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UNIVERSIDADE FEDERAL DO TOCANTINS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO STRICTO SENSU MESTRADO
PROFISSIONAL INTERDISCIPLINAR EM PRESTAO JURISDICIONAL E
DIREITOS HUMANOS
JULIANNE FREIRE MARQUES
CRCULOS DA PAZ: PRTICAS RESTAURATIVAS COMO INSTRUMENTO DE
ACESSO JUSTIA NAS ESCOLAS DO TOCANTINS
PALMAS
2015
1
JULIANNE FREIRE MARQUES
CRCULOS DA PAZ: PRTICAS RESTAURATIVAS COMO INSTRUMENTO DE
ACESSO JUSTIA NAS ESCOLAS DO TOCANTINS
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao
em Stricto Sensu em Prestao Jurisdicional e Direitos
Humanos, Universidade Federal do Tocantins, na linha
de pesquisa Instrumentos da Jurisdio, Acesso
Justia e Direitos Humanos, como requisito parcial para
obteno do ttulo de Mestre em Prestao Jurisdicional
e Direitos Humanos.
Orientador: Prof. Dr. Paulo Fernando de M. Martins
PALMAS
2015
Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) Sistema de Bibliotecas da Universidade Federal do Tocantins
M357c MARQUES, Julianne Freire. Crculos da paz: prticas restaurativas como instrumento de acesso
justia nas escolas do Tocantins. / Julianne Freire MARQUES. - Palmas, TO, 2015.
67 f.
Dissertao (Mestrado Profissional) - Universidade Federal do Tocantins - Campus Universitrio de Palmas - Curso de Ps-Graduao (Mestrado) em Prestao Jurisdicional em Direitos Humanos, 2015.
Orientador: Paulo Fernando de M . MARTrNS
1. Direitos humanos. 2. Justia restaurativa. 3. Violncia escolar. 4. Cultura da paz. I . Ttulo
CDD342
TODOS OS DIROTOS RESERVADOS - A reproduo total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio deste documento autorizado desde que citada a fonte. A violao dos direitos do autor (Lei n 9.610/98) crime estabelecido pelo artigo 184 do Cdigo Penal. Elaborado pelo sistema de gerao automtica de ficha catalogrfica da UFT com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).
JULIANNE FREIRE MARQUES
Crculos da Paz: prticas restaurativas como instrumento de acesso justia nas escolas do Tocantins.
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu Mestrado Profissional Interdisciplinar em Prestao Jurisdicional e Direitos Humanos da Universidade Federal do
Tocantins, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Prestao Jurisdicional e Direitos Humanos.
Linha de pesquisa:
Instrumentos da Jurisdio, Acesso Justia e Direitos Humanos.
Orientador: Prof. Dr. Paulo Fernando de Melo Martins
Aprovada em 10 de dezembro de 2015.
Comisso Examinadora
Prof. Dr. Paulo Fernando de Melo Martins Universidade Federal do Tocantins
Orientador
Prof^^f^^e^r l spn Rodrigues de Melo UniversicTaae Federal do Tocantins
4
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar agradeo a Deus, por ter me concedido sade e perseverana para
conquistar meus objetivos.
Aos meus pais, Nemi e Julita, meu profundo agradecimento por seus ensinamentos e lies de
vida, sempre juntos nas dificuldades e alegrias.
minha amada filha Larissa Marques e ao meu companheiro Luciano Casaroti, por sempre
me apoiarem na conquista dos meus sonhos.
Agradeo ao meu professor orientador Dr. Paulo Fernando de M. Martins e a todos os
professores do programa, cada um com sua maneira de ser e transmitir seus conhecimentos,
que contriburam para ampliar e aprofundar a presente pesquisa, nos mais variados aspectos.
Aos colegas de turma, pela convivncia e apoio mtuos.
Ao juiz Leoberto Brancher, pela iniciativa pioneira na difuso da cultura da paz entre crianas
e jovens e, por ser o guia da magistratura nacional na implantao e expanso da justia
restaurativa.
Agradeo, ainda, a todos os servidores, em especial a secretria Marcela Santa Cruz e,
Diretores da Escola da Magistratura Tocantinense, pelo pronto atendimento das necessidades
surgidas durante o curso.
5
RESUMO
MARQUES, Julianne Freire. Crculos da Paz: prticas restaurativas como instrumento de
acesso justia nas escolas do Tocantins. Dissertao (Programa de Ps-graduao Stricto
Sensu em Prestao Jurisdicional e Direitos Humanos Mestrado Profissional
Interdisciplinar). Universidade Federal do Tocantins, Palmas, 2015.
O objetivo de nossa investigao refletir sobre o uso da justia restaurativa como
instrumento de pacificao social autocompositivo e, meio adequado de concretizao dos
direitos fundamentais da criana e do adolescente no mbito escolar da Comarca de
Araguana do Estado do Tocantins. A presente dissertao explana sobre a Justia
Restaurativa, suas origens, o debate conceitual travado pelos tericos e sua posio diante da
Justia Retributiva, como forma alternativa de soluo de conflitos, onde so consideradas as
necessidades da vtima e a restaurao das relaes rompidas pela infrao. O nosso estudo
discorre sobre a implantao da Justia Restaurativa, em especial, no enfrentamento da
violncia no ambiente escolar brasileiro, recorrendo s diferentes prticas restaurativas
pioneiras no pas. Ao abordar a violncia nas escolas apresenta dados estatsticos e questiona
a atual forma de encaminhamento do problema, propondo a implantao da justia
restaurativa nas escolas, com a participao da comunidade na resoluo dos conflitos. Sob o
enfoque crtico-dialtico e referenciando-se nos estudos de Howard Zehr promoveu-se a
coleta dos dados sobre a violncia escolar na Comarca de Araguana, Tocantins, com anlise
dos 136 processos relativos a atos infracionais noticiados no ano de 2013, buscando-se em
quais casos os delitos foram praticados no interior de instituies de ensino na Educao
Bsica. A pesquisa revela a inexistncia de projetos orientados pela Justia Restaurativa na
educao bsica da rede pblica tocantinense para o enfretamento da violncia escolar. A
investigao permite inferir que oportuna a imediata aplicao da Justia Restaurativa no
mbito escolar, para que no haja uma escalada da violncia, o que pode resultar em atos
infracionais mais graves. Alm disso, a pesquisa avalia que as prticas restaurativas podem
viabilizar o desenvolvimento da cultura da paz que, por sua vez, colabora na promoo da
ruptura do crculo vicioso da violncia escolar.
Palavras-chave: Justia Restaurativa. Educao Restaurativa. Violncia escolar no
Tocantins. Cultura de paz.
6
ABSTRACT
MARQUES, Julianne Freire. Circles of Peace: restorative practices as a means of access to
justice in the schools of Tocantins. Dissertation (Graduate Program in the Strictu Senso in
Judicial Accountability and Human Rights Interdisciplinary Master). Federal University of
Tocantins, Palmas, 2015.
The goal of our research is to reflect aver the use of restorative justice as self-compositional
social peacemaker instrument and appropriate means of achieving the fundamental rights of
the children and adolescents in the school domain of Araguana County in Tocantins. This
thesis talks about Restorative Justice, its origins, the conceptual debate between the theorists
and their position in the face of Retributive Justice as an alternative form of dispute
resolution, where are considered the needs of the victim and the restoration of relat ions
broken by crime. Our study discusses the implementation of Restorative Justice, particularly
in fighting violence in the Brazilian school environment, resorting to different pioneering
restorative practices in the country. To address violence in schools it is presented statistical
data and questions the current way of routing problem by proposing the implementation of
Restorative Justice in the schools, with community participation in resolving conflicts. Under
the critical-dialectical approach and referencing the studies of Howard Zehr, it promotes the
collection of data on school violence in Araguana County, Tocantins, with analysis of 136
cases involving infractions reported in 2013, seeking out in which of the crimes cases were
practiced within Basic Education institutions. The research reveals the absence of projects
guided by Restorative Justice in basic education of Tocantins public schools against, school
violence. The research allows us to infer that it is timely for the immediate application of
restorative justice in schools, so that there isnt an escalation of violence, which can result in
more serious infractions. In addition, the survey estimates that restorative practices can
facilitate the development of peace culture, which assists in the promotion of breaking the
vicious circle of school violence.
Keywords: Restorative Justice. Restorative Education. School violence in Tocantins. Peace
culture.
7
LISTA DE SIGLAS
AJURIS Associao dos Juzes do Rio Grande do Sul
AMB Associao dos Magistrados Brasileiros
CECIP Centro de Criao de Imagem Popular
CEDECA Centro de Defesa da Criana e do Adolescente
CEJUST Centro Judicirio de Soluo de Conflitos e de Cidadania do Programa
Justia Restaurativa
CMDCA Conselho Municipal de Direitos da Criana e Adolescente
CNJ Conselho Nacional de Justia
CNV Comunicao No-Violenta
CPR Centrais de Prticas Restaurativas
ECOSOC Conselho Social e Econmico da Organizao das Naes Unidas
FACDO Faculdade Catlica Dom Orione
FASC Fundao de Assistncia Social e Cidadania
FASE Fundao de Atendimento Socioeducativo
FASEPA Fundao do Atendimento Socioeducativo do Par
FUNPAPA Fundao Papa Joo XXIII
GGIM Gabinete de Gesto Integrada Municipal de Belm
MEC Ministrio da Educao e Cultura
NEMCONJUR Ncleo de Estudos em Negociao, Mediao, Conciliao e Justia
Restaurativa
NEJURE Ncleo de Estudos em Justia Restaurativa
NUPECON Ncleo Permanente de Mtodos Consensuais de Soluo de Conflitos
ONU Organizao das Naes Unidas
PEMSEIS Programa de Execuo de Medidas Scio-Educativas de Privao de Liberdade
PEMSE Programa de Execuo de Medidas Scio-Educativas de Meio Aberto
8
PAJUR Programa de Atendimento da Justia Restaurativa
PNUD Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento
PRAPAZ Programa Agentes da Paz
RS Rio Grande do Sul
SED Secretaria de Estado de Educao de Mato Grosso do Sul.
SEE Secretaria de Estado da Educao
SP So Paulo
STF Supremo Tribunal Federal
TJMS Tribunal de Justia do Estado do Mato Grosso do Sul
TO Tocantins
UFT Universidade Federal do Tocantins
UNESCO Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura
VORP Programas de reconciliao de vtima-ofensor
9
LISTA DE FIGURAS
Figura 1. Marcos da Justia Restaurativa..................................................................................20
LISTA DE TABELAS
Tabela 1. Modelos de Justia Restaurativa...............................................................................27
Tabela 2. Atos infracionais ocorridos nas escolas da Comarca de Araguana, em 2013..........58
10
SUMRIO
INTRODUO ................................................................................................................................11
CAPTULO 1 PERSPECTIVAS CONCEITUAIS DA JUSTIA RESTAURATIVA .....................16
1.1 ORIGENS DA JUSTIA RESTAURATIVA .......................................................................16
1.2 QUEBRA DO PAGADIGMA DA JUSTIA RETRIBUTIVA ...........................................20
1.3 DEBATE CONCEITUAL SOBRE A JUSTIA RESTAURATIVA ..................................24
1.4 CORRENTES TERICAS ...................................................................................................26
1.5 PRINCPIOS DA JUSTIA RESTAURATIVA ..................................................................29
CAPTULO 2 IMPLANTAO DA JUSTIA RESTAURATIVA NO BRASIL ..........................34
2.1 PRTICAS RESTAURATIVAS ..........................................................................................34
2.2 OS PRIMEIROS PROJETOS DESENVOLVIDOS NO BRASIL ......................................40
2.2.1 JUSTIA RESTAURATIVA NO DISTRITO FEDERAL ...............................................40
2.2.2 JUSTIA RESTAURATIVA EM SO CAETANO DO SUL / SO PAULO .................42
2.2.3 JUSTIA RESTAURATIVA NO RIO GRANDE DO SUL .............................................43
2.3 EXPANSO DA JUSTIA RESTAURATIVA ...................................................................45
CAPTULO 3 AS PRTICAS RESTAURATIVAS NO CONTEXTO ESCOLAR ........................51
3.1 A EDUCAO, A ESCOLA E OS CONFLITOS NO MBITO ESCOLAR ....................51
3.2 JUSTIA RESTAURATIVA NAS ESCOLAS ....................................................................55
3.3 OS CONFLITOS NO MBITO ESCOLAR TOCANTINENSE: desafios e perspectivas na
Comarca de Araguana. ..............................................................................................................58
CONCLUSO ..................................................................................................................................62
REFERENCIAL BIBLIOGRFICO ...............................................................................................644
11
INTRODUO
O estudo da Justia Restaurativa surgiu em decorrncia das atividades profissionais,
exercidas desde o ano de 2007 como titular do Juizado da Infncia e Juventude da Comarca
de Araguana/TO, onde diversas situaes de conflitos envolvendo crianas e adolescentes
so criminalizadas e punidas.
O nosso objetivo com a presente investigao refletir sobre o uso da Justia
Restaurativa como instrumento de pacificao social autocompositivo e meio adequado de
concretizao dos direitos fundamentais da criana e do adolescente no mbito escolar da
Comarca de Araguana do Estado do Tocantins.
Num ciclo recorrente o adolescente pratica atos infracionais de menor potencial
ofensivo, proferindo ameaas, por exemplo, e acaba praticando atos infracionais com
violncia contra outras pessoas, como o roubo, numa progresso da violncia. A avaliao de
que o sistema de justia tradicional no oportuniza a busca das causas da violncia e a
restaurao das relaes sociais dos jovens e de suas famlias nos leva a constatar que as
medidas socioeducativas so rplicas das penas aplicadas aos adultos.
Numa mudana de paradigma, a Lei 12.594, de 18 de janeiro de 2012, estabeleceu
como um dos princpios das medidas socioeducativas a prioridade a prticas ou medidas que
sejam restaurativas e, sempre que possvel, atendam s necessidades das vtimas. Assim,
temos a primeira norma legal brasileira a prever o uso da justia restaurativa, sendo aplicvel
nas execues de medidas socioeducativas, a qualquer tempo.
Com a implantao, em agosto de 2012, do Ncleo de Estudos em Negociao,
Mediao, Conciliao e Justia Restaurativa NEMCONJUR da Faculdade Catlica Dom
Orione FACDO, em Araguana, Tocantins, desenvolvido e coordenado pelo Professor
Mestre em Direito Maicon Rodrigo Tauchert, passamos a ter contato com a Justia
Restaurativa, numa perspectiva acadmica, voltada num primeiro momento para a execuo
das medidas socioeducativas.
Na Escola Superior da Magistratura Tocantinense, em maio de 2013, organizamos o
seminrio sobre a Lei n 12.594/2012, constando da programao a palestra Justia
Restaurativa Juvenil e Socioeducao Luz da Lei n. 12.594, de 2012 - uma abordagem mais
alm da vingana e do perdo sob a responsabilidade de Leoberto Brancher, Juiz da 3 Vara
12
da Infncia e Juventude de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, para melhor conhecimento da
sua experincia, desde 2005, com a Justia Restaurativa no campo da execuo das medidas.
A partir do debate e do conhecimento sobre o funcionamento do programa de Justia
Restaurativa, aplicada na execuo das medidas, surgiu a inquietao da melhor forma de sua
aplicao no Tocantins.
A pesquisa do tema no curso das atividades do Mestrado Profissional Interdisciplinar
no resultou apenas de aspectos profissionais e acadmicos, mas da convergncia destes com
outros aspectos, dentre eles, da minha histria de vida, j que sou filha de professores, com a
me pedagoga e professora de ensino fundamental, por 25 anos exercendo o cargo nas escolas
pblicas do Estado do Tocantins. As eleies para o cargo de diretores de escolas, as festas
juninas organizadas por professores e alunos, as comemoraes do dia dos professores, os
projetos desenvolvidos na escola por minha genitora, sempre buscando despertar e introduzir
as crianas no mundo da leitura, todos so fatos que marcaram a minha infncia e
adolescncia. Alm disso, a experincia e a vivncia do professor orientador como educador
no magistrio pblico da educao bsica colaboraram na definio do foco da investigao.
A realidade da infncia vivida nas escolas pblicas do Tocantins nos anos de 1980,
bem como acompanhando as experincias da vida profissional de uma professora, tambm da
rede pblica de ensino, se revela distante ao constatar, nas atividades judicantes, a violncia
presente no mbito escolar, tanto entre os alunos, quanto entre alunos e professores. Ao
assumir a titularidade do Juizado da Infncia e Juventude me deparei ento com a realidade
atual, onde h diversas situaes de conflito no cotidiano escolar, que, solucionados da forma
tradicional acabam por extrapolar o mbito da escola e passam a fazer parte da vida de
adolescentes, alguns deles agindo constantemente em conflito com a lei, reiterando condutas
violentas.
A situao inversa tambm verdadeira, pois em diversos casos adolescentes replicam
na escola situaes de violncia vivida na famlia. Vale dizer que professores se sentem
vtimas desta violncia e, alunos e familiares tambm, o que resulta numa situao de
antagonismo latente em diversas unidades escolares, que resultam, nos casos mais extremos,
no afastamento de adolescentes do sistema de ensino, seja de forma voluntria, seja pela
transferncia, aplicada pelas entidades de ensino como forma de punio ao aluno
indisciplinado.
13
No levantamento de material de pesquisa observamos que se trata de um tema muito
recente, com reduzida produo cientfica e, ainda, com um pequeno nmero de iniciativas
prticas, embora tenhamos uma dcada de experincias desenvolvidas pelos sistemas de
justia do Rio Grande do Sul, So Paulo e Distrito Federal.
No tocante aos projetos desenvolvidos nas escolas ainda mais incipiente a literatura
existente sobre o assunto, o que revela a necessidade de aprofundamento no estudo do tema,
com anlise das diversas prticas restaurativas utilizadas nos projetos em andamento no Brasil
e, tambm em outros pases, a fim de verificar sua aplicabilidade na realidade tocantinense.
A presente pesquisa sob o enfoque crtico-dialtico e imbuda de uma viso
interdisciplinar reconhece na adoo da Justia Restaurativa mediada pela concepo
histrico-social a possibilidade de enfrentar a violncia escolar numa perspectiva humanizada,
obrigatoriamente, a partir do trabalho integrado da rede pblica de ensino e do Poder
Judicirio e, destarte, compreendendo que uma dada estrutura no se transforma de modo
completamente independente da vontade (conscincia) dos homens. Portanto, a nossa anlise
se prope a apreender a historicidade do objeto em questo.
A pesquisa bibliogrfica foi iniciada com Howard Zehr, Trocando as Lentes: um
novo foco sobre o crime e a justia, obra referncia sobre o tema, por ser a primeira a
discutir teoricamente a justia restaurativa, buscando sua sistematizao a partir das diferentes
prticas restaurativas de comunidades tradicionais, seguida da leitura de sua outra obra
Justia Restaurativa, onde se verifica uma mudana no pensamento do autor, com relao
possibilidade de coexistncia dos sistemas retributivo e restaurativo. As reflexes do referido
autor sobre a responsabilidade, o perdo, o empoderamento da vtima, do ofensor e da
comunidade, os pilares da justia restaurativa levaram-me uma vez mais a questionar a
eficcia, a efetividade alcanada pelo sistema jurdico vigente na preveno dos delitos e o
direito da vtima participar de todo este processo. Lorraine Stutzman Amstutz e Judy H.
Mullet foram as autoras de referncia no que tange disciplina restaurativa nas escolas, com a
apresentao de programas em funcionamento nos Estados Unidos e casos emblemticos que
ali ocorreram.
A coletnea de textos editada em 2005 pelo Ministrio da Justia foi o marco inicial da
busca bibliogrfica por referncias brasileiras sobre o tema, verificando-se a existncia de
algumas teses de doutoramento, mestrado e artigos cientficos, alm de relatos de
implementao dos projetos implantados no Brasil em 2005 e, atos normativos, atravs dos
14
quais se buscou verificar a expanso da justia restaurativa no Brasil, ocorrida na sua maior
parte atravs do sistema de justia.
Na pesquisa documental, em especial, recorreu-se a coleta dos dados sobre a violncia
escolar na Comarca de Araguana foi feita atravs da anlise dos 136 (cento e trinta e seis)
processos relativos a atos infracionais noticiados no ano de 2013, buscando-se em quais casos
os delitos foram praticados no interior de instituies de ensino da educao bsica,
individualizando-se ainda as vtimas - aluno ou professor - a fim de possibilitar o mapeamento
da violncia nas escolas e seu estgio atual na comarca, assegurando o rigor tico na
conduo da investigao de natureza acadmica.
A participao no curso de crculos de justia restaurativa e de construo da paz,
realizado pela Escola da Associao dos Juzes do Rio Grande do Sul AJURIS, em 2015, foi
o mergulho final na pesquisa de campo referente s prticas restaurativas, buscando o
entendimento do sistema de justia na sua realizao e o papel do facilitador na construo
dos crculos.
Com o propsito de adotar as prticas restaurativas nas escolas tocantinenses e o
aprofundamento do estudo sobre a Justia Restaurativa no Tocantins, apresentando novas
perspectivas para os problemas reais encontrados em nosso ambiente profissional,
estruturamos o presente estudo em trs captulos.
No primeiro captulo so apresentadas as origens da justia restaurativa, tanto no
aspecto terico, quando na legislao de diversos pases, suas correntes tericas, utilizando
como principal referncia o pensamento de Howard Zehr e os princpios basilares,
estabelecidos pela Resoluo n 12/2002, do Conselho Econmico e Social da Organizao
das Naes Unidas. A quebra do paradigma com o surgimento da justia restaurativa
pontuada, principalmente atravs de comparaes com o sistema da justia retributiva, onde a
vtima participa do processo apenas como meio de prova, com a realizao de um debate
conceitual sobre o que justia restaurativa, um conceito ainda em construo, segundo
autores como Renato Scrates Gomes Pinto.
No segundo captulo buscou-se traar um retrato da implantao da justia restaurativa
no Brasil, com as experincias dos projetos desenvolvidos no Distrito Federal, no Juizado
Especial Criminal, em delitos de menor potencial ofensivo; em So Caetano do Sul/SP, nas
escolas e, Porto Alegre/RS, com adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas,
15
todos iniciados no ano de 2005 e, que continuam a ser executados. Neste captulo relatamos a
expanso da justia restaurativa no Brasil nestes ltimos dez anos, com desenvolvimento de
projetos em diversos Estados e, a adoo da justia restaurativa como diretriz de gesto do
Conselho Nacional de Justia para o binio 2015-2016, aps protocolo de cooperao
interinstitucional, formalizado com a Associao dos Magistrados Brasileiros - AMB. As
diversas prticas restaurativas, como reunies, encontros, conferncias familiares e crculos,
utilizadas na Nova Zelndia, Austrlia, frica, Estados Unidos, Canad e, nos projetos
desenvolvidos no Brasil, so estudadas no referido captulo.
No terceiro captulo foram compilados os dados estatsticos da Comarca de
Araguana/TO, referentes a atos de indisciplina/conflitos/atos infracionais que foram
encaminhados ao Poder Judicirio no ano de 2013. No decorrer do estudo, as concepes de
educao, disciplina, violncia escolar, conflitos, resoluo consensual de conflitos, e
comunicao no-violenta foram analisados, a partir da viso de Patrice Canivez sobre
disciplina. As experincias de justia restaurativas nas escolas brasileiras foram pontuadas,
para se estabelecer um parmetro a ser utilizado na implementao de um programa nas
escolas do Tocantins, com a atuao do sistema de justia e da rede de ensino estadual voltada
para o incentivo a uma cultura da paz na sociedade.
A par da proposio da implantao da justia restaurativa nas escolas do estado do
Tocantins, projeto j sendo desenvolvido paralelamente concluso deste estudo e, decorrente
dele, prope-se ainda a criao de um ncleo de justia restaurativa, com a participao da
Escola Superior da Magistratura Tocantinense, Universidade Federal do Tocantins e
Secretaria de Educao do Estado do Tocantins, para estudos sobre o assunto, alm da
capacitao e difuso das prticas restaurativas, com a finalidade de possibilitar o acesso
justia, num sentido amplo e, consequentemente efetivar os direitos humanos.
16
CAPTULO 1 PERSPECTIVAS CONCEITUAIS DA JUSTIA
RESTAURATIVA
1.1 ORIGENS DA JUSTIA RESTAURATIVA
Diversas culturas, ocidentais e orientais, utilizaram formas consensuais de resoluo
de conflitos, inclusive no tocante aos crimes, atravs de negociao direta ou mediada por
terceiros. Prticas restaurativas, conforme se observa do estudo das tradies de diversos
povos, so utilizadas h sculos, remontando at mesmo ao Cdigo de Hamurabi (1.700 antes
de Cristo), quando este trata da restituio em casos de crime contra o patrimnio.
Nas culturas indgenas, crists, judaicas, budistas, confuncionistas e hindustas
tcnicas no adversariais eram utilizadas para a soluo de conflitos. Nas Amricas tambm
eram utilizados meios no adversariais de soluo de conflitos, como o faziam os puritanos e
os quaquers, nos Estados Unidos e Canad, sendo que o referido modelo de justia no foi
absorvido pelos colonizadores, os quais impuseram aos nativos o sistema de justia dos pases
de origem. As comunidades indgenas do Canad, ainda hoje, adotam os crculos
restaurativos, com participao da comunidade e das pessoas envolvidas no conflito
decorrente da prtica de um crime.
A Justia Restaurativa se inspira nestes modelos tribais de justia, dentre eles as
prticas das comunidades Maori, da Nova Zelndia, as quais foram incorporadas como
instrumentos do processo judicial, com prevalncia dos interesses coletivos sobre os
interesses individuais, com o objetivo primordial de restaurar as relaes sociais atingidas
pelo delito.
Nas sociedades indgenas e aborgenes, de onde surgem as prticas restaurativas, ao
invs de isolar e punir o infrator, a meta da justia era atingir consenso, envolver famlia e
comunidade na busca de harmonia e reconciliao, promovendo acordo entre as partes,
possibilitando uma convivncia harmnica. Os fundamentos da Justia Restaurativa, portanto,
remontam a tradies antigas de comunidades que tinham como prioridade o interesse
coletivo e no o individual, buscando na soluo dos conflitos, o restabelecimento da paz nas
comunidades.
Zehr (2008) destaca a importncia das tradies das naes indgenas dos Estados
Unidos e do Canad, alm da tribo Maori da Nova Zelndia, para a formao terica e prtica
da justia restaurativa:
17
Hoje vejo a justia restaurativa como um modelo de legitimao e resgate dos
elementos restaurativos das nossas tradies tradies que foram frequentemente
desprezadas e reprimidas pelos colonizadores europeus. No entanto, a justia
restaurativa moderna no uma simples recriao do passado, mas sim adaptao de
alguns valores bsicos, princpios e abordagens dessas tradies combinados com a
moderna realidade e sensibilidade quanto aos direitos humanos. Colocando de outra
forma, um juiz maori de uma vara de menores da Nova Zelndia me disse uma vez
que minha abordagem de justia restaurativa era uma forma de articular os
elementos-chave de sua prpria tradio de modo que fossem compreensveis e
aceitveis para um ocidental. (ZEHR, 2008, p. 256)
Prudente (2008) relata que a primeira experincia de justia restaurativa no sistema
judicial ocorreu em 28 de maio de 1974, no Canad, em Elmira, provncia de Ontrio, quando
dois jovens vandalizaram vinte e duas propriedades e, aps indicao de um oficial da
condicional, na sentena foi determinado que houvesse um encontro entre as vtimas e os dois
jovens, para elaborarem um acordo sobre a reparao dos danos causados, sendo este o
primeiro caso registrado de adoo de prticas restaurativas no sistema judicial. Dois anos
depois, em 1976, foi fundado o Centro de Justia Restaurativa Comunitria de Victoria, no
Canad.
Nos Estados Unidos, o estado de Indiana foi o primeiro a implantar programas de
reconciliao de vtima-ofensor (VORP), nos anos de 1977 e 1978. Bianchini (2012) afirma
que, vinte anos depois da primeira experincia de justia restaurativa, em pesquisa realizada
no ano 1994 foram identificados 123 programas de mediao vtima-ofensor nos Estados
Unidos.
No campo terico, o conceito de Justia Restaurativa surgiu no final dos anos de 1960
e incio da dcada de 1970, com o questionamento dos resultados alcanados pela justia
retributiva no mbito criminal.
A denominao justia restaurativa atribuda a Albert Eglash, que em 1977,
escreveu um artigo intitulado Beyond Restitution: Creative Restitution, publicado
numa obra por Joe Hudson e Burt Gallaway, denominada Restitution in Criminal
Justice (Van Ness e Strong, 2002:27). Eglash sustentou, no artigo, que haviam trs
respostas ao crime a retributiva, baseada na punio; a distributiva, focada na
reeducao; e a restaurativa, cujo fundamento seria a reparao. (PINTO, 2007, p. 3)
Zehr (2008) prope uma mudana de paradigma, para que o olhar sobre o crime seja
feito com novas lentes, restaurativas e no retributivas, na obra Trocando as Lentes: um novo
foco sobre o crime e a justia. Na referida obra Zehr apresenta uma nova formulao do
conceito de crime e da justia, sendo a obra terica de referncia para o movimento
restaurativo, que se tornou um clssico.
18
No campo legal, o primeiro pas a introduzir o modelo restaurativo na legislao foi a
Nova Zelndia, atravs do Children, Young Persons and Their Families Act (Lei Sobre
Crianas, Jovens e suas Famlias), no ano de 1989, aplicvel aos delitos praticados por
crianas e adolescentes, excetuando-se os delitos de homicdio, em substituio ao anterior
sistema judicial da infncia e da juventude, com a participao da famlia e dos rgos
estatais. Maxwell (2005) relata os motivos da alterao na legislao neozelandesa
discorrendo sobre aquele momento histrico:
Naquela dcada havia uma preocupao crescente entre a comunidade Maori sobre a
forma pela qual as instituies que visavam bem-estar infantil e os sistemas de
justia juvenil removiam os jovens e as crianas de seus lares, do contato com suas famlias estendidas e suas comunidades. Tambm se exigia processos culturalmente
apropriados para os Maoris e estratgias que permitissem s famlias sem recursos a
possibilidade de cuidar de suas prprias crianas mais eficazmente. Como resultado,
os responsveis pela nova legislao voltada s crianas e aos jovens carentes de
cuidado e proteo ou cujo comportamento era considerado anti-social procuraram
desenvolver um processo mais eficiente para os Maoris e outros grupos culturais que
desse mais apoio s famlias e que diminusse a nfase nos tribunais e na
institucionalizao dos jovens infratores. (MAXWELL, 2005, p. 279/280)
Aps estudos dos resultados alcanados pela justia restaurativa com a edio da
referida legislao, esta tambm passou a ser aplicada nos casos de adultos autores de crimes,
em 1995, em projetos piloto da Nova Zelndia.
Na Amrica Latina, a Argentina criou um projeto piloto de mediao penal em 1998,
envolvendo o Ministrio Nacional da Justia e a Universidade de Buenos Aires. Parker (2005)
afirma que a mediao penal existe na legislao penal colombiana desde 1990. No ano de
2002, o congresso alterou a Constituio da Colmbia, que passou a prever a Justia
Restaurativa em seu bojo (art. 250, VIII) e, posteriormente, em 2004, inseriu a matria na
legislao ordinria (art. 518 e seguintes, do Cdigo de Processo Penal), no livro intitulado
Justia Restaurativa.
Diante das diversas experincias de justia restaurativa, espalhadas pelo mundo, o
assunto passa a ser pauta de debates e conferncias internacionais. A II Conferncia
Internacional de Direitos Humanos, ocorrida em Viena, no ano de 1993, resultou na
Declarao de Viena, onde se verifica o ressurgimento da preocupao com a vtima e a
reparao do dano infligido a ela pela violao das leis, em particular, no pargrafo 29, numa
proposta incipiente de prtica restaurativa:
A Conferncia Mundial sobre Direitos do Homem expressa a sua grande preocupao com as violaes continuadas de Direitos do homem que ocorrem em
todas as partes do mundo, em desrespeito das normas previstas em instrumentos
19
internacionais de direitos do homem e de direito internacional humanitrio, assim
como com a falta de compensaes suficientes e efectivas destinadas s vtimas.
Posteriormente, no ano de 1999, o Conselho Econmico e Social aprovou a Resoluo
n. 28, de 1999, (Desenvolvimento e Implementao de Medidas de Mediao e Justia
restaurativa na Justia Criminal), na qual o referido Conselho requisitou Comisso de
Preveno do Crime e de Justia Criminal a formulao de padres no campo da mediao e
da justia restaurativa. Na referida resoluo enfatiza-se que a mediao e a justia
restaurativa, quando apropriadas, podem levar satisfao para as vtimas, bem como a
preveno contra futuros comportamentos ilcitos. No ano seguinte sobreveio a Resoluo 14,
de 27 de julho de 2000, do Conselho Econmico e Social da ONU, com o ttulo Princpios
Bsicos para utilizao de Programas Restaurativos em Matria Criminal, onde foi abordada
a justia restaurativa e sua aplicao nos processos criminais.
Embora o Conselho, denominado ECOSOC, tenha editado estas duas resolues
anteriores, o marco jurdico de referncia na matria a Resoluo n. 12, de 2002 do
Conselho Social e Econmico da Organizao das Naes Unidas, (Princpios bsicos sobre o
uso de programas de justia restaurativa em matria penal) que foi elaborada em face das
discusses sobre os temas de preveno criminal, respeito s vtimas e a necessidade de
desenvolver instrumentos e princpios para o uso da justia restaurativa. A Resoluo tomou
como referncia o trabalho do Grupo de Especialistas em Justia Restaurativa, formulado num
encontro ocorrido em Ottawa, Canad, no perodo de 29 de outubro a 1 de novembro de
2001.
A referida Resoluo estabelece alguns conceitos, dentre eles o de programa
restaurativo, processo e resultados restaurativos, define as bases principiolgicas para um
programa de justia restaurativa, aplicveis em quaisquer dos sistemas jurdicos dos Estados-
membros, alm de buscar difundir sua utilizao ao redor do mundo, com sua insero no
sistema legislativo dos pases, respeitando a diversidade cultural de cada nao. A citada
norma traz ainda o conceito de parte e facilitador, bem como a preocupao com o
desenvolvimento, pesquisa e monitorao dos programas restaurativos, com vistas a encontrar
a prtica restaurativa mais adequada a cada realidade e seu contnuo aperfeioamento,
garantindo o bem estar da comunidade e a preveno do crime.
Na busca das origens da justia restaurativa verifica-se a existncia de diversos marcos
legais, tericos e jurdicos, que lhe proporcionaram maior solidez, estabeleceram novos
20
parmetros e, possibilitaram sua expanso e crescimento no mundo, os quais podem ser
sintetizados da seguinte forma:
FIGURA 1: MARCOS DA JUSTIA RESTAURATIVA
1974 1989 1990 2002
Fonte: elaborado pela autora
Alguns pases foram pioneiros na implantao da Justia Restaurativa, como o
Canad, Estados Unidos, Nova Zelndia, Austrlia, frica do Sul e Gr-Bretanha, nos quais
projetos piloto foram implantados e aperfeioados, levando em conta a realidade de cada um
dos pases. Na Amrica Latina, a Colmbia em 1991 e a Argentina, no ano de 1998, com o
projeto alternativo de resoluo de conflitos aplicvel no mbito criminal, foram os primeiros
pases a adotar prticas restaurativas.
Aps a edio da Resoluo n 12/2002, do Conselho Econmico e Social da ONU
diversos outros pases passaram a adotar a Justia Restaurativa, inclusive o Brasil. No ano de
2005, com trs projetos pilotos implantados no pas, deu-se incio a uma nova forma de
abordar crimes e atos infracionais, com a utilizao da Justia Restaurativa em processos
relativos a crimes de menor potencial ofensivo e atos infracionais.
1.2 QUEBRA DO PAGADIGMA DA JUSTIA RETRIBUTIVA
Com a positivao do Direito, tradies das sociedades indgenas e comunais caram
em desuso e foi imposto um novo modelo de justia. Passa-se da vingana privada para o
controle do Estado sobre a sociedade, atravs de um sistema penal punitivo, com a imposio
de penas, buscando-se a punio do infrator.
Esse monoplio do Estado sobre a justia e sobre o crime retirou toda e qualquer
possibilidade do particular (vtima) participar da sua resoluo, embora seja o principal
atingido pelos efeitos da infrao. A vtima foi totalmente alijada da soluo do conflito
CANAD
Adoo da justia
restaurativa na
resoluo de um
crime de dano.
ONU
RESOLUO
12/2002
HOWARD ZEHR
Changing Lenses: A
New Focus for Crime
and Justice
NOVA ZELNDIA
Children, Young Persons
and Their Families Act
21
gerado pelo crime, sob o argumento da impossibilidade de uma justia privada. Ocorreu
tambm a substituio dos usos e costumes pela lei escrita, por cdigos que descrevem as
condutas, preveem a punio para cada diferente tipo de crime e estabelecem como vtima
principal o Estado e, secundria, o ofendido. A partir da tem-se a justia retributiva como a
nica forma existente para alcanar a pacificao social e, o Estado como nico ente apto a
aplicar a justia e a punio.
Destaca-se que, na justia retributiva trabalha-se com o conceito jurdico-normativo de
crime, como um ato contra a sociedade representada pelo Estado, sob um aspecto
eminentemente unidisciplinar. A culpabilidade individual voltada para o passado,
decorrendo um processo de estigmatizao do indivduo infrator.
No que se refere ao procedimento, a justia retributiva trabalha com o rito solene,
dogmtico, contencioso, contraditrio e os atores principais so autoridades, profissionais do
Direito e o infrator, sem possibilidade de interferncia da vtima, salvo nos casos em que se
trata de ao penal privada, em que o ofendido detm a titularidade da ao. O foco da justia
retributiva na preveno geral e especial, tendo como centro o infrator, com carter
intimidador e punitivo. Privilegia a tutela de bens e interesses, com a punio do infrator e
proteo da sociedade. A vtima e o infrator so isolados, desamparados e desintegrados,
impondo uma ressocializao secundria e a construo da paz baseada na tenso e no
medo.
No que concerne aos efeitos para as vtimas, na justia retributiva esta ocupa um lugar
perifrico e alienado no processo, pois praticamente no participa e no compreende os
trmites judiciais, tendo sido alijada do processo no decorrer da evoluo do direito
positivista, passando a ser tratada apenas como meio de prova. A assistncia psicolgica,
social, econmica e jurdica para a vtima, deficiente e ineficaz, quando existente,
desencadeando um processo de profunda frustrao e ressentimento com o sistema, tanto pela
vtima, quanto por seus familiares e comunidade. Em casos extremos temos inclusive a
conduo coercitiva da vtima para prestar depoimento no processo judicial, com a nica
finalidade de obter provas e, no de ouvi-la sobre os danos sofridos e suas necessidades,
decorrentes do delito.
Na justia retributiva o autor do delito considerado como pessoa com m-formao.
Participa atravs de representante (advogado), com oportunidade de se expressar
pessoalmente apenas durante o interrogatrio. inibido de se aproximar e dialogar com a
22
vtima, desinformado e alienado quanto aos atos processuais, no responsabilizado e sim
punido, e suas necessidades geralmente no so levadas em considerao. Este o quadro atual
do sistema judicial criminal, o qual pode ser percebido no dia a dia forense, com a realizao
das audincias e julgamentos proferidos nas aes penais, em que se observa a preocupao
com os fatos e no com as pessoas.
Em que pese a pena, na era moderna, tenha finalidade preventiva, punitiva e
ressocializadora, verifica-se que ela no tem alcanado o fim preventivo, tampouco o
ressocializador. Segundo o Mapa da Violncia 2014, realizado com o apoio da Secretaria de
Polticas de Promoo da Igualdade Racial, da Secretaria Nacional de Juventude e da
Secretaria-Geral da Presidncia da Repblica, 112.709 pessoas morreram em situaes de
violncia no pas no ano de 2012, tendo ocorrido um aumento em relao aos ndices de anos
anteriores. O percentual de reincidncia no Brasil de 47,4%, segundo o Informe Regional de
Desenvolvimento Humano (2013-2014) do Programa das Naes Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD), p. 129(), um dos mais altos da Amrica Latina. O Conselho
Nacional de Justia, por sua vez, aponta um ndice de reincidncia de 70%, quanto aos
egressos do sistema penitencirio comum, com dados de 2014. Portanto, em presdios
superlotados, dominados, na sua maioria, por faces criminosas e sem condies dignas para
o apenado, resta apenas o carter punitivo da pena.
Aps a implantao do sistema de justia, onde o Estado assume a responsabilidade
pela punio dos delitos, estabeleceu-se uma crescente insatisfao de parcelas da sociedade
com as respostas fornecidas por este Direito positivista s situaes de violncia e conflitos,
diante da evidente falha na finalidade intimidatria e punitiva da pena e, tambm da falta de
alcance do seu carter ressocializador, considerando-se a situao catica das prises e a
superlotao, o que leva o infrator a voltar sociedade da mesma forma que antes, ou em
alguns casos, mais violento. Passou-se a discutir, inclusive, at que ponto as penas podem
transformar o autor do crime, quais os benefcios trazidos por ela para a vtima e para a
sociedade como um todo. Luz (2012) afirma que a Justia Restaurativa
fruto do movimento que pode ser denominado como acordar criminal, no qual os
pensadores do direito penal passam a conceber uma forma de responsabilizao
diferente da pena, atenta s necessidades de reparao das consequncias lesivas do
crime, por meio de um acordo obtido em um processo de dilogo conciliatrio entre
os protagonistas do fenmeno delitivo. (LUZ, 2012, p. 17)
As relaes sociais contemporneas sofreram e sofrem profundas mudanas, as
exigncias coletivizadas e difusas, configuram como caractersticas bsicas, a
23
transindividualidade dos anseios e das pretenses tanto sociais, quanto jurdicas. Estas novas
nuances da sociedade, inseridas em um contexto de instituies pblicas tradicionais e
burocrticas, desafiam sobremaneira criao de estratgias de reorganizao, tanto
estruturais quanto nos contedos de suas respostas, a fim de que sejam oferecidos novos
mecanismos de aperfeioamento da jurisdio, que respondam adequadamente s novas
exigncias impostas pela sociedade. O nvel de complexidade das atuais relaes sociais
transformam e fragilizam o desempenho das atribuies estatais, determinando um quadro de
crise.
Alguns dos aspectos dessa crise podem ser compreendidos como a crescente distncia
entre a legislao e a realidade social, a dificuldade de efetivao e concretizao dos direitos
fundamentais atravs das decises judiciais e na promoo do direito ao acesso justia, para
alm do aspecto formal perante os rgos judicirios, como fundamentalmente o acesso a uma
ordem jurdica justa. Portanto, surge a necessidade de interpenetrao entre as esferas pblica
e privada, refletindo dessa maneira na necessidade de novas prticas administrativas,
jurisdicionais, legislativas e polticas.
O questionamento do modelo positivista traz tona a necessidade de novas formas de
abordagem do delito, dentre as quais a adoo de mtodos restaurativos, que passam a ser
discutidos e implementados, inicialmente de forma isolada, em algumas comunidades,
conforme dito anteriormente. A necessidade de uma nova forma de resolver os conflitos
advindos da prtica de crimes foi a base para o ressurgimento de tradies antigas, que deram
origem Justia Restaurativa. Na Nova Zelndia as famlias (whanau) e as tribos (hapu)
Maori questionavam o processo penal existente, ante a falta de sua participao e o
encarceramento de grande parte de sua populao jovem. A ausncia de participao da
vtima e da comunidade nos processos criminais e, a falta de compensao pelos danos
sofridos, sejam emocionais ou materiais, passou a ser discutida pela sociedade.
Na dcada de 60 e 70, nos Estados Unidos, vivenciou-se a crise do ideal
ressocializador e da ideia de tratamento atravs da pena privativa de liberdade, a
qual desencadeou, na dcada seguinte, o desenvolvimento de ideias de restituio
penal e de reconciliao com a vtima e com a sociedade. Houve, ento naquele pas,
duas propostas polticas-criminais: uma sugeria um retribucionismo renovado (teoria
do just desert), enquanto outra propunha uma mudana de orientao no Direito
Penal, focado agora na vtima do delito (movimento reparador). (PALLAMOLLA,
2009, p. 34)
Neste novo modelo proposto, o infrator visto como pessoa apta a se responsabilizar
pelos danos e consequncias do delito, participa de forma ativa e direta, estimulado a
24
interagir com a vtima e com a comunidade, criando a oportunidade de desculpar-se ao
sensibilizar-se com o trauma da vtima, informado sobre os atos do processo restaurativo e
contribui para a deciso, alm de ser inteirado das consequncias do fato para a vtima e
comunidade, envolvendo-se de forma importante e significativa com todo o processo, criando
compromisso de aes no infratoras. Desta forma, h uma mudana no foco do conceito do
crime, considerando-se esse como um fato que atinge as pessoas, suas relaes com o outro e
com a sociedade.
Numa dimenso social, a justia restaurativa traz a corresponsabilidade da sociedade e
do poder pblico para pensar e buscar solues para os problemas relativos violncia, como
foco nas necessidades das vtimas e infratores.
1.3 DEBATE CONCEITUAL SOBRE A JUSTIA RESTAURATIVA
Aristteles divide a justia em particular e universal, fazendo ainda uma subdiviso da
justia particular, consistente em justia distributiva distribuio segundo o mrito de cada
um - e corretiva, que busca corrigir as relaes entre os indivduos. A justia corretiva, por
sua vez, subdivide-se em comutativa (visa a igualdade absoluta entre dano e indenizao) e
reparadora (neste caso a igualdade seria proporcional, como forma de reparar ou indenizar o
dano).
O sistema penal considera a culpabilidade do infrator e a vtima no tem possibilidade
de se expressar, uma vez que o crime cometido contra o Estado. Sendo assim, a justia
restaurativa surge como forma de tratar os conflitos, fundada na responsabilidade do autor,
concentrando-se nos prejuzos causados e na reconstruo das relaes, em sentido contrrio
aos preceitos da justia retributiva, que considera o fato praticado e a punio do infrator. O
professor ZEHR (2012) nos traz a seguinte definio de Justia Restaurativa:
um processo para envolver, tanto quanto possvel, todos aqueles que tm interesse
em determinada ofensa, num processo que coletivamente identifica e trata os danos, necessidades e obrigaes decorrentes da ofensa, a fim de promover o
restabelecimento das pessoas e endireitar as coisas, na medida do possvel. (ZEHR,
2012, p. 49)
Na Resoluo 12/2002 do Conselho Econmico e Social da ONU, ao dispor sobre os
princpios bsicos para utilizao do referido modelo, item um (1), conceitua a Justia
Restaurativa como um processo atravs do qual todas as partes envolvidas em um ato que
causou ofensa renem-se para decidir coletivamente como lidar com as circunstncias
decorrentes desse ato e suas implicaes para o futuro.
25
Paul McCold e Ted Wachtel abordam a Justia sobre uma nova tica conceitual,
partindo de questionamentos acerca das necessidades das pessoas afetadas pelo crime. Ambos
sustentam que:
crimes causam danos a pessoas e relacionamentos, e que a justia restaurativa no
feita porque merecida e sim porque necessria, atravs de um processo
cooperativo que envolve todas as partes interessadas principais na determinao da
melhor soluo para reparar o dano causado pela transgresso - a justia restaurativa um processo colaborativo que envolve aqueles afetados mais diretamente por um
crime, chamados de partes interessadas principais, para determinar qual a melhor
forma de reparar o dano causado pela transgresso ( MCCOLD, WACHTEL, 2003,
p. 3).
Rolim (2006) nos traz a definio de Tony Marshal para a justia restaurativa, ou seja,
um processo onde as partes envolvidas por um determinado erro ou delito
encontram-se para resolver coletivamente como lidar com as conseqncias do fato
e com suas implicaes futuras. Os infratores podero restaurar suas prprias
reputaes atravs da reparao e estaro mais habilitados a uma reintegrao plena
sociedade tendo resolvido sua culpa atravs desse caminho. Para Marshal, a reparao pode se dar atravs de pagamento em dinheiro vtima, por trabalho feito
para a vtima, por trabalho para uma causa comunitria escolhida pela vtima,
atravs de determinadas obrigaes ou tarefas por ele assumidas, como freqentar
um curso ou iniciar um tratamento ou, ainda, por uma composio destas
possibilidades. Para os casos onde no se conhece o infrator e para os casos onde as
vtimas no desejem qualquer tipo de contato com o infrator, pode-se realizar
encontros temticos para os quais so 15 selecionados, de um lado, um grupo de
infratores que tenham cometido um mesmo tipo de infrao e, de outro, pessoas que
foram vitimadas por esse tipo de infrao. Assim, mesmo na ausncia de uma
relao direta e causal entre vtima e infrator, teramos um encontro que simbolizaria
legitimamente esta relao. (ROLIM, 2006, p. 25)
O sistema canadense nos traz como marco jurdico de referncia paradigmtico para o
debate da justia restaurativa, a interpretao pela Suprema Corte do artigo 718.2 do Cdigo
Criminal (casos Gladue v. the Queen e Proulx v. the Queen). Ao discutir o tema a Suprema
Corte trouxe a seguinte definio:
Justia restaurativa diz respeito restaurao das partes que foram afetadas pela
prtica de uma ofensa. O crime, geralmente, afeta pelo menos trs partes: a vtima, a
comunidade e o ofensor. A abordagem da justia restaurativa visa remediar os
efeitos adversos do crime, de maneira a enfocar as necessidades de todas as partes
envolvidas. Isto realizado, em parte, atravs da reabilitao do ofensor, reparao
em favor da vtima e da comunidade e promoo de um senso de responsabilidade
no ofensor e reconhecimento do dano causado vtima e comunidade (caso Proulx v. the Queen) (CANAD, 2006).
A Colmbia tem a seguinte definio de Justia Restaurativa, prevista no art. 518, do
Cdigo de Processo Penal:
Se entender por programa de justicia restaurativa todo proceso en el que la vctima
y el imputado, acusado o sentenciado participan conjuntamente de forma activa en la
resolucin de cuestiones derivadas del delito en busca de un resultado restaurativo,
con o sin la participacin de un facilitador.
26
Da anlise do debate conceitual, acima alinhavado, pode-se conceituar justia
restaurativa como o procedimento onde as pessoas afetadas pelo delito, incluindo o prprio
ofensor, se renem de forma voluntria para buscar a restaurao das relaes impactadas e a
reparao dos danos sofridos.
Observa-se que o conceito de Justia Restaurativa ainda no est posto de forma
definitiva e se encontra em construo, j que se funda em tradies j existentes que, esto
sendo estudadas e analisadas de forma cientfica aps a implantao de diversos programas ao
redor do mundo, sendo que a Resoluo n.12/2002 estabelece a necessidade de estudo e
aperfeioamento das prticas restaurativas para que se encontre a que melhor se aplique a
cada caso concreto. O objeto deste estudo foi primeiramente colocado em prtica para depois
ser conceituado, sendo que a multiplicidade de programas e prticas enseja a necessidade de
averiguao das similaridades entre eles para se estabelecer um conceito e determinar o que
justia restaurativa e o que apenas se aproxima desse novo modelo de justia.
1.4 CORRENTES TERICAS
Segundo Zehr (2012), a justia restaurativa est fundada em trs pilares: os danos
vtima causados pelo delito e consequentes necessidades, as obrigaes decorrentes desses
danos e a participao das partes afetadas pelo crime, inclusive a comunidade atingida. Para
Zehr (2012) so princpios fundamentais da Justia Restaurativa o foco nos danos e nas
necessidades da vtima, da comunidade e do ofensor, abordagem das obrigaes resultantes
dos danos, a utilizao de processos inclusivos e cooperativos para soluo dos danos
causados pelo crime, envolvimento de todos os atingidos pelo delito, como a vtima, ofensor,
famlia, comunidade, sociedade e, a correo dos danos causados pelo crime.
A apresentao de diversos pontos de distino entre a justia retributiva e a
restaurativa, principalmente no tocante ao tratamento da vtima no sistema penal em vigor,
alm das finalidades de cada uma delas, sem dvida, acaba por delinear uma nova perspectiva
de justia (ZEHR, 2012).
Dado o enfoque da justia restaurativa em bases diversas daquelas da justia penal
atual, duas correntes tericas se destacam, uma que defende a possibilidade de substituio do
modelo vigente de justia retributiva pelo modelo restaurativo e, a que coloca a Justia
Restaurativa integrada ao sistema jurdico, de forma a complementar as lacunas existentes no
27
sistema vigente, ao permitir a escuta qualificada de todos os envolvidos no delito e que de
alguma forma por ele foram atingidas.
Para Jaccoud (2005), apenas os modelos centrados nas finalidades e aqueles centrados
nos processos e finalidades podem ser considerados como justia restaurativa, posto que no
interessa a forma como feito o encontro ou crculo e sim seu resultado. Segundo a autora,
para a corrente minimalista basta que o procedimento utilizado para a soluo do conflito seja
restaurativo, com a participao de todos os impactados por ele, sem que necessariamente o
resultado alcanado seja reparador. Por outro lado, a corrente maximalista defende que o
resultado restaurativo pode ser obtido atravs de qualquer processo, sendo importante que se
alcance a finalidade, no importando os meios utilizados para que sejam observadas as
necessidades das pessoas envolvidas no delito. Portanto, Jaccoud (2005) apresenta trs
orientaes da justia restaurativa e, por meio de uma tabela, elaborada pela prpria,
procurailustrar as principais diferenas e as coloca num escalonamento.
TABELA 1 MODELOS DE JUSTIA RESTAURATIVA
JUSTIA
RESTAURATIVA
PROCESSOS FINALIDADES EXEMPLOS
I (modelo
centrado nas
finalidades)
(secundrio) R e s t a u r a t i v a (centrais)
Ordens de compensao
Trabalhos comunitrios
II (modelo
centrado nos
processos)
Negociado
(central)
(secundrio) Crculos de
sentena
III (modelo
centrado nos
processos e nas
finalidades)
Negociado
(central)
R e s t a u r a t i v a
(centrais)
Mediao
Fonte: reproduo da tabela apresentada por Mylne Jaccoud.
No tocante integrao da justia restaurativa no sistema judicial, se afiguram duas
tendncias contrrias, a minimalista e a maximalista. Para aqueles que defendem a perspectiva
minimalista, tambm denominada de diversionista do sistema judicirio, a justia restaurativa
no deve ser aplicada pelo Estado, mas por voluntrios, funcionando como uma alternativa ao
sistema judicial. Jaccoud (2005) afirma que a tendncia maximalista defendida por Walgrave,
28
autor da obra La justice rparatrice: la recherche dune thorie et dun programme,, ao
prever a integrao da justia restaurativa ao processo penal ou infracional, para que se possa
obter uma transformao deste, instiga um polmico debate. Assim, temos alguns
questionamentos que evidenciam a rica polmica:
1) um sistema de justia estatal que mude para valorizar a reparao dos danos
causados vtima convidando o ofensor a contribuir com isto em detrimento da
pena. Este sistema no mais retributivo, mas sim restaurativo. Mesmo se o nvel de
constrangimento for elevado e mesmo se, subjetivamente, o ofensor possa vivenciar
a imposio de uma sano objetivando a correo do dano como punio. O
termmetro que permite avaliar se um sistema restaurativo , vamos repetir, a finalidade (reparar as conseqncias) e no a percepo dos envolvidos. Neste
contexto, o termo sistema penal poderia ser substitudo por sistema de justia;
em tal sistema, a verdadeira alternativa tornar-se-ia a sano punitiva (o
encarceramento), compreendida como uma ltima forma de sano punitiva em
casos onde o autor representa uma real ameaa para a sociedade;
2) um sistema de justia estatal que no transforma a finalidade das sanes
(manuteno das finalidades punitivas), mas que acrescenta uma dimenso
restaurativa s suas modalidades de aplicao das sanes. Este sistema permanece
retributivo em sua essncia. de se perguntar se a adio de dimenses
restaurativas, considerando-se o seu carter inevitavelmente coercitivo, no vir a
endurecer um sistema que aumenta suas exigncias diante dos contraventores
devendo os mesmos, alm de suas penas, engajar-se em iniciativas restaurativas. (JACCOUD, 2005, p. 173)
Da anlise das questes propostas por Jaccoud (2005) pode-se verificar que a
existncia de uma Justia Restaurativa, que mantenha sua essncia restauradora, tanto nos
processos quanto nas finalidades no poder ser utilizada como forma de recrudescimento do
sistema penal. Caso isso ocorra estar descaracterizada a prtica restaurativa, sendo que a
Resoluo n.12/2002, do Conselho Econmico e Social da ONU veda expressamente a
utilizao da falta de engajamento no processo restaurativo ou, da no obteno de um acordo
restaurativo, no processo criminal subsequente. Assim, caso o ofensor no concorde em
participar de uma prtica restaurativa, tal fato no poder ser considerado negativamente no
processo penal.
No que tange substituio do sistema de justia retributivo pela justia restaurativa,
passando o primeiro a ser a alternativa existente, considera-se esta uma realidade ainda
distante no mundo atual, em razo da existncia de crimes em que as pessoas diretamente
envolvidas no sintam ter condies de participar do processo, devendo Estado exercer sua
funo de garantir a segurana e responsabilizar os culpados pelos crimes, impondo-lhes as
penas descritas em lei. Vale dizer que, nos casos em que h evidncias de doenas mentais,
tais como a psicopatia, no h possibilidade de participao em processos restaurativos, os
quais pressupem que as pessoas exponham suas verdades e se responsabilizem minimamente
por seus atos.
29
Zehr (2012), apesar de ter feito uma clara distino entre a justia retributiva e a
justia restaurativa nos seus primeiros escritos, na obra denominada Justia Restaurativa
afirma que, alm de diferenas, existem semelhanas entre ambas, sendo comum a elas o fato
de possurem defeitos e qualidades, as quais devem ser exploradas pela sociedade, ora
utilizando-se de um sistema ora de outro, colocando a justia restaurativa como complementar
ao sistema jurdico vigente.
Esta viso da justia restaurativa possibilita seu uso numa gama ampla de situaes e
etapas processuais, tanto pr-processual como no processo penal e, na execuo da pena ou da
medida socioeducativa, ou seja, mesmo que tenha sido acionado o sistema retributivo ainda
possvel tentar restaurar relaes e reparar danos atravs de um consenso obtido atravs das
prticas restaurativas.
1.5 PRINCPIOS DA JUSTIA RESTAURATIVA
Alguns princpios bsicos da Justia Restaurativa, para que se possa alcanar a
compreenso do dano causado por parte do infrator e a superao do dano pela vtima, so
elencados na Resoluo n 12/2002, do Conselho Econmico e Social da Organizao das
Naes Unidas, sendo eles:
princpio da voluntariedade a participao no programa de justia restaurativa
deve se dar de forma voluntria. Embora no seja necessria a espontaneidade, ou seja, as
partes podem ser encaminhadas para o programa atravs de facilitadores e/ou outras pessoas
capacitadas para tanto, deve se obter a concordncia das partes para participar das reunies,
crculos ou conferncias.
A adeso do infrator deve ser feita de forma consciente, sem qualquer tipo de coero,
portanto, deve ser esclarecido todo o funcionamento do processo judicial e da abordagem
restaurativa; da mesma forma, a vtima no obrigada a participar de uma prtica
restaurativa, devendo ser consultada antes do incio do procedimento, de preferncia aps a
consulta ao ofensor. Tanto vtima quanto ofensor podem ainda desistir a qualquer tempo de
participar dos encontros ou reunies restaurativas, caso no estejam de acordo com as tcnicas
utilizadas. O ponto 13 da Resoluo nmero 12/2002 dispe que:
As garantias processuais fundamentais que assegurem tratamento justo ao ofensor e
vtima devem ser aplicadas aos programas de justia restaurativa e particularmente
aos processos restaurativos:
30
a) Em conformidade com o Direito nacional, a vtima e o ofensor devem ter o direito
assistncia jurdica sobre o processo restaurativo e, quando necessrio, traduo
e/ou interpretao. Menores devero, alm disso, ter a assistncia dos pais ou
responsveis legais.
b) Antes de concordarem em participar do processo restaurativo, as partes devero
ser plenamente informadas sobre seus direitos, a natureza do processo e as possveis
conseqncias de sua deciso;
c) Nem a vtima nem o ofensor devero ser coagidos ou induzidos por meios ilcitos
a participar do processo restaurativo ou a aceitar os resultados do processo.
princpio da confidencialidade - a participao do infrator no poder ser usada
como prova de admisso de sua culpa em eventual processo judicial, no implicando em
confisso. As partes envolvidas no processo restaurativo devem guardar sigilo de todas as
informaes obtidas durante seu desenvolvimento, sendo esta uma das diretrizes dos crculos
restaurativos. A Resoluo supracitada estabelece a confidencialidade em seu item 14, ao
dispor que: As discusses no procedimento restaurativo no conduzidas publicamente devem
ser confidenciais, e no devem ser divulgadas, exceto se consentirem as partes ou se
determinado pela legislao nacional.
A participao do ofensor no processo restaurativo tambm no poder ser entendida
como uma confisso da prtica do delito, se o caso for encaminhado posteriormente para o
sistema judicial. Vale anotar que sequer a ausncia de sucesso no processo restaurativo poder
ser usada no processo criminal ou processo infracional subsequentes, como fator negativo
para o infrator ou justificativa para imposio de pena ou medida socioeducativa mais
gravosa.
princpio da consensualidade - os acordos devero ser pactuados voluntariamente,
devendo alcanar alm da participao, a adeso ao regramento da prtica restaurativa e a
compreenso sobre o instituto; O rito deve ser comunitrio, voluntrio, colaborativo e os
atores principais so a vtima, o infrator e pessoas da comunidade, com o processo decisrio
compartilhado com as pessoas envolvidas. A Resoluo n.12/2002 estabelece em seu artigo 8
que, a vtima e o ofensor devem concordar sobre os fatos essenciais do caso discutido,
portanto, a negativa de autoria por parte do infrator impossibilita a realizao de um processo
restaurativo.
b) Antes de concordarem em participar do processo restaurativo, as partes
devero ser plenamente informadas sobre seus direitos, a natureza do processo e as
possveis conseqncias de sua deciso;
c) Nem a vtima nem o ofensor devero ser coagidos ou induzidos por meios ilcitos a participar do processo restaurativo ou a aceitar os resultados do
processo.
31
princpio da celeridade - a rapidez do procedimento restaurativo no implica em
sua curta durao, mas decorre da informalidade do procedimento e imediato
encaminhamento dos casos aos facilitadores para uma resposta clere ao delito. Busca-se no
processo restaurativo uma maior agilidade na conduo do que na justia convencional,
sempre tachada de morosa. Os casos encaminhados para aplicao de prticas restaurativas
devem ser remetidos para o sistema de justia comum, nos termos da resoluo citada, quando
no for indicada ou possvel a realizao dos encontros, como podemos observar no ponto 16
da mencionada resoluo: Quando no houver acordo entre as partes, o caso dever retornar
ao procedimento convencional da justia criminal e ser decidido sem delonga. O insucesso do
processo restaurativo no poder, por si, usado no processo criminal subsequente.
Importante, neste aspecto, a fixao de prazos para conduo das prticas
restaurativas, alm de ter o facilitador a sensibilidade de perceber se os encontros no esto
sendo produtivos e no esto trilhando um caminho de restaurao, para que sejam de pronto
encaminhados ao sistema de justia, o qual dever buscar uma soluo clere para o caso.
princpio da urbanidade - as partes devem se respeitar mutuamente, tratando-se
com respeito e civilidade durante todo o procedimento restaurativo. Trata-se de regra de
convivncia basilar numa sociedade, a qual dever ser observada pela vtima e pelo ofensor
durante as prticas restaurativas. As diferenas eventualmente existentes entre ambos, sejam
de cor, raa, religio, etnia, gnero, devem ser respeitadas durante todo o processo
restaurativo. Na construo de valores e diretrizes a serem observadas nos crculos
restaurativos, e tambm nas outras prticas restaurativas, deve sempre constar o respeito ao
outro e sua individualidade.
princpio da adaptabilidade - a Justia Restaurativa pode ser aplicada de diversas
formas, crculos restaurativos, conferncias, debates, dilogos e, em razo dessa diversidade
de modelos restaurativos, deve se buscar aquele que melhor se adqua ao caso posto para
discusso atravs do procedimento restaurativo. Tem-se, assim, um prvio estudo para
verificar qual a melhor abordagem restaurativa para as partes envolvidas, adaptando-se esta s
necessidades da vtima e do infrator. O que se busca no processo restaurativo a efetividade
dos encontros, conferncias, dilogos ou reunies para a restaurao das relaes sociais, no
devendo o formalismo ser um empecilho para se alcanar este objetivo.
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Desta forma, deve-se considerar a prtica restaurativa eleita pelo facilitador apenas um
meio para alcance da paz social, o qual poder ser adaptado s necessidades das partes,
verificadas no decorrer do processo restaurativo.
princpio da imparcialidade - todos devem ser tratados da mesma forma pelos
profissionais que conduzirem as prticas restaurativas. A vtima e o infrator devero ser
considerados de forma igual, sem que se parta de uma tica de superioridade da vtima e
inferioridade do autor do delito. No artigo 18 da Resoluo, em destaque, registra-se de forma
explcita que os facilitadores devem atuar de forma imparcial, com o devido respeito
dignidade das partes. Nessa funo, os facilitadores devem assegurar o respeito mtuo entre
as partes e capacita-las a encontrar a soluo cabvel entre elas. Portanto, extrai-se deste
princpio a necessidade de uma adequada capacitao dos facilitadores, a fim de que no se
envolva emocionalmente com o caso e as partes, influenciando de forma negativa os
envolvidos. Importante, ainda, que os facilitadores conheam e compreendam as diferentes
culturas regionais e das comunidades, para evitar que tais diferenas gerem desequilbrios
durante o processo. Vtima e ofensor tambm devem estar preparados para essa conduo
imparcial do processo restaurativo, para que ajam com respeito mtuo.
Em Braslia, na Conferncia Internacional Acesso Justia por Meios Alternativos de
Resoluo de Conflitos, no ano de 2005, elencaram-se dezoito princpios e valores dos
procedimentos restaurativos, registrados na Carta elaborada ao final do evento, que
expressaram a compreenso de responsabilidade social e do distanciamento da justia em
relao ao cidado:
1. plenas e precedentes informaes sobre as prticas restaurativas e os
procedimentos em que se envolvero os participantes; 2. autonomia e voluntariedade
na participao em prticas restaurativas, em todas as suas fases; 3. respeito mtuo
entre os participantes do encontro; 4. co-responsabilidade ativa dos participantes; 5.
ateno s pessoas envolvidas no conflito com atendimento s suas necessidades e
possibilidades; 6. envolvimento da comunidade, pautada pelos princpios da
solidariedade e cooperao; 7. interdisciplinariedade da interveno; 8. ateno s
diferenas e peculiaridades scio-econmicas e culturais entre os participantes e a
comunidade, com respeito diversidade; 9. garantia irrestrita dos direitos humanos e
do direito dignidade dos participantes; 10. promoo de relaes equnimes e no
hierrquicas; 11. expresso participativa sob a gide do Estado Democrtico de
Direito; 12. facilitao feita por pessoas devidamente capacitadas em procedimentos restaurativos; 13. direito ao sigilo e confidencialidade de todas as informaes
referentes ao processo restaurativo; 14. integrao com a rede de polticas sociais em
todos os nveis da federao; 15. desenvolvimento de polticas pblicas integradas;
16. interao com o sistema de justia, sem prejuzo do desenvolvimento de prticas
com base comunitria; 17. promoo da transformao de padres culturais e a
insero social das pessoas envolvidas; 18. monitoramento e avaliao contnua das
prticas na perspectiva do interesse dos usurios.
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Estes princpios vm ao encontro de alguns dos postulados fundamentais do Direito
Penal, tais como o princpio da interveno mnima, da proporcionalidade, da adequao
social e razoabilidade, os quais tambm norteiam a Justia Restaurativa.
Portanto, ao se ter clara a importncia da justia restaurativa no tratamento no
adversarial da resoluo de conflitos, na questo relativa concretizao dos direitos
humanos, considerando-se seus princpios basilares, prope-se novas perguntas a serem feitas,
tendo como foco as consequncias do dano, as necessidades da vtima, a obrigao de reparar
o dano causado vtima e, os fatores que levaram o autor a cometer a infrao.
Dessa maneira, com a preocupao voltada de forma especial vtima, proporcionam-
se algumas transformaes no campo dos valores ticos e morais, adotando-se o conceito
realstico de crime, como ato que traumatiza a vtima, causando-lhe danos, proporcionando a
possibilidade de ser tratado multidisciplinarmente.
Na justia restaurativa a responsabilidade pela restaurao ultrapassa a esfera
individual e assume uma dimenso social, compartilhada coletivamente e voltada para o
futuro. Por consequncia, cria vnculos de solidariedade responsvel que tero como
expresso social, o compromisso pela cultura da paz. A vtima deve ocupar o centro do
processo, desempenha o seu papel com voz ativa, participa e at mesmo tem controle sobre o
processo restaurativo. A vtima deve receber assistncia, afeto, reparao emocional e
restituio de perdas materiais nos casos possveis. Assim, poder haver a construo de
confiabilidade no sistema, criao e fortalecimento dos laos familiares e comunitrios.
Portanto, os ganhos so positivos e h o atendimento das necessidades individuais e coletivas
da vtima, ofensor, famlia e comunidade.
O objetivo primordial a reparao do trauma moral e dos prejuzos emocionais,
proporcionando a restaurao e a incluso social. As medidas reparadoras, como a prestao
de servios e a reparao de danos, dentre outras, tm mais eficincia e eficcia, pois se
baseiam na proporcionalidade e na razoabilidade das obrigaes assumidas no acordo
restaurativo.
Destarte, as necessidades da vtima e do autor do delito so prioridades e a paz
construda por todos, atravs de um processo decisrio conjunto, partilhado entre os
participantes das prticas restaurativas, o que gera o empoderamento da comunidade, da
vtima e, tambm do ofensor.
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CAPTULO 2 IMPLANTAO DA JUSTIA RESTAURATIVA NO
BRASIL
2.1 PRTICAS RESTAURATIVAS
A justia restaurativa pode ser aplicada de diversas formas, sendo que as principais,
segundo Zehr (2012) so os encontros vtima-ofensor, as conferncias de grupos familiares e,
os crculos de resoluo de conflitos, os quais podem ser utilizados conjuntamente. Como
alhures mencionado, a participao em quaisquer destes modelos de prtica restaurativa
pressupe o reconhecimento da responsabilidade, por parte do infrator (mesmo que no o faa
de forma integral) e, a participao voluntria da vtima e do ofensor, conforme estabelece a
Resoluo 12/2002 do Conselho Econmico e Social da ONU. de suma importncia, ainda,
que as pessoas envolvidas sejam verdadeiras naquilo que dizem e expressem seus sentimentos
de forma fidedigna, para que no ocorra a construo de um todo um processo, baseado em
falsas percepes.
Encontros entre vtima e ofensor
Na doutrina sobre a Justia Restaurativa h posies distintas sobre a denominao
destes encontros. Nos Estados Unidos existe o programa de mediao vtima-ofensor e, esta
a nomenclatura utilizada por diversos tericos e tambm nos programas restaurativos. Zehr
(2012), por sua vez, afirma categoricamente que o termo no apropriado, pois justia
restaurativa no se confunde com mediao, j que no h uma partilha de responsabilidades,
no se podendo atribuir culpa vtima. Sustenta que o delito deve ser reconhecido como
causador de danos pelo infrator, o que retira a neutralidade que uma mediao deve possuir,
conforme se extrai do conceito por Douglas E. Yarn, apresentado por Azevedo (2010):
um processo autocompositivo segundo o qual as partes em disputa so auxiliadas
por uma terceira parte, neutra ao conflito, ou um painel de pessoas sem interesse na
causa, para auxili-las a chegar a uma composio. Trata-se de uma negociao
assistida ou facilitada por um ou mais terceiros na qual se desenvolve processo composto por vrios atos procedimentais pelos quais o(s) terceiro(s) imparcial(is)
facilita(m) a negociao entre pessoas em conflito, habilitando-as a melhor
compreender suas posies e a encontrar solues que se compatibilizam aos seus
interesses e necessidades. (AZEVEDO, 2010, p. 55)
Cabe lembrar que vtima e ofensor no esto numa disputa a ser negociada, o que
pressuposto de uma mediao, razo pela qual a terminologia no a mais adequada para
utilizao no mbito da justia restaurativa, embora largamente utilizada em mais de 300
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programas norte-americanos. Adota-se, assim, a denominao encontro ou dilogo para tratar
dos contatos entre vtima e ofensor nos processos restaurativos.
Os encontros, tambm denominados dilogos entre vtima e ofensor, so efetuados por
um facilitador. Num primeiro momento so feitos contatos com a vtima e o ofensor, a fim de
averiguar a possibilidade de realizao dos encontros, uma vez que se faz necessrio o
consentimento de ambos para a continuidade do processo restaurativo. Nestes encontros
preliminares com a vtima e o ofensor so esclarecidas as etapas e o funcionamento do
processo restaurativo, inclusive a confidencialidade que envolve todo o procedimento, alm
de ser possibilitado s partes que apresentem sua viso do delito. Em seguida, o facilitador
promove o encontro da vtima e do ofensor, orientando todo o processo, o qual poder resultar
num acordo de reparao dos danos ou restituio dos bens.
Azevedo (2005) indica pontos importantes a serem esclarecidos aos participantes dos
encontros restaurativos:
i) que se indique que o mediador no estar atuando como juiz no competindo a este qualquer julgamento; ii) que o processo de mediao informal contudo
estruturado a ponto de permitir que cada parte tenha a oportunidade de se
manifestar, sem interrupes; iii) que as partes tero a oportunidade de apresentar
perguntas umas s outras, bem como aos acompanhantes, que tambm podero se
manifestar, desde que resumidamente e que no tirem o enfoque do contato direto
entre vtima e ofensor; iv) que as partes, em seguida, tero a oportunidade de debater
formas de resolver a situao e reparar os danos; v) que o acordo somente ser
redigido se as partes estiverem satisfeitas com tal resoluo e sem que haja qualquer
forma de coero para o atingimento dessa resoluo por parte do mediador; vi) que
todos os debates ocorridos na mediao e nas sesses preliminares sero mantidos
na mais absoluta confidencialidade e no podero ser utilizados como prova em eventuais processos cveis ou criminais; vii) que, caso haja advogados presentes na
mediao, estes so importantes para a conduo desse processo, na medida em que
bons advogados auxiliam o desenvolvimento da mediao e, por conseqncia, o
alcance dos interesses de seu cliente pois apresentam solues criativas aos impasses
que eventualmente surjam em mediaes56; viii) que, havendo necessidade, o
mediador poder optar por prosseguir com a mediao fazendo uso de sesses
individuais (ou privadas) nas quais as partes se encontram separadamente com o
mediador; e ix) que o papel das partes na mediao consiste em ouvirem
atentamente umas s outras, escutarem sem interrupes, utilizarem linguagem no
agressiva, e efetivamente trabalharem em conjunto para acharem as solues
necessrias. (AZEVEDO, 2005, p. 146/147)
O projeto de justia restaurativa implantado no Distrito Federal utiliza a mediao
vtima-ofensor, assim como os programas norte-americanos e, parte dos programas existentes
em pases europeus. A Colmbia, no art. 521 do seu Cdigo de Processo Penal, prev como
mecanismos da Justia Restaurativa a conciliao e a mediao, estabelecendo que esta ltima
poder ocorrer mediante a reparao, restituio ou ressarcimento dos danos causado, bem
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como pela realizao ou absteno de determinada conduta, a prestao de servios a
comunidade e, por fim, atravs de um pedido de desculpas ou perdo.
Crculos
Os crculos tm suas origens nas comunidades aborgenes do Canad e passaram a ser
utilizados em diversos pases que implantaram a justia restaurativa. No Canad, o juiz Barry
Stuart os denominou de crculos de construo da paz. Os encontros que antecedem o crculo
so chamados de pr-crculos e se destinam a averiguar a possibilidade de encaminhamento
do caso, obter o consentimento das partes envolvidas e, repassar todo o procedimento para
ofensor e vtima, a fim de que estejam plenamente cientes do desenrolar de todo o processo
restaurativo. Nos crculos h participao da vtima, do ofensor, familiares de ambos, pessoas
da comunidade, alm de profissionais do judicirio, sem obrigatoriedade de sua participao.
Para Amstutz (2012) so elementos-chave dos processos circulares o respeito s
crenas de cada membro da comunidade, a vontade de todos se relacionarem de forma
positiva, os valores que cada um cr necessrio para manter um relacionamento de forma
positiva, os facilitadores e o basto da fala.
Neste modelo de justia restaurativa, as reunies ocorrem com as pessoas acomodadas
em um crculo, as quais tem a oportunidade de se expressar quando esto em poder do basto
da fala, o qual deve passar de mo em mo, na ordem em que as pessoas se encontram
sentadas. No incio do crculo feita a leitura de um texto, ou uma declarao para abertura
dos trabalhos. Os facilitadores, tambm denominados de guardies do crculo dirigem as
reunies, orientando os participantes, conforme explica Brancher (2011):
A principal caracterstica desses encontros est em que a palavra colocada
disposio dos presentes, de forma sequencial e rotativa. Coloca-se em circulao
entre os presentes um objeto (basto falador), que passa de mo em mos, e cuja
posse autoriza o portador a fazer uso da palavra nico momento em que cada
pessoa poder se manifestar, exceo feita apenas ao coordenador do encontro. A
cada rodada, os participantes so convidados a manifestarem-se a respeito de um
tema diferente. comum essas etapas aparecerem relacionadas aos quadrantes do
crculo, por sua vez indicando etapas rituais de um processo simblico de
transformao. (BRANCHER, 2011, p. 9)
A estrutura dos crculos segue a seguinte dinmica: escolha do centro e do objeto da
palavra; realizao da cerimnia de abertura; apresentao/check in; escolha dos valores a
serem respeitados; fixao das diretrizes; contao de histrias; abordagem dos problemas;
perguntas orientadoras; gerao de acordos; consenso; check out; cerimnia de encerramento.
Durante a realizao do crculo o facilitador um participante e o objeto da palavra que
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regulamenta o dilogo, ou seja, quem estiver com o objeto escolhido quem poder falar. A
posse do objeto da fala possibilita que a pessoa expresse seus sentimentos e suas vontades,
mas no a obriga a falar. Por outro lado, o basto da fala impe a escuta qualificada, j que
somente a pessoa que o detm poder falar, todas as outras estaro aptas a ouvir atenta e
respeitosamente o que ela falar. A interveno do facilitador, quando no estiver com o
objeto, permitida apenas para manter a ordem no processo circular.
Amstutz (2012) discorre sobre o basto de fala, explicando sua funo:
um objeto focal aceito e usado pelo grupo. Em geral trata-se de algo que tenha um
significado especial para o grupo.
Proporciona oportunidade de escutar e refletir antes de falar, j que todos devem
esperar a sua vez para se manifestarem no momento em que recebem o basto de
fala. Assim, os participantes tendem a prestar mais ateno ao que as pessoas esto
dizendo em vez de preparar uma resposta imediata.
Evitar altercao entre duas pessoas, j que todos devem esperar sua vez para falar.
Estimula a responsabilidade partilhada durante a discusso.
Refora a igualdade no crculo, j que proporciona igual oportunidade a todos os
participantes.
Abre maior espao para aqueles que em geral ficam em silncio, j que no precisam mais competir por espao com aqueles que so mais extrovertidos. (AMSTUTZ,
2012, p. 78)
As diretrizes para o uso do referido objeto, segundo Amstutz (2012), devem prever o
uso da palavra apenas pela pessoa que estiver portando o objeto, a qual dever se manifestar
sempre de forma respeitosa para com os demais integrantes do crculo, alm de usar a palavra
parcimoniosamente, oportunizando assim que todos se manifestem. Nos crculos a pessoa
tambm pode deixar de falar, se assim o desejar, devendo sempre respeitar a
confidencialidade do que for partilhado durante sua realizao.
Aps a realizao do crculo e ocorrendo a elaborao de um acordo, so feitos ps-
crculos, novamente com a participao de todos aqueles que estiveram presentes ao crculo, a
fim de averiguar se o acordo foi cumprido, qual o resultado para todos eles.
Para atuar como facilitador