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8 UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ CHRISTY BEATRIZ NAJARRO GUZMÁN Literatura e cinema em A-B-Sudario: uma articulação da crise do sujeito na pósmodernidade CURITIBA, 2009

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ CHRISTY … filesalvadoreña Jacinta Escudos, considerando que la obra fue publicada en 2003, como consecuencia del enfrentamiento entre el individuo,

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

CHRISTY BEATRIZ NAJARRO GUZMÁN

Literatura e cinema em A-B-Sudario: uma articulação da crise

do sujeito na pósmodernidade

CURITIBA, 2009

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CHRISTY BEATRIZ NAJARRO GUZMÁN

Literatura e cinema em A-B-Sudario: uma articulação da crise

do sujeito na pósmodernidade

Monografia apresentada à disciplina de Orientação Monográfica em espanhol II do

Curso de Letras Português- espanhol da Universidade Federal do Paraná, como

requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Letras com ênfase em Estudos literários

Orientadora: Prof. Dr. Isabel Jasinski

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Com amor aos meus pais:

Ana Cristina de Najarro e Alfredo Najarro

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AGRADECIMENTOS

São muitas as pessoas que poderia agradecer pelo seu apoio e pela

contribuição na minha formação acadêmica e humana. Porém vou dedicar este

espaço para àqueles que colaboraram de forma mais direta neste trabalho.

À minha orientadora Isabel Jasinski, pela sua dedicação e paciência na

orientação desta monografia, e principalmente por ter demonstrado que ensino

significa construção contínua e mútua do conhecimento, e por ter me guiado através

do labirinto da fragmentação narrativa e humana.

À professora Patrícia Cardoso por ter aceitado ser banca e avaliar este

trabalho e pela sua dedicação e paixão no ensino literário.

Também gostaria de agradecer às amigas que estiveram presentes neste

processo: Francieli Apel, Mariana Oliveira e Thalita da Luz, pessoas que me

apoiaram e que de alguma maneira interferiram na minha formação acadêmica, mas

principalmente humana.

Finalmente, de longe agradeço infinitamente aos meus pais: Ana Cristina

Guzmán de Najarro e Salvador Alfredo Najarro, pela formação em valores, mas,

sobretudo por acreditar em mim, apoiar meus projetos e por mostrar com a sua

própria experiência que uma vida sem sonhos não faria sentido.

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“Viver é muito perigoso”

(Guimarães Rosa)

“La vida, como un comentario de otra cosa que no alcanzamos, y que está ahí al

alcance del salto que no damos. La vida un ballet sobre un tema histórico, una

historia de un hecho vivido, un hecho vivido sobre un hecho real. La vida, fotografía

del número, posesión en la tinieblas (¿mujer?, ¿monstruo?), la vida, proxeneta de la

muerte, espléndida baraja, tarot de claves olvidadas que unas manos gotosas

rebajan a un triste solitario”

(Julio Cortázar)

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RESUMO

Este trabalho visa explorar a relação entre as linguagens literária e cinematográfica

e seus possíveis desdobramentos no contexto da pósmodernidade. A reflexão parte

do romance A-B-Sudario da autora salvadorenha Jacinta Escudos, publicada em

2003, que aborda a confrontação entre o indivíduo, que busca sua expressão

pessoal, a possibilidade dessa expressão e a inserção dos produtos da indústria

cultural nos modos perceptivos do final do século XX.

Palavras-chave: Pósmodernidade; cinema; A-B-Sudario

RESUMEN

Este trabajo como objetivo explorar la relación entre el lenguaje narrativo y el de la

composición cinematográfica, y sus posibles desdoblamientos en algunas novelas

hispanoamericanas. La reflexión parte de la novela A-B-Sudario de la autora

salvadoreña Jacinta Escudos, considerando que la obra fue publicada en 2003,

como consecuencia del enfrentamiento entre el individuo, que busca su expresión

personal, la posibilidad de la misma y la inserción de los productos de la industria

cultural en los modos perceptivos de finales del siglo XX.

Palabras-llave: posmodernidad; cine: A-B-Sudario

ABSTRACT

This work aims at exploring the relationship between literary and cinematographic

languages and their possible developments in some Hispanic-American narratives in

the context of postmodernity. The reflection starts with the novel A-B-Sudario from

the Salvadoran author Jacinta Escudos, taking in consideration that the book was

published in 2003, as a result from the confrontation between the individual, who

seeks his/her personal expression, the possibility of this expression and the insertion

of culture industry‟s products in the perceptive ways in the late 20th century.

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SUMÁRIO

1. Introdução..................................................................................................8

2. Capítulo I: Um olhar histórico sobre a pósmodernidade .........................13

2.1 A modernidade e a pósmodernidade .....................................................13

2.2 O redimencionamento da arte a partir da

Reavaliação da vanguarda...........................................................................20

3. O sujeito fragmentado e a perda da legitimidade da palavra em

A-B-Sudario ............................................................................................30

3.1 O sujeito múltiplo e a palavra potencializada ........................................30

3.2 A-B-Sudario: A proposta de um sujeito fragmentado ..............................36

4. O cinema como uma perspectiva potencializadora

da linguagem literária...............................................................................47

4.1 Linguagens literária e cinematográfica:

uma abordagem formal .........................................................................47

4.2 A proposta experimental em A-B-Sudario desde a

perspectiva cinematográfica..................................................................51

5. Conclusão ................................................................................................67

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................71

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1. Introdução

O processo de “evolução” que sofreu a cultura ocidental no século passado,

a partir do final do século XIX, com o avanço da tecnologia da comunicação permitiu

o questionamento das diferentes hierarquias de poder e também as que diziam

respeito à representação do mundo e à imanência da linguagem, aspectos

preponderantes para a abordagem da literatura a ser realizada nesta monografia.

Este questionamento possibilitou uma ruptura com o passado imediato e a

separação entre os dois tipos de indivíduos sociais que conformavam a sociedade

ocidental: o intelectual-artista e o burguês.

Este processo se viu intensificado a partir da segunda metade do século XX

com a finalização da Segunda Guerra Mundial, a projeção dos Estados Unidos como

potência econômica mundial e como um modelo cultural, fortalecido pela cultura de

massas, e o surgimento dos movimentos da contracultura e dos diferentes

movimentos sociais, que propunham uma nova ordem social (o movimento feminista,

por exemplo, sugerindo uma reavaliação acerca da concepção do papel do homem

e da mulher na sociedade, propondo desta maneira, uma reflexão acerca da

concepção do sujeito). Este tipo de reorientação possibilitou uma reflexão que

considerava a queda das verdades absolutas que sustentavam a base da sociedade

ocidental: a decadência da sociedade europeia como modelo econômico e cultural

após a Segunda Guerra Mundial, o sentimento de derrotismo diante da queda dos

valores de “bem estar social” representados pela sociedade europeia decimonônica,

e a debilitação da Igreja Cristã, por exemplo.

Ao não existirem verdades absolutas que definam o papel do sujeito na

sociedade (nação e razão ou história e identidade), este experimenta um sentimento

de “perda da unidade” (HALL, 2006), ocasionando o que muitos críticos chamam de

“crise do sujeito”, que possibilita seu entendimento como algo fragmentado e móvel,

o que quer dizer que ele não é concebido mais como uma unidade indivisível, muito

pelo contrário, ele é um sujeito múltiplo e fragmentado e, muito além do que

propunha Freud, descentrado.

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Com o surgimento do cinema no final do século XIX e sua inserção como

produto cultural e ideológico na sociedade de massas, a cultura letrada,

eminentemente europeia, se ve na iminência desta crise, que ameaça as garantias

da palavra escrita e do valor autoral. Dentro desse contexto, a relação entre as

linguagens literária e cinematográfica, existente em algumas obras de ficção oferece

a possibilidade de exprimir através da palavra a crise de um sujeito que vive numa

sociedade pósmoderna, caracterizada pelo imediatismo, pelas mudanças sociais

rápidas e pela invasão do mundo cibernético.

Dentro dessa perspectiva, percebemos que o romance A-B-Sudario da

escritora salvadorenha Jacinta Escudos, publicado em 2003, propõe um diálogo

evidente entre as linguagens literária e cinematográfica na sua orquestração

narrativa e na configuração dos personagens e da relação entre eles, o que

denuncia a fragmentação do sujeito pósmoderno: neste caso, Cayetana, uma mulher

que, dividida entre dois países, revela sua própria crise existencial questionando-se

sobre a possibilidade da escrita.

Ora, se o aproveitamento da linguagem cinematográfica por algumas obras

literárias teve seu apogeu principalmente a partir dos movimentos vanguardistas, e o

romance de Jacinta é publicado só em 2003, qual seria a importância estética

inovadora de sua obra? Esta chegada “tardia” das diferentes correntes estéticas

deve-se à variável sócio-política de El Salvador. Desde sua independência (1821)

até o começo da ditadura militar (1932), El Salvador acompanhou as correntes

literárias estéticas em voga da época, não em vão Rubén Darío encontra num

dramaturgo salvadorenho (Francisco Gavidia) a inspiração da renovação estética

que dará como resultado o nascimento do modernismo hispano-americano. Após o

começo do período de ditadura militar, a literatura que é valorizada no país é aquela

que exalta a natureza e o regionalismo nacional. Por outro lado, começam a surgir

obras literárias de denúncia social que priorizavam a formação de valores éticos e

cívicos, como o Minimum Vital, El dinero maldito de Alberto Masferrer. Ensaios sobre

arte também são divulgados no período, mas não com tanta força quanto as formas

literárias antes mencionadas.

A ditadura militar teve duração de quarenta e cinco anos, o que propiciou e

reforçou o fechamento quase total das fronteiras às estéticas internacionais

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universalizantes, o ingresso de livros era limitado e clandestino, o que fez com que

as vanguardas européias e as inovações latino-americanas fossem absorvidas com

menos vigor que em outros países. A ditadura militar acaba em 1979, com o

derrocamento do coronel Oscar Osorio dando origem a uma guerra civil que durou

doze anos (1980-1992). Durante o período bélico do país os escritores se

preocuparam com questões sociais, a literatura voltou seu olhar à criação de uma

literatura de testemunho e protesto. Após este período, esta temática continuou

fazendo parte dos temas favoritos da literatura narrativa e poética, só que ao invés

de retratar os horrores de uma guerra, era uma denúncia das injustiças sociais, os

estragos que a guerra fez e as suas conseqüências (pobreza, desemprego, o

problema da imigração aos Estados Unidos, entre outros).

Durante todo esse processo, é importante ressaltar que, se por um lado

existia uma preocupação pela defesa de um nacionalismo exacerbado, por outro,

existiu um esforço pela implantação do capitalismo como modelo econômico do

país, permitindo a interferência direta dos Estados Unidos, não só como potência

econômica mundial, mas também como modelo cultural, permitindo o

desenvolvimento e fortalecimento de uma cultura de massas, onde o cinema norte-

americano tinha e tem uma grande preponderância.

Dezessete anos se passaram após o término do conflito armado em El

Salvador, as artes em geral estão abrindo espaço e experimentando diferentes

formas de criação. Assim, um romance como A-B-Sudario aparece como uma das

grandes experimentações formais neste momento, pois anterior a ela somente

temos alguns experimentos tímidos, porém significativos, como a peça teatral Luz

Negra de Álvaro Menen Desleal. Desta maneira, é de fundamental importância o

estudo sobre as questões que a obra de Jacinta Escudos propõe, no cenário

salvadorenho e hispano-americano, já que aponta para fatores que continuam atuais

no que refere às preocupações pelo sujeito e pela linguagem.

Em A-B-Sudario vemos que o cinema e as diferentes expressões artísticas

(como a literatura beat e a música das décadas de 1960-1970) se inserem na vida

dos personagens, principalmente de Cayetana, como uma forma de alienação e fuga

da realidade, pois em mais de um momento da narrativa ela faz menção a cenas de

filmes, atores, cantores: Notorius, Jim Morrison, Joe Cocker, Bukowski, entre outros.

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Desta maneira, Jacinta Escudos reivindica seu direito de possuir uma

liberdade de criação através da combinação de linguagens expressivas diferentes

(cinema e literatura) para, através deste artifício, potencializar as possibilidades da

escrita, como ela mesma apontou num artigo publicado na revista Istmo:

quiero tener el derecho de opinar y quitarme las etiquetas impuestas, sin temor a las represalias, de soltar la camisa de fuerza y tener la libertad de explorar todo tipo de territorios en el área de la escritura, sean estos novela, cuento, crónicas, ensayos, diarios, poemas, guiones de cine o experimentos que mezclen todo lo anterior. (ESCUDOS, 2001)

1

Portanto, vemos que o uso da linguagem cinematográfica em A-B-sudario

responde a uma prerrogativa da própria autora que propõe a quebra dos modelos

narrativos predeterminados e a experimentação com a linguagem.

Levando em consideração estes aspectos, nesta monografia propomos uma

reflexão sobre essa relação entre literatura e cinema a partir da análise do romance

A-B-Sudario, em que a história é apresentada à maneira de um roteiro

cinematográfico: “Panorámica, Plano cercano, zoom, plano de conjunto” são títulos

de alguns capítulos do romance. No entanto, isto não conduz o leitor n numa leitura

cômoda, pois a narrativa se fragmenta e, ao invés de encontrar uma história linear, o

leitor se depara com episódios da vida da personagem principal, o que revela a

fragmentação do sujeito, evidenciada através do desdobramento de Cayetana em

personagem, narradora e suposta-autora e da fragmentação da linearidade da obra.

Para poder comprovar a relação formal entre as linguagens literária e

cinematográfica foi necessário consultar fontes teóricas sobre cinema, no que

respeita às questões relacionadas à crise do sujeito foi consultada alguma

bibliografia que abordasse os desdobramentos do indivíduo, como os estudos da

psicanálise e os estudos sobre o sujeito pósmoderno, entre outros.

Para melhor compreensão da análise, este trabalho se divide em três

capítulos, sendo o primeiro uma consideração histórica e teórica sobre a

1 Cf. ESCUDOS, Jacinta. ¿Subversión, moda o discriminación?: sobre el concepto de literatura

de gênero. Disponível em http://collaborations.denison.edu/istmo/n02/foro/subversion.html. Acesso em 24 de agosto de 2009 às 16hrs00

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modernidade e a pósmodernidade e suas implicações no pensamento estético do

século XX. No segundo capítulo abordamos as questões que dizem respeito à crise

do sujeito e como isso é tratado na obra de Jacinta Escudos. Já o terceiro capítulo

está direcionado para uma análise da relação formal entre as linguagens literária e

cinematográfica em A-B-sudario.

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2. Um olhar histórico sobre a pósmodernidade

2.1 A modernidade e a pósmodernidade:

O fenômeno conhecido como Modernidade encontra suas origens na Idade

Média, passando por longos períodos de transformação, que significaram a

passagem de uma sociedade teocêntrica, que acreditava num tempo orgânico

regido por leis divinas, a uma sociedade que a partir do renascimento passou a

depositar sua crença nos avanços científico–empíricos e tecnológicos no homem.

Durante todo esse processo, a classe que detinha o poder econômico e a

classe artístico-intelectual estavam ligadas entre si. Foi a partir da revolução

industrial no século XVIII e da emergência do capitalismo que estes dois setores

sofreram uma cisão e que foi intensificada na primeira metade do século XX,

gerando o que Matei Calinescu chama de duas modernidades:

Durante la primera mitad del siglo XIX se confrontan dos tipos de modernidad, la primera como etapa histórica (...) la idea burguesa de modernidad (...) confianza en las benéficas posibilidades de la ciencia y la tecnología, la preocupación por el tiempo como algo comprable y calculable en dinero, el culto a la razón (...), culto a la acción y al éxito se mantuvo vivo como valores esenciales de la civilización triunfante establecida por la edad media. Por otro lado la modernidad como concepto estético que habría de originar las vanguardias se inclinó hacia radicales actividades anti-burguesas (…), lo que define a la modernidad cultural es su rotundo rechazo de la modernidad burguesa, su negativa pasión consumista (CALINESCU, 2003, p. 56)

Segundo essa perspectiva, a modernidade não é mais única, existem duas

modernidades que se desenvolvem paralelamente. Uma, a burguesa, que

enxergava no progresso econômico e tecnológico a possibilidade de ascensão das

sociedades. A revolução industrial iniciada em meados XVIII passava pela sua

efervescência máxima, conhecendo a produção em série que fortalecia o capitalismo

da sociedade de consumo. A modernidade burguesa representa o progresso que vê

no passado empírico e cientificista uma referência de História e de avanço

21

realizados no presente, pois o desenvolvimento capitalista industrial-tecnológico do

século XIX foi produto das descobertas dos tempos anteriores.

A segunda acepção de modernidade, apontada por Calinescu, negava o

progresso tecnicista, sentindo repúdio diante dos valores tecnicistas da visão

burguesa, pois esta considerava o ser humano como elemento motor da grande

máquina capitalista nascente. A modernidade estética pretendia a desvinculação da

arte do mundo moderno industrial e utilitário, em primeiro lugar, porque achava que

os novos valores burgueses denegriam a figura humana, equiparando-a à máquina;

em segundo lugar, porque garantia a autonomia da arte.

Uma das figuras importantes desses primeiros anos da modernidade

estética é Charles Baudelaire, quem considerava, no seu ensaio “Salon 1946”

partindo da estética romântica que o verdadeiro artista seria aquele que exprima na

sua arte e pelos artifícios dela a “simplicidade e a expressão sincera da sua

personalidade” (BAUDELAIRE, 1988, p. 21). Este pensamento modifica os conceitos

estéticos de beleza estabelecidos até aquele momento, pois antes do romantismo o

verdadeiramente belo era aquela obra que imitava os modelos da tradição clássica.

Desta maneira, Baudelaire localizava no romantismo um marco de ruptura

radical com as tradições anteriores, pois este movimento propunha a negação dos

preceitos estéticos clássicos, pois não representavam mais um parâmetro de arte.

Existia, portanto, uma busca incessante por um novo conceito de beleza, que se

pluraliza na medida em que o artista explora a individuação do sujeito e o seu

próprio contexto. A esse respeito é importante ressaltar que o romantismo não

buscava retratar a realidade como tal, mas tirar um objeto da “realidade-material” e

transformá-lo através do artifício da palavra, no caso da literatura, além de buscar a

negação dos valores morais e político-econômicos da época. O romantismo

determinou desta forma um “historicismo fatalista” (CALINESCU, 2003). Além de os

românticos negarem o passado, eles também não visualizavam um futuro muito

promissor na modernidade burguesa, já que o capitalismo nascente e a ascensão da

burguesia representavam um esquecimento do ser humano e da arte como tal,

devido à tecnicização da sociedade.

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Cabe lembrar que na América Hispânica o romantismo significou a busca de

uma identidade nacional tanto na esfera política como na esfera artística. Os

movimentos independistas buscavam a autonomia econômica e política da Espanha,

e as artes privilegiavam aquilo que representasse “o ser nacional”. O romantismo

significou, portanto, a ruptura com a tradição européia e a busca de uma tradição

própria.

Conforme apontado acima, na modernidade, segundo a concepção estética,

o passado ocupa a esfera de apagamento, enquanto o presente se torna aquilo que

permeia a vida, um presente-instante, como Baudelaire apontara nas suas

considerações sobre modernidade no ensaio “O pintor da Vida moderna”, de 1863:

(…) el rasgo más sorprendente de la modernidad es su tendencia hacia algún tipo de inmediatez, su intento de identificación con un presente sensual captado en su misma transitoriedad y opuesto, por naturaleza, a un pasado endurecido en congeladas tradiciones y sugerente a una quietud sin vida (CALINESCU, 2003, p. 62)

Calinescu ressalta aquilo que para Baudelaire seriam duas características da

modernidade, que vão modificar radicalmente a concepção tida até esse momento.

A primeira diz respeito a um “presente sensual”, isto é, um presente que era

percebido através dos sentidos. Isso explica a “transitoriedade” mencionada por

Baudelaire, pois se o presente significa só a percepção das coisas e dos

acontecimentos pelo tato, pelo ouvido, pela visão, ele se transforma em instante, em

alguma coisa que é, entretanto passa rapidamente, daí a concepção de um tempo

sempre presente. Esse fator tempo-presente privilegiado gera aquilo que é novo e

inovador e que se encontra em constante renovação, descansando no conceito do

“aqui e agora”, já configurado pela concepção horaciana do carpe diem. Esse

presente se desvincula de um passado estético proposto pela tradição clássica, não

encontrando nele nada que possa ser imitado, decorre disso uma apelação muito

grande ao uso da imaginação e do artifício.

Vemos, portanto, que no final do século XIX as artes encontram novos

caminhos para refazer-se, o romantismo, o simbolismo, o decadentismo e o

expressionismo buscavam a crítica de uma sociedade que via seus valores morais e

éticos esvaecidos pelos princípios capitalistas.

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Depois da Primeira Guerra Mundial, alguns dos aspectos propostos pelas

estéticas no final do século XIX foram acentuados. Por um lado, na pintura, deu-se

uma “des-referencialização” do mundo exterior, principalmente depois da criação da

fotografia. Por outro lado, a valorização estética de elementos não considerados

“arte” e que faziam parte do cotidiano da sociedade, como os ready-made dadaístas,

o que também caracterizou esse momento estético, conforme sugere Raúl Antelo.

Neste sentido, as vanguardas colocaram o caráter de novidade como princípio

norteador da sua estética.

Novas formas de expressão abriam caminho, uma delas foi o cinema. Ele

teve sua origem no final do século XIX, mas foi no início do século XX que ganhou

um lugar preferencial nas sociedades de massa emergentes, ao ser utilizado para

difundir diferentes tipos de pensamento, como o uso político da sua linguagem, por

exemplo, conforme Walter Benjamin já apontou.

A modernidade continuava a buscar a novidade, descartando o antigo e a

tradição, intensificando a noção de subjetividade colocada pelo romantismo no final

do século XIX. Se naquele momento os românticos sentiam repúdio pela classe

burguesa, os indivíduos formados pelo começo do século XX desacreditaram

totalmente das esferas de poder e se “libertaram de seus apoios estáveis nas

tradições e nas estruturas” (HALL, 2006, p. 25). Isto se vê claramente em períodos

como o surrealismo que, através dos caminhos oníricos e da desvinculação da

referencialidade das palavras e objetos, buscou abranger outra realidade, pois o

âmbito material-objetivo não satisfazia as necessidades expressivas dos indivíduos

da época. Isto gerou uma ruptura do presente em relação ao passado, que é

entendida por Raúl Antelo como uma destruição do antigo para valorizar o novo:

O saber da história, nos diz Didi- Huberman, repousa prioritariamente no não-saber como indispensável abertura ao novo. Esse não-saber solicita a destruição de antigas convenções, como, aliás, nos ensinara Benjamin, destruição essa se ativa a partir, justamente, da consciência histórica, cuja mais profunda emoção é uma insuperável desconfiança com relação à vida e uma disponibilidade permanente para reconhecer que tudo nela pode dar errado. Auto-confiante, a destruição acredita que nada é permanente, mas por essa mesma convicção, o destruidor vê saídas por toda parte. (ANTELO, 2007, p.9)

24

Essa destruição nunca é gratuita, ou pelo culto romântico às ruínas, como o

próprio Antelo indica mais adiante, ela responde à necessidade de erigir novas

estruturas, libertando-se de antigos preceitos fixos e incontestáveis. É importante

ressaltar o sentido plural do novo, existindo, portanto, uma pluralização dos rumos

que a arte pode tomar a partir da destruição da tradição.

No trecho citado anteriormente, Antelo também identifica uma “desconfiança

com relação à vida”, que responde à cisão que a Europa experimenta a partir da

Primeira Guerra Mundial, acentuada depois da revolução russa. É nesse momento

da história, mais do que em outros anteriores, que a crença num futuro promissor e

emancipador do ser humano se assentava no imaginário da sociedade como

perspectiva de um novo horizonte. Contudo, a “desconfiança” se constituiu

gradativamente ao longo da história, começando no renascimento com a

desvinculação da força intelectual e artística da esfera religiosa, embora esta última

se mantivesse como pilar da sociedade ocidental. Séculos depois, essa ruptura se

acentua quando o romantismo prioriza a construção subjetiva de sentido e Nietzsche

decreta a morte do Deus cristão, questionando a ascendência divina como força

determinadora da vida humana, e define uma mudança da concepção temporal

conforme a doutrina do Eterno Retorno. Isto se deu a partir da negação do passado

clássico como referente cultural por parte dos românticos, o que significou a perda

de continuidade da linha temporal que sugeria um futuro emancipador, concepção

muito ligada à responsabilidade cristã.

Contrária a essa percepção, a acepção do tempo, desde a perspectiva da

modernidade estética, se apresenta como um ciclo e como um tempo que se

encontra em constante mudança. Desconsidera o passado como determinante de

um presente e deixa para o futuro o espaço do imprevisível, portanto, o tempo

presente é um momento limiar, aquele que nunca permanece o mesmo.

A destruição e ruptura, referidas anteriormente, são datadas pelo crítico, pois

situa esta teoria de modernidade na época de entre-guerras e se posiciona entre

“Velho e Novo Mundo”. Esse momento histórico explica de alguma maneira o

desconforto sentido pela elite pensante européia, pois o descobrimento e

aprimoramento dos mecanismos tecnológicos e científicos, que levaram o ser

25

humano a acreditar na construção de um mundo melhor, foram usados para

escravizar e dominar o próprio homem.

A destruição da tradição frente à ascensão da sociedade de massas levou à

reconfiguração do sentido da arte. Esta reestruturação incluía objetos de

divertimento da massa, como os “brinquedos populares de papelão pintado e

bonecas de serragem” (ANTELO, 2007, p. 13), que são apenas exemplos de objetos

que passaram a ter um valor estético. O cinema é o exemplo mais sofisticado desta

nova situação. Considerado a sétima arte, surge no momento em que as demais

formas expressivas buscavam a sua autonomia, isto é, renunciavam ao princípio da

mimese e se reinventavam a cada momento. Esta prerrogativa fez com que se

precisasse de uma arte que propiciasse a sensação de realidade, o que o cinema

através das suas técnicas reprodutivas conseguiu de forma satisfatória.

Posteriormente, isto permitiu que o cinema se configurasse como forma de

divertimento das grandes massas. Sua técnica reprodutora da realidade fez com que

tivesse uma grande recepção entre as camadas populares da sociedade. Desta

forma, a classe operária e não burguesa teve acesso a modos e formas artísticas

antes reservadas a um pequeno público aristocrata e burguês. Isso quer dizer que o

valor estético da obra de arte culta foi reavaliado, o sentido de “aura” foi destruído,

colocando a “alta cultura” num segundo plano e dando espaço à “indústria cultural”,

como analisou Walter Benjamin no ensaio “A obra de arte na era da

reprodutibilidade técnica” (BENJAMIN, 1994), como veremos no terceiro capítulo a

respeito interferência da linguagem cinematográfica como uma perspectiva

potencializadora da expressão escrita.

A constante destruição-construção gera, como dito acima, uma

heterogeneidade criativa, onde pode se dar uma “contaminação” de linguagens,

uma disseminação que possibilita a permeabilidade de fronteiras. O cinema se

inspirou na literatura para contar histórias, isto é alguns romances se viram recriados

através das técnicas cinematográficas, mas a literatura também sofreu influência do

cinema ao longo do século XX. Assim sendo, quando a literatura incorpora o cinema

– ora de maneira conceitual, ora formal, como é o caso de A-B-Sudario – rompe as

convenções para propor uma nova concepção do fazer literário. A literatura que

incorpora o cinema, não o faz à maneira de reprodução, mas propõe uma re-

elaboração do discurso cinematográfico para potencializar uma nova expressão

26

escrita. O cinema se dissemina como tal na literatura de ficção, dito de outra forma,

o cinema é “destruído” e toma outra cara, não como disfarce, mas como uma nova

possibilidade de configurar a escrita romanesca. Ele se dispersa e perde o caráter

poder de iludir o espectador/leitor para evidenciar essa ficcionalidade que há em si,

aquilo que há de artifício nele. A literatura por sua vez perde sua roupa de expressão

que “imita” o real para também se revelar como construção de uma ficção para o

leitor. Mais adiante veremos como isso é resolvido no romance de Jacinta Escudos.

Essa ruptura se radicalizou a partir do sentimento de combate da

comunidade artística e intelectual no início do século XX, propiciando, desta forma, o

surgimento da avant-garde, que tinha como principal objetivo o de chocar a

sociedade burguesa e derrubar todos os valores, incluindo éticos, políticos, sociais,

morais e estéticos. Naquele momento os artistas acreditavam que era através da

arte que o homem encontraria a superação do passado sem se submeter aos

valores materiais e tecnicistas do progresso.

Ampliamente concebida, la misma modernidad puede considerarse una “cultura de crisis” (…) Pero entonces no debería sorprender que, dentro del amplio contexto de la modernidad, la etiqueta “cultura de crisis” se aplique específicamente a la vanguardia. El vanguardista, lejos de interesarse por la novedad como tal, o por la novedad, intenta realmente descubrir o inventar nuevas formas, aspectos o posibilidades de crisis. Estéticamente, la actitud de vanguardia implica el categórico rechazo de ideas tradicionales tales como la de orden, inteligibilidad e incluso el éxito. (CALINESCU, 2003, P. 130)

O autor ressalta que o processo de modernidade representou uma “cultura

de crise”, em que os intelectuais e artistas da época rejeitavam os valores da

sociedade burguesa, o que se caracterizou como um momento de ruptura com a

tradição cultural. É por essa razão que a humanidade se encontrava em crise, pois

tudo aquilo que sustentava a sua existência perdeu credibilidade. Nesse contexto, a

arte abre caminhos através da construção de novos conceitos estéticos e novas

filosofias de concepção de mundo, nos quais o ser humano poderia se emancipar da

suas ataduras que o prendiam a uma realidade fechada e limitadora. O interessante

da proposta vanguardista era que não sugeria um caminho só para alcançar uma

nova realidade, mas a abertura a diferentes caminhos, pois movimentos como o

dada, o cubismo, o futurismo, o surrealismo, entre os outros existentes, foram

27

difundidos quase paralelamente, além de que cada uma das vanguardas explorava,

dentro dos seus princípios internos estéticos, distintas abordagens da esfera

material e da imaterial. Desta maneira, os artistas da época não só buscavam a

invenção de novas formas, mas também o re-descobrimento das formas existentes

no mundo, valorizando esteticamente aqueles objetos de uso comum e corriqueiros,

que resultou nos conhecidos ready-made, conforme mencionado anteriormente.

Exemplo claro deste tipo de técnica é o urinol que Marcel Duchamp mandou em

1917 a uma mostra de arte sob o nome de “Fountain”. A proposta de Duchamp foi

um questionamento sobre os objetos e seus significados; talvez a pergunta que se

encontra por trás do objeto seja a seguinte: por que um urinol deve necessariamente

ser um “urinol”? Por que não explorarmos as suas múltiplas possibilidades de

existência? Perguntas que derivaram da negação da “ordem” e da “inteligibilidade”,

como mencionado por Calinescu no trecho citado. Dito de outra forma, para os

vanguardistas não existia nenhum tipo de ordem que especificasse o que e como as

coisas poderiam ser, nem existia nenhuma relação clara entre um objeto e aquilo

que convencionalmente representava.

Conforme mencionado, e dentro de uma concepção vanguardista, o artista

era considerado um visionário, alguém que estando além do seu tempo abria espaço

para a evolução da arte e conseqüentemente da humanidade. Esse caráter

visionário do artista gera um sentimento utópico do tempo, isto é, os vanguardistas

ainda acreditavam na irreversibilidade do tempo, em que a linha temporal, o

passado, representava aquilo que não existia mais e não podia ser levado em

consideração para a criação dos rumos da sociedade e da arte, o presente era o

momento da criação que derivaria num futuro promissor em que “toda a humanidade

partilhará de forma igualitária dos benefícios da vida” (CALINESCU, 2003, p. 112).

Desta forma, ao mesmo tempo em que o movimento vanguardista representou a

ruptura com um passado decadente, também se configurou como um movimento

confiante no tempo futuro.

28

2.2 O redimencionamento da arte a partir da reavaliação da vanguarda.

Depois da Segunda Guerra Mundial, essa confiança, depositada nas

expressões artísticas, morre junto às utopias que guiavam a sociedade ocidental,

deixando um homem desolado e sem rumo em meio à destruição do pós-guerra. Os

intelectuais e artistas que apostavam na ideologia das vanguardas enxergaram um

espaço destruído que não oferecia nada. As vanguardas haviam falhado, porque,

apesar de que naquele momento as diferentes expressões artísticas das variadas

estéticas, que surgiram no começo do século, eram a força de confronto utilizada

pela comunidade artística contra os valores burgueses e tecnicistas do progresso,

era impossível negar que elas aproveitaram o próprio progresso para reinventar o

sentido de arte, exemplo disso encontramos no princípio gerador do futurismo: a

rapidez da vida moderna. Talvez a falha não se encontre tanto no uso de elementos

da vida moderna e sim na incapacidade de mudar o mundo através dessa arte

transformada.

O momento experimentado do pós-guerra é “do desencanto e do espanto”,

como menciona Nicolau Sevcenko no seu artigo “O enigma pós-moderno”, onde

problematiza a pós-modernidade colocando-a como a radicalização dos processos

iniciados no final do século XIX e começo do XX, período no qual era valorizado o

princípio da novidade que delineava o caminho para um futuro promissor, embora

imprevisível. Contudo, esse futuro promissor não chega a concretizar-se, muito pelo

contrário, os artistas observam diante de si o colapso ocasionado pela explosão da

Segunda Guerra Mundial. A partir das considerações apontadas por Sevcenko,

surgem algumas perguntas como: E por que se fala em pós-modernidade? E de

que forma foram radicalizados os processos da modernidade?

Em primeiro lugar devemos lembrar que o processo de modernidade surgido

no começo do século XX optava por uma ruptura total com a tradição, como

Nietzsche articulou na idéia da morte de Deus, num primeiro momento, já que o

Deus cristão representava o núcleo de valores éticos da comunidade burguesa da

época, num segundo momento, foi o homem que experimentou sua própria morte, o

que se conhece como a crise do humanismo, já que os princípios moderno-

29

tecnicistas haviam ocasionado a degradação do ser humano, como já mencionado

linhas acima. Com a morte do homem, morrem também as diferentes utopias que

lhe tinham dado uma sustentação para a existência. Foi essa descrença nas utopias,

a falta de confiança na realidade, apontada por Raúl Antelo, que se radicalizava, já

que haviam sido precisamente elas que haviam fracassado. Portanto, se no contexto

da modernidade do início do século, era Deus que morria, no final da sua primeira

metade, era o Homem e todas as suas idéias utópicas, que tentaram explicar o

“todo” do mundo e profetizar o futuro, que morriam. Desta maneira, ao invés de

pensar num futuro imaginado e previsto pela arte vanguardista como promissor,

depois da Segunda Guerra Mundial, os olhares se voltaram para “a tragédia

impronunciável do passado” – “(os artistas e intelectuais) não acreditam mais no

absoluto” (SEVCENKO, 1995, p. 50), o que quer dizer que para a camada intelectual

da sociedade não existia nada que representasse novidade e muito menos a

possibilidade de encontrar um futuro emancipador, pois as instituições tecnicistas de

progresso haviam ocasionado a escravidão e destruição do próprio homem.

Conforme indicado, a Segunda Guerra Mundial revelou o poder destrutivo

dos princípios moderno-tecnológicos que guiavam a sociedade e foi por sua

“selvageria e sua brutalidade” (CALINESCU, 2003, p. 261) que a mesma sociedade

burguesa re-elaborou seus conceitos, desacreditando qualquer tipo de ideologia que

viesse a oferecer uma certeza e segurança em relação à vida, pensamento

pessimista que se instaurou na sociedade de forma consciente. Consoante com

isso, a radicalização de processos refere-se especificamente, por um lado, à

intensificação do sentido de decadência da sociedade, por outro, a descrença e

desconfiança em relação à vida por parte dos artistas se fortalecia. Dito de outro

modo, toda a classe intelectual e artística, que no começo do século enxergava na

realidade-objetiva a insuficiência para responder e satisfazer as necessidades do ser

humano, no momento de pós-segunda guerra mundial, a elite pensante olhava para

o passado encontrando a figura do homem denegrida através dos processos de

modernização tecnológica, o que gerou um sentimento pessimista do mundo.

Portanto, aqueles princípios que prometiam o “bem-estar” da humanidade não

haviam ocasionado outra coisa senão a morte do homem.

30

Nesse contexto as artes experimentaram novamente sua revalorização, mas

diferente das renovações anteriores, desta vez a arte não buscava a novidade, nem

respostas e muito menos novos rumos para si, pois não acreditava na sua

efetividade. Ora, se a arte nessa sua re-elaboração não busca a novidade, nem a

exploração de novos rumos com um olhar no futuro, o que ela ambiciona? Em que

direção aponta para reinventar-se?

A comunidade artística e intelectual pósmoderna, diferente da cultura

vanguardista, não nega e não rejeita seu passado. Aqui é importante fazer uma

ressalva, pois, o passado estético não é valorizado como elemento norteador de um

presente que por sua vez derivaria num futuro, muito pelo contrário, o passado

servia aos artistas para encontrar diferentes possibilidades criativas, re-elaboradas

através do pacto estabelecido entre os artistas e as técnicas de reprodutibilidade de

uma sociedade moderna e tecnológica, que, a partir da solidificação do capitalismo,

valoriza a sociedade e cultura de massas, como veremos mais adiante.

Nesse sentido, o cinema, que antes tinha surgido com o intuito de

reprodução da realidade através dos movimentos gerados a partir da técnica da

montagem, se instaura como a arte de divertimento das grandes massas, como já

mencionado, o que significou um duplo movimento da arte em relação à população.

No momento em que o cinema aparece na cena cultural européia, a grande massa

tem acesso a uma forma de expressão artística por ser de grande difusão e por sua

capacidade de reprodução. Isto significa um movimento de ascensão das camadas

populares, mas ao mesmo tempo acontece uma “degradação cultural”, como indicou

Jesús Martín-Barbero em Dos meios às mediações (2003). Isto é, a arte perde seu

status de alta cultura, pois ela não estava mais reservada a certos setores sociais e,

além disso, tornou-se um objeto de consumo graças aos processos de

reprodutibilidade da modernidade.2 Tudo isto acontece dentro de um contexto em

que os conceitos de valor do que era arte se re-configuraram dentro de uma

sociedade de consumo. A esse respeito Calinescu sugere que este acontecimento

tem lugar no o momento de pós-segunda guerra mundial, já que significou a perda

2 Walter Benjamin já explicara no seu ensaio “A obra de arte na era da reprodutibilidade” como a arte

perdeu a sua aura e como este processo obedece a uma necessidade “de fazer as coisas ficarem mais próximas (...) com tendência a superar o caráter único de todos os fatos” (BENJAMIN, 1994, p. 170).

31

dos valores combativos das vanguardas, pois, como referido anteriormente, não

existia contra o que lutar: o passado representava a decadência absoluta dos

valores humanistas e a visão emancipadora do futuro desaparece:

Este acontecimiento coincidió en el período de posguerra de la Segunda Guerra Mundial con el éxito inesperadamente amplio y público del arte de vanguardia (…) la vanguardia, cuya limitada popularidad se había basado durante mucho tiempo exclusivamente en el escándalo, se convirtió de repente en uno de los principales mitos de las décadas de 1950 y 1960. Su ofensiva e insultante retórica llegó a considerarse como algo sencillamente divertido, y sus apocalípticas protestas fueron transformadas en cómodos e inocuos clichés. (CALINESCU, 2003, p. 127)

Segundo Matei Calinescu, as artes de vanguarda se proliferam entre todas

as camadas da sociedade, principalmente na classe burguesa que, ao não confiar

mais nas instituições de poder, e ao possuir meios para reproduzir a arte, foge da

realidade em ruínas e consome a mesma arte que no começo do século era seu

“inimigo”. É importante ressaltar o termo “consumo”, pois na metade do século XX o

capitalismo se fortalece ainda mais e se instaura como modelo econômico mundial,

criando uma sociedade que ambiciona a produção de objetos e o consumo

exagerado dos mesmos. Desta maneira, a arte também se insere nesse mundo

consumidor-produtivo, transformando-se num objeto de consumo para a sociedade

do espetáculo e não é vista mais como uma obra por meio da qual se pode

transcender e alcançar a emancipação do homem. Neste contexto consumista, a

classe burguesa começa a prestar atenção na arte vanguardista e encara seus

princípios como formas de divertimento, pois aquilo que os artistas da avant-garde

criticavam, era a mesma coisa que, depois dos estragos da Segunda Guerra

Mundial, a burguesia também ousava criticar, mas não para se opor a seus

princípios, pois não existia nada a ser proposto em oposição aos seus valores. Esta

mudança também obedece, como aponta Calinescu mais adiante, ao caráter de

obsoleto que a estratégia da vanguarda carregava consigo naquele momento. Se

lembrarmos do significado etimológico da palavra vanguarda, perceberemos que o

que se encontra no seu âmago são princípios de revolta, de guerra. Os artistas de

vanguarda eram aqueles que se encontravam nas primeiras linhas de batalha contra

uma sociedade burguesa, porém, a partir da década de 50, só existiam ruínas, não

existia, portanto, uma razão sólida para lutar, e muito menos um inimigo ameaçador.

32

Desta maneira, a arte pósmoderna se torna não novidade, mas experimentalismo3,

pois ao retomar e reformular as formas estéticas propostas pela vanguarda e pelos

princípios estéticos de outros períodos, “experimenta” caminhos alternativos para

recriar-se, além de abrir espaço e abraçar a proposta de outras formas artísticas,

como o cinema. Cabe pensar que esta relação entre diferentes formas expressivas

não é específica da pós-modernidade, pois as diferentes vanguardas do começo do

século XX experimentaram diferentes caminhos expressivos para a renovação de

cada uma das artes.

Levando em consideração os apontamentos anteriores, observa-se que

após a primeira metade do século XX, a Europa sofre uma decadência tanto social

como cultural e os olhares se voltam para o continente americano, sobretudo depois

da alta migração dos intelectuais e artistas europeus. Neste contexto, a produção

cinematográfica norte-americana se instaura como parâmetro de produção cultural,

difundindo sua visão do “way of life” por meio de filmes que retratavam uma

sociedade dilacerada pelo horror da Segunda Guerra Mundial, mas ao mesmo

tempo oferecendo uma ilusão de bem-estar e de superação desse horror através da

vida burguesa.

Na América Latina, o cinema norte-americano teve uma alta divulgação na

esfera cultural, principalmente no período das grandes ditaduras, com o intuito de

difundir uma ideologia capitalista, tendo como parâmetro de vida a concepção de

mundo norte-americana. A sua grande recepção pela população foi possível graças

às imagens em movimento. Por um lado, elas representavam o movimento “real” do

mundo, fazendo com que os indivíduos se vissem refletidos nas telas e nas histórias;

por outro, estas imagens eram passadas umas após as outras sem interrupção, o

que facilitava a absorção das informações sem uma real necessidade do

processamento delas.

3 Embora o termo “experimentalismo” faça referência a uma das tendências vanguardistas do começo

do século XX, Matei Calinescu se refere a ele, baseado nos estudos de Guglielmi, para designar a arte que se vale dos elementos da cultura de massas para ressignificar a arte de pós-segunda guerra mundial.

CALINESCU, Matei. Cinco caras de la modernidad: modernismo, vanguardia, decadência, kitsch,

postmodernismo. Trad. Francisco Rodríguez Martín. 2.ed. Madrid: Tecnos/ Alianza, 2003.

33

Neste contexto de inserção do cinema norte-americano nos diferentes

países, as sociedades latino-americanas experimentaram dois tipos de movimento: o

primeiro aponta para o fortalecimento das grandes ditaduras através da cultura de

consumo, que era difundida por meio dos filmes norte-americanos, vale a pena

resgatar neste momento que os Estados Unidos foi o grande financiador dos

autoritarismos que assolaram os povos latino-americanos, que afirmavam e

delimitavam os papéis sociais. O segundo movimento vislumbra a “fragmentação

cultural”, provocada pelo sentimento revolucionário contra as ditaduras, os exílios e

influenciada pelo movimento da contracultura da década de 1970:

Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas (...) Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de “um sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. (HALL, 2006, p. 9)

No trecho acima, Hall aponta para uma mudança estrutural na sociedade

que ocasiona a fragmentação da mesma, rompendo o eixo que unificava todos os

seus componentes e seus indivíduos. A sociedade capitalista permitiu a constante

movimentação nas camadas sociais, e as diferentes ditaduras e guerras civis, que

tiveram lugar em meados do século passado, ocasionaram a migração e o exílio de

muitas pessoas. Colocado em culturas diferentes da sua, o ser humano se depara

com visões de mundo diversificadas, o que permite o questionamento das

instituições e de suas próprias crenças e valores.

Para entender essa fragmentação, é importante refletir sobre o que é uma

cultura integrada e unificada, tornando-se necessário voltar um pouco na linha do

tempo, mais especificamente ao momento em que os países americanos lutavam

para conseguir a independência. Essa luta obrigou a classe pensante (artistas e

intelectuais) a buscar e criar mitos sobre a existência dos povos americanos, isto é,

existiu a necessidade de construir uma memória, que foi se fortalecendo ao longo do

século XX. Em vista disso, podemos afirmar que “uma cultura nacional é um

discurso” (HALL, 1992, p. 50). O interessante deste processo é que a identidade se

34

configura a partir de uma multiplicidade de sujeitos4, que de alguma forma precisa de

ser organizada em um discurso unificador para o fortalecimento da nação. Ora, se

no começo do século XIX todas as nações se configuravam e fortaleciam

internamente para alcançar a independência, porque um século e meio depois

sofriam a sua própria fragmentação?

Uma pergunta tão ambiciosa, como a anterior, requer uma resposta

complexa, pois as mudanças que cada país experimentou obedecem a diferentes

situações, porém, para o intuito desta pesquisa, podemos expor duas presumíveis

razões possíveis. A primeira responde ao endurecimento das ditaduras militares e a

segunda ao processo de decadência que as culturas sofreram a raiz das guerras

civis e revoluções. Este tipo de experiência minou tanto a estrutura física do país,

como também a credibilidade e legitimidade que as esferas de poder possuíam. O

que quer dizer que as sociedades não acreditavam mais nos seus governos, além

da incontável quantidade de cidadãos que buscaram asilo político em outros países.

Nesse contexto, as artes experimentaram o questionamento dos valores e regionais

que ainda vigoravam na época como tradição nacional. No caso específico da

literatura, encontramos a experiência do tão polêmico “boom” da literatura hispano-

americana5, momento em que a literatura esquece as convenções e se projeta como

uma literatura internacionalista, ocasionando num momento posterior a tradição do

novo romance hispano-americano, tendo como característica principal a

diversificação e complexificação do ponto de vista narrativo, pois os autores se

permitem explorar outros campos de criação como a música e o cinema, sendo este

último a expressão artística mais difundida devido a sua natureza de ser uma arte

reproduzível por se disseminar rapidamente entre várias culturas, numa sociedade

globalizada. E é precisamente este aspecto – a globalização – que possibilitou a

fragmentação das sociedades, mencionada anteriormente.

Ao pensar no termo “globalização” o fazemos relacionando-o “àqueles processos,

atuantes numa escala global, que atravessam fronteiras nacionais” (HALL, 1992, p.

67). Num primeiro momento esses processos dizem respeito à circulação do capital

4 Devemos lembrar que as fronteiras que delimitam um país foram, um dia, inexistentes e espaços

habitados por uma multiplicidade de etnias e tribos indígenas que, muitas vezes, eram inimigas. 5 Devemos lembrar que o “boom” da literatura latino-americana não se configura como um movimento

fechado, mas foi um momento em coincidentemente vários artistas re-eleboraram o modo de pensar literário e o modo de entender a História dos seus países. DONOSO, José. História personal del “boom”. Barcelona: Editorial anagrama, 1972.

35

e às transações monetárias entre países, que também viabiliza a reprodução e a

difusão da arte. Desta maneira, observa-se que ao estar inseridas numa economia

capitalista, as sociedades procuram o encurtamento das distâncias físico-temporais,

gerando uma “globalização” das relações. Dito de outra forma, as relações sócio-

econômicas se realizam entre as diferentes culturas sem respeitar as fronteiras

físicas e temporais.

A partir dessas considerações, podemos dizer que a “fragmentação cultural”,

mencionada por Hall, obedece a uma reação das sociedades frente a seus

diferentes problemas de atribuição de sentido frente às novas perspectivas culturais,

o que se viu refletido nas técnicas experimentalistas das diferentes expressões

artísticas. Além de representar uma crítica social e artística – à moda vanguardista –

essa experimentação com a linguagem, seja ela visual ou escrita, como é o nosso

caso, sugere uma re-estruturação do pensar artístico, valendo-se de “recursos

pacíficos, sofisticados e minuciosos, característicos dessa nossa época eletrônica”

(CALINESCU, 2003, p. 129), para possibilitar novas perspectivas no campo criativo.

Este processo globalizador e fragmentador geram um sentimento de perda

de uma referência do mundo, causando uma perda de identidade e propiciando o

“deslocamento do sujeito”. Ou seja, o sujeito se fragmenta e se encontra diante de

uma sociedade que lhe apresenta uma diversidade de opções de ser no mundo, o

que o impele a agir e reagir de formas diferentes diante dos fatos. Esse

deslocamento é o que Derrida considera como “instância”, um não-lugar, o “sem

lugar” que também não possui tempo, porque a diversificação de percepção sobre o

sujeito ocorre de forma simultânea. Portanto, o sujeito moderno se transforma de

unidade para pluralidade de “eus” que convivem entre si, mas não irredutíveis,

fazendo com que nenhum prevaleça sobre outro. No romance A-B-Sudario, de

Jacinta Escudos, vemos em Cayetana, personagem principal, um sujeito

fragmentado e em conflito que tenta se descobrir no mundo através da palavra,

como analisaremos mais adiante.

Esse descentramento leva o sujeito a buscar novos caminhos para encontrar

um sentido no mundo. Ao fazer isto, o indivíduo questiona e rompe com os sistemas

e os modelos propostos pelas instituições e pelas “hierarquias de conhecimento”,

36

como Gonzalo Navajas considerou em La modernidad como crisis: los clásicos

modernos ante el siglo XXI. Desta maneira, novas estruturas de significado são

propostas, que, diferente das instituídas pela tradição, não são campos fechados e

permitem um trânsito entre elas. Dentro dessa mudança de perspectiva, as áreas de

conhecimento também experimentam uma crise de legitimidade, o que as leva a

questionar os seus limites e a explorar sua potencialidade de reflexão.

Em meados século XX, observa-se na literatura hispano-americana um

questionamento da legitimidade da palavra, o que ocasionou a experimentação

formal com a escrita, libertando-a do seu papel de representação da realidade

objetiva, princípio que já estava proposto e que remonta ao final do século XIX, em

Un coup de dês de Mallarmé6. Em conseqüência, os escritores hispano-americanos

buscaram em outras artes uma forma de se re-inventar. Uma das artes que lhe

proporcionou novos caminhos foi o cinema como já foi indicado, que se infiltra na

literatura com uma perspectiva mais temática e até como modo de experimentação

com a linguagem, revelando a artificialidade da palavra. Desta maneira, a literatura

da segunda metade do século passado configura uma linguagem pósmoderna na

qual se tratam temas referentes à “ficcionalidade” da palavra, como apontara

Calinescu (2003).

Nesse intuito questionador da legitimidade da palavra, a literatura

pósmoderna tem se caracterizado por uma “poética da „indeterminação‟ ou pelo que

é „indizível‟ e que é localizada num anarquismo poético” (CALINESCU, 2003, p.

289). O que quer dizer, a literatura, e mais especificamente a narrativa pósmoderna,

tem se diferenciado das propostas tradicionais canônicas, pelo apelo muito grande

àquilo que é insinuado, isto é, ao não-dito, e pelos discursos fragmentados,

propiciando a intervenção do leitor na atribuição de sentidos e construção da

narrativa, isto é, o leitor não é mais agente passivo que recebe informações prontas,

ele é, pelo contrário, agente ativo. Para tanto, a palavra recorre, muitas vezes ao

artifício imagético da fotografia ou do cinema. O autor trabalha com a potência da

6 É importante não se esquecer do romance português e do inglês, que já no início do século XX

questionavam a legitimidade da palavra, do autor e do narrador, um exemplo disso é o romance Finnegans wake de James Joyce.

37

palavra, isto é, ele aponta para aquilo que ela não é, mas que poderia ser, embora

nunca se concretize, como veremos mais adiante.

Dentro desse grupo de obras experimentais encontramos A-B-Sudario de

Jacinta Escudos, que propõe uma inter-relação entre as linguagens literária e

cinematográfica que, fragmentando a organicidade da obra potencializa o caráter

expressivo da palavra.

3. O sujeito Fragmentado e a perda da legitimidade da palavra em A-B-Sudario

3.1 O sujeito múltiplo e a palavra potencializada

Em meados do século XX, a sociedade sofre uma cisão que redirecionará

suas concepções acerca de sujeito, identidade, sociedade e expressão artística. A

tragédia da Segunda Guerra Mundial gerou na Europa um sentido de perda da

ilusão de uma sociedade que efetivasse o modelo decimonônico e projetou os

Estados Unidos como primeira potência mundial. Desta maneira, o processo de

intensificação do capitalismo e da globalização liderado pelos EUA intensifica-se.

Assim:

As velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno. A assim chamada “crise do sujeito” é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social (...) Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, etnia, gênero, sexualidade, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais (HALL, 2006, p. 9).

Desde essa perspectiva, o sujeito não possui mais uma base sólida que lhe

dê respostas acerca do mundo e que ao mesmo tempo lhe forneça segurança

social, política, ética e moral. Hall aponta também para o surgimento de “novas

identidades” (HALL, 2006) que não se submetem umas às outras, elas agem

38

paralelamente dentro da sociedade. Este processo permite a ondulação das

estruturas de poder, isto é, elas se tornam flexíveis e, o que é mais importante, elas

são descentralizadas, isto é, estas estruturas se multiplicam fazendo com que o

sujeito seja confrontado a várias possibilidades de existência.

Dentro desse marco de “deslocamento” das estruturas de poder, o sujeito

também é fragmentado e desta maneira entra em crise de identidade, ele não sabe

mais o que ele é, para onde deve ir, nem por que deve ir para algum lugar. Desta

maneira, o sujeito é “desplazado, descentrado, reinscrito (...), es proyecto de

destinerrancia” (DERRIDA, 2005, p. 154), o que o sujeito não possui mais uma

essência que preestabeleça seus pensamentos e suas ações, ele perde o centro de

si e ao mesmo tempo, se submete ao que Derrida chama de “destinerrancia”, isto é,

o sujeito não permanece o mesmo, ele se movimenta e muda constantemente. Isto

quer dizer que o sujeito não concretiza seu destino, nunca chega a nenhum lugar,

vivenciando, desta maneira, um “instante”, ou seja, é um “momento” que existe,

embora se desintegre e se transforme constantemente. Isto ocorre, segundo

Derrida, pelas diferentes chamadas às quais o sujeito se vê impelido a responder no

contexto social, dito de outro modo: o sujeito que era “uno” e que respondia a uma

só chamada, que estava determinada por sua condição tanto social-econômica

como sexual, se depara em meados do século passado com uma sociedade

desarticulada e que prolifera seus “sistemas de significação e representação cultural

(...) na qual é confrontado com uma multiplicidade de identidades com as quais

poderia se identificar, ao menos temporariamente” (HALL, 2006, p. 13), isto foi o que

desencadeou os diferentes movimentos sociais: o feminismo, a liberação sexual e a

propagação do uso de drogas que se solidificou com o movimento de contracultura

da década de 1970.

Se anterior a estes acontecimentos o sujeito era concebido como unidade

indivisível, isto quer dizer que a partir do momento em que ele se fragmenta, a

noção de sujeito também perde sentido e ele se transforma em “fábula” (DERRIDA,

2005, p. 156), o que quer dizer que o sujeito se transforma em “relato de ficção”

(HOUAISS, 2003); permitindo pensar a ideia de sujeito como uma construção,

produto de um processo discursivo, embora não signifique que a figura do sujeito

seja apagada ou simplesmente negada. O que ocorre, na verdade, é uma

39

modificação do entendimento deste conceito: ao ser um discurso, a figura do sujeito

deixa de ser algo estabelecido e determinado, permitindo a multiplicidade de

identidades, que não se fixam, muito pelo contrário, transitam paralelamente sem se

reduzir umas às outras.

Desta maneira, a concepção que propunha uma essência do homem

desaparece, já que esse conceito descansa no pressuposto de que existe no interior

do sujeito algo que unifica todos os “eus” que aparecem na exterioridade. Esta

concepção moderna do indivíduo se relaciona com a divisão tripartida do “eu”

concebida pelo psicanalista Sigmund Freud: uma diz respeito ao que o ser humano

deseja, a outra se relaciona com as normas punidoras internas, que são

determinadas pelas leis sociais, e uma terceira faz o papel de mediadora entre o

desejo e as normas7.

A partir dessa divisão e das experiências da primeira e segunda guerra

mundial, diversos estudos psicanalíticos e filosóficos foram desenvolvidos em torno

da figura do sujeito e sua identidade. Por um lado, a psicanálise desenvolveu

pesquisas sobre as diferentes “faces” que o sujeito pode adquirir, chegando ao que

se conhece como “o alter-ego” que faz referência à multiplicidade de identidades que

um sujeito pode adquirir em diversas situações e que surge da necessidade de criar

outro “eu”, como sua própria representação8; por outro lado, com Sartre, em 1943, a

filosofia desenvolve um estudo sobre “o outro” em que ele estabelece que “é no

encontro entre os seres que ocorre a identidade e o sentido do Ser” (JACOBY,

2005).

Assim, o sujeito nunca é o mesmo, ele muda constantemente e, é esse “outro” que

é ele mesmo. Desta maneira, Hall define a identidade como:

7 A divisão tripartida do sujeito especificada por Freud parte do princípio que as relações sociais se

estabelecem na relação de trocas, ocasionando conflitos no momento em que o desejo se vê frustrado pelas normas sociais e pelos desejos do outro. Cf. RIEFF, Philip. Freud: the mind of the moralist. Chicago: The University of Chicago press, 1979. Disponível em: http://books.google.com.br/books?id=zJv3O1uAI5oC&pg=PA60&dq=el+ego,+id+e+super-ego&ei=wpDESu7dN5PuygSXtLzYDA#v=onepage&q=el%20ego%2C%20id%20e%20super-ego&f=false acesso em: 23 de setembro de 2009. 8 Cf. KOHUT, Heinz. (1971). The analysis of the self. New York: Taylor and Francis group, 1996.

Disponível em: http://books.google.com.br/books?id=X2iw3KW2_REC&pg=PA3&dq=Kohut,+Heinz.+(1971).+The+analysis+of+the+self&ei=35zESqrwNYjWzAS129T1Aw#v=onepage&q=Kohut%2C%20Heinz.%20(1971).%20The%20analysis%20of%20the%20self&f=false. Acesso em: 28 de setembro de 2009.

40

uma “celebração móvel”: formada e transformada constantemente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (...) Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora “narrativa do eu”. A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia (HALL, 2006, p. 13).

Ao dizer que a identidade é uma “celebração móvel”, Hall destaca o caráter

instável do sujeito, isto é, a sua capacidade de se transformar em diferentes “eus”

dependendo das representações simbólicas com as quais este indivíduo se depare.

Este tipo diferenciado de situações só é possível pela liberdade adquirida pelo ser

humano na sociedade pósmoderna, que permite movimentações sociais que o

indivíduo pode experimentar ao longo da sua vida (migrações, o livre trânsito entre

as camadas sociais, a experiência do espaço virtual, entre outros acontecimentos).

O autor também assinala que a ideia de um sujeito unificado se origina a

partir de uma “narrativa” que o próprio homem cria desde a infância, produto da

necessidade de construir um sentido diante do mundo pósmoderno. É importante

destacar que Stuart Hall chama a atenção para o momento de configuração dessa

falsa “identidade unificada”, já que ele comenta que esta formação se dá nos

primeiros anos de vida da criança através do “olhar” (HALL, 2006); isto é, a criança

se reconhece como sendo ela mesma porque é diferente do outro, o que não

significa que é necessariamente oposto.

Derrida vai um pouco além dessa noção, entendendo o sentido da differance

(diferença) como uma cisão dentro do sujeito que lhe permite articular duas ou mais

identidades na sua própria existência, remetendo ao que se define como uma “no-

coincidencia consigo mismo” (DERRIDA, 2005, p.157), o que nos leva a pensar na

não-correspondência entre as diferentes “faces” de um mesmo sujeito. Ora se ele se

apresenta a si mesmo como um ser multiplicado e diversificado, quer dizer guarda o

princípio da contradição, entrando em conflito com as normas da sociedade atual,

pois esta precisa da marca, da razão, da consciência de existência no mundo como

agente, a sociedade precisa do nome próprio que identifique o indivíduo diante dos

outros que conformam o corpo social em que ele se desenvolve. Ao perceber a

contradição no seu ser, o sujeito promoveria um desencontro consigo, produzindo

uma “ex-apropiación” (DERRIDA, 2005, p.159), isto é uma saída de si para aceitar-

41

se como outro, entendendo o “si” como um princípio de individuação. Dentro desta

concepção, o sujeito detém o direito da singularidade, sendo único na sua diferença

e, portanto, não é obrigado a cumprir um determinado papel que lhe é imposto pela

sociedade que tenta defini-lo. Desta maneira, segundo Antelo, Derrida considera que

o sujeito:

Trata-se de uma relação com o outro na qual eu digo nem sim nem não, digo que quero ter a liberdade não de rebelar-me, de revoltar-me ou de refutar, mas de não responder, firmando enunciados que não dizem nem sim nem não, um nem sim nem não que não é simplesmente uma dupla negação ou uma dialética. “I would prefer not to” (DERRIDA apud ANTELO,

2007, p.45).

A partir dessa perspectiva o sujeito que não responde com um sim, nem com

uma resposta negativa, isto é, o indivíduo que não responde a pergunta que instiga

o conhecimento da sua identidade, é espaço de silêncio, o que faz referência àquilo

que não é dito, porém existe na sua potência.

Quando falamos em “potência” do sujeito, apontamos para aquilo que o

sujeito não é, mas que poderia chegar a ser. Ele não responde concretamente a

nenhuma das chamadas que a sociedade lhe envia, no entanto deixa a brecha para

uma possível resposta. Este tipo de entendimento do sujeito gera um atrito entre o

indivíduo e a sociedade, pois, como comentado anteriormente, as normas sociais

esperam que esse sujeito dê uma resposta às diferentes exigências que o contexto

lhe apresenta, a sociedade espera que os indivíduos que a conformam

correspondam a um tipo de comportamento predeterminado pelas normas éticas,

políticas e morais. Este conflito foi retratado na expressão artística da década de

1970, pelo movimento beat, por exemplo, com a valorização do anti-herói americano

que desafiava e criticava o comportamento burguês e capitalista respaldado pelos

sistemas de poder e difundido pelo cinema hollywoodiano. Nesse sentido, o sujeito

fragmentado, suscitado pelos acontecimentos do início do século XX, re-elabora

esquemas de significação e propõe não novos modelos, mas novas possibilidades

de expressão que tem a função de evidenciar a condição do “instante”, daquilo que

não se fixa.

42

No contexto literário vemos como isso se da pela absorção de diferentes

expressões artísticas, que funcionam como dinamizadores da narrativa. Uma destas

propostas é a que diz respeito à interferência que o cinema produz em algumas

obras de ficção, potencializando os sentidos da palavra. Para entender este

processo, vamos voltar um pouco na concepção do sujeito potencializado que

apontamos anteriormente: entendemos o sujeito como potência quando ele,

possuindo uma identidade múltipla, não escolhe uma como sua única face, portanto,

ele transita entre uma e outra identidade de acordo com as circunstâncias que se lhe

apresentam, isto faz dele um ser indefinível, indizível. Ao não ser um indivíduo

identificável, o sujeito procura pelos meios expressivos organizar esses fragmentos,

talvez com o intuito de entender como essas partes dispersas fazem parte de um

único ser tendo em vista a prerrogativa de uma unicidade imposta pelos

determinantes culturais. Desta maneira, ele tenta mapear esse “ser” na expressão

escrita, já que é através da linguagem que esse sujeito se traduz para o mundo,

porém a sua concepção de ser fragmentado não combina com um discurso literário

canônico que se pauta pela ideia de mimese, pois este responde aos tratados

estéticos tradicionais que elaboram uma imagem de sujeito unificado. Isso é

conseqüência do questionamento da legitimidade de representação, proporcionando

a busca de outras faces que lhe permitam detectar esse sujeito e evidenciar suas

múltiplas identidades.

É nesse intuito renovador que a literatura, e mais especificamente a

narrativa, procura na linguagem cinematográfica elementos que ajudem a evidenciar

essa perda da identidade única. Desta maneira, quando afirmamos que a palavra

potencializa seus sentidos por meio da articulação com as imagens do cinema,

queremos dizer que a escrita deixaria sua premissa canônica e abriria seu campo de

significação. Isto é, a literatura que incorpora o cinema não o faz à maneira de

reprodução, mas proporia uma re-elaboração do discurso cinematográfico para

potencializar uma nova expressão escrita. O cinema se disseminaria como tal na

literatura de ficção, dito de outra forma, o cinema seria “destruído” (BENJAMIN,

1986) e tomaria outra cara, não como disfarce, mas como uma nova possibilidade

de configurar a escrita romanesca. Ele se dispersaria e perderia o caráter de iludir o

espectador/leitor para evidenciar essa ficcionalidade que há em si, aquilo que há de

artifício nele. A literatura por sua vez perderia sua roupa de expressão que

43

representa o real para também se revelar como “arquitetação” de uma ficção para o

leitor. Uma das obras que apresenta este tipo de relação é A-B-Sudario, da autora

salvadorenha Jacinta Escudos, que na sua construção narrativa propõe uma relação

entre as linguagens literária e cinematográfica não só no aspecto formal e estrutural

do romance, mas também na configuração do argumento da obra como um todo. Do

ponto de vista formal, o cinema se infiltra na composição do romance como

fragmentador da fábula e potencializador da palavra como “imagem legível”.9 Ao

fragmentar a história, o romance revela um sujeito também fragmentado que tenta,

através da narrativa, alcançar uma unificação.

Neste capítulo focaremos a análise nas implicações que esta relação

estabelece no campo de configuração do conteúdo, não na sua parte mais formal,

que será analisada mais adiante.

3.2 A-B-Sudario: A proposta de um sujeito fragmentado

Para continuar esta discussão, podemos afirmar que ao privilegiar uma

relação entre as linguagens literária e cinematográfica na articulação de sentidos

plurais no romance, Jacinta Escudos propõe a linguagem do cinema como uma

possibilidade de configuração do personagem principal como um sujeito

fragmentado. Isso se dá com o desdobramento de Cayetana como protagonista,

narradora e suposta autora da obra, enquanto voz criadora e criação ficcional,

vivenciando uma crise em relação à possibilidade da escrita em vista dos seus

questionamentos pessoais na fábula e da possibilidade da palavra escrita configurar

essa fragmentação.

A-B-Sudario trata da vida de uma escritora (La Cayetana) que deixa seu

emprego para empreender a tarefa da criação, isto é, a escrita de um livro. Sua vida

está dividida entre duas cidades: Karma town e Sansívar, sendo a primeira o lugar

de sua residência e a segunda, a sua cidade natal, aonde ela volta quando se cansa

demais de Karma Town. Quando chega a Sansívar, reencontra-se com seus quatro

9 César Guimarães já apontou para a visualidade da palavra, conforme visto em trabalhos anteriores,

avaliando como a sua materialidade se revelaria imagem, ressaltando ou chamando a atenção do leitor para os aspectos sensitivos dos nomes dos objetos.

44

amigos (Homero, Pablo Apóstol, El Fariseo e El Trompetista) cujo contato permite

que Cayetana explore, no romance do qual ela é suposta autora, o desespero da

condição humana de existir, por intermédio dos conflitos latentes a essa relação de

amizade e do enfrentamento com as dificuldades da expressão.

Tendo isso em vista, podemos dizer que a personagem La Cayetana é fonte

geradora das ações e das relações estabelecidas no romance, que se configura a

partir da prerrogativa da potência negativa, “I would prefer not to” (ANTELO, 2007),

como um Bartleby feminino. Como personagem, ela se nega a cumprir os papeis

que a sociedade lhe impõe, o que faz com que ela não se identifique com nenhuma

imagem pré-estabelecida:

-Quiero saber cosas de ti./ ¿cosas? / todo./ ¿todo? ¿para qué? (…) / conocerte/ puedo decirte muchas cosas de mí y eso no hará con que me conozcas. en realidad, uno no termina de conocer a las personas jamás. cuando uno cree que conoce bien a alguien, pasa algo, hace algo que no tenías la menor idea que podría suceder. tienes que hacerte a la idea que las personas son capaces de hacer cualquier cosa (…) / bueno, estoy de acuerdo en que siempre hay un margen de sorpresa con las personas, pero creo que las personas pueden ser bastante predecibles (ESCUDOS, 2003, p. 76).

Este trecho faz parte do quarto capítulo, onde Cayetana estabelece um

diálogo com todos os seus amigos, e cada um deles tenta de alguma maneira

“descobrir” quem é realmente Cayetana? Por que mora sozinha? O que ela faz? Por

que escreve? Porém, ela não responde satisfatoriamente, muito pelo contrário, ela

evade com outras perguntas, como é o caso do trecho citado em que ela, diante da

pergunta: “¿qué haces cuando estás sola?”, simplesmente responde: “¿para qué

quieres saber?” e logo em seguida elabora um discurso sobre como os seres

humanos somos diferentes por natureza e nega a possibilidade do conhecimento

das pessoas.

Cayetana aponta para aquilo que é múltiplo e não reconhece, portanto, a

centralidade do sujeito, isto é, ela, na sua condição de mulher “diferente”, não se

considera um ser redutível a um conceito. Desta maneira, Cayetana não se submete

a uma unidade histórico-social, nem moral-ética, já que, ao não responder à

pergunta de Homero da forma que ele esperaria, ela não define sua identidade, o

45

que é desconfortável para os amigos que, como Homero, querem defini-la e

“domesticá-la”. Nesse sentido, ela rompe o seu contrato social, negando sua

identificação com algum molde estabelecido.

Esta domesticação se dá através do nome, da previsibilidade das ações, no

entanto, os amigos de Cayetana não têm acesso à informação sobre o que ela faz

quando eles não estão presentes, pois ela responde com a sua prerrogativa de que

“preferiria não dizê-lo”. A respeito dessa resposta, o primeiro capítulo apresenta para

o leitor a desconstrução da figura feminina e o questionamento da ordem social:

en el día no miraba a nadie y por las noches salía a la calle, como los murciélagos, en busca de/ - ¿algún antojo particular?/ tequila. ya lo sé. el tequila me mata. me da terribles dolores de cabeza y parece que tengo lleno el pecho de agave y que cada movimiento que hago, las puntas de sus hojas que tienen unas espinas de ESTE TAMAÑO (…) (por supuesto que no pido Margaritas. Margaritas son para las mujeres, y yo soy muy Cayetana, y no tengo por qué tomar licor con limonada. el licor se toma recto, straigth, o mejor no se toma) (ESCUDOS, 2003, p. 14).

Neste trecho podemos identificar dois elementos importantes: o primeiro diz

respeito ao narrador, que alerta o leitor sobre os costumes de Cayetana, ela troca o

dia pela noite, como “murciélago”. Neste sentido, a figura da personagem fica

desumanizada, isto é, ela perde o sentido de “persona” que a diferencia dos outros

seres, o que é interessante, pois nega a concepção binária do homem, isto é, a

divisão ou contraposição do ser humano contra a figura do animal, como seres

opostos. Além disso, essa primeira intervenção, que corresponde à perspectiva

narrativa, aponta para a diferenciação de Cayetana-mulher e a convenção social,

pois como mulher que pertence à sociedade ocidental, espera-se que ela se

comporte como tal: fazendo suas atividades durante o dia e não durante a noite, por

exemplo.

E o segundo elemento diz respeito à intervenção de Cayetana,

primeiramente poderíamos dizer que, neste caso, estamos falando de Cayetana-

suposta-autora, pois o fato de estar entre parênteses, e com uma tipografia

diferente, indicaria que é uma contraposição, uma opinião ou explicação dos fatos

narrados ou expostos. Contudo, a letra cursiva, no romance, não desempenha

46

sempre a mesma função, como veremos mais adiante. A voz de Cayetana-suposta-

autora intervém para responder à pergunta de um interlocutor ausente na narrativa,

sobre a sua escolha alcoólica, momento em que ela nega sua condição de mulher

como papel social, mais adiante veremos como o desdobramento da personagem

em agente criador funciona na narrativa para o seu próprio rastreamento.

Os dois exemplos mencionados anteriormente respondem à “plurificação da

identidade e um deslocamento do sujeito” (HALL, 2006), mencionado anteriormente.

Em Cayetana isso se da também pela sua inserção numa cultura influenciada em

grande medida pelos referenciais culturais norte-americanos. Por um lado, Tal

aspecto se evidencia nas suas menções, mesmo que sutis, a este referencial

cultural: “usted se parece a James Cagney em Public Enemy (...) entonces

caminamos uno recostado contra el otro, parecíamos Ingrid Bergman y Cary Grant

(...) ” (ESCUDOS, 2003), ou menções a nomes de músicos: Jim Morrison, Joe

Cocker, Dizzi Gillespie, ou mesmo frases em inglês como: “and all the children are

insane” (ESCUDOS, 2003). Por outro, a fragmentação de Cayetana responde a uma

condição de estrangeira, tanto na sua cidade (Sansívar) como na outra (Karma

Town):

Piensa en volver. siempre piensa en volver. pensar en volver es nunca estar “aquí”. ¿qué es “aquí”? ¿este lugar donde malvive? ¿este lugar donde nunca dejarán de señalarla con el dedo y llamarla “extranjera”? este lugar ¿y allá es mejor? no lo sabe. no podrá saberlo hasta no vivirlo. siempre piensa en ello. en regresar. pero las visitas al país le han demostrado algo muy claro: el lugar al que quiere regresar ya no existe. al país de la infancia (…) (ESCUDOS, 2003, p.53).

Partindo da citação, podemos formular a seguinte pregunta: que lugar é

“¿aquí?” Que lugar é “¿allá?”. Pouco depois, fica explicitado que “aquí” e “allá” são

Karma Town e Sanzívar, respectivamente. Portanto, quando fala dessas cidades,

Cayetana está falando de um não-lugar, porque nenhuma delas a completa, as duas

cidades a sufocam. Sanzívar não existe mais, porque as lembranças que ela tem da

sua cidade são as da infância, o que revela ao leitor que ela deixou o país sendo

adolescente ou ainda criança. Por outro lado, em Karma Town não está em seu

país, por isso ela sempre será “extranjera”.

47

A voz de Cayetana-narradora elabora uma série de perguntas que não são

respondidas no momento, nem ao longo do romance. O conflito fica registrado por

meio da indefinição do espacial que colabora para a constituição do personagem

cindido, como os outros aspectos indicados anteriormente. Além disso, cabe

destacar a experiência do exílio como modo de percepção da modernidade

fortemente conectado à experiência da segunda metade do século XX, construindo

uma visão plural do mundo.

É importante analisar aqui os nomes das cidades: a primeira, Karma Town,

cidade inventada, portanto mítica, ainda mais ao possuir um nome formado por duas

palavras que não fazem parte da língua espanhola ou que dizem respeito a culturas

diferentes. Karma denota, dentro das doutrinas budista e hinduísta, a lei que explica

o mundo mediante a premissa lógica de que para toda ação existe uma reação, sem

importar se ela é boa ou má. Esta lei é considerada pelos gnósticos como lei de

compensação, isto é, uma lei que retribui de acordo com as ações que cada

indivíduo realize.

Numa hipótese arriscada, poderíamos dizer que Karma Town é a

alegorização de alguma cidade norte-americana, apesar de que isso nunca é

explicitado no romance, mas se pode inferir a partir do conhecimento popular que

acredita que os Estados Unidos, para muitos salvadorenhos, tornam-se um karma,

ou seja, um caminho que é predeterminado pela situação de disparidade econômica

do país, portanto, migrar para conseguir alcançar “o sonho americano” se torna uma

conseqüência, uma compensação por não ter o que precisa no seu país de origem.

Ao dar o nome de Karma Town, Jacinta Escudos cria um não-lugar que suaviza o

sentido de pertencimento e que passa a ser apropriado por Cayetana. De outro lado

está Sanzívar, relacionado diretamente com a capital salvadorenha (San Salvador),

que é a forma coloquial como muitos salvadorenhos utilizam para se referir à cidade.

Embora o nome faça referência direta à cidade e, pelas descrições que se seguem

na leitura da obra, alguns lugares possam ser reconhecidos, não é possível afirmar

que de fato de trata da representação de São Salvador, pois o que ela lembra são

momentos, recordações de infância, como a voz narradora informa ao leitor.

Portanto, Sanzívar é a idealização de um espaço que faz parte do imaginário do

personagem, não é a cidade real. Karma Town e Sanzívar se transformam em

48

cidades inexistentes, que ganham vida através dos sentimentos e angústias de

Cayetana, projetados na composição ficcional.

Até agora analisamos uma das “facetas” de Cayetana: ela como

personagem, porém no início desta reflexão apontamos para outros dois

desdobramentos: o primeiro é Cayetana como narradora e o segundo como

suposta-autora.

Em relação ao primeiro, podemos dizer que Cayetana-narradora acompanha

as ações dos personagens da mesma maneira que uma câmera registra esses

movimentos, aproximando-se deles e apresentando o espaço físico onde a ação é

realizada. A esse respeito é interessante lembrar o conceito de “câmera lúcida” dos

primórdios da fotografia diz respeito ao espaço em que a imagem é apresentada

numa escala muito pequena e onde é utilizado um prisma para comandar o

sistema10. Levando isso em consideração, podemos dizer que La Cayetana-

narradora comanda os espaços e as ações dos personagens com a perspectiva de

uma “câmera lúcida”, como vemos no seguinte exemplo:

Homero Ciertamente Caballero le ofrece su chaqueta cuando se da cuenta que la Caye tiene frío. afuera el viento sopla y la noche está como para esperar platillos voladores. en algún incierto momento de la conversación, la Cayetana lo descubre mirándola, ella sonríe por cortesía, pero la sonrisa de Homero va un poco más allá de la inocencia. la Cayetana carraspea, recurre al vaso donde sólo hay dos gotas de hielo derretido hace más de media hora y que ella intenta apurar hasta su garganta (…) pero Homero Ciertamente Caballero le retira el vaso con un gesto cortés, pone más hielo y más agua mineral (…) y le revuelve el hielo con los dedos y la Caye le pregunta: - ¿te lavaste las manos antes de…/ - por supuesto que no, Cayetana, están llenas de microbios, bacterias mortales e incurables virus./ - que bueno. (ESCUDOS, 2003, p. 138)

Em primeiro lugar, é importante ver que a voz narradora acompanha todos

os movimentos dos dois personagens, além de fazer alusão ao ambiente, sem que

este seja necessariamente identificado. Em segundo lugar, vale a pena ressaltar as

10

BREWTER, Sir David. A treatese on optics. Philadelphia: Lea &Blanchard, s/d. Disponível em: http://books.google.com/books?id=cQtJAAAAIAAJ&pg=PA274&dq=camera+lucida&lr=&ei=i5v4SoiaMJaWzgTourCHBw&hl=pt-BR#v=onepage&q=%20lucida&f=false Acesso em 10 de setembro de 2009

49

afirmações com tom intimista que a narradora faz sobre as ações dos personagens:

“Homero Ciertamente Caballero”, ou “ella sonríe por cortesía, pero la sonrisa de

Homero va un poco más allá de la inocencia”. Na primeira frase, a narradora expõe

seu ponto de vista sobre a ação realizada por Homero, já na segunda frase, é

possível perceber que a narradora conhece ou intui os pensamentos e as intenções

dos personagens.

Em terceiro lugar, vemos que Cayetana-narradora destaca elementos

sensíveis do espaço, como o vento que produz o frio, a comparação que ela faz da

noite que está como “para esperar platillos voladores”. Por último, podemos dizer

que, ao mesmo tempo em que a narradora descreve o espaço e as ações dos

personagens, ela não sabe especificar o tempo em que essas ações ocorrem, como

na frase “en algún incierto momento de la conversación”, que passa para o leitor

uma ideia de incerteza, revelando a relativização da ação.

A figura do narrador-câmera, que será elucidada mais detalhadamente no

capítulo seguinte, funciona como construtor da “cena” e dos elementos que compõe

o “cenário”, para que a intervenção dos personagens seja de alguma forma,

contextualizada. Em outras situações, Cayetana-narradora faz alusão ao seu

desdobramento como suposta-autora: “mete el papel en el rodillo. no puede

desperdiciar ninguna súbita idea (....) en alguna de las palabras que le dicte el

cerebro estará la palabra que tendrá el mérito (…) de hacerla hablar por fin, de

hacerla escribir” (ESCUDOS, 2003, p. 50). Desta maneira, Cayetana-personagem,

caracterizada como uma escritora que não consegue escrever, é refletida pela lente

da perspectiva narradora que a observa. Nesse sentido, Cayetana-personagem é a

ficcionalização da suposta autora que se confunde com a voz de Cayetana-

narradora e muitas vezes com a voz de Cayetana-personagem, pois está presente

desde o início da leitura até final dela. Porém, o que a diferencia é: a sua

intervenção em situações em que ela, como personagem, não está presente e

consequentemente não tem a possibilidade de conhecer; e o tom irônico dessas

mesmas intervenções nas conversas ou nas recordações de Cayetana-personagem,

como vemos no seguinte exemplo:

- ¿qué hace cuando está sola? ¿lo sabe alguien?/ - pensar en nosotros./ - ¿en los cuatro? qué poco romántico./ tendrá otros amigos, amantes. (…) nadie sabe lo que hago cuando estoy sola. por lo demás, supongo que

50

nadie gasta sus pensamientos tratando de dilucidarlo (…) - ¿por qué no nos escondemos un día y la espiamos? (…) es muy sencillo: espero a que todos se vayan, que no haya nadie, calculo la hora y el día (…) en que a nadie se le vaya a ocurrir semejante disparate como el de venir a verme (ESCUDOS, 2003, p. 80-81).

Neste trecho, os amigos de Cayetana (Homero, Pablo Apóstol, El Fariseo e

El Trompetista), discutem a respeito da sua figura “enigmática” e do que ela faz sem

a companhia deles, e ela não se encontra presente, contudo a voz da suposta-

autora intervém, como uma voz em off, que possibilita a sua “intervenção” na

discussão. Esta intromissão é diferenciada tipograficamente, ressaltando o elemento

visual da linguagem. Com a frase: “por lo demás, supongo que nadie gasta sus

pensamientos en dilucidarlo”, Cayetana-suposta-autora aponta para o elemento

criador, o que significa que as intervenções dos amigos seriam uma projeção

elaborada pela própria Cayetana na construção do romance que ela tenta escrever,

mas que não consegue.

Essa impossibilidade de escrever é muito mais explícita nas páginas do

diário de Cayetana em que ela expõe a sua angústia: “ni siquiera sé si me gusta lo

que estoy escribiendo. cumplo función de autómata (...) quiero quemarlo todo”

(ESCUDOS, 2003, p. 121). Assim sendo, Cayetana parece sempre estar escrevendo

e destruindo tudo num ciclo vicioso que não permite traduzir as ações em palavras.

Levando isso em consideração, podemos propor a hipótese de que ela escreve para

talvez unir os fragmentos da persona Cayetana, que mencionávamos anteriormente,

para aceitar-se como diferente, e que se evidencia no dia 34 do seu diário: “si no

escribiera a diario (...) perdería mi propio hilo (...) estar debajo de mi propia lupa”

(ESCUDOS, 2003, p. 111), sendo essa lupa a projeção dela mesma como narradora

manipulada pela suposta-autora, que lhe permitiria em algum momento juntar os

fragmentos, embora isso não aconteça, gerando desta maneira um estado de

angústia permanente que se direciona à morte:

¿dejaré algún día de sentir esta angustia?/ ¿dejaré algún día de sentir esta angustia?/ ¿dejaré algún día de sentir esta angustia?/ ¿dejaré algún día de sentir esta angustia?/ DÍA 1/ el día. los espejos. otra vez. otro día./ siempre despierto./ al despertar, regreso a este lado de la realidad./ y al hacerlo, pienso siempre en la muerte. concluyo:/ DORMIR ES UNA MANERA DE MORIR Y SOÑAR OTRA MANERA DE VIVR (ESCUDOS, 2003, p. 105).

51

Partindo do trecho anterior podemos dizer que Cayetana rejeita sua

realidade, preferindo o estado de sono, que por sua vez é proposto como outra

maneira de existência. Isso levaria o leitor a formular a seguinte pergunta: por que

Cayetana preferiria o mundo dos sonhos como uma forma de existência “melhor” do

que a que vive de forma consciente? A resposta a essa pergunta aparece logo em

seguida do trecho citado, na leitura do romance: “me parece una realidad más

vivible. porque tengo la opción del absurdo donde lo ridículo es aceptable”

(ESCUDOS, 2003, p. 108), o que resulta da sua “inadaptabilidade” às normas

estabelecidas pela sociedade, que exige, como salientado anteriormente, uma

identidade, um nome e portanto determina um tipo de responsabilidade diante dos

outros que determina em alguma medida as ações do ser humano. Desta maneira, a

morte resulta ser a saída para estabelecer uma existência distanciada de todas

essas características que determinariam uma unicidade do sujeito, no silêncio da

morte não é necessário responder às “chamadas” (DERRIDA, 2005) que a

sociedade lança para o indivíduo. Assim, Cayetana experimenta a morte como um

ritual que lhe permite aceitar a diferença que faz parte do seu ser singular.

¿te limita la vida? ¿o la limitas tú?/ ¿te limita el miedo? ¿miedo a qué?/ pregúntate: ¿qué es lo peor que puede pasarte?/ ¿morir? ¿y no tiene que pasarte de todos modos?/ la muerte te libera de la materia y el dolor se termina. la materia es dolor. buscar. buscar. algo más allá de los cuerpos (…) algo sagrado de uno (…) cuando conoces la verdad, tocas la muerte (ESCUDOS, 2003, p. 124).

Desta maneira, Cayetana aspira a alcançar um estado primitivo da sua

própria existência11, já que esta exige uma resposta diante das constantes

“chamadas”, conforme já mencionamos. Assim, quando Cayetana se refere a esse

algo sagrado de cada um, não se refere a uma essência, pois ela considera a

pluralidade do ser, mas sim aquele estado anterior a todas as marcas que a

sociedade impõe. Nesse sentido, a morte pode ser equiparada a um estado de

silêncio absoluto, onde nenhuma particularidade é exigida, pois todos os seres

humanos partilham da mesma condição: “te toca de vez en cuando, para que te

acuerdes (...) que a ti también te toca (...) que tu también eres „los demás‟. que uno

11

Escolhimos o termo primitivo por fazer alusão ao estado inicial dos objetos, se fazemos um desdobramento deste significado, encontramos que a existência inicial do sujeito seria concebida como aquela que se encontra antes das “chamadas” que a sociedade lhe lança. Cf. HOUAISS, Antônio, et al. Dicionário Houaiss. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003

52

tamién es „los demás‟” (ESCUDOS, 2003, p. 174), que é o silêncio, o nada que não

significa “não-existênica”, muito pelo contrário, é uma outra forma de existência. A

busca da morte é uma tentativa de unificação desse ser fragmentado, que não

responde de forma satisfatória às normas sociais. Muito mais do que uma resposta a

estas normas, ela não responde ao que espera de si mesma. Não obstante, ela sabe

que a unificação do sujeito e da realidade como “essência” não existe, como ela

mesma afirma no dia 42 do seu diário: “escucharse, aprenderse no es fácil. Me ha

tomado años hacerlo (...) en el espejo apenas logro descubrirme (…) nunca me

conoceré (…) nunca terminaré de ser yo” (ESCUDOS, 2003, p. 112), porque não

existe uma identidade fixa e indestrutível para o ser contemporâneo, e sim uma

instância, um ser em potência. Isso, para Cayetana, representa um problema e um

gerador de angústias que depois da experiência da morte se transformam, pois ela

consegue aceitar a pluralidade, embora isso não signifique uma “paz interior”:

La muerte nunca volvió. sé que está cerca, que me observa. que me escucha cuando hablo a solas. aún le hablo. la vida no ha mejorado para nada. por lo contrario, a veces parece cada día peor. pero algo cambió desde aquel día. sólo espero que cuando La Muerte regrese (…) me lleve rápido y espero no caer de nuevo en el torpe sentimentalismo de pensar que la vida no es tan mala, después de todo. (ESCUDOS, 2003, p. 269)

O interessante desse trecho são dois elementos modificadores na persona

Cayetana: o primeiro diz respeito à mudança após a experiência da proximidade da

morte, e o segundo é o que evidencia a sua contínua espera pela morte, que não

representa mais uma busca e sim uma “esperança”.

Todas essas angústias são articuladas por Cayetana-suposta-autora, que

escreve para tentar visualizar um fio condutor da sua existência, para tanto se re-cria

na sua própria personagem Cayetana no romance que nunca termina. A figura desta

suposta autora se revela ao leitor quase na parte final do romance, numa espécie de

entrevista:

- ¿Cómo comenzó el libro?/ - Fue un ejercicio que me autoimpuse. Una disciplina diaria de escribir. Solamente de escribir, describir sensaciones, anotar diálogos, delinear caracteres. Un día me di cuenta que se repetían estos mismos personajes y cobraron forma, tuvieron nombres. (…) - ¿Y ahora?/ - Y ahora nada se terminó (…) Lee: Música de danzón. Sombras entrelazadas, bailando. Humo acuchillado por una luz que lo atraviesa. (…) No hace falta leerlo todo de nuevo. (ESCUDOS, 2003, p. 259)

53

Sendo uma das únicas partes em que respeita as regras de pontuação,

como o início de cada frase com letra maiúscula depois de cada ponto, Cayetana-

suposta-autora fala sobre a experiência da escrita e mais especificamente do livro

que depois de tantas tentativas conseguiu finalizar. É interessante que, no momento

de ler um trecho do seu livro, é a transcrição da primeira página com que A-B-

Sudario inicia, propondo, desta maneira, uma leitura circular da fábula de Cayetana.

54

4. O cinema como uma perspectiva potencializadora da linguagem literária

4.1 Linguagens literária e cinematográfica: uma abordagem formal

Nos capítulos anteriores vimos como os estudos da modernidade e da

pósmodernidade apontam para um redirecionamento da concepção do sujeito e

como isso afetou a concepção das expressões artísticas, propiciando a interligação

entre elas, como o diálogo existente entre as linguagens literária e cinematográfica

em algumas narrativas da segunda metade do século XX e inícios do XXI. Neste

capítulo visamos explorar a configuração formal de A-B-Sudario que evidencia um

diálogo entre ambas as linguagens.

Para iniciar nossa reflexão a respeito da estruturação do romance de Jacinta

Escudos, é importante lembrar que as artes em geral surgem com o intuito de tentar

reproduzir de alguma forma a realidade na qual ela está inserida. Assim nascem os

primeiros gêneros literários, como já apontara Aristóteles na antigüidade, embora

não sejam eles os únicos que representaram a realidade ou o imaginário, já que a

pintura, de uma forma diferente mediante a utilização de imagens, também cumpriu

seu papel mimético nas artes desde os tempos primitivos.

Já para o final do século XIX a fotografia aparece como uma nova forma de

expressão para capturar e guardar os traços da realidade objetiva. Esta via de

representação inova não só pela técnica usada, mas também pela reprodução “fiel”12

da realidade, porque se sabe que aquilo que se encontra na foto fez parte da vida de

alguém. Outro fator importante que a fotografia introduziu foi que na imagem da foto

“preserva-se algo que não se reduz ao gênio artístico do fotógrafo, que reclama o

nome daquele que viveu ali e que não quer extinguir-se” (BENJAMIN, 1994(a), p.

93), o que nos leva a pensar que a fotografia enquanto retrato, diferente da pintura,

deixa permanecer a identidade de quem aparece na foto, apagando, portanto, a do

12

“Fiel” é colocado entre aspas porque na atualidade se sabe que a reprodução dessa realidade não é tão fiel assim. Na hora em que a câmera captura uma imagem, ela faz um recorte da realidade onde intervêm diferentes fatores do acaso.

55

fotógrafo.13 Com isto, a fotografia pretendia capturar imagens que faziam ou fizeram

parte da vida de alguém, deixando na memória não só a ocasião, mas também a

pessoa que aparecia nela.

Levando em consideração o que foi mencionado anteriormente, podemos

dizer que num primeiro momento a fotografia foi relacionada às artes de feira,

passando pelos cartões de visita; depois, com a sua difusão, passou a fazer parte

das notícias de jornais, oferecendo assim uma possível maior carga de veracidade.

Além de funcionar como “ilustração” do texto jornalístico, as fotografias foram

usadas pelos poderes econômicos como respaldo imagético para a difusão de ideais

e linhas de pensamento, afinal a imagem reforçava a idéia exposta num papel. Com

o passar do tempo e com as mudanças que a modernidade propiciou às sociedades

por meio da tecnologia, a fotografia foi se infiltrando na vida privada das famílias da

sociedade burguesa e assim surgiram os álbuns familiares, onde se encontrava a

história de uma família, que podia ser contada através da seqüência narrativa das

fotos.

Conforme o exposto anteriormente, podemos dizer que a fotografia

revolucionou o mundo das artes e o modo em que se representava a realidade

objetiva, já que a arte não era mais aquela peça única que valorizava o nome do seu

autor. Muito pelo contrário, a fotografia significou a ruptura com essa unicidade da

obra de arte, pois ela tem como princípio o da reprodução técnica; com isto, a obra

de arte passa a fazer parte integrante da vida das pessoas, gerando uma

“democratização” da arte. É muito importante não esquecer o surgimento e

fortalecimento do capitalismo da época por meio da sociedade de massas e da

indústria cultural, que facilitou a difusão da fotografia e do cinema, como

mencionado nos capítulos anteriores.

Vemos aqui a criação de um público apreciador de um novo tipo de arte a

qual não era mais elitizada e que chegava a vários estratos da sociedade. É nesse

contexto que o cinema se insere como uma nova proposta artística: a reprodução de

imagens em movimento que oferece uma grande carga de “impressão de realidade”

13

Vale a pena ressaltar que hoje em dia a imagem da identidade do fotógrafo é relevante, já que a fotografia ganhou um espaço importante não só nas artes mas no fotojornalismo também, o fotógrafo adquire o status de autor.

56

porque, como salientou Christian Metz, “o movimento dá aos objetos uma

„corporalidade‟ e uma autonomia, destaca-os da superfície a que estavam

confinados na fotografia, o movimento traz o relevo e o relevo traz a vida” (METZ,

1972a, p. 20, ênfase meu). Isso quer dizer que, além de representar com imagens a

realidade objetiva, proporciona um elemento a mais, o movimento, produzindo e

reproduzindo uma das características dessa realidade. Mas a configuração do

cinema não depende só do movimento, como mencionado antes, também se vale do

uso de imagens e da sua combinação através da montagem, que será explicitada

mais adiante. Por ser desta forma, o cinema encontraria de alguma maneira, na

fotografia características que fundamentaram a sua criação. Entre essas

características encontramos a seqüência imagética dos álbuns familiares, porque na

imagem vista num álbum de fotografias familiares era possível ler uma história, um

percurso daquela família, além de oferecer particularidade e individualidade para

aquela história específica. Por outro lado, encontramos o suporte imagético da

fotografia jornalística, como dito linhas acima, a imagem servia para dar

credibilidade, além de mostrar e defender certo tipo de postura frente a qualquer

situação social. No cinema, isto é evidente, porque mediante o uso de imagens em

movimento, que gera uma reprodução da característica mais básica da vida

humana, são difundidas estilos de vida, de comportamentos, defesa de ideologias,

etc.

Nesse contexto, o cinema teve – e continua tendo – um papel muito

importante na transmissão de idéias, pensamentos e posturas que eram passadas

pelas imagens-movimento e falavam aos seus espectadores, tentando despertar

esse ponto médio entre a possibilidade de pensamento e raciocínio humano e a sua

realização, como já salientava Deleuze, para quem o cinema é aquilo que “desperta

o pensador, um autômato subjetivo e coletivo para um movimento automático: a arte

das massas” (DELEUZE, 1990a, p. 191). Isso porque, diferente da literatura que

depende da palavra escrita, o cinema não precisa de um letramento muito apurado,

porque as imagens são transmitidas num todo e a percepção visual é diretamente

assimilada.

Embora a fotografia tivesse uma grande importância na configuração do

cinema, não foi só nela que o cinema buscou ferramentas para se desenvolver;

57

outra arte que forneceu as ferramentas necessárias para a articulação do cinema

como produto foi a tradição romanesca. Foi no romance, e mais especificamente no

romance inglês do século XIX, que o cinema encontrou histórias para contar, cabe

lembrar que muitos dos primeiros filmes foram recriações de romances ou da própria

história oficial dos países. Numa rápida apreciação, podemos afirmar que no cinema

a seqüência de fotogramas que são colocados um depois do outro dá a impressão

de movimento, e que, por essa característica seqüencial, ele narra ao espectador

uma história com um começo, um meio e um fim.14

Ora, se no começo do século XX o cinema encontrou um aliado na

linguagem literária para a articulação de sentidos, na atualidade uma parte da

literatura vai voltar seu olhar para a linguagem cinematográfica para criar uma nova

forma de expressão.

Alguns romances da modernidade apresentam uma série de características

que os aproximam da linguagem cinematográfica, sem que isso signifique a

repetição dela. Uma dessas características é a visualidade que eles apresentam,

isto é, os romances que antes eram narrações com descrições minuciosas se

transformam em imagens que falam por si só, sem necessidade da mediação direta

do narrador. Assim a palavra é criadora de imagens, que se articulam uma após a

outra e que, diferente do cinema, não estão a serviço de uma seqüencialidade

espaço-temporal ontológica da história, mas sim a favor da sua fragmentação, o que

dá um efeito renovador à leitura. Contudo, antes de continuar com a análise, é

importante definir o que seria uma imagem na literatura. Emprestando as palavras

de César Guimarães, uma imagem é “o enunciado ou conjunto de enunciados no

qual os signos lingüísticos estão dispostos de modo a ressaltar os traços sensíveis

daquilo que constitui o objeto do discurso” (GUIMARÃES, 1997, p.60). Assim, o

narrador manipula o objeto, não o representa de forma mimética em busca de uma

totalização, só destaca os traços que ele quer ressaltar, aquelas características que

ele quer mostrar, porque são mais funcionais à narrativa; o que o aproxima mais de

um diretor cinematográfico.

14

É importante esclarecer que neste caso não estamos considerando os filmes artísticos, onde muitas vezes o uso experimental da linguagem não contempla a linearidade do argumento.

58

Em vista do mencionado anteriormente, neste capítulo analisaremos a

configuração narrativa de A-B-Sudario, tendo como objetivo principal explorar os

pontos em que a linguagem literária e a linguagem cinematográfica se combinam no

romance, para a orquestração da história e a construção uma nova expressão

potencializada que expressa a confrontação que a personagem principal vive frente

à possibilidade da escrita e à necessidade da criação.

A obra A-B-Sudario, como vimos no capítulo anterior, é produto de uma

proposta experimental de linguagem, conforme a própria autora menciona em

algumas entrevistas: “yo creo que A-B-Sudario fue un gran juego, un gran

experimento con el lenguaje, un juego con la estructura” (ESCUDOS, 2006).

Seguindo a tradição iniciada por Macedonio Fernández, Jorge Luis Borges e Julio

Cortázar, de quem revela ter uma grande influência, ela transgride a organicidade

narrativa ao romper com a causalidade de sentidos estabelecidos. Como ela mesma

coloca, o livro é um jogo, uma proposta de leitura renovada que nos faz lembrar de

Rayuela que, como seu título indica, é um desafio ao qual o leitor é convidado a

participar porque, segundo o autor, não existe só uma forma de ler o livro, mas pelo

menos quatro, uma delas é a escolha aleatória dos capítulos a serem lidos. Em A-B-

sudario, encontramos uma situação similar, já que nos deparamos não com uma

história com início, meio e fim, mas com uma história fragmentada, onde a voz do

narrador é configurada como um desdobramento da figura de Cayetana, conforme

analisado anteriormente.

4.2 A proposta experimental em A-B-Sudario desde a perspectiva

cinematográfica.

O romance está dividido em doze capítulos, cada um dos quais tem um título

e um subtítulo. A maioria dos títulos faz referência direta a processos

cinematográficos que funcionam hipoteticamente como um roteiro. Como exemplo

desta afirmação, temos o capítulo que abre o romance intitulado “Panorámica: te

59

pareces a una película que nunca vi” (sublinhado meu). Tanto o título como o

subtítulo nos levam ao mundo cinematográfico. O subtítulo porque faz menção ao

cinema como produto, e o título porque remete à técnica de criação e faz referência

ao movimento circular da câmera, dando uma visão global e abrangente da cena e

dos planos da mesma. Neste sentido, a panorâmica lembra o conceito de premisa,

de Lajos Egri, apontado no livro La ventana imposible, que diz respeito a uma

“sinopse em miniatura” (QUEVEDO, 1993). No cinema, tanto a idéia de panorâmica

como a de premisa funcionam como continuidade, isto é, um movimento seqüencial,

que tem a função de apresentar para que o espectador se familiarize com os

personagens e com a história. Em A-B-sudario, esta panorâmica não pode funcionar

como síntese de nenhuma história, porque a princípio não há história a ser resumida

ou sintetizada, dito de outro modo, porque A-B-sudario é um romance que não

segue a convenção romanesca que sugere uma história com um início, um meio e

um fim, porém ela apresenta os personagens para o leitor de modo que este possa

identificá-los.

Outro recurso que podemos observar já neste primeiro capítulo é o uso do

artifício de montagem, que no cinema é o recurso pelo qual são organizados, de

forma intencional, os fotogramas do filme para, desta forma, criar um sentido. Já no

romance já não funciona dessa forma, mas destaca uma fragmentação,

evidenciando o que há de artificiosidade nele. Assim, encontramos neste primeiro

capítulo pelo menos dez momentos diferentes, que chamarei de cenas, das quais

analisarei quatro a modo de ilustração.

Por ser um romance visual, A-B-Sudario, nos apresenta vários tipos de

imagens vistas de diferentes ângulos. Assim, identificamos diversos tipos de

visualizações, num primeiro momento encontramos a visualização de primeira

instância, que é a imagem que Cayetana-suposta-autora quer deixar na “retina” da

memória do leitor pelos aspectos visuais que o personagem descreve. Deste modo

na primeira cena a ação é introduzida por uma espécie de rubrica que, como no

teatro, funciona como uma explicação do cenário/ambiente.

Música de danzón. Sombras entrelazadas, bailando. Humo acuchillado por una luz que lo atraviesa y que cruza el aire delatando un color gris azulado. (…) Sonido de vasos que chocan, rostros que se miran en la luz mortecina, la noche, la hora, máscaras de payasos, sonrisas extrañas resucitando

60

desde el fondo de una copa. Olores, perfumes revueltos con cigarro y sudor (…) La nota burlona de una trompeta saluda la entrada de 3 hombres al salón “El Egipcio”.

(ESCUDOS, 2003, p.11)

Em primeiro lugar é importante ressaltar que as duas formas tipográficas são

destacadas no livro, o que demonstra a importância do aspecto formal na obra, isto

obviamente obedece a uma intenção da autora. As letras em itálico descrevem o tipo

de ambiente, expõe o cenário para o leitor, já que enfatiza o tipo de música, as

diferentes situações, a iluminação do lugar. Todos estes elementos são organizados

e ressaltados por essa suposta-autora de tal forma que o leitor possa suspeitar de

que tipo de lugar se trata. Assim quando ela se refere ao tipo de música do lugar,

não só diz “música”, mas especifica que a música é de “danzón”. As frases:

“Sombras entrelazadas, bailando. Humo acuchillado por una luz que lo atraviesa y

que cruza el aire delatando un color gris azulado”, nos fazem lembrar do cinema

noir, pelo clima obscuro que caracteriza os filmes deste gênero. Em contrapartida

se apresentam as letras sem itálico, onde o tipo de descrição muda: de uma

descrição de ambiente passa à ação “La nota burlona de una trompeta saluda la

entrada de 3 hombres al salón „El Egipcio‟”, podemos notar que se refere à ação.

Portanto, a diferenciação aqui serve para destacar a intencionalidade da suposta-

autora que intervém na escolha de escrita para mostrar a ficcionalidade dos

acontecimentos, além de demarcar as imagens não só mediante descrições e

narrações dos fatos, mas também por meio da palavra que desempenha uma função

direta nessa diferenciação. Neste caso, o uso de itálico funciona como aquilo que vai

indicar ao leitor que está diante de um cenário, e a letra sem itálico para chamar sua

atenção sobre o que ele vai ler naquele momento que pertence ao campo do

movimento, ou seja, ele estará frente à ação. Claro que nem sempre as letras em

itálico, que aparecem ao longo do romance, significarão a descrição de um cenário,

pois, como vimos no capítulo anterior, a tipografia em itálico funciona para identificar

a interferência analítica da suposta-autora, ela representa a sua intervenção.

Num outro exemplo, encontramos uma visualização de segunda instância

no romance, onde a voz narradora se apaga e o leitor é levado sem mediação ao

que o personagem vê, isto é, o leitor vê as impressões ou imagens com as quais o

personagem se depara:

61

Pablo Apóstol toma el menú y lo estudia con meticulosidad:

Como dito anteriormente, a voz do narrador desaparece, corporificando no

texto do romance aquilo que o personagem vê. Este tipo de visualidade atribui certo

realismo visual, porque ao invés de contar no livro o que Pablo Apostol viu, é

introduzido a imagem do cardápio e as informações contidas neste documento. O

leitor se encontra frente a uma “presentação porque a imagem apresentada nos

aproxima dos traços sensíveis que ela compartilha com o objeto” (GUIMARÃES,

1997, p.62), o quer dizer que se a autora vai falar sobre um cardápio que um dos

seus personagens viu, não vai contar ou descrever como o personagem olhou-o e

leu-o, mas vai incorporar aquele cardápio específico visto por ele.

Se fizéssemos paralelo com o cinema, encontraríamos este tipo de

movimento quando a câmera focaliza o ator que está olhando para determinado

lugar e muda de plano, passa do ator para o objeto visto por ele. Isso se chamaria

mudança de perspectiva, usando a câmera móvel indicada por Arnheim, que oferece

um efeito de realidade, porque o espectador está frente a um personagem que vê

algum objeto e logo em seguida este aparece na tela, criando uma relação de

sentido entre sujeito e objeto não só pelo fato de que o espectador precisa deste

último para compreender, mas porque, seguindo uma lógica gramatical, a pessoa

que vê está necessariamente obrigado a ver alguma coisa. Desta forma, poderíamos

dizer que “é como se os olhos do espectador estivessem dentro da câmera,

“SALÓN EL EGIPCIO”

Bar y baile todos los días desde

las 7p.m

Gran variedad de licores

nacionales y extranjeros (…)

Atendido gentilmente por su

propietaria

doña Florentina Barahúnda

Espinoza Meléndez

viuda de Mendoza (ESCUDOS,

2003, p.12)

62

tornando essa experiência, acessível aos olhos de todos” (ARNHEIM, s/d, p.119).

No entanto, no romance este tipo de técnica funciona de maneira diferente. Embora

que a corporificação do cardápio no corpo textual da narrativa atribua certo realismo,

este não funciona como uma forma mimética de representação da realidade, mas

oferece um “efeito de real” 15 daquilo que está sendo visto e lido pelo leitor, porque

ele vê corporificado o cardápio, mas não é mimético, porque não é da natureza

narrativa colocar um cardápio no texto, o que deforma o relato, quebra a seqüência

descritiva que a voz do narrador estava fazendo.

Os dois exemplos anteriores fazem parte de uma mesma cena, a primeira do

romance, mais adiante o cenário muda, passa a uma cena que não tem ligação com

a primeira, e a voz de quem fala é diferente. Não são mais os mesmos personagens,

mas é a voz de Cayetana-personagem que conta o episódio do dia em que

conheceu Homero para alguém não identificado. A cena começa com um fluxo de

consciência de Cayetana, que se lembra dela mesma nesse dia. Ressalta-se aqui

que, na hora de lembrar, ela não o faz narrando o fato rememorado, nem muito

menos descrevendo-o, Cayetana o reproduz atualizando-o, isto é, o traz para o seu

presente:

(…) volvamos a la escena del crimen, la noche de los hechos/ no, no puedo recordar la fecha/entonces, estoy sentada delante de esta copita transparente llena de tequila, pensando en todo lo que voy a sentir al día siguiente/estoy en el Salón “El Egipcio”/ por supuesto que estoy sola, ya sabes que siempre salgo sola/siempre quise conocer ese lugar (…) entonces, estoy velando la copita de tequila cuando miro una mano (que no es la mía), agarrar la copa desde mi flanco izquierdo. sigo con la mirada la copa que termina inclinándose frente a la boca de un perfecto desconocido (ESCUDOS, 2003, p. 15).

No trecho anterior não aparece nenhuma marcação explícita de passado, no

entanto este se faz visível pela frase “volvamos a la escena del crimen, la noche de

los hechos/no, no puedo recordar la fecha”, porque ela nos introduz no universo do

passado, também porque, na idéia de voltar a um acontecimento, encontra-se

15

Como compreendido por Sandra Contreras que diz, ao falar do realismo de César Aira, “el realismo de Aira quiere funcionar como um dispositivo orientado a la producción de un efecto de real. Efecto que resulta de una inmediata conexión con la realidad (…) que da como resultado una deformación del relato”. (CONTRERAS, 2005, p.19)

63

explícito o fato de que já não se está mais naquele tempo, nem naquele espaço,

porém a narração dos fatos é marcada pelo tempo presente dos verbos.

Outro elemento que chama a atenção neste trecho é o fato de que parece ser

um diálogo, porque as falas estão separadas por barras, mas o que causa

estranhamento é que aparentemente há só um interlocutor, pois não encontramos

nenhum sinal da existência de um alguém perguntando ou confirmando as

informações que estão sendo explicitadas. Ao utilizar o tempo presente para

descrever a cena, cria uma imagem visual, porque as frases estão carregadas de

mais força, a imagem fica mais clara aos olhos do leitor, isto é, o tempo presente faz

com que a imagem descrita se assemelhe à realidade, a uma imagem “vista” no

presente por esse leitor/espectador. Desta maneira a imagem se personifica.

Como vimos, o capítulo um da obra é uma mistura de cenas sem ligação

umas com as outras, são flashes, fragmentos de uma vida, que a narradora organiza

de tal forma que elas digam respeito ao que está sendo contado. Podemos dizer que

a história narrada no romance é a de um indivíduo (neste caso, a Cayetana) que não

se revela para os outros personagens, embora seja possível visualizá-la

fragmentada, porque o leitor tem acesso a episódios de sua vida.

Os dois capítulos que se seguem funcionam como uma suspensão dos

acontecimentos, isto é, uma suspensão da ação principal, porque o leitor é levado a

saber da vida de Cayetana pelo narrador. Apesar dos flashbacks encontrados pelo

leitor, que dizem respeito a alguns detalhes da vida da personagem, eles não

oferecem um conhecimento profundo e abarcador dela. O que acontece é que, como

uma janela, a narrativa nos mostra pequenos episódios da vida de Cayetana, dando

uma vantagem para o leitor, porque ele sabe o que Cayetana-personagem faz

quando não está com os seus amigos, o que responde à prerrogativa de um sujeito

múltiplo e diversificado, como apontado anteriormente.

Os flashbacks não funcionam só como suspensão da ação, mas também

como uma maneira de dialogar com o leitor, pois ao interromper a ação se cria um

efeito de suspense na narrativa, para que o leitor possa inferir na leitura, tal como

explicita Umberto Eco em Seis passeios pelos bosques da ficção.

64

Em toda obra de ficção, o texto emite sinais de suspense, quase como se o discurso se tronasse mais lento, ou até parasse, e como se o escritor sugerisse: “Agora tente você continuar...” Quando falei em passeios inferenciais, quis dizer, nos termos de nossa metáfora silvestre: a fim de prever o desenvolvimento de uma história, o leitor volta a sua experiência de vida ou seu conhecimento de outras histórias. (ECO, 1994, p.56)

Eco chama a atenção para duas coisas, a primeira é o efeito de lentidão da

narrativa, como se ela parasse. Na obra que analisamos, poderíamos dizer que não

é a narrativa que para, mas a ação principal, porque não vemos mais a Cayetana

interagindo com seus amigos, porém acompanhamos a lembrança da sua infância,

as divagações filosóficas sobre os acontecimentos, por isso se produz o suspense

na obra. A segunda observação mencionada pelo teórico é sobre as inferências que

o leitor faz nesse intervalo, o que provoca a participação mais ativa da leitura.

Quando Umberto Eco fala nesses passeios inferenciais, ele está se referindo

àqueles romances que se valiam de narrações extensas, que serviam para explicar

determinado tipo de história por trás dos personagens ou situações, ou para

explicitar as razões das ações dos personagens, embora também funcionassem

para contextualizar historicamente ou espacialmente a narrativa. Assim como os

amigos desejam saber da vida da personagem, o leitor responde ao mesmo desejo,

posto que o personagem é construído como um enigma, em vista da fragmentação,

da impossibilidade de totalização, de unidade, de coerência, de conhecimento. A

inferência do leitor favorece essa busca por encaixar as peças desse sujeito

desconexo.

Por outro lado, ao falar de recursos de montagem no cinema, Arheim define

este tipo de recursos (como a suspensão da ação, comentada anteriomente) como

“inserção”, que é a inclusão de cenas ou “fotogramas numa ação contínua”

(ARHEIM, s/d). Isso permite um sentido de profundidade e significação que leva

além de uma superficialidade da ação contínua, isto é, nos ajuda a compreender

melhor os fatos. No romance de Jacinta Escudos, este tipo de inserção funciona um

pouco diferente, porque antes de ser uma explicação dos fatos ou profundidade da

história, são episódios da vida da personagem. Com isso, o leitor é levado a um

mundo confuso, fragmentado, onde a ficcionalidade da construção da linguagem é

65

evidenciada. Dito de outro modo: é como se a escritora empírica tivesse os

acontecimentos brutos da história a ser narrada e faltasse polir e articulá-los numa

narrativa fluida e condicionada pela convenção romanesca. O que ela faz é

apresentar os fatos tais quais são, ao fazer isto Jacinta rompe a seqüência da

história, desconstrói a idéia de seqüencialidade e fragmenta a narrativa.

A ação é retomada no quinto capítulo intitulado “Plano de conjunto: Sanzívar

revisited” (ênfase meu), um capítulo que desde o título já estabelece um diálogo com

o cinema, como acontece com o primeiro. “Plano de conjunto” no cinema é “aquele

plano em que os objectos estão próximos de nós e sobressaem num plano amplo”

(ARNHEIM, s/d, p. 102), o que quer dizer que o espectador consegue enxergar a

totalidade dos elementos que compõem uma cena, que depois será esmiuçada em

planos menores. Este aspecto nos leva a pensar que em A-B-Sudario aconteceria a

mesma coisa, o que não é assim, porque, embora remeta diretamente à linguagem

cinematográfica, a técnica do cinema não funciona da mesma forma no romance. O

capítulo se abre com três diálogos, cujos participantes presume-se que sejam

Homero, Pablo Apóstol, El Fariseo e El Trompetista, pois isso não é especificado

pela narradora. São diálogos onde eles especulam sobre a figura de Cayetana, é

importante lembrar que neste momento o leitor tem a possibilidade de interferir na

leitura para tentar arquitetar uma definição para essa personagem, isto é, identificar

o que ela é ou possa ser ou fazer, revela-se aqui que para eles Cayetana é um

mistério, já que se concentram em três questões problemáticas sobre Cayetana, a

primeira: quem ela é? Pergunta que se faz latente no primeiro bloco de intervenções

onde dois ou mais amigos de Cayetana falam sobre um acontecimento em que

Cayetana tenta esconder os seus olhos: “-viste?/-se puso los anteojos para que no

le vieran sus ojos de caverna roja/-las grutas de la locura” (ESCUDOS, 2003, p.71).

É importante ressaltar o uso do símbolo do olho para exprimir a idéia do mistério que

Cayetana representa, pois metaforicamente esta parte do corpo tem sido

considerada como a janela da alma, aquilo que vai revelar o que o ser humano

realmente é. Por isso, o fato de Cayetana tentar esconder os seus olhos aqui é

importante, pois mediante essa prática ela esconde seu verdadeiro “eu”.

No segundo diálogo podemos deduzir a seguinte pergunta: o que Cayetana

faz? Porque vemos o aparecimento de quatro verbos, quatro possibilidades de

66

atividades que Cayetana realiza na ausência deles “-¿duerme?/-sueña/-tal vez

olvida/-en realidad muere” (ESCUDOS, 2003, p.71). O terceiro diálogo nos leva ao

tipo de vida que Cayetana poderia levar: “-vive como nazi/-vive como monja/-como

ermitaño en las montañas del Tíbet/ ella se siente toda una sor Juana Inés de la

Cruz, vestida de monja y rodeada de libros” (ESCUDOS, 2003, p.71). Sendo este o

último dos três diálogos, ele nos oferece toda uma gama de possíveis estilos de vida

de Cayetana, revelando a incerteza, pois todos os personagens têm uma opinião

diferente da mesma pessoa. Neste caso, o leitor não encontra uma forma ampliada

nem da ação, nem de cena alguma, mas se depara com diálogos soltos que em

conjunto oferecem planos das relações criadas entre os personagens em torno da

figura da Cayetana, acentuando-a como núcleo do conflito nesta obra de Escudos e

fundamentando o processo de desdobramento em personagem, narradora e

suposta-autora, pois ao não descobrir a identidade de Cayetana, nem os

personagens, nem mesmo o leitor pode identificar uma unidade nesse ser em

conflito.

Do ponto de vista formal, observamos que estes três diálogos estão

separados no espaço físico da página, isto é, estão dispostos de tal forma que o

leitor possa perceber que são momentos diferentes na vida dos personagens, o que

oferece um ar de paralelismo da ação, não sendo possível saber se um aconteceu

antes ou depois do outro. Nesse sentido, não encontramos nenhum traço de

narratividade seqüencial, as imagens não são intermediadas pela voz da narradora.

Temos, por outro lado, uma suposta-autora que combina os diálogos ou fragmentos

de diálogos que mais interessam à dinâmica de sentido do romance. Neste caso,

são organizados de tal maneira que ajuda a delinear a figura de Cayetana, cujo elo

passa a ser contingente e temática: o bar, a amizade e Cayetana.

Neste capítulo, como no primeiro, também é possível observar diferentes

“cenas”, que resumiremos em quatro blocos, o primeiro é a agrupação de diálogos

explicitados linhas acima, o segundo é a reunião de dois diálogos em que Cayetana

conversa com Pablo Apóstol e Homero, sendo estes dois momentos também cenas

diferentes sem conexão uma com a outra.

A cena em que Cayetana e Pablo Apóstol conversam se centra no que

Cayetana faz de sua vida ou o que ela deveria fazer. Novamente a voz da narradora

67

se apaga para dar espaço ao diálogo, à imagem das duas personagens, a única vez

em que ela aparece é para situar no espaço a Cayetana e Pablo Apóstol, “la

Cayetana medita un momento, mientras mira las olas del mar” (ESCUDOS, 2003, p.

73), depois dessa marcação o leitor sabe que os personagens se encontram na casa

da praia de Cayetana.

Imediatamente depois desta “cena”, passa para outra, os participantes são

Homero e Cayetana. Neste momento, eles falam sobre o que ela faz quando não

está na companhia dos seus quatro amigos. O diálogo se abre com a seguinte

pergunta: “¿qué haces cuando estás sola?”, Cayetana tenta argumentar para não

responder. Neste episódio também vemos que a voz narradora desaparece quase

por completo, apesar de ainda fazer uma intervenção. Como na cena anterior, ela só

aparece para aludir ao lugar onde acontece o encontro, pois esta voz comenta e

sitúa os personagens: “las palabras resuenan como un eco en la cabeza de Homero.

la Cayetana hunde su mirada en el vaso, en el lago de la adivinación del licor”

(ESCUDOS, 2003, p. 77). Isso faz pensar ao leitor que os personagens se

encontram num bar. Como salientado no capítulo anterior, Cayetana-narradora,

intervém na narrativa como delineadora de espaços em que a ação se concretiza,

além de acompanhar os movimentos desses personagens.

O capítulo se fecha circularmente, pois a ação volta aos quatro amigos

(Homero, Pablo Apóstol, El Fariseo e El trompetista) numa conversa que gira em

torno a Cayetana, retomando as questões sobre o que ela faz quando eles não

estão por perto.

O capítulo seguinte também dialoga diretamente com o cinema, já que se

intitula “Zoom: La virginidad se pierde por la nariz”. No cinema, esta técnica funciona

em conjunto com um plano fixo, primeiramente porque o zoom, tanto no cinema

quanto na fotografia funciona como ampliação de um objeto, pessoa ou um plano

em geral e um plano fixo. Ao contrário de um plano em movimento ajudado pela

câmera móvel, é aquele momento em que a cena se congela. Como Arnheim

salientou, isto oferece uma sensação de “estatismo rígido, porque o factor tempo dos

planos móveis é levado aos planos fixos” (ARHEIM, s/d), o que supõe uma parada

na continuidade da narrativa fílmica colocando o espectador frente a uma

irrealidade, levando-o ao mundo dos sonhos, do imaginário, tal como entende

68

Deleuze. Este tipo de técnica, também oferece uma aproximação do detalhe em

detrimento da totalidade.

No romance, este capítulo não funciona como uma parada no movimento,

pois o movimento não desaparece, mas como uma aproximação ao mundo de

Cayetana, isto é, aproxima o leitor da figura de Cayetana por intermédio de imagens

descritivas, sendo a primeira estática, que serve como introdução ao movimento e

divagações mentais da personagem:

las manos. manos de dedos finos, largos. uñas cortas, limpias, cuadradas. vellos en las falanges, en el dorso (…) „sujeto caucásico‟ según la jerga de los forenses (batas desinfectadamente blancas, mascarillas sobre el rostro, guantes de plástico transparente) (…) y sin embargo, manos de alguien aún con vida. - “vida”, dijo? (ESCUDOS, 2003, p. 83)

Importa ressaltar como a imagem é construída, primeiramente temos a frase

“las manos”, logo em seguida a configuração dessas mãos. O narrador passa depois

a uma imagem mais geral, passa a uma descrição das pessoas que estão olhando

para essas mãos. A voz narradora descreve essas pessoas e no final o leitor se

encontra frente a uma imagem complexa que, diferente do cinema, não chega com

todos os seus componentes de uma vez só, porque ela precisa do tempo em que a

frase é construída, como já apontava César Guimarães, a literatura que tenta

incorporar a visualidade imagética do cinema “distribui os signos numa sintaxe,

fazendo com que o visível surja pouco a pouco, através da reunião da vizinhança de

um signo a outro” (GUIMARÃES, 1997), porém também há que se considerar que

não se trata de aproximação, mas de afastamento, pois num primeiro momento o

leitor só tem uma imagem: “las manos”, porém à medida que a leitura avança, a

narradora vai afastando sua “lupa”, fazendo com que o campo de visão seja mais

abrangente. Este afastamento chega ao devaneio, à dispersão e posterior retorno

com a pergunta: parece elaborar o momento da loucura, a percepção breve do

atendimento para a overdose16 e o retorno à consciência. Jacinta Escudos revela

este artifício mediante a disposição das frases, porque a narradora coloca como

16

Devemos lembrar que Cayetana é uma mulher que encontra no mundo das drogas uma forma de

fugir da crise que ela vive em relação a sua falta de unidade.

69

primeiro elemento as mãos, depois os detalhes delas, como foi citado linhas acima.

Mas o momento estático da imagem acaba na última frase, em forma de pergunta,

pois o que o leitor encontra logo em seguida é o movimento dessas mãos

mencionadas antes, é explicitado o percurso dessas mãos em busca de alguma

coisa que é especificada à medida que a imagem das mãos em movimento vai se

construindo.

la mano se mueve, hurga entre objetos dispuestos al azar en una gaveta (no sabemos qué busca, pero el movimiento nervioso, ansioso de la mano nos afirma que es algo urgente, algo buscado con desesperación) (…) mano urgente papeles visión esporádica rápida apretada de palabras olvidadas tachadas del privilegio de la memoria máquina de escribir tipo recto sencillo nada extraordinario blanco sobre negro miles de palabras cientos de frases cuadernos papeles escondites latas cajetillas de cigarros vacías cajitas de fósforos (…) basura en el suelo telarañas polvo convertido transformado momentos de memoria momias Egipto. qué joda. siempre momias y Egipto. (ESCUDOS, 2003, p.84)

Como mencionado anteriormente, o objeto procurado pelas mãos desse

personagem não especificado é construído na medida em que a leitura avança, ele

não é revelado de início. A própria voz narradora salienta esse fato colocando-o

entre aspas, “no sabemos qué busca”, embora ela saiba que a busca e o movimento

das mãos é desesperado. A partir desse momento, a leitura começa a dinamizar-se,

pois a pontuação desaparece e isto faz a leitura mais rápida, superpondo imagens

por meio dos substantivos sem conectores. Como o movimento de uma câmera, a

narradora leva o leitor exatamente para os pontos que ela quer mostrar, aumentando

a resolução deles pelo efeito da “lupa” dessa narradora, colocando os elementos na

sua voz. Quando ela não consegue exprimir a complexidade da situação, nessa

aproximação, a suposta-autora interfere, fazendo uma conexão entre a voz

narradora e sua própria experiência criadora. Neste caso, a voz de Cayetana-

suposta-autora se diferencia da voz da narradora novamente pelo artifício

tipográfico, colocando a letra em itálico e entre parênteses:

la mano insiste, la mano sabe, algo por allí, encima del escritorio, entre lápices con la goma masticada y rota, entre la exactitud de sus listas de supermercado guardadas como un documento valioso para rearmar su cotidianidad (cuando mis biógrafos quieran hablar de esas pequeñas

70

intimidades de la vida doméstica que nadie me conoció porque no convivió conmigo/porque tuvieron miedo/tantos hombres llenos de miedo/) sacude la cabeza. la mano busca (...) (ESCUDOS, 2003, p.85)

Cayetana-narradora funciona como uma “câmera móvel que acompanha os

actores por compartimentos da casa” (ARNHEIM, s/d, p. 119), o que oferece uma

narratividade para o que o espectador está observando, pois as coisas acontecem

uma após a outra. No entanto, esse “movimento” não significa necessariamente que

o romance ganhe um tom de sequência na narrativa, pois o efeito causado por esse

olhar do narrador sobre as ações da personagem é proporcionar à leitura uma

visualidade de maior tamanho, isto é, aproximar as palavras do objeto mediante uma

imagem mais semelhante a ele mesmo, isto é, à imagem da fragmentação. Então

podemos dizer que o capítulo funciona como zoom na medida em que é revelado

para o leitor cada detalhe que faz parte da cena, é o momento do romance em que o

leitor é levado de certa forma ao mundo de Cayetana. Embora não a defina, por ela

carregar o sentido da differance, a deixa mais próxima do leitor.

No capítulo sete, a referência ao cinema aparece novamente, pois é

intitulado como Plano cercano: conversaciones sin la catedral, que por um lado nos

aproxima do mundo cinematográfico, mas também nos remete ao mundo literário

latino-americano, pois conversaciones sin catedral remete de forma direta ao

romance Conversaciones en catedral, de Mario Vargas Llosa.

Da mesma forma que o primeiro capítulo, este se abre como uma espécie

de rubrica, só que desta vez não oferece uma descrição do ambiente em que os

personagens interagem. Pelo contrário, como os capítulos anteriores estavam

impregnados por um tom mais psicológico, este funciona como fechamento dessa

introspecção dos personagens para privilegiar a abertura e certa continuidade da

ação.

después de esta pequeña sensación de desolación pasamos al siguiente cuadro dramático: tarde repleta de suicidios, trenes que comienzan una historia de despedida, la ciudad hermética, cavadora de tumbas en su cemento, un hambriento tótem de metal y ruidosos silencios, tan largos como la distancia de aquí a cualquier parte. (ESCUDOS, 2003, p. 133)

71

Quando o capítulo se abre com “después de esta pequeña sensación de

desolación”, ele leva o leitor ao capítulo imediatamente anterior que revelava alguns

dos sentimentos de angústia de Cayetana. A suposta-autora reconhece que as

páginas anteriores foram um “desabafo” pessoal da personagem, mas que “o show

deve continuar”, por isso ela passa a descrever não um cenário, mas um contexto

social-espacial dos personagens. Ao mesmo tempo é um capítulo introdutório à

despedida de Cayetana, porque, como mencionado no começo desta análise, ela se

reencontra em Sansívar com seus amigos, mas o seu lugar de residência é outro

país, denominado Karma Town. Este capítulo funciona como o preâmbulo dessa

partida, dessa volta à vida “real”.

Plano cercano, nos remete aquele tipo de plano que Arnheim vai chamar de

plano em pormenor, que são os detalhes ou fatos que compõe um grande plano,

mas que não foram destacados. Este tipo de técnica dá uma sensação de que o

espectador faz parte daquela realidade representada na tela. No romance, aproxima

o leitor ao tipo de relação que Cayetana mantém com cada um dos seus amigos. A

partir deste capítulo o romance toma um rumo mais intimista, mediante o uso de

imagens superpostas vai ressaltar a crise de identidade dos personagens,

principalmente de Cayetana, para levar ao último capítulo, intitulado Oscurecimiento:

La preciosa exactitud de la melancolía, que conforma as últimas vinte páginas do

livro.

Este é um capítulo em que a voz interna de Cayetana se faz mais forte e as

divagações sobre a vida e a morte são cada vez mais explícitas. O ar de decepção

ou conformidade perante a vida é muito evidente desde o começo, onde a voz

narradora se adentra nos pensamentos de Cayetana. Também dialoga com ela: em

fluxos de consciência a personagem vai se declarando como um indivíduo cansado

da sua vida. No nosso ponto de vista, “cansado” não só como personagem daquela

história fragmentada, mas como uma representação da crise do indivíduo na

sociedade atual, como mencionado no capítulo anterior. Com isto, a suposta-autora

consegue o fechamento, o escurecimiento dessa história que não acaba.

72

O interessante é que não é só Cayetana quem se despede da história, da

vida, no romance, mas a suposta-autora fala para esta personagem que o tempo de

vida no romance acabou para elas, que devem partir para fazer outra coisa, reviver

para outra vida, confirmando a análise anterior, em que argumentávamos que

Cayetana-personagem é uma projeção dessa autora, o que produz uma ilusão de

ótica.

... decirte que mi tiempo contigo terminó. desde que te conocí debiste sospechar que nuestro final estaba marcado: todo lo que empieza, por el simple hecho de comenzar, tiene marcado un final. todo en esta vida termina. todo es muerte. y muerte no es destrucción. es apenas otra manera de ser. la puerta que tanto buscabas Cayetana (…) nuestro tiempo terminó. (ESCUDOS, 2003, p. 255)

A suposta autora adverte à própria Cayetana que o tempo delas (da

narradora e de Cayetana) terminou e que não tem como voltar atrás. Este diálogo

constante que a suposta-autora mantém com Cayetana é muito importante porque

anuncia o fechamento do romance, pois a morte possibilita a experiência da

proximidade de uma outra existência, que não precisa reunir os fragmentos da figura

de Cayetana por meio da escrita, mas aceitar-se como sujeito cindido.

Em A-B-Sudario encontramos um jogo com as palavras para que elas, na

sua condição material, construam imagens e se sustentem sobre uma relação

metalingüística, visto que, mediante a consciência narradora, a autora coloca os

fatos de forma aleatória, sem obedecer a uma ordem cronológica, para evidenciar

negativamente aquilo que conforma uma obra romanesca. Assim sendo, o leitor está

diante de um quebra-cabeça que o desafia a armá-lo, sem que tenha um sentido

único, muito pelo contrário, espera desse leitor que atribua seu sentido, como um

jogo do qual o leitor é convidado a participar.

Em Seis passeios pelos bosques da ficção, Umberto Eco assinalava para

dois pontos na construção de um romance, um que ele denomina como fábula e o

outro como enredo: tanto um quanto outro, no seu ponto de vista, são elementos

facilmente reconhecíveis em todo romance. De fato o são, com a ressalva de que a

73

convenção tem nos ensinado que a fábula da forma tradicional é mais palpável do

que o enredo. Numa proposta expressiva no contexto da pósmodernidade, Jacinta

Escudos vai potencializar o conceito de enredo e vai encontrar nele uma nova forma

de fazer narrativo, colocando esse esquema “narrativo” visível aos olhos do leitor, o

que nos leva a pensar que o que importa não é o que contar, mas o modo de contar:

a história que o romance conta é a história do processo de criação, da crise da

expressão da suposta autora que a projeta sobre o seu personagem, evidenciando-a

na linguagem cinematográfica que chama a atenção para o processo artificial da

escrita.

Como vimos, o romance se apresenta como uma espécie de “roteiro

fílmico”, pois cada capítulo indica uma “etapa” da produção cinematográfica, assim

temos o primeiro capítulo intitulado “Panorámica: te pareces a uma película que

nunca vi”; outros, “plano de conjunto”, ou, “zoom: la virginidad se pierde por la nariz”,

até chegar ao último chamado “Oscurecimiento: la preciosa exactitud de la

melancolía”. Se o romance se apresenta em forma de roteiro cinematográfico, não

será para construir uma história ao modo determinado pela convenção romanesca

como narrativa, mas vai se apresentar como uma decopagem, conforme entende

Ismael Xavier, que no cinema será a decomposição dos planos e cenas do filme,

onde o diretor deverá organizar a forma que ele preferir para o seu filme.

Para concluir, retomamos a proposta do começo deste capítulo: A-B-

Sudario resgata os processos cinematográficos para orquestrar uma nova forma de

expressão potencializada, constituindo um romance que privilegia a expressão

imagética-fragmentada. Quando falamos em nova forma de expressão

potencializada, ressaltamos a importância que os aspectos formais têm na obra,

expandindo-os de tal forma que eles se fazem visíveis e dinâmicos, contribuindo

para a composição narrativa. A visibilidade se deve a cada detalhe formal como a

falta de pontuação, as diferenciações tipográficas, a falta do narrador como guia da

história narrada, o que dá lugar ao aparecimento de imagens verbais. Além disso, o

dinamismo da justaposição dos fragmentos, do jogo da descontinuidade, é criado

pelos procedimentos cinematográficos utilizados pela consciência organizadora da

suposta-autora, que neste romance de Jacinta Escudos projeta uma ponte de

74

sentido para além das palavras, no campo dos referentes culturais latino-americanos

e universais, pois a crise expressada por este sujeito é também a percepção de todo

sujeito contemporâneo na busca de sentido para a sua existência.

75

5. Conclusão:

A modernidade e a pósmodernidade têm passado por um processo de

estruturação longo, decorrente de vários fatores – econômicos, culturais, sociais,

simbólicos –, mas principalmente têm significado uma visão de mundo transformada

e re-descoberta ao longo da história, onde os princípios que fundamentaram a

autonomia do pensamento humano foram re-elaborados. Na esfera artística, isso

tem significado uma constante re-elaboração e destruição de conceitos, na

perspectiva da ruptura como telos da modernidade, conforme indicaram Octavio Paz

ou Frederic Jameson. A modernidade se caracteriza pelo questionamento e negação

das estruturas de poder, delimitadas pelas diferentes áreas de conhecimento, cujo

intuito foi destruir tudo o que tinha sido elaborado até meados do século XIX.

Dentro desse contexto de ruptura com a história e com as convenções

sociais, ocorre um redirecionamento do papel do sujeito, este se vê descentrado,

sem nenhuma base fixa que determine seu comportamento e sua maneira de ser no

mundo. Desta maneira, a concepção tradicional de sujeito entra em crise, como

vimos que, por sua vez, responde a uma prerrogativa do próprio sujeito

contemporâneo ao propor novas formas de existência, gerando uma multiplicidade

de identidades irredutíveis entre si.

Posteriormente, como consequência da decadência da cultura européia e

das desilusões expressadas pelo espírito de revolta das vanguardas, a

pósmodernidade, difundida nos meios literários norte-americanos, propôs a

recuperação anacrônica de alguns elementos para uma possível renovação das

diferentes expressões artísticas. No entanto, essa recuperação não é a simples

repetição de modelos antigos, muito pelo contrário, significou a retomada de

elementos discursivos e criativos, por exemplo, de diferentes linguagens para serem

aplicados em distintos contextos que não o habitual.

No nosso trabalho, vimos como a linguagem literária de ficção incorpora

certas técnicas da filmografia (a montagem, a decopagem, movimentação da

câmera para captar diferentes ângulos, por exemplo), com o intuito de ressignificá-

las e potencializar desta maneira a palavra.

76

Ao propor um diálogo entre cinema e literatura, A-B-Sudario apresenta uma

proposta pósmoderna do fazer literário, onde se quebra a fronteira de ambas as

expressões, sendo assim possível um trânsito do cinema no fazer literário, que

comporta tanto a parte formal como a que se refere ao seu conteúdo, como já foi

estudado. Com isto, Jacinta Escudos não pretende transformar uma linguagem em

outra, pois isso seria uma tarefa impossível devido à natureza tão diferente dos

regimes sígnicos, porém propõe, como dito anteriormente, a potencialização da

palavra, o que significa levar a construção de sentido para além da sua natureza,

permitindo a articulação referenciais diversificados. Ela se encontra na fronteira da

imagem através do uso da linguagem cinematográfica que ela faz, pois, como

apontou o escritor hondurenho Roberto Castillo: “la novela ya no construye

identidades”17, nem de nações, nem de indivíduos e, portanto, a narrativa precisa se

desligar da sua “identidade” romanesca. Desta maneira, em A-B-Sudario o cinema

interfere na construção identidade da da narrativa, fragmentando-a e rompendo com

a linearidade da história dos personagens.

A primeira hipótese do trabalho foi a ressignificação da palavra pela

linguagem do cinema, com a única finalidade de potencializá-la na sua

materialidade. Porém, através das diferentes leituras, descobrimos que o uso das

técnicas cinematográficas na construção da narrativa responde a uma prerrogativa

anterior à forma, que é a de evidenciar a fragmentação do sujeito pósmoderno,

como Cayetana, uma mulher que não possui uma identidade “nacional”, nem

individual ou feminina, e nem pretende cultivá-la. No entanto, esta falta de eixo

central a angustia e a joga ao mundo das drogas e da bebida para fugir da sua

realidade, desafiando, desta maneira, as convenções sociais. Para poder observar

esses fragmentos de sua vida, Cayatena suposta-autora ficcionaliza sua própria

figura, criando a Cayetana personagem que, por sua vez, é rastreada pela lente da

narradora que capta seus movimentos e seus espaços de ação, o que lhe permite

sair de si mesma para observar a sua ipseidade e aceitar-se como ser múltiplo.

17

Cf. CASTILLO, Roberto. El cuerpo como cruento campo de batalla. Disponível em: http://collaborations.denison.edu/istmo/n06/foro/cuerpo.html. Acesso: 24 de agosto de 2009 às 14hrs30min.

77

Vemos, portanto, que o romance possui dois planos de análise, pois ele é

resultado de uma estratégia narrativa bem elaborada, que são dependentes entre si:

o primeiro responde à fragmentação da narrativa através das técnicas

cinematográficas, o segundo diz respeito do desdobramento da figura de Cayetana

(personagem, narradora e suposta-autora). São dependentes entre si, pois a

fragmentação do sujeito e a perda da legitimidade da palavra como forma de

representação da realidade, enquanto tema da obra, não fariam sentido se o

romance apresentasse uma organicidade na sua construção.

As perguntas geradas a partir dessas considerações são as seguintes:

porque propor a incompletude da escrita como o elemento que evidenciaria a crise

do sujeito? E por que a escolha da linguagem cinematográfica como elemento

dinamizador e potencializador da escrita dessa crise? Em relação à primeira

pergunta, devemos lembrar o que apontávamos no segundo capítulo desta

monografia, que era a condição de fábula do sujeito o que nos fez pensar que tanto

as identidades culturais como as individuais são uma convenção discursiva, ou o

seu significado como verdade absoluta, que imperou durante muito tempo no

pensamento intelectual da cultura ocidental. Desta maneira, podemos dizer que o

uso da impossibilidade palavra como forma de representação se deve a que ela

“condensa los vericuetos del ser” (CASITILLO, 2003), o que quer dizer que é a

própria palavra que comporta dentro de si a fragmentação da existência e o

rompimento das identidades.

Para responder à segunda pergunta é importante lembrar que o cinema

norte-americano faz parte do conjunto que configura a cultura de massas, e que a

sua propagação nos países hispano-americanos foi de grande escala na segunda

metade do século XX. Deste modo, foi uma forma de difundir os padrões e estilos de

vida de uma sociedade consumista, permitindo a interferência direta do imperialismo

norte-americano nas políticas econômicas dos países hispano-americanos e dando

suporte para as ditaduras.

Sem dúvida nenhuma não esgotamos as possibilidades de análise da

relação existente entre as linguagens literária e cinematográfica, nem as questões

que lhe dizem respeito, o que tentamos fazer com este trabalho foi a abordagem de

78

uma das possibilidades dessa relação. No caso da obra da escritora Jacinta

Escudos, ela responde em primeiro lugar a uma preocupação com a estética centro-

americana onde, mesmo nos dias de hoje, persiste uma preocupação muito grande

por retratar a realidade nacional e seus problemas cotidianos, o que não significa

que seja uma literatura sem valor. No entanto, a autora propõe nesta obra que essa

não é a única forma do fazer literário.

Em segundo lugar, a relação entre uma linguagem imagética e outra

narrativa responde a uma preocupação com a condição humana na atualidade, da

qual partilha de alguma maneira, pois, como ela mesma afirma, caracteriza um

esforço por “trascender de la realidad cotidiana y tratar de componerla a partir de la

imaginación”.

79

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