as pessoas envolvidas sejam verdadeiras naquilo que dizem e expressem seus sentimentos

    de forma fidedigna, para que no ocorra a construo de um todo um processo, baseado em

    falsas percepes.

    Encontros entre vtima e ofensor

    Na doutrina sobre a Justia Restaurativa h posies distintas sobre a denominao

    destes encontros. Nos Estados Unidos existe o programa de mediao vtima-ofensor e, esta

    a nomenclatura utilizada por diversos tericos e tambm nos programas restaurativos. Zehr

    (2012), por sua vez, afirma categoricamente que o termo no apropriado, pois justia

    restaurativa no se confunde com mediao, j que no h uma partilha de responsabilidades,

    no se podendo atribuir culpa vtima. Sustenta que o delito deve ser reconhecido como

    causador de danos pelo infrator, o que retira a neutralidade que uma mediao deve possuir,

    conforme se extrai do conceito por Douglas E. Yarn, apresentado por Azevedo (2010):

    um processo autocompositivo segundo o qual as partes em disputa so auxiliadas

    por uma terceira parte, neutra ao conflito, ou um painel de pessoas sem interesse na

    causa, para auxili-las a chegar a uma composio. Trata-se de uma negociao

    assistida ou facilitada por um ou mais terceiros na qual se desenvolve processo composto por vrios atos procedimentais pelos quais o(s) terceiro(s) imparcial(is)

    facilita(m) a negociao entre pessoas em conflito, habilitando-as a melhor

    compreender suas posies e a encontrar solues que se compatibilizam aos seus

    interesses e necessidades. (AZEVEDO, 2010, p. 55)

    Cabe lembrar que vtima e ofensor no esto numa disputa a ser negociada, o que

    pressuposto de uma mediao, razo pela qual a terminologia no a mais adequada para

    utilizao no mbito da justia restaurativa, embora largamente utilizada em mais de 300

  • 35

    programas norte-americanos. Adota-se, assim, a denominao encontro ou dilogo para tratar

    dos contatos entre vtima e ofensor nos processos restaurativos.

    Os encontros, tambm denominados dilogos entre vtima e ofensor, so efetuados por

    um facilitador. Num primeiro momento so feitos contatos com a vtima e o ofensor, a fim de

    averiguar a possibilidade de realizao dos encontros, uma vez que se faz necessrio o

    consentimento de ambos para a continuidade do processo restaurativo. Nestes encontros

    preliminares com a vtima e o ofensor so esclarecidas as etapas e o funcionamento do

    processo restaurativo, inclusive a confidencialidade que envolve todo o procedimento, alm

    de ser possibilitado s partes que apresentem sua viso do delito. Em seguida, o facilitador

    promove o encontro da vtima e do ofensor, orientando todo o processo, o qual poder resultar

    num acordo de reparao dos danos ou restituio dos bens.

    Azevedo (2005) indica pontos importantes a serem esclarecidos aos participantes dos

    encontros restaurativos:

    i) que se indique que o mediador no estar atuando como juiz no competindo a este qualquer julgamento; ii) que o processo de mediao informal contudo

    estruturado a ponto de permitir que cada parte tenha a oportunidade de se

    manifestar, sem interrupes; iii) que as partes tero a oportunidade de apresentar

    perguntas umas s outras, bem como aos acompanhantes, que tambm podero se

    manifestar, desde que resumidamente e que no tirem o enfoque do contato direto

    entre vtima e ofensor; iv) que as partes, em seguida, tero a oportunidade de debater

    formas de resolver a situao e reparar os danos; v) que o acordo somente ser

    redigido se as partes estiverem satisfeitas com tal resoluo e sem que haja qualquer

    forma de coero para o atingimento dessa resoluo por parte do mediador; vi) que

    todos os debates ocorridos na mediao e nas sesses preliminares sero mantidos

    na mais absoluta confidencialidade e no podero ser utilizados como prova em eventuais processos cveis ou criminais; vii) que, caso haja advogados presentes na

    mediao, estes so importantes para a conduo desse processo, na medida em que

    bons advogados auxiliam o desenvolvimento da mediao e, por conseqncia, o

    alcance dos interesses de seu cliente pois apresentam solues criativas aos impasses

    que eventualmente surjam em mediaes56; viii) que, havendo necessidade, o

    mediador poder optar por prosseguir com a mediao fazendo uso de sesses

    individuais (ou privadas) nas quais as partes se encontram separadamente com o

    mediador; e ix) que o papel das partes na mediao consiste em ouvirem

    atentamente umas s outras, escutarem sem interrupes, utilizarem linguagem no

    agressiva, e efetivamente trabalharem em conjunto para acharem as solues

    necessrias. (AZEVEDO, 2005, p. 146/147)

    O projeto de justia restaurativa implantado no Distrito Federal utiliza a mediao

    vtima-ofensor, assim como os programas norte-americanos e, parte dos programas existentes

    em pases europeus. A Colmbia, no art. 521 do seu Cdigo de Processo Penal, prev como

    mecanismos da Justia Restaurativa a conciliao e a mediao, estabelecendo que esta ltima

    poder ocorrer mediante a reparao, restituio ou ressarcimento dos danos causado, bem

  • 36

    como pela realizao ou absteno de determinada conduta, a prestao de servios a

    comunidade e, por fim, atravs de um pedido de desculpas ou perdo.

    Crculos

    Os crculos tm suas origens nas comunidades aborgenes do Canad e passaram a ser

    utilizados em diversos pases que implantaram a justia restaurativa. No Canad, o juiz Barry

    Stuart os denominou de crculos de construo da paz. Os encontros que antecedem o crculo

    so chamados de pr-crculos e se destinam a averiguar a possibilidade de encaminhamento

    do caso, obter o consentimento das partes envolvidas e, repassar todo o procedimento para

    ofensor e vtima, a fim de que estejam plenamente cientes do desenrolar de todo o processo

    restaurativo. Nos crculos h participao da vtima, do ofensor, familiares de ambos, pessoas

    da comunidade, alm de profissionais do judicirio, sem obrigatoriedade de sua participao.

    Para Amstutz (2012) so elementos-chave dos processos circulares o respeito s

    crenas de cada membro da comunidade, a vontade de todos se relacionarem de forma

    positiva, os valores que cada um cr necessrio para manter um relacionamento de forma

    positiva, os facilitadores e o basto da fala.

    Neste modelo de justia restaurativa, as reunies ocorrem com as pessoas acomodadas

    em um crculo, as quais tem a oportunidade de se expressar quando esto em poder do basto

    da fala, o qual deve passar de mo em mo, na ordem em que as pessoas se encontram

    sentadas. No incio do crculo feita a leitura de um texto, ou uma declarao para abertura

    dos trabalhos. Os facilitadores, tambm denominados de guardies do crculo dirigem as

    reunies, orientando os participantes, conforme explica Brancher (2011):

    A principal caracterstica desses encontros est em que a palavra colocada

    disposio dos presentes, de forma sequencial e rotativa. Coloca-se em circulao

    entre os presentes um objeto (basto falador), que passa de mo em mos, e cuja

    posse autoriza o portador a fazer uso da palavra nico momento em que cada

    pessoa poder se manifestar, exceo feita apenas ao coordenador do encontro. A

    cada rodada, os participantes so convidados a manifestarem-se a respeito de um

    tema diferente. comum essas etapas aparecerem relacionadas aos quadrantes do

    crculo, por sua vez indicando etapas rituais de um processo simblico de

    transformao. (BRANCHER, 2011, p. 9)

    A estrutura dos crculos segue a seguinte dinmica: escolha do centro e do objeto da

    palavra; realizao da cerimnia de abertura; apresentao/check in; escolha dos valores a

    serem respeitados; fixao das diretrizes; contao de histrias; abordagem dos problemas;

    perguntas orientadoras; gerao de acordos; consenso; check out; cerimnia de encerramento.

    Durante a realizao do crculo o facilitador um participante e o objeto da palavra que

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    regulamenta o dilogo, ou seja, quem estiver com o objeto escolhido quem poder falar. A

    posse do objeto da fala possibilita que a pessoa expresse seus sentimentos e suas vontades,

    mas no a obriga a falar. Por outro lado, o basto da fala impe a escuta qualificada, j que

    somente a pessoa que o detm poder falar, todas as outras estaro aptas a ouvir atenta e

    respeitosamente o que ela falar. A interveno do facilitador, quando no estiver com o

    objeto, permitida apenas para manter a ordem no processo circular.

    Amstutz (2012) discorre sobre o basto de fala, explicando sua funo:

    um objeto focal aceito e usado pelo grupo. Em geral trata-se de algo que tenha um

    significado especial para o grupo.

    Proporciona oportunidade de escutar e refletir antes de falar, j que todos devem

    esperar a sua vez para se manifestarem no momento em que recebem o basto de

    fala. Assim, os participantes tendem a prestar mais ateno ao que as pessoas esto

    dizendo em vez de preparar uma resposta imediata.

    Evitar altercao entre duas pessoas, j que todos devem esperar sua vez para falar.

    Estimula a responsabilidade partilhada durante a discusso.

    Refora a igualdade no crculo, j que proporciona igual oportunidade a todos os

    participantes.

    Abre maior espao para aqueles que em geral ficam em silncio, j que no precisam mais competir por espao com aqueles que so mais extrovertidos. (AMSTUTZ,

    2012, p. 78)

    As diretrizes para o uso do referido objeto, segundo Amstutz (2012), devem prever o

    uso da palavra apenas pela pessoa que estiver portando o objeto, a qual dever se manifestar

    sempre de forma respeitosa para com os demais integrantes do crculo, alm de usar a palavra

    parcimoniosamente, oportunizando assim que todos se manifestem. Nos crculos a pessoa

    tambm pode deixar de falar, se assim o desejar, devendo sempre respeitar a

    confidencialidade do que for partilhado durante sua realizao.

    Aps a realizao do crculo e ocorrendo a elaborao de um acordo, so feitos ps-

    crculos, novamente com a participao de todos aqueles que estiveram presentes ao crculo, a

    fim de averiguar se o acordo foi cumprido, qual o resultado para todos eles.

    Para atuar como facilitador