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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE ARTES
CURSO DE LICENCIATURA EM TEATRO
GLÊNIA MARIA DA SILVA FREITAS
CAMINHOS POR ONDE ATRAVESSEI E FUI ATRAVESSADA: RELATOS DE
UMA VIAJANTE NA TRAJETÓRIA DAS PALAVRAS
NATAL/RN
2017
2
GLÊNIA MARIA DA SILVA FREITAS
CAMINHOS POR ONDE ATRAVESSEI E FUI ATRAVESSADA: RELATOS DE
UMA VIAJANTE NA TRAJETÓRIA DAS PALAVRAS
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
como requisito parcial para obtenção de título
de Licenciado em Teatro.
Orientadora: Profª. Mª. Mayra Montenegro de
Souza.
NATAL/RN
2017
3
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho a estrela que brilha mais
forte no céu todos os dias e que ilumina
minhas noites. Vovó Djanira, sou grata por sua
existência em minha vida e por embalar meu
sono com canções e contações. Te amo agora e
sempre.
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço em primeiro lugar a energia Divina que rege o Universo.
Agradeço a Energia Dourada que cuida da minha cabeça e que se faz essência no corpo
morada que sou. Por me permitir ser água límpida, forte! Por não me deixar desistir e ser
sempre o alicerce forte nessa moradia. Ora yê yê ô!
Agradeço aos meus familiares que nunca deixaram de acreditar que sou capaz e que, mesmo
em meio a tantas dificuldades, fizeram “das tripas coração” para que na medida do
(im)possível nada de essencial pudesse me faltar.
Ao meu pai, Francisco de Assis Machado de Freitas, que sempre fez de tudo para que eu
pudesse estudar, inclusive fazer serviços de pedreiro na escola para garantir que eu tivesse
uma vaga. Por ir sempre pegar meu boletim, e mesmo sem saber ler, pedia aos estranhos na
rua para ler sobre o que tinha escrito no papel. Pai, hoje devo muito disso ao senhor!
A minha mãe, Maria de Lourdes da Silva Freitas, por ter me parido de um coração tão forte e
assim nunca me deixar desistir, mesmo quando eu deixava de acreditar. Te amo!
Aos meus irmãos que me acolheram no ninho chamado família. Sou grata a vocês pela
partilha do lar!
Aos meus sobrinho que compartilharam os mais bonitos quintais da infância. Amo vocês.
A minha outra família adotiva que aprendi a cada dia amar e respeitar: Minha mãe Antonieta,
Clareana, Aura, Iriá, Hallison, Cafú, Artur, Tamba, Cora, Félix, Bobó, Hugo. Vocês fazem
parte disso!
Aos meus companheiros de turma do ano de 2013.1 do Curso de Licenciatura em Teatro.
Amigos de tantos voos, caminhadas, conquistas. Sem vocês, nada seria como é. Obrigada pela
partilha nesses 5 anos. Pelas risadas, pela parceria, pelos conflitos… (suspiros!)
A Hianna Camilla por me ouvir tantas e tantas vezes e por dispor sempre de tempo para me
ajudar. Te amo, minha irmã!
A Mãe Isa e Herisa que tanto me ajudaram a repor as energias quando mais precisei. Olorum
modupé!
Ao meu amor Mar, que veio como onda suave. Grata por segurar minha mão e olhar em meus
olhos nestes últimos momentos desse parto! Amo!
A Mayra Montenegro por ouvir minhas inquietações e estar comigo nesse momento de
fechamento de ciclo e sempre. Gratidão!
Aos professores do Departamento de Artes pelo olhar generoso.
5
Ao professor Jefferson Alves por me permitir vivenciar o Teatro de olhos fechados.
A Thales por me emprestar seus olhos.
A todas as pessoas que fazem o Departamento de Artes acontecer.
A João Vítor por ter sido sempre um anjo em minha vida. Te amo!
Aos amigos: Cléo Araújo, Vanessa Souza, Hyago, Elizabeth Araújo, Kathleen, Samara,
Pedrinho, Juju, Lila, Daliana, Ivan, Éric, Nalva, Lili, Juciê, Raiana, Sílvia, Fernanda… Sou
infinitamente grata por todas as coisas! Todo o meu carinho e afeto por vocês.
Aos companheiros do Cruor, do Arkhétypos e do Olhos pela troca sempre tão sincera.
Agradeço a Larissa Paraguassú por ter insistido em dizer que eu teria que tentar o curso de
Teatro. Sem a sua insistência, eu não sei como isso teria acontecido. Gratidão!
A Ana Caldas, Melissa Lopes, Miguel Damha, Raquel Scotti e os companheiros da sala verde
pela vivência tão intensa e única no Lume.
Sou grata a Vida pela generosidade de me permitir viver a Arte que transborda de dentro para
fora, se transformando em mais e mais vida, sendo assim essa fonte inesgotável.
6
RESUMO
FREITAS, Glênia Maria da Silva. CAMINHOS POR ONDE ATRAVESSEI E FUI
ATRAVESSADA: RELATOS DE UMA VIAJANTE NA TRAJETÓRIA DAS
PALAVRAS. 2017, páginas. Licenciatura em Teatro - Universidade Federal do Rio Grande
do Norte, Natal/RN.
O presente trabalho pretende relatar o processo de experiência por meio do uso da palavra
durante a trajetória no Curso de Licenciatura em Teatro e no curso de Mímesis Corpórea no
Lume. Trago a palavra como mote de criação e investigação de uma proposta cênica, a fim de
destacar a importância do poder que ela tem como estímulo de criador de imagens mentais.
Lanço mão da utilização da palavra como proposta para experimentar de outras formas a
metodologia da Mímesis Corpórea, que parte a princípio da observação de uma imagem para
em seguida encontrar equivalência no corpo. Adentrando nessa metodologia, encontro a
Mímesis da Palavra, lugar de íntima investigação para o uso da palavra como mote de criação
cênica a partir da observação da palavra falada.
PALAVRAS-CHAVE: Experiência. Palavra. Mímesis Corpórea. Mímesis da palavra.
Processo de Criação.
7
ABSTRACT
FREITAS, Glênia Maria da Silva. PATHS I'VE CROSSED AND HAVE CROSSED ME:
NARRATIVES OF A WANDERER IN THE TRAJECTORY OF WORDS. 2017 pages.
Licentiateship in Theatre - Federal University of Rio Grande do Norte, NATAL/RN
This research intends to report the process of experience during the Theatre Licentiateship
and the Corporeal Mimesis course at Lume by making use of the word. I bring the word as a
starting point and an investigation tool for scenic proposals, in order to highlight the
importance of the power it has as a stimulus in the construction of mental images. I resort the
word as a mode of exploring in other ways the Corporeal Mimesis methodology, which is
based in the observation of an image in order to find equivalence in the body. Plunged in this
methodology, i find the Word Mimesis, a place of an intimate investigation in the use of the
word as a starting point during scenic creation after observations of the spoken word.
Keywords: Experience. Word. Corporeal Mimesis. Word Mimesis. Creation process.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 9
Capítulo 1 - Caminhando em passos mais largos; uma nova forma de experimentar a palavra
por meio da Mímesis Corpórea ................................................................................................ 12
1.1 Da Mímesis corpórea à Mímesis da palavra: Uma vivência no Lume Teatro ............ 12
1.2. Vivendo a mímesis em terras nossas: Vivência como monitora na disciplina de
expressão Vocal IV no curso de Licenciatura em Teatro..................................................23
Capítulo 2 - Experiência do agora: relato sobre a vivência com a não visão e a Improvisação.
.................................................................................................................................................. 27
2.1 Experiência no projeto o que os olhos não veem o coração não sente ...................... 27
2.2. Dançando as palavras por meio da técnica da Improvisação .................................. 33
CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................................35
REFERÊNCIAS........................................................................................................................38
9
INTRODUÇÃO
“Descobri que só sei falar do que é meu. Daquilo que me
perpassou. Talvez por isso guarde tanta coisa para não correr o
risco de ficar muda. Tenho medo do vazio, de nele me perder,
por isso o busco e dele fujo.” (COLLA, Ana Cristina)
O que tem me atravessado? O que tem penetrado em minha pele, poros e dilata o corpo que
sou pelo espaço? Eu, movida pelos sons, pelas palavras, sinto-me transpassada no instante em
que me coloco em sala de trabalho e na vida.
Fecho os olhos e tento aguçar os outros sentidos na tentativa de ali encontrar um pontapé
inicial para um corpo extracotidiano.
Passo por minhas experiências e a sensação de seus atravessamentos só me fazem ter mais
desejo de compartilhar para que outros tenham uma experiência tão singular quanto as que eu
tive. Seja pela leitura dessas palavras, ou pelo som delas entoadas por uma voz embarcada de
memórias, sensações e sabores que são físicas, mentais, emocionais, energéticas.
Deparo-me entre quatro paredes. No som toca uma música. Palavras dançam pelo ar
atravessando meus poros. Penetram sem pedir licença por meus ouvidos e passeiam pelo
corpo que sou, gerando uma espécie de dança pessoal.
Somos esse espaço do entre. Atravessada pela sonoridade do espaço, pelos silêncios,
pausas. Fecho os olhos em busca de um caminho novo para criação. Abro então os ouvidos e
danço. Danço pelo espaço e sinto-me atravessada pelo que ouço. Tantos outros corpos
dançam dentro de mim e então começo a observar que esse pode ser um bom caminho para se
trilhar.
Aqui falo de minhas experiências, tenho um baú lotado dessas memórias de passado/presente.
Estava tão lotada disso que precisava partilhar em algum lugar. Encontrei aqui o espaço para
isso. Quero lançar ao vento folhas palavras que ecoam em um corpo/voz que sou e
reverberam pelo ar como um sopro suave ao pé do ouvido.
As coisas saem de dentro de mim, elas não entram pelos olhos, já estão presentes no
mar profundo de mim mesma e são acessadas pelo som, pela palavra. O olho apenas vê, mas a
memória é ativada me permitindo enxergar imagens que olho nenhum pode enxergar.
Este trabalho surge do desejo de investigar o estímulo sonoro como mote de criação a
partir do trabalho da Mímesis da Palavra. Trabalho esse desenvolvido pelo Lume, o qual tive
a felicidade de fazer o curso em fevereiro de 2017. A partir dessa vivência no Lume, resolvo
10
encarar e enxergar os trabalhos nos quais estou inserida pensando justamente em como
ressignificar o trabalho da mímesis, fazendo uso da palavra um ponto de partida para a
criação.
Volto para casa com a mala carregada de questionamentos e resolvo colocá-los na
mesa para preparar um grande banquete. Curiosidades e desejo de experimentar esse novo
tempero em outras porções tão mágicas quanto as que pude vivenciar.
O início do trabalho com a Mímesis Corpórea parte da observação de uma pessoa, um
objeto, um animal, uma fotografia, uma pintura, um monumento estático. Mas aqui, eu parto
do trabalho da Mímesis da palavra, metodologia oriunda da Mímesis Corpórea. Fecho os
olhos e me permito viajar nas paisagens e atmosferas criadas pelo estímulo externo do som e
das palavras. A palavra no corpo-em-ação. A palavra tem o poder de nos trazer sensações,
memórias, sabores, imagens. Nessa perspectiva, desenvolvo uma pesquisa com base nas
sensações sentidas sem o recurso da visão enfatizando a audição como potencializador de
criação.
Inicio essa partilha pelo fim que é só um começo.
No primeiro capítulo, relato minha breve passagem pelo Lume, em fevereiro de 2017,
onde pude conhecer de perto e mais intensamente no curso intitulado "Da Mímesis corpórea à
Mímesis da palavra", ministrado por Raquel Scotti Hirson, integrante e pesquisadora do
Lume, onde me sinto instigada a fechar os olhos e viajar nas imagens palavras.
Como monitora da disciplina de Expressão vocal encontro Thales. O trabalho a ser
realizado é a partir da Mímesis e ele, aluno com baixa visão que me faz a seguinte pergunta:
"Como posso observar uma coisa que eu não consigo ver com nitidez?" Essa pergunta ecoa
dentro de mim e me faz pensar mais intensamente em buscar uma estratégia para que Thales
pudesse fazer o trabalho por meio de outra observação: Pelo estímulo sonoro da palavra.
Essa foi a gota d'água para que chovessem ideias de vontades numa terra boa para se
plantar.
No segundo capítulo compartilho as experiências vividas durante o percurso que fiz
logo após ter voltado do Lume. Minha experiência no projeto de extensão "O que os olhos
não veem o coração não sente", coordenado pelo professor doutor Jefferson Alves Fernandes.
Grupo o qual estou inserida como integrante onde pude encontrar um espaço para
investigação dessa proposta de criação, já que o trabalho se dá por meio do estímulo dos
outros sentidos, sem o uso da visão. Compartilho também da minha experiência com a
palavra da disciplina de Improvisação ofertada pelo curso de Licenciatura em Dança.
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Procuro aprofundar o trabalho da mímesis enquanto objeto de pesquisa, fazendo
sempre um paralelo dessa metodologia pensando em como posso trabalhar de outras formas,
não somente fazendo o uso da visão para observar as imagens. Mas também usando os outros
sentidos para acender a memória e assim poder expressar no corpo/voz as cores das memórias
sentidas e das imagens mentais.
Sigo minha investigação observando com os ouvidos, dilatando esse sentido que logo
reverbera e aguça o campo da memória. Assim, observar como o som e a palavra reverberam
no corpo e como é o trajeto dessa criação por meio desse recurso é o eixo da investigação do
fazer teatral sem o uso da visão. Assumindo a oficina e o laboratório como instâncias
metodológicas pautadas na improvisação, experimentamos a audibilidade como matriz
criadora da cena a ser apreendida pelo corpo, as quais nos provocam a pensar outras formas
de construção da cena teatral.
Vejo a Mímesis como um campo muito amplo de investigação e, nessa terra fértil
começo a lançar minhas sementes. Pequenos estímulos sonoros, vozes, pausas,
andamentos...até que o corpo que sou se transforma e eu sou outros, muitos que já não cabem
em mim. Me jogo de uma alta montanha em busca dessa investigação na intenção de
encontrar uma terra boa para plantar sementes palavras que possam ser exaladas por quem
passar.
12
Capítulo 1 - Caminhando em passos mais largos; uma nova forma de experimentar a
palavra por meio da Mímesis Corpórea
Porque se chamava homem
Também se chamavam sonhos
E sonhos não envelhecem
(Flávio Venturini)
Abro aqui o baú das memórias vividas e sentidas. Dessa vez em um voo mais distante, onde
pude saborear de forma mais intensa o trabalho com a metodologia da Mímesis Corpórea.
Logo que retorno para casa, tive mais uma chance de vivenciar essa metodologia, mas
experimentando de outras formas, com outras cores e aromas. Ainda movida e atravessada
pelas experiências, faço dessas palavras cúmplices, objeto de partilha desse tão singular
momento da experiência.
1.1 Da Mímesis corpórea à Mímesis da palavra: Uma vivência no Lume Teatro
Em fevereiro de 2017 estava indo eu à Campinas, São Paulo, participar pela primeira
vez do curso do Lume Teatro. O desejo de fazer o curso aconteceu a partir das vivências em
sala de aula com a Prof.ª Ms. Mayra Montenegro1, que trabalhou a mímesis em algumas
disciplinas.
O curso intitulado “Da mímesis corpórea à mímesis da palavra” foi ministrado por
Raquel Scotti Hirson2, integrante do Lume Teatro.
Mas, o que é o Lume?
1Possui mestrado em Artes Cênicas (UFRN, 2012), e graduação em Licenciatura Plena em Educação Artística,
com habilitação em Música (UFPB, 2008). É atriz, cantora e preparadora vocal da Cia. Violetas de Teatro, e
Professora Titular da graduação em Teatro da UFRN. 2 Possui doutorado em Artes na Universidade Estadual de Campinas (2012), mestrado em Artes na Universidade
Estadual de Campinas (2003) e graduação em Artes Cênicas na Universidade Estadual de Campinas (1993).
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O LUME - Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da Unicamp - é
um grupo de sete atores que hoje é referência internacional para artistas e
pesquisadores. Ao longo de quase 30 anos, tornou-se conhecido em mais de
26 países, desenvolvendo parcerias com mestres da cena artística mundial.
Criou mais de 20 espetáculos e mantém 14 em repertório. Com sede em
Barão Geraldo, Distrito de Campinas (SP), o grupo difunde sua arte e
metodologia por meio de oficinas, demonstrações técnicas, intercâmbios de
trabalho, trocas culturais, assessorias, reflexões teóricas e projetos
itinerantes, que celebram o Teatro como a arte do encontro
(www.lumeteatro.com.br - acesso em 10 de outubro de 2017).
A mímesis corpórea é uma metodologia de criação física e vocal, que foi desenvolvida
pelo Lume Teatro. Pesquisa iniciada por Luís Otávio Burnier3, onde ele intitulou essa
metodologia a princípio como a dança das palavras. Logo após o falecimento de Burnier, os
integrantes do grupo resolveram levar essa investigação a fundo. Anos depois, desenvolveram
então a Mímesis Corpórea.
O lance inicial para o trabalho da mímesis é a observação, seja de um objeto, uma
pessoa, um retrato, pintura. é feita uma observação minuciosa daquilo que se deseja ser
observado. Em seguida, essa observação é transferida ao corpo, onde procuramos encontrar
equivalência daquilo que observamos no nosso corpo. Após esse exercício de experimentar,
observar e trazer para o corpo, busca-se codificar, encontrando códigos de acesso para repetir
quantas vezes for necessário o material observado.
Para mim, o trabalho com a mímesis é tão absolutamente um trabalho de entrega, de
abertura, para que o corpo do outro possa ser morada do corpo que somos e assim, sendo nós
mesmos, somos o outro.
Com a experiência vivida e sentida nas aulas da professora Mayra e com o incentivo
das professoras Ana Caldas e Melissa Lopes - departamento de Artes -, resolvi então me
inscrever para tentar uma vaga no curso do Lume. Fui contemplada como bolsista integral.
Arrumei minhas malas e então parti para Campinas.
Cheguei enfim ao tão sonhado Lume. Estava na sala verde4 ,eu e mais um tanto de
gente que eu nunca tinha visto em minha vida. Eu, tão pequena e miúda, me senti gigante
estando ali. Me senti crescida. Deixei de ser a menina boba e brincalhona do Departamento de
3 Foi ator, mímico, idealizador e criador do LUME. 4 Sala na sede do LUME Teatro, em Campinas, onde são realizados cursos, treinamentos, desenvolvidos
processos, e apresentados espetáculos.
14
Artes e me tornei a mulher mais forte do mundo. Foi a primeira vez que viajei sozinha, sem
saber muito bem para onde ia, nem como seria o trajeto. Sabia apenas o ponto final dessa
caminhada. Meu coração saltitava como se eu estivesse indo ao encontro de uma paixão. E
talvez fosse isso mesmo. Sobre paixão, cito Larrosa que diz:
O que o sujeito ama é precisamente sua própria paixão. Mais ainda: o sujeito
apaixonado não é outra coisa e não quer ser outra coisa que não a paixão. Daí, talvez,
a tensão que a paixão extrema suporta entre vida e morte. A paixão tem uma relação
intrínseca com a morte que é querida e desejada como verdadeira via, como a única
coisa que vale a pena viver, e às vezes como condição de possibilidade de todo
renascimento.(BONDÍA, 2002,p.26)
Sim, eu estava apaixonada e totalmente disposta a viver o novo. Me despi de mim
mesma e abri as portas para essa paixão ardente me tomar e eu ser então o sujeito lugar da
experiência.
Ainda na sala verde, Raquel nos pede para escolher um lugar na parede para então
colocarmos nossas imagens. Ela solicitou que levássemos 20 imagens de nossa escolha e dois
textos para serem trabalhados durante as atividades.
Eu escolho ficar abaixo da janela. Entre o olhar para imagem, pegava pela visão
periférica um pouco do verde do lado de fora que vinha com um misto de terra molhada e
relâmpagos de dias chuvosos. Aqui farei a partilha de meu diário de bordo durante essa
experiência com a metodologia da Mímesis vivida durante o curso. Abrirei então meu diário
de bordo como interlocutor dessa vivência:
Curso da mímesis corpórea à mímesis da palavra
Dia 03 de fevereiro de 2017. Primeiro dia de trabalho pesado.
[...]
Começamos a saltar pelo espaço, como se estivéssemos pulando em
cima da cama. Ainda pelo espaço e trocando energia, passamos por
nossas imagens. A primeira que o olhar encontrar teríamos que
trazer para o corpo ainda com o salto.
1ª Imagem escolhida (imagem do salto): Escolhi a imagem onde tem
dois homens de braços abertos em um lugar elevado.
A imagem ganhou movimento.
De braços abertos, cabeça voltada para cima, andando para trás.
Como se estivesse voando, começo a cessar o voo e vou envolvendo-
me em meu braços. Giro no lugar enquanto o braço esquerdo vai em
direção a minha cintura. Quando ele chega na cintura, o direito vem
por detrás da cabeça puxando o cabelo colocando a cabeça
inclinada para o lado esquerdo.
Olhar apavorado. Coluna inclinada para frente. Pequenos passos.
15
Coluna para cima, braços desenrolando voltando à imagem inicial.
(DIÁRIO DE BORDO)
Primeira imagem trabalhada. Homens em um lugar alto com árvores e uma leve névoa. Foto em preto e branco.
Os homens estão de costa para o fotógrafo um mais na frente e outro um pouco mais atrás. Estão de braços
abertos, de chapéu e uma espécie de túnica. Fotografia de Sebastião Salgado. Obra “Outras Américas”, 1999.
Em primeiro lugar, encontrei o seguinte. O que a Fotografia reproduz ao infinito só
ocorreu uma vez: ela repete mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se
existencialmente. (BARTHES, 1984, p. 13)
Assim pari a primeira imagem observada. Tinha movimento, tônus, vida. Era como se
eu tivesse passado pelo lugar da fotografia e me permitido ser ela. Dei a ela vida. Sentir a
sensação dessa imagem fez brotar do pulso do corpo que sou uma recriação do que foi
observado. No decorrer do curso, outras imagens me saltaram aos olhos e em seguida aos
poros e encontraram no corpo que sou espaço para ser. Me permiti dançar essas imagens.
Em outro momento, escolhi uma outra imagem estática onde uma moça com marcas
no rosto olha por cima do ombro direito. O seu olhar é um agregado de sentimentos. Observo
minuciosamente a imagem na tentativa de ser o mais fiel possível. Com a ajuda de uma
colega de turma, peço para que ela me observe enquanto reproduzo a imagem observada por
16
mim. Acaba que a imagem transcrita no corpo que sou é observada por um terceiro olhar. O
olhar de quem observa a imagem da imagem.
Na imagem uma mulher está em foco. Sua cabeça e ombros estão envolvidos por um lenço. Ela está
como no ângulo como se tivesse sido chamada por alguém e inclina olha para trás (para o fotógrafo). Seu olhar é
um tanto intimista, tem lábios grossos. Em sua bochecha existem três cicatrizes, uma do lado da outra e uma
outra um pouco abaixo do olho. Apenas metade de seu rosto aparece. Foto preto e branco. Fotografia de Pierre
Fatumbi Verger.
Outras tantas imagens atravessam o corpo que sou. Algumas gritam pela necessidade
de serem ouvidas mais do que outras. Escolho então uma outra fotografia, onde irei apenas
observar o olhar da pessoa na foto. Como é olhar com os olhos do outro? Será que sou capaz
de olhar o mesmo que esse outro olha? Nesse instante, me comparo a uma câmera fotográfica.
A olho nu, a imagem em minha frente me chega de forma diferente do olhar da fotografia.
Na imagem observada, uma menina sentada em uma sala de aula. Sobre a carteira um
caderno. Em sua mão direita uma caneta. Seu olhar é vago, triste, sem esperança, na tentativa
de um sorriso que não condiz com a ausência de brilho em seus olhos. Observo. Entro na sala
de aula, sento na cadeira a qual essa menina está sentada. Me transporto para dentro da
17
fotografia com a intenção de poder enxergar com os olhos daquela menina e perceber o que
muda no corpo de acordo com esse olhar.
Na imagem, uma menina está sentada em uma cadeira numa sala de aula. Segura uma caneta apoiando em um
caderno. O outro braço está apoiado na mesa. Um sorriso no canto da boca e um olhar vago distante. Foto preta e
branca. Fotografia de Sebastião Salgado da Obra “O berço da desigualdade”, 2003.
A experiência até aqui me faz refletir sobre dois olhares: a figura que se constrói no
corpo não é necessariamente compatível com a imagem que se cria a partir da
observação da fotografia. O olhar que fita a fotografia passa por uma afetação
primeira (punctum) que, com o passar do tempo, se expande para toda a imagem
observada. Novos detalhes são assimilados, seja pelas sensações provocadas, seja
pela análise dos ângulos, cores, vestimentas, tensões, rotações articulares, qualidade
do olhar, etc. (HIRSON, 2012, p. 70-71)
18
A cada observação, as imagens são trazidas para o corpo e são recriadas, sendo não
somente pura imitação, mas encontrando espaço para equivalências5 no corpo que sou
proporcionando assim um novo lugar para criação, de afetações. Busco nessa imagem o que
me afeta, adentro nela de corpo e alma no desejo e na necessidade de encontrar ali um lugar
aqui dentro do corpo que sou, para que essa fotografia ganhe vida, movimento. Dou a ela um
novo sentido, um lugar de fala.
No segundo dia de curso, Raquel diz que a nossa atividade será externa. Antes de
sairmos, ela fez um exercício corpóreo-vocal6, para que pudéssemos abrir o peito para esse
encontro e essa experiência e nos passa as seguintes recomendações:
1.Observar uma pessoa;
2.Trocar algumas palavras com essa pessoa, ter alguma relação com ela;
3.O MAIS IMPORTANTE: VIVER ESSE MOMENTO E SENTIR QUE O OUTRO
SOU EU;
4.Observar minuciosamente - coluna, pés, ombros, quadril, a maneira que a pessoa
anda, o que projeta e retrai em cada um, observando as articulações.
Saímos pelas ruas de Barão Geraldo em busca de alguém o qual sentíssemos alguma
forma de atração e o desejo de observar. Diferente de uma fotografia que é estática, a ideia era
procurar alguém em meio ao caos do dia-a-dia nas ruas, para que tivéssemos o mínimo de
contato possível, para coletar material suficiente para execução do exercício da mímesis ao
retornar a sala verde. Feito. Saímos cada um para um lado apressadamente, pois tínhamos um
tempo cronometrado para execução dessa tarefa.
Depois de muito caminhar, tantas pessoas e nenhuma delas me chamou atenção o
bastante para que eu pudesse ter esse espaço de aproximação. Eu, turista e solitária naquela
cidade, resolvi respirar fundo e caminhar sem pressa com a esperança de que, em algum
momento, essa pessoa iria esbarrar comigo. Caminhei apreciando as ruas, as pessoas, o ar, a
temperatura o qual estava aquele dia. Até acabei esquecendo qual era mesmo o propósito
daquela caminhada. Foi então que eu vi um enunciado que muito me chamou atenção em uma
pastelaria que dizia assim: “TEMOS CURAU”. Me senti fisgada pelo enunciado e resolvi me
aproximar na tentativa de saber do que se tratava.
5 “A mímese não é a imitação, mas recriação. Isso significa que, quando observamos pessoas obesas ou mesmo
pessoas sem dentes, devemos verificar quais são seus vetores de peso, quais são suas tensões e dinâmicas e
recriar em nossa musculatura uma tensão, uma dinâmica e uma vetorização equivalente” (FERRACINI, 2012, p.
239). 6 “É importante para o ator ter uma espécie de treinamento de contrações, projeções e vetorização de seu próprio
corpo, para que possamos ter uma observação concreta dessas mesmas projeções e retrações, tanto no momento
da observação, quanto no momento posterior, de in-corporação delas”(Idem, p. 235).
19
Observação na rua - Dia 04 de fevereiro de 2017.
Entrei no pastelaria Wolff depois de muito andar sem saber muito o que
fazer. No letreiro da entrada do estabelecimento tinha escrito: TEMOS
CURAU. Fui fisgada pela curiosidade de saber o que era aquilo que, por um
momento acabei esquecendo o real motivo daquela caminhada.
Ao entrar, me deparo com dona Irani, natural de Minas Gerais e que mora
em Campinas há 19 anos. Uma mulher branca (rosada por conta do calor),
olhos de cor azul piscina e uma aura graciosa, leve, de quem não se apavora
com os aperreios da vida. Com mais ou menos 1,55 de altura, pernas
grossas, um pouco forte, pescoço bem curto que quase não aparece. Muita
agilidade em suas movimentações, mas sem perder a simpatia. Aberta e
receptiva, ela falava com brilho nos olhos sobre suas duas filhas e seu
netinho de que nasceu de sete meses. (DIÁRIO DE BORDO)
Após a relação estabelecida com dona Irani, retornei à sede do Lume. Nesse contato,
pude estabelecer com ela uma conversa espontânea, quando tive a oportunidade de gravar a
voz dela em meu celular como forma de registro vocal para uma investigação mais íntima,
podendo ouvir mais detalhada e pausadamente sua voz, timbre, altura, fluxo, para tentar
encontrar equivalências no corpo/voz que sou.
Durante o exercício de escuta do áudio, tentei memorizar frases soltas do que ela
falou. Logo em seguida, Raquel pede para nos espalharmos pelo espaço da sala, na tentativa
de encontrar no corpo o corpo daquele que foi observado. Encontrei a equivalência do corpo
de dona Irani juntamente com a voz, onde essa se tornou o código para acessar a mímesis
corpórea dela. As relações aconteceram, histórias recontadas que acabaram recebendo outro
significado diante dos corpos que se propuseram a ser esse espaço do entre. O texto dito por
dona Irani era o seguinte:
Você já comeu curau? É uma dilícia! É feito de milho, leite e açúcar. Prova
aí!
Olha, eu moro aqui em Campinas já faz 19 ano. Eu sou de Minas, nasci numa
cidadezinha perto de Uberaba. Às vezes eu venho pra pastelaria a pé, mas as
veiz meu marido me traz de carro. Eu tenho duas fia: uma de 13 ano e outra
de 24. Eu tenho um netinho lindo qué o amor da minha vida. Leonardo! O
Léo! Ôto dia ele tava falando “caceta” daí eu perguntei: menino, onde que
ocê aprendeu isso? Aí ele disse: Foi com o vovô Tonhão!
O Tonhão é o ôto vô dele, que é meio sem juízo e fica falando as coisa feia na
frente do Léo. (DIÁRIO DE BORDO. Fragmentos de frases faladas por dona
Irani)
Fui permitindo que essas palavras pudessem encontrar em mim espaços para caminhar
e ser dona Irani em outro corpo, de outra forma, mas com a essência daquela mulher que tinha
20
acabado de conhecer. Depois de algum tempo de codificação do corpo/voz, Raquel pede para
colocarmos o texto que escolhemos no corpo/voz que acabamos de construir.
O corpo de dona Irani tomou outra proporção quando unido ao texto que levei. Criou
outra atmosfera, a voz saía de outra forma e assim as microtensões soavam de forma diferente
pelo corpo.
Tanto os trabalhos de contração e projeção de partes do corpo, como o de
vetorizações de peso, podem ser realizados como projeções muito pequenas e sutis ou
muuto grandes e intensas e, também com vetorizações de peso mínimos ou muito
intensos (...). Ao realizar esse trabalho devemos, como atores, atentar para as
diferentes macro e microtensões que ocorrem no corpo com essas mudanças posturais
(FERRACINI, 2012, p. 237).
No decorrer do curso, aprendo outras possibilidades de criação por meio da palavra:
Utilizando o texto que levei, começo uma dança com o corpo segmentado. Cabeça. Pescoço.
Ombro direito. Ombro esquerdo. Braço direito. Braço esquerdo. Peito. Quadril. Joelho direito.
Joelho esquerdo. Perna direita. Perna esquerda.
Depois o texto lido por mim. Começo então a dançar as fotografias juntamente com as
palavras ecoadas em meu ouvido. A voz que chega é suave, firme, doce. Ecoam de uma fala
bem articulada, que mastiga muito bem palavra por palavra. Como dançar essas palavras com
as articulações?
As articulações dançam as palavras, transformando-se em uma movimentação
híbrida, ressignificando cada palavra dita.
No último dia do curso, pude mais uma vez experimentar dançar as palavras junto das
imagens trabalhadas durantes os sete dias vividos, intensamente, naquela sala verde. Depois
de alguns exercícios, Raquel pega o outro texto que levei e pede para que eu ande pelo espaço
da sala. Enquanto eu andava pela sala, ela foi lendo o texto meio que sussurrando, de modo
que só eu conseguia ouvir. Ela repetiu várias vezes e de várias formas as palavras escritas
naquele papel e o corpo ia reagindo a cada uma delas.
Texto 27:
Você não lembra o que a vó dizia? A vó dizia que a mulher é como a água.
(A água escorria pelo corpo e eu dancei essa água em mim).
7 Fragmento retirado do texto construído por Fernanda Cunha e Cléo Araújo para o trabalho da disciplina de
Encenação I do curso de Licenciatura em Teatro da UFRN.
21
Ela dizia que a água arredonda as pedras.
(Fui pedra em água. Como era ser pedra e água ao mesmo tempo? Tronco, cabeça,
pernas eram pedras e nos braços moravam rios. Rios de água doce que lava, que cura, que
alivia , que banha a alma. Peito aberto. Alma leve.)
Eu estou doente, minha alma está doente! Eu tenho medo de ser esquecida. como
todas as outras. Medo de não me fazer eterna. Medo de que meus sonhos fujam de mim e a
única alternativa seja a mais fácil, ou talvez a mais difícil.
(Raquel colocou uma cadeira atrás de mim falando esse último trecho. Pediu que eu
sentasse lentamente e tentasse trazer ao momento presente a fotografia da menina com a
boneca. Sentei lentamente. A tensão mudou as expressões faciais, o olhar, e junto com ele
água de mar, água que molda as pedras de dentro para fora).
22
Na imagem três meninas estão vestidas igualmente. Elas têm idades diferentes. A menina menos está no
meio, descalça, com uma boneca da menina com a boneca. E uma expressão de medo em seu rosto. Foto em
preto e branco. Fotografia de Pierre Fatumbi Verger.
Mergulhei na infinitude de dançar as palavras ouvidas pelo corpo que fala, grita,
transborda. Corpo esse que saiu de Campinas cheio de vontade de ouvir mais palavras e de
dançá-las. Dancei as palavras não em seu sentido por si só. Elas penetraram nos olhos dos
ouvidos e logo ecoaram pelo corpo trazendo pequenas sensações, espasmos, contrações. A
cada palavra, revisitei instantaneamente o baú das memórias que o corpo é. Mergulho e
retorno à superfície sempre renovada, sempre preenchida pelo novo, pelas memórias
adormecidas que insistem em retornar junto comigo para a cena.
23
1.2. Vivendo a mímesis em terras nossas: Vivência como monitora na disciplina de
expressão Vocal IV no curso de Licenciatura em Teatro
Volto para casa com a mala cheia de inquietações. A cabeça ferve em ideias e palavras
imagens, que me despertam a necessidade de ser agora o olhar de fora dessa metodologia para
procurar entender melhor.
A professora Mayra comenta comigo que na disciplina de expressão vocal ela irá trabalhar a
mímesis da palavra, onde então resolvi ser monitora para, dessa forma, estar mais perto da
vivência a qual tinha acabado de experimentar.
Como monitora da disciplina, Mayra me dá espaço para intervenção, onde vivencio
com a turma um pouco da fruta fresca que havia acabado de colher no Lume.
Nessas manhãs de partilha, eu encontro com Thales.
Thales é portador de baixa visão e me procura para falar sobre suas inquietações e
dificuldades para aderir à metodologia. Sabendo que a mímesis parte da observação
minuciosa do que se deseja observar, Thales encontra logo de primeira a grande dificuldade:
observar. Ele só consegue enxergar cores e vultos. Ajudamos ele sendo esse olhar de fora.
Thales começa então a olhar com os nossos olhos. Daí, percebo que se dá outro tipo de
experiência. Por mais que Thales tenha feito a escolha da imagem, não são os olhos dele que a
observam. São os nossos olhos que são emprestados a ele para que possa então executar o
exercício. Mas, o que será que o meu olho vê?
A imagem de Thales passa por alguns olhares de outros colegas de turma. Noto que
cada olhar olha de forma diferente. Que nunca se olha da mesma forma. A experiência de
olhar é tão absolutamente singular, que neste momento encontro Argos8, onde seis olhos
olham a imagem de Thales em busca de uma única. O nosso olhar é sempre condicionado, por
isso cada experiência de olhar é única e íntima, pertencente apenas a cada sujeito que se
propõe a experiência de olhar.
Seguimos com os dias. Em seguida ao trabalho com as imagens, Mayra pede para a
turma observar uma pessoa, gravar a voz, da mesma forma que ambas vivenciaram no Lume,
já que ela também fez o curso com Raquel. Serge aí mais um desafio para Thales; Ele traz um
material em áudio de um senhor que entrou no ônibus pregando a palavra de Deus e contando
aos passageiros sua experiência de vida. Thales não teve oportunidade de fotografar essa
8 Na mitologia grega, era um gigante com cem olhos. Servo fiel de Hera.
24
pessoa nem de poder tocá-la para assim conseguir conhecer e ver seu rosto. Tudo o que ele
conseguiu foi gravar a voz. Levou o material para sala e não conseguiu desenvolver nada.
Ficou aflito e me pediu ajuda. A professora e eu estávamos tão perdidas quanto ele. A
princípio não poderíamos imaginar como ele iria executar o exercício, mas pensamos que a
voz seria o caminho. Decidimos que eu me reuniria com ele em outro momento para
pensarmos juntos. E assim fizemos.
O encontro com Thales não poderia ter sido melhor! Pedi para ele ouvir inúmeras
vezes o áudio que ele trouxe da pessoa que ele observou no ônibus. Em seguida, pedi para que
ele corresse na sala. Corremos juntos, eu sempre auxiliando para que ele não caísse e se
machucasse. Pedi que ele começasse a soltar pelo pelo espaço, enquanto corria, algumas
palavras, frases do texto do áudio. Juntamente a isso, foi adicionando outros comandos para
ele como: saltar, correr com a ponta dos pés, com a borda dos pés, com os calcanhar, fazendo
com que ele buscasse investigar como esse texto era alterado conforme as mudanças na forma
de andar. Ele foi se permitindo contaminar pelo áudio, pelas palavras ditas por si mesmo, pela
caminhada, e foi encontrando, esculpindo no próprio corpo a imagem da voz que ele ouviu no
ônibus. Nasceu então a figura do velho, que ele trabalhou no final da disciplina.
Minha imaginação é muito fértil e na penúltima aula eu falei para Mayra que estava
muito inseguro e que eu não iria conseguir fazer essa prova mas ela falou que era a
prova. Tudo bem. Marquei com Maria e eu consegui fazer em vinte minutos uma
coisa que era para eu ter feito durante um semestre todo. Aí eu perguntei: é isso,
flor? Ela disse: é isso! E assim, através da voz eu consegui o gesto, consegui
construir uma boca para o velho, consegui até construir um figurino e essa coisa de
ficar de ponta de pé, de imitar os animais me ajudou a ter o impulso para surgir o
corpo, a voz do velho. (Descrição da fala de Thales durante a aula onde relata sua
experiência com a voz. DIÁRIO DE BORDO)
25
Imagem do Velho desenvolvida por Thales. Fotografia de Adriano Brito
Mayra Montenegro em seu artigo “A voz em Violetas” onde relata sobre a memória
da voz diz que: “A voz pode nos revelar muitas características de alguém: idade, identidade
de gênero, procedência geográfica, nível educacional, estado emocional, aspectos e personas -
máscaras que a pessoa assumiu” (2017). Diante disso e da fala de Thales sobre a experiência
vivida com a voz e a palavra, comecei a refletir sobre essa possibilidade de trabalhar a
mímesis. Raquel nunca conheceu Alphonsus, mas através de seus poemas, ela encontrou em
26
si a voz daquele que nunca ouviu. Apenas mergulhou nas palavra-imagens e se permitiu
dançá-las.
A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um
gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer
parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar
mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-
se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade,
suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e
os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros,
cultivar a arte do encontro, calar muito,ter paciência e dar-se tempo e espaço.
(LARROSA, 2002, p.24)
Por fim, descobri que não só Thales foi atravessado pela experiência, mas eu também
no momento em que me permiti viajar de olhos fechados e ser um pouco no mundo dele. Foi
necessário eu me despir mais uma vez das tão ditas certezas, dos preenchimentos. Precisei
esvaziar-me um pouco para caber o que ali iria aprender com o outro. A experiência é sempre
esse momento de abrir espaços para novos espaços. Viver é a maior e mais fantástica
experiência que a vida nos proporciona. A arte é isso; é a vida. É se preencher para depois
esvaziar.
27
Capítulo 2 - Experiência do agora: relato sobre a vivência com a não visão e a
Improvisação.
Nesse primeiro capítulo, resolvo abrir a mala das tantas viagens, feitas. Escolhi
algumas imagens para expor aqui e compartilhar as experiências com a voz e a palavra no
decorrer dessa caminhada.
Imagens-palavras vistas de olhos fechados. Imagens da observação da palavra contada,
escrita no corpo do outro. Abro então meu diário de bordo para contar e recontar e fazer das
palavras que viajaram por entre os poros e se transformaram em ação física a partir do
trabalho da escuta corporal. São relatos das experiências pelas quais fui atravessada nos
processos de criação em algumas disciplinas durante minha passagem pelo curso de
Licenciatura em Teatro da UFRN.
Abro aqui um espaço de partilha e lanço fora da gaveta da memória palavras,
sussurros e ruídos que percorreram o corpo que sou. Palavras e imagens ecoadas do fundo da
gaveta da memória que está tatuada em minha pele.
2.1 Experiência no projeto o que os olhos não veem o coração não sente
Começo aqui falando dos atravessamentos no processo "O que os olhos não veem o
coração não sente. O projeto de extensão, coordenado pelo Prof. Dr. Jefferson Fernandes
Alves9, tem como proposição da cena teatral como um "lugar que não se vê", trazendo como
reflexão a dimensão etimológica do teatro, cuja evidência recairia sobre a posição do
espectador. Sendo assim, é proporcionado ao mesmo uma experiência estética de apreciação
pela ausência do sentido da visão. Com isso, é discutida a relação entre arte e deficiência, a
9 Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (1991), mestrado em
Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (1997) e doutorado em Educação pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2004). Professor Adjunto do Departamento de Práticas
Educativas e Currículo, do Centro de Educação/UFRN e do Programa de Pós-Graduação em Educação/UFRN,
vinculado ao Grupo de Estudos sobre Pessoas com Necessidades Educacionais Especiais. Orienta e pesquisa na
área do Ensino de Artes e deficiências, com ênfase em Fotografia e Teatro na interface com a Deficiência
Visual.
28
partir do pensamento sobre a cegueira, provocando um olhar tiresiano10, um olhar que olha de
outra maneira, sobre o qual falarei mais à frente.
O trabalho se dá através de um espetáculo, no qual videntes e não videntes possam ser
atravessados pela mesma vivência cênica, cada um dentro da sua perspectiva.
A palavra Teatro, do latim theatrum, do Grego, theatron. Ambos significam “lugar de
onde se vê”, e então eu me pergunto: será o Teatro o lugar onde se vê?
Essa pergunta surge de acordo com o diálogo entre os referenciais teóricos estudados
no projeto, tais como os seguintes autores: Jefferson Fernandes Alves, Mikhail Bakhtin,
Jacques Rancière, Evgen Bavcar. Esse último muito me chama atenção. Bavcar é esloveno,
naturalizado francês, doutor em estética pela Universidade de Paris, doutor em História,
Filosofia, cineasta, fotógrafo e cego. Meu questionamento inicial é: Como assim um fotógrafo
cego? Mesmo sem a chamada janela da alma, ele não vê, ele olha. Ele me convida a
experimentar um novo olhar, a mergulhar num mundo invisível por meio das palavras e das
imagens mentais. Um pouco mais a frente da caminhada, irei me aproximar um pouco mais
dessa ideia de ver e olhar.
Comunicando ao outrem as imagens dos meus próprios algures, faço de minha
fotografia uma espécie de diálogo que lhe assegure uma existência interativa.
Pensando bem, me contento com o frágil vislumbre que ilumina os meus espelhos
interiores e dão um sentido às imagens dos sonhos. Porque esquecemos muito
frequentemente que os sonhos também precisam de luz e de ícones a quem mandar
as suas rezas noturnas. Por mais fracas que sejam, as imagens de sonhos sempre são
a expressão de uma natureza outra que, na banal transparência do cotidiano, opõem
as frágeis visões iluminadas interiormente, isto é, por elas mesmas.
Podemos, com a mesma lógica que fez dizer a Plotin, que o olho humano não
poderia ver o sol se não tivesse ele mesmo alguma coisa solar, afirmar que o dia que
nos maravilha não nos daria uma mera imagem se o nosso olho não estivesse
preparado pelos sonhos noturnos. E se às vezes somos forçados a observar o mundo
de olhos fechados, é sobretudo para conservar o caráter frágil dos sonhos que nos
levam para os espelhos do invisível. (BAVCAR. 2003, p. 21 e 22)
Bavcar me tira do chão com sua reflexão sobre o olhar de olhos fechados. Nessa
metáfora, percebo que quando fechamos os olhos, quando anulamos o sentido da visão, uma
outra forma de olhar é expressada no corpo. Procuro aqui refletir sobre olhar com os outros
sentidos para além da visão, mas irei enfatizar o uso da audição.
10 Olhar como Tirésias, personagem mitológico sobre o qual falarei logo em seguida.
29
Vou mais fundo nessas perguntas e retorno a Bavcar, onde ele faz uma reflexão sobre
as figuras míticas da cultura greco-romana e a forma de olhar. Nesse mergulho, encontro o
olhar de Tirésias.
Segundo a mitologia, Tirésias era um cego adivinho dotado de intuição. Era um
místico iluminado de sensibilidade e conseguia enxergar muito além dos que os olhos dos
videntes podem ver. Para Bavcar, Tirésias representa aqueles que não se contentam apenas
com o que conseguem ver, com o visível. Aqueles que se permitem e desejam ir para além de
como o mundo é, mas também de como ele poderia ser. Percebo por meio dessa reflexão que
estamos acometidos a cegueira social, nos tornando cada vez mais presos dentro daquilo que
julgamos verdadeiro. Platão em sua alegoria sobre o Mito da Caverna quis dizer que nós
somos esses prisioneiros acorrentados, que só enxergamos e acreditamos nas informações que
recebemos todos os dias, e que a caverna é mundo em que estamos e que nos mostra imagens
que não são reais.
Para esse trabalho, resolvo me aproximar um pouco mais dessas duas figuras: Ulisses
e Tirésias. Nesse sentido, acredito que temos um olhar de Ulisses quando nos percebemos
seres dotados do que vimos e acabamos emprestando nosso olhar ao outro, sendo esse espaço
do entre. O olhar de Tirésias é o mais emblemático e próximo do caminho que quero chegar.
O olhar intuitivo, que enxerga para além dos olhos. Isso me faz pensar em como é
trabalhar de olhos fechados e ao som dos estímulos sonoros, das palavras de outrem e como
isso constrói imagens mentais, imagens que são memórias e saltam pelo corpo dando
oportunidade de se moldar a cada pincelada de palavras. Nesse instante de resgate nesse
corpo/memória que sou, acabo encontrando um dos prisioneiros que, por ousadia, foge da
caverna em busca de conhecer o mundo externo. Ele por sua vez, retorna a caverna, com o
intuito de também libertá-los, fala para todos como que é o mundo do lado de fora, ditando as
imagens as quais o corpo percorre. Os prisioneiros ficam indignados com o relato, julgando
ser falso, e ameaçam ele de morte. Preferem ficar no comodismo da caverna, preso em
sombras e falsas imagens. Essa é também a história de nossa sociedade atual, com o olhar
condicionado apenas ao que nossa vista alcança. Estamos sempre intercalando entre o
prisioneiro fugitivo, os prisioneiros presos ao comodismo e Tirésias, sendo o terceiro a porta
mais estreita a se passar. Para olhar com os olhos da alma, é preciso abrir a porta do lugar
mais sensível que existe em nós e permitir seguir adiante numa caminhada cheia de imagens
adormecidas em si, sem pensar onde iremos chegar. Apenas caminhar sem pressa, sentindo
cada passo, a terra onde pisa, as vozes, o ar. É se permitir viajar no mundo de si mesmo.
Fechar os olhos é se permitir olhar para o invisível. Para Bavcar, Tirésias é a figura que
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representa os que não se contentam apenas com aquilo que podem ver. São os que se
permitem olhar. Quando fecho os olhos nos momentos de laboratório de criação, permito
experimentar ser um pouco Tirésias, e sigo a intuição de ser e estar. Me permito, então, ser
esse sujeito lugar da experiência.
Em outro momento esbarro no meio do caminho com José Saramago em sua obra
“Ensaio sobre a cegueira”, e então uma frase me saltam aos olhos e aos ouvidos: " Se podes
olhar, vê. Se podes ver, repara". Essa frase me faz querer ir mais além do que eu vejo diante
dos meus olhos. Me faz querer olhar pelo espelho que reflete de dentro para fora material para
construção poética, desenhando no corpo tudo aquilo que apenas eu consigo olhar. Mergulho
fundo. As palavras dançam no corpo que sou transformando-se em imagens.
Nesse mergulho, percebo que ver e olhar são pontos divergentes.
Será que o olho tudo vê? Será que de olhos abertos eu realmente enxergo o outro ou eu
apenas vejo?
Nos laboratórios de criação, todos usamos vendas nos olhos para que possamos aguçar os
demais sentidos. O toque, os cheiros, a energia, a respiração. O corpo dilata, parece que ele é
toda a sala. Os estímulos acontecem, e logo, sem nada falar eu começo a enxergar o outro
mesmo de olhos cerrados. Percebo a capacidade de olhar o outro mesmo sem o uso da visão.
O olhar físico que quer ver não é aquele olhar da verdade, pois a presença de um
objeto só pode ser confirmada pelo toque físico. Por essa razão o tato permanece, para
Bloch por exemplo, o único órgão da verdade. (BAVCAR, 2000, p. 17-18)
Temos aqui o tato como o sentido da verdade, já que não podemos negar a materialidade das
coisas. Elas existem pelo fato de eu poder tocá-las. Mas refletindo mediante a fechar os
olhos, percebo que a verdade é tudo aquilo que me transpassa de forma que altera o estado de
ser.
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Laboratório para reconhecimento de objetos para investigação sonora. Foto de Mayra Montenegro.
Laboratório de criação por meio do tato, sem o uso da visão. Foto de Mayra Montenegro.
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Nós do Teatro tão acostumados a olhar no olho do outro para poder trocar energia e o
jogo acontecer, me vejo olhando de olhos fechados, me permitindo ser, estar, sentir e a partir
dessa experiência pensar em uma nova forma de mergulhar. Dessa vez, adentro nas imagens
memórias que o corpo que sou é capaz de produzir, sentir e visualizar de um olhar totalmente
diferente.
Nos laboratórios guiados por Hianna Camila11 percebo o quanto ela nos dá outros
tipos de estímulos que não são visuais. De vendas nos olhos é onde tudo começa.
No dia 07 de março de 2017, foi ministrada uma oficina no Departamento de Artes
(Deart) pelos integrantes do grupo no qual Hianna conduziu a vivência. Os demais integrantes
auxiliaram durante os exercícios, já que os participantes estavam todos de venda nos olhos.
Eu estava sem venda, pude olhar de fora e consegui perceber uma coisa que me deixou
reflexiva: no alongamento, Hianna pediu para que os participantes sentassem. O interessante
foi perceber que algumas pessoas ficaram em pé. Outras não tinham noção do lado esquerdo e
direito. Penso que isso acontece porque vivemos em um mundo de imagens visuais, cheios de
informações e nos distanciamos daquilo que se entende por experiência. Percebo também que
nessa ação muitos ainda estão presos ao que a imagem visual proporciona, e quando ela lhes é
tirada gera uma sensação de insegurança, medo. Estar de olhos fechados é um exercício
conflituoso.
A imagem que nós temos diante de nós é uma forma de pré-imagem, expressão de
um frágil vislumbre de utopia, a qual suscita em nós a saída das trevas, lugar que nos
legou a memória física, de uma beleza completa. (BAVCAR, 2000, p.14)
Nem todos querem ou desejam a escuridão até descobrirem que ao fechar os olhos,
existe a imaginação que é um mergulho no invisível que logo se transformará em visível por
meio do trabalho de criação que pulsa de dentro para fora e logo se manifesta em pura
metamorfose contínua.
Segundo Jorge Larrosa Bondía12 em "Notas sobre a experiência e o saber da
experiência", o excesso de informações da contemporaneidade nos faz sujeitos cada vez mais
informados assim bloqueando a nossa possibilidade de experiência. Acredito em uma
reeducação do olhar que favorece uma outra forma de ser e estar no mundo a partir da
experiência de fechar os olhos e mergulhar fundo no caminho das palavras imagens que nossa
imaginação é capaz de percorrer.
11 Graduada no curso de Licenciatura em Teatro da UFRN e atualmente é mestranda no programa de Pós-
Graduação em Artes Cênicas na UFRN. Pesquisadora e integrante do projeto de extensão Olhos. 12 Professor de Filosofia da Educação na Universidade de Barcelona. Licenciado em Pedagogia e em Filosofia,
doutor em Pedagogia, realizou estudos de pós-doutorado no Instituto de Educação da Universidade de Londres e
no Centro Michel Foucault da Sorbonne, em Paris.
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Imagem do ensaio do estrato cênico “ O que os olhos não veem o coração não sente”. Foto de Mariana Lisboa.
2.2. Dançando as palavras por meio da técnica da Improvisação
Finalizando minha passagem pelo curso de graduação em Licenciatura em Teatro,
pela UFRN, resolvi me desafiar na arte de dançar. Decidi incluir em minha carga horária final
a disciplina de Improvisação ministrada pela Prof.ª Drª. Patrícia Garcia Leal13, do curso de
Licenciatura em Dança, que me provocou viajar na sensação de dançar de olhos fechados.
A proposta da disciplina é trabalhar os elementos essenciais para a improvisação a
partir das concepções de Laban, Jung e Damásio sobre o termo. Fazendo assim com que o
bailarino/performer possa colecionar um amplo repertório motor, proporcionando conhecer o
que se refere a qualidades de fluxo e de movimento, peso, relações com os espaços,
alinhamentos, musculatura.
13 Possui graduação em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
Filho (1996), mestrado em Artes pela Universidade Estadual de Campinas (2000) e doutorado em Artes pela
Universidade Estadual de Campinas (2009).
34
Sinto, logo improviso!
Sequência Tônus Fluência Intenção Sensação Tempo Espaço
Pensamento Pele Ossos Corpo Frestas Acelerar
Tempo leve
Me pego dançando as palavras que habitam nas memórias do corpo que sou. Na aula
do dia 11 de setembro, a professora nos propõe criar a partir do exercício da escrita
automática. Esse exercício se dá da seguinte forma: levamos um objeto no qual tivemos uma
relação importante ou marcante em nossa vida, no meu caso, levei um absorvente. Fechei os
olhos e me permiti retornar ao dia que tive meu primeiro encontro com o absorvente. Mantive
ali durante alguns minutos uma relação tátil com o objeto e as lembranças trazidas por ele.
Em seguida, Patrícia nos pede para, sem pensarmos muito, soltar todas as palavras possíveis
em um papel de como foi a relação com o objeto. Lanço então o seguinte texto:
Ao me relacionar com esse objeto sinto uma raiva tão grande, com um misto
de vergonha daquele dia em que descobriram meu maior segredo. Eu estava
deixando de ser uma criança e me tornando uma mocinha.
Menstruei.
Escondi essa dura realidade durante três dia. No quarto dia, minha irmã viu
o lençol sujo de sangue e me acordou mandando eu tomar banho que ela ia
me ensinar a colocar aquele pedaço de coisa branca. Eu apenas virei a cara.
Depois daquele dia minha mãe me privou de correr na rua, de andar de
bicicleta, de sentar de perna aberta, de comer certas coisas que ela falava ser
"carregado". (Diário de Bordo do dia 11 de setembro)
Logo após a escrita automática dessa, uma outra pessoa foi lendo o texto para mim
enquanto eu me movia de acordo com minha história recontada agora na voz do outro.
Percebi nesse momento que outra relação aconteceu; a minha relação com o objeto junto com
a fala que saiu do corpo e se transformou em palavra e foi verbalizada pelo outro.
Em seguida, Patrícia pede para que cada um fale o texto da escrita automática
enquanto as palavras escorrem de dentro para fora criando um novo significado. A palavra
enquanto uma imaginação que transborda e encontra do lado externo do corpo um espaço
para passear se ressignificar, contar e recontar. Na dinâmica da improvisação, a palavra em
alguns momentos, surge como bússolas direcionando os movimentos pelo espaço.
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Mais do que cristalizar as imagens das palavras em conceitos, importa senti-la como
vibração pura, para abrir novas possibilidades de sensações sobre as palavras, dando-
lhes asas. (MARTINS, 2008, p.37)
As palavras que saíram de dentro da memória para o papel;
As palavras do papel que saem da boca do outro e me atravessam
As palavras do papel que saem da boca do outro me atravessando e reverberando em mais
palavras.
Parece ser assim uma fonte de água que nunca para de jorrar.
É necessário uma palavra que articule a verdade para o sujeito. Em outros termos: a
verdade é uma palavra que permite ser, que abre o caminho à subjetividade. É a
palavra simbólica porque vem do outro em forma de dom, atravessa um corpo,
instaura a lei e desta operação nasce o sujeito, e nele, o inconsciente. (RODRÍGUEZ,
2009, p. 101)
Percebo nessa experiência o poder da palavra, de acordo com sua dinâmica e nuances,
de alterar o estado corpóreo de quem está disponível a ser atravessado. Na verdade, tudo é
uma grande questão de disponibilidade. A experiência de atravessamento só acontece se eu
me coloco disponível para ser atravessada. Eu simplesmente fecho os olhos e passeio nas
palavras que, por outrora, passearam em meu corpo transbordando em
movimento/som/palavra/voz.
Eu creio no poder das palavras, na força das palavras, creio que fazemos coisas com
as palavras e, também, que as palavras fazem coisas conosco. As palavras
determinam nosso pensamento porque não pensamos com pensamentos, mas com
palavras, não pensamos a partir de uma suposta genialidade ou inteligência, mas a
partir de nossas palavras. (LARROSA, 2002, p.21)
Me permito atravessar e ser atravessada pelas palavras memórias que percorrem meus
ouvidos e o espaço o qual estou inserida e a cada momento essa palavra se ressignifica
ressificando todo o resto. Uma hora essas palavras contaminaram minha pele e tomaram outra
proporção. Novas intenções, nuances e....Psiuuuu! O silêncio, a pausa. Espaço de novas
possibilidades de ser, estar e criar. A hora de esvaziar. E depois, um novo (re)começo.
36
CONSIDERAÇÕES FINAIS
[...] fazer uma experiência com algo significa
que algo nos acontece, nos alcança; que se
apodera de nós, que nos tomba, nos transforma.
Quando falamos em “fazer” uma experiência,
isso não significa precisamente que nós a
façamos acontecer, “fazer” significa aqui:
sofrer, padecer, tomar o que nos alcança
receptivamente, aceitar à medida que nos
submetemos a algo. Fazer uma experiência quer
dizer, portanto, deixar-nos abordar em nós
próprios pelo que nos interpela, entrando e nos
submetendo a isso. Podemos ser assim
transformados por tais experiências, de um dia
para outro ou no transcurso do tempo.
(Martin Heidegger, apud J.L. Bondía)
Mediante as experiências vividas, descubro na palavra uma possibilidade de criação.
A palavra escrita, ecoada, gritada, gera uma imagem mais que mental, uma imagem que
reverbera buscando acessar nas memórias do corpo/voz novos caminhos para o encontro com
outras tantas palavras costuradas na colcha de retalho de nossa pele.
A experiência no Olhos me fez perceber a relação de dilatar os sentidos em busca de
novos fazeres, onde destaquei o não uso da visão, potencializando, nesse caso, o uso da
audição para filtrar as palavras ecoadas e trazendo-as para mais perto do campo da
imaginação. O uso da metodologia da Mímesis Corpórea e a Mímesis da Palavra foram
cruciais para entender melhor como posso dançar as palavras. Percebo na experiência com
Thales que essa ferramenta pode ser utilizada de forma inclusiva, trazendo também a pessoa
com deficiência visual a esse lugar comum do fazer Teatral.
Experimentar a Mímesis de forma intensa foi de suma importância para poder
desenvolver esse processo de partilha e de novas experiências com a palavra.
O ato de relatar a experiência só pode ser feita se eu me colocar como sujeito da
experiência. Nisso me lancei. Busquei em Jorge Larrosa Bondía a peça que faltava para esse
37
relato acontecer. Eu, sujeito lugar da experiência, pude relatar da forma mais intensa, palavras
de dias vividos e sentidos.
A palavra como verbo, logo transformada em imagem dos olhos de quem (não) vê.
Abra os ouvido e veja o vasto caminho que as palavras têm a oferecer. Eu viajei, colhi
palavras maduras no pé das árvores, na beira da estrada desse caminho percorrido. Voltei para
casa e aqui está feito o banquete.
Agradeço humildemente a cada contribuição ofertada para a construção desse trabalho
e de novos olhares. Espero que por meio deste, possa contribuir para tantas outras pesquisas
que virão. Que outros caçadores de palavras possam repousar à sombra dessa árvore e colher
frutos e plantar novas sementes.
38
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARBA, Eugênio, SAVARESE, Nicola. A arte Secreta do Ator. Dicionário de
Antropologia Teatral. São Paulo: É Realizações, 2012.
BARTHES, Roland. A Câmara Clara: Nota sobre fotografia. Tradução de Júlio Castafion
Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
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