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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de Morais AS NOÇÕES DE MASCULINO(ἄρρεν) E FEMININO(θῆλυ) NO TRATADO DA MÚSICA DE ARISTIDES QUINTILIANO CURITIBA 2014

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

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Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANAacute

Fernando Luiacutes Barreto de Morais

AS NOCcedilOtildeES DE MASCULINO(ἄρρεν) E FEMININO(θῆλυ)

NO TRATADO DA MUacuteSICA DE ARISTIDES QUINTILIANO

CURITIBA

2014

FERNANDO LUIacuteS B DE MORAIS

AS NOCcedilOtildeES DE MASCULINO(ἄρρεν) E FEMININO(θῆλυ)

NO TRATADO DA MUacuteSICA DE ARISTIDES QUINTILIANO

Monografia apresentada agrave disciplina

Orientaccedilatildeo Monograacutefica II como

requisito parcial agrave obtenccedilatildeo do grau de

Bacharel em Letras

Orientador Prof Dr Roosevelt Arauacutejo da Rocha Juacutenior

CURITIBA

2012

Y a-t-il une possibiliteacute pour que dans le creacutepuscule

nous puissions saisir quelque chose de ce qui a eacuteteacute

lrsquoaurore Y a-t-il quelque chose qui dans le dernier

moment reponde au premier moment Nous sommes

peut-ecirctre dans une nuit qui va preacuteceacuteder un nouveau

jour

Nous sommes agrave la veille du plus enorme changement

sur la terre Est-ce que dans cette nuit nous ne

pouvons pas avoir quelques clarteacutes sur ce quit fut

lrsquoaube de la penseacutee humaine et sur lrsquooriginaire agrave

venir

Martin Heidegger

(Arnoux 1960 p8 apud M Jean Wahl Lrsquoideacutee drsquoecirctre chez Heidegger 1951)

RESUMO

O tratado Da Muacutesica de Aristides Quintiliano eacute provavelmente o mais completo registro da

estreita relaccedilatildeo entre reflexatildeo filosoacutefica e teoria musical na Greacutecia Antiga Neste trabalho

busco de iniacutecio mapear o perfil descritivo das noccedilotildees de masculino (ἄρρεν) e feminino (θῆλυ)

centrais no tratado de Quintiliano para a concepccedilatildeo da muacutesica como um sistema

cosmoloacutegico e um saber interdisciplinar Em seguida interrogo o estatuto loacutegico e ontoloacutegico

desses conceitos e por fim busco compreender o raciociacutecio analoacutegico decorrente do emprego

que Quintiliano daacute a essas noccedilotildees

Palavras-chave Da Muacutesica Aristides Quintiliano Masculino Feminino

ABSTRACT

Aristides Quintilianusrsquo On music is probably the most accomplished treatise documenting the

close connection between philosophical thought and musical theory in Ancient Greece In this

work I intend to scrutinize through descriptive lens at first the notions of masculine

(ἄρρεν) and feminine (θῆλυ) which play a substantial role in Quintilianusrsquo conception of

music as a cosmological system and interdisciplinary science Then I ask questions about the

logical and ontological basis of those notions and finally I try to understand the analogical

reasoning they seem to imply

Keywords On music Aristides Quintilianus Masculine Feminine

SUMAacuteRIO

1 Introduccedilatildeo 7

2 Masculino e feminino 10

21 Meacutelos e rhythmoacutes 10

22 Corpo e alma 13

23 Os conceitos 18

24 As letras 20

25 As vogais e o solfejo 22

26 A muacutesica das esferas 30

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico 33

4 Agrave guisa de conclusatildeo 42

BIBLIOGRAFIA 43

7

1 Introduccedilatildeo

A abstraccedilatildeo eacute o pecado original de toda ciecircncia e eacute perfeitamente natural que seja

assim Nossa linguagem natildeo pode pretender abarcar numa visada uacutenica os muacuteltiplos aspectos

de um objeto qualquer sem multiplicar ao mesmo tempo as razotildees de equiacutevoco Eacute por isso

que para a compreensatildeo de um uacutenico objeto satildeo necessaacuterias dezenas de ciecircncias que o

enfoquem sob os diversos pontos de vista O uacutenico incoveniente eacute que no mais das vezes

dezenas de aspectos natildeo chegam a formar um objeto de modo que enquanto o olho continua

enxergando um mundo onde a cabeccedila estaacute sobre o pescoccedilo a inteligecircncia vai compondo para

si um universo cada vez mais cubista

Este trabalho fiquem tranquilos natildeo pretende atacar este problema pelo menos

natildeo diretamente Nosso objetivo eacute expor (e na medida do possiacutevel quem sabe ateacute

compreender) como mediante o emprego de uma ferramenta intelectual simples (e

ultrapassada segundo a opiniatildeo corrente que com frequecircncia esquece ou sequer percebe o

quanto a ela tem recorrido) nosso autor pretendeu romper fronteiras ontoloacutegicas e oferecer

uma descriccedilatildeo unificada do mundo submetendo nesse processo conhecimentos de ordem

absolutamente heterogecircnea (que vatildeo da astronomia agrave ciecircncia poliacutetica da psicologia agrave criacutetica

literaacuteria) a um mesmo par de conceitos

Nosso autor chama-se Aristides Quintiliano e o seu livro eacute o tratado de teoria

musical intitulado Da Muacutesica (ΠΕΡΙ ΜΟΥΣΙΚΗΣ ΤΡΙΤΟΝ) obra em que todos os esforccedilos

convergem para um objetivo bastante ambicioso integrar numa visatildeo unitaacuteria os variados

aspectos daquilo que a cultura grega um dia produziu sob o nome de μουσική empreitada que

demanda uma articulaccedilatildeo entre duas vertentes rivais no campo da teoria musical a tradiccedilatildeo

pitagoacuterica e a tradiccedilatildeo aristoxecircnica Nos bastidores dessa articulaccedilatildeo onipresentemente estatildeo

Aristoacuteteles e Platatildeo

Desconhece-se quem tenha sido historicamente o indiviacuteduo que atende por

Aristides Quintiliano Alguns sustentam1 que tenha sido um escravo de Marcus Fabius

Quintilianus outros que tenha sido seu filho e outros ainda que seja o proacuteprio autor da

Institutio oratoria Haacute tambeacutem a hipoacutetese de que tenha sido um saacutebio da corte do imperador

Adriano embora natildeo se possa precisar qual deles exatamente (por ora satildeo duas as

alternativas)

1 Para mais detalhes sobre essas hipoacuteteses Mathiesen 1983 p11-12

8

Agrave indecisatildeo quanto agrave identidade do autor soma-se a incerteza na dataccedilatildeo da obra

Quintilino por um lado cita Ciacutecero (assassinado em 43 aC) e de outro foi usado como fonte

por Martianus Capella na redaccedilatildeo do livro IX do seu De nuptiis Philologiae et Mercurii

Como a redaccedilatildeo do De nuptiis eacute datada da primeira metade do seacutecV dC os comentadores

concordam em situar o De muacutesica e seu autor entre o I e o IV seacuteculos depois de Cristo

No conjunto da tratadiacutestica musical grega o De muacutesica ocupa ao lado dos

Elementos Harmocircnicos de Aristoacutexeno (segunda metade do seacutecIV aC) e da Harmocircnica (que

data de meados do seacutec II dC) de Ptolomeu um lugar de destaque Dentre esses trecircs

principais tratados no entanto o de Quintiliano eacute o uacutenico a nos oferecer uma ldquoexposiccedilatildeo

completa dos aspectos filosoacuteficos da muacutesica gregardquo (COLOMBER L GIL B 1996 p19)

Este trabalho objetiva abordar apenas um desses aspectos filosoacuteficos as noccedilotildees de masculino

(ἄρρεν) e feminino (θῆλυ)

No De muacutesica as noccedilotildees de masculino e feminino cumprem um papel estrateacutegico

Eacute essa dualidade que como princiacutepio estruturante fundamenta a doutrina dos eacutethe musicais

na sua interaccedilatildeo simpaacutetico-eacutetico-pedagoacutegica com as potecircncias da alma Trata-se aleacutem disso

de um princiacutepio que atua sobre todo o mundo corpoacutereo analogando os entes deste mundo uns

com os outros e estes mesmos por sua vez com as realidades celestes

Todavia embora Quintiliano apoiado na ferramenta da analogia e mediante o

emprego das noccedilotildees de masculino e feminino alcance conceber e expor uma visatildeo more

musicale demonstrata unitaacuteria do universo nem por isso se daacute o trabalho de tratar mais

detidamente dessas duas noccedilotildees e se insinua fazecirc-lo eacute sempre em funccedilatildeo de um objetivo

descritivo imediato Quanto agrave analogia expediente dos mais frequentes no De muacutesica

Quintiliano natildeo chega a abordaacute-la como uma teoria em si mesma embora expediente e teoria

estejam ambos em seu tratado indissociaacutevel e necessariamente ligados

Meu objetivo aqui eacute tratar particularmente das noccedilotildees de masculino e feminino e

natildeo do modo como essas noccedilotildees fundamentam as doutrinas esteacuteticas poliacuteticas pedagoacutegicas

cosmoloacutegicas ou metafiacutesicas relacionadas agrave reflexatildeo musical grega Assim na primeira parte

do trabalho busco traccedilar um perfil descritivo inicial partindo para isso das passagens

traduzidas e comentadas em que Quintiliano emprega ilustra ou explica essas noccedilotildees Num

segundo momento tento sondar o estatuto loacutegico e ontoloacutegico das noccedilotildees de masculino e

feminino sem no entanto extrapolar o acircmbito estritamente cosmoloacutegico no qual Quintiliano

se deteacutem

Como Quintiliano divide o tratado em trecircs livros ndash um primeiro dedicado agrave arte

musical propriamente dita ou muacutesica audiacutevel um segundo que trata da muacutesica enquanto

9

ferramenta pedagoacutegica e imagem da alma e um terceiro livro no qual aborda os fundamentos

matemaacuteticos e cosmoloacutegicos dos livros anteriores ndash e como as noccedilotildees de masculino e

feminino satildeo abordadas sempre a propoacutesito mas sem ordem aparente ao longo de todos os

trecircs livros resulta absolutamente impossiacutevel natildeo avanccedilar em saltos Pretendi minimizar esse

inconveniente seguindo estritamente a ordem da exposiccedilatildeo (teria seguido a ordem das razotildees

se tivesse encontrado alguma) Tentei tambeacutem nos comentaacuterios agraves passagens preencher os

hiatos expositivos informando o contexto de onde cada passagem foi retirada

Na seleccedilatildeo das passagens a analisar foi preciso excluir algumas (natildeo muitas) cujo

conteuacutedo natildeo fosse especialmente relevante para o objetivo deste trabalho Os trechos

excluiacutedos constituem-se sobretudo de informaccedilotildees jaacute dadas ou de simples menccedilotildees dos

termos masculino e feminino Fico grato a quem me possa informar alguma omissatildeo

imperdoaacutevel

Disse acima que as noccedilotildees de masculino e feminino tecircm papel estrateacutegico no

tratado de Aristides Quintiliano Natildeo eacute sem estrateacutegia igualmente que essas noccedilotildees satildeo

apresentadas ao leitor A Q abre os capiacutetulos iniciais do livro I expondo os motivos (a

ignoracircncia e leviandade dos seus contemporacircneos com relaccedilatildeo agrave musica) e o escopo da sua

iniciativa A muacutesica para ele natildeo eacute um divertimento banal mas a ordem impliacutecita por traacutes da

natureza

Concluiacutedo o preacircmbulo ele desce das alturas e passa a tratar da muacutesica stricto

sensu No capiacutetulo 5 do livro I propotildee uma divisatildeo da mateacuteria em duas partes muacutesica praacutetica

e muacutesica teoacuterica Cada parte por sua vez eacute subdividida em duas outras A teoacuterica em muacutesica

da natureza e teacutecnica musical a praacutetica tambeacutem chamada educativa em composiccedilatildeo (ou uso)

musical e expressatildeo musical Quintiliano aborda a seguir os dois primeiros aspectos da

teacutecnica musical o ritmo e o meacutelos Eacute soacute entatildeo que menciona pela primeira vez os termos

masculino e feminino

10

2 Masculino e feminino

21 Meacutelos e rhythmoacutes

Como vimos eacute somente apoacutes ter tratado da teoria harmocircnica (Livro I caps 6-12)

e da teoria riacutetmica (caps 13-19) que A Q emprega pela primeira vez os termos ἄρρεν e θῆλυ

Diz ele (I 1925-30)

τινὲς δὲ τῶν παλαιῶν τὸν μὲν ῥυθμὸν ἄρρεν ἀπεκάλουν τὸ δὲ μέλος θῆλυ τὸ μὲν

γὰρ μέλος ἀνενέργητόν τ ἐστὶ καὶ ἀσχημάτιστον ὕλης ἐπέχον λόγον διὰ τὴν πρὸς

τοὐναντίον ἐπιτηδειότητα ὁ δὲ ῥυθμὸς πλάττει τε αὐτὸ καὶ κινεῖ τεταγμένως

ποιοῦντος λόγον ἐπέχων πρὸς τὸ ποιούμενον

Alguns dos antigos chamavam o ritmo de masculino e o meacutelos de feminino pois o

meacutelos eacute sem atualidade e sem forma possuindo o logos da mateacuteria pela sua aptidatildeo

para os contraacuterios ao passo que o ritmo move ordenadamente o meacutelos e o modela

possuindo o logos do criador com relaccedilatildeo ao que eacute criado

Evidentemente o meacutelos sem atualidade e sem forma mencionado nesta passagem

natildeo eacute exatamente o mesmo que capiacutetulos atraacutes (I 121-3) A Q definiu como meacutelos teacuteleion

ou meacutelos perfeito (aquele que combina harmonia ritmo e dicccedilatildeo) mas o meacutelos em sentido

proacuteprio (ἰδιαίτερον) e estrito um entrelaccedilamento de sons desiguais quanto agrave altura tonal isto

eacute de sons que se articulam desde a perspectiva de uma oposiccedilatildeo qualitativa de base a

oposiccedilatildeo entre grave e agudo

Tambeacutem a noccedilatildeo de ritmo eacute aqui empregada em sentido restrito e sequer

corresponde agrave totalidade daquilo que dentro do escopo da teoria musical e segundo o proacuteprio

A Q (I 1319-20) estaacute submetido agrave ordenaccedilatildeo riacutetmica os movimentos do corpo da melodia

e da dicccedilatildeo ou seja a danccedila a muacutesica e a poesia

No iniacutecio do capiacutetulo 13 Livro I A Q estabelece trecircs acepccedilotildees para o termo

ritmo conforme os objetos aos quais o termo seja aplicado Haacute assim o ritmo dos corpos

imoacuteveis o dos corpos moacuteveis e o ritmo em sentido proacuteprio (ἰδίως) que eacute o ritmo quando

aplicado agrave voz (ἐπὶ φωνῆς) ou ao som Eacute com respeito a esta uacuteltima acepccedilatildeo que diz ele (I

136-8) o ritmo se organiza segundo uma oposiccedilatildeo de estados denominados aacutersis e theacutesis

ruiacutedo e repouso (ἄρσιν καὶ θέσιν ψόφον καὶ ἠρεμίαν)

Certamente natildeo eacute coincidecircncia o fato de que cada termo da dualidade ritmo-

melodia se articule internamente tambeacutem segundo uma oposiccedilatildeo qualitativa Mais adiante

teremos ocasiatildeo de interrogar como essas (e outras) oposiccedilotildees especiacuteficas se articulam entre

si e todas por sua vez com a dualidade masculino-feminino a que A Q nos introduz

formalmente na passagem citada mas com a qual assim nos parece ele conta desde o iniacutecio

11

Em I 236-7 A Q nos daacute uma pista ao fazer da interaccedilatildeo entre os dissimilares a

condiccedilatildeo necessaacuteria de tudo o que vem a ser Embora Quintiliano nessa passagem designe

esses dissimilares (ἀνομοίων) como ldquoγεννωμένωνrdquo termo que Mathiesen (1983 p108)

traduz como ldquoprogenitoresrdquo o princiacutepio que ele aiacute enuncia natildeo poderia pela natureza do

assunto (ritmo e meacutetrica) estar circunscrito ao acircmbito exclusivo da reproduccedilatildeo sexuada

Em nota ao trecho (I 1925-30) reproduzido acima Barker (1990 p445) apoacutes

apontar a origem aristoteacutelica dos conceitos de agente e mateacuteria considera problemaacutetica a

fonte de sua associaccedilatildeo com as noccedilotildees de masculino e feminino embora essa associaccedilatildeo seja

mencionada tambeacutem em Aristoacuteteles

The terms of this distinction between matter and agent are Peripatetic and their

use here recalls Aristotles account of the male and female contributions to

reproduction (eg De Gen An 730b) Similar conceptions of the roles of melody

and rhythm are suggested by ps-Ar Probs xix49We cannot confidently identify

the origin of the application of sexual distinctions to music (used extensively by

Aristides in Book 11) and specifically of the equation of rhythm with male melody

with female such ideas may possibly be connected with the school of Damon

Colomer e Gil (1996 p96) satildeo mais especiacuteficos ao apontar uma possiacutevel origem

aristoxecircnica para a aplicaccedilatildeo das noccedilotildees aristoteacutelicas de ato e mateacuteria ao par ritmo e meacutelos

hipoacutetese que no fundo o proacuteprio Barker natildeo descarta jaacute que como diz os Elementa

Rhythmica satildeo ldquoa major source for the section on rhythmics in chs 13-19 of 12 Arist Quint

De Mus Book 1rdquo (1990 p193)

De fato nos Elementa Rhythmica (Livro II fr03) Aristoacutexeno refere-se ao ritmo e

ao ritmaacutevel (ῥυθμιζομένου) como duas naturezas especiacuteficas (δύο τινὰς φύσεις) as quais

estariam uma para outra como a forma (τὸ σχῆμα) estaacute para o que eacute formado (τὸ

σχηματιζόμενον) Aristoacutexeno eacute a princiacutepio ateacute mais abrangente que A Q jaacute que a relaccedilatildeo eacute

estendida a todos os ritmaacuteveis (corpo melodia e dicccedilatildeo) e natildeo exclusiva e especificamente ao

meacutelos Poreacutem para que natildeo haja duacutevida ele faz questatildeo de explicitar a relaccedilatildeo entre ritmo e

meacutelos ao mencionar adiante (fr04) que ldquoo mesmo [loacutegos] se aplica ao meacutelos e ao que quer

que tenha surgido para ser submetido ao ritmordquo2

Para A Q o meacutelos eacute ldquoἀσχημάτιστονrdquo3 informe para Aristoacutexeno eacute

ldquoσχηματιζόμενονrdquo algo que padece a forma Aleacutem de natildeo haver diferenccedila conceitual

2 Ὁ αὐτὸς δὲ λόγος καὶ ἐπὶ τοῦ μέλους καὶ εἴ τι ἄλλο πέφυκε ῥυθμίζεσθαι ou na traduccedilatildeo de Barker (1990

p185) ldquoThe same can be said about melody too and about anything else whose nature it is to be made rhythmic

[rhythmizesthai]rdquo 3 Quintiliano tambeacutem denomina o meacutelos ldquoἀνενέργητόνrdquo o que obviamente remete ao conceito de ato (ἐνέργεια

ou ἐντελέχεια) por oposiccedilatildeo agrave potecircncia (δuacuteναμις) termo que A Q emprega com relaccedilatildeo aos graus da escala O

12

relevante entre os dois termos ambos apontam para uma acepccedilatildeo mais abrangente e mais

primitiva do rhythmoacutes Segundo Colomer e Gil (op cit loc cit) ldquoos termos rhythmoacutes e

schecircma foram a princiacutepio quase sinocircnimos embora depois a palavra rhythmoacutes se tenha

aplicado preferencialmente agrave forma em movimento e schecircma agrave forma estaacuteticardquo Ora essa

identificaccedilatildeo originaacuteria se esclarece a primeira e a segunda acepccedilotildees atribuiacutedas por A Q ao

termo ritmo (o ritmo dos corpos imoacuteveis e dos corpos moacuteveis) igualmente demonstra a

profunda unidade que coere aquelas trecircs acepccedilotildees pois em todas predomina a ideia de uma

determinaccedilatildeo formal

Haacute no entanto apesar dos paralelismos (mesmo no tocante agrave ordem de

exposiccedilatildeo) uma diferenccedila notaacutevel entre os textos de Aristoacutexeno e de Aristides Quintiliano Eacute

que Aristoacutexeno embora visivelmente preocupado esmiuccedilar a diferenccedila entre o ritmo e os

ritmaacuteveis natildeo recore para isso agraves noccedilotildees de masculino e feminino O tratado de Aristoacutexeno

tudo indica foi uma das principais fontes dos caps 13-19 do Livro I de A Q mas certamente

natildeo foi a uacutenica

Embora como sugerem Colomer e Gil o ingresso na teoria musical dos termos

masculino e feminino possa ter tido origem damoniana (e natildeo ser portanto histoacuterica e

originalmente pitagoacuterica) natildeo haacute duacutevida de que os termos ἄρρεν e θῆλυ fazem parte do

vocabulaacuterio filosoacutefico pitagoacuterico Sabemos disso porque Aristoacuteteles (Metafiacutesica 986a25) os

elenca entre famosos dez princiacutepios pitagoacutericos Noutra passagem da Metafiacutesica (988a2-10)

em que critica a concepccedilatildeo pitagoacuterico-platocircnica da diacuteada Aristoacuteteles natildeo somente explica a

conexatildeo entre as noccedilotildees de forma e mateacuteria e o par masculino-feminino mas afirma o caraacuteter

principial deste uacuteltimo

Com efeito eles pretendem derivar da mateacuteria uma multiplicidade se

bem que a Forma soacute gere uma vez ora o que observamos eacute que a mesa eacute

feita de um pedaccedilo de mateacuteria enquanto o homem que aplica a forma

apesar de ser um faz muitas mesas E a relaccedilatildeo entre macho e fecircmea

assemelha-se a esta pois a fecircmea eacute emprenhada numa soacute coacutepula ao passo

que o macho emprenha muitas fecircmeas E todavia estes fatos satildeo imagens

daqueles primeiros princiacutepios Eis aiacute pois como se pronunciou Platatildeo

acerca destes problemas pelo que ficou ditou eacute evidente que ele usou

apenas duas causas a essencial e a material ()

Se os fatos aparentemente desconexos da reproduccedilatildeo sexuada e da fabricaccedilatildeo de

uma mesa satildeo imagens ou imitaccedilotildees (μιμήματα) daqueles princiacutepios (τῶν ἀρχῶν ἐκείνων)

isto eacute dos princiacutepios essencial e substancial ndash ou em linguagem aristoteacutelica da causa material

e da causa formal ndash natildeo somente eacute liacutecito contar com a manifestaccedilatildeo desses princiacutepios tambeacutem

fato de que na passagem em tela ele recorra ao expediente privativo em vez empregar os termos proacuteprios natildeo

obscurece a distinccedilatildeo conceitual

13

no acircmbito da muacutesica mas se torna imperioso recorrer a eles quando se deseja como deseja

Quintiliano oferecer um vislumbre do cosmo total desde o microcosmo particular da muacutesica

Eacute o que trataremos de observar a seguir

22 Corpo e alma

Apoacutes ter introduzido no fim do cap19 as noccedilotildees de masculino e feminino A Q

natildeo volta a mencionaacute-las em nenhum momento ateacute o final do Livro I Natildeo quer isso dizer

todavia que ele jaacute natildeo as leve em conta ou pelo menos que natildeo as subentenda de algum

modo Em todo caso soacute deveraacute retomaacute-las em caraacuteter expliacutecito e operativo a partir do cap8

do Livro II

Φαίνεταί μοι τοίνυν ἡ ψυχή πόρρω μὲν τῶνδε ἡνίκα ἐστὶν ὁμιλοῦσα τῷ

κρείττονι λόγῳ τε ὁμέστιος εἶναι καὶ καθαρεύειν ἐπιθυμίας ἐπὰν δὲ ἐπὶ

τάδε ἀγκλίνῃ καὶ τὴν ἐνταῦθα διατριβὴν πείρᾳ μαθεῖν ἐπιχειρήσῃ

τηνικαῦτα αὐτῇ σώματός τε ἐγγίνεται χρεία καὶ σῶμα ἐπιζητεῖ

πρόσφορον ὑπόκειται δ αὐτῇ θεωρεῖν τὴν ἐν τούτοις διπλόην

ἀρρενότητά τέ φημι καὶ θηλύτητα ἥτις οὐκ ἐν ἐμψύχοις μόνοις ἄρα ἦν

ἀλλὰ κἀν τοῖς φύσει μόνῃ διοικουμένοις φυτῶν τε ὅσα μετάλλων τε

γένη καὶ ἀρωμάτων καὶ γὰρ τούτων δυάς τις ἐπιφαίνεται ἤτοι δι

ἁπαλότητος ἢ λειότητος ἢ εὐχροίας ἢ εὐωδίας ἢ καὶ τῶν ἐναντίων τὴν

ἑτέραν ἐπιδεικνυμένων φύσιν

Parece-me de fato que a alma quando distante das coisas e em comeacutercio

com o superior coabita com a razatildeo e estaacute livre de desejos mas quando

inclina-se para as coisas daqui e intenta aprender atraveacutes da experiecircncia

um modo de existir no tempo entatildeo sendo-lhe necessaacuterio um corpo ela

busca um corpo que lhe seja adequado E eacute da natureza da alma no

tocante aos corpos atentar para a dualidade ou seja para a masculinidade

e para a feminilidade dualidade presente natildeo soacute nos corpos animados

mas tambeacutem nos governados por uma soacute natureza tais como os gecircneros

das plantas dos metais e dos aromas pois tambeacutem neles se manifesta

certa dualidade pois seja pela brandura ou pela suavidade pela bela

aparecircncia ou pelo bom odor seja pelas qualidades contraacuterias apontam

para uma ou outra natureza (II 81-12)

Uma raacutepida contextualizaccedilatildeo nos permitiraacute compreender melhor tanto esta quanto

as demais passagens do cap8 Todo o livro II eacute dedicado agravequilo que no cap5 do livro I A Q

havia definido como muacutesica praacutetica (πρακτικόν) ou educativa (παιδευτικόν) Antes poreacutem de

tratar do seu tema propriamente A Q sente a necessidade de responder agraves objeccedilotildees dos

ceacuteticos4 (dentre os quais ningueacutem menos que Ciacutecero a quem Quintiliano poreacutem hesita em

4 ldquoEacute possiacutevel que os educadores romanos pensassem como Epicuro para quem a muacutesica natildeo tinha qualquer

significado aleacutem de um jogo de sons e concordassem com Ciacutecero que afirmava lsquoque a muacutesica natildeo tem utilidade

alguma aleacutem de um prazer infantil sem valor nenhum posto que natildeo pode guiar-nos agrave felicidadersquo Segundo o

autor romano Corneacutelius Nepos do seacutec I d C lsquoningueacutem ignora que a muacutesica segundo o estado de nossos

costumes natildeo conveacutem a um personagem importantersquo apesar de ter sido levada entre os gregos como lsquodigna de

14

atribuir juiacutezos desfavoraacuteveis acerca da muacutesica) fundamentar a proacutepria ideia de uma formaccedilatildeo

moral atraveacutes da muacutesica E como a accedilatildeo da muacutesica sobre a alma depende tanto da capacidade

ativa da primeira quanto da capacidade receptiva da uacuteltima eacute por esta que ele comeccedila

A alma diz eacute responsaacutevel por dotar de certo ritmo e de ordem (ῥυθμοῦ τινος καὶ

τάξεως) as coisas deste mundo (τῶν ἐνθαδί) Poderiacuteamos dizer embora Quintiliano natildeo o faccedila

aqui explicitamente que a alma portanto eacute masculina em relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Mas

para que possa ser isso eacute preciso que natildeo seja apenas isso De fato diz A Q a alma natildeo

possui uma natureza ou potecircncia uacutenica (οὐδὲ τῶν μονήρη τινὰ φύσιν ἢ δύναμιν ἐχόντων) mas

certa natureza dupla (διπλῆς τινος φύσεως)

A duplicidade da alma consiste em ter sido dotada pelo administrador de todas as

coisas (ὁ τὸ σύπαν διοικῶν) de uma substacircncia divina na qual habita a razatildeo (λoacuteγος) e de

uma substacircncia mundana ou irracional (ἄλογος) na qual habita o desejo (ἐπιθυμία) As duas

naturezas ou potecircncias satildeo necessaacuterias para que a alma atue sobre o mundo corpoacutereo e essa

natureza duacuteplice sem a qual ela seria ineficaz pode-se definir assim a alma soacute eacute ativa em

relaccedilatildeo ao mundo corpoacutereo na medida em que eacute passiva em relaccedilatildeo ao mundo racional Ora a

muacutesica diz Quintiliano no iniacutecio do cap3 do livro II estaacute para a alma irracional assim como a

filosofia estaacute para a alma racional Desse modo ao submeter-se agrave muacutesica a alma irracional

submete-se igualmente agrave razatildeo pois a muacutesica eacute no fundo razatildeo transformada em mateacuteria

sensiacutevel tal como a alma mesma

Isso poreacutem natildeo eacute tudo Entre as duas naturezas da alma haacute um ponto intermeacutedio

que ao submeter o desejo agrave razatildeo confere unidade agraves duas metades Esse ponto intermeacutedio eacute

a memoacuteria (μνήμη) Memoacuteria eacute claro das belezas eternas do mundo suprassensiacutevel5 Desse

modo o dualismo aniacutemico resolve-se num elemento intermediaacuterio resultante da interaccedilatildeo

entre os polos extremos com os quais forma afinal uma triacuteade

Paralelamente a alma (tomada como unidade natildeo mais segundo a interaccedilatildeo das

suas partes) sendo a um soacute tempo ativa (frente ao mundo sensiacutevel) e passiva (perante o

mundo racional) eacute ela proacutepria um ponto intermeacutedio resultante da interaccedilatildeo entre polos

opostos com os quais por sua vez tambeacutem compotildee uma triacuteade As partes e o todo o

microcosmo e macrocosmo assim espelham-se mutuamente

consideraccedilatildeo e estimarsquo rdquo CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-

kagathiacutea Classica (Brasil) 2412 73-85 2011 5 Mesmo se desconsiderarmos esse elemento doutrinal platocircnico a memoacuteria seria ainda uma bela e eficaz

imagem da uniatildeo entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo pois a memoacuteria eacute uma operaccedilatildeo estritamente mental cujos

objetos no entanto satildeo todos oriundos da experiecircncia sensiacutevel

15

Mas a porccedilatildeo desejante (ou irracional) da alma possui igualmente as suas partes

A Q as denomina desejante (ἐπιθυμητική) a qual tende ao relaxamento (ou relaxaccedilatildeo

indulgecircncia) excessivo e impulsiva (θυμικὴ) que tende a uma tensatildeo igualmente desmedida

Fica claro desde logo embora Quintiliano reserve esse comentaacuterio para mais adiante que as

duas porccedilotildees da alma irracional formam uma oposiccedilatildeo do tipo ativo-passivo ou masculino-

feminino restando saber qual seria nesse caso o ponto intermeacutedio

O ponto intermeacutedio satildeo dois por um lado (e acima) a proacutepria porccedilatildeo racional da

alma que eacute inteiriccedila e natildeo se constitui de partes por outro (e abaixo) as paixotildees que resultam

(como A Q descreveraacute a seguir) da mescla entre as potecircncias ativa e passiva da alma As

triacuteades formadas portanto satildeo tambeacutem duas mas de tipos diferentes numa o ponto

intermeacutedio estaacute hierarquicamente acima dos termos opostos noutra hierarquicamente abaixo

A razatildeo da eficaacutecia persuasiva da muacutesica sobre a alma irracional reside

argumenta Quintiliano nas peculiaridades do seu aparato mimeacutetico que lhe permite produzir

a imitaccedilatildeo com mateacuteria similar agrave do objeto imitado Curiosamente esse aparato mimeacutetico eacute

tambeacutem triaacutedico pois a muacutesica imita6 os eacutethe e as paixotildees da alma com os conceitos

(ἐννοίαις) as palavras com as harmonias e a modulaccedilatildeo da voz (ἁρμονίαις καὶ φωνῆς

πλάσει) e a accedilatildeo com os ritmos e o movimento do corpo (ῥυθμοῖς καὶ κινήσει σώματος) A

muacutesica portanto abarca o universo inteiro da accedilatildeo humana desde o seu nascedouro (nos

movimentos afetivos e intelectuais da alma) ateacute sua exteriorizaccedilatildeo em forma de atos e

palavras

Ora sendo a muacutesica sobretudo uma terapia das paixotildees da alma (παθῶν ψυχικῶν

θεραπεία) cabe ao conceito (que siacutentese do conteuacutedo racional a transmitir e da impressatildeo

esteacutetico-emocional a causar estaacute relacionado ao movimentos internos da alma de onde brotam

as accedilotildees) o papel de guiar os elementos do meacutelos perfeito (dicccedilatildeo harmonia e ritmo) O cap8

e os seguintes a comeccedilar pelo trecho acima citado satildeo dedicados justamente a explicar

primeiro como se geram as paixotildees da alma e depois como a muacutesica eacute capaz de imitaacute-las e

de nelas intervir

De iniacutecio A Q trata da dualidade masculino-feminino como uma particularidade

do mundo corpoacutereo a que a alma tem de se submeter Reforccedila o caraacuteter especificamente

corpoacutereo dessa dualidade o fato de que ela natildeo se manifeste apenas em corpos animados (οὐκ

ἐν ἐμψύχοις μόνοις) mas tambeacutem em corpos governados por uma soacute natureza (ἀλλὰ κἀν τοῖς

φύσει μόνῃ διοικουμένοις) Essa observaccedilatildeo parece decorrer da necessidade de distinguir a jaacute

6 II 438-40

16

mencionada duplicidade da alma (razatildeo por que seria natural esperar que somente os corpos

animados estivessem submetidos agrave dualidade a dualidade ao menos entre corpo e alma) do

dualismo propriamente corpoacutereo Em todo caso embora tipicamente corpoacuterea a dualidade

masculino-feminino tambeacutem aqui natildeo se restringe ao fenocircmeno bioloacutegico da diferenciaccedilatildeo

sexual Aleacutem disso essa dualidade natildeo corresponde exatamente a duas espeacutecies opostas de

seres mas a dois polos de um eixo que atravessa de ponta a ponta o mundo corpoacutereo

alcanccedilando portanto e internamente todos os seres nele existentes Desse modo cada ente

particular pode ser tomado como uma resultante da interaccedilatildeo entre os dois princiacutepios em

relaccedilatildeo aos quais ele estabelece por sua vez um ponto intermeacutedio isto eacute uma mescla E eacute

precisamente na produccedilatildeo dessa mescla que o dualismo aniacutemico e o dualismo corpoacutereo se

articulam (II 816-28)

οὐ μόνον οὖν ἐφίεται σώματος ἀλλὰ καὶ τούτου ποιοῦ τινος ἢ γὰρ ἄρρεν

ἠγάπηκεν ἢ θῆλυ καὶ τούτων ὁτὲ μὲν ἄκρατον θάτερον ὁτὲ δὲ ἐξ ἀμφοῖν

ἔχον δεινήν τινα καὶ ὄντως ἄτοπον μίξιν αὐτίκα κἂν μὴ φύσει τοῦ

τοιούτου τύχωσι σώματος αὐταὶ ταῖς σφετέραις τροπαῖς μετερρύθμισάν

τε καὶ ἐς τὸ αὑταῖς ὅμοιον μετέστησαν οὕτως ἐν μὲν ἄρρεσι θῆλυς

ἐπιτρέχει μορφή δι ἣν καὶ ὁ βίος ὦπται τοιοῦτος ἐν δὲ γυναιξὶν ἀνδρεῖον

εἶδος ᾧ καὶ τὸ ἦθος ὅμοιον τεκμαιρόμεθα καὶ ἄνδρες μὴν ἀγένειοι καὶ

γενειάσκουσι γυναῖκες καί τις ἄρρην ἔβλεψεν ὑγρὸν καὶ γυναῖκες γοργὸν

προσεῖδον ὥστε καὶ τῶν ἠθῶν ἕκαστα θηράσεις ἑκάστῃ μορφῇ συνῳδά

A alma portanto natildeo soacute deseja um corpo mas certo tipo de corpo um

corpo masculino ou um corpo feminino Deseja dentre esses agraves vezes um

corpo puro de um tipo ou de outro agraves vezes um corpo que possua uma

curiosa e paradoxal mistura de ambos Assim quando natildeo conseguem

obter naturalmente esse determinado corpo as almas o remodelam

mediante torneios e o transformam em algo semelhante a si mesmas

Dessa forma sobre um corpo masculino recai uma forma feminina (razatildeo

por que tambeacutem sua vida assim se mostra) ou ainda sobre um corpo

feminino uma forma masculina no que tambeacutem assinalamos um eacutethos

similar Haacute homens imberbes e mulheres barbadas homens de lacircnguido

olhar e mulheres com mirada de Goacutergona de modo que cada eacutethos veraacutes

corresponde a uma fisionomia

Uma vez estabelecido o princiacutepio de que o dualismo aniacutemico de algum modo rege

o dualismo corpoacutereo A Q sente-se agrave vontade para tratar de um nos termos do outro

recorrendo para isso aos termos masculino e feminino (II 828-39)

ἐκ δὲ τῆς πρὸς τὸ ἄρρεν ἢ θῆλυ προσπαθείας ἢ πρὸς ἀμφότερον τὰ πάθη

συνίσταται περὶ ψυχήν τὸ μὲν οὖν θῆλυ λίαν ἀνειμένον ᾧ συνᾴδει τὸ

ἐπιθυμητικόν τὸ δ ἄρρεν σφοδρόν τε καὶ δραστήριον ᾧ τὸ θυμικὸν

ὡμοίωται περὶ μὲν οὖν τὸ θῆλυ ψυχῆς τε μέρος καὶ ἀνθρώπων γένος

πλεονάζουσι λῦπαι τε καὶ ἡδοναί περὶ δὲ τὸ ἄρρεν ὀργὴ καὶ θράσος

πάλιν δὲ τούτων γίνονται συζυγίαι λυπῶν τε πρὸς ἡδονὰς καὶ ὀργῆς πρὸς

θράσος καὶ θράσους πρὸς ἡδονὴν καὶ λύπην καὶ ὀργῆς αὖθις πρὸς

ἑκάτερον καὶ πάλιν ἑκάστου πρός τε ἓν καὶ πρὸς πλείω μίξεις καὶ μυρίας

ἄν τις ἐκ τούτων εὕροι τῶν παθῶν εἰκόνας ἐν ποικιλίᾳ θεωρουμένων

17

Conforme o apego ao masculino ao feminino ou a ambos estabelecem-se

as paixotildees da alma O feminino eacute demasiado indulgente e com ele

concorda a alma desejante ao passo que o masculino semelhante agrave alma

impulsiva eacute veemente e ativo Assim tanto na parte feminina da alma

quanto na parcela feminina da humanidade abundam os prazeres e as

dores ao passo que na masculina a ira e a coragem E uma vez mais

datildeo-se combinaccedilotildees entre essas paixotildees das dores com os prazeres da ira

com a coragem da coragem com o prazer e a dor ou da ira novamente

com as demais e ainda de uma com outra qualquer ou com vaacuterias A

partir dessas seria possiacutevel encontrar uma miriacuteade de imagens das

paixotildees em vista da sua variedade

Se a alma por um lado submete o mundo corpoacutereo este por sua vez a espelha

macrocosmicamente nela interferindo mediante interaccedilotildees simpaacuteticas a exemplo do que

ocorre na muacutesica No entanto natildeo satildeo apenas as disposiccedilotildees passivas ou paixotildees que

estabelecem pontes entre a alma e a realidade corpoacuterea Tambeacutem as disposiccedilotildees ativas e

intelectivas estatildeo submetidas ao dualismo masculino-feminino (II 848-69)

ἔστι γὰρ πρῶτον μὲν ἐν ὁρατοῖς ἑκατέραν ἰδεῖν τὴν φύσιν τὸ μὲν

ἀνθηρόν τε καὶ ἐς ὡραϊσμὸν προςφυὲς χρῶμά τε καὶ σχῆμα διαιροῦντα

θηλύτητι τὸ δὲ στυγνόν τε καὶ ἐς σύννοιαν ἄγον ἀρρενότητι πάλιν δὲ ἐν

ἀκοαῖς τοὺς μὲν λείους καὶ προσηνεῖς ἤχους ἐς τὸ θῆλυ τοὺς δὲ

τραχυτέρους εἰς τοὐναντίον ἁρμόττοντα καί ἵνα μὴ τὰ καθ ἕκαστον

λέγω κοινῶς περὶ πάντων ἀποφαντέον ὡς ὅσα μὲν τῶν αἰσθητῶν ἔς τε

ἡδονὴν δελεάζει καὶ ἠρέμα διαχεῖν τὴν γνώμην πέφυκε ταῦτα εἰς τὸ θῆλυ

κριτέον ὅσα δὲ κινεῖ τε εἰς σύννοιαν καὶ ἐγείρει τὸ δραστήριον ταῦτα εἰς

τὴν ἄρρενος μοῖραν ἀπονεμητέον τὰ δέ τοι μηδέτερον ἢ κατὰ μίξιν ἄμφω

δρῶντα ταῦτα τῶν μέσων ἀποφαντέον κατὰ δὴ ταῦτα καὶ περὶ ἐκείνων

λέγωμεν αἳ λόγῳ μέν εἰσι καταληπταὶ τέχναι τε καὶ ἀρεταὶ καὶ ἐπιστῆμαι

ἐκ δὲ τῆς τῶν ὑλῶν ποιότητος περὶ ἃς ἑκάστη τευτάζει τὰς πρὸς ἀλλήλας

διαφορὰς καὶ ὁμοιότητας εἰλήχασιν αἵ τε ἀρεταὶ πρὸς τὰς ἀρετὰς αἵ τε

ἐπιστῆμαι πρὸς τὰς ἐπιστήμας κακίαι τε αὖ πρὸς κακίας καὶ

ἀνεπιστημοσύναι πρὸς ἀμαθίας πάλιν δὲ ἀρεταὶ πρὸς κακίας ἢ ἐπιστήμας

ἢ ἀγνωσίας κακίαι τε αὖ πρὸς τὰς εἰρημένας ποικίλης τινὸς καὶ τῆς κατὰ

ταῦτα πλοκῆς τε οὔσης καὶ μίξεως

A princiacutepio eacute de fato possiacutevel identificar nos objetos visiacuteveis cada

natureza separadamente atribuindo o florido e as formas e cores

decorativas ao feminino e as sombrias e que conduzem agrave reflexatildeo ao

masculino e o mesmo para as coisas audiacuteveis relacionando os sons

suaves e doces ao feminino e os mais aacutesperos ao seu oposto E para que

eu natildeo entre aqui em detalhes eacute preciso dizer que no geral as coisas

sensiacuteveis que induzem ao prazer e que natural e docemente dissolvem o

juiacutezo estas se devem considerar femininas ao passo que aquelas que nos

levam agrave reflexatildeo ou promovem a accedilatildeo se devem designar masculinas Jaacute

aquelas que natildeo atuam nem de uma nem de outra maneira ou o faccedilam

segundo uma mescla de ambas estas se hatildeo de chamar intermediaacuterias

Disso decorre que falemos nos mesmos termos a respeito tambeacutem das

coisas apreendidas pela razatildeo ndash as artes as virtudes e as ciecircncias ndash as

quais devem suas semelhanccedilas e diferenccedilas muacutetuas aos assuntos de que se

ocupam as virtudes no tocante agraves virtudes e as ciecircncias no tocante agraves

ciecircncias e por seu turno os viacutecios no que diz respeito aos viacutecios e a

incultura com respeito agraves ignoracircncias e ainda virtudes com respeito aos

viacutecios ciecircncias ou ignoracircncias e os viacutecios com respeito estes todos

sendo possiacutevel certa combinaccedilatildeo e mescla dessas coisas

18

Cabe observar como A Q ao traccedilar um perfil do masculino e do feminino natildeo

oferece uma lista de entes individuais mas um elenco geneacuterico de qualidades sensiacuteveis das

quais ele passa sem maior detenccedila para o toacutepico das naturezas intermediaacuterias em que estatildeo

incluiacutedas as artes as ciecircncias e as virtudes A menccedilatildeo agraves artes ciecircncias e virtudes eacute

importante neste momento porque uma vez explicado o processo pelo qual atraveacutes de

mesclas dos princiacutepios masculino e feminino satildeo engendradas as paixotildees da alma

Quintiliano deve agora retomar o fio da exposiccedilatildeo e mostrar como a muacutesica por meio de

conceitos palavras ritmos e melodias eacute capaz de imitar essas mesmas paixotildees virtudes

viacutecios etc comunicando agrave alma o respectivo eacutethos Eacute o que faraacute no restante do livro II

23 Os conceitos

No iniacutecio do cap9 A Q retoma o tema dos conceitos com o qual tinha

concluiacutedo o cap7 antes da relativamente longa mas necessaacuteria digressatildeo acerca das paixotildees

da alma O propoacutesito do autor eacute demonstrar como um poeta eacute capaz de transmitir os conceitos

que deseje mediante o emprego de certos procedimentos retoacutericos A Q utiliza exemplos

extraiacutedos de Homero nos quais aponta como o poeta mesclando traccedilos masculinos e

femininos consegue traduzir em palavras uma gama complexa de impressotildees desde

sensaccedilotildees fiacutesicas como rapidez suavidade ou agitaccedilatildeo ateacute caracteres ou julgamentos morais

Esse conceitos (ἐννοήματα) compostos de traccedilos masculinos e femininos ndash conceitos que por

sua vez entram na composiccedilatildeo eacutetica das frases e dos discursos ndash A Q os compara aos

extratos dos quais satildeo feitos os remeacutedios7 e conclui (II 103-18)

τὰ μὲν οὖν ἐς ἄνεσιν ἄγοντα καὶ φαιδρότητα τὸν ἀφελῆ τε καὶ ἡδὺν λόγον

ἐγέννησε τὰ δὲ τὸ σύννουν κινοῦντα καὶ τὸ ὁρμητικὸν τὸν πολιτικόν τε

καὶ ἀγωνιστικὸν ἐξέφηνεν τοῦ μὲν οὖν πολιτικοῦ κατὰ τὸ ἄρρεν τὰ εἴδη

συντομίαι τε καὶ βραχύτητες καὶ ἀξίωμα καὶ μεγαλοπρέπεια τραχύτης τε

καὶ σφοδρότης καὶ μέγεθος καὶ μεστότης ἅπερ τήν τε φυσικὴν ἐμφαίνει

μεγαλόνοιαν τοῦ ἄρρενος μέγεθός τε σώματος καὶ ἁδροτῆτα διανοίας καὶ

τὸ ἐς τὰ μέγιστα τῶν ἔργων ἀνυτικὸν τάχος τοῦ δὲ ἀφελοῦς ἀραιότης

ἁβρότης κάλλη τε καὶ γλυκύτητες ὧν τὰ μὲν τὸ ἀνειμένον τοῦ θήλεος τὰ

δὲ τὸ ἐς ὡραϊσμὸν διαδείκνυσιν ἐπτοημένον γένοιτο δ ἄν τι καὶ τῇ

τούτων πλοκῇ οἷον ἡ δριμύτης τὸ μὲν τάχος ὡς ἄρρεν τὸ δὲ

μικροπρεπὲς ὡς ἐναντίον ἐπιφαίνουσα ἥ τ ἐπιμέλεια τὸ μὲν γλίσχρον

ἔχουσα κατὰ τὸ θῆλυ τὸ δὲ τῆς φιλοπονίας παρεκτεταμένον ὡς ἄρρεν

Assim os conceitos que levam agrave descontraccedilatildeo e agrave alegria produzem uma

frase despojada e doce enquanto os conceitos que mobilizam as partes

intelectiva e impulsiva produzem a frase contenciosa e poliacutetica Os traccedilos

da frase poliacutetica relacionados ao masculino satildeo concisatildeo brevidade

dignidade e elevaccedilatildeo assim como aspereza forccedila grandeza e

completude traccedilos que mostram a grandiosidade natural do masculino a

7 Uma comparaccedilatildeo semelhante jaacute tinha sido feita em II 47-12

19

magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores

trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e

doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros

a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a

exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e

atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade

como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo

masculino

Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem

duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel

Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade

contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de

masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e

mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos

interessa aqui compreender

Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase

feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por

ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por

ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo

como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa

ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de

desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo

remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na

disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma

Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que

poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade

seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma

caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel

quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a

porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade

contradiccedilatildeo alguma

No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a

capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente

aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam

o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante

uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses

materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes

20

Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro

tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais

duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do

diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons

livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma

martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente

tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade

Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a

accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua

presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No

capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a

dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do

discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto

24 As letras

Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto

καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων

γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς

φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς

τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον

ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως

περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων

ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων

τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ

ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε

πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ

ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα

μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν

χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον

ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς

ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς

τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον

διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως

τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν

ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων

κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος

ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ

τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως

eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo

de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais

outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como

as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido

satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que

limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves

enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade

21

temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo

dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo

que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente

eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o

lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute

atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por

sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a

passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes

outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se

com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar

jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua

a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio

das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona

ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o

emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito

aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias

e possuem ambas as naturezas

A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo

primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso

masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais

Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da

classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam

espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo

das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as

consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto

consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as

consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave

nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na

sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz

respeito agraves letras8

As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo

claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que

pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo

Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das

vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de

assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as

quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das

letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes

8 Cf Chapanski 2003 p 22-24

22

Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes

que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais

proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias

enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais

proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em

relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade

As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de

articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua

vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto

meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais

tau delta e theta As guturais capa gama e khi

Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como

ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo

que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as

surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste

em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de

separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas

silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)

seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as

consoantes o polo essencial (formal ou masculino)

AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo

seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais

(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a

doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo

princiacutepio dualista

25 As vogais e o solfejo

Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o

meacutelos (II 126-10)

Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι

λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα

τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ

μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει

23

O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a

harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que

se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo

percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e

ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos

Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo

de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I

Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de

disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute

apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma

harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo

especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das

mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder

perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o

objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e

o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir

encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)

Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς

κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ

ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ

μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον

μετεσχηκότες

A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe

tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e

masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo

intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos

gecircneros com maior ou menor intensidade

No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre

elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa

diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino (II 131-35)

Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς

πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα

πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων

ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς

ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε

τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς

ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς

μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ

συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ

9 Cf West 1994 p178

24

πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα

δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν

ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως

ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt

κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ

λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν

μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ

ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν

ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο

καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως

ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα

φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt

νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται

πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται

τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ

γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων

καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις

σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα

καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ

ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ

Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute

captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as

letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete

examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra

as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e

masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons

mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute

masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois

nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o

ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o

som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige

que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o

alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da

sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua

estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado

intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta

quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino

quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa

na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a

exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta

trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do

alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior

parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo

lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses

examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos

constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e

terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons

semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros

Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais

nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas

internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para

isso novos paracircmetros

O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio

que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou

25

fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais

vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora

a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem

interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)

estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto

importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado

designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais

satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas

Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute

Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de

masculino e feminino em si mesmas10

Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos

remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a

esfericidade da alma11

(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash

mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso

Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves

a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon

feminino) refira-se justamente a esse arredondamento

As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em

razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas

(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua

ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente

relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal

O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do

eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os

extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo

masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo

entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da

verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o

10

Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido

Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo

metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das

observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11

Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De

Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por

que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora

o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo

26

sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo

entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta

Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo

verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave

segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo

lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros

Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro

obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo

excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no

solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)

Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ

εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί

τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες

ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ

αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων

περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ

τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν

τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς

πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ

ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ

λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος

διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt

εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους

διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν

λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ

πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν

μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν

Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente

passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega

satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se

articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que

o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam

intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez

sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por

intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos

dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de

acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos

da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam

No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido

com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das

vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o

ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons

que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida

vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava

em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos

posteriormente por que isso eacute assim

A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim

ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo

27

O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de

quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de

quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores

distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12

Do grave para o agudo (ou de

cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram

denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica

(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era

acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de

um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira

(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da

uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons

ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro

tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo

(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom

O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute

justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do

tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao

ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira

(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da

sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada

μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito

formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava

formado com a nota acrescida

Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada

tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou

agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por

eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)

Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει

κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ

τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν

πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ

θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα

γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά

12

Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2

T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)

28

Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao

masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos

em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram

dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os

sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no

entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da

passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes

Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave

formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo

decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso

ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como

o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13

os rechaccedilavam por

completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14

(II 1488-90)

περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς

παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας

Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam

na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da

alma

Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos

instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo

mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes

mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais

como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se

apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta

a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo

a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as

noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura

tonal (II 1623-40)

Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα

διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ

θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος

μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα

εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν

ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ

τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ

πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν

περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον

θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον

ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι

13

Repuacuteblica 398c 14

Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)

29

δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς

τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν

οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν

ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt

Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela

sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute

feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais

do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua

tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se

descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade

e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por

gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito

debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde

participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira

participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros

intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua

natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar

cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza

iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo

interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam

familiares

No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os

instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o

dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em

que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria

dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado

por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da

muacutesica sobre a alma

O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro

245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo

ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees

superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da

regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo

anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto

ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees

hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm

pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15

15

Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida

(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a

associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre

medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente

que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento

que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a

30

Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite

(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os

nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm

unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses

nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo

masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria

Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo

residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real

manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo

um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas

entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do

universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os

planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros

26 A muacutesica das esferas

Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves

teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem

acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma

definiccedilatildeo (III 211-6)

Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν

ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ

φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον

τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν

διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει

Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o

feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e

amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o

esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de

sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo

AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero

proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute

elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza

(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas

antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura

que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo

31

Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os

planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e

femininas (III 216-40)

ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης

γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον

ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ

δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ

ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ

θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι

τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον

μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε

μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης

προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ

πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος

ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ

νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ

ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε

ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς

Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης

ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως

ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε

θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ

ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν

ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε

ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης

ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ

μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν

παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ

τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων

συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν

θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ

ἐπίπονος τὸν ἄρρενα

A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por

toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda

um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do

feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa

tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e

nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios

e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do

feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de

Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota

acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute

no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol

(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se

regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem

tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais

familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute

luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente

uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente

feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol

emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e

impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som

que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo

de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante

ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma

equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de

32

Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e

quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo

sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que

eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino

Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal

correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota

do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao

eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de

masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as

devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam

a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde

PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO

NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa

VOGAL ε α η ω α η Ω

Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a

meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o

eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe

apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por

outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela

soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim

seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo

ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas

pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo

Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco

pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter

especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a

correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e

as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como

essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda

oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de

Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido

Primeiro tetracorde Segundo tetracorde

33

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico

Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o

ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava

somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por

uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado

ou o ponto intermeacutedio

Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica

inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo

princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros

e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado

sob sua tutela

Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a

muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a

qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto

meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional

passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num

polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a

alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a

alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de

Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge

para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim

sucessivamente

Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua

organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata

da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se

reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical

os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura

da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual

o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado

primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas

mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro

torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim

dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16

16

Gueacutenon 1999 p23

34

No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser

dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de

analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre

regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos

incomensuraacuteveis

Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de

seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas

vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade

necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que

estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade

assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada

impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a

um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por

exemplo da lua e da alma

Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as

ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou

aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que

embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres

ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia

nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de

fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas

qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas

graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo

tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais

uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a

coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e

lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num

mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao

masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora

dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo

Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo

de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o

acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o

35

fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino

teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse

fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo

Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo

contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa

A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o

outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre

quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na

quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um

compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la

A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-

feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e

feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a

posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria

necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo

para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente

masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude

de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo

privativa

Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito

de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem

duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e

quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre

ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos

guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e

sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais

difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta

porosa uacutemida ou fechada

Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a

sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns

dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso

condiccedilotildees

Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo

naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem

36

necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas

se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou

outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)

Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo

condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de

fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees

associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o

caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute

necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa

objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da

mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos

dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do

iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num

patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado

intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos

individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo

Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees

de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam

somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre

esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes

noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre

relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma

espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila

Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos

loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou

analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ

ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)

A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas

relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse

processo igualmente uma relaccedilatildeo

Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et

du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee

notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas

moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux

celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou

encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de

nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui

37

exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est

en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le

plus petit comme analogue du plus grand)17

Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que

unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter

entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel

unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia

Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres

primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune

corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos

on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification

du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par

harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se

ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une

neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au

deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure

deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en

son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception

originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la

conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique

de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre

partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18

Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de

predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e

mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na

matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo

desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =

2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que

a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas

premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo

A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-

1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua

vez se apoiu em Aristoacuteteles19

) estabelece trecircs tipos de analogia20

A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o

termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo

17

Borella 2012 p23 18

Moutsopoulos 2004 p203-204 19

Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada

pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais

ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre

chez Aristote Paris PUF 1962 20

A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23

38

grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

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Page 2: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

FERNANDO LUIacuteS B DE MORAIS

AS NOCcedilOtildeES DE MASCULINO(ἄρρεν) E FEMININO(θῆλυ)

NO TRATADO DA MUacuteSICA DE ARISTIDES QUINTILIANO

Monografia apresentada agrave disciplina

Orientaccedilatildeo Monograacutefica II como

requisito parcial agrave obtenccedilatildeo do grau de

Bacharel em Letras

Orientador Prof Dr Roosevelt Arauacutejo da Rocha Juacutenior

CURITIBA

2012

Y a-t-il une possibiliteacute pour que dans le creacutepuscule

nous puissions saisir quelque chose de ce qui a eacuteteacute

lrsquoaurore Y a-t-il quelque chose qui dans le dernier

moment reponde au premier moment Nous sommes

peut-ecirctre dans une nuit qui va preacuteceacuteder un nouveau

jour

Nous sommes agrave la veille du plus enorme changement

sur la terre Est-ce que dans cette nuit nous ne

pouvons pas avoir quelques clarteacutes sur ce quit fut

lrsquoaube de la penseacutee humaine et sur lrsquooriginaire agrave

venir

Martin Heidegger

(Arnoux 1960 p8 apud M Jean Wahl Lrsquoideacutee drsquoecirctre chez Heidegger 1951)

RESUMO

O tratado Da Muacutesica de Aristides Quintiliano eacute provavelmente o mais completo registro da

estreita relaccedilatildeo entre reflexatildeo filosoacutefica e teoria musical na Greacutecia Antiga Neste trabalho

busco de iniacutecio mapear o perfil descritivo das noccedilotildees de masculino (ἄρρεν) e feminino (θῆλυ)

centrais no tratado de Quintiliano para a concepccedilatildeo da muacutesica como um sistema

cosmoloacutegico e um saber interdisciplinar Em seguida interrogo o estatuto loacutegico e ontoloacutegico

desses conceitos e por fim busco compreender o raciociacutecio analoacutegico decorrente do emprego

que Quintiliano daacute a essas noccedilotildees

Palavras-chave Da Muacutesica Aristides Quintiliano Masculino Feminino

ABSTRACT

Aristides Quintilianusrsquo On music is probably the most accomplished treatise documenting the

close connection between philosophical thought and musical theory in Ancient Greece In this

work I intend to scrutinize through descriptive lens at first the notions of masculine

(ἄρρεν) and feminine (θῆλυ) which play a substantial role in Quintilianusrsquo conception of

music as a cosmological system and interdisciplinary science Then I ask questions about the

logical and ontological basis of those notions and finally I try to understand the analogical

reasoning they seem to imply

Keywords On music Aristides Quintilianus Masculine Feminine

SUMAacuteRIO

1 Introduccedilatildeo 7

2 Masculino e feminino 10

21 Meacutelos e rhythmoacutes 10

22 Corpo e alma 13

23 Os conceitos 18

24 As letras 20

25 As vogais e o solfejo 22

26 A muacutesica das esferas 30

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico 33

4 Agrave guisa de conclusatildeo 42

BIBLIOGRAFIA 43

7

1 Introduccedilatildeo

A abstraccedilatildeo eacute o pecado original de toda ciecircncia e eacute perfeitamente natural que seja

assim Nossa linguagem natildeo pode pretender abarcar numa visada uacutenica os muacuteltiplos aspectos

de um objeto qualquer sem multiplicar ao mesmo tempo as razotildees de equiacutevoco Eacute por isso

que para a compreensatildeo de um uacutenico objeto satildeo necessaacuterias dezenas de ciecircncias que o

enfoquem sob os diversos pontos de vista O uacutenico incoveniente eacute que no mais das vezes

dezenas de aspectos natildeo chegam a formar um objeto de modo que enquanto o olho continua

enxergando um mundo onde a cabeccedila estaacute sobre o pescoccedilo a inteligecircncia vai compondo para

si um universo cada vez mais cubista

Este trabalho fiquem tranquilos natildeo pretende atacar este problema pelo menos

natildeo diretamente Nosso objetivo eacute expor (e na medida do possiacutevel quem sabe ateacute

compreender) como mediante o emprego de uma ferramenta intelectual simples (e

ultrapassada segundo a opiniatildeo corrente que com frequecircncia esquece ou sequer percebe o

quanto a ela tem recorrido) nosso autor pretendeu romper fronteiras ontoloacutegicas e oferecer

uma descriccedilatildeo unificada do mundo submetendo nesse processo conhecimentos de ordem

absolutamente heterogecircnea (que vatildeo da astronomia agrave ciecircncia poliacutetica da psicologia agrave criacutetica

literaacuteria) a um mesmo par de conceitos

Nosso autor chama-se Aristides Quintiliano e o seu livro eacute o tratado de teoria

musical intitulado Da Muacutesica (ΠΕΡΙ ΜΟΥΣΙΚΗΣ ΤΡΙΤΟΝ) obra em que todos os esforccedilos

convergem para um objetivo bastante ambicioso integrar numa visatildeo unitaacuteria os variados

aspectos daquilo que a cultura grega um dia produziu sob o nome de μουσική empreitada que

demanda uma articulaccedilatildeo entre duas vertentes rivais no campo da teoria musical a tradiccedilatildeo

pitagoacuterica e a tradiccedilatildeo aristoxecircnica Nos bastidores dessa articulaccedilatildeo onipresentemente estatildeo

Aristoacuteteles e Platatildeo

Desconhece-se quem tenha sido historicamente o indiviacuteduo que atende por

Aristides Quintiliano Alguns sustentam1 que tenha sido um escravo de Marcus Fabius

Quintilianus outros que tenha sido seu filho e outros ainda que seja o proacuteprio autor da

Institutio oratoria Haacute tambeacutem a hipoacutetese de que tenha sido um saacutebio da corte do imperador

Adriano embora natildeo se possa precisar qual deles exatamente (por ora satildeo duas as

alternativas)

1 Para mais detalhes sobre essas hipoacuteteses Mathiesen 1983 p11-12

8

Agrave indecisatildeo quanto agrave identidade do autor soma-se a incerteza na dataccedilatildeo da obra

Quintilino por um lado cita Ciacutecero (assassinado em 43 aC) e de outro foi usado como fonte

por Martianus Capella na redaccedilatildeo do livro IX do seu De nuptiis Philologiae et Mercurii

Como a redaccedilatildeo do De nuptiis eacute datada da primeira metade do seacutecV dC os comentadores

concordam em situar o De muacutesica e seu autor entre o I e o IV seacuteculos depois de Cristo

No conjunto da tratadiacutestica musical grega o De muacutesica ocupa ao lado dos

Elementos Harmocircnicos de Aristoacutexeno (segunda metade do seacutecIV aC) e da Harmocircnica (que

data de meados do seacutec II dC) de Ptolomeu um lugar de destaque Dentre esses trecircs

principais tratados no entanto o de Quintiliano eacute o uacutenico a nos oferecer uma ldquoexposiccedilatildeo

completa dos aspectos filosoacuteficos da muacutesica gregardquo (COLOMBER L GIL B 1996 p19)

Este trabalho objetiva abordar apenas um desses aspectos filosoacuteficos as noccedilotildees de masculino

(ἄρρεν) e feminino (θῆλυ)

No De muacutesica as noccedilotildees de masculino e feminino cumprem um papel estrateacutegico

Eacute essa dualidade que como princiacutepio estruturante fundamenta a doutrina dos eacutethe musicais

na sua interaccedilatildeo simpaacutetico-eacutetico-pedagoacutegica com as potecircncias da alma Trata-se aleacutem disso

de um princiacutepio que atua sobre todo o mundo corpoacutereo analogando os entes deste mundo uns

com os outros e estes mesmos por sua vez com as realidades celestes

Todavia embora Quintiliano apoiado na ferramenta da analogia e mediante o

emprego das noccedilotildees de masculino e feminino alcance conceber e expor uma visatildeo more

musicale demonstrata unitaacuteria do universo nem por isso se daacute o trabalho de tratar mais

detidamente dessas duas noccedilotildees e se insinua fazecirc-lo eacute sempre em funccedilatildeo de um objetivo

descritivo imediato Quanto agrave analogia expediente dos mais frequentes no De muacutesica

Quintiliano natildeo chega a abordaacute-la como uma teoria em si mesma embora expediente e teoria

estejam ambos em seu tratado indissociaacutevel e necessariamente ligados

Meu objetivo aqui eacute tratar particularmente das noccedilotildees de masculino e feminino e

natildeo do modo como essas noccedilotildees fundamentam as doutrinas esteacuteticas poliacuteticas pedagoacutegicas

cosmoloacutegicas ou metafiacutesicas relacionadas agrave reflexatildeo musical grega Assim na primeira parte

do trabalho busco traccedilar um perfil descritivo inicial partindo para isso das passagens

traduzidas e comentadas em que Quintiliano emprega ilustra ou explica essas noccedilotildees Num

segundo momento tento sondar o estatuto loacutegico e ontoloacutegico das noccedilotildees de masculino e

feminino sem no entanto extrapolar o acircmbito estritamente cosmoloacutegico no qual Quintiliano

se deteacutem

Como Quintiliano divide o tratado em trecircs livros ndash um primeiro dedicado agrave arte

musical propriamente dita ou muacutesica audiacutevel um segundo que trata da muacutesica enquanto

9

ferramenta pedagoacutegica e imagem da alma e um terceiro livro no qual aborda os fundamentos

matemaacuteticos e cosmoloacutegicos dos livros anteriores ndash e como as noccedilotildees de masculino e

feminino satildeo abordadas sempre a propoacutesito mas sem ordem aparente ao longo de todos os

trecircs livros resulta absolutamente impossiacutevel natildeo avanccedilar em saltos Pretendi minimizar esse

inconveniente seguindo estritamente a ordem da exposiccedilatildeo (teria seguido a ordem das razotildees

se tivesse encontrado alguma) Tentei tambeacutem nos comentaacuterios agraves passagens preencher os

hiatos expositivos informando o contexto de onde cada passagem foi retirada

Na seleccedilatildeo das passagens a analisar foi preciso excluir algumas (natildeo muitas) cujo

conteuacutedo natildeo fosse especialmente relevante para o objetivo deste trabalho Os trechos

excluiacutedos constituem-se sobretudo de informaccedilotildees jaacute dadas ou de simples menccedilotildees dos

termos masculino e feminino Fico grato a quem me possa informar alguma omissatildeo

imperdoaacutevel

Disse acima que as noccedilotildees de masculino e feminino tecircm papel estrateacutegico no

tratado de Aristides Quintiliano Natildeo eacute sem estrateacutegia igualmente que essas noccedilotildees satildeo

apresentadas ao leitor A Q abre os capiacutetulos iniciais do livro I expondo os motivos (a

ignoracircncia e leviandade dos seus contemporacircneos com relaccedilatildeo agrave musica) e o escopo da sua

iniciativa A muacutesica para ele natildeo eacute um divertimento banal mas a ordem impliacutecita por traacutes da

natureza

Concluiacutedo o preacircmbulo ele desce das alturas e passa a tratar da muacutesica stricto

sensu No capiacutetulo 5 do livro I propotildee uma divisatildeo da mateacuteria em duas partes muacutesica praacutetica

e muacutesica teoacuterica Cada parte por sua vez eacute subdividida em duas outras A teoacuterica em muacutesica

da natureza e teacutecnica musical a praacutetica tambeacutem chamada educativa em composiccedilatildeo (ou uso)

musical e expressatildeo musical Quintiliano aborda a seguir os dois primeiros aspectos da

teacutecnica musical o ritmo e o meacutelos Eacute soacute entatildeo que menciona pela primeira vez os termos

masculino e feminino

10

2 Masculino e feminino

21 Meacutelos e rhythmoacutes

Como vimos eacute somente apoacutes ter tratado da teoria harmocircnica (Livro I caps 6-12)

e da teoria riacutetmica (caps 13-19) que A Q emprega pela primeira vez os termos ἄρρεν e θῆλυ

Diz ele (I 1925-30)

τινὲς δὲ τῶν παλαιῶν τὸν μὲν ῥυθμὸν ἄρρεν ἀπεκάλουν τὸ δὲ μέλος θῆλυ τὸ μὲν

γὰρ μέλος ἀνενέργητόν τ ἐστὶ καὶ ἀσχημάτιστον ὕλης ἐπέχον λόγον διὰ τὴν πρὸς

τοὐναντίον ἐπιτηδειότητα ὁ δὲ ῥυθμὸς πλάττει τε αὐτὸ καὶ κινεῖ τεταγμένως

ποιοῦντος λόγον ἐπέχων πρὸς τὸ ποιούμενον

Alguns dos antigos chamavam o ritmo de masculino e o meacutelos de feminino pois o

meacutelos eacute sem atualidade e sem forma possuindo o logos da mateacuteria pela sua aptidatildeo

para os contraacuterios ao passo que o ritmo move ordenadamente o meacutelos e o modela

possuindo o logos do criador com relaccedilatildeo ao que eacute criado

Evidentemente o meacutelos sem atualidade e sem forma mencionado nesta passagem

natildeo eacute exatamente o mesmo que capiacutetulos atraacutes (I 121-3) A Q definiu como meacutelos teacuteleion

ou meacutelos perfeito (aquele que combina harmonia ritmo e dicccedilatildeo) mas o meacutelos em sentido

proacuteprio (ἰδιαίτερον) e estrito um entrelaccedilamento de sons desiguais quanto agrave altura tonal isto

eacute de sons que se articulam desde a perspectiva de uma oposiccedilatildeo qualitativa de base a

oposiccedilatildeo entre grave e agudo

Tambeacutem a noccedilatildeo de ritmo eacute aqui empregada em sentido restrito e sequer

corresponde agrave totalidade daquilo que dentro do escopo da teoria musical e segundo o proacuteprio

A Q (I 1319-20) estaacute submetido agrave ordenaccedilatildeo riacutetmica os movimentos do corpo da melodia

e da dicccedilatildeo ou seja a danccedila a muacutesica e a poesia

No iniacutecio do capiacutetulo 13 Livro I A Q estabelece trecircs acepccedilotildees para o termo

ritmo conforme os objetos aos quais o termo seja aplicado Haacute assim o ritmo dos corpos

imoacuteveis o dos corpos moacuteveis e o ritmo em sentido proacuteprio (ἰδίως) que eacute o ritmo quando

aplicado agrave voz (ἐπὶ φωνῆς) ou ao som Eacute com respeito a esta uacuteltima acepccedilatildeo que diz ele (I

136-8) o ritmo se organiza segundo uma oposiccedilatildeo de estados denominados aacutersis e theacutesis

ruiacutedo e repouso (ἄρσιν καὶ θέσιν ψόφον καὶ ἠρεμίαν)

Certamente natildeo eacute coincidecircncia o fato de que cada termo da dualidade ritmo-

melodia se articule internamente tambeacutem segundo uma oposiccedilatildeo qualitativa Mais adiante

teremos ocasiatildeo de interrogar como essas (e outras) oposiccedilotildees especiacuteficas se articulam entre

si e todas por sua vez com a dualidade masculino-feminino a que A Q nos introduz

formalmente na passagem citada mas com a qual assim nos parece ele conta desde o iniacutecio

11

Em I 236-7 A Q nos daacute uma pista ao fazer da interaccedilatildeo entre os dissimilares a

condiccedilatildeo necessaacuteria de tudo o que vem a ser Embora Quintiliano nessa passagem designe

esses dissimilares (ἀνομοίων) como ldquoγεννωμένωνrdquo termo que Mathiesen (1983 p108)

traduz como ldquoprogenitoresrdquo o princiacutepio que ele aiacute enuncia natildeo poderia pela natureza do

assunto (ritmo e meacutetrica) estar circunscrito ao acircmbito exclusivo da reproduccedilatildeo sexuada

Em nota ao trecho (I 1925-30) reproduzido acima Barker (1990 p445) apoacutes

apontar a origem aristoteacutelica dos conceitos de agente e mateacuteria considera problemaacutetica a

fonte de sua associaccedilatildeo com as noccedilotildees de masculino e feminino embora essa associaccedilatildeo seja

mencionada tambeacutem em Aristoacuteteles

The terms of this distinction between matter and agent are Peripatetic and their

use here recalls Aristotles account of the male and female contributions to

reproduction (eg De Gen An 730b) Similar conceptions of the roles of melody

and rhythm are suggested by ps-Ar Probs xix49We cannot confidently identify

the origin of the application of sexual distinctions to music (used extensively by

Aristides in Book 11) and specifically of the equation of rhythm with male melody

with female such ideas may possibly be connected with the school of Damon

Colomer e Gil (1996 p96) satildeo mais especiacuteficos ao apontar uma possiacutevel origem

aristoxecircnica para a aplicaccedilatildeo das noccedilotildees aristoteacutelicas de ato e mateacuteria ao par ritmo e meacutelos

hipoacutetese que no fundo o proacuteprio Barker natildeo descarta jaacute que como diz os Elementa

Rhythmica satildeo ldquoa major source for the section on rhythmics in chs 13-19 of 12 Arist Quint

De Mus Book 1rdquo (1990 p193)

De fato nos Elementa Rhythmica (Livro II fr03) Aristoacutexeno refere-se ao ritmo e

ao ritmaacutevel (ῥυθμιζομένου) como duas naturezas especiacuteficas (δύο τινὰς φύσεις) as quais

estariam uma para outra como a forma (τὸ σχῆμα) estaacute para o que eacute formado (τὸ

σχηματιζόμενον) Aristoacutexeno eacute a princiacutepio ateacute mais abrangente que A Q jaacute que a relaccedilatildeo eacute

estendida a todos os ritmaacuteveis (corpo melodia e dicccedilatildeo) e natildeo exclusiva e especificamente ao

meacutelos Poreacutem para que natildeo haja duacutevida ele faz questatildeo de explicitar a relaccedilatildeo entre ritmo e

meacutelos ao mencionar adiante (fr04) que ldquoo mesmo [loacutegos] se aplica ao meacutelos e ao que quer

que tenha surgido para ser submetido ao ritmordquo2

Para A Q o meacutelos eacute ldquoἀσχημάτιστονrdquo3 informe para Aristoacutexeno eacute

ldquoσχηματιζόμενονrdquo algo que padece a forma Aleacutem de natildeo haver diferenccedila conceitual

2 Ὁ αὐτὸς δὲ λόγος καὶ ἐπὶ τοῦ μέλους καὶ εἴ τι ἄλλο πέφυκε ῥυθμίζεσθαι ou na traduccedilatildeo de Barker (1990

p185) ldquoThe same can be said about melody too and about anything else whose nature it is to be made rhythmic

[rhythmizesthai]rdquo 3 Quintiliano tambeacutem denomina o meacutelos ldquoἀνενέργητόνrdquo o que obviamente remete ao conceito de ato (ἐνέργεια

ou ἐντελέχεια) por oposiccedilatildeo agrave potecircncia (δuacuteναμις) termo que A Q emprega com relaccedilatildeo aos graus da escala O

12

relevante entre os dois termos ambos apontam para uma acepccedilatildeo mais abrangente e mais

primitiva do rhythmoacutes Segundo Colomer e Gil (op cit loc cit) ldquoos termos rhythmoacutes e

schecircma foram a princiacutepio quase sinocircnimos embora depois a palavra rhythmoacutes se tenha

aplicado preferencialmente agrave forma em movimento e schecircma agrave forma estaacuteticardquo Ora essa

identificaccedilatildeo originaacuteria se esclarece a primeira e a segunda acepccedilotildees atribuiacutedas por A Q ao

termo ritmo (o ritmo dos corpos imoacuteveis e dos corpos moacuteveis) igualmente demonstra a

profunda unidade que coere aquelas trecircs acepccedilotildees pois em todas predomina a ideia de uma

determinaccedilatildeo formal

Haacute no entanto apesar dos paralelismos (mesmo no tocante agrave ordem de

exposiccedilatildeo) uma diferenccedila notaacutevel entre os textos de Aristoacutexeno e de Aristides Quintiliano Eacute

que Aristoacutexeno embora visivelmente preocupado esmiuccedilar a diferenccedila entre o ritmo e os

ritmaacuteveis natildeo recore para isso agraves noccedilotildees de masculino e feminino O tratado de Aristoacutexeno

tudo indica foi uma das principais fontes dos caps 13-19 do Livro I de A Q mas certamente

natildeo foi a uacutenica

Embora como sugerem Colomer e Gil o ingresso na teoria musical dos termos

masculino e feminino possa ter tido origem damoniana (e natildeo ser portanto histoacuterica e

originalmente pitagoacuterica) natildeo haacute duacutevida de que os termos ἄρρεν e θῆλυ fazem parte do

vocabulaacuterio filosoacutefico pitagoacuterico Sabemos disso porque Aristoacuteteles (Metafiacutesica 986a25) os

elenca entre famosos dez princiacutepios pitagoacutericos Noutra passagem da Metafiacutesica (988a2-10)

em que critica a concepccedilatildeo pitagoacuterico-platocircnica da diacuteada Aristoacuteteles natildeo somente explica a

conexatildeo entre as noccedilotildees de forma e mateacuteria e o par masculino-feminino mas afirma o caraacuteter

principial deste uacuteltimo

Com efeito eles pretendem derivar da mateacuteria uma multiplicidade se

bem que a Forma soacute gere uma vez ora o que observamos eacute que a mesa eacute

feita de um pedaccedilo de mateacuteria enquanto o homem que aplica a forma

apesar de ser um faz muitas mesas E a relaccedilatildeo entre macho e fecircmea

assemelha-se a esta pois a fecircmea eacute emprenhada numa soacute coacutepula ao passo

que o macho emprenha muitas fecircmeas E todavia estes fatos satildeo imagens

daqueles primeiros princiacutepios Eis aiacute pois como se pronunciou Platatildeo

acerca destes problemas pelo que ficou ditou eacute evidente que ele usou

apenas duas causas a essencial e a material ()

Se os fatos aparentemente desconexos da reproduccedilatildeo sexuada e da fabricaccedilatildeo de

uma mesa satildeo imagens ou imitaccedilotildees (μιμήματα) daqueles princiacutepios (τῶν ἀρχῶν ἐκείνων)

isto eacute dos princiacutepios essencial e substancial ndash ou em linguagem aristoteacutelica da causa material

e da causa formal ndash natildeo somente eacute liacutecito contar com a manifestaccedilatildeo desses princiacutepios tambeacutem

fato de que na passagem em tela ele recorra ao expediente privativo em vez empregar os termos proacuteprios natildeo

obscurece a distinccedilatildeo conceitual

13

no acircmbito da muacutesica mas se torna imperioso recorrer a eles quando se deseja como deseja

Quintiliano oferecer um vislumbre do cosmo total desde o microcosmo particular da muacutesica

Eacute o que trataremos de observar a seguir

22 Corpo e alma

Apoacutes ter introduzido no fim do cap19 as noccedilotildees de masculino e feminino A Q

natildeo volta a mencionaacute-las em nenhum momento ateacute o final do Livro I Natildeo quer isso dizer

todavia que ele jaacute natildeo as leve em conta ou pelo menos que natildeo as subentenda de algum

modo Em todo caso soacute deveraacute retomaacute-las em caraacuteter expliacutecito e operativo a partir do cap8

do Livro II

Φαίνεταί μοι τοίνυν ἡ ψυχή πόρρω μὲν τῶνδε ἡνίκα ἐστὶν ὁμιλοῦσα τῷ

κρείττονι λόγῳ τε ὁμέστιος εἶναι καὶ καθαρεύειν ἐπιθυμίας ἐπὰν δὲ ἐπὶ

τάδε ἀγκλίνῃ καὶ τὴν ἐνταῦθα διατριβὴν πείρᾳ μαθεῖν ἐπιχειρήσῃ

τηνικαῦτα αὐτῇ σώματός τε ἐγγίνεται χρεία καὶ σῶμα ἐπιζητεῖ

πρόσφορον ὑπόκειται δ αὐτῇ θεωρεῖν τὴν ἐν τούτοις διπλόην

ἀρρενότητά τέ φημι καὶ θηλύτητα ἥτις οὐκ ἐν ἐμψύχοις μόνοις ἄρα ἦν

ἀλλὰ κἀν τοῖς φύσει μόνῃ διοικουμένοις φυτῶν τε ὅσα μετάλλων τε

γένη καὶ ἀρωμάτων καὶ γὰρ τούτων δυάς τις ἐπιφαίνεται ἤτοι δι

ἁπαλότητος ἢ λειότητος ἢ εὐχροίας ἢ εὐωδίας ἢ καὶ τῶν ἐναντίων τὴν

ἑτέραν ἐπιδεικνυμένων φύσιν

Parece-me de fato que a alma quando distante das coisas e em comeacutercio

com o superior coabita com a razatildeo e estaacute livre de desejos mas quando

inclina-se para as coisas daqui e intenta aprender atraveacutes da experiecircncia

um modo de existir no tempo entatildeo sendo-lhe necessaacuterio um corpo ela

busca um corpo que lhe seja adequado E eacute da natureza da alma no

tocante aos corpos atentar para a dualidade ou seja para a masculinidade

e para a feminilidade dualidade presente natildeo soacute nos corpos animados

mas tambeacutem nos governados por uma soacute natureza tais como os gecircneros

das plantas dos metais e dos aromas pois tambeacutem neles se manifesta

certa dualidade pois seja pela brandura ou pela suavidade pela bela

aparecircncia ou pelo bom odor seja pelas qualidades contraacuterias apontam

para uma ou outra natureza (II 81-12)

Uma raacutepida contextualizaccedilatildeo nos permitiraacute compreender melhor tanto esta quanto

as demais passagens do cap8 Todo o livro II eacute dedicado agravequilo que no cap5 do livro I A Q

havia definido como muacutesica praacutetica (πρακτικόν) ou educativa (παιδευτικόν) Antes poreacutem de

tratar do seu tema propriamente A Q sente a necessidade de responder agraves objeccedilotildees dos

ceacuteticos4 (dentre os quais ningueacutem menos que Ciacutecero a quem Quintiliano poreacutem hesita em

4 ldquoEacute possiacutevel que os educadores romanos pensassem como Epicuro para quem a muacutesica natildeo tinha qualquer

significado aleacutem de um jogo de sons e concordassem com Ciacutecero que afirmava lsquoque a muacutesica natildeo tem utilidade

alguma aleacutem de um prazer infantil sem valor nenhum posto que natildeo pode guiar-nos agrave felicidadersquo Segundo o

autor romano Corneacutelius Nepos do seacutec I d C lsquoningueacutem ignora que a muacutesica segundo o estado de nossos

costumes natildeo conveacutem a um personagem importantersquo apesar de ter sido levada entre os gregos como lsquodigna de

14

atribuir juiacutezos desfavoraacuteveis acerca da muacutesica) fundamentar a proacutepria ideia de uma formaccedilatildeo

moral atraveacutes da muacutesica E como a accedilatildeo da muacutesica sobre a alma depende tanto da capacidade

ativa da primeira quanto da capacidade receptiva da uacuteltima eacute por esta que ele comeccedila

A alma diz eacute responsaacutevel por dotar de certo ritmo e de ordem (ῥυθμοῦ τινος καὶ

τάξεως) as coisas deste mundo (τῶν ἐνθαδί) Poderiacuteamos dizer embora Quintiliano natildeo o faccedila

aqui explicitamente que a alma portanto eacute masculina em relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Mas

para que possa ser isso eacute preciso que natildeo seja apenas isso De fato diz A Q a alma natildeo

possui uma natureza ou potecircncia uacutenica (οὐδὲ τῶν μονήρη τινὰ φύσιν ἢ δύναμιν ἐχόντων) mas

certa natureza dupla (διπλῆς τινος φύσεως)

A duplicidade da alma consiste em ter sido dotada pelo administrador de todas as

coisas (ὁ τὸ σύπαν διοικῶν) de uma substacircncia divina na qual habita a razatildeo (λoacuteγος) e de

uma substacircncia mundana ou irracional (ἄλογος) na qual habita o desejo (ἐπιθυμία) As duas

naturezas ou potecircncias satildeo necessaacuterias para que a alma atue sobre o mundo corpoacutereo e essa

natureza duacuteplice sem a qual ela seria ineficaz pode-se definir assim a alma soacute eacute ativa em

relaccedilatildeo ao mundo corpoacutereo na medida em que eacute passiva em relaccedilatildeo ao mundo racional Ora a

muacutesica diz Quintiliano no iniacutecio do cap3 do livro II estaacute para a alma irracional assim como a

filosofia estaacute para a alma racional Desse modo ao submeter-se agrave muacutesica a alma irracional

submete-se igualmente agrave razatildeo pois a muacutesica eacute no fundo razatildeo transformada em mateacuteria

sensiacutevel tal como a alma mesma

Isso poreacutem natildeo eacute tudo Entre as duas naturezas da alma haacute um ponto intermeacutedio

que ao submeter o desejo agrave razatildeo confere unidade agraves duas metades Esse ponto intermeacutedio eacute

a memoacuteria (μνήμη) Memoacuteria eacute claro das belezas eternas do mundo suprassensiacutevel5 Desse

modo o dualismo aniacutemico resolve-se num elemento intermediaacuterio resultante da interaccedilatildeo

entre os polos extremos com os quais forma afinal uma triacuteade

Paralelamente a alma (tomada como unidade natildeo mais segundo a interaccedilatildeo das

suas partes) sendo a um soacute tempo ativa (frente ao mundo sensiacutevel) e passiva (perante o

mundo racional) eacute ela proacutepria um ponto intermeacutedio resultante da interaccedilatildeo entre polos

opostos com os quais por sua vez tambeacutem compotildee uma triacuteade As partes e o todo o

microcosmo e macrocosmo assim espelham-se mutuamente

consideraccedilatildeo e estimarsquo rdquo CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-

kagathiacutea Classica (Brasil) 2412 73-85 2011 5 Mesmo se desconsiderarmos esse elemento doutrinal platocircnico a memoacuteria seria ainda uma bela e eficaz

imagem da uniatildeo entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo pois a memoacuteria eacute uma operaccedilatildeo estritamente mental cujos

objetos no entanto satildeo todos oriundos da experiecircncia sensiacutevel

15

Mas a porccedilatildeo desejante (ou irracional) da alma possui igualmente as suas partes

A Q as denomina desejante (ἐπιθυμητική) a qual tende ao relaxamento (ou relaxaccedilatildeo

indulgecircncia) excessivo e impulsiva (θυμικὴ) que tende a uma tensatildeo igualmente desmedida

Fica claro desde logo embora Quintiliano reserve esse comentaacuterio para mais adiante que as

duas porccedilotildees da alma irracional formam uma oposiccedilatildeo do tipo ativo-passivo ou masculino-

feminino restando saber qual seria nesse caso o ponto intermeacutedio

O ponto intermeacutedio satildeo dois por um lado (e acima) a proacutepria porccedilatildeo racional da

alma que eacute inteiriccedila e natildeo se constitui de partes por outro (e abaixo) as paixotildees que resultam

(como A Q descreveraacute a seguir) da mescla entre as potecircncias ativa e passiva da alma As

triacuteades formadas portanto satildeo tambeacutem duas mas de tipos diferentes numa o ponto

intermeacutedio estaacute hierarquicamente acima dos termos opostos noutra hierarquicamente abaixo

A razatildeo da eficaacutecia persuasiva da muacutesica sobre a alma irracional reside

argumenta Quintiliano nas peculiaridades do seu aparato mimeacutetico que lhe permite produzir

a imitaccedilatildeo com mateacuteria similar agrave do objeto imitado Curiosamente esse aparato mimeacutetico eacute

tambeacutem triaacutedico pois a muacutesica imita6 os eacutethe e as paixotildees da alma com os conceitos

(ἐννοίαις) as palavras com as harmonias e a modulaccedilatildeo da voz (ἁρμονίαις καὶ φωνῆς

πλάσει) e a accedilatildeo com os ritmos e o movimento do corpo (ῥυθμοῖς καὶ κινήσει σώματος) A

muacutesica portanto abarca o universo inteiro da accedilatildeo humana desde o seu nascedouro (nos

movimentos afetivos e intelectuais da alma) ateacute sua exteriorizaccedilatildeo em forma de atos e

palavras

Ora sendo a muacutesica sobretudo uma terapia das paixotildees da alma (παθῶν ψυχικῶν

θεραπεία) cabe ao conceito (que siacutentese do conteuacutedo racional a transmitir e da impressatildeo

esteacutetico-emocional a causar estaacute relacionado ao movimentos internos da alma de onde brotam

as accedilotildees) o papel de guiar os elementos do meacutelos perfeito (dicccedilatildeo harmonia e ritmo) O cap8

e os seguintes a comeccedilar pelo trecho acima citado satildeo dedicados justamente a explicar

primeiro como se geram as paixotildees da alma e depois como a muacutesica eacute capaz de imitaacute-las e

de nelas intervir

De iniacutecio A Q trata da dualidade masculino-feminino como uma particularidade

do mundo corpoacutereo a que a alma tem de se submeter Reforccedila o caraacuteter especificamente

corpoacutereo dessa dualidade o fato de que ela natildeo se manifeste apenas em corpos animados (οὐκ

ἐν ἐμψύχοις μόνοις) mas tambeacutem em corpos governados por uma soacute natureza (ἀλλὰ κἀν τοῖς

φύσει μόνῃ διοικουμένοις) Essa observaccedilatildeo parece decorrer da necessidade de distinguir a jaacute

6 II 438-40

16

mencionada duplicidade da alma (razatildeo por que seria natural esperar que somente os corpos

animados estivessem submetidos agrave dualidade a dualidade ao menos entre corpo e alma) do

dualismo propriamente corpoacutereo Em todo caso embora tipicamente corpoacuterea a dualidade

masculino-feminino tambeacutem aqui natildeo se restringe ao fenocircmeno bioloacutegico da diferenciaccedilatildeo

sexual Aleacutem disso essa dualidade natildeo corresponde exatamente a duas espeacutecies opostas de

seres mas a dois polos de um eixo que atravessa de ponta a ponta o mundo corpoacutereo

alcanccedilando portanto e internamente todos os seres nele existentes Desse modo cada ente

particular pode ser tomado como uma resultante da interaccedilatildeo entre os dois princiacutepios em

relaccedilatildeo aos quais ele estabelece por sua vez um ponto intermeacutedio isto eacute uma mescla E eacute

precisamente na produccedilatildeo dessa mescla que o dualismo aniacutemico e o dualismo corpoacutereo se

articulam (II 816-28)

οὐ μόνον οὖν ἐφίεται σώματος ἀλλὰ καὶ τούτου ποιοῦ τινος ἢ γὰρ ἄρρεν

ἠγάπηκεν ἢ θῆλυ καὶ τούτων ὁτὲ μὲν ἄκρατον θάτερον ὁτὲ δὲ ἐξ ἀμφοῖν

ἔχον δεινήν τινα καὶ ὄντως ἄτοπον μίξιν αὐτίκα κἂν μὴ φύσει τοῦ

τοιούτου τύχωσι σώματος αὐταὶ ταῖς σφετέραις τροπαῖς μετερρύθμισάν

τε καὶ ἐς τὸ αὑταῖς ὅμοιον μετέστησαν οὕτως ἐν μὲν ἄρρεσι θῆλυς

ἐπιτρέχει μορφή δι ἣν καὶ ὁ βίος ὦπται τοιοῦτος ἐν δὲ γυναιξὶν ἀνδρεῖον

εἶδος ᾧ καὶ τὸ ἦθος ὅμοιον τεκμαιρόμεθα καὶ ἄνδρες μὴν ἀγένειοι καὶ

γενειάσκουσι γυναῖκες καί τις ἄρρην ἔβλεψεν ὑγρὸν καὶ γυναῖκες γοργὸν

προσεῖδον ὥστε καὶ τῶν ἠθῶν ἕκαστα θηράσεις ἑκάστῃ μορφῇ συνῳδά

A alma portanto natildeo soacute deseja um corpo mas certo tipo de corpo um

corpo masculino ou um corpo feminino Deseja dentre esses agraves vezes um

corpo puro de um tipo ou de outro agraves vezes um corpo que possua uma

curiosa e paradoxal mistura de ambos Assim quando natildeo conseguem

obter naturalmente esse determinado corpo as almas o remodelam

mediante torneios e o transformam em algo semelhante a si mesmas

Dessa forma sobre um corpo masculino recai uma forma feminina (razatildeo

por que tambeacutem sua vida assim se mostra) ou ainda sobre um corpo

feminino uma forma masculina no que tambeacutem assinalamos um eacutethos

similar Haacute homens imberbes e mulheres barbadas homens de lacircnguido

olhar e mulheres com mirada de Goacutergona de modo que cada eacutethos veraacutes

corresponde a uma fisionomia

Uma vez estabelecido o princiacutepio de que o dualismo aniacutemico de algum modo rege

o dualismo corpoacutereo A Q sente-se agrave vontade para tratar de um nos termos do outro

recorrendo para isso aos termos masculino e feminino (II 828-39)

ἐκ δὲ τῆς πρὸς τὸ ἄρρεν ἢ θῆλυ προσπαθείας ἢ πρὸς ἀμφότερον τὰ πάθη

συνίσταται περὶ ψυχήν τὸ μὲν οὖν θῆλυ λίαν ἀνειμένον ᾧ συνᾴδει τὸ

ἐπιθυμητικόν τὸ δ ἄρρεν σφοδρόν τε καὶ δραστήριον ᾧ τὸ θυμικὸν

ὡμοίωται περὶ μὲν οὖν τὸ θῆλυ ψυχῆς τε μέρος καὶ ἀνθρώπων γένος

πλεονάζουσι λῦπαι τε καὶ ἡδοναί περὶ δὲ τὸ ἄρρεν ὀργὴ καὶ θράσος

πάλιν δὲ τούτων γίνονται συζυγίαι λυπῶν τε πρὸς ἡδονὰς καὶ ὀργῆς πρὸς

θράσος καὶ θράσους πρὸς ἡδονὴν καὶ λύπην καὶ ὀργῆς αὖθις πρὸς

ἑκάτερον καὶ πάλιν ἑκάστου πρός τε ἓν καὶ πρὸς πλείω μίξεις καὶ μυρίας

ἄν τις ἐκ τούτων εὕροι τῶν παθῶν εἰκόνας ἐν ποικιλίᾳ θεωρουμένων

17

Conforme o apego ao masculino ao feminino ou a ambos estabelecem-se

as paixotildees da alma O feminino eacute demasiado indulgente e com ele

concorda a alma desejante ao passo que o masculino semelhante agrave alma

impulsiva eacute veemente e ativo Assim tanto na parte feminina da alma

quanto na parcela feminina da humanidade abundam os prazeres e as

dores ao passo que na masculina a ira e a coragem E uma vez mais

datildeo-se combinaccedilotildees entre essas paixotildees das dores com os prazeres da ira

com a coragem da coragem com o prazer e a dor ou da ira novamente

com as demais e ainda de uma com outra qualquer ou com vaacuterias A

partir dessas seria possiacutevel encontrar uma miriacuteade de imagens das

paixotildees em vista da sua variedade

Se a alma por um lado submete o mundo corpoacutereo este por sua vez a espelha

macrocosmicamente nela interferindo mediante interaccedilotildees simpaacuteticas a exemplo do que

ocorre na muacutesica No entanto natildeo satildeo apenas as disposiccedilotildees passivas ou paixotildees que

estabelecem pontes entre a alma e a realidade corpoacuterea Tambeacutem as disposiccedilotildees ativas e

intelectivas estatildeo submetidas ao dualismo masculino-feminino (II 848-69)

ἔστι γὰρ πρῶτον μὲν ἐν ὁρατοῖς ἑκατέραν ἰδεῖν τὴν φύσιν τὸ μὲν

ἀνθηρόν τε καὶ ἐς ὡραϊσμὸν προςφυὲς χρῶμά τε καὶ σχῆμα διαιροῦντα

θηλύτητι τὸ δὲ στυγνόν τε καὶ ἐς σύννοιαν ἄγον ἀρρενότητι πάλιν δὲ ἐν

ἀκοαῖς τοὺς μὲν λείους καὶ προσηνεῖς ἤχους ἐς τὸ θῆλυ τοὺς δὲ

τραχυτέρους εἰς τοὐναντίον ἁρμόττοντα καί ἵνα μὴ τὰ καθ ἕκαστον

λέγω κοινῶς περὶ πάντων ἀποφαντέον ὡς ὅσα μὲν τῶν αἰσθητῶν ἔς τε

ἡδονὴν δελεάζει καὶ ἠρέμα διαχεῖν τὴν γνώμην πέφυκε ταῦτα εἰς τὸ θῆλυ

κριτέον ὅσα δὲ κινεῖ τε εἰς σύννοιαν καὶ ἐγείρει τὸ δραστήριον ταῦτα εἰς

τὴν ἄρρενος μοῖραν ἀπονεμητέον τὰ δέ τοι μηδέτερον ἢ κατὰ μίξιν ἄμφω

δρῶντα ταῦτα τῶν μέσων ἀποφαντέον κατὰ δὴ ταῦτα καὶ περὶ ἐκείνων

λέγωμεν αἳ λόγῳ μέν εἰσι καταληπταὶ τέχναι τε καὶ ἀρεταὶ καὶ ἐπιστῆμαι

ἐκ δὲ τῆς τῶν ὑλῶν ποιότητος περὶ ἃς ἑκάστη τευτάζει τὰς πρὸς ἀλλήλας

διαφορὰς καὶ ὁμοιότητας εἰλήχασιν αἵ τε ἀρεταὶ πρὸς τὰς ἀρετὰς αἵ τε

ἐπιστῆμαι πρὸς τὰς ἐπιστήμας κακίαι τε αὖ πρὸς κακίας καὶ

ἀνεπιστημοσύναι πρὸς ἀμαθίας πάλιν δὲ ἀρεταὶ πρὸς κακίας ἢ ἐπιστήμας

ἢ ἀγνωσίας κακίαι τε αὖ πρὸς τὰς εἰρημένας ποικίλης τινὸς καὶ τῆς κατὰ

ταῦτα πλοκῆς τε οὔσης καὶ μίξεως

A princiacutepio eacute de fato possiacutevel identificar nos objetos visiacuteveis cada

natureza separadamente atribuindo o florido e as formas e cores

decorativas ao feminino e as sombrias e que conduzem agrave reflexatildeo ao

masculino e o mesmo para as coisas audiacuteveis relacionando os sons

suaves e doces ao feminino e os mais aacutesperos ao seu oposto E para que

eu natildeo entre aqui em detalhes eacute preciso dizer que no geral as coisas

sensiacuteveis que induzem ao prazer e que natural e docemente dissolvem o

juiacutezo estas se devem considerar femininas ao passo que aquelas que nos

levam agrave reflexatildeo ou promovem a accedilatildeo se devem designar masculinas Jaacute

aquelas que natildeo atuam nem de uma nem de outra maneira ou o faccedilam

segundo uma mescla de ambas estas se hatildeo de chamar intermediaacuterias

Disso decorre que falemos nos mesmos termos a respeito tambeacutem das

coisas apreendidas pela razatildeo ndash as artes as virtudes e as ciecircncias ndash as

quais devem suas semelhanccedilas e diferenccedilas muacutetuas aos assuntos de que se

ocupam as virtudes no tocante agraves virtudes e as ciecircncias no tocante agraves

ciecircncias e por seu turno os viacutecios no que diz respeito aos viacutecios e a

incultura com respeito agraves ignoracircncias e ainda virtudes com respeito aos

viacutecios ciecircncias ou ignoracircncias e os viacutecios com respeito estes todos

sendo possiacutevel certa combinaccedilatildeo e mescla dessas coisas

18

Cabe observar como A Q ao traccedilar um perfil do masculino e do feminino natildeo

oferece uma lista de entes individuais mas um elenco geneacuterico de qualidades sensiacuteveis das

quais ele passa sem maior detenccedila para o toacutepico das naturezas intermediaacuterias em que estatildeo

incluiacutedas as artes as ciecircncias e as virtudes A menccedilatildeo agraves artes ciecircncias e virtudes eacute

importante neste momento porque uma vez explicado o processo pelo qual atraveacutes de

mesclas dos princiacutepios masculino e feminino satildeo engendradas as paixotildees da alma

Quintiliano deve agora retomar o fio da exposiccedilatildeo e mostrar como a muacutesica por meio de

conceitos palavras ritmos e melodias eacute capaz de imitar essas mesmas paixotildees virtudes

viacutecios etc comunicando agrave alma o respectivo eacutethos Eacute o que faraacute no restante do livro II

23 Os conceitos

No iniacutecio do cap9 A Q retoma o tema dos conceitos com o qual tinha

concluiacutedo o cap7 antes da relativamente longa mas necessaacuteria digressatildeo acerca das paixotildees

da alma O propoacutesito do autor eacute demonstrar como um poeta eacute capaz de transmitir os conceitos

que deseje mediante o emprego de certos procedimentos retoacutericos A Q utiliza exemplos

extraiacutedos de Homero nos quais aponta como o poeta mesclando traccedilos masculinos e

femininos consegue traduzir em palavras uma gama complexa de impressotildees desde

sensaccedilotildees fiacutesicas como rapidez suavidade ou agitaccedilatildeo ateacute caracteres ou julgamentos morais

Esse conceitos (ἐννοήματα) compostos de traccedilos masculinos e femininos ndash conceitos que por

sua vez entram na composiccedilatildeo eacutetica das frases e dos discursos ndash A Q os compara aos

extratos dos quais satildeo feitos os remeacutedios7 e conclui (II 103-18)

τὰ μὲν οὖν ἐς ἄνεσιν ἄγοντα καὶ φαιδρότητα τὸν ἀφελῆ τε καὶ ἡδὺν λόγον

ἐγέννησε τὰ δὲ τὸ σύννουν κινοῦντα καὶ τὸ ὁρμητικὸν τὸν πολιτικόν τε

καὶ ἀγωνιστικὸν ἐξέφηνεν τοῦ μὲν οὖν πολιτικοῦ κατὰ τὸ ἄρρεν τὰ εἴδη

συντομίαι τε καὶ βραχύτητες καὶ ἀξίωμα καὶ μεγαλοπρέπεια τραχύτης τε

καὶ σφοδρότης καὶ μέγεθος καὶ μεστότης ἅπερ τήν τε φυσικὴν ἐμφαίνει

μεγαλόνοιαν τοῦ ἄρρενος μέγεθός τε σώματος καὶ ἁδροτῆτα διανοίας καὶ

τὸ ἐς τὰ μέγιστα τῶν ἔργων ἀνυτικὸν τάχος τοῦ δὲ ἀφελοῦς ἀραιότης

ἁβρότης κάλλη τε καὶ γλυκύτητες ὧν τὰ μὲν τὸ ἀνειμένον τοῦ θήλεος τὰ

δὲ τὸ ἐς ὡραϊσμὸν διαδείκνυσιν ἐπτοημένον γένοιτο δ ἄν τι καὶ τῇ

τούτων πλοκῇ οἷον ἡ δριμύτης τὸ μὲν τάχος ὡς ἄρρεν τὸ δὲ

μικροπρεπὲς ὡς ἐναντίον ἐπιφαίνουσα ἥ τ ἐπιμέλεια τὸ μὲν γλίσχρον

ἔχουσα κατὰ τὸ θῆλυ τὸ δὲ τῆς φιλοπονίας παρεκτεταμένον ὡς ἄρρεν

Assim os conceitos que levam agrave descontraccedilatildeo e agrave alegria produzem uma

frase despojada e doce enquanto os conceitos que mobilizam as partes

intelectiva e impulsiva produzem a frase contenciosa e poliacutetica Os traccedilos

da frase poliacutetica relacionados ao masculino satildeo concisatildeo brevidade

dignidade e elevaccedilatildeo assim como aspereza forccedila grandeza e

completude traccedilos que mostram a grandiosidade natural do masculino a

7 Uma comparaccedilatildeo semelhante jaacute tinha sido feita em II 47-12

19

magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores

trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e

doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros

a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a

exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e

atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade

como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo

masculino

Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem

duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel

Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade

contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de

masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e

mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos

interessa aqui compreender

Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase

feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por

ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por

ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo

como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa

ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de

desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo

remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na

disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma

Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que

poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade

seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma

caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel

quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a

porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade

contradiccedilatildeo alguma

No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a

capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente

aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam

o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante

uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses

materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes

20

Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro

tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais

duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do

diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons

livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma

martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente

tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade

Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a

accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua

presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No

capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a

dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do

discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto

24 As letras

Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto

καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων

γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς

φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς

τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον

ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως

περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων

ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων

τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ

ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε

πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ

ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα

μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν

χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον

ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς

ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς

τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον

διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως

τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν

ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων

κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος

ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ

τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως

eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo

de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais

outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como

as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido

satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que

limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves

enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade

21

temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo

dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo

que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente

eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o

lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute

atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por

sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a

passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes

outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se

com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar

jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua

a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio

das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona

ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o

emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito

aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias

e possuem ambas as naturezas

A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo

primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso

masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais

Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da

classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam

espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo

das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as

consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto

consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as

consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave

nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na

sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz

respeito agraves letras8

As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo

claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que

pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo

Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das

vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de

assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as

quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das

letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes

8 Cf Chapanski 2003 p 22-24

22

Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes

que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais

proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias

enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais

proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em

relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade

As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de

articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua

vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto

meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais

tau delta e theta As guturais capa gama e khi

Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como

ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo

que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as

surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste

em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de

separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas

silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)

seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as

consoantes o polo essencial (formal ou masculino)

AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo

seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais

(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a

doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo

princiacutepio dualista

25 As vogais e o solfejo

Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o

meacutelos (II 126-10)

Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι

λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα

τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ

μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει

23

O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a

harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que

se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo

percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e

ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos

Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo

de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I

Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de

disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute

apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma

harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo

especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das

mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder

perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o

objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e

o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir

encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)

Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς

κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ

ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ

μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον

μετεσχηκότες

A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe

tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e

masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo

intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos

gecircneros com maior ou menor intensidade

No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre

elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa

diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino (II 131-35)

Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς

πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα

πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων

ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς

ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε

τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς

ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς

μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ

συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ

9 Cf West 1994 p178

24

πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα

δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν

ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως

ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt

κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ

λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν

μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ

ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν

ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο

καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως

ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα

φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt

νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται

πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται

τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ

γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων

καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις

σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα

καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ

ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ

Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute

captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as

letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete

examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra

as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e

masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons

mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute

masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois

nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o

ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o

som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige

que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o

alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da

sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua

estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado

intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta

quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino

quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa

na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a

exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta

trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do

alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior

parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo

lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses

examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos

constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e

terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons

semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros

Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais

nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas

internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para

isso novos paracircmetros

O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio

que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou

25

fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais

vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora

a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem

interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)

estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto

importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado

designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais

satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas

Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute

Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de

masculino e feminino em si mesmas10

Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos

remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a

esfericidade da alma11

(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash

mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso

Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves

a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon

feminino) refira-se justamente a esse arredondamento

As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em

razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas

(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua

ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente

relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal

O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do

eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os

extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo

masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo

entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da

verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o

10

Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido

Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo

metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das

observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11

Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De

Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por

que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora

o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo

26

sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo

entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta

Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo

verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave

segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo

lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros

Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro

obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo

excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no

solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)

Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ

εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί

τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες

ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ

αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων

περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ

τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν

τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς

πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ

ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ

λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος

διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt

εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους

διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν

λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ

πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν

μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν

Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente

passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega

satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se

articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que

o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam

intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez

sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por

intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos

dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de

acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos

da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam

No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido

com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das

vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o

ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons

que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida

vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava

em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos

posteriormente por que isso eacute assim

A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim

ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo

27

O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de

quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de

quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores

distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12

Do grave para o agudo (ou de

cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram

denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica

(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era

acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de

um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira

(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da

uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons

ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro

tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo

(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom

O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute

justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do

tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao

ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira

(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da

sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada

μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito

formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava

formado com a nota acrescida

Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada

tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou

agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por

eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)

Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει

κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ

τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν

πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ

θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα

γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά

12

Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2

T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)

28

Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao

masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos

em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram

dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os

sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no

entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da

passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes

Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave

formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo

decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso

ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como

o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13

os rechaccedilavam por

completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14

(II 1488-90)

περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς

παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας

Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam

na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da

alma

Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos

instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo

mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes

mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais

como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se

apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta

a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo

a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as

noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura

tonal (II 1623-40)

Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα

διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ

θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος

μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα

εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν

ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ

τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ

πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν

περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον

θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον

ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι

13

Repuacuteblica 398c 14

Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)

29

δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς

τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν

οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν

ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt

Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela

sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute

feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais

do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua

tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se

descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade

e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por

gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito

debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde

participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira

participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros

intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua

natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar

cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza

iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo

interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam

familiares

No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os

instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o

dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em

que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria

dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado

por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da

muacutesica sobre a alma

O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro

245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo

ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees

superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da

regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo

anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto

ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees

hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm

pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15

15

Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida

(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a

associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre

medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente

que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento

que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a

30

Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite

(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os

nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm

unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses

nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo

masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria

Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo

residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real

manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo

um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas

entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do

universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os

planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros

26 A muacutesica das esferas

Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves

teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem

acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma

definiccedilatildeo (III 211-6)

Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν

ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ

φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον

τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν

διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει

Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o

feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e

amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o

esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de

sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo

AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero

proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute

elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza

(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas

antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura

que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo

31

Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os

planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e

femininas (III 216-40)

ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης

γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον

ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ

δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ

ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ

θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι

τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον

μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε

μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης

προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ

πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος

ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ

νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ

ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε

ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς

Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης

ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως

ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε

θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ

ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν

ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε

ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης

ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ

μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν

παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ

τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων

συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν

θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ

ἐπίπονος τὸν ἄρρενα

A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por

toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda

um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do

feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa

tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e

nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios

e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do

feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de

Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota

acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute

no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol

(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se

regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem

tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais

familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute

luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente

uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente

feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol

emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e

impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som

que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo

de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante

ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma

equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de

32

Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e

quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo

sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que

eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino

Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal

correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota

do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao

eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de

masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as

devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam

a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde

PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO

NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa

VOGAL ε α η ω α η Ω

Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a

meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o

eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe

apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por

outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela

soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim

seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo

ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas

pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo

Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco

pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter

especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a

correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e

as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como

essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda

oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de

Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido

Primeiro tetracorde Segundo tetracorde

33

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico

Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o

ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava

somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por

uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado

ou o ponto intermeacutedio

Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica

inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo

princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros

e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado

sob sua tutela

Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a

muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a

qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto

meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional

passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num

polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a

alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a

alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de

Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge

para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim

sucessivamente

Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua

organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata

da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se

reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical

os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura

da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual

o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado

primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas

mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro

torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim

dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16

16

Gueacutenon 1999 p23

34

No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser

dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de

analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre

regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos

incomensuraacuteveis

Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de

seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas

vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade

necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que

estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade

assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada

impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a

um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por

exemplo da lua e da alma

Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as

ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou

aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que

embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres

ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia

nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de

fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas

qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas

graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo

tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais

uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a

coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e

lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num

mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao

masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora

dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo

Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo

de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o

acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o

35

fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino

teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse

fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo

Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo

contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa

A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o

outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre

quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na

quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um

compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la

A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-

feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e

feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a

posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria

necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo

para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente

masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude

de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo

privativa

Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito

de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem

duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e

quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre

ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos

guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e

sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais

difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta

porosa uacutemida ou fechada

Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a

sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns

dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso

condiccedilotildees

Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo

naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem

36

necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas

se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou

outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)

Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo

condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de

fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees

associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o

caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute

necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa

objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da

mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos

dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do

iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num

patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado

intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos

individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo

Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees

de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam

somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre

esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes

noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre

relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma

espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila

Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos

loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou

analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ

ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)

A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas

relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse

processo igualmente uma relaccedilatildeo

Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et

du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee

notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas

moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux

celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou

encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de

nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui

37

exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est

en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le

plus petit comme analogue du plus grand)17

Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que

unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter

entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel

unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia

Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres

primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune

corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos

on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification

du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par

harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se

ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une

neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au

deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure

deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en

son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception

originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la

conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique

de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre

partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18

Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de

predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e

mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na

matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo

desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =

2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que

a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas

premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo

A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-

1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua

vez se apoiu em Aristoacuteteles19

) estabelece trecircs tipos de analogia20

A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o

termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo

17

Borella 2012 p23 18

Moutsopoulos 2004 p203-204 19

Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada

pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais

ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre

chez Aristote Paris PUF 1962 20

A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23

38

grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

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Page 3: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

Y a-t-il une possibiliteacute pour que dans le creacutepuscule

nous puissions saisir quelque chose de ce qui a eacuteteacute

lrsquoaurore Y a-t-il quelque chose qui dans le dernier

moment reponde au premier moment Nous sommes

peut-ecirctre dans une nuit qui va preacuteceacuteder un nouveau

jour

Nous sommes agrave la veille du plus enorme changement

sur la terre Est-ce que dans cette nuit nous ne

pouvons pas avoir quelques clarteacutes sur ce quit fut

lrsquoaube de la penseacutee humaine et sur lrsquooriginaire agrave

venir

Martin Heidegger

(Arnoux 1960 p8 apud M Jean Wahl Lrsquoideacutee drsquoecirctre chez Heidegger 1951)

RESUMO

O tratado Da Muacutesica de Aristides Quintiliano eacute provavelmente o mais completo registro da

estreita relaccedilatildeo entre reflexatildeo filosoacutefica e teoria musical na Greacutecia Antiga Neste trabalho

busco de iniacutecio mapear o perfil descritivo das noccedilotildees de masculino (ἄρρεν) e feminino (θῆλυ)

centrais no tratado de Quintiliano para a concepccedilatildeo da muacutesica como um sistema

cosmoloacutegico e um saber interdisciplinar Em seguida interrogo o estatuto loacutegico e ontoloacutegico

desses conceitos e por fim busco compreender o raciociacutecio analoacutegico decorrente do emprego

que Quintiliano daacute a essas noccedilotildees

Palavras-chave Da Muacutesica Aristides Quintiliano Masculino Feminino

ABSTRACT

Aristides Quintilianusrsquo On music is probably the most accomplished treatise documenting the

close connection between philosophical thought and musical theory in Ancient Greece In this

work I intend to scrutinize through descriptive lens at first the notions of masculine

(ἄρρεν) and feminine (θῆλυ) which play a substantial role in Quintilianusrsquo conception of

music as a cosmological system and interdisciplinary science Then I ask questions about the

logical and ontological basis of those notions and finally I try to understand the analogical

reasoning they seem to imply

Keywords On music Aristides Quintilianus Masculine Feminine

SUMAacuteRIO

1 Introduccedilatildeo 7

2 Masculino e feminino 10

21 Meacutelos e rhythmoacutes 10

22 Corpo e alma 13

23 Os conceitos 18

24 As letras 20

25 As vogais e o solfejo 22

26 A muacutesica das esferas 30

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico 33

4 Agrave guisa de conclusatildeo 42

BIBLIOGRAFIA 43

7

1 Introduccedilatildeo

A abstraccedilatildeo eacute o pecado original de toda ciecircncia e eacute perfeitamente natural que seja

assim Nossa linguagem natildeo pode pretender abarcar numa visada uacutenica os muacuteltiplos aspectos

de um objeto qualquer sem multiplicar ao mesmo tempo as razotildees de equiacutevoco Eacute por isso

que para a compreensatildeo de um uacutenico objeto satildeo necessaacuterias dezenas de ciecircncias que o

enfoquem sob os diversos pontos de vista O uacutenico incoveniente eacute que no mais das vezes

dezenas de aspectos natildeo chegam a formar um objeto de modo que enquanto o olho continua

enxergando um mundo onde a cabeccedila estaacute sobre o pescoccedilo a inteligecircncia vai compondo para

si um universo cada vez mais cubista

Este trabalho fiquem tranquilos natildeo pretende atacar este problema pelo menos

natildeo diretamente Nosso objetivo eacute expor (e na medida do possiacutevel quem sabe ateacute

compreender) como mediante o emprego de uma ferramenta intelectual simples (e

ultrapassada segundo a opiniatildeo corrente que com frequecircncia esquece ou sequer percebe o

quanto a ela tem recorrido) nosso autor pretendeu romper fronteiras ontoloacutegicas e oferecer

uma descriccedilatildeo unificada do mundo submetendo nesse processo conhecimentos de ordem

absolutamente heterogecircnea (que vatildeo da astronomia agrave ciecircncia poliacutetica da psicologia agrave criacutetica

literaacuteria) a um mesmo par de conceitos

Nosso autor chama-se Aristides Quintiliano e o seu livro eacute o tratado de teoria

musical intitulado Da Muacutesica (ΠΕΡΙ ΜΟΥΣΙΚΗΣ ΤΡΙΤΟΝ) obra em que todos os esforccedilos

convergem para um objetivo bastante ambicioso integrar numa visatildeo unitaacuteria os variados

aspectos daquilo que a cultura grega um dia produziu sob o nome de μουσική empreitada que

demanda uma articulaccedilatildeo entre duas vertentes rivais no campo da teoria musical a tradiccedilatildeo

pitagoacuterica e a tradiccedilatildeo aristoxecircnica Nos bastidores dessa articulaccedilatildeo onipresentemente estatildeo

Aristoacuteteles e Platatildeo

Desconhece-se quem tenha sido historicamente o indiviacuteduo que atende por

Aristides Quintiliano Alguns sustentam1 que tenha sido um escravo de Marcus Fabius

Quintilianus outros que tenha sido seu filho e outros ainda que seja o proacuteprio autor da

Institutio oratoria Haacute tambeacutem a hipoacutetese de que tenha sido um saacutebio da corte do imperador

Adriano embora natildeo se possa precisar qual deles exatamente (por ora satildeo duas as

alternativas)

1 Para mais detalhes sobre essas hipoacuteteses Mathiesen 1983 p11-12

8

Agrave indecisatildeo quanto agrave identidade do autor soma-se a incerteza na dataccedilatildeo da obra

Quintilino por um lado cita Ciacutecero (assassinado em 43 aC) e de outro foi usado como fonte

por Martianus Capella na redaccedilatildeo do livro IX do seu De nuptiis Philologiae et Mercurii

Como a redaccedilatildeo do De nuptiis eacute datada da primeira metade do seacutecV dC os comentadores

concordam em situar o De muacutesica e seu autor entre o I e o IV seacuteculos depois de Cristo

No conjunto da tratadiacutestica musical grega o De muacutesica ocupa ao lado dos

Elementos Harmocircnicos de Aristoacutexeno (segunda metade do seacutecIV aC) e da Harmocircnica (que

data de meados do seacutec II dC) de Ptolomeu um lugar de destaque Dentre esses trecircs

principais tratados no entanto o de Quintiliano eacute o uacutenico a nos oferecer uma ldquoexposiccedilatildeo

completa dos aspectos filosoacuteficos da muacutesica gregardquo (COLOMBER L GIL B 1996 p19)

Este trabalho objetiva abordar apenas um desses aspectos filosoacuteficos as noccedilotildees de masculino

(ἄρρεν) e feminino (θῆλυ)

No De muacutesica as noccedilotildees de masculino e feminino cumprem um papel estrateacutegico

Eacute essa dualidade que como princiacutepio estruturante fundamenta a doutrina dos eacutethe musicais

na sua interaccedilatildeo simpaacutetico-eacutetico-pedagoacutegica com as potecircncias da alma Trata-se aleacutem disso

de um princiacutepio que atua sobre todo o mundo corpoacutereo analogando os entes deste mundo uns

com os outros e estes mesmos por sua vez com as realidades celestes

Todavia embora Quintiliano apoiado na ferramenta da analogia e mediante o

emprego das noccedilotildees de masculino e feminino alcance conceber e expor uma visatildeo more

musicale demonstrata unitaacuteria do universo nem por isso se daacute o trabalho de tratar mais

detidamente dessas duas noccedilotildees e se insinua fazecirc-lo eacute sempre em funccedilatildeo de um objetivo

descritivo imediato Quanto agrave analogia expediente dos mais frequentes no De muacutesica

Quintiliano natildeo chega a abordaacute-la como uma teoria em si mesma embora expediente e teoria

estejam ambos em seu tratado indissociaacutevel e necessariamente ligados

Meu objetivo aqui eacute tratar particularmente das noccedilotildees de masculino e feminino e

natildeo do modo como essas noccedilotildees fundamentam as doutrinas esteacuteticas poliacuteticas pedagoacutegicas

cosmoloacutegicas ou metafiacutesicas relacionadas agrave reflexatildeo musical grega Assim na primeira parte

do trabalho busco traccedilar um perfil descritivo inicial partindo para isso das passagens

traduzidas e comentadas em que Quintiliano emprega ilustra ou explica essas noccedilotildees Num

segundo momento tento sondar o estatuto loacutegico e ontoloacutegico das noccedilotildees de masculino e

feminino sem no entanto extrapolar o acircmbito estritamente cosmoloacutegico no qual Quintiliano

se deteacutem

Como Quintiliano divide o tratado em trecircs livros ndash um primeiro dedicado agrave arte

musical propriamente dita ou muacutesica audiacutevel um segundo que trata da muacutesica enquanto

9

ferramenta pedagoacutegica e imagem da alma e um terceiro livro no qual aborda os fundamentos

matemaacuteticos e cosmoloacutegicos dos livros anteriores ndash e como as noccedilotildees de masculino e

feminino satildeo abordadas sempre a propoacutesito mas sem ordem aparente ao longo de todos os

trecircs livros resulta absolutamente impossiacutevel natildeo avanccedilar em saltos Pretendi minimizar esse

inconveniente seguindo estritamente a ordem da exposiccedilatildeo (teria seguido a ordem das razotildees

se tivesse encontrado alguma) Tentei tambeacutem nos comentaacuterios agraves passagens preencher os

hiatos expositivos informando o contexto de onde cada passagem foi retirada

Na seleccedilatildeo das passagens a analisar foi preciso excluir algumas (natildeo muitas) cujo

conteuacutedo natildeo fosse especialmente relevante para o objetivo deste trabalho Os trechos

excluiacutedos constituem-se sobretudo de informaccedilotildees jaacute dadas ou de simples menccedilotildees dos

termos masculino e feminino Fico grato a quem me possa informar alguma omissatildeo

imperdoaacutevel

Disse acima que as noccedilotildees de masculino e feminino tecircm papel estrateacutegico no

tratado de Aristides Quintiliano Natildeo eacute sem estrateacutegia igualmente que essas noccedilotildees satildeo

apresentadas ao leitor A Q abre os capiacutetulos iniciais do livro I expondo os motivos (a

ignoracircncia e leviandade dos seus contemporacircneos com relaccedilatildeo agrave musica) e o escopo da sua

iniciativa A muacutesica para ele natildeo eacute um divertimento banal mas a ordem impliacutecita por traacutes da

natureza

Concluiacutedo o preacircmbulo ele desce das alturas e passa a tratar da muacutesica stricto

sensu No capiacutetulo 5 do livro I propotildee uma divisatildeo da mateacuteria em duas partes muacutesica praacutetica

e muacutesica teoacuterica Cada parte por sua vez eacute subdividida em duas outras A teoacuterica em muacutesica

da natureza e teacutecnica musical a praacutetica tambeacutem chamada educativa em composiccedilatildeo (ou uso)

musical e expressatildeo musical Quintiliano aborda a seguir os dois primeiros aspectos da

teacutecnica musical o ritmo e o meacutelos Eacute soacute entatildeo que menciona pela primeira vez os termos

masculino e feminino

10

2 Masculino e feminino

21 Meacutelos e rhythmoacutes

Como vimos eacute somente apoacutes ter tratado da teoria harmocircnica (Livro I caps 6-12)

e da teoria riacutetmica (caps 13-19) que A Q emprega pela primeira vez os termos ἄρρεν e θῆλυ

Diz ele (I 1925-30)

τινὲς δὲ τῶν παλαιῶν τὸν μὲν ῥυθμὸν ἄρρεν ἀπεκάλουν τὸ δὲ μέλος θῆλυ τὸ μὲν

γὰρ μέλος ἀνενέργητόν τ ἐστὶ καὶ ἀσχημάτιστον ὕλης ἐπέχον λόγον διὰ τὴν πρὸς

τοὐναντίον ἐπιτηδειότητα ὁ δὲ ῥυθμὸς πλάττει τε αὐτὸ καὶ κινεῖ τεταγμένως

ποιοῦντος λόγον ἐπέχων πρὸς τὸ ποιούμενον

Alguns dos antigos chamavam o ritmo de masculino e o meacutelos de feminino pois o

meacutelos eacute sem atualidade e sem forma possuindo o logos da mateacuteria pela sua aptidatildeo

para os contraacuterios ao passo que o ritmo move ordenadamente o meacutelos e o modela

possuindo o logos do criador com relaccedilatildeo ao que eacute criado

Evidentemente o meacutelos sem atualidade e sem forma mencionado nesta passagem

natildeo eacute exatamente o mesmo que capiacutetulos atraacutes (I 121-3) A Q definiu como meacutelos teacuteleion

ou meacutelos perfeito (aquele que combina harmonia ritmo e dicccedilatildeo) mas o meacutelos em sentido

proacuteprio (ἰδιαίτερον) e estrito um entrelaccedilamento de sons desiguais quanto agrave altura tonal isto

eacute de sons que se articulam desde a perspectiva de uma oposiccedilatildeo qualitativa de base a

oposiccedilatildeo entre grave e agudo

Tambeacutem a noccedilatildeo de ritmo eacute aqui empregada em sentido restrito e sequer

corresponde agrave totalidade daquilo que dentro do escopo da teoria musical e segundo o proacuteprio

A Q (I 1319-20) estaacute submetido agrave ordenaccedilatildeo riacutetmica os movimentos do corpo da melodia

e da dicccedilatildeo ou seja a danccedila a muacutesica e a poesia

No iniacutecio do capiacutetulo 13 Livro I A Q estabelece trecircs acepccedilotildees para o termo

ritmo conforme os objetos aos quais o termo seja aplicado Haacute assim o ritmo dos corpos

imoacuteveis o dos corpos moacuteveis e o ritmo em sentido proacuteprio (ἰδίως) que eacute o ritmo quando

aplicado agrave voz (ἐπὶ φωνῆς) ou ao som Eacute com respeito a esta uacuteltima acepccedilatildeo que diz ele (I

136-8) o ritmo se organiza segundo uma oposiccedilatildeo de estados denominados aacutersis e theacutesis

ruiacutedo e repouso (ἄρσιν καὶ θέσιν ψόφον καὶ ἠρεμίαν)

Certamente natildeo eacute coincidecircncia o fato de que cada termo da dualidade ritmo-

melodia se articule internamente tambeacutem segundo uma oposiccedilatildeo qualitativa Mais adiante

teremos ocasiatildeo de interrogar como essas (e outras) oposiccedilotildees especiacuteficas se articulam entre

si e todas por sua vez com a dualidade masculino-feminino a que A Q nos introduz

formalmente na passagem citada mas com a qual assim nos parece ele conta desde o iniacutecio

11

Em I 236-7 A Q nos daacute uma pista ao fazer da interaccedilatildeo entre os dissimilares a

condiccedilatildeo necessaacuteria de tudo o que vem a ser Embora Quintiliano nessa passagem designe

esses dissimilares (ἀνομοίων) como ldquoγεννωμένωνrdquo termo que Mathiesen (1983 p108)

traduz como ldquoprogenitoresrdquo o princiacutepio que ele aiacute enuncia natildeo poderia pela natureza do

assunto (ritmo e meacutetrica) estar circunscrito ao acircmbito exclusivo da reproduccedilatildeo sexuada

Em nota ao trecho (I 1925-30) reproduzido acima Barker (1990 p445) apoacutes

apontar a origem aristoteacutelica dos conceitos de agente e mateacuteria considera problemaacutetica a

fonte de sua associaccedilatildeo com as noccedilotildees de masculino e feminino embora essa associaccedilatildeo seja

mencionada tambeacutem em Aristoacuteteles

The terms of this distinction between matter and agent are Peripatetic and their

use here recalls Aristotles account of the male and female contributions to

reproduction (eg De Gen An 730b) Similar conceptions of the roles of melody

and rhythm are suggested by ps-Ar Probs xix49We cannot confidently identify

the origin of the application of sexual distinctions to music (used extensively by

Aristides in Book 11) and specifically of the equation of rhythm with male melody

with female such ideas may possibly be connected with the school of Damon

Colomer e Gil (1996 p96) satildeo mais especiacuteficos ao apontar uma possiacutevel origem

aristoxecircnica para a aplicaccedilatildeo das noccedilotildees aristoteacutelicas de ato e mateacuteria ao par ritmo e meacutelos

hipoacutetese que no fundo o proacuteprio Barker natildeo descarta jaacute que como diz os Elementa

Rhythmica satildeo ldquoa major source for the section on rhythmics in chs 13-19 of 12 Arist Quint

De Mus Book 1rdquo (1990 p193)

De fato nos Elementa Rhythmica (Livro II fr03) Aristoacutexeno refere-se ao ritmo e

ao ritmaacutevel (ῥυθμιζομένου) como duas naturezas especiacuteficas (δύο τινὰς φύσεις) as quais

estariam uma para outra como a forma (τὸ σχῆμα) estaacute para o que eacute formado (τὸ

σχηματιζόμενον) Aristoacutexeno eacute a princiacutepio ateacute mais abrangente que A Q jaacute que a relaccedilatildeo eacute

estendida a todos os ritmaacuteveis (corpo melodia e dicccedilatildeo) e natildeo exclusiva e especificamente ao

meacutelos Poreacutem para que natildeo haja duacutevida ele faz questatildeo de explicitar a relaccedilatildeo entre ritmo e

meacutelos ao mencionar adiante (fr04) que ldquoo mesmo [loacutegos] se aplica ao meacutelos e ao que quer

que tenha surgido para ser submetido ao ritmordquo2

Para A Q o meacutelos eacute ldquoἀσχημάτιστονrdquo3 informe para Aristoacutexeno eacute

ldquoσχηματιζόμενονrdquo algo que padece a forma Aleacutem de natildeo haver diferenccedila conceitual

2 Ὁ αὐτὸς δὲ λόγος καὶ ἐπὶ τοῦ μέλους καὶ εἴ τι ἄλλο πέφυκε ῥυθμίζεσθαι ou na traduccedilatildeo de Barker (1990

p185) ldquoThe same can be said about melody too and about anything else whose nature it is to be made rhythmic

[rhythmizesthai]rdquo 3 Quintiliano tambeacutem denomina o meacutelos ldquoἀνενέργητόνrdquo o que obviamente remete ao conceito de ato (ἐνέργεια

ou ἐντελέχεια) por oposiccedilatildeo agrave potecircncia (δuacuteναμις) termo que A Q emprega com relaccedilatildeo aos graus da escala O

12

relevante entre os dois termos ambos apontam para uma acepccedilatildeo mais abrangente e mais

primitiva do rhythmoacutes Segundo Colomer e Gil (op cit loc cit) ldquoos termos rhythmoacutes e

schecircma foram a princiacutepio quase sinocircnimos embora depois a palavra rhythmoacutes se tenha

aplicado preferencialmente agrave forma em movimento e schecircma agrave forma estaacuteticardquo Ora essa

identificaccedilatildeo originaacuteria se esclarece a primeira e a segunda acepccedilotildees atribuiacutedas por A Q ao

termo ritmo (o ritmo dos corpos imoacuteveis e dos corpos moacuteveis) igualmente demonstra a

profunda unidade que coere aquelas trecircs acepccedilotildees pois em todas predomina a ideia de uma

determinaccedilatildeo formal

Haacute no entanto apesar dos paralelismos (mesmo no tocante agrave ordem de

exposiccedilatildeo) uma diferenccedila notaacutevel entre os textos de Aristoacutexeno e de Aristides Quintiliano Eacute

que Aristoacutexeno embora visivelmente preocupado esmiuccedilar a diferenccedila entre o ritmo e os

ritmaacuteveis natildeo recore para isso agraves noccedilotildees de masculino e feminino O tratado de Aristoacutexeno

tudo indica foi uma das principais fontes dos caps 13-19 do Livro I de A Q mas certamente

natildeo foi a uacutenica

Embora como sugerem Colomer e Gil o ingresso na teoria musical dos termos

masculino e feminino possa ter tido origem damoniana (e natildeo ser portanto histoacuterica e

originalmente pitagoacuterica) natildeo haacute duacutevida de que os termos ἄρρεν e θῆλυ fazem parte do

vocabulaacuterio filosoacutefico pitagoacuterico Sabemos disso porque Aristoacuteteles (Metafiacutesica 986a25) os

elenca entre famosos dez princiacutepios pitagoacutericos Noutra passagem da Metafiacutesica (988a2-10)

em que critica a concepccedilatildeo pitagoacuterico-platocircnica da diacuteada Aristoacuteteles natildeo somente explica a

conexatildeo entre as noccedilotildees de forma e mateacuteria e o par masculino-feminino mas afirma o caraacuteter

principial deste uacuteltimo

Com efeito eles pretendem derivar da mateacuteria uma multiplicidade se

bem que a Forma soacute gere uma vez ora o que observamos eacute que a mesa eacute

feita de um pedaccedilo de mateacuteria enquanto o homem que aplica a forma

apesar de ser um faz muitas mesas E a relaccedilatildeo entre macho e fecircmea

assemelha-se a esta pois a fecircmea eacute emprenhada numa soacute coacutepula ao passo

que o macho emprenha muitas fecircmeas E todavia estes fatos satildeo imagens

daqueles primeiros princiacutepios Eis aiacute pois como se pronunciou Platatildeo

acerca destes problemas pelo que ficou ditou eacute evidente que ele usou

apenas duas causas a essencial e a material ()

Se os fatos aparentemente desconexos da reproduccedilatildeo sexuada e da fabricaccedilatildeo de

uma mesa satildeo imagens ou imitaccedilotildees (μιμήματα) daqueles princiacutepios (τῶν ἀρχῶν ἐκείνων)

isto eacute dos princiacutepios essencial e substancial ndash ou em linguagem aristoteacutelica da causa material

e da causa formal ndash natildeo somente eacute liacutecito contar com a manifestaccedilatildeo desses princiacutepios tambeacutem

fato de que na passagem em tela ele recorra ao expediente privativo em vez empregar os termos proacuteprios natildeo

obscurece a distinccedilatildeo conceitual

13

no acircmbito da muacutesica mas se torna imperioso recorrer a eles quando se deseja como deseja

Quintiliano oferecer um vislumbre do cosmo total desde o microcosmo particular da muacutesica

Eacute o que trataremos de observar a seguir

22 Corpo e alma

Apoacutes ter introduzido no fim do cap19 as noccedilotildees de masculino e feminino A Q

natildeo volta a mencionaacute-las em nenhum momento ateacute o final do Livro I Natildeo quer isso dizer

todavia que ele jaacute natildeo as leve em conta ou pelo menos que natildeo as subentenda de algum

modo Em todo caso soacute deveraacute retomaacute-las em caraacuteter expliacutecito e operativo a partir do cap8

do Livro II

Φαίνεταί μοι τοίνυν ἡ ψυχή πόρρω μὲν τῶνδε ἡνίκα ἐστὶν ὁμιλοῦσα τῷ

κρείττονι λόγῳ τε ὁμέστιος εἶναι καὶ καθαρεύειν ἐπιθυμίας ἐπὰν δὲ ἐπὶ

τάδε ἀγκλίνῃ καὶ τὴν ἐνταῦθα διατριβὴν πείρᾳ μαθεῖν ἐπιχειρήσῃ

τηνικαῦτα αὐτῇ σώματός τε ἐγγίνεται χρεία καὶ σῶμα ἐπιζητεῖ

πρόσφορον ὑπόκειται δ αὐτῇ θεωρεῖν τὴν ἐν τούτοις διπλόην

ἀρρενότητά τέ φημι καὶ θηλύτητα ἥτις οὐκ ἐν ἐμψύχοις μόνοις ἄρα ἦν

ἀλλὰ κἀν τοῖς φύσει μόνῃ διοικουμένοις φυτῶν τε ὅσα μετάλλων τε

γένη καὶ ἀρωμάτων καὶ γὰρ τούτων δυάς τις ἐπιφαίνεται ἤτοι δι

ἁπαλότητος ἢ λειότητος ἢ εὐχροίας ἢ εὐωδίας ἢ καὶ τῶν ἐναντίων τὴν

ἑτέραν ἐπιδεικνυμένων φύσιν

Parece-me de fato que a alma quando distante das coisas e em comeacutercio

com o superior coabita com a razatildeo e estaacute livre de desejos mas quando

inclina-se para as coisas daqui e intenta aprender atraveacutes da experiecircncia

um modo de existir no tempo entatildeo sendo-lhe necessaacuterio um corpo ela

busca um corpo que lhe seja adequado E eacute da natureza da alma no

tocante aos corpos atentar para a dualidade ou seja para a masculinidade

e para a feminilidade dualidade presente natildeo soacute nos corpos animados

mas tambeacutem nos governados por uma soacute natureza tais como os gecircneros

das plantas dos metais e dos aromas pois tambeacutem neles se manifesta

certa dualidade pois seja pela brandura ou pela suavidade pela bela

aparecircncia ou pelo bom odor seja pelas qualidades contraacuterias apontam

para uma ou outra natureza (II 81-12)

Uma raacutepida contextualizaccedilatildeo nos permitiraacute compreender melhor tanto esta quanto

as demais passagens do cap8 Todo o livro II eacute dedicado agravequilo que no cap5 do livro I A Q

havia definido como muacutesica praacutetica (πρακτικόν) ou educativa (παιδευτικόν) Antes poreacutem de

tratar do seu tema propriamente A Q sente a necessidade de responder agraves objeccedilotildees dos

ceacuteticos4 (dentre os quais ningueacutem menos que Ciacutecero a quem Quintiliano poreacutem hesita em

4 ldquoEacute possiacutevel que os educadores romanos pensassem como Epicuro para quem a muacutesica natildeo tinha qualquer

significado aleacutem de um jogo de sons e concordassem com Ciacutecero que afirmava lsquoque a muacutesica natildeo tem utilidade

alguma aleacutem de um prazer infantil sem valor nenhum posto que natildeo pode guiar-nos agrave felicidadersquo Segundo o

autor romano Corneacutelius Nepos do seacutec I d C lsquoningueacutem ignora que a muacutesica segundo o estado de nossos

costumes natildeo conveacutem a um personagem importantersquo apesar de ter sido levada entre os gregos como lsquodigna de

14

atribuir juiacutezos desfavoraacuteveis acerca da muacutesica) fundamentar a proacutepria ideia de uma formaccedilatildeo

moral atraveacutes da muacutesica E como a accedilatildeo da muacutesica sobre a alma depende tanto da capacidade

ativa da primeira quanto da capacidade receptiva da uacuteltima eacute por esta que ele comeccedila

A alma diz eacute responsaacutevel por dotar de certo ritmo e de ordem (ῥυθμοῦ τινος καὶ

τάξεως) as coisas deste mundo (τῶν ἐνθαδί) Poderiacuteamos dizer embora Quintiliano natildeo o faccedila

aqui explicitamente que a alma portanto eacute masculina em relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Mas

para que possa ser isso eacute preciso que natildeo seja apenas isso De fato diz A Q a alma natildeo

possui uma natureza ou potecircncia uacutenica (οὐδὲ τῶν μονήρη τινὰ φύσιν ἢ δύναμιν ἐχόντων) mas

certa natureza dupla (διπλῆς τινος φύσεως)

A duplicidade da alma consiste em ter sido dotada pelo administrador de todas as

coisas (ὁ τὸ σύπαν διοικῶν) de uma substacircncia divina na qual habita a razatildeo (λoacuteγος) e de

uma substacircncia mundana ou irracional (ἄλογος) na qual habita o desejo (ἐπιθυμία) As duas

naturezas ou potecircncias satildeo necessaacuterias para que a alma atue sobre o mundo corpoacutereo e essa

natureza duacuteplice sem a qual ela seria ineficaz pode-se definir assim a alma soacute eacute ativa em

relaccedilatildeo ao mundo corpoacutereo na medida em que eacute passiva em relaccedilatildeo ao mundo racional Ora a

muacutesica diz Quintiliano no iniacutecio do cap3 do livro II estaacute para a alma irracional assim como a

filosofia estaacute para a alma racional Desse modo ao submeter-se agrave muacutesica a alma irracional

submete-se igualmente agrave razatildeo pois a muacutesica eacute no fundo razatildeo transformada em mateacuteria

sensiacutevel tal como a alma mesma

Isso poreacutem natildeo eacute tudo Entre as duas naturezas da alma haacute um ponto intermeacutedio

que ao submeter o desejo agrave razatildeo confere unidade agraves duas metades Esse ponto intermeacutedio eacute

a memoacuteria (μνήμη) Memoacuteria eacute claro das belezas eternas do mundo suprassensiacutevel5 Desse

modo o dualismo aniacutemico resolve-se num elemento intermediaacuterio resultante da interaccedilatildeo

entre os polos extremos com os quais forma afinal uma triacuteade

Paralelamente a alma (tomada como unidade natildeo mais segundo a interaccedilatildeo das

suas partes) sendo a um soacute tempo ativa (frente ao mundo sensiacutevel) e passiva (perante o

mundo racional) eacute ela proacutepria um ponto intermeacutedio resultante da interaccedilatildeo entre polos

opostos com os quais por sua vez tambeacutem compotildee uma triacuteade As partes e o todo o

microcosmo e macrocosmo assim espelham-se mutuamente

consideraccedilatildeo e estimarsquo rdquo CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-

kagathiacutea Classica (Brasil) 2412 73-85 2011 5 Mesmo se desconsiderarmos esse elemento doutrinal platocircnico a memoacuteria seria ainda uma bela e eficaz

imagem da uniatildeo entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo pois a memoacuteria eacute uma operaccedilatildeo estritamente mental cujos

objetos no entanto satildeo todos oriundos da experiecircncia sensiacutevel

15

Mas a porccedilatildeo desejante (ou irracional) da alma possui igualmente as suas partes

A Q as denomina desejante (ἐπιθυμητική) a qual tende ao relaxamento (ou relaxaccedilatildeo

indulgecircncia) excessivo e impulsiva (θυμικὴ) que tende a uma tensatildeo igualmente desmedida

Fica claro desde logo embora Quintiliano reserve esse comentaacuterio para mais adiante que as

duas porccedilotildees da alma irracional formam uma oposiccedilatildeo do tipo ativo-passivo ou masculino-

feminino restando saber qual seria nesse caso o ponto intermeacutedio

O ponto intermeacutedio satildeo dois por um lado (e acima) a proacutepria porccedilatildeo racional da

alma que eacute inteiriccedila e natildeo se constitui de partes por outro (e abaixo) as paixotildees que resultam

(como A Q descreveraacute a seguir) da mescla entre as potecircncias ativa e passiva da alma As

triacuteades formadas portanto satildeo tambeacutem duas mas de tipos diferentes numa o ponto

intermeacutedio estaacute hierarquicamente acima dos termos opostos noutra hierarquicamente abaixo

A razatildeo da eficaacutecia persuasiva da muacutesica sobre a alma irracional reside

argumenta Quintiliano nas peculiaridades do seu aparato mimeacutetico que lhe permite produzir

a imitaccedilatildeo com mateacuteria similar agrave do objeto imitado Curiosamente esse aparato mimeacutetico eacute

tambeacutem triaacutedico pois a muacutesica imita6 os eacutethe e as paixotildees da alma com os conceitos

(ἐννοίαις) as palavras com as harmonias e a modulaccedilatildeo da voz (ἁρμονίαις καὶ φωνῆς

πλάσει) e a accedilatildeo com os ritmos e o movimento do corpo (ῥυθμοῖς καὶ κινήσει σώματος) A

muacutesica portanto abarca o universo inteiro da accedilatildeo humana desde o seu nascedouro (nos

movimentos afetivos e intelectuais da alma) ateacute sua exteriorizaccedilatildeo em forma de atos e

palavras

Ora sendo a muacutesica sobretudo uma terapia das paixotildees da alma (παθῶν ψυχικῶν

θεραπεία) cabe ao conceito (que siacutentese do conteuacutedo racional a transmitir e da impressatildeo

esteacutetico-emocional a causar estaacute relacionado ao movimentos internos da alma de onde brotam

as accedilotildees) o papel de guiar os elementos do meacutelos perfeito (dicccedilatildeo harmonia e ritmo) O cap8

e os seguintes a comeccedilar pelo trecho acima citado satildeo dedicados justamente a explicar

primeiro como se geram as paixotildees da alma e depois como a muacutesica eacute capaz de imitaacute-las e

de nelas intervir

De iniacutecio A Q trata da dualidade masculino-feminino como uma particularidade

do mundo corpoacutereo a que a alma tem de se submeter Reforccedila o caraacuteter especificamente

corpoacutereo dessa dualidade o fato de que ela natildeo se manifeste apenas em corpos animados (οὐκ

ἐν ἐμψύχοις μόνοις) mas tambeacutem em corpos governados por uma soacute natureza (ἀλλὰ κἀν τοῖς

φύσει μόνῃ διοικουμένοις) Essa observaccedilatildeo parece decorrer da necessidade de distinguir a jaacute

6 II 438-40

16

mencionada duplicidade da alma (razatildeo por que seria natural esperar que somente os corpos

animados estivessem submetidos agrave dualidade a dualidade ao menos entre corpo e alma) do

dualismo propriamente corpoacutereo Em todo caso embora tipicamente corpoacuterea a dualidade

masculino-feminino tambeacutem aqui natildeo se restringe ao fenocircmeno bioloacutegico da diferenciaccedilatildeo

sexual Aleacutem disso essa dualidade natildeo corresponde exatamente a duas espeacutecies opostas de

seres mas a dois polos de um eixo que atravessa de ponta a ponta o mundo corpoacutereo

alcanccedilando portanto e internamente todos os seres nele existentes Desse modo cada ente

particular pode ser tomado como uma resultante da interaccedilatildeo entre os dois princiacutepios em

relaccedilatildeo aos quais ele estabelece por sua vez um ponto intermeacutedio isto eacute uma mescla E eacute

precisamente na produccedilatildeo dessa mescla que o dualismo aniacutemico e o dualismo corpoacutereo se

articulam (II 816-28)

οὐ μόνον οὖν ἐφίεται σώματος ἀλλὰ καὶ τούτου ποιοῦ τινος ἢ γὰρ ἄρρεν

ἠγάπηκεν ἢ θῆλυ καὶ τούτων ὁτὲ μὲν ἄκρατον θάτερον ὁτὲ δὲ ἐξ ἀμφοῖν

ἔχον δεινήν τινα καὶ ὄντως ἄτοπον μίξιν αὐτίκα κἂν μὴ φύσει τοῦ

τοιούτου τύχωσι σώματος αὐταὶ ταῖς σφετέραις τροπαῖς μετερρύθμισάν

τε καὶ ἐς τὸ αὑταῖς ὅμοιον μετέστησαν οὕτως ἐν μὲν ἄρρεσι θῆλυς

ἐπιτρέχει μορφή δι ἣν καὶ ὁ βίος ὦπται τοιοῦτος ἐν δὲ γυναιξὶν ἀνδρεῖον

εἶδος ᾧ καὶ τὸ ἦθος ὅμοιον τεκμαιρόμεθα καὶ ἄνδρες μὴν ἀγένειοι καὶ

γενειάσκουσι γυναῖκες καί τις ἄρρην ἔβλεψεν ὑγρὸν καὶ γυναῖκες γοργὸν

προσεῖδον ὥστε καὶ τῶν ἠθῶν ἕκαστα θηράσεις ἑκάστῃ μορφῇ συνῳδά

A alma portanto natildeo soacute deseja um corpo mas certo tipo de corpo um

corpo masculino ou um corpo feminino Deseja dentre esses agraves vezes um

corpo puro de um tipo ou de outro agraves vezes um corpo que possua uma

curiosa e paradoxal mistura de ambos Assim quando natildeo conseguem

obter naturalmente esse determinado corpo as almas o remodelam

mediante torneios e o transformam em algo semelhante a si mesmas

Dessa forma sobre um corpo masculino recai uma forma feminina (razatildeo

por que tambeacutem sua vida assim se mostra) ou ainda sobre um corpo

feminino uma forma masculina no que tambeacutem assinalamos um eacutethos

similar Haacute homens imberbes e mulheres barbadas homens de lacircnguido

olhar e mulheres com mirada de Goacutergona de modo que cada eacutethos veraacutes

corresponde a uma fisionomia

Uma vez estabelecido o princiacutepio de que o dualismo aniacutemico de algum modo rege

o dualismo corpoacutereo A Q sente-se agrave vontade para tratar de um nos termos do outro

recorrendo para isso aos termos masculino e feminino (II 828-39)

ἐκ δὲ τῆς πρὸς τὸ ἄρρεν ἢ θῆλυ προσπαθείας ἢ πρὸς ἀμφότερον τὰ πάθη

συνίσταται περὶ ψυχήν τὸ μὲν οὖν θῆλυ λίαν ἀνειμένον ᾧ συνᾴδει τὸ

ἐπιθυμητικόν τὸ δ ἄρρεν σφοδρόν τε καὶ δραστήριον ᾧ τὸ θυμικὸν

ὡμοίωται περὶ μὲν οὖν τὸ θῆλυ ψυχῆς τε μέρος καὶ ἀνθρώπων γένος

πλεονάζουσι λῦπαι τε καὶ ἡδοναί περὶ δὲ τὸ ἄρρεν ὀργὴ καὶ θράσος

πάλιν δὲ τούτων γίνονται συζυγίαι λυπῶν τε πρὸς ἡδονὰς καὶ ὀργῆς πρὸς

θράσος καὶ θράσους πρὸς ἡδονὴν καὶ λύπην καὶ ὀργῆς αὖθις πρὸς

ἑκάτερον καὶ πάλιν ἑκάστου πρός τε ἓν καὶ πρὸς πλείω μίξεις καὶ μυρίας

ἄν τις ἐκ τούτων εὕροι τῶν παθῶν εἰκόνας ἐν ποικιλίᾳ θεωρουμένων

17

Conforme o apego ao masculino ao feminino ou a ambos estabelecem-se

as paixotildees da alma O feminino eacute demasiado indulgente e com ele

concorda a alma desejante ao passo que o masculino semelhante agrave alma

impulsiva eacute veemente e ativo Assim tanto na parte feminina da alma

quanto na parcela feminina da humanidade abundam os prazeres e as

dores ao passo que na masculina a ira e a coragem E uma vez mais

datildeo-se combinaccedilotildees entre essas paixotildees das dores com os prazeres da ira

com a coragem da coragem com o prazer e a dor ou da ira novamente

com as demais e ainda de uma com outra qualquer ou com vaacuterias A

partir dessas seria possiacutevel encontrar uma miriacuteade de imagens das

paixotildees em vista da sua variedade

Se a alma por um lado submete o mundo corpoacutereo este por sua vez a espelha

macrocosmicamente nela interferindo mediante interaccedilotildees simpaacuteticas a exemplo do que

ocorre na muacutesica No entanto natildeo satildeo apenas as disposiccedilotildees passivas ou paixotildees que

estabelecem pontes entre a alma e a realidade corpoacuterea Tambeacutem as disposiccedilotildees ativas e

intelectivas estatildeo submetidas ao dualismo masculino-feminino (II 848-69)

ἔστι γὰρ πρῶτον μὲν ἐν ὁρατοῖς ἑκατέραν ἰδεῖν τὴν φύσιν τὸ μὲν

ἀνθηρόν τε καὶ ἐς ὡραϊσμὸν προςφυὲς χρῶμά τε καὶ σχῆμα διαιροῦντα

θηλύτητι τὸ δὲ στυγνόν τε καὶ ἐς σύννοιαν ἄγον ἀρρενότητι πάλιν δὲ ἐν

ἀκοαῖς τοὺς μὲν λείους καὶ προσηνεῖς ἤχους ἐς τὸ θῆλυ τοὺς δὲ

τραχυτέρους εἰς τοὐναντίον ἁρμόττοντα καί ἵνα μὴ τὰ καθ ἕκαστον

λέγω κοινῶς περὶ πάντων ἀποφαντέον ὡς ὅσα μὲν τῶν αἰσθητῶν ἔς τε

ἡδονὴν δελεάζει καὶ ἠρέμα διαχεῖν τὴν γνώμην πέφυκε ταῦτα εἰς τὸ θῆλυ

κριτέον ὅσα δὲ κινεῖ τε εἰς σύννοιαν καὶ ἐγείρει τὸ δραστήριον ταῦτα εἰς

τὴν ἄρρενος μοῖραν ἀπονεμητέον τὰ δέ τοι μηδέτερον ἢ κατὰ μίξιν ἄμφω

δρῶντα ταῦτα τῶν μέσων ἀποφαντέον κατὰ δὴ ταῦτα καὶ περὶ ἐκείνων

λέγωμεν αἳ λόγῳ μέν εἰσι καταληπταὶ τέχναι τε καὶ ἀρεταὶ καὶ ἐπιστῆμαι

ἐκ δὲ τῆς τῶν ὑλῶν ποιότητος περὶ ἃς ἑκάστη τευτάζει τὰς πρὸς ἀλλήλας

διαφορὰς καὶ ὁμοιότητας εἰλήχασιν αἵ τε ἀρεταὶ πρὸς τὰς ἀρετὰς αἵ τε

ἐπιστῆμαι πρὸς τὰς ἐπιστήμας κακίαι τε αὖ πρὸς κακίας καὶ

ἀνεπιστημοσύναι πρὸς ἀμαθίας πάλιν δὲ ἀρεταὶ πρὸς κακίας ἢ ἐπιστήμας

ἢ ἀγνωσίας κακίαι τε αὖ πρὸς τὰς εἰρημένας ποικίλης τινὸς καὶ τῆς κατὰ

ταῦτα πλοκῆς τε οὔσης καὶ μίξεως

A princiacutepio eacute de fato possiacutevel identificar nos objetos visiacuteveis cada

natureza separadamente atribuindo o florido e as formas e cores

decorativas ao feminino e as sombrias e que conduzem agrave reflexatildeo ao

masculino e o mesmo para as coisas audiacuteveis relacionando os sons

suaves e doces ao feminino e os mais aacutesperos ao seu oposto E para que

eu natildeo entre aqui em detalhes eacute preciso dizer que no geral as coisas

sensiacuteveis que induzem ao prazer e que natural e docemente dissolvem o

juiacutezo estas se devem considerar femininas ao passo que aquelas que nos

levam agrave reflexatildeo ou promovem a accedilatildeo se devem designar masculinas Jaacute

aquelas que natildeo atuam nem de uma nem de outra maneira ou o faccedilam

segundo uma mescla de ambas estas se hatildeo de chamar intermediaacuterias

Disso decorre que falemos nos mesmos termos a respeito tambeacutem das

coisas apreendidas pela razatildeo ndash as artes as virtudes e as ciecircncias ndash as

quais devem suas semelhanccedilas e diferenccedilas muacutetuas aos assuntos de que se

ocupam as virtudes no tocante agraves virtudes e as ciecircncias no tocante agraves

ciecircncias e por seu turno os viacutecios no que diz respeito aos viacutecios e a

incultura com respeito agraves ignoracircncias e ainda virtudes com respeito aos

viacutecios ciecircncias ou ignoracircncias e os viacutecios com respeito estes todos

sendo possiacutevel certa combinaccedilatildeo e mescla dessas coisas

18

Cabe observar como A Q ao traccedilar um perfil do masculino e do feminino natildeo

oferece uma lista de entes individuais mas um elenco geneacuterico de qualidades sensiacuteveis das

quais ele passa sem maior detenccedila para o toacutepico das naturezas intermediaacuterias em que estatildeo

incluiacutedas as artes as ciecircncias e as virtudes A menccedilatildeo agraves artes ciecircncias e virtudes eacute

importante neste momento porque uma vez explicado o processo pelo qual atraveacutes de

mesclas dos princiacutepios masculino e feminino satildeo engendradas as paixotildees da alma

Quintiliano deve agora retomar o fio da exposiccedilatildeo e mostrar como a muacutesica por meio de

conceitos palavras ritmos e melodias eacute capaz de imitar essas mesmas paixotildees virtudes

viacutecios etc comunicando agrave alma o respectivo eacutethos Eacute o que faraacute no restante do livro II

23 Os conceitos

No iniacutecio do cap9 A Q retoma o tema dos conceitos com o qual tinha

concluiacutedo o cap7 antes da relativamente longa mas necessaacuteria digressatildeo acerca das paixotildees

da alma O propoacutesito do autor eacute demonstrar como um poeta eacute capaz de transmitir os conceitos

que deseje mediante o emprego de certos procedimentos retoacutericos A Q utiliza exemplos

extraiacutedos de Homero nos quais aponta como o poeta mesclando traccedilos masculinos e

femininos consegue traduzir em palavras uma gama complexa de impressotildees desde

sensaccedilotildees fiacutesicas como rapidez suavidade ou agitaccedilatildeo ateacute caracteres ou julgamentos morais

Esse conceitos (ἐννοήματα) compostos de traccedilos masculinos e femininos ndash conceitos que por

sua vez entram na composiccedilatildeo eacutetica das frases e dos discursos ndash A Q os compara aos

extratos dos quais satildeo feitos os remeacutedios7 e conclui (II 103-18)

τὰ μὲν οὖν ἐς ἄνεσιν ἄγοντα καὶ φαιδρότητα τὸν ἀφελῆ τε καὶ ἡδὺν λόγον

ἐγέννησε τὰ δὲ τὸ σύννουν κινοῦντα καὶ τὸ ὁρμητικὸν τὸν πολιτικόν τε

καὶ ἀγωνιστικὸν ἐξέφηνεν τοῦ μὲν οὖν πολιτικοῦ κατὰ τὸ ἄρρεν τὰ εἴδη

συντομίαι τε καὶ βραχύτητες καὶ ἀξίωμα καὶ μεγαλοπρέπεια τραχύτης τε

καὶ σφοδρότης καὶ μέγεθος καὶ μεστότης ἅπερ τήν τε φυσικὴν ἐμφαίνει

μεγαλόνοιαν τοῦ ἄρρενος μέγεθός τε σώματος καὶ ἁδροτῆτα διανοίας καὶ

τὸ ἐς τὰ μέγιστα τῶν ἔργων ἀνυτικὸν τάχος τοῦ δὲ ἀφελοῦς ἀραιότης

ἁβρότης κάλλη τε καὶ γλυκύτητες ὧν τὰ μὲν τὸ ἀνειμένον τοῦ θήλεος τὰ

δὲ τὸ ἐς ὡραϊσμὸν διαδείκνυσιν ἐπτοημένον γένοιτο δ ἄν τι καὶ τῇ

τούτων πλοκῇ οἷον ἡ δριμύτης τὸ μὲν τάχος ὡς ἄρρεν τὸ δὲ

μικροπρεπὲς ὡς ἐναντίον ἐπιφαίνουσα ἥ τ ἐπιμέλεια τὸ μὲν γλίσχρον

ἔχουσα κατὰ τὸ θῆλυ τὸ δὲ τῆς φιλοπονίας παρεκτεταμένον ὡς ἄρρεν

Assim os conceitos que levam agrave descontraccedilatildeo e agrave alegria produzem uma

frase despojada e doce enquanto os conceitos que mobilizam as partes

intelectiva e impulsiva produzem a frase contenciosa e poliacutetica Os traccedilos

da frase poliacutetica relacionados ao masculino satildeo concisatildeo brevidade

dignidade e elevaccedilatildeo assim como aspereza forccedila grandeza e

completude traccedilos que mostram a grandiosidade natural do masculino a

7 Uma comparaccedilatildeo semelhante jaacute tinha sido feita em II 47-12

19

magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores

trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e

doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros

a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a

exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e

atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade

como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo

masculino

Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem

duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel

Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade

contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de

masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e

mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos

interessa aqui compreender

Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase

feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por

ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por

ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo

como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa

ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de

desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo

remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na

disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma

Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que

poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade

seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma

caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel

quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a

porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade

contradiccedilatildeo alguma

No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a

capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente

aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam

o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante

uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses

materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes

20

Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro

tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais

duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do

diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons

livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma

martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente

tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade

Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a

accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua

presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No

capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a

dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do

discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto

24 As letras

Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto

καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων

γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς

φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς

τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον

ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως

περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων

ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων

τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ

ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε

πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ

ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα

μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν

χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον

ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς

ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς

τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον

διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως

τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν

ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων

κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος

ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ

τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως

eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo

de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais

outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como

as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido

satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que

limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves

enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade

21

temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo

dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo

que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente

eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o

lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute

atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por

sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a

passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes

outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se

com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar

jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua

a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio

das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona

ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o

emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito

aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias

e possuem ambas as naturezas

A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo

primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso

masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais

Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da

classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam

espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo

das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as

consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto

consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as

consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave

nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na

sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz

respeito agraves letras8

As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo

claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que

pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo

Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das

vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de

assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as

quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das

letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes

8 Cf Chapanski 2003 p 22-24

22

Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes

que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais

proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias

enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais

proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em

relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade

As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de

articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua

vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto

meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais

tau delta e theta As guturais capa gama e khi

Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como

ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo

que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as

surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste

em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de

separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas

silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)

seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as

consoantes o polo essencial (formal ou masculino)

AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo

seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais

(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a

doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo

princiacutepio dualista

25 As vogais e o solfejo

Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o

meacutelos (II 126-10)

Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι

λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα

τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ

μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει

23

O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a

harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que

se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo

percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e

ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos

Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo

de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I

Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de

disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute

apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma

harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo

especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das

mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder

perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o

objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e

o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir

encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)

Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς

κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ

ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ

μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον

μετεσχηκότες

A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe

tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e

masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo

intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos

gecircneros com maior ou menor intensidade

No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre

elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa

diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino (II 131-35)

Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς

πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα

πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων

ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς

ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε

τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς

ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς

μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ

συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ

9 Cf West 1994 p178

24

πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα

δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν

ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως

ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt

κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ

λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν

μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ

ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν

ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο

καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως

ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα

φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt

νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται

πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται

τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ

γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων

καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις

σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα

καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ

ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ

Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute

captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as

letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete

examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra

as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e

masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons

mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute

masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois

nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o

ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o

som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige

que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o

alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da

sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua

estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado

intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta

quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino

quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa

na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a

exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta

trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do

alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior

parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo

lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses

examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos

constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e

terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons

semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros

Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais

nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas

internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para

isso novos paracircmetros

O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio

que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou

25

fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais

vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora

a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem

interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)

estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto

importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado

designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais

satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas

Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute

Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de

masculino e feminino em si mesmas10

Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos

remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a

esfericidade da alma11

(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash

mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso

Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves

a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon

feminino) refira-se justamente a esse arredondamento

As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em

razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas

(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua

ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente

relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal

O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do

eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os

extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo

masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo

entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da

verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o

10

Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido

Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo

metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das

observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11

Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De

Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por

que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora

o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo

26

sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo

entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta

Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo

verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave

segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo

lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros

Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro

obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo

excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no

solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)

Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ

εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί

τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες

ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ

αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων

περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ

τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν

τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς

πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ

ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ

λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος

διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt

εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους

διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν

λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ

πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν

μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν

Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente

passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega

satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se

articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que

o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam

intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez

sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por

intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos

dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de

acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos

da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam

No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido

com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das

vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o

ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons

que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida

vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava

em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos

posteriormente por que isso eacute assim

A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim

ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo

27

O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de

quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de

quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores

distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12

Do grave para o agudo (ou de

cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram

denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica

(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era

acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de

um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira

(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da

uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons

ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro

tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo

(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom

O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute

justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do

tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao

ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira

(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da

sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada

μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito

formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava

formado com a nota acrescida

Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada

tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou

agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por

eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)

Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει

κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ

τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν

πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ

θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα

γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά

12

Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2

T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)

28

Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao

masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos

em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram

dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os

sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no

entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da

passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes

Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave

formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo

decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso

ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como

o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13

os rechaccedilavam por

completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14

(II 1488-90)

περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς

παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας

Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam

na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da

alma

Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos

instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo

mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes

mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais

como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se

apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta

a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo

a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as

noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura

tonal (II 1623-40)

Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα

διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ

θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος

μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα

εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν

ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ

τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ

πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν

περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον

θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον

ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι

13

Repuacuteblica 398c 14

Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)

29

δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς

τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν

οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν

ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt

Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela

sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute

feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais

do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua

tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se

descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade

e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por

gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito

debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde

participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira

participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros

intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua

natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar

cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza

iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo

interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam

familiares

No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os

instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o

dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em

que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria

dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado

por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da

muacutesica sobre a alma

O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro

245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo

ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees

superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da

regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo

anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto

ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees

hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm

pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15

15

Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida

(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a

associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre

medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente

que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento

que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a

30

Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite

(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os

nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm

unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses

nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo

masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria

Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo

residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real

manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo

um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas

entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do

universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os

planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros

26 A muacutesica das esferas

Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves

teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem

acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma

definiccedilatildeo (III 211-6)

Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν

ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ

φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον

τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν

διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει

Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o

feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e

amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o

esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de

sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo

AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero

proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute

elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza

(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas

antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura

que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo

31

Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os

planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e

femininas (III 216-40)

ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης

γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον

ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ

δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ

ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ

θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι

τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον

μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε

μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης

προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ

πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος

ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ

νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ

ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε

ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς

Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης

ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως

ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε

θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ

ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν

ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε

ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης

ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ

μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν

παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ

τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων

συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν

θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ

ἐπίπονος τὸν ἄρρενα

A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por

toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda

um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do

feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa

tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e

nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios

e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do

feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de

Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota

acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute

no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol

(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se

regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem

tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais

familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute

luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente

uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente

feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol

emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e

impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som

que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo

de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante

ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma

equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de

32

Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e

quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo

sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que

eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino

Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal

correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota

do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao

eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de

masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as

devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam

a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde

PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO

NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa

VOGAL ε α η ω α η Ω

Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a

meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o

eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe

apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por

outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela

soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim

seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo

ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas

pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo

Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco

pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter

especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a

correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e

as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como

essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda

oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de

Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido

Primeiro tetracorde Segundo tetracorde

33

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico

Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o

ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava

somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por

uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado

ou o ponto intermeacutedio

Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica

inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo

princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros

e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado

sob sua tutela

Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a

muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a

qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto

meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional

passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num

polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a

alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a

alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de

Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge

para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim

sucessivamente

Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua

organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata

da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se

reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical

os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura

da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual

o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado

primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas

mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro

torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim

dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16

16

Gueacutenon 1999 p23

34

No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser

dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de

analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre

regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos

incomensuraacuteveis

Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de

seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas

vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade

necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que

estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade

assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada

impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a

um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por

exemplo da lua e da alma

Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as

ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou

aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que

embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres

ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia

nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de

fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas

qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas

graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo

tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais

uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a

coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e

lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num

mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao

masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora

dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo

Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo

de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o

acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o

35

fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino

teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse

fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo

Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo

contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa

A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o

outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre

quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na

quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um

compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la

A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-

feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e

feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a

posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria

necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo

para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente

masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude

de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo

privativa

Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito

de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem

duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e

quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre

ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos

guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e

sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais

difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta

porosa uacutemida ou fechada

Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a

sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns

dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso

condiccedilotildees

Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo

naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem

36

necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas

se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou

outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)

Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo

condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de

fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees

associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o

caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute

necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa

objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da

mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos

dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do

iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num

patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado

intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos

individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo

Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees

de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam

somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre

esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes

noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre

relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma

espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila

Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos

loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou

analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ

ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)

A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas

relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse

processo igualmente uma relaccedilatildeo

Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et

du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee

notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas

moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux

celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou

encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de

nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui

37

exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est

en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le

plus petit comme analogue du plus grand)17

Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que

unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter

entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel

unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia

Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres

primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune

corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos

on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification

du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par

harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se

ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une

neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au

deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure

deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en

son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception

originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la

conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique

de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre

partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18

Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de

predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e

mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na

matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo

desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =

2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que

a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas

premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo

A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-

1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua

vez se apoiu em Aristoacuteteles19

) estabelece trecircs tipos de analogia20

A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o

termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo

17

Borella 2012 p23 18

Moutsopoulos 2004 p203-204 19

Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada

pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais

ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre

chez Aristote Paris PUF 1962 20

A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23

38

grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

BIBLIOGRAFIA

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo de Leonel Vallandro Porto Alegre Editora Globo

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Page 4: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

RESUMO

O tratado Da Muacutesica de Aristides Quintiliano eacute provavelmente o mais completo registro da

estreita relaccedilatildeo entre reflexatildeo filosoacutefica e teoria musical na Greacutecia Antiga Neste trabalho

busco de iniacutecio mapear o perfil descritivo das noccedilotildees de masculino (ἄρρεν) e feminino (θῆλυ)

centrais no tratado de Quintiliano para a concepccedilatildeo da muacutesica como um sistema

cosmoloacutegico e um saber interdisciplinar Em seguida interrogo o estatuto loacutegico e ontoloacutegico

desses conceitos e por fim busco compreender o raciociacutecio analoacutegico decorrente do emprego

que Quintiliano daacute a essas noccedilotildees

Palavras-chave Da Muacutesica Aristides Quintiliano Masculino Feminino

ABSTRACT

Aristides Quintilianusrsquo On music is probably the most accomplished treatise documenting the

close connection between philosophical thought and musical theory in Ancient Greece In this

work I intend to scrutinize through descriptive lens at first the notions of masculine

(ἄρρεν) and feminine (θῆλυ) which play a substantial role in Quintilianusrsquo conception of

music as a cosmological system and interdisciplinary science Then I ask questions about the

logical and ontological basis of those notions and finally I try to understand the analogical

reasoning they seem to imply

Keywords On music Aristides Quintilianus Masculine Feminine

SUMAacuteRIO

1 Introduccedilatildeo 7

2 Masculino e feminino 10

21 Meacutelos e rhythmoacutes 10

22 Corpo e alma 13

23 Os conceitos 18

24 As letras 20

25 As vogais e o solfejo 22

26 A muacutesica das esferas 30

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico 33

4 Agrave guisa de conclusatildeo 42

BIBLIOGRAFIA 43

7

1 Introduccedilatildeo

A abstraccedilatildeo eacute o pecado original de toda ciecircncia e eacute perfeitamente natural que seja

assim Nossa linguagem natildeo pode pretender abarcar numa visada uacutenica os muacuteltiplos aspectos

de um objeto qualquer sem multiplicar ao mesmo tempo as razotildees de equiacutevoco Eacute por isso

que para a compreensatildeo de um uacutenico objeto satildeo necessaacuterias dezenas de ciecircncias que o

enfoquem sob os diversos pontos de vista O uacutenico incoveniente eacute que no mais das vezes

dezenas de aspectos natildeo chegam a formar um objeto de modo que enquanto o olho continua

enxergando um mundo onde a cabeccedila estaacute sobre o pescoccedilo a inteligecircncia vai compondo para

si um universo cada vez mais cubista

Este trabalho fiquem tranquilos natildeo pretende atacar este problema pelo menos

natildeo diretamente Nosso objetivo eacute expor (e na medida do possiacutevel quem sabe ateacute

compreender) como mediante o emprego de uma ferramenta intelectual simples (e

ultrapassada segundo a opiniatildeo corrente que com frequecircncia esquece ou sequer percebe o

quanto a ela tem recorrido) nosso autor pretendeu romper fronteiras ontoloacutegicas e oferecer

uma descriccedilatildeo unificada do mundo submetendo nesse processo conhecimentos de ordem

absolutamente heterogecircnea (que vatildeo da astronomia agrave ciecircncia poliacutetica da psicologia agrave criacutetica

literaacuteria) a um mesmo par de conceitos

Nosso autor chama-se Aristides Quintiliano e o seu livro eacute o tratado de teoria

musical intitulado Da Muacutesica (ΠΕΡΙ ΜΟΥΣΙΚΗΣ ΤΡΙΤΟΝ) obra em que todos os esforccedilos

convergem para um objetivo bastante ambicioso integrar numa visatildeo unitaacuteria os variados

aspectos daquilo que a cultura grega um dia produziu sob o nome de μουσική empreitada que

demanda uma articulaccedilatildeo entre duas vertentes rivais no campo da teoria musical a tradiccedilatildeo

pitagoacuterica e a tradiccedilatildeo aristoxecircnica Nos bastidores dessa articulaccedilatildeo onipresentemente estatildeo

Aristoacuteteles e Platatildeo

Desconhece-se quem tenha sido historicamente o indiviacuteduo que atende por

Aristides Quintiliano Alguns sustentam1 que tenha sido um escravo de Marcus Fabius

Quintilianus outros que tenha sido seu filho e outros ainda que seja o proacuteprio autor da

Institutio oratoria Haacute tambeacutem a hipoacutetese de que tenha sido um saacutebio da corte do imperador

Adriano embora natildeo se possa precisar qual deles exatamente (por ora satildeo duas as

alternativas)

1 Para mais detalhes sobre essas hipoacuteteses Mathiesen 1983 p11-12

8

Agrave indecisatildeo quanto agrave identidade do autor soma-se a incerteza na dataccedilatildeo da obra

Quintilino por um lado cita Ciacutecero (assassinado em 43 aC) e de outro foi usado como fonte

por Martianus Capella na redaccedilatildeo do livro IX do seu De nuptiis Philologiae et Mercurii

Como a redaccedilatildeo do De nuptiis eacute datada da primeira metade do seacutecV dC os comentadores

concordam em situar o De muacutesica e seu autor entre o I e o IV seacuteculos depois de Cristo

No conjunto da tratadiacutestica musical grega o De muacutesica ocupa ao lado dos

Elementos Harmocircnicos de Aristoacutexeno (segunda metade do seacutecIV aC) e da Harmocircnica (que

data de meados do seacutec II dC) de Ptolomeu um lugar de destaque Dentre esses trecircs

principais tratados no entanto o de Quintiliano eacute o uacutenico a nos oferecer uma ldquoexposiccedilatildeo

completa dos aspectos filosoacuteficos da muacutesica gregardquo (COLOMBER L GIL B 1996 p19)

Este trabalho objetiva abordar apenas um desses aspectos filosoacuteficos as noccedilotildees de masculino

(ἄρρεν) e feminino (θῆλυ)

No De muacutesica as noccedilotildees de masculino e feminino cumprem um papel estrateacutegico

Eacute essa dualidade que como princiacutepio estruturante fundamenta a doutrina dos eacutethe musicais

na sua interaccedilatildeo simpaacutetico-eacutetico-pedagoacutegica com as potecircncias da alma Trata-se aleacutem disso

de um princiacutepio que atua sobre todo o mundo corpoacutereo analogando os entes deste mundo uns

com os outros e estes mesmos por sua vez com as realidades celestes

Todavia embora Quintiliano apoiado na ferramenta da analogia e mediante o

emprego das noccedilotildees de masculino e feminino alcance conceber e expor uma visatildeo more

musicale demonstrata unitaacuteria do universo nem por isso se daacute o trabalho de tratar mais

detidamente dessas duas noccedilotildees e se insinua fazecirc-lo eacute sempre em funccedilatildeo de um objetivo

descritivo imediato Quanto agrave analogia expediente dos mais frequentes no De muacutesica

Quintiliano natildeo chega a abordaacute-la como uma teoria em si mesma embora expediente e teoria

estejam ambos em seu tratado indissociaacutevel e necessariamente ligados

Meu objetivo aqui eacute tratar particularmente das noccedilotildees de masculino e feminino e

natildeo do modo como essas noccedilotildees fundamentam as doutrinas esteacuteticas poliacuteticas pedagoacutegicas

cosmoloacutegicas ou metafiacutesicas relacionadas agrave reflexatildeo musical grega Assim na primeira parte

do trabalho busco traccedilar um perfil descritivo inicial partindo para isso das passagens

traduzidas e comentadas em que Quintiliano emprega ilustra ou explica essas noccedilotildees Num

segundo momento tento sondar o estatuto loacutegico e ontoloacutegico das noccedilotildees de masculino e

feminino sem no entanto extrapolar o acircmbito estritamente cosmoloacutegico no qual Quintiliano

se deteacutem

Como Quintiliano divide o tratado em trecircs livros ndash um primeiro dedicado agrave arte

musical propriamente dita ou muacutesica audiacutevel um segundo que trata da muacutesica enquanto

9

ferramenta pedagoacutegica e imagem da alma e um terceiro livro no qual aborda os fundamentos

matemaacuteticos e cosmoloacutegicos dos livros anteriores ndash e como as noccedilotildees de masculino e

feminino satildeo abordadas sempre a propoacutesito mas sem ordem aparente ao longo de todos os

trecircs livros resulta absolutamente impossiacutevel natildeo avanccedilar em saltos Pretendi minimizar esse

inconveniente seguindo estritamente a ordem da exposiccedilatildeo (teria seguido a ordem das razotildees

se tivesse encontrado alguma) Tentei tambeacutem nos comentaacuterios agraves passagens preencher os

hiatos expositivos informando o contexto de onde cada passagem foi retirada

Na seleccedilatildeo das passagens a analisar foi preciso excluir algumas (natildeo muitas) cujo

conteuacutedo natildeo fosse especialmente relevante para o objetivo deste trabalho Os trechos

excluiacutedos constituem-se sobretudo de informaccedilotildees jaacute dadas ou de simples menccedilotildees dos

termos masculino e feminino Fico grato a quem me possa informar alguma omissatildeo

imperdoaacutevel

Disse acima que as noccedilotildees de masculino e feminino tecircm papel estrateacutegico no

tratado de Aristides Quintiliano Natildeo eacute sem estrateacutegia igualmente que essas noccedilotildees satildeo

apresentadas ao leitor A Q abre os capiacutetulos iniciais do livro I expondo os motivos (a

ignoracircncia e leviandade dos seus contemporacircneos com relaccedilatildeo agrave musica) e o escopo da sua

iniciativa A muacutesica para ele natildeo eacute um divertimento banal mas a ordem impliacutecita por traacutes da

natureza

Concluiacutedo o preacircmbulo ele desce das alturas e passa a tratar da muacutesica stricto

sensu No capiacutetulo 5 do livro I propotildee uma divisatildeo da mateacuteria em duas partes muacutesica praacutetica

e muacutesica teoacuterica Cada parte por sua vez eacute subdividida em duas outras A teoacuterica em muacutesica

da natureza e teacutecnica musical a praacutetica tambeacutem chamada educativa em composiccedilatildeo (ou uso)

musical e expressatildeo musical Quintiliano aborda a seguir os dois primeiros aspectos da

teacutecnica musical o ritmo e o meacutelos Eacute soacute entatildeo que menciona pela primeira vez os termos

masculino e feminino

10

2 Masculino e feminino

21 Meacutelos e rhythmoacutes

Como vimos eacute somente apoacutes ter tratado da teoria harmocircnica (Livro I caps 6-12)

e da teoria riacutetmica (caps 13-19) que A Q emprega pela primeira vez os termos ἄρρεν e θῆλυ

Diz ele (I 1925-30)

τινὲς δὲ τῶν παλαιῶν τὸν μὲν ῥυθμὸν ἄρρεν ἀπεκάλουν τὸ δὲ μέλος θῆλυ τὸ μὲν

γὰρ μέλος ἀνενέργητόν τ ἐστὶ καὶ ἀσχημάτιστον ὕλης ἐπέχον λόγον διὰ τὴν πρὸς

τοὐναντίον ἐπιτηδειότητα ὁ δὲ ῥυθμὸς πλάττει τε αὐτὸ καὶ κινεῖ τεταγμένως

ποιοῦντος λόγον ἐπέχων πρὸς τὸ ποιούμενον

Alguns dos antigos chamavam o ritmo de masculino e o meacutelos de feminino pois o

meacutelos eacute sem atualidade e sem forma possuindo o logos da mateacuteria pela sua aptidatildeo

para os contraacuterios ao passo que o ritmo move ordenadamente o meacutelos e o modela

possuindo o logos do criador com relaccedilatildeo ao que eacute criado

Evidentemente o meacutelos sem atualidade e sem forma mencionado nesta passagem

natildeo eacute exatamente o mesmo que capiacutetulos atraacutes (I 121-3) A Q definiu como meacutelos teacuteleion

ou meacutelos perfeito (aquele que combina harmonia ritmo e dicccedilatildeo) mas o meacutelos em sentido

proacuteprio (ἰδιαίτερον) e estrito um entrelaccedilamento de sons desiguais quanto agrave altura tonal isto

eacute de sons que se articulam desde a perspectiva de uma oposiccedilatildeo qualitativa de base a

oposiccedilatildeo entre grave e agudo

Tambeacutem a noccedilatildeo de ritmo eacute aqui empregada em sentido restrito e sequer

corresponde agrave totalidade daquilo que dentro do escopo da teoria musical e segundo o proacuteprio

A Q (I 1319-20) estaacute submetido agrave ordenaccedilatildeo riacutetmica os movimentos do corpo da melodia

e da dicccedilatildeo ou seja a danccedila a muacutesica e a poesia

No iniacutecio do capiacutetulo 13 Livro I A Q estabelece trecircs acepccedilotildees para o termo

ritmo conforme os objetos aos quais o termo seja aplicado Haacute assim o ritmo dos corpos

imoacuteveis o dos corpos moacuteveis e o ritmo em sentido proacuteprio (ἰδίως) que eacute o ritmo quando

aplicado agrave voz (ἐπὶ φωνῆς) ou ao som Eacute com respeito a esta uacuteltima acepccedilatildeo que diz ele (I

136-8) o ritmo se organiza segundo uma oposiccedilatildeo de estados denominados aacutersis e theacutesis

ruiacutedo e repouso (ἄρσιν καὶ θέσιν ψόφον καὶ ἠρεμίαν)

Certamente natildeo eacute coincidecircncia o fato de que cada termo da dualidade ritmo-

melodia se articule internamente tambeacutem segundo uma oposiccedilatildeo qualitativa Mais adiante

teremos ocasiatildeo de interrogar como essas (e outras) oposiccedilotildees especiacuteficas se articulam entre

si e todas por sua vez com a dualidade masculino-feminino a que A Q nos introduz

formalmente na passagem citada mas com a qual assim nos parece ele conta desde o iniacutecio

11

Em I 236-7 A Q nos daacute uma pista ao fazer da interaccedilatildeo entre os dissimilares a

condiccedilatildeo necessaacuteria de tudo o que vem a ser Embora Quintiliano nessa passagem designe

esses dissimilares (ἀνομοίων) como ldquoγεννωμένωνrdquo termo que Mathiesen (1983 p108)

traduz como ldquoprogenitoresrdquo o princiacutepio que ele aiacute enuncia natildeo poderia pela natureza do

assunto (ritmo e meacutetrica) estar circunscrito ao acircmbito exclusivo da reproduccedilatildeo sexuada

Em nota ao trecho (I 1925-30) reproduzido acima Barker (1990 p445) apoacutes

apontar a origem aristoteacutelica dos conceitos de agente e mateacuteria considera problemaacutetica a

fonte de sua associaccedilatildeo com as noccedilotildees de masculino e feminino embora essa associaccedilatildeo seja

mencionada tambeacutem em Aristoacuteteles

The terms of this distinction between matter and agent are Peripatetic and their

use here recalls Aristotles account of the male and female contributions to

reproduction (eg De Gen An 730b) Similar conceptions of the roles of melody

and rhythm are suggested by ps-Ar Probs xix49We cannot confidently identify

the origin of the application of sexual distinctions to music (used extensively by

Aristides in Book 11) and specifically of the equation of rhythm with male melody

with female such ideas may possibly be connected with the school of Damon

Colomer e Gil (1996 p96) satildeo mais especiacuteficos ao apontar uma possiacutevel origem

aristoxecircnica para a aplicaccedilatildeo das noccedilotildees aristoteacutelicas de ato e mateacuteria ao par ritmo e meacutelos

hipoacutetese que no fundo o proacuteprio Barker natildeo descarta jaacute que como diz os Elementa

Rhythmica satildeo ldquoa major source for the section on rhythmics in chs 13-19 of 12 Arist Quint

De Mus Book 1rdquo (1990 p193)

De fato nos Elementa Rhythmica (Livro II fr03) Aristoacutexeno refere-se ao ritmo e

ao ritmaacutevel (ῥυθμιζομένου) como duas naturezas especiacuteficas (δύο τινὰς φύσεις) as quais

estariam uma para outra como a forma (τὸ σχῆμα) estaacute para o que eacute formado (τὸ

σχηματιζόμενον) Aristoacutexeno eacute a princiacutepio ateacute mais abrangente que A Q jaacute que a relaccedilatildeo eacute

estendida a todos os ritmaacuteveis (corpo melodia e dicccedilatildeo) e natildeo exclusiva e especificamente ao

meacutelos Poreacutem para que natildeo haja duacutevida ele faz questatildeo de explicitar a relaccedilatildeo entre ritmo e

meacutelos ao mencionar adiante (fr04) que ldquoo mesmo [loacutegos] se aplica ao meacutelos e ao que quer

que tenha surgido para ser submetido ao ritmordquo2

Para A Q o meacutelos eacute ldquoἀσχημάτιστονrdquo3 informe para Aristoacutexeno eacute

ldquoσχηματιζόμενονrdquo algo que padece a forma Aleacutem de natildeo haver diferenccedila conceitual

2 Ὁ αὐτὸς δὲ λόγος καὶ ἐπὶ τοῦ μέλους καὶ εἴ τι ἄλλο πέφυκε ῥυθμίζεσθαι ou na traduccedilatildeo de Barker (1990

p185) ldquoThe same can be said about melody too and about anything else whose nature it is to be made rhythmic

[rhythmizesthai]rdquo 3 Quintiliano tambeacutem denomina o meacutelos ldquoἀνενέργητόνrdquo o que obviamente remete ao conceito de ato (ἐνέργεια

ou ἐντελέχεια) por oposiccedilatildeo agrave potecircncia (δuacuteναμις) termo que A Q emprega com relaccedilatildeo aos graus da escala O

12

relevante entre os dois termos ambos apontam para uma acepccedilatildeo mais abrangente e mais

primitiva do rhythmoacutes Segundo Colomer e Gil (op cit loc cit) ldquoos termos rhythmoacutes e

schecircma foram a princiacutepio quase sinocircnimos embora depois a palavra rhythmoacutes se tenha

aplicado preferencialmente agrave forma em movimento e schecircma agrave forma estaacuteticardquo Ora essa

identificaccedilatildeo originaacuteria se esclarece a primeira e a segunda acepccedilotildees atribuiacutedas por A Q ao

termo ritmo (o ritmo dos corpos imoacuteveis e dos corpos moacuteveis) igualmente demonstra a

profunda unidade que coere aquelas trecircs acepccedilotildees pois em todas predomina a ideia de uma

determinaccedilatildeo formal

Haacute no entanto apesar dos paralelismos (mesmo no tocante agrave ordem de

exposiccedilatildeo) uma diferenccedila notaacutevel entre os textos de Aristoacutexeno e de Aristides Quintiliano Eacute

que Aristoacutexeno embora visivelmente preocupado esmiuccedilar a diferenccedila entre o ritmo e os

ritmaacuteveis natildeo recore para isso agraves noccedilotildees de masculino e feminino O tratado de Aristoacutexeno

tudo indica foi uma das principais fontes dos caps 13-19 do Livro I de A Q mas certamente

natildeo foi a uacutenica

Embora como sugerem Colomer e Gil o ingresso na teoria musical dos termos

masculino e feminino possa ter tido origem damoniana (e natildeo ser portanto histoacuterica e

originalmente pitagoacuterica) natildeo haacute duacutevida de que os termos ἄρρεν e θῆλυ fazem parte do

vocabulaacuterio filosoacutefico pitagoacuterico Sabemos disso porque Aristoacuteteles (Metafiacutesica 986a25) os

elenca entre famosos dez princiacutepios pitagoacutericos Noutra passagem da Metafiacutesica (988a2-10)

em que critica a concepccedilatildeo pitagoacuterico-platocircnica da diacuteada Aristoacuteteles natildeo somente explica a

conexatildeo entre as noccedilotildees de forma e mateacuteria e o par masculino-feminino mas afirma o caraacuteter

principial deste uacuteltimo

Com efeito eles pretendem derivar da mateacuteria uma multiplicidade se

bem que a Forma soacute gere uma vez ora o que observamos eacute que a mesa eacute

feita de um pedaccedilo de mateacuteria enquanto o homem que aplica a forma

apesar de ser um faz muitas mesas E a relaccedilatildeo entre macho e fecircmea

assemelha-se a esta pois a fecircmea eacute emprenhada numa soacute coacutepula ao passo

que o macho emprenha muitas fecircmeas E todavia estes fatos satildeo imagens

daqueles primeiros princiacutepios Eis aiacute pois como se pronunciou Platatildeo

acerca destes problemas pelo que ficou ditou eacute evidente que ele usou

apenas duas causas a essencial e a material ()

Se os fatos aparentemente desconexos da reproduccedilatildeo sexuada e da fabricaccedilatildeo de

uma mesa satildeo imagens ou imitaccedilotildees (μιμήματα) daqueles princiacutepios (τῶν ἀρχῶν ἐκείνων)

isto eacute dos princiacutepios essencial e substancial ndash ou em linguagem aristoteacutelica da causa material

e da causa formal ndash natildeo somente eacute liacutecito contar com a manifestaccedilatildeo desses princiacutepios tambeacutem

fato de que na passagem em tela ele recorra ao expediente privativo em vez empregar os termos proacuteprios natildeo

obscurece a distinccedilatildeo conceitual

13

no acircmbito da muacutesica mas se torna imperioso recorrer a eles quando se deseja como deseja

Quintiliano oferecer um vislumbre do cosmo total desde o microcosmo particular da muacutesica

Eacute o que trataremos de observar a seguir

22 Corpo e alma

Apoacutes ter introduzido no fim do cap19 as noccedilotildees de masculino e feminino A Q

natildeo volta a mencionaacute-las em nenhum momento ateacute o final do Livro I Natildeo quer isso dizer

todavia que ele jaacute natildeo as leve em conta ou pelo menos que natildeo as subentenda de algum

modo Em todo caso soacute deveraacute retomaacute-las em caraacuteter expliacutecito e operativo a partir do cap8

do Livro II

Φαίνεταί μοι τοίνυν ἡ ψυχή πόρρω μὲν τῶνδε ἡνίκα ἐστὶν ὁμιλοῦσα τῷ

κρείττονι λόγῳ τε ὁμέστιος εἶναι καὶ καθαρεύειν ἐπιθυμίας ἐπὰν δὲ ἐπὶ

τάδε ἀγκλίνῃ καὶ τὴν ἐνταῦθα διατριβὴν πείρᾳ μαθεῖν ἐπιχειρήσῃ

τηνικαῦτα αὐτῇ σώματός τε ἐγγίνεται χρεία καὶ σῶμα ἐπιζητεῖ

πρόσφορον ὑπόκειται δ αὐτῇ θεωρεῖν τὴν ἐν τούτοις διπλόην

ἀρρενότητά τέ φημι καὶ θηλύτητα ἥτις οὐκ ἐν ἐμψύχοις μόνοις ἄρα ἦν

ἀλλὰ κἀν τοῖς φύσει μόνῃ διοικουμένοις φυτῶν τε ὅσα μετάλλων τε

γένη καὶ ἀρωμάτων καὶ γὰρ τούτων δυάς τις ἐπιφαίνεται ἤτοι δι

ἁπαλότητος ἢ λειότητος ἢ εὐχροίας ἢ εὐωδίας ἢ καὶ τῶν ἐναντίων τὴν

ἑτέραν ἐπιδεικνυμένων φύσιν

Parece-me de fato que a alma quando distante das coisas e em comeacutercio

com o superior coabita com a razatildeo e estaacute livre de desejos mas quando

inclina-se para as coisas daqui e intenta aprender atraveacutes da experiecircncia

um modo de existir no tempo entatildeo sendo-lhe necessaacuterio um corpo ela

busca um corpo que lhe seja adequado E eacute da natureza da alma no

tocante aos corpos atentar para a dualidade ou seja para a masculinidade

e para a feminilidade dualidade presente natildeo soacute nos corpos animados

mas tambeacutem nos governados por uma soacute natureza tais como os gecircneros

das plantas dos metais e dos aromas pois tambeacutem neles se manifesta

certa dualidade pois seja pela brandura ou pela suavidade pela bela

aparecircncia ou pelo bom odor seja pelas qualidades contraacuterias apontam

para uma ou outra natureza (II 81-12)

Uma raacutepida contextualizaccedilatildeo nos permitiraacute compreender melhor tanto esta quanto

as demais passagens do cap8 Todo o livro II eacute dedicado agravequilo que no cap5 do livro I A Q

havia definido como muacutesica praacutetica (πρακτικόν) ou educativa (παιδευτικόν) Antes poreacutem de

tratar do seu tema propriamente A Q sente a necessidade de responder agraves objeccedilotildees dos

ceacuteticos4 (dentre os quais ningueacutem menos que Ciacutecero a quem Quintiliano poreacutem hesita em

4 ldquoEacute possiacutevel que os educadores romanos pensassem como Epicuro para quem a muacutesica natildeo tinha qualquer

significado aleacutem de um jogo de sons e concordassem com Ciacutecero que afirmava lsquoque a muacutesica natildeo tem utilidade

alguma aleacutem de um prazer infantil sem valor nenhum posto que natildeo pode guiar-nos agrave felicidadersquo Segundo o

autor romano Corneacutelius Nepos do seacutec I d C lsquoningueacutem ignora que a muacutesica segundo o estado de nossos

costumes natildeo conveacutem a um personagem importantersquo apesar de ter sido levada entre os gregos como lsquodigna de

14

atribuir juiacutezos desfavoraacuteveis acerca da muacutesica) fundamentar a proacutepria ideia de uma formaccedilatildeo

moral atraveacutes da muacutesica E como a accedilatildeo da muacutesica sobre a alma depende tanto da capacidade

ativa da primeira quanto da capacidade receptiva da uacuteltima eacute por esta que ele comeccedila

A alma diz eacute responsaacutevel por dotar de certo ritmo e de ordem (ῥυθμοῦ τινος καὶ

τάξεως) as coisas deste mundo (τῶν ἐνθαδί) Poderiacuteamos dizer embora Quintiliano natildeo o faccedila

aqui explicitamente que a alma portanto eacute masculina em relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Mas

para que possa ser isso eacute preciso que natildeo seja apenas isso De fato diz A Q a alma natildeo

possui uma natureza ou potecircncia uacutenica (οὐδὲ τῶν μονήρη τινὰ φύσιν ἢ δύναμιν ἐχόντων) mas

certa natureza dupla (διπλῆς τινος φύσεως)

A duplicidade da alma consiste em ter sido dotada pelo administrador de todas as

coisas (ὁ τὸ σύπαν διοικῶν) de uma substacircncia divina na qual habita a razatildeo (λoacuteγος) e de

uma substacircncia mundana ou irracional (ἄλογος) na qual habita o desejo (ἐπιθυμία) As duas

naturezas ou potecircncias satildeo necessaacuterias para que a alma atue sobre o mundo corpoacutereo e essa

natureza duacuteplice sem a qual ela seria ineficaz pode-se definir assim a alma soacute eacute ativa em

relaccedilatildeo ao mundo corpoacutereo na medida em que eacute passiva em relaccedilatildeo ao mundo racional Ora a

muacutesica diz Quintiliano no iniacutecio do cap3 do livro II estaacute para a alma irracional assim como a

filosofia estaacute para a alma racional Desse modo ao submeter-se agrave muacutesica a alma irracional

submete-se igualmente agrave razatildeo pois a muacutesica eacute no fundo razatildeo transformada em mateacuteria

sensiacutevel tal como a alma mesma

Isso poreacutem natildeo eacute tudo Entre as duas naturezas da alma haacute um ponto intermeacutedio

que ao submeter o desejo agrave razatildeo confere unidade agraves duas metades Esse ponto intermeacutedio eacute

a memoacuteria (μνήμη) Memoacuteria eacute claro das belezas eternas do mundo suprassensiacutevel5 Desse

modo o dualismo aniacutemico resolve-se num elemento intermediaacuterio resultante da interaccedilatildeo

entre os polos extremos com os quais forma afinal uma triacuteade

Paralelamente a alma (tomada como unidade natildeo mais segundo a interaccedilatildeo das

suas partes) sendo a um soacute tempo ativa (frente ao mundo sensiacutevel) e passiva (perante o

mundo racional) eacute ela proacutepria um ponto intermeacutedio resultante da interaccedilatildeo entre polos

opostos com os quais por sua vez tambeacutem compotildee uma triacuteade As partes e o todo o

microcosmo e macrocosmo assim espelham-se mutuamente

consideraccedilatildeo e estimarsquo rdquo CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-

kagathiacutea Classica (Brasil) 2412 73-85 2011 5 Mesmo se desconsiderarmos esse elemento doutrinal platocircnico a memoacuteria seria ainda uma bela e eficaz

imagem da uniatildeo entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo pois a memoacuteria eacute uma operaccedilatildeo estritamente mental cujos

objetos no entanto satildeo todos oriundos da experiecircncia sensiacutevel

15

Mas a porccedilatildeo desejante (ou irracional) da alma possui igualmente as suas partes

A Q as denomina desejante (ἐπιθυμητική) a qual tende ao relaxamento (ou relaxaccedilatildeo

indulgecircncia) excessivo e impulsiva (θυμικὴ) que tende a uma tensatildeo igualmente desmedida

Fica claro desde logo embora Quintiliano reserve esse comentaacuterio para mais adiante que as

duas porccedilotildees da alma irracional formam uma oposiccedilatildeo do tipo ativo-passivo ou masculino-

feminino restando saber qual seria nesse caso o ponto intermeacutedio

O ponto intermeacutedio satildeo dois por um lado (e acima) a proacutepria porccedilatildeo racional da

alma que eacute inteiriccedila e natildeo se constitui de partes por outro (e abaixo) as paixotildees que resultam

(como A Q descreveraacute a seguir) da mescla entre as potecircncias ativa e passiva da alma As

triacuteades formadas portanto satildeo tambeacutem duas mas de tipos diferentes numa o ponto

intermeacutedio estaacute hierarquicamente acima dos termos opostos noutra hierarquicamente abaixo

A razatildeo da eficaacutecia persuasiva da muacutesica sobre a alma irracional reside

argumenta Quintiliano nas peculiaridades do seu aparato mimeacutetico que lhe permite produzir

a imitaccedilatildeo com mateacuteria similar agrave do objeto imitado Curiosamente esse aparato mimeacutetico eacute

tambeacutem triaacutedico pois a muacutesica imita6 os eacutethe e as paixotildees da alma com os conceitos

(ἐννοίαις) as palavras com as harmonias e a modulaccedilatildeo da voz (ἁρμονίαις καὶ φωνῆς

πλάσει) e a accedilatildeo com os ritmos e o movimento do corpo (ῥυθμοῖς καὶ κινήσει σώματος) A

muacutesica portanto abarca o universo inteiro da accedilatildeo humana desde o seu nascedouro (nos

movimentos afetivos e intelectuais da alma) ateacute sua exteriorizaccedilatildeo em forma de atos e

palavras

Ora sendo a muacutesica sobretudo uma terapia das paixotildees da alma (παθῶν ψυχικῶν

θεραπεία) cabe ao conceito (que siacutentese do conteuacutedo racional a transmitir e da impressatildeo

esteacutetico-emocional a causar estaacute relacionado ao movimentos internos da alma de onde brotam

as accedilotildees) o papel de guiar os elementos do meacutelos perfeito (dicccedilatildeo harmonia e ritmo) O cap8

e os seguintes a comeccedilar pelo trecho acima citado satildeo dedicados justamente a explicar

primeiro como se geram as paixotildees da alma e depois como a muacutesica eacute capaz de imitaacute-las e

de nelas intervir

De iniacutecio A Q trata da dualidade masculino-feminino como uma particularidade

do mundo corpoacutereo a que a alma tem de se submeter Reforccedila o caraacuteter especificamente

corpoacutereo dessa dualidade o fato de que ela natildeo se manifeste apenas em corpos animados (οὐκ

ἐν ἐμψύχοις μόνοις) mas tambeacutem em corpos governados por uma soacute natureza (ἀλλὰ κἀν τοῖς

φύσει μόνῃ διοικουμένοις) Essa observaccedilatildeo parece decorrer da necessidade de distinguir a jaacute

6 II 438-40

16

mencionada duplicidade da alma (razatildeo por que seria natural esperar que somente os corpos

animados estivessem submetidos agrave dualidade a dualidade ao menos entre corpo e alma) do

dualismo propriamente corpoacutereo Em todo caso embora tipicamente corpoacuterea a dualidade

masculino-feminino tambeacutem aqui natildeo se restringe ao fenocircmeno bioloacutegico da diferenciaccedilatildeo

sexual Aleacutem disso essa dualidade natildeo corresponde exatamente a duas espeacutecies opostas de

seres mas a dois polos de um eixo que atravessa de ponta a ponta o mundo corpoacutereo

alcanccedilando portanto e internamente todos os seres nele existentes Desse modo cada ente

particular pode ser tomado como uma resultante da interaccedilatildeo entre os dois princiacutepios em

relaccedilatildeo aos quais ele estabelece por sua vez um ponto intermeacutedio isto eacute uma mescla E eacute

precisamente na produccedilatildeo dessa mescla que o dualismo aniacutemico e o dualismo corpoacutereo se

articulam (II 816-28)

οὐ μόνον οὖν ἐφίεται σώματος ἀλλὰ καὶ τούτου ποιοῦ τινος ἢ γὰρ ἄρρεν

ἠγάπηκεν ἢ θῆλυ καὶ τούτων ὁτὲ μὲν ἄκρατον θάτερον ὁτὲ δὲ ἐξ ἀμφοῖν

ἔχον δεινήν τινα καὶ ὄντως ἄτοπον μίξιν αὐτίκα κἂν μὴ φύσει τοῦ

τοιούτου τύχωσι σώματος αὐταὶ ταῖς σφετέραις τροπαῖς μετερρύθμισάν

τε καὶ ἐς τὸ αὑταῖς ὅμοιον μετέστησαν οὕτως ἐν μὲν ἄρρεσι θῆλυς

ἐπιτρέχει μορφή δι ἣν καὶ ὁ βίος ὦπται τοιοῦτος ἐν δὲ γυναιξὶν ἀνδρεῖον

εἶδος ᾧ καὶ τὸ ἦθος ὅμοιον τεκμαιρόμεθα καὶ ἄνδρες μὴν ἀγένειοι καὶ

γενειάσκουσι γυναῖκες καί τις ἄρρην ἔβλεψεν ὑγρὸν καὶ γυναῖκες γοργὸν

προσεῖδον ὥστε καὶ τῶν ἠθῶν ἕκαστα θηράσεις ἑκάστῃ μορφῇ συνῳδά

A alma portanto natildeo soacute deseja um corpo mas certo tipo de corpo um

corpo masculino ou um corpo feminino Deseja dentre esses agraves vezes um

corpo puro de um tipo ou de outro agraves vezes um corpo que possua uma

curiosa e paradoxal mistura de ambos Assim quando natildeo conseguem

obter naturalmente esse determinado corpo as almas o remodelam

mediante torneios e o transformam em algo semelhante a si mesmas

Dessa forma sobre um corpo masculino recai uma forma feminina (razatildeo

por que tambeacutem sua vida assim se mostra) ou ainda sobre um corpo

feminino uma forma masculina no que tambeacutem assinalamos um eacutethos

similar Haacute homens imberbes e mulheres barbadas homens de lacircnguido

olhar e mulheres com mirada de Goacutergona de modo que cada eacutethos veraacutes

corresponde a uma fisionomia

Uma vez estabelecido o princiacutepio de que o dualismo aniacutemico de algum modo rege

o dualismo corpoacutereo A Q sente-se agrave vontade para tratar de um nos termos do outro

recorrendo para isso aos termos masculino e feminino (II 828-39)

ἐκ δὲ τῆς πρὸς τὸ ἄρρεν ἢ θῆλυ προσπαθείας ἢ πρὸς ἀμφότερον τὰ πάθη

συνίσταται περὶ ψυχήν τὸ μὲν οὖν θῆλυ λίαν ἀνειμένον ᾧ συνᾴδει τὸ

ἐπιθυμητικόν τὸ δ ἄρρεν σφοδρόν τε καὶ δραστήριον ᾧ τὸ θυμικὸν

ὡμοίωται περὶ μὲν οὖν τὸ θῆλυ ψυχῆς τε μέρος καὶ ἀνθρώπων γένος

πλεονάζουσι λῦπαι τε καὶ ἡδοναί περὶ δὲ τὸ ἄρρεν ὀργὴ καὶ θράσος

πάλιν δὲ τούτων γίνονται συζυγίαι λυπῶν τε πρὸς ἡδονὰς καὶ ὀργῆς πρὸς

θράσος καὶ θράσους πρὸς ἡδονὴν καὶ λύπην καὶ ὀργῆς αὖθις πρὸς

ἑκάτερον καὶ πάλιν ἑκάστου πρός τε ἓν καὶ πρὸς πλείω μίξεις καὶ μυρίας

ἄν τις ἐκ τούτων εὕροι τῶν παθῶν εἰκόνας ἐν ποικιλίᾳ θεωρουμένων

17

Conforme o apego ao masculino ao feminino ou a ambos estabelecem-se

as paixotildees da alma O feminino eacute demasiado indulgente e com ele

concorda a alma desejante ao passo que o masculino semelhante agrave alma

impulsiva eacute veemente e ativo Assim tanto na parte feminina da alma

quanto na parcela feminina da humanidade abundam os prazeres e as

dores ao passo que na masculina a ira e a coragem E uma vez mais

datildeo-se combinaccedilotildees entre essas paixotildees das dores com os prazeres da ira

com a coragem da coragem com o prazer e a dor ou da ira novamente

com as demais e ainda de uma com outra qualquer ou com vaacuterias A

partir dessas seria possiacutevel encontrar uma miriacuteade de imagens das

paixotildees em vista da sua variedade

Se a alma por um lado submete o mundo corpoacutereo este por sua vez a espelha

macrocosmicamente nela interferindo mediante interaccedilotildees simpaacuteticas a exemplo do que

ocorre na muacutesica No entanto natildeo satildeo apenas as disposiccedilotildees passivas ou paixotildees que

estabelecem pontes entre a alma e a realidade corpoacuterea Tambeacutem as disposiccedilotildees ativas e

intelectivas estatildeo submetidas ao dualismo masculino-feminino (II 848-69)

ἔστι γὰρ πρῶτον μὲν ἐν ὁρατοῖς ἑκατέραν ἰδεῖν τὴν φύσιν τὸ μὲν

ἀνθηρόν τε καὶ ἐς ὡραϊσμὸν προςφυὲς χρῶμά τε καὶ σχῆμα διαιροῦντα

θηλύτητι τὸ δὲ στυγνόν τε καὶ ἐς σύννοιαν ἄγον ἀρρενότητι πάλιν δὲ ἐν

ἀκοαῖς τοὺς μὲν λείους καὶ προσηνεῖς ἤχους ἐς τὸ θῆλυ τοὺς δὲ

τραχυτέρους εἰς τοὐναντίον ἁρμόττοντα καί ἵνα μὴ τὰ καθ ἕκαστον

λέγω κοινῶς περὶ πάντων ἀποφαντέον ὡς ὅσα μὲν τῶν αἰσθητῶν ἔς τε

ἡδονὴν δελεάζει καὶ ἠρέμα διαχεῖν τὴν γνώμην πέφυκε ταῦτα εἰς τὸ θῆλυ

κριτέον ὅσα δὲ κινεῖ τε εἰς σύννοιαν καὶ ἐγείρει τὸ δραστήριον ταῦτα εἰς

τὴν ἄρρενος μοῖραν ἀπονεμητέον τὰ δέ τοι μηδέτερον ἢ κατὰ μίξιν ἄμφω

δρῶντα ταῦτα τῶν μέσων ἀποφαντέον κατὰ δὴ ταῦτα καὶ περὶ ἐκείνων

λέγωμεν αἳ λόγῳ μέν εἰσι καταληπταὶ τέχναι τε καὶ ἀρεταὶ καὶ ἐπιστῆμαι

ἐκ δὲ τῆς τῶν ὑλῶν ποιότητος περὶ ἃς ἑκάστη τευτάζει τὰς πρὸς ἀλλήλας

διαφορὰς καὶ ὁμοιότητας εἰλήχασιν αἵ τε ἀρεταὶ πρὸς τὰς ἀρετὰς αἵ τε

ἐπιστῆμαι πρὸς τὰς ἐπιστήμας κακίαι τε αὖ πρὸς κακίας καὶ

ἀνεπιστημοσύναι πρὸς ἀμαθίας πάλιν δὲ ἀρεταὶ πρὸς κακίας ἢ ἐπιστήμας

ἢ ἀγνωσίας κακίαι τε αὖ πρὸς τὰς εἰρημένας ποικίλης τινὸς καὶ τῆς κατὰ

ταῦτα πλοκῆς τε οὔσης καὶ μίξεως

A princiacutepio eacute de fato possiacutevel identificar nos objetos visiacuteveis cada

natureza separadamente atribuindo o florido e as formas e cores

decorativas ao feminino e as sombrias e que conduzem agrave reflexatildeo ao

masculino e o mesmo para as coisas audiacuteveis relacionando os sons

suaves e doces ao feminino e os mais aacutesperos ao seu oposto E para que

eu natildeo entre aqui em detalhes eacute preciso dizer que no geral as coisas

sensiacuteveis que induzem ao prazer e que natural e docemente dissolvem o

juiacutezo estas se devem considerar femininas ao passo que aquelas que nos

levam agrave reflexatildeo ou promovem a accedilatildeo se devem designar masculinas Jaacute

aquelas que natildeo atuam nem de uma nem de outra maneira ou o faccedilam

segundo uma mescla de ambas estas se hatildeo de chamar intermediaacuterias

Disso decorre que falemos nos mesmos termos a respeito tambeacutem das

coisas apreendidas pela razatildeo ndash as artes as virtudes e as ciecircncias ndash as

quais devem suas semelhanccedilas e diferenccedilas muacutetuas aos assuntos de que se

ocupam as virtudes no tocante agraves virtudes e as ciecircncias no tocante agraves

ciecircncias e por seu turno os viacutecios no que diz respeito aos viacutecios e a

incultura com respeito agraves ignoracircncias e ainda virtudes com respeito aos

viacutecios ciecircncias ou ignoracircncias e os viacutecios com respeito estes todos

sendo possiacutevel certa combinaccedilatildeo e mescla dessas coisas

18

Cabe observar como A Q ao traccedilar um perfil do masculino e do feminino natildeo

oferece uma lista de entes individuais mas um elenco geneacuterico de qualidades sensiacuteveis das

quais ele passa sem maior detenccedila para o toacutepico das naturezas intermediaacuterias em que estatildeo

incluiacutedas as artes as ciecircncias e as virtudes A menccedilatildeo agraves artes ciecircncias e virtudes eacute

importante neste momento porque uma vez explicado o processo pelo qual atraveacutes de

mesclas dos princiacutepios masculino e feminino satildeo engendradas as paixotildees da alma

Quintiliano deve agora retomar o fio da exposiccedilatildeo e mostrar como a muacutesica por meio de

conceitos palavras ritmos e melodias eacute capaz de imitar essas mesmas paixotildees virtudes

viacutecios etc comunicando agrave alma o respectivo eacutethos Eacute o que faraacute no restante do livro II

23 Os conceitos

No iniacutecio do cap9 A Q retoma o tema dos conceitos com o qual tinha

concluiacutedo o cap7 antes da relativamente longa mas necessaacuteria digressatildeo acerca das paixotildees

da alma O propoacutesito do autor eacute demonstrar como um poeta eacute capaz de transmitir os conceitos

que deseje mediante o emprego de certos procedimentos retoacutericos A Q utiliza exemplos

extraiacutedos de Homero nos quais aponta como o poeta mesclando traccedilos masculinos e

femininos consegue traduzir em palavras uma gama complexa de impressotildees desde

sensaccedilotildees fiacutesicas como rapidez suavidade ou agitaccedilatildeo ateacute caracteres ou julgamentos morais

Esse conceitos (ἐννοήματα) compostos de traccedilos masculinos e femininos ndash conceitos que por

sua vez entram na composiccedilatildeo eacutetica das frases e dos discursos ndash A Q os compara aos

extratos dos quais satildeo feitos os remeacutedios7 e conclui (II 103-18)

τὰ μὲν οὖν ἐς ἄνεσιν ἄγοντα καὶ φαιδρότητα τὸν ἀφελῆ τε καὶ ἡδὺν λόγον

ἐγέννησε τὰ δὲ τὸ σύννουν κινοῦντα καὶ τὸ ὁρμητικὸν τὸν πολιτικόν τε

καὶ ἀγωνιστικὸν ἐξέφηνεν τοῦ μὲν οὖν πολιτικοῦ κατὰ τὸ ἄρρεν τὰ εἴδη

συντομίαι τε καὶ βραχύτητες καὶ ἀξίωμα καὶ μεγαλοπρέπεια τραχύτης τε

καὶ σφοδρότης καὶ μέγεθος καὶ μεστότης ἅπερ τήν τε φυσικὴν ἐμφαίνει

μεγαλόνοιαν τοῦ ἄρρενος μέγεθός τε σώματος καὶ ἁδροτῆτα διανοίας καὶ

τὸ ἐς τὰ μέγιστα τῶν ἔργων ἀνυτικὸν τάχος τοῦ δὲ ἀφελοῦς ἀραιότης

ἁβρότης κάλλη τε καὶ γλυκύτητες ὧν τὰ μὲν τὸ ἀνειμένον τοῦ θήλεος τὰ

δὲ τὸ ἐς ὡραϊσμὸν διαδείκνυσιν ἐπτοημένον γένοιτο δ ἄν τι καὶ τῇ

τούτων πλοκῇ οἷον ἡ δριμύτης τὸ μὲν τάχος ὡς ἄρρεν τὸ δὲ

μικροπρεπὲς ὡς ἐναντίον ἐπιφαίνουσα ἥ τ ἐπιμέλεια τὸ μὲν γλίσχρον

ἔχουσα κατὰ τὸ θῆλυ τὸ δὲ τῆς φιλοπονίας παρεκτεταμένον ὡς ἄρρεν

Assim os conceitos que levam agrave descontraccedilatildeo e agrave alegria produzem uma

frase despojada e doce enquanto os conceitos que mobilizam as partes

intelectiva e impulsiva produzem a frase contenciosa e poliacutetica Os traccedilos

da frase poliacutetica relacionados ao masculino satildeo concisatildeo brevidade

dignidade e elevaccedilatildeo assim como aspereza forccedila grandeza e

completude traccedilos que mostram a grandiosidade natural do masculino a

7 Uma comparaccedilatildeo semelhante jaacute tinha sido feita em II 47-12

19

magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores

trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e

doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros

a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a

exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e

atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade

como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo

masculino

Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem

duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel

Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade

contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de

masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e

mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos

interessa aqui compreender

Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase

feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por

ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por

ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo

como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa

ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de

desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo

remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na

disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma

Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que

poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade

seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma

caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel

quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a

porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade

contradiccedilatildeo alguma

No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a

capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente

aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam

o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante

uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses

materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes

20

Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro

tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais

duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do

diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons

livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma

martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente

tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade

Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a

accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua

presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No

capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a

dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do

discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto

24 As letras

Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto

καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων

γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς

φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς

τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον

ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως

περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων

ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων

τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ

ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε

πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ

ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα

μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν

χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον

ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς

ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς

τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον

διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως

τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν

ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων

κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος

ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ

τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως

eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo

de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais

outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como

as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido

satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que

limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves

enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade

21

temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo

dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo

que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente

eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o

lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute

atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por

sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a

passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes

outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se

com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar

jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua

a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio

das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona

ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o

emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito

aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias

e possuem ambas as naturezas

A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo

primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso

masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais

Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da

classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam

espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo

das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as

consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto

consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as

consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave

nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na

sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz

respeito agraves letras8

As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo

claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que

pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo

Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das

vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de

assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as

quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das

letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes

8 Cf Chapanski 2003 p 22-24

22

Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes

que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais

proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias

enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais

proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em

relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade

As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de

articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua

vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto

meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais

tau delta e theta As guturais capa gama e khi

Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como

ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo

que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as

surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste

em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de

separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas

silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)

seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as

consoantes o polo essencial (formal ou masculino)

AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo

seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais

(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a

doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo

princiacutepio dualista

25 As vogais e o solfejo

Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o

meacutelos (II 126-10)

Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι

λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα

τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ

μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει

23

O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a

harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que

se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo

percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e

ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos

Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo

de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I

Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de

disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute

apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma

harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo

especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das

mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder

perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o

objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e

o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir

encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)

Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς

κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ

ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ

μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον

μετεσχηκότες

A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe

tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e

masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo

intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos

gecircneros com maior ou menor intensidade

No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre

elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa

diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino (II 131-35)

Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς

πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα

πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων

ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς

ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε

τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς

ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς

μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ

συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ

9 Cf West 1994 p178

24

πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα

δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν

ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως

ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt

κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ

λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν

μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ

ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν

ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο

καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως

ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα

φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt

νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται

πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται

τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ

γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων

καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις

σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα

καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ

ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ

Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute

captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as

letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete

examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra

as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e

masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons

mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute

masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois

nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o

ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o

som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige

que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o

alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da

sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua

estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado

intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta

quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino

quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa

na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a

exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta

trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do

alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior

parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo

lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses

examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos

constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e

terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons

semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros

Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais

nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas

internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para

isso novos paracircmetros

O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio

que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou

25

fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais

vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora

a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem

interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)

estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto

importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado

designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais

satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas

Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute

Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de

masculino e feminino em si mesmas10

Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos

remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a

esfericidade da alma11

(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash

mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso

Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves

a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon

feminino) refira-se justamente a esse arredondamento

As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em

razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas

(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua

ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente

relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal

O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do

eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os

extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo

masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo

entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da

verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o

10

Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido

Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo

metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das

observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11

Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De

Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por

que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora

o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo

26

sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo

entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta

Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo

verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave

segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo

lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros

Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro

obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo

excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no

solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)

Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ

εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί

τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες

ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ

αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων

περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ

τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν

τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς

πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ

ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ

λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος

διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt

εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους

διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν

λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ

πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν

μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν

Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente

passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega

satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se

articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que

o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam

intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez

sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por

intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos

dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de

acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos

da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam

No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido

com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das

vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o

ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons

que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida

vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava

em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos

posteriormente por que isso eacute assim

A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim

ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo

27

O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de

quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de

quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores

distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12

Do grave para o agudo (ou de

cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram

denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica

(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era

acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de

um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira

(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da

uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons

ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro

tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo

(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom

O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute

justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do

tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao

ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira

(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da

sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada

μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito

formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava

formado com a nota acrescida

Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada

tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou

agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por

eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)

Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει

κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ

τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν

πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ

θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα

γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά

12

Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2

T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)

28

Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao

masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos

em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram

dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os

sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no

entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da

passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes

Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave

formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo

decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso

ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como

o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13

os rechaccedilavam por

completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14

(II 1488-90)

περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς

παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας

Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam

na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da

alma

Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos

instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo

mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes

mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais

como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se

apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta

a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo

a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as

noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura

tonal (II 1623-40)

Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα

διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ

θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος

μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα

εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν

ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ

τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ

πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν

περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον

θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον

ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι

13

Repuacuteblica 398c 14

Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)

29

δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς

τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν

οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν

ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt

Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela

sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute

feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais

do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua

tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se

descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade

e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por

gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito

debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde

participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira

participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros

intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua

natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar

cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza

iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo

interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam

familiares

No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os

instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o

dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em

que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria

dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado

por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da

muacutesica sobre a alma

O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro

245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo

ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees

superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da

regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo

anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto

ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees

hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm

pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15

15

Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida

(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a

associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre

medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente

que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento

que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a

30

Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite

(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os

nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm

unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses

nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo

masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria

Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo

residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real

manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo

um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas

entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do

universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os

planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros

26 A muacutesica das esferas

Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves

teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem

acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma

definiccedilatildeo (III 211-6)

Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν

ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ

φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον

τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν

διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει

Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o

feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e

amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o

esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de

sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo

AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero

proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute

elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza

(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas

antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura

que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo

31

Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os

planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e

femininas (III 216-40)

ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης

γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον

ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ

δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ

ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ

θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι

τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον

μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε

μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης

προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ

πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος

ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ

νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ

ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε

ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς

Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης

ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως

ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε

θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ

ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν

ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε

ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης

ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ

μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν

παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ

τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων

συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν

θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ

ἐπίπονος τὸν ἄρρενα

A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por

toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda

um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do

feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa

tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e

nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios

e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do

feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de

Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota

acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute

no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol

(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se

regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem

tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais

familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute

luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente

uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente

feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol

emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e

impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som

que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo

de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante

ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma

equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de

32

Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e

quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo

sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que

eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino

Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal

correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota

do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao

eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de

masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as

devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam

a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde

PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO

NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa

VOGAL ε α η ω α η Ω

Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a

meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o

eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe

apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por

outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela

soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim

seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo

ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas

pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo

Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco

pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter

especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a

correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e

as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como

essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda

oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de

Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido

Primeiro tetracorde Segundo tetracorde

33

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico

Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o

ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava

somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por

uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado

ou o ponto intermeacutedio

Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica

inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo

princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros

e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado

sob sua tutela

Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a

muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a

qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto

meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional

passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num

polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a

alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a

alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de

Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge

para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim

sucessivamente

Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua

organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata

da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se

reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical

os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura

da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual

o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado

primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas

mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro

torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim

dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16

16

Gueacutenon 1999 p23

34

No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser

dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de

analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre

regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos

incomensuraacuteveis

Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de

seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas

vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade

necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que

estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade

assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada

impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a

um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por

exemplo da lua e da alma

Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as

ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou

aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que

embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres

ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia

nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de

fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas

qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas

graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo

tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais

uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a

coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e

lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num

mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao

masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora

dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo

Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo

de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o

acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o

35

fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino

teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse

fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo

Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo

contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa

A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o

outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre

quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na

quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um

compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la

A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-

feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e

feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a

posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria

necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo

para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente

masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude

de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo

privativa

Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito

de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem

duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e

quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre

ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos

guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e

sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais

difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta

porosa uacutemida ou fechada

Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a

sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns

dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso

condiccedilotildees

Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo

naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem

36

necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas

se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou

outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)

Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo

condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de

fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees

associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o

caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute

necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa

objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da

mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos

dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do

iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num

patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado

intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos

individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo

Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees

de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam

somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre

esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes

noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre

relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma

espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila

Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos

loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou

analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ

ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)

A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas

relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse

processo igualmente uma relaccedilatildeo

Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et

du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee

notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas

moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux

celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou

encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de

nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui

37

exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est

en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le

plus petit comme analogue du plus grand)17

Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que

unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter

entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel

unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia

Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres

primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune

corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos

on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification

du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par

harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se

ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une

neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au

deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure

deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en

son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception

originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la

conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique

de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre

partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18

Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de

predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e

mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na

matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo

desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =

2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que

a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas

premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo

A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-

1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua

vez se apoiu em Aristoacuteteles19

) estabelece trecircs tipos de analogia20

A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o

termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo

17

Borella 2012 p23 18

Moutsopoulos 2004 p203-204 19

Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada

pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais

ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre

chez Aristote Paris PUF 1962 20

A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23

38

grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

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Page 5: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

ABSTRACT

Aristides Quintilianusrsquo On music is probably the most accomplished treatise documenting the

close connection between philosophical thought and musical theory in Ancient Greece In this

work I intend to scrutinize through descriptive lens at first the notions of masculine

(ἄρρεν) and feminine (θῆλυ) which play a substantial role in Quintilianusrsquo conception of

music as a cosmological system and interdisciplinary science Then I ask questions about the

logical and ontological basis of those notions and finally I try to understand the analogical

reasoning they seem to imply

Keywords On music Aristides Quintilianus Masculine Feminine

SUMAacuteRIO

1 Introduccedilatildeo 7

2 Masculino e feminino 10

21 Meacutelos e rhythmoacutes 10

22 Corpo e alma 13

23 Os conceitos 18

24 As letras 20

25 As vogais e o solfejo 22

26 A muacutesica das esferas 30

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico 33

4 Agrave guisa de conclusatildeo 42

BIBLIOGRAFIA 43

7

1 Introduccedilatildeo

A abstraccedilatildeo eacute o pecado original de toda ciecircncia e eacute perfeitamente natural que seja

assim Nossa linguagem natildeo pode pretender abarcar numa visada uacutenica os muacuteltiplos aspectos

de um objeto qualquer sem multiplicar ao mesmo tempo as razotildees de equiacutevoco Eacute por isso

que para a compreensatildeo de um uacutenico objeto satildeo necessaacuterias dezenas de ciecircncias que o

enfoquem sob os diversos pontos de vista O uacutenico incoveniente eacute que no mais das vezes

dezenas de aspectos natildeo chegam a formar um objeto de modo que enquanto o olho continua

enxergando um mundo onde a cabeccedila estaacute sobre o pescoccedilo a inteligecircncia vai compondo para

si um universo cada vez mais cubista

Este trabalho fiquem tranquilos natildeo pretende atacar este problema pelo menos

natildeo diretamente Nosso objetivo eacute expor (e na medida do possiacutevel quem sabe ateacute

compreender) como mediante o emprego de uma ferramenta intelectual simples (e

ultrapassada segundo a opiniatildeo corrente que com frequecircncia esquece ou sequer percebe o

quanto a ela tem recorrido) nosso autor pretendeu romper fronteiras ontoloacutegicas e oferecer

uma descriccedilatildeo unificada do mundo submetendo nesse processo conhecimentos de ordem

absolutamente heterogecircnea (que vatildeo da astronomia agrave ciecircncia poliacutetica da psicologia agrave criacutetica

literaacuteria) a um mesmo par de conceitos

Nosso autor chama-se Aristides Quintiliano e o seu livro eacute o tratado de teoria

musical intitulado Da Muacutesica (ΠΕΡΙ ΜΟΥΣΙΚΗΣ ΤΡΙΤΟΝ) obra em que todos os esforccedilos

convergem para um objetivo bastante ambicioso integrar numa visatildeo unitaacuteria os variados

aspectos daquilo que a cultura grega um dia produziu sob o nome de μουσική empreitada que

demanda uma articulaccedilatildeo entre duas vertentes rivais no campo da teoria musical a tradiccedilatildeo

pitagoacuterica e a tradiccedilatildeo aristoxecircnica Nos bastidores dessa articulaccedilatildeo onipresentemente estatildeo

Aristoacuteteles e Platatildeo

Desconhece-se quem tenha sido historicamente o indiviacuteduo que atende por

Aristides Quintiliano Alguns sustentam1 que tenha sido um escravo de Marcus Fabius

Quintilianus outros que tenha sido seu filho e outros ainda que seja o proacuteprio autor da

Institutio oratoria Haacute tambeacutem a hipoacutetese de que tenha sido um saacutebio da corte do imperador

Adriano embora natildeo se possa precisar qual deles exatamente (por ora satildeo duas as

alternativas)

1 Para mais detalhes sobre essas hipoacuteteses Mathiesen 1983 p11-12

8

Agrave indecisatildeo quanto agrave identidade do autor soma-se a incerteza na dataccedilatildeo da obra

Quintilino por um lado cita Ciacutecero (assassinado em 43 aC) e de outro foi usado como fonte

por Martianus Capella na redaccedilatildeo do livro IX do seu De nuptiis Philologiae et Mercurii

Como a redaccedilatildeo do De nuptiis eacute datada da primeira metade do seacutecV dC os comentadores

concordam em situar o De muacutesica e seu autor entre o I e o IV seacuteculos depois de Cristo

No conjunto da tratadiacutestica musical grega o De muacutesica ocupa ao lado dos

Elementos Harmocircnicos de Aristoacutexeno (segunda metade do seacutecIV aC) e da Harmocircnica (que

data de meados do seacutec II dC) de Ptolomeu um lugar de destaque Dentre esses trecircs

principais tratados no entanto o de Quintiliano eacute o uacutenico a nos oferecer uma ldquoexposiccedilatildeo

completa dos aspectos filosoacuteficos da muacutesica gregardquo (COLOMBER L GIL B 1996 p19)

Este trabalho objetiva abordar apenas um desses aspectos filosoacuteficos as noccedilotildees de masculino

(ἄρρεν) e feminino (θῆλυ)

No De muacutesica as noccedilotildees de masculino e feminino cumprem um papel estrateacutegico

Eacute essa dualidade que como princiacutepio estruturante fundamenta a doutrina dos eacutethe musicais

na sua interaccedilatildeo simpaacutetico-eacutetico-pedagoacutegica com as potecircncias da alma Trata-se aleacutem disso

de um princiacutepio que atua sobre todo o mundo corpoacutereo analogando os entes deste mundo uns

com os outros e estes mesmos por sua vez com as realidades celestes

Todavia embora Quintiliano apoiado na ferramenta da analogia e mediante o

emprego das noccedilotildees de masculino e feminino alcance conceber e expor uma visatildeo more

musicale demonstrata unitaacuteria do universo nem por isso se daacute o trabalho de tratar mais

detidamente dessas duas noccedilotildees e se insinua fazecirc-lo eacute sempre em funccedilatildeo de um objetivo

descritivo imediato Quanto agrave analogia expediente dos mais frequentes no De muacutesica

Quintiliano natildeo chega a abordaacute-la como uma teoria em si mesma embora expediente e teoria

estejam ambos em seu tratado indissociaacutevel e necessariamente ligados

Meu objetivo aqui eacute tratar particularmente das noccedilotildees de masculino e feminino e

natildeo do modo como essas noccedilotildees fundamentam as doutrinas esteacuteticas poliacuteticas pedagoacutegicas

cosmoloacutegicas ou metafiacutesicas relacionadas agrave reflexatildeo musical grega Assim na primeira parte

do trabalho busco traccedilar um perfil descritivo inicial partindo para isso das passagens

traduzidas e comentadas em que Quintiliano emprega ilustra ou explica essas noccedilotildees Num

segundo momento tento sondar o estatuto loacutegico e ontoloacutegico das noccedilotildees de masculino e

feminino sem no entanto extrapolar o acircmbito estritamente cosmoloacutegico no qual Quintiliano

se deteacutem

Como Quintiliano divide o tratado em trecircs livros ndash um primeiro dedicado agrave arte

musical propriamente dita ou muacutesica audiacutevel um segundo que trata da muacutesica enquanto

9

ferramenta pedagoacutegica e imagem da alma e um terceiro livro no qual aborda os fundamentos

matemaacuteticos e cosmoloacutegicos dos livros anteriores ndash e como as noccedilotildees de masculino e

feminino satildeo abordadas sempre a propoacutesito mas sem ordem aparente ao longo de todos os

trecircs livros resulta absolutamente impossiacutevel natildeo avanccedilar em saltos Pretendi minimizar esse

inconveniente seguindo estritamente a ordem da exposiccedilatildeo (teria seguido a ordem das razotildees

se tivesse encontrado alguma) Tentei tambeacutem nos comentaacuterios agraves passagens preencher os

hiatos expositivos informando o contexto de onde cada passagem foi retirada

Na seleccedilatildeo das passagens a analisar foi preciso excluir algumas (natildeo muitas) cujo

conteuacutedo natildeo fosse especialmente relevante para o objetivo deste trabalho Os trechos

excluiacutedos constituem-se sobretudo de informaccedilotildees jaacute dadas ou de simples menccedilotildees dos

termos masculino e feminino Fico grato a quem me possa informar alguma omissatildeo

imperdoaacutevel

Disse acima que as noccedilotildees de masculino e feminino tecircm papel estrateacutegico no

tratado de Aristides Quintiliano Natildeo eacute sem estrateacutegia igualmente que essas noccedilotildees satildeo

apresentadas ao leitor A Q abre os capiacutetulos iniciais do livro I expondo os motivos (a

ignoracircncia e leviandade dos seus contemporacircneos com relaccedilatildeo agrave musica) e o escopo da sua

iniciativa A muacutesica para ele natildeo eacute um divertimento banal mas a ordem impliacutecita por traacutes da

natureza

Concluiacutedo o preacircmbulo ele desce das alturas e passa a tratar da muacutesica stricto

sensu No capiacutetulo 5 do livro I propotildee uma divisatildeo da mateacuteria em duas partes muacutesica praacutetica

e muacutesica teoacuterica Cada parte por sua vez eacute subdividida em duas outras A teoacuterica em muacutesica

da natureza e teacutecnica musical a praacutetica tambeacutem chamada educativa em composiccedilatildeo (ou uso)

musical e expressatildeo musical Quintiliano aborda a seguir os dois primeiros aspectos da

teacutecnica musical o ritmo e o meacutelos Eacute soacute entatildeo que menciona pela primeira vez os termos

masculino e feminino

10

2 Masculino e feminino

21 Meacutelos e rhythmoacutes

Como vimos eacute somente apoacutes ter tratado da teoria harmocircnica (Livro I caps 6-12)

e da teoria riacutetmica (caps 13-19) que A Q emprega pela primeira vez os termos ἄρρεν e θῆλυ

Diz ele (I 1925-30)

τινὲς δὲ τῶν παλαιῶν τὸν μὲν ῥυθμὸν ἄρρεν ἀπεκάλουν τὸ δὲ μέλος θῆλυ τὸ μὲν

γὰρ μέλος ἀνενέργητόν τ ἐστὶ καὶ ἀσχημάτιστον ὕλης ἐπέχον λόγον διὰ τὴν πρὸς

τοὐναντίον ἐπιτηδειότητα ὁ δὲ ῥυθμὸς πλάττει τε αὐτὸ καὶ κινεῖ τεταγμένως

ποιοῦντος λόγον ἐπέχων πρὸς τὸ ποιούμενον

Alguns dos antigos chamavam o ritmo de masculino e o meacutelos de feminino pois o

meacutelos eacute sem atualidade e sem forma possuindo o logos da mateacuteria pela sua aptidatildeo

para os contraacuterios ao passo que o ritmo move ordenadamente o meacutelos e o modela

possuindo o logos do criador com relaccedilatildeo ao que eacute criado

Evidentemente o meacutelos sem atualidade e sem forma mencionado nesta passagem

natildeo eacute exatamente o mesmo que capiacutetulos atraacutes (I 121-3) A Q definiu como meacutelos teacuteleion

ou meacutelos perfeito (aquele que combina harmonia ritmo e dicccedilatildeo) mas o meacutelos em sentido

proacuteprio (ἰδιαίτερον) e estrito um entrelaccedilamento de sons desiguais quanto agrave altura tonal isto

eacute de sons que se articulam desde a perspectiva de uma oposiccedilatildeo qualitativa de base a

oposiccedilatildeo entre grave e agudo

Tambeacutem a noccedilatildeo de ritmo eacute aqui empregada em sentido restrito e sequer

corresponde agrave totalidade daquilo que dentro do escopo da teoria musical e segundo o proacuteprio

A Q (I 1319-20) estaacute submetido agrave ordenaccedilatildeo riacutetmica os movimentos do corpo da melodia

e da dicccedilatildeo ou seja a danccedila a muacutesica e a poesia

No iniacutecio do capiacutetulo 13 Livro I A Q estabelece trecircs acepccedilotildees para o termo

ritmo conforme os objetos aos quais o termo seja aplicado Haacute assim o ritmo dos corpos

imoacuteveis o dos corpos moacuteveis e o ritmo em sentido proacuteprio (ἰδίως) que eacute o ritmo quando

aplicado agrave voz (ἐπὶ φωνῆς) ou ao som Eacute com respeito a esta uacuteltima acepccedilatildeo que diz ele (I

136-8) o ritmo se organiza segundo uma oposiccedilatildeo de estados denominados aacutersis e theacutesis

ruiacutedo e repouso (ἄρσιν καὶ θέσιν ψόφον καὶ ἠρεμίαν)

Certamente natildeo eacute coincidecircncia o fato de que cada termo da dualidade ritmo-

melodia se articule internamente tambeacutem segundo uma oposiccedilatildeo qualitativa Mais adiante

teremos ocasiatildeo de interrogar como essas (e outras) oposiccedilotildees especiacuteficas se articulam entre

si e todas por sua vez com a dualidade masculino-feminino a que A Q nos introduz

formalmente na passagem citada mas com a qual assim nos parece ele conta desde o iniacutecio

11

Em I 236-7 A Q nos daacute uma pista ao fazer da interaccedilatildeo entre os dissimilares a

condiccedilatildeo necessaacuteria de tudo o que vem a ser Embora Quintiliano nessa passagem designe

esses dissimilares (ἀνομοίων) como ldquoγεννωμένωνrdquo termo que Mathiesen (1983 p108)

traduz como ldquoprogenitoresrdquo o princiacutepio que ele aiacute enuncia natildeo poderia pela natureza do

assunto (ritmo e meacutetrica) estar circunscrito ao acircmbito exclusivo da reproduccedilatildeo sexuada

Em nota ao trecho (I 1925-30) reproduzido acima Barker (1990 p445) apoacutes

apontar a origem aristoteacutelica dos conceitos de agente e mateacuteria considera problemaacutetica a

fonte de sua associaccedilatildeo com as noccedilotildees de masculino e feminino embora essa associaccedilatildeo seja

mencionada tambeacutem em Aristoacuteteles

The terms of this distinction between matter and agent are Peripatetic and their

use here recalls Aristotles account of the male and female contributions to

reproduction (eg De Gen An 730b) Similar conceptions of the roles of melody

and rhythm are suggested by ps-Ar Probs xix49We cannot confidently identify

the origin of the application of sexual distinctions to music (used extensively by

Aristides in Book 11) and specifically of the equation of rhythm with male melody

with female such ideas may possibly be connected with the school of Damon

Colomer e Gil (1996 p96) satildeo mais especiacuteficos ao apontar uma possiacutevel origem

aristoxecircnica para a aplicaccedilatildeo das noccedilotildees aristoteacutelicas de ato e mateacuteria ao par ritmo e meacutelos

hipoacutetese que no fundo o proacuteprio Barker natildeo descarta jaacute que como diz os Elementa

Rhythmica satildeo ldquoa major source for the section on rhythmics in chs 13-19 of 12 Arist Quint

De Mus Book 1rdquo (1990 p193)

De fato nos Elementa Rhythmica (Livro II fr03) Aristoacutexeno refere-se ao ritmo e

ao ritmaacutevel (ῥυθμιζομένου) como duas naturezas especiacuteficas (δύο τινὰς φύσεις) as quais

estariam uma para outra como a forma (τὸ σχῆμα) estaacute para o que eacute formado (τὸ

σχηματιζόμενον) Aristoacutexeno eacute a princiacutepio ateacute mais abrangente que A Q jaacute que a relaccedilatildeo eacute

estendida a todos os ritmaacuteveis (corpo melodia e dicccedilatildeo) e natildeo exclusiva e especificamente ao

meacutelos Poreacutem para que natildeo haja duacutevida ele faz questatildeo de explicitar a relaccedilatildeo entre ritmo e

meacutelos ao mencionar adiante (fr04) que ldquoo mesmo [loacutegos] se aplica ao meacutelos e ao que quer

que tenha surgido para ser submetido ao ritmordquo2

Para A Q o meacutelos eacute ldquoἀσχημάτιστονrdquo3 informe para Aristoacutexeno eacute

ldquoσχηματιζόμενονrdquo algo que padece a forma Aleacutem de natildeo haver diferenccedila conceitual

2 Ὁ αὐτὸς δὲ λόγος καὶ ἐπὶ τοῦ μέλους καὶ εἴ τι ἄλλο πέφυκε ῥυθμίζεσθαι ou na traduccedilatildeo de Barker (1990

p185) ldquoThe same can be said about melody too and about anything else whose nature it is to be made rhythmic

[rhythmizesthai]rdquo 3 Quintiliano tambeacutem denomina o meacutelos ldquoἀνενέργητόνrdquo o que obviamente remete ao conceito de ato (ἐνέργεια

ou ἐντελέχεια) por oposiccedilatildeo agrave potecircncia (δuacuteναμις) termo que A Q emprega com relaccedilatildeo aos graus da escala O

12

relevante entre os dois termos ambos apontam para uma acepccedilatildeo mais abrangente e mais

primitiva do rhythmoacutes Segundo Colomer e Gil (op cit loc cit) ldquoos termos rhythmoacutes e

schecircma foram a princiacutepio quase sinocircnimos embora depois a palavra rhythmoacutes se tenha

aplicado preferencialmente agrave forma em movimento e schecircma agrave forma estaacuteticardquo Ora essa

identificaccedilatildeo originaacuteria se esclarece a primeira e a segunda acepccedilotildees atribuiacutedas por A Q ao

termo ritmo (o ritmo dos corpos imoacuteveis e dos corpos moacuteveis) igualmente demonstra a

profunda unidade que coere aquelas trecircs acepccedilotildees pois em todas predomina a ideia de uma

determinaccedilatildeo formal

Haacute no entanto apesar dos paralelismos (mesmo no tocante agrave ordem de

exposiccedilatildeo) uma diferenccedila notaacutevel entre os textos de Aristoacutexeno e de Aristides Quintiliano Eacute

que Aristoacutexeno embora visivelmente preocupado esmiuccedilar a diferenccedila entre o ritmo e os

ritmaacuteveis natildeo recore para isso agraves noccedilotildees de masculino e feminino O tratado de Aristoacutexeno

tudo indica foi uma das principais fontes dos caps 13-19 do Livro I de A Q mas certamente

natildeo foi a uacutenica

Embora como sugerem Colomer e Gil o ingresso na teoria musical dos termos

masculino e feminino possa ter tido origem damoniana (e natildeo ser portanto histoacuterica e

originalmente pitagoacuterica) natildeo haacute duacutevida de que os termos ἄρρεν e θῆλυ fazem parte do

vocabulaacuterio filosoacutefico pitagoacuterico Sabemos disso porque Aristoacuteteles (Metafiacutesica 986a25) os

elenca entre famosos dez princiacutepios pitagoacutericos Noutra passagem da Metafiacutesica (988a2-10)

em que critica a concepccedilatildeo pitagoacuterico-platocircnica da diacuteada Aristoacuteteles natildeo somente explica a

conexatildeo entre as noccedilotildees de forma e mateacuteria e o par masculino-feminino mas afirma o caraacuteter

principial deste uacuteltimo

Com efeito eles pretendem derivar da mateacuteria uma multiplicidade se

bem que a Forma soacute gere uma vez ora o que observamos eacute que a mesa eacute

feita de um pedaccedilo de mateacuteria enquanto o homem que aplica a forma

apesar de ser um faz muitas mesas E a relaccedilatildeo entre macho e fecircmea

assemelha-se a esta pois a fecircmea eacute emprenhada numa soacute coacutepula ao passo

que o macho emprenha muitas fecircmeas E todavia estes fatos satildeo imagens

daqueles primeiros princiacutepios Eis aiacute pois como se pronunciou Platatildeo

acerca destes problemas pelo que ficou ditou eacute evidente que ele usou

apenas duas causas a essencial e a material ()

Se os fatos aparentemente desconexos da reproduccedilatildeo sexuada e da fabricaccedilatildeo de

uma mesa satildeo imagens ou imitaccedilotildees (μιμήματα) daqueles princiacutepios (τῶν ἀρχῶν ἐκείνων)

isto eacute dos princiacutepios essencial e substancial ndash ou em linguagem aristoteacutelica da causa material

e da causa formal ndash natildeo somente eacute liacutecito contar com a manifestaccedilatildeo desses princiacutepios tambeacutem

fato de que na passagem em tela ele recorra ao expediente privativo em vez empregar os termos proacuteprios natildeo

obscurece a distinccedilatildeo conceitual

13

no acircmbito da muacutesica mas se torna imperioso recorrer a eles quando se deseja como deseja

Quintiliano oferecer um vislumbre do cosmo total desde o microcosmo particular da muacutesica

Eacute o que trataremos de observar a seguir

22 Corpo e alma

Apoacutes ter introduzido no fim do cap19 as noccedilotildees de masculino e feminino A Q

natildeo volta a mencionaacute-las em nenhum momento ateacute o final do Livro I Natildeo quer isso dizer

todavia que ele jaacute natildeo as leve em conta ou pelo menos que natildeo as subentenda de algum

modo Em todo caso soacute deveraacute retomaacute-las em caraacuteter expliacutecito e operativo a partir do cap8

do Livro II

Φαίνεταί μοι τοίνυν ἡ ψυχή πόρρω μὲν τῶνδε ἡνίκα ἐστὶν ὁμιλοῦσα τῷ

κρείττονι λόγῳ τε ὁμέστιος εἶναι καὶ καθαρεύειν ἐπιθυμίας ἐπὰν δὲ ἐπὶ

τάδε ἀγκλίνῃ καὶ τὴν ἐνταῦθα διατριβὴν πείρᾳ μαθεῖν ἐπιχειρήσῃ

τηνικαῦτα αὐτῇ σώματός τε ἐγγίνεται χρεία καὶ σῶμα ἐπιζητεῖ

πρόσφορον ὑπόκειται δ αὐτῇ θεωρεῖν τὴν ἐν τούτοις διπλόην

ἀρρενότητά τέ φημι καὶ θηλύτητα ἥτις οὐκ ἐν ἐμψύχοις μόνοις ἄρα ἦν

ἀλλὰ κἀν τοῖς φύσει μόνῃ διοικουμένοις φυτῶν τε ὅσα μετάλλων τε

γένη καὶ ἀρωμάτων καὶ γὰρ τούτων δυάς τις ἐπιφαίνεται ἤτοι δι

ἁπαλότητος ἢ λειότητος ἢ εὐχροίας ἢ εὐωδίας ἢ καὶ τῶν ἐναντίων τὴν

ἑτέραν ἐπιδεικνυμένων φύσιν

Parece-me de fato que a alma quando distante das coisas e em comeacutercio

com o superior coabita com a razatildeo e estaacute livre de desejos mas quando

inclina-se para as coisas daqui e intenta aprender atraveacutes da experiecircncia

um modo de existir no tempo entatildeo sendo-lhe necessaacuterio um corpo ela

busca um corpo que lhe seja adequado E eacute da natureza da alma no

tocante aos corpos atentar para a dualidade ou seja para a masculinidade

e para a feminilidade dualidade presente natildeo soacute nos corpos animados

mas tambeacutem nos governados por uma soacute natureza tais como os gecircneros

das plantas dos metais e dos aromas pois tambeacutem neles se manifesta

certa dualidade pois seja pela brandura ou pela suavidade pela bela

aparecircncia ou pelo bom odor seja pelas qualidades contraacuterias apontam

para uma ou outra natureza (II 81-12)

Uma raacutepida contextualizaccedilatildeo nos permitiraacute compreender melhor tanto esta quanto

as demais passagens do cap8 Todo o livro II eacute dedicado agravequilo que no cap5 do livro I A Q

havia definido como muacutesica praacutetica (πρακτικόν) ou educativa (παιδευτικόν) Antes poreacutem de

tratar do seu tema propriamente A Q sente a necessidade de responder agraves objeccedilotildees dos

ceacuteticos4 (dentre os quais ningueacutem menos que Ciacutecero a quem Quintiliano poreacutem hesita em

4 ldquoEacute possiacutevel que os educadores romanos pensassem como Epicuro para quem a muacutesica natildeo tinha qualquer

significado aleacutem de um jogo de sons e concordassem com Ciacutecero que afirmava lsquoque a muacutesica natildeo tem utilidade

alguma aleacutem de um prazer infantil sem valor nenhum posto que natildeo pode guiar-nos agrave felicidadersquo Segundo o

autor romano Corneacutelius Nepos do seacutec I d C lsquoningueacutem ignora que a muacutesica segundo o estado de nossos

costumes natildeo conveacutem a um personagem importantersquo apesar de ter sido levada entre os gregos como lsquodigna de

14

atribuir juiacutezos desfavoraacuteveis acerca da muacutesica) fundamentar a proacutepria ideia de uma formaccedilatildeo

moral atraveacutes da muacutesica E como a accedilatildeo da muacutesica sobre a alma depende tanto da capacidade

ativa da primeira quanto da capacidade receptiva da uacuteltima eacute por esta que ele comeccedila

A alma diz eacute responsaacutevel por dotar de certo ritmo e de ordem (ῥυθμοῦ τινος καὶ

τάξεως) as coisas deste mundo (τῶν ἐνθαδί) Poderiacuteamos dizer embora Quintiliano natildeo o faccedila

aqui explicitamente que a alma portanto eacute masculina em relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Mas

para que possa ser isso eacute preciso que natildeo seja apenas isso De fato diz A Q a alma natildeo

possui uma natureza ou potecircncia uacutenica (οὐδὲ τῶν μονήρη τινὰ φύσιν ἢ δύναμιν ἐχόντων) mas

certa natureza dupla (διπλῆς τινος φύσεως)

A duplicidade da alma consiste em ter sido dotada pelo administrador de todas as

coisas (ὁ τὸ σύπαν διοικῶν) de uma substacircncia divina na qual habita a razatildeo (λoacuteγος) e de

uma substacircncia mundana ou irracional (ἄλογος) na qual habita o desejo (ἐπιθυμία) As duas

naturezas ou potecircncias satildeo necessaacuterias para que a alma atue sobre o mundo corpoacutereo e essa

natureza duacuteplice sem a qual ela seria ineficaz pode-se definir assim a alma soacute eacute ativa em

relaccedilatildeo ao mundo corpoacutereo na medida em que eacute passiva em relaccedilatildeo ao mundo racional Ora a

muacutesica diz Quintiliano no iniacutecio do cap3 do livro II estaacute para a alma irracional assim como a

filosofia estaacute para a alma racional Desse modo ao submeter-se agrave muacutesica a alma irracional

submete-se igualmente agrave razatildeo pois a muacutesica eacute no fundo razatildeo transformada em mateacuteria

sensiacutevel tal como a alma mesma

Isso poreacutem natildeo eacute tudo Entre as duas naturezas da alma haacute um ponto intermeacutedio

que ao submeter o desejo agrave razatildeo confere unidade agraves duas metades Esse ponto intermeacutedio eacute

a memoacuteria (μνήμη) Memoacuteria eacute claro das belezas eternas do mundo suprassensiacutevel5 Desse

modo o dualismo aniacutemico resolve-se num elemento intermediaacuterio resultante da interaccedilatildeo

entre os polos extremos com os quais forma afinal uma triacuteade

Paralelamente a alma (tomada como unidade natildeo mais segundo a interaccedilatildeo das

suas partes) sendo a um soacute tempo ativa (frente ao mundo sensiacutevel) e passiva (perante o

mundo racional) eacute ela proacutepria um ponto intermeacutedio resultante da interaccedilatildeo entre polos

opostos com os quais por sua vez tambeacutem compotildee uma triacuteade As partes e o todo o

microcosmo e macrocosmo assim espelham-se mutuamente

consideraccedilatildeo e estimarsquo rdquo CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-

kagathiacutea Classica (Brasil) 2412 73-85 2011 5 Mesmo se desconsiderarmos esse elemento doutrinal platocircnico a memoacuteria seria ainda uma bela e eficaz

imagem da uniatildeo entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo pois a memoacuteria eacute uma operaccedilatildeo estritamente mental cujos

objetos no entanto satildeo todos oriundos da experiecircncia sensiacutevel

15

Mas a porccedilatildeo desejante (ou irracional) da alma possui igualmente as suas partes

A Q as denomina desejante (ἐπιθυμητική) a qual tende ao relaxamento (ou relaxaccedilatildeo

indulgecircncia) excessivo e impulsiva (θυμικὴ) que tende a uma tensatildeo igualmente desmedida

Fica claro desde logo embora Quintiliano reserve esse comentaacuterio para mais adiante que as

duas porccedilotildees da alma irracional formam uma oposiccedilatildeo do tipo ativo-passivo ou masculino-

feminino restando saber qual seria nesse caso o ponto intermeacutedio

O ponto intermeacutedio satildeo dois por um lado (e acima) a proacutepria porccedilatildeo racional da

alma que eacute inteiriccedila e natildeo se constitui de partes por outro (e abaixo) as paixotildees que resultam

(como A Q descreveraacute a seguir) da mescla entre as potecircncias ativa e passiva da alma As

triacuteades formadas portanto satildeo tambeacutem duas mas de tipos diferentes numa o ponto

intermeacutedio estaacute hierarquicamente acima dos termos opostos noutra hierarquicamente abaixo

A razatildeo da eficaacutecia persuasiva da muacutesica sobre a alma irracional reside

argumenta Quintiliano nas peculiaridades do seu aparato mimeacutetico que lhe permite produzir

a imitaccedilatildeo com mateacuteria similar agrave do objeto imitado Curiosamente esse aparato mimeacutetico eacute

tambeacutem triaacutedico pois a muacutesica imita6 os eacutethe e as paixotildees da alma com os conceitos

(ἐννοίαις) as palavras com as harmonias e a modulaccedilatildeo da voz (ἁρμονίαις καὶ φωνῆς

πλάσει) e a accedilatildeo com os ritmos e o movimento do corpo (ῥυθμοῖς καὶ κινήσει σώματος) A

muacutesica portanto abarca o universo inteiro da accedilatildeo humana desde o seu nascedouro (nos

movimentos afetivos e intelectuais da alma) ateacute sua exteriorizaccedilatildeo em forma de atos e

palavras

Ora sendo a muacutesica sobretudo uma terapia das paixotildees da alma (παθῶν ψυχικῶν

θεραπεία) cabe ao conceito (que siacutentese do conteuacutedo racional a transmitir e da impressatildeo

esteacutetico-emocional a causar estaacute relacionado ao movimentos internos da alma de onde brotam

as accedilotildees) o papel de guiar os elementos do meacutelos perfeito (dicccedilatildeo harmonia e ritmo) O cap8

e os seguintes a comeccedilar pelo trecho acima citado satildeo dedicados justamente a explicar

primeiro como se geram as paixotildees da alma e depois como a muacutesica eacute capaz de imitaacute-las e

de nelas intervir

De iniacutecio A Q trata da dualidade masculino-feminino como uma particularidade

do mundo corpoacutereo a que a alma tem de se submeter Reforccedila o caraacuteter especificamente

corpoacutereo dessa dualidade o fato de que ela natildeo se manifeste apenas em corpos animados (οὐκ

ἐν ἐμψύχοις μόνοις) mas tambeacutem em corpos governados por uma soacute natureza (ἀλλὰ κἀν τοῖς

φύσει μόνῃ διοικουμένοις) Essa observaccedilatildeo parece decorrer da necessidade de distinguir a jaacute

6 II 438-40

16

mencionada duplicidade da alma (razatildeo por que seria natural esperar que somente os corpos

animados estivessem submetidos agrave dualidade a dualidade ao menos entre corpo e alma) do

dualismo propriamente corpoacutereo Em todo caso embora tipicamente corpoacuterea a dualidade

masculino-feminino tambeacutem aqui natildeo se restringe ao fenocircmeno bioloacutegico da diferenciaccedilatildeo

sexual Aleacutem disso essa dualidade natildeo corresponde exatamente a duas espeacutecies opostas de

seres mas a dois polos de um eixo que atravessa de ponta a ponta o mundo corpoacutereo

alcanccedilando portanto e internamente todos os seres nele existentes Desse modo cada ente

particular pode ser tomado como uma resultante da interaccedilatildeo entre os dois princiacutepios em

relaccedilatildeo aos quais ele estabelece por sua vez um ponto intermeacutedio isto eacute uma mescla E eacute

precisamente na produccedilatildeo dessa mescla que o dualismo aniacutemico e o dualismo corpoacutereo se

articulam (II 816-28)

οὐ μόνον οὖν ἐφίεται σώματος ἀλλὰ καὶ τούτου ποιοῦ τινος ἢ γὰρ ἄρρεν

ἠγάπηκεν ἢ θῆλυ καὶ τούτων ὁτὲ μὲν ἄκρατον θάτερον ὁτὲ δὲ ἐξ ἀμφοῖν

ἔχον δεινήν τινα καὶ ὄντως ἄτοπον μίξιν αὐτίκα κἂν μὴ φύσει τοῦ

τοιούτου τύχωσι σώματος αὐταὶ ταῖς σφετέραις τροπαῖς μετερρύθμισάν

τε καὶ ἐς τὸ αὑταῖς ὅμοιον μετέστησαν οὕτως ἐν μὲν ἄρρεσι θῆλυς

ἐπιτρέχει μορφή δι ἣν καὶ ὁ βίος ὦπται τοιοῦτος ἐν δὲ γυναιξὶν ἀνδρεῖον

εἶδος ᾧ καὶ τὸ ἦθος ὅμοιον τεκμαιρόμεθα καὶ ἄνδρες μὴν ἀγένειοι καὶ

γενειάσκουσι γυναῖκες καί τις ἄρρην ἔβλεψεν ὑγρὸν καὶ γυναῖκες γοργὸν

προσεῖδον ὥστε καὶ τῶν ἠθῶν ἕκαστα θηράσεις ἑκάστῃ μορφῇ συνῳδά

A alma portanto natildeo soacute deseja um corpo mas certo tipo de corpo um

corpo masculino ou um corpo feminino Deseja dentre esses agraves vezes um

corpo puro de um tipo ou de outro agraves vezes um corpo que possua uma

curiosa e paradoxal mistura de ambos Assim quando natildeo conseguem

obter naturalmente esse determinado corpo as almas o remodelam

mediante torneios e o transformam em algo semelhante a si mesmas

Dessa forma sobre um corpo masculino recai uma forma feminina (razatildeo

por que tambeacutem sua vida assim se mostra) ou ainda sobre um corpo

feminino uma forma masculina no que tambeacutem assinalamos um eacutethos

similar Haacute homens imberbes e mulheres barbadas homens de lacircnguido

olhar e mulheres com mirada de Goacutergona de modo que cada eacutethos veraacutes

corresponde a uma fisionomia

Uma vez estabelecido o princiacutepio de que o dualismo aniacutemico de algum modo rege

o dualismo corpoacutereo A Q sente-se agrave vontade para tratar de um nos termos do outro

recorrendo para isso aos termos masculino e feminino (II 828-39)

ἐκ δὲ τῆς πρὸς τὸ ἄρρεν ἢ θῆλυ προσπαθείας ἢ πρὸς ἀμφότερον τὰ πάθη

συνίσταται περὶ ψυχήν τὸ μὲν οὖν θῆλυ λίαν ἀνειμένον ᾧ συνᾴδει τὸ

ἐπιθυμητικόν τὸ δ ἄρρεν σφοδρόν τε καὶ δραστήριον ᾧ τὸ θυμικὸν

ὡμοίωται περὶ μὲν οὖν τὸ θῆλυ ψυχῆς τε μέρος καὶ ἀνθρώπων γένος

πλεονάζουσι λῦπαι τε καὶ ἡδοναί περὶ δὲ τὸ ἄρρεν ὀργὴ καὶ θράσος

πάλιν δὲ τούτων γίνονται συζυγίαι λυπῶν τε πρὸς ἡδονὰς καὶ ὀργῆς πρὸς

θράσος καὶ θράσους πρὸς ἡδονὴν καὶ λύπην καὶ ὀργῆς αὖθις πρὸς

ἑκάτερον καὶ πάλιν ἑκάστου πρός τε ἓν καὶ πρὸς πλείω μίξεις καὶ μυρίας

ἄν τις ἐκ τούτων εὕροι τῶν παθῶν εἰκόνας ἐν ποικιλίᾳ θεωρουμένων

17

Conforme o apego ao masculino ao feminino ou a ambos estabelecem-se

as paixotildees da alma O feminino eacute demasiado indulgente e com ele

concorda a alma desejante ao passo que o masculino semelhante agrave alma

impulsiva eacute veemente e ativo Assim tanto na parte feminina da alma

quanto na parcela feminina da humanidade abundam os prazeres e as

dores ao passo que na masculina a ira e a coragem E uma vez mais

datildeo-se combinaccedilotildees entre essas paixotildees das dores com os prazeres da ira

com a coragem da coragem com o prazer e a dor ou da ira novamente

com as demais e ainda de uma com outra qualquer ou com vaacuterias A

partir dessas seria possiacutevel encontrar uma miriacuteade de imagens das

paixotildees em vista da sua variedade

Se a alma por um lado submete o mundo corpoacutereo este por sua vez a espelha

macrocosmicamente nela interferindo mediante interaccedilotildees simpaacuteticas a exemplo do que

ocorre na muacutesica No entanto natildeo satildeo apenas as disposiccedilotildees passivas ou paixotildees que

estabelecem pontes entre a alma e a realidade corpoacuterea Tambeacutem as disposiccedilotildees ativas e

intelectivas estatildeo submetidas ao dualismo masculino-feminino (II 848-69)

ἔστι γὰρ πρῶτον μὲν ἐν ὁρατοῖς ἑκατέραν ἰδεῖν τὴν φύσιν τὸ μὲν

ἀνθηρόν τε καὶ ἐς ὡραϊσμὸν προςφυὲς χρῶμά τε καὶ σχῆμα διαιροῦντα

θηλύτητι τὸ δὲ στυγνόν τε καὶ ἐς σύννοιαν ἄγον ἀρρενότητι πάλιν δὲ ἐν

ἀκοαῖς τοὺς μὲν λείους καὶ προσηνεῖς ἤχους ἐς τὸ θῆλυ τοὺς δὲ

τραχυτέρους εἰς τοὐναντίον ἁρμόττοντα καί ἵνα μὴ τὰ καθ ἕκαστον

λέγω κοινῶς περὶ πάντων ἀποφαντέον ὡς ὅσα μὲν τῶν αἰσθητῶν ἔς τε

ἡδονὴν δελεάζει καὶ ἠρέμα διαχεῖν τὴν γνώμην πέφυκε ταῦτα εἰς τὸ θῆλυ

κριτέον ὅσα δὲ κινεῖ τε εἰς σύννοιαν καὶ ἐγείρει τὸ δραστήριον ταῦτα εἰς

τὴν ἄρρενος μοῖραν ἀπονεμητέον τὰ δέ τοι μηδέτερον ἢ κατὰ μίξιν ἄμφω

δρῶντα ταῦτα τῶν μέσων ἀποφαντέον κατὰ δὴ ταῦτα καὶ περὶ ἐκείνων

λέγωμεν αἳ λόγῳ μέν εἰσι καταληπταὶ τέχναι τε καὶ ἀρεταὶ καὶ ἐπιστῆμαι

ἐκ δὲ τῆς τῶν ὑλῶν ποιότητος περὶ ἃς ἑκάστη τευτάζει τὰς πρὸς ἀλλήλας

διαφορὰς καὶ ὁμοιότητας εἰλήχασιν αἵ τε ἀρεταὶ πρὸς τὰς ἀρετὰς αἵ τε

ἐπιστῆμαι πρὸς τὰς ἐπιστήμας κακίαι τε αὖ πρὸς κακίας καὶ

ἀνεπιστημοσύναι πρὸς ἀμαθίας πάλιν δὲ ἀρεταὶ πρὸς κακίας ἢ ἐπιστήμας

ἢ ἀγνωσίας κακίαι τε αὖ πρὸς τὰς εἰρημένας ποικίλης τινὸς καὶ τῆς κατὰ

ταῦτα πλοκῆς τε οὔσης καὶ μίξεως

A princiacutepio eacute de fato possiacutevel identificar nos objetos visiacuteveis cada

natureza separadamente atribuindo o florido e as formas e cores

decorativas ao feminino e as sombrias e que conduzem agrave reflexatildeo ao

masculino e o mesmo para as coisas audiacuteveis relacionando os sons

suaves e doces ao feminino e os mais aacutesperos ao seu oposto E para que

eu natildeo entre aqui em detalhes eacute preciso dizer que no geral as coisas

sensiacuteveis que induzem ao prazer e que natural e docemente dissolvem o

juiacutezo estas se devem considerar femininas ao passo que aquelas que nos

levam agrave reflexatildeo ou promovem a accedilatildeo se devem designar masculinas Jaacute

aquelas que natildeo atuam nem de uma nem de outra maneira ou o faccedilam

segundo uma mescla de ambas estas se hatildeo de chamar intermediaacuterias

Disso decorre que falemos nos mesmos termos a respeito tambeacutem das

coisas apreendidas pela razatildeo ndash as artes as virtudes e as ciecircncias ndash as

quais devem suas semelhanccedilas e diferenccedilas muacutetuas aos assuntos de que se

ocupam as virtudes no tocante agraves virtudes e as ciecircncias no tocante agraves

ciecircncias e por seu turno os viacutecios no que diz respeito aos viacutecios e a

incultura com respeito agraves ignoracircncias e ainda virtudes com respeito aos

viacutecios ciecircncias ou ignoracircncias e os viacutecios com respeito estes todos

sendo possiacutevel certa combinaccedilatildeo e mescla dessas coisas

18

Cabe observar como A Q ao traccedilar um perfil do masculino e do feminino natildeo

oferece uma lista de entes individuais mas um elenco geneacuterico de qualidades sensiacuteveis das

quais ele passa sem maior detenccedila para o toacutepico das naturezas intermediaacuterias em que estatildeo

incluiacutedas as artes as ciecircncias e as virtudes A menccedilatildeo agraves artes ciecircncias e virtudes eacute

importante neste momento porque uma vez explicado o processo pelo qual atraveacutes de

mesclas dos princiacutepios masculino e feminino satildeo engendradas as paixotildees da alma

Quintiliano deve agora retomar o fio da exposiccedilatildeo e mostrar como a muacutesica por meio de

conceitos palavras ritmos e melodias eacute capaz de imitar essas mesmas paixotildees virtudes

viacutecios etc comunicando agrave alma o respectivo eacutethos Eacute o que faraacute no restante do livro II

23 Os conceitos

No iniacutecio do cap9 A Q retoma o tema dos conceitos com o qual tinha

concluiacutedo o cap7 antes da relativamente longa mas necessaacuteria digressatildeo acerca das paixotildees

da alma O propoacutesito do autor eacute demonstrar como um poeta eacute capaz de transmitir os conceitos

que deseje mediante o emprego de certos procedimentos retoacutericos A Q utiliza exemplos

extraiacutedos de Homero nos quais aponta como o poeta mesclando traccedilos masculinos e

femininos consegue traduzir em palavras uma gama complexa de impressotildees desde

sensaccedilotildees fiacutesicas como rapidez suavidade ou agitaccedilatildeo ateacute caracteres ou julgamentos morais

Esse conceitos (ἐννοήματα) compostos de traccedilos masculinos e femininos ndash conceitos que por

sua vez entram na composiccedilatildeo eacutetica das frases e dos discursos ndash A Q os compara aos

extratos dos quais satildeo feitos os remeacutedios7 e conclui (II 103-18)

τὰ μὲν οὖν ἐς ἄνεσιν ἄγοντα καὶ φαιδρότητα τὸν ἀφελῆ τε καὶ ἡδὺν λόγον

ἐγέννησε τὰ δὲ τὸ σύννουν κινοῦντα καὶ τὸ ὁρμητικὸν τὸν πολιτικόν τε

καὶ ἀγωνιστικὸν ἐξέφηνεν τοῦ μὲν οὖν πολιτικοῦ κατὰ τὸ ἄρρεν τὰ εἴδη

συντομίαι τε καὶ βραχύτητες καὶ ἀξίωμα καὶ μεγαλοπρέπεια τραχύτης τε

καὶ σφοδρότης καὶ μέγεθος καὶ μεστότης ἅπερ τήν τε φυσικὴν ἐμφαίνει

μεγαλόνοιαν τοῦ ἄρρενος μέγεθός τε σώματος καὶ ἁδροτῆτα διανοίας καὶ

τὸ ἐς τὰ μέγιστα τῶν ἔργων ἀνυτικὸν τάχος τοῦ δὲ ἀφελοῦς ἀραιότης

ἁβρότης κάλλη τε καὶ γλυκύτητες ὧν τὰ μὲν τὸ ἀνειμένον τοῦ θήλεος τὰ

δὲ τὸ ἐς ὡραϊσμὸν διαδείκνυσιν ἐπτοημένον γένοιτο δ ἄν τι καὶ τῇ

τούτων πλοκῇ οἷον ἡ δριμύτης τὸ μὲν τάχος ὡς ἄρρεν τὸ δὲ

μικροπρεπὲς ὡς ἐναντίον ἐπιφαίνουσα ἥ τ ἐπιμέλεια τὸ μὲν γλίσχρον

ἔχουσα κατὰ τὸ θῆλυ τὸ δὲ τῆς φιλοπονίας παρεκτεταμένον ὡς ἄρρεν

Assim os conceitos que levam agrave descontraccedilatildeo e agrave alegria produzem uma

frase despojada e doce enquanto os conceitos que mobilizam as partes

intelectiva e impulsiva produzem a frase contenciosa e poliacutetica Os traccedilos

da frase poliacutetica relacionados ao masculino satildeo concisatildeo brevidade

dignidade e elevaccedilatildeo assim como aspereza forccedila grandeza e

completude traccedilos que mostram a grandiosidade natural do masculino a

7 Uma comparaccedilatildeo semelhante jaacute tinha sido feita em II 47-12

19

magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores

trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e

doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros

a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a

exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e

atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade

como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo

masculino

Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem

duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel

Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade

contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de

masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e

mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos

interessa aqui compreender

Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase

feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por

ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por

ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo

como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa

ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de

desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo

remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na

disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma

Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que

poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade

seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma

caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel

quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a

porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade

contradiccedilatildeo alguma

No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a

capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente

aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam

o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante

uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses

materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes

20

Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro

tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais

duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do

diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons

livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma

martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente

tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade

Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a

accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua

presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No

capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a

dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do

discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto

24 As letras

Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto

καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων

γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς

φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς

τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον

ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως

περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων

ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων

τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ

ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε

πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ

ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα

μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν

χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον

ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς

ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς

τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον

διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως

τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν

ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων

κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος

ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ

τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως

eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo

de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais

outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como

as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido

satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que

limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves

enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade

21

temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo

dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo

que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente

eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o

lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute

atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por

sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a

passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes

outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se

com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar

jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua

a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio

das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona

ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o

emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito

aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias

e possuem ambas as naturezas

A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo

primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso

masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais

Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da

classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam

espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo

das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as

consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto

consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as

consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave

nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na

sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz

respeito agraves letras8

As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo

claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que

pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo

Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das

vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de

assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as

quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das

letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes

8 Cf Chapanski 2003 p 22-24

22

Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes

que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais

proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias

enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais

proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em

relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade

As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de

articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua

vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto

meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais

tau delta e theta As guturais capa gama e khi

Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como

ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo

que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as

surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste

em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de

separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas

silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)

seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as

consoantes o polo essencial (formal ou masculino)

AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo

seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais

(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a

doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo

princiacutepio dualista

25 As vogais e o solfejo

Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o

meacutelos (II 126-10)

Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι

λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα

τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ

μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει

23

O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a

harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que

se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo

percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e

ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos

Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo

de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I

Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de

disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute

apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma

harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo

especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das

mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder

perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o

objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e

o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir

encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)

Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς

κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ

ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ

μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον

μετεσχηκότες

A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe

tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e

masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo

intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos

gecircneros com maior ou menor intensidade

No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre

elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa

diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino (II 131-35)

Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς

πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα

πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων

ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς

ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε

τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς

ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς

μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ

συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ

9 Cf West 1994 p178

24

πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα

δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν

ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως

ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt

κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ

λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν

μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ

ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν

ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο

καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως

ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα

φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt

νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται

πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται

τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ

γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων

καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις

σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα

καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ

ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ

Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute

captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as

letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete

examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra

as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e

masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons

mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute

masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois

nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o

ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o

som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige

que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o

alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da

sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua

estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado

intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta

quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino

quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa

na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a

exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta

trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do

alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior

parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo

lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses

examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos

constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e

terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons

semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros

Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais

nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas

internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para

isso novos paracircmetros

O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio

que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou

25

fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais

vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora

a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem

interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)

estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto

importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado

designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais

satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas

Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute

Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de

masculino e feminino em si mesmas10

Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos

remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a

esfericidade da alma11

(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash

mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso

Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves

a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon

feminino) refira-se justamente a esse arredondamento

As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em

razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas

(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua

ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente

relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal

O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do

eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os

extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo

masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo

entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da

verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o

10

Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido

Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo

metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das

observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11

Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De

Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por

que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora

o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo

26

sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo

entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta

Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo

verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave

segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo

lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros

Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro

obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo

excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no

solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)

Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ

εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί

τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες

ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ

αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων

περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ

τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν

τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς

πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ

ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ

λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος

διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt

εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους

διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν

λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ

πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν

μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν

Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente

passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega

satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se

articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que

o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam

intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez

sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por

intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos

dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de

acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos

da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam

No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido

com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das

vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o

ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons

que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida

vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava

em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos

posteriormente por que isso eacute assim

A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim

ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo

27

O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de

quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de

quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores

distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12

Do grave para o agudo (ou de

cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram

denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica

(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era

acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de

um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira

(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da

uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons

ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro

tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo

(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom

O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute

justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do

tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao

ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira

(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da

sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada

μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito

formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava

formado com a nota acrescida

Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada

tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou

agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por

eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)

Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει

κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ

τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν

πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ

θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα

γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά

12

Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2

T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)

28

Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao

masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos

em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram

dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os

sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no

entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da

passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes

Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave

formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo

decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso

ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como

o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13

os rechaccedilavam por

completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14

(II 1488-90)

περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς

παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας

Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam

na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da

alma

Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos

instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo

mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes

mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais

como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se

apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta

a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo

a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as

noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura

tonal (II 1623-40)

Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα

διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ

θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος

μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα

εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν

ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ

τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ

πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν

περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον

θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον

ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι

13

Repuacuteblica 398c 14

Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)

29

δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς

τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν

οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν

ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt

Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela

sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute

feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais

do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua

tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se

descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade

e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por

gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito

debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde

participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira

participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros

intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua

natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar

cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza

iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo

interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam

familiares

No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os

instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o

dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em

que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria

dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado

por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da

muacutesica sobre a alma

O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro

245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo

ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees

superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da

regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo

anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto

ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees

hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm

pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15

15

Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida

(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a

associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre

medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente

que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento

que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a

30

Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite

(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os

nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm

unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses

nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo

masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria

Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo

residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real

manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo

um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas

entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do

universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os

planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros

26 A muacutesica das esferas

Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves

teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem

acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma

definiccedilatildeo (III 211-6)

Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν

ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ

φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον

τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν

διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει

Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o

feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e

amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o

esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de

sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo

AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero

proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute

elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza

(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas

antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura

que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo

31

Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os

planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e

femininas (III 216-40)

ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης

γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον

ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ

δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ

ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ

θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι

τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον

μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε

μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης

προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ

πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος

ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ

νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ

ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε

ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς

Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης

ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως

ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε

θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ

ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν

ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε

ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης

ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ

μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν

παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ

τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων

συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν

θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ

ἐπίπονος τὸν ἄρρενα

A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por

toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda

um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do

feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa

tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e

nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios

e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do

feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de

Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota

acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute

no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol

(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se

regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem

tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais

familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute

luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente

uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente

feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol

emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e

impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som

que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo

de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante

ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma

equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de

32

Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e

quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo

sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que

eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino

Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal

correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota

do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao

eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de

masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as

devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam

a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde

PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO

NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa

VOGAL ε α η ω α η Ω

Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a

meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o

eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe

apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por

outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela

soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim

seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo

ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas

pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo

Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco

pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter

especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a

correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e

as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como

essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda

oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de

Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido

Primeiro tetracorde Segundo tetracorde

33

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico

Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o

ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava

somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por

uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado

ou o ponto intermeacutedio

Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica

inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo

princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros

e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado

sob sua tutela

Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a

muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a

qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto

meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional

passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num

polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a

alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a

alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de

Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge

para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim

sucessivamente

Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua

organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata

da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se

reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical

os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura

da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual

o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado

primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas

mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro

torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim

dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16

16

Gueacutenon 1999 p23

34

No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser

dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de

analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre

regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos

incomensuraacuteveis

Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de

seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas

vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade

necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que

estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade

assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada

impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a

um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por

exemplo da lua e da alma

Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as

ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou

aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que

embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres

ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia

nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de

fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas

qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas

graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo

tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais

uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a

coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e

lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num

mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao

masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora

dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo

Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo

de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o

acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o

35

fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino

teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse

fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo

Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo

contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa

A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o

outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre

quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na

quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um

compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la

A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-

feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e

feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a

posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria

necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo

para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente

masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude

de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo

privativa

Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito

de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem

duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e

quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre

ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos

guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e

sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais

difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta

porosa uacutemida ou fechada

Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a

sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns

dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso

condiccedilotildees

Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo

naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem

36

necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas

se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou

outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)

Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo

condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de

fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees

associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o

caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute

necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa

objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da

mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos

dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do

iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num

patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado

intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos

individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo

Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees

de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam

somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre

esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes

noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre

relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma

espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila

Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos

loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou

analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ

ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)

A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas

relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse

processo igualmente uma relaccedilatildeo

Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et

du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee

notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas

moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux

celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou

encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de

nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui

37

exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est

en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le

plus petit comme analogue du plus grand)17

Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que

unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter

entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel

unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia

Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres

primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune

corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos

on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification

du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par

harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se

ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une

neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au

deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure

deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en

son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception

originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la

conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique

de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre

partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18

Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de

predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e

mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na

matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo

desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =

2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que

a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas

premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo

A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-

1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua

vez se apoiu em Aristoacuteteles19

) estabelece trecircs tipos de analogia20

A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o

termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo

17

Borella 2012 p23 18

Moutsopoulos 2004 p203-204 19

Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada

pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais

ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre

chez Aristote Paris PUF 1962 20

A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23

38

grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

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Page 6: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

SUMAacuteRIO

1 Introduccedilatildeo 7

2 Masculino e feminino 10

21 Meacutelos e rhythmoacutes 10

22 Corpo e alma 13

23 Os conceitos 18

24 As letras 20

25 As vogais e o solfejo 22

26 A muacutesica das esferas 30

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico 33

4 Agrave guisa de conclusatildeo 42

BIBLIOGRAFIA 43

7

1 Introduccedilatildeo

A abstraccedilatildeo eacute o pecado original de toda ciecircncia e eacute perfeitamente natural que seja

assim Nossa linguagem natildeo pode pretender abarcar numa visada uacutenica os muacuteltiplos aspectos

de um objeto qualquer sem multiplicar ao mesmo tempo as razotildees de equiacutevoco Eacute por isso

que para a compreensatildeo de um uacutenico objeto satildeo necessaacuterias dezenas de ciecircncias que o

enfoquem sob os diversos pontos de vista O uacutenico incoveniente eacute que no mais das vezes

dezenas de aspectos natildeo chegam a formar um objeto de modo que enquanto o olho continua

enxergando um mundo onde a cabeccedila estaacute sobre o pescoccedilo a inteligecircncia vai compondo para

si um universo cada vez mais cubista

Este trabalho fiquem tranquilos natildeo pretende atacar este problema pelo menos

natildeo diretamente Nosso objetivo eacute expor (e na medida do possiacutevel quem sabe ateacute

compreender) como mediante o emprego de uma ferramenta intelectual simples (e

ultrapassada segundo a opiniatildeo corrente que com frequecircncia esquece ou sequer percebe o

quanto a ela tem recorrido) nosso autor pretendeu romper fronteiras ontoloacutegicas e oferecer

uma descriccedilatildeo unificada do mundo submetendo nesse processo conhecimentos de ordem

absolutamente heterogecircnea (que vatildeo da astronomia agrave ciecircncia poliacutetica da psicologia agrave criacutetica

literaacuteria) a um mesmo par de conceitos

Nosso autor chama-se Aristides Quintiliano e o seu livro eacute o tratado de teoria

musical intitulado Da Muacutesica (ΠΕΡΙ ΜΟΥΣΙΚΗΣ ΤΡΙΤΟΝ) obra em que todos os esforccedilos

convergem para um objetivo bastante ambicioso integrar numa visatildeo unitaacuteria os variados

aspectos daquilo que a cultura grega um dia produziu sob o nome de μουσική empreitada que

demanda uma articulaccedilatildeo entre duas vertentes rivais no campo da teoria musical a tradiccedilatildeo

pitagoacuterica e a tradiccedilatildeo aristoxecircnica Nos bastidores dessa articulaccedilatildeo onipresentemente estatildeo

Aristoacuteteles e Platatildeo

Desconhece-se quem tenha sido historicamente o indiviacuteduo que atende por

Aristides Quintiliano Alguns sustentam1 que tenha sido um escravo de Marcus Fabius

Quintilianus outros que tenha sido seu filho e outros ainda que seja o proacuteprio autor da

Institutio oratoria Haacute tambeacutem a hipoacutetese de que tenha sido um saacutebio da corte do imperador

Adriano embora natildeo se possa precisar qual deles exatamente (por ora satildeo duas as

alternativas)

1 Para mais detalhes sobre essas hipoacuteteses Mathiesen 1983 p11-12

8

Agrave indecisatildeo quanto agrave identidade do autor soma-se a incerteza na dataccedilatildeo da obra

Quintilino por um lado cita Ciacutecero (assassinado em 43 aC) e de outro foi usado como fonte

por Martianus Capella na redaccedilatildeo do livro IX do seu De nuptiis Philologiae et Mercurii

Como a redaccedilatildeo do De nuptiis eacute datada da primeira metade do seacutecV dC os comentadores

concordam em situar o De muacutesica e seu autor entre o I e o IV seacuteculos depois de Cristo

No conjunto da tratadiacutestica musical grega o De muacutesica ocupa ao lado dos

Elementos Harmocircnicos de Aristoacutexeno (segunda metade do seacutecIV aC) e da Harmocircnica (que

data de meados do seacutec II dC) de Ptolomeu um lugar de destaque Dentre esses trecircs

principais tratados no entanto o de Quintiliano eacute o uacutenico a nos oferecer uma ldquoexposiccedilatildeo

completa dos aspectos filosoacuteficos da muacutesica gregardquo (COLOMBER L GIL B 1996 p19)

Este trabalho objetiva abordar apenas um desses aspectos filosoacuteficos as noccedilotildees de masculino

(ἄρρεν) e feminino (θῆλυ)

No De muacutesica as noccedilotildees de masculino e feminino cumprem um papel estrateacutegico

Eacute essa dualidade que como princiacutepio estruturante fundamenta a doutrina dos eacutethe musicais

na sua interaccedilatildeo simpaacutetico-eacutetico-pedagoacutegica com as potecircncias da alma Trata-se aleacutem disso

de um princiacutepio que atua sobre todo o mundo corpoacutereo analogando os entes deste mundo uns

com os outros e estes mesmos por sua vez com as realidades celestes

Todavia embora Quintiliano apoiado na ferramenta da analogia e mediante o

emprego das noccedilotildees de masculino e feminino alcance conceber e expor uma visatildeo more

musicale demonstrata unitaacuteria do universo nem por isso se daacute o trabalho de tratar mais

detidamente dessas duas noccedilotildees e se insinua fazecirc-lo eacute sempre em funccedilatildeo de um objetivo

descritivo imediato Quanto agrave analogia expediente dos mais frequentes no De muacutesica

Quintiliano natildeo chega a abordaacute-la como uma teoria em si mesma embora expediente e teoria

estejam ambos em seu tratado indissociaacutevel e necessariamente ligados

Meu objetivo aqui eacute tratar particularmente das noccedilotildees de masculino e feminino e

natildeo do modo como essas noccedilotildees fundamentam as doutrinas esteacuteticas poliacuteticas pedagoacutegicas

cosmoloacutegicas ou metafiacutesicas relacionadas agrave reflexatildeo musical grega Assim na primeira parte

do trabalho busco traccedilar um perfil descritivo inicial partindo para isso das passagens

traduzidas e comentadas em que Quintiliano emprega ilustra ou explica essas noccedilotildees Num

segundo momento tento sondar o estatuto loacutegico e ontoloacutegico das noccedilotildees de masculino e

feminino sem no entanto extrapolar o acircmbito estritamente cosmoloacutegico no qual Quintiliano

se deteacutem

Como Quintiliano divide o tratado em trecircs livros ndash um primeiro dedicado agrave arte

musical propriamente dita ou muacutesica audiacutevel um segundo que trata da muacutesica enquanto

9

ferramenta pedagoacutegica e imagem da alma e um terceiro livro no qual aborda os fundamentos

matemaacuteticos e cosmoloacutegicos dos livros anteriores ndash e como as noccedilotildees de masculino e

feminino satildeo abordadas sempre a propoacutesito mas sem ordem aparente ao longo de todos os

trecircs livros resulta absolutamente impossiacutevel natildeo avanccedilar em saltos Pretendi minimizar esse

inconveniente seguindo estritamente a ordem da exposiccedilatildeo (teria seguido a ordem das razotildees

se tivesse encontrado alguma) Tentei tambeacutem nos comentaacuterios agraves passagens preencher os

hiatos expositivos informando o contexto de onde cada passagem foi retirada

Na seleccedilatildeo das passagens a analisar foi preciso excluir algumas (natildeo muitas) cujo

conteuacutedo natildeo fosse especialmente relevante para o objetivo deste trabalho Os trechos

excluiacutedos constituem-se sobretudo de informaccedilotildees jaacute dadas ou de simples menccedilotildees dos

termos masculino e feminino Fico grato a quem me possa informar alguma omissatildeo

imperdoaacutevel

Disse acima que as noccedilotildees de masculino e feminino tecircm papel estrateacutegico no

tratado de Aristides Quintiliano Natildeo eacute sem estrateacutegia igualmente que essas noccedilotildees satildeo

apresentadas ao leitor A Q abre os capiacutetulos iniciais do livro I expondo os motivos (a

ignoracircncia e leviandade dos seus contemporacircneos com relaccedilatildeo agrave musica) e o escopo da sua

iniciativa A muacutesica para ele natildeo eacute um divertimento banal mas a ordem impliacutecita por traacutes da

natureza

Concluiacutedo o preacircmbulo ele desce das alturas e passa a tratar da muacutesica stricto

sensu No capiacutetulo 5 do livro I propotildee uma divisatildeo da mateacuteria em duas partes muacutesica praacutetica

e muacutesica teoacuterica Cada parte por sua vez eacute subdividida em duas outras A teoacuterica em muacutesica

da natureza e teacutecnica musical a praacutetica tambeacutem chamada educativa em composiccedilatildeo (ou uso)

musical e expressatildeo musical Quintiliano aborda a seguir os dois primeiros aspectos da

teacutecnica musical o ritmo e o meacutelos Eacute soacute entatildeo que menciona pela primeira vez os termos

masculino e feminino

10

2 Masculino e feminino

21 Meacutelos e rhythmoacutes

Como vimos eacute somente apoacutes ter tratado da teoria harmocircnica (Livro I caps 6-12)

e da teoria riacutetmica (caps 13-19) que A Q emprega pela primeira vez os termos ἄρρεν e θῆλυ

Diz ele (I 1925-30)

τινὲς δὲ τῶν παλαιῶν τὸν μὲν ῥυθμὸν ἄρρεν ἀπεκάλουν τὸ δὲ μέλος θῆλυ τὸ μὲν

γὰρ μέλος ἀνενέργητόν τ ἐστὶ καὶ ἀσχημάτιστον ὕλης ἐπέχον λόγον διὰ τὴν πρὸς

τοὐναντίον ἐπιτηδειότητα ὁ δὲ ῥυθμὸς πλάττει τε αὐτὸ καὶ κινεῖ τεταγμένως

ποιοῦντος λόγον ἐπέχων πρὸς τὸ ποιούμενον

Alguns dos antigos chamavam o ritmo de masculino e o meacutelos de feminino pois o

meacutelos eacute sem atualidade e sem forma possuindo o logos da mateacuteria pela sua aptidatildeo

para os contraacuterios ao passo que o ritmo move ordenadamente o meacutelos e o modela

possuindo o logos do criador com relaccedilatildeo ao que eacute criado

Evidentemente o meacutelos sem atualidade e sem forma mencionado nesta passagem

natildeo eacute exatamente o mesmo que capiacutetulos atraacutes (I 121-3) A Q definiu como meacutelos teacuteleion

ou meacutelos perfeito (aquele que combina harmonia ritmo e dicccedilatildeo) mas o meacutelos em sentido

proacuteprio (ἰδιαίτερον) e estrito um entrelaccedilamento de sons desiguais quanto agrave altura tonal isto

eacute de sons que se articulam desde a perspectiva de uma oposiccedilatildeo qualitativa de base a

oposiccedilatildeo entre grave e agudo

Tambeacutem a noccedilatildeo de ritmo eacute aqui empregada em sentido restrito e sequer

corresponde agrave totalidade daquilo que dentro do escopo da teoria musical e segundo o proacuteprio

A Q (I 1319-20) estaacute submetido agrave ordenaccedilatildeo riacutetmica os movimentos do corpo da melodia

e da dicccedilatildeo ou seja a danccedila a muacutesica e a poesia

No iniacutecio do capiacutetulo 13 Livro I A Q estabelece trecircs acepccedilotildees para o termo

ritmo conforme os objetos aos quais o termo seja aplicado Haacute assim o ritmo dos corpos

imoacuteveis o dos corpos moacuteveis e o ritmo em sentido proacuteprio (ἰδίως) que eacute o ritmo quando

aplicado agrave voz (ἐπὶ φωνῆς) ou ao som Eacute com respeito a esta uacuteltima acepccedilatildeo que diz ele (I

136-8) o ritmo se organiza segundo uma oposiccedilatildeo de estados denominados aacutersis e theacutesis

ruiacutedo e repouso (ἄρσιν καὶ θέσιν ψόφον καὶ ἠρεμίαν)

Certamente natildeo eacute coincidecircncia o fato de que cada termo da dualidade ritmo-

melodia se articule internamente tambeacutem segundo uma oposiccedilatildeo qualitativa Mais adiante

teremos ocasiatildeo de interrogar como essas (e outras) oposiccedilotildees especiacuteficas se articulam entre

si e todas por sua vez com a dualidade masculino-feminino a que A Q nos introduz

formalmente na passagem citada mas com a qual assim nos parece ele conta desde o iniacutecio

11

Em I 236-7 A Q nos daacute uma pista ao fazer da interaccedilatildeo entre os dissimilares a

condiccedilatildeo necessaacuteria de tudo o que vem a ser Embora Quintiliano nessa passagem designe

esses dissimilares (ἀνομοίων) como ldquoγεννωμένωνrdquo termo que Mathiesen (1983 p108)

traduz como ldquoprogenitoresrdquo o princiacutepio que ele aiacute enuncia natildeo poderia pela natureza do

assunto (ritmo e meacutetrica) estar circunscrito ao acircmbito exclusivo da reproduccedilatildeo sexuada

Em nota ao trecho (I 1925-30) reproduzido acima Barker (1990 p445) apoacutes

apontar a origem aristoteacutelica dos conceitos de agente e mateacuteria considera problemaacutetica a

fonte de sua associaccedilatildeo com as noccedilotildees de masculino e feminino embora essa associaccedilatildeo seja

mencionada tambeacutem em Aristoacuteteles

The terms of this distinction between matter and agent are Peripatetic and their

use here recalls Aristotles account of the male and female contributions to

reproduction (eg De Gen An 730b) Similar conceptions of the roles of melody

and rhythm are suggested by ps-Ar Probs xix49We cannot confidently identify

the origin of the application of sexual distinctions to music (used extensively by

Aristides in Book 11) and specifically of the equation of rhythm with male melody

with female such ideas may possibly be connected with the school of Damon

Colomer e Gil (1996 p96) satildeo mais especiacuteficos ao apontar uma possiacutevel origem

aristoxecircnica para a aplicaccedilatildeo das noccedilotildees aristoteacutelicas de ato e mateacuteria ao par ritmo e meacutelos

hipoacutetese que no fundo o proacuteprio Barker natildeo descarta jaacute que como diz os Elementa

Rhythmica satildeo ldquoa major source for the section on rhythmics in chs 13-19 of 12 Arist Quint

De Mus Book 1rdquo (1990 p193)

De fato nos Elementa Rhythmica (Livro II fr03) Aristoacutexeno refere-se ao ritmo e

ao ritmaacutevel (ῥυθμιζομένου) como duas naturezas especiacuteficas (δύο τινὰς φύσεις) as quais

estariam uma para outra como a forma (τὸ σχῆμα) estaacute para o que eacute formado (τὸ

σχηματιζόμενον) Aristoacutexeno eacute a princiacutepio ateacute mais abrangente que A Q jaacute que a relaccedilatildeo eacute

estendida a todos os ritmaacuteveis (corpo melodia e dicccedilatildeo) e natildeo exclusiva e especificamente ao

meacutelos Poreacutem para que natildeo haja duacutevida ele faz questatildeo de explicitar a relaccedilatildeo entre ritmo e

meacutelos ao mencionar adiante (fr04) que ldquoo mesmo [loacutegos] se aplica ao meacutelos e ao que quer

que tenha surgido para ser submetido ao ritmordquo2

Para A Q o meacutelos eacute ldquoἀσχημάτιστονrdquo3 informe para Aristoacutexeno eacute

ldquoσχηματιζόμενονrdquo algo que padece a forma Aleacutem de natildeo haver diferenccedila conceitual

2 Ὁ αὐτὸς δὲ λόγος καὶ ἐπὶ τοῦ μέλους καὶ εἴ τι ἄλλο πέφυκε ῥυθμίζεσθαι ou na traduccedilatildeo de Barker (1990

p185) ldquoThe same can be said about melody too and about anything else whose nature it is to be made rhythmic

[rhythmizesthai]rdquo 3 Quintiliano tambeacutem denomina o meacutelos ldquoἀνενέργητόνrdquo o que obviamente remete ao conceito de ato (ἐνέργεια

ou ἐντελέχεια) por oposiccedilatildeo agrave potecircncia (δuacuteναμις) termo que A Q emprega com relaccedilatildeo aos graus da escala O

12

relevante entre os dois termos ambos apontam para uma acepccedilatildeo mais abrangente e mais

primitiva do rhythmoacutes Segundo Colomer e Gil (op cit loc cit) ldquoos termos rhythmoacutes e

schecircma foram a princiacutepio quase sinocircnimos embora depois a palavra rhythmoacutes se tenha

aplicado preferencialmente agrave forma em movimento e schecircma agrave forma estaacuteticardquo Ora essa

identificaccedilatildeo originaacuteria se esclarece a primeira e a segunda acepccedilotildees atribuiacutedas por A Q ao

termo ritmo (o ritmo dos corpos imoacuteveis e dos corpos moacuteveis) igualmente demonstra a

profunda unidade que coere aquelas trecircs acepccedilotildees pois em todas predomina a ideia de uma

determinaccedilatildeo formal

Haacute no entanto apesar dos paralelismos (mesmo no tocante agrave ordem de

exposiccedilatildeo) uma diferenccedila notaacutevel entre os textos de Aristoacutexeno e de Aristides Quintiliano Eacute

que Aristoacutexeno embora visivelmente preocupado esmiuccedilar a diferenccedila entre o ritmo e os

ritmaacuteveis natildeo recore para isso agraves noccedilotildees de masculino e feminino O tratado de Aristoacutexeno

tudo indica foi uma das principais fontes dos caps 13-19 do Livro I de A Q mas certamente

natildeo foi a uacutenica

Embora como sugerem Colomer e Gil o ingresso na teoria musical dos termos

masculino e feminino possa ter tido origem damoniana (e natildeo ser portanto histoacuterica e

originalmente pitagoacuterica) natildeo haacute duacutevida de que os termos ἄρρεν e θῆλυ fazem parte do

vocabulaacuterio filosoacutefico pitagoacuterico Sabemos disso porque Aristoacuteteles (Metafiacutesica 986a25) os

elenca entre famosos dez princiacutepios pitagoacutericos Noutra passagem da Metafiacutesica (988a2-10)

em que critica a concepccedilatildeo pitagoacuterico-platocircnica da diacuteada Aristoacuteteles natildeo somente explica a

conexatildeo entre as noccedilotildees de forma e mateacuteria e o par masculino-feminino mas afirma o caraacuteter

principial deste uacuteltimo

Com efeito eles pretendem derivar da mateacuteria uma multiplicidade se

bem que a Forma soacute gere uma vez ora o que observamos eacute que a mesa eacute

feita de um pedaccedilo de mateacuteria enquanto o homem que aplica a forma

apesar de ser um faz muitas mesas E a relaccedilatildeo entre macho e fecircmea

assemelha-se a esta pois a fecircmea eacute emprenhada numa soacute coacutepula ao passo

que o macho emprenha muitas fecircmeas E todavia estes fatos satildeo imagens

daqueles primeiros princiacutepios Eis aiacute pois como se pronunciou Platatildeo

acerca destes problemas pelo que ficou ditou eacute evidente que ele usou

apenas duas causas a essencial e a material ()

Se os fatos aparentemente desconexos da reproduccedilatildeo sexuada e da fabricaccedilatildeo de

uma mesa satildeo imagens ou imitaccedilotildees (μιμήματα) daqueles princiacutepios (τῶν ἀρχῶν ἐκείνων)

isto eacute dos princiacutepios essencial e substancial ndash ou em linguagem aristoteacutelica da causa material

e da causa formal ndash natildeo somente eacute liacutecito contar com a manifestaccedilatildeo desses princiacutepios tambeacutem

fato de que na passagem em tela ele recorra ao expediente privativo em vez empregar os termos proacuteprios natildeo

obscurece a distinccedilatildeo conceitual

13

no acircmbito da muacutesica mas se torna imperioso recorrer a eles quando se deseja como deseja

Quintiliano oferecer um vislumbre do cosmo total desde o microcosmo particular da muacutesica

Eacute o que trataremos de observar a seguir

22 Corpo e alma

Apoacutes ter introduzido no fim do cap19 as noccedilotildees de masculino e feminino A Q

natildeo volta a mencionaacute-las em nenhum momento ateacute o final do Livro I Natildeo quer isso dizer

todavia que ele jaacute natildeo as leve em conta ou pelo menos que natildeo as subentenda de algum

modo Em todo caso soacute deveraacute retomaacute-las em caraacuteter expliacutecito e operativo a partir do cap8

do Livro II

Φαίνεταί μοι τοίνυν ἡ ψυχή πόρρω μὲν τῶνδε ἡνίκα ἐστὶν ὁμιλοῦσα τῷ

κρείττονι λόγῳ τε ὁμέστιος εἶναι καὶ καθαρεύειν ἐπιθυμίας ἐπὰν δὲ ἐπὶ

τάδε ἀγκλίνῃ καὶ τὴν ἐνταῦθα διατριβὴν πείρᾳ μαθεῖν ἐπιχειρήσῃ

τηνικαῦτα αὐτῇ σώματός τε ἐγγίνεται χρεία καὶ σῶμα ἐπιζητεῖ

πρόσφορον ὑπόκειται δ αὐτῇ θεωρεῖν τὴν ἐν τούτοις διπλόην

ἀρρενότητά τέ φημι καὶ θηλύτητα ἥτις οὐκ ἐν ἐμψύχοις μόνοις ἄρα ἦν

ἀλλὰ κἀν τοῖς φύσει μόνῃ διοικουμένοις φυτῶν τε ὅσα μετάλλων τε

γένη καὶ ἀρωμάτων καὶ γὰρ τούτων δυάς τις ἐπιφαίνεται ἤτοι δι

ἁπαλότητος ἢ λειότητος ἢ εὐχροίας ἢ εὐωδίας ἢ καὶ τῶν ἐναντίων τὴν

ἑτέραν ἐπιδεικνυμένων φύσιν

Parece-me de fato que a alma quando distante das coisas e em comeacutercio

com o superior coabita com a razatildeo e estaacute livre de desejos mas quando

inclina-se para as coisas daqui e intenta aprender atraveacutes da experiecircncia

um modo de existir no tempo entatildeo sendo-lhe necessaacuterio um corpo ela

busca um corpo que lhe seja adequado E eacute da natureza da alma no

tocante aos corpos atentar para a dualidade ou seja para a masculinidade

e para a feminilidade dualidade presente natildeo soacute nos corpos animados

mas tambeacutem nos governados por uma soacute natureza tais como os gecircneros

das plantas dos metais e dos aromas pois tambeacutem neles se manifesta

certa dualidade pois seja pela brandura ou pela suavidade pela bela

aparecircncia ou pelo bom odor seja pelas qualidades contraacuterias apontam

para uma ou outra natureza (II 81-12)

Uma raacutepida contextualizaccedilatildeo nos permitiraacute compreender melhor tanto esta quanto

as demais passagens do cap8 Todo o livro II eacute dedicado agravequilo que no cap5 do livro I A Q

havia definido como muacutesica praacutetica (πρακτικόν) ou educativa (παιδευτικόν) Antes poreacutem de

tratar do seu tema propriamente A Q sente a necessidade de responder agraves objeccedilotildees dos

ceacuteticos4 (dentre os quais ningueacutem menos que Ciacutecero a quem Quintiliano poreacutem hesita em

4 ldquoEacute possiacutevel que os educadores romanos pensassem como Epicuro para quem a muacutesica natildeo tinha qualquer

significado aleacutem de um jogo de sons e concordassem com Ciacutecero que afirmava lsquoque a muacutesica natildeo tem utilidade

alguma aleacutem de um prazer infantil sem valor nenhum posto que natildeo pode guiar-nos agrave felicidadersquo Segundo o

autor romano Corneacutelius Nepos do seacutec I d C lsquoningueacutem ignora que a muacutesica segundo o estado de nossos

costumes natildeo conveacutem a um personagem importantersquo apesar de ter sido levada entre os gregos como lsquodigna de

14

atribuir juiacutezos desfavoraacuteveis acerca da muacutesica) fundamentar a proacutepria ideia de uma formaccedilatildeo

moral atraveacutes da muacutesica E como a accedilatildeo da muacutesica sobre a alma depende tanto da capacidade

ativa da primeira quanto da capacidade receptiva da uacuteltima eacute por esta que ele comeccedila

A alma diz eacute responsaacutevel por dotar de certo ritmo e de ordem (ῥυθμοῦ τινος καὶ

τάξεως) as coisas deste mundo (τῶν ἐνθαδί) Poderiacuteamos dizer embora Quintiliano natildeo o faccedila

aqui explicitamente que a alma portanto eacute masculina em relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Mas

para que possa ser isso eacute preciso que natildeo seja apenas isso De fato diz A Q a alma natildeo

possui uma natureza ou potecircncia uacutenica (οὐδὲ τῶν μονήρη τινὰ φύσιν ἢ δύναμιν ἐχόντων) mas

certa natureza dupla (διπλῆς τινος φύσεως)

A duplicidade da alma consiste em ter sido dotada pelo administrador de todas as

coisas (ὁ τὸ σύπαν διοικῶν) de uma substacircncia divina na qual habita a razatildeo (λoacuteγος) e de

uma substacircncia mundana ou irracional (ἄλογος) na qual habita o desejo (ἐπιθυμία) As duas

naturezas ou potecircncias satildeo necessaacuterias para que a alma atue sobre o mundo corpoacutereo e essa

natureza duacuteplice sem a qual ela seria ineficaz pode-se definir assim a alma soacute eacute ativa em

relaccedilatildeo ao mundo corpoacutereo na medida em que eacute passiva em relaccedilatildeo ao mundo racional Ora a

muacutesica diz Quintiliano no iniacutecio do cap3 do livro II estaacute para a alma irracional assim como a

filosofia estaacute para a alma racional Desse modo ao submeter-se agrave muacutesica a alma irracional

submete-se igualmente agrave razatildeo pois a muacutesica eacute no fundo razatildeo transformada em mateacuteria

sensiacutevel tal como a alma mesma

Isso poreacutem natildeo eacute tudo Entre as duas naturezas da alma haacute um ponto intermeacutedio

que ao submeter o desejo agrave razatildeo confere unidade agraves duas metades Esse ponto intermeacutedio eacute

a memoacuteria (μνήμη) Memoacuteria eacute claro das belezas eternas do mundo suprassensiacutevel5 Desse

modo o dualismo aniacutemico resolve-se num elemento intermediaacuterio resultante da interaccedilatildeo

entre os polos extremos com os quais forma afinal uma triacuteade

Paralelamente a alma (tomada como unidade natildeo mais segundo a interaccedilatildeo das

suas partes) sendo a um soacute tempo ativa (frente ao mundo sensiacutevel) e passiva (perante o

mundo racional) eacute ela proacutepria um ponto intermeacutedio resultante da interaccedilatildeo entre polos

opostos com os quais por sua vez tambeacutem compotildee uma triacuteade As partes e o todo o

microcosmo e macrocosmo assim espelham-se mutuamente

consideraccedilatildeo e estimarsquo rdquo CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-

kagathiacutea Classica (Brasil) 2412 73-85 2011 5 Mesmo se desconsiderarmos esse elemento doutrinal platocircnico a memoacuteria seria ainda uma bela e eficaz

imagem da uniatildeo entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo pois a memoacuteria eacute uma operaccedilatildeo estritamente mental cujos

objetos no entanto satildeo todos oriundos da experiecircncia sensiacutevel

15

Mas a porccedilatildeo desejante (ou irracional) da alma possui igualmente as suas partes

A Q as denomina desejante (ἐπιθυμητική) a qual tende ao relaxamento (ou relaxaccedilatildeo

indulgecircncia) excessivo e impulsiva (θυμικὴ) que tende a uma tensatildeo igualmente desmedida

Fica claro desde logo embora Quintiliano reserve esse comentaacuterio para mais adiante que as

duas porccedilotildees da alma irracional formam uma oposiccedilatildeo do tipo ativo-passivo ou masculino-

feminino restando saber qual seria nesse caso o ponto intermeacutedio

O ponto intermeacutedio satildeo dois por um lado (e acima) a proacutepria porccedilatildeo racional da

alma que eacute inteiriccedila e natildeo se constitui de partes por outro (e abaixo) as paixotildees que resultam

(como A Q descreveraacute a seguir) da mescla entre as potecircncias ativa e passiva da alma As

triacuteades formadas portanto satildeo tambeacutem duas mas de tipos diferentes numa o ponto

intermeacutedio estaacute hierarquicamente acima dos termos opostos noutra hierarquicamente abaixo

A razatildeo da eficaacutecia persuasiva da muacutesica sobre a alma irracional reside

argumenta Quintiliano nas peculiaridades do seu aparato mimeacutetico que lhe permite produzir

a imitaccedilatildeo com mateacuteria similar agrave do objeto imitado Curiosamente esse aparato mimeacutetico eacute

tambeacutem triaacutedico pois a muacutesica imita6 os eacutethe e as paixotildees da alma com os conceitos

(ἐννοίαις) as palavras com as harmonias e a modulaccedilatildeo da voz (ἁρμονίαις καὶ φωνῆς

πλάσει) e a accedilatildeo com os ritmos e o movimento do corpo (ῥυθμοῖς καὶ κινήσει σώματος) A

muacutesica portanto abarca o universo inteiro da accedilatildeo humana desde o seu nascedouro (nos

movimentos afetivos e intelectuais da alma) ateacute sua exteriorizaccedilatildeo em forma de atos e

palavras

Ora sendo a muacutesica sobretudo uma terapia das paixotildees da alma (παθῶν ψυχικῶν

θεραπεία) cabe ao conceito (que siacutentese do conteuacutedo racional a transmitir e da impressatildeo

esteacutetico-emocional a causar estaacute relacionado ao movimentos internos da alma de onde brotam

as accedilotildees) o papel de guiar os elementos do meacutelos perfeito (dicccedilatildeo harmonia e ritmo) O cap8

e os seguintes a comeccedilar pelo trecho acima citado satildeo dedicados justamente a explicar

primeiro como se geram as paixotildees da alma e depois como a muacutesica eacute capaz de imitaacute-las e

de nelas intervir

De iniacutecio A Q trata da dualidade masculino-feminino como uma particularidade

do mundo corpoacutereo a que a alma tem de se submeter Reforccedila o caraacuteter especificamente

corpoacutereo dessa dualidade o fato de que ela natildeo se manifeste apenas em corpos animados (οὐκ

ἐν ἐμψύχοις μόνοις) mas tambeacutem em corpos governados por uma soacute natureza (ἀλλὰ κἀν τοῖς

φύσει μόνῃ διοικουμένοις) Essa observaccedilatildeo parece decorrer da necessidade de distinguir a jaacute

6 II 438-40

16

mencionada duplicidade da alma (razatildeo por que seria natural esperar que somente os corpos

animados estivessem submetidos agrave dualidade a dualidade ao menos entre corpo e alma) do

dualismo propriamente corpoacutereo Em todo caso embora tipicamente corpoacuterea a dualidade

masculino-feminino tambeacutem aqui natildeo se restringe ao fenocircmeno bioloacutegico da diferenciaccedilatildeo

sexual Aleacutem disso essa dualidade natildeo corresponde exatamente a duas espeacutecies opostas de

seres mas a dois polos de um eixo que atravessa de ponta a ponta o mundo corpoacutereo

alcanccedilando portanto e internamente todos os seres nele existentes Desse modo cada ente

particular pode ser tomado como uma resultante da interaccedilatildeo entre os dois princiacutepios em

relaccedilatildeo aos quais ele estabelece por sua vez um ponto intermeacutedio isto eacute uma mescla E eacute

precisamente na produccedilatildeo dessa mescla que o dualismo aniacutemico e o dualismo corpoacutereo se

articulam (II 816-28)

οὐ μόνον οὖν ἐφίεται σώματος ἀλλὰ καὶ τούτου ποιοῦ τινος ἢ γὰρ ἄρρεν

ἠγάπηκεν ἢ θῆλυ καὶ τούτων ὁτὲ μὲν ἄκρατον θάτερον ὁτὲ δὲ ἐξ ἀμφοῖν

ἔχον δεινήν τινα καὶ ὄντως ἄτοπον μίξιν αὐτίκα κἂν μὴ φύσει τοῦ

τοιούτου τύχωσι σώματος αὐταὶ ταῖς σφετέραις τροπαῖς μετερρύθμισάν

τε καὶ ἐς τὸ αὑταῖς ὅμοιον μετέστησαν οὕτως ἐν μὲν ἄρρεσι θῆλυς

ἐπιτρέχει μορφή δι ἣν καὶ ὁ βίος ὦπται τοιοῦτος ἐν δὲ γυναιξὶν ἀνδρεῖον

εἶδος ᾧ καὶ τὸ ἦθος ὅμοιον τεκμαιρόμεθα καὶ ἄνδρες μὴν ἀγένειοι καὶ

γενειάσκουσι γυναῖκες καί τις ἄρρην ἔβλεψεν ὑγρὸν καὶ γυναῖκες γοργὸν

προσεῖδον ὥστε καὶ τῶν ἠθῶν ἕκαστα θηράσεις ἑκάστῃ μορφῇ συνῳδά

A alma portanto natildeo soacute deseja um corpo mas certo tipo de corpo um

corpo masculino ou um corpo feminino Deseja dentre esses agraves vezes um

corpo puro de um tipo ou de outro agraves vezes um corpo que possua uma

curiosa e paradoxal mistura de ambos Assim quando natildeo conseguem

obter naturalmente esse determinado corpo as almas o remodelam

mediante torneios e o transformam em algo semelhante a si mesmas

Dessa forma sobre um corpo masculino recai uma forma feminina (razatildeo

por que tambeacutem sua vida assim se mostra) ou ainda sobre um corpo

feminino uma forma masculina no que tambeacutem assinalamos um eacutethos

similar Haacute homens imberbes e mulheres barbadas homens de lacircnguido

olhar e mulheres com mirada de Goacutergona de modo que cada eacutethos veraacutes

corresponde a uma fisionomia

Uma vez estabelecido o princiacutepio de que o dualismo aniacutemico de algum modo rege

o dualismo corpoacutereo A Q sente-se agrave vontade para tratar de um nos termos do outro

recorrendo para isso aos termos masculino e feminino (II 828-39)

ἐκ δὲ τῆς πρὸς τὸ ἄρρεν ἢ θῆλυ προσπαθείας ἢ πρὸς ἀμφότερον τὰ πάθη

συνίσταται περὶ ψυχήν τὸ μὲν οὖν θῆλυ λίαν ἀνειμένον ᾧ συνᾴδει τὸ

ἐπιθυμητικόν τὸ δ ἄρρεν σφοδρόν τε καὶ δραστήριον ᾧ τὸ θυμικὸν

ὡμοίωται περὶ μὲν οὖν τὸ θῆλυ ψυχῆς τε μέρος καὶ ἀνθρώπων γένος

πλεονάζουσι λῦπαι τε καὶ ἡδοναί περὶ δὲ τὸ ἄρρεν ὀργὴ καὶ θράσος

πάλιν δὲ τούτων γίνονται συζυγίαι λυπῶν τε πρὸς ἡδονὰς καὶ ὀργῆς πρὸς

θράσος καὶ θράσους πρὸς ἡδονὴν καὶ λύπην καὶ ὀργῆς αὖθις πρὸς

ἑκάτερον καὶ πάλιν ἑκάστου πρός τε ἓν καὶ πρὸς πλείω μίξεις καὶ μυρίας

ἄν τις ἐκ τούτων εὕροι τῶν παθῶν εἰκόνας ἐν ποικιλίᾳ θεωρουμένων

17

Conforme o apego ao masculino ao feminino ou a ambos estabelecem-se

as paixotildees da alma O feminino eacute demasiado indulgente e com ele

concorda a alma desejante ao passo que o masculino semelhante agrave alma

impulsiva eacute veemente e ativo Assim tanto na parte feminina da alma

quanto na parcela feminina da humanidade abundam os prazeres e as

dores ao passo que na masculina a ira e a coragem E uma vez mais

datildeo-se combinaccedilotildees entre essas paixotildees das dores com os prazeres da ira

com a coragem da coragem com o prazer e a dor ou da ira novamente

com as demais e ainda de uma com outra qualquer ou com vaacuterias A

partir dessas seria possiacutevel encontrar uma miriacuteade de imagens das

paixotildees em vista da sua variedade

Se a alma por um lado submete o mundo corpoacutereo este por sua vez a espelha

macrocosmicamente nela interferindo mediante interaccedilotildees simpaacuteticas a exemplo do que

ocorre na muacutesica No entanto natildeo satildeo apenas as disposiccedilotildees passivas ou paixotildees que

estabelecem pontes entre a alma e a realidade corpoacuterea Tambeacutem as disposiccedilotildees ativas e

intelectivas estatildeo submetidas ao dualismo masculino-feminino (II 848-69)

ἔστι γὰρ πρῶτον μὲν ἐν ὁρατοῖς ἑκατέραν ἰδεῖν τὴν φύσιν τὸ μὲν

ἀνθηρόν τε καὶ ἐς ὡραϊσμὸν προςφυὲς χρῶμά τε καὶ σχῆμα διαιροῦντα

θηλύτητι τὸ δὲ στυγνόν τε καὶ ἐς σύννοιαν ἄγον ἀρρενότητι πάλιν δὲ ἐν

ἀκοαῖς τοὺς μὲν λείους καὶ προσηνεῖς ἤχους ἐς τὸ θῆλυ τοὺς δὲ

τραχυτέρους εἰς τοὐναντίον ἁρμόττοντα καί ἵνα μὴ τὰ καθ ἕκαστον

λέγω κοινῶς περὶ πάντων ἀποφαντέον ὡς ὅσα μὲν τῶν αἰσθητῶν ἔς τε

ἡδονὴν δελεάζει καὶ ἠρέμα διαχεῖν τὴν γνώμην πέφυκε ταῦτα εἰς τὸ θῆλυ

κριτέον ὅσα δὲ κινεῖ τε εἰς σύννοιαν καὶ ἐγείρει τὸ δραστήριον ταῦτα εἰς

τὴν ἄρρενος μοῖραν ἀπονεμητέον τὰ δέ τοι μηδέτερον ἢ κατὰ μίξιν ἄμφω

δρῶντα ταῦτα τῶν μέσων ἀποφαντέον κατὰ δὴ ταῦτα καὶ περὶ ἐκείνων

λέγωμεν αἳ λόγῳ μέν εἰσι καταληπταὶ τέχναι τε καὶ ἀρεταὶ καὶ ἐπιστῆμαι

ἐκ δὲ τῆς τῶν ὑλῶν ποιότητος περὶ ἃς ἑκάστη τευτάζει τὰς πρὸς ἀλλήλας

διαφορὰς καὶ ὁμοιότητας εἰλήχασιν αἵ τε ἀρεταὶ πρὸς τὰς ἀρετὰς αἵ τε

ἐπιστῆμαι πρὸς τὰς ἐπιστήμας κακίαι τε αὖ πρὸς κακίας καὶ

ἀνεπιστημοσύναι πρὸς ἀμαθίας πάλιν δὲ ἀρεταὶ πρὸς κακίας ἢ ἐπιστήμας

ἢ ἀγνωσίας κακίαι τε αὖ πρὸς τὰς εἰρημένας ποικίλης τινὸς καὶ τῆς κατὰ

ταῦτα πλοκῆς τε οὔσης καὶ μίξεως

A princiacutepio eacute de fato possiacutevel identificar nos objetos visiacuteveis cada

natureza separadamente atribuindo o florido e as formas e cores

decorativas ao feminino e as sombrias e que conduzem agrave reflexatildeo ao

masculino e o mesmo para as coisas audiacuteveis relacionando os sons

suaves e doces ao feminino e os mais aacutesperos ao seu oposto E para que

eu natildeo entre aqui em detalhes eacute preciso dizer que no geral as coisas

sensiacuteveis que induzem ao prazer e que natural e docemente dissolvem o

juiacutezo estas se devem considerar femininas ao passo que aquelas que nos

levam agrave reflexatildeo ou promovem a accedilatildeo se devem designar masculinas Jaacute

aquelas que natildeo atuam nem de uma nem de outra maneira ou o faccedilam

segundo uma mescla de ambas estas se hatildeo de chamar intermediaacuterias

Disso decorre que falemos nos mesmos termos a respeito tambeacutem das

coisas apreendidas pela razatildeo ndash as artes as virtudes e as ciecircncias ndash as

quais devem suas semelhanccedilas e diferenccedilas muacutetuas aos assuntos de que se

ocupam as virtudes no tocante agraves virtudes e as ciecircncias no tocante agraves

ciecircncias e por seu turno os viacutecios no que diz respeito aos viacutecios e a

incultura com respeito agraves ignoracircncias e ainda virtudes com respeito aos

viacutecios ciecircncias ou ignoracircncias e os viacutecios com respeito estes todos

sendo possiacutevel certa combinaccedilatildeo e mescla dessas coisas

18

Cabe observar como A Q ao traccedilar um perfil do masculino e do feminino natildeo

oferece uma lista de entes individuais mas um elenco geneacuterico de qualidades sensiacuteveis das

quais ele passa sem maior detenccedila para o toacutepico das naturezas intermediaacuterias em que estatildeo

incluiacutedas as artes as ciecircncias e as virtudes A menccedilatildeo agraves artes ciecircncias e virtudes eacute

importante neste momento porque uma vez explicado o processo pelo qual atraveacutes de

mesclas dos princiacutepios masculino e feminino satildeo engendradas as paixotildees da alma

Quintiliano deve agora retomar o fio da exposiccedilatildeo e mostrar como a muacutesica por meio de

conceitos palavras ritmos e melodias eacute capaz de imitar essas mesmas paixotildees virtudes

viacutecios etc comunicando agrave alma o respectivo eacutethos Eacute o que faraacute no restante do livro II

23 Os conceitos

No iniacutecio do cap9 A Q retoma o tema dos conceitos com o qual tinha

concluiacutedo o cap7 antes da relativamente longa mas necessaacuteria digressatildeo acerca das paixotildees

da alma O propoacutesito do autor eacute demonstrar como um poeta eacute capaz de transmitir os conceitos

que deseje mediante o emprego de certos procedimentos retoacutericos A Q utiliza exemplos

extraiacutedos de Homero nos quais aponta como o poeta mesclando traccedilos masculinos e

femininos consegue traduzir em palavras uma gama complexa de impressotildees desde

sensaccedilotildees fiacutesicas como rapidez suavidade ou agitaccedilatildeo ateacute caracteres ou julgamentos morais

Esse conceitos (ἐννοήματα) compostos de traccedilos masculinos e femininos ndash conceitos que por

sua vez entram na composiccedilatildeo eacutetica das frases e dos discursos ndash A Q os compara aos

extratos dos quais satildeo feitos os remeacutedios7 e conclui (II 103-18)

τὰ μὲν οὖν ἐς ἄνεσιν ἄγοντα καὶ φαιδρότητα τὸν ἀφελῆ τε καὶ ἡδὺν λόγον

ἐγέννησε τὰ δὲ τὸ σύννουν κινοῦντα καὶ τὸ ὁρμητικὸν τὸν πολιτικόν τε

καὶ ἀγωνιστικὸν ἐξέφηνεν τοῦ μὲν οὖν πολιτικοῦ κατὰ τὸ ἄρρεν τὰ εἴδη

συντομίαι τε καὶ βραχύτητες καὶ ἀξίωμα καὶ μεγαλοπρέπεια τραχύτης τε

καὶ σφοδρότης καὶ μέγεθος καὶ μεστότης ἅπερ τήν τε φυσικὴν ἐμφαίνει

μεγαλόνοιαν τοῦ ἄρρενος μέγεθός τε σώματος καὶ ἁδροτῆτα διανοίας καὶ

τὸ ἐς τὰ μέγιστα τῶν ἔργων ἀνυτικὸν τάχος τοῦ δὲ ἀφελοῦς ἀραιότης

ἁβρότης κάλλη τε καὶ γλυκύτητες ὧν τὰ μὲν τὸ ἀνειμένον τοῦ θήλεος τὰ

δὲ τὸ ἐς ὡραϊσμὸν διαδείκνυσιν ἐπτοημένον γένοιτο δ ἄν τι καὶ τῇ

τούτων πλοκῇ οἷον ἡ δριμύτης τὸ μὲν τάχος ὡς ἄρρεν τὸ δὲ

μικροπρεπὲς ὡς ἐναντίον ἐπιφαίνουσα ἥ τ ἐπιμέλεια τὸ μὲν γλίσχρον

ἔχουσα κατὰ τὸ θῆλυ τὸ δὲ τῆς φιλοπονίας παρεκτεταμένον ὡς ἄρρεν

Assim os conceitos que levam agrave descontraccedilatildeo e agrave alegria produzem uma

frase despojada e doce enquanto os conceitos que mobilizam as partes

intelectiva e impulsiva produzem a frase contenciosa e poliacutetica Os traccedilos

da frase poliacutetica relacionados ao masculino satildeo concisatildeo brevidade

dignidade e elevaccedilatildeo assim como aspereza forccedila grandeza e

completude traccedilos que mostram a grandiosidade natural do masculino a

7 Uma comparaccedilatildeo semelhante jaacute tinha sido feita em II 47-12

19

magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores

trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e

doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros

a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a

exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e

atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade

como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo

masculino

Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem

duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel

Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade

contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de

masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e

mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos

interessa aqui compreender

Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase

feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por

ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por

ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo

como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa

ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de

desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo

remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na

disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma

Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que

poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade

seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma

caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel

quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a

porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade

contradiccedilatildeo alguma

No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a

capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente

aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam

o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante

uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses

materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes

20

Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro

tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais

duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do

diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons

livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma

martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente

tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade

Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a

accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua

presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No

capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a

dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do

discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto

24 As letras

Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto

καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων

γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς

φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς

τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον

ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως

περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων

ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων

τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ

ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε

πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ

ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα

μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν

χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον

ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς

ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς

τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον

διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως

τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν

ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων

κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος

ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ

τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως

eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo

de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais

outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como

as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido

satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que

limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves

enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade

21

temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo

dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo

que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente

eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o

lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute

atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por

sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a

passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes

outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se

com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar

jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua

a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio

das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona

ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o

emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito

aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias

e possuem ambas as naturezas

A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo

primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso

masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais

Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da

classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam

espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo

das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as

consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto

consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as

consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave

nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na

sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz

respeito agraves letras8

As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo

claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que

pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo

Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das

vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de

assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as

quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das

letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes

8 Cf Chapanski 2003 p 22-24

22

Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes

que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais

proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias

enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais

proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em

relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade

As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de

articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua

vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto

meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais

tau delta e theta As guturais capa gama e khi

Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como

ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo

que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as

surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste

em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de

separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas

silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)

seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as

consoantes o polo essencial (formal ou masculino)

AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo

seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais

(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a

doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo

princiacutepio dualista

25 As vogais e o solfejo

Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o

meacutelos (II 126-10)

Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι

λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα

τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ

μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει

23

O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a

harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que

se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo

percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e

ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos

Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo

de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I

Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de

disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute

apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma

harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo

especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das

mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder

perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o

objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e

o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir

encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)

Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς

κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ

ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ

μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον

μετεσχηκότες

A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe

tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e

masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo

intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos

gecircneros com maior ou menor intensidade

No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre

elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa

diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino (II 131-35)

Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς

πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα

πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων

ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς

ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε

τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς

ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς

μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ

συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ

9 Cf West 1994 p178

24

πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα

δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν

ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως

ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt

κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ

λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν

μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ

ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν

ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο

καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως

ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα

φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt

νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται

πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται

τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ

γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων

καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις

σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα

καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ

ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ

Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute

captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as

letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete

examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra

as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e

masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons

mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute

masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois

nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o

ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o

som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige

que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o

alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da

sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua

estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado

intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta

quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino

quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa

na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a

exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta

trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do

alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior

parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo

lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses

examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos

constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e

terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons

semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros

Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais

nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas

internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para

isso novos paracircmetros

O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio

que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou

25

fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais

vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora

a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem

interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)

estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto

importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado

designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais

satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas

Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute

Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de

masculino e feminino em si mesmas10

Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos

remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a

esfericidade da alma11

(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash

mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso

Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves

a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon

feminino) refira-se justamente a esse arredondamento

As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em

razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas

(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua

ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente

relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal

O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do

eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os

extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo

masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo

entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da

verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o

10

Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido

Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo

metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das

observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11

Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De

Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por

que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora

o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo

26

sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo

entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta

Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo

verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave

segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo

lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros

Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro

obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo

excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no

solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)

Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ

εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί

τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες

ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ

αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων

περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ

τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν

τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς

πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ

ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ

λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος

διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt

εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους

διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν

λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ

πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν

μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν

Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente

passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega

satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se

articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que

o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam

intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez

sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por

intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos

dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de

acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos

da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam

No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido

com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das

vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o

ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons

que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida

vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava

em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos

posteriormente por que isso eacute assim

A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim

ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo

27

O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de

quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de

quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores

distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12

Do grave para o agudo (ou de

cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram

denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica

(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era

acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de

um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira

(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da

uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons

ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro

tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo

(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom

O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute

justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do

tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao

ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira

(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da

sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada

μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito

formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava

formado com a nota acrescida

Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada

tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou

agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por

eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)

Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει

κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ

τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν

πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ

θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα

γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά

12

Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2

T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)

28

Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao

masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos

em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram

dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os

sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no

entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da

passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes

Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave

formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo

decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso

ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como

o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13

os rechaccedilavam por

completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14

(II 1488-90)

περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς

παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας

Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam

na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da

alma

Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos

instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo

mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes

mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais

como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se

apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta

a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo

a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as

noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura

tonal (II 1623-40)

Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα

διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ

θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος

μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα

εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν

ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ

τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ

πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν

περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον

θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον

ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι

13

Repuacuteblica 398c 14

Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)

29

δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς

τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν

οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν

ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt

Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela

sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute

feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais

do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua

tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se

descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade

e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por

gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito

debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde

participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira

participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros

intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua

natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar

cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza

iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo

interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam

familiares

No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os

instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o

dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em

que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria

dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado

por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da

muacutesica sobre a alma

O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro

245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo

ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees

superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da

regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo

anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto

ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees

hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm

pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15

15

Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida

(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a

associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre

medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente

que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento

que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a

30

Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite

(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os

nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm

unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses

nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo

masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria

Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo

residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real

manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo

um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas

entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do

universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os

planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros

26 A muacutesica das esferas

Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves

teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem

acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma

definiccedilatildeo (III 211-6)

Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν

ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ

φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον

τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν

διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει

Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o

feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e

amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o

esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de

sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo

AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero

proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute

elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza

(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas

antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura

que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo

31

Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os

planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e

femininas (III 216-40)

ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης

γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον

ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ

δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ

ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ

θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι

τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον

μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε

μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης

προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ

πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος

ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ

νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ

ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε

ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς

Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης

ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως

ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε

θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ

ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν

ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε

ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης

ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ

μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν

παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ

τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων

συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν

θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ

ἐπίπονος τὸν ἄρρενα

A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por

toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda

um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do

feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa

tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e

nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios

e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do

feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de

Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota

acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute

no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol

(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se

regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem

tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais

familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute

luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente

uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente

feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol

emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e

impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som

que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo

de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante

ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma

equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de

32

Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e

quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo

sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que

eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino

Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal

correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota

do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao

eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de

masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as

devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam

a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde

PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO

NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa

VOGAL ε α η ω α η Ω

Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a

meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o

eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe

apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por

outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela

soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim

seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo

ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas

pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo

Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco

pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter

especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a

correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e

as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como

essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda

oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de

Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido

Primeiro tetracorde Segundo tetracorde

33

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico

Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o

ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava

somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por

uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado

ou o ponto intermeacutedio

Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica

inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo

princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros

e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado

sob sua tutela

Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a

muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a

qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto

meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional

passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num

polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a

alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a

alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de

Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge

para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim

sucessivamente

Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua

organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata

da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se

reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical

os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura

da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual

o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado

primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas

mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro

torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim

dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16

16

Gueacutenon 1999 p23

34

No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser

dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de

analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre

regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos

incomensuraacuteveis

Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de

seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas

vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade

necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que

estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade

assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada

impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a

um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por

exemplo da lua e da alma

Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as

ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou

aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que

embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres

ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia

nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de

fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas

qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas

graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo

tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais

uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a

coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e

lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num

mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao

masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora

dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo

Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo

de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o

acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o

35

fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino

teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse

fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo

Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo

contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa

A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o

outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre

quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na

quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um

compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la

A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-

feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e

feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a

posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria

necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo

para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente

masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude

de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo

privativa

Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito

de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem

duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e

quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre

ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos

guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e

sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais

difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta

porosa uacutemida ou fechada

Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a

sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns

dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso

condiccedilotildees

Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo

naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem

36

necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas

se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou

outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)

Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo

condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de

fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees

associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o

caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute

necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa

objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da

mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos

dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do

iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num

patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado

intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos

individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo

Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees

de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam

somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre

esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes

noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre

relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma

espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila

Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos

loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou

analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ

ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)

A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas

relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse

processo igualmente uma relaccedilatildeo

Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et

du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee

notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas

moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux

celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou

encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de

nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui

37

exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est

en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le

plus petit comme analogue du plus grand)17

Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que

unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter

entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel

unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia

Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres

primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune

corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos

on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification

du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par

harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se

ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une

neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au

deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure

deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en

son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception

originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la

conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique

de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre

partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18

Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de

predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e

mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na

matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo

desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =

2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que

a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas

premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo

A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-

1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua

vez se apoiu em Aristoacuteteles19

) estabelece trecircs tipos de analogia20

A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o

termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo

17

Borella 2012 p23 18

Moutsopoulos 2004 p203-204 19

Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada

pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais

ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre

chez Aristote Paris PUF 1962 20

A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23

38

grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

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morais Coimbra Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos 2010 p63-237

ROUGIER Louis A religiatildeo astral dos pitagoacutericos Trad De Aydano Arruda Satildeo Paulo

Ibrasa 1990

WEST M L Ancient greek music New York Oxford University Press 1994

Page 7: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

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1 Introduccedilatildeo

A abstraccedilatildeo eacute o pecado original de toda ciecircncia e eacute perfeitamente natural que seja

assim Nossa linguagem natildeo pode pretender abarcar numa visada uacutenica os muacuteltiplos aspectos

de um objeto qualquer sem multiplicar ao mesmo tempo as razotildees de equiacutevoco Eacute por isso

que para a compreensatildeo de um uacutenico objeto satildeo necessaacuterias dezenas de ciecircncias que o

enfoquem sob os diversos pontos de vista O uacutenico incoveniente eacute que no mais das vezes

dezenas de aspectos natildeo chegam a formar um objeto de modo que enquanto o olho continua

enxergando um mundo onde a cabeccedila estaacute sobre o pescoccedilo a inteligecircncia vai compondo para

si um universo cada vez mais cubista

Este trabalho fiquem tranquilos natildeo pretende atacar este problema pelo menos

natildeo diretamente Nosso objetivo eacute expor (e na medida do possiacutevel quem sabe ateacute

compreender) como mediante o emprego de uma ferramenta intelectual simples (e

ultrapassada segundo a opiniatildeo corrente que com frequecircncia esquece ou sequer percebe o

quanto a ela tem recorrido) nosso autor pretendeu romper fronteiras ontoloacutegicas e oferecer

uma descriccedilatildeo unificada do mundo submetendo nesse processo conhecimentos de ordem

absolutamente heterogecircnea (que vatildeo da astronomia agrave ciecircncia poliacutetica da psicologia agrave criacutetica

literaacuteria) a um mesmo par de conceitos

Nosso autor chama-se Aristides Quintiliano e o seu livro eacute o tratado de teoria

musical intitulado Da Muacutesica (ΠΕΡΙ ΜΟΥΣΙΚΗΣ ΤΡΙΤΟΝ) obra em que todos os esforccedilos

convergem para um objetivo bastante ambicioso integrar numa visatildeo unitaacuteria os variados

aspectos daquilo que a cultura grega um dia produziu sob o nome de μουσική empreitada que

demanda uma articulaccedilatildeo entre duas vertentes rivais no campo da teoria musical a tradiccedilatildeo

pitagoacuterica e a tradiccedilatildeo aristoxecircnica Nos bastidores dessa articulaccedilatildeo onipresentemente estatildeo

Aristoacuteteles e Platatildeo

Desconhece-se quem tenha sido historicamente o indiviacuteduo que atende por

Aristides Quintiliano Alguns sustentam1 que tenha sido um escravo de Marcus Fabius

Quintilianus outros que tenha sido seu filho e outros ainda que seja o proacuteprio autor da

Institutio oratoria Haacute tambeacutem a hipoacutetese de que tenha sido um saacutebio da corte do imperador

Adriano embora natildeo se possa precisar qual deles exatamente (por ora satildeo duas as

alternativas)

1 Para mais detalhes sobre essas hipoacuteteses Mathiesen 1983 p11-12

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Agrave indecisatildeo quanto agrave identidade do autor soma-se a incerteza na dataccedilatildeo da obra

Quintilino por um lado cita Ciacutecero (assassinado em 43 aC) e de outro foi usado como fonte

por Martianus Capella na redaccedilatildeo do livro IX do seu De nuptiis Philologiae et Mercurii

Como a redaccedilatildeo do De nuptiis eacute datada da primeira metade do seacutecV dC os comentadores

concordam em situar o De muacutesica e seu autor entre o I e o IV seacuteculos depois de Cristo

No conjunto da tratadiacutestica musical grega o De muacutesica ocupa ao lado dos

Elementos Harmocircnicos de Aristoacutexeno (segunda metade do seacutecIV aC) e da Harmocircnica (que

data de meados do seacutec II dC) de Ptolomeu um lugar de destaque Dentre esses trecircs

principais tratados no entanto o de Quintiliano eacute o uacutenico a nos oferecer uma ldquoexposiccedilatildeo

completa dos aspectos filosoacuteficos da muacutesica gregardquo (COLOMBER L GIL B 1996 p19)

Este trabalho objetiva abordar apenas um desses aspectos filosoacuteficos as noccedilotildees de masculino

(ἄρρεν) e feminino (θῆλυ)

No De muacutesica as noccedilotildees de masculino e feminino cumprem um papel estrateacutegico

Eacute essa dualidade que como princiacutepio estruturante fundamenta a doutrina dos eacutethe musicais

na sua interaccedilatildeo simpaacutetico-eacutetico-pedagoacutegica com as potecircncias da alma Trata-se aleacutem disso

de um princiacutepio que atua sobre todo o mundo corpoacutereo analogando os entes deste mundo uns

com os outros e estes mesmos por sua vez com as realidades celestes

Todavia embora Quintiliano apoiado na ferramenta da analogia e mediante o

emprego das noccedilotildees de masculino e feminino alcance conceber e expor uma visatildeo more

musicale demonstrata unitaacuteria do universo nem por isso se daacute o trabalho de tratar mais

detidamente dessas duas noccedilotildees e se insinua fazecirc-lo eacute sempre em funccedilatildeo de um objetivo

descritivo imediato Quanto agrave analogia expediente dos mais frequentes no De muacutesica

Quintiliano natildeo chega a abordaacute-la como uma teoria em si mesma embora expediente e teoria

estejam ambos em seu tratado indissociaacutevel e necessariamente ligados

Meu objetivo aqui eacute tratar particularmente das noccedilotildees de masculino e feminino e

natildeo do modo como essas noccedilotildees fundamentam as doutrinas esteacuteticas poliacuteticas pedagoacutegicas

cosmoloacutegicas ou metafiacutesicas relacionadas agrave reflexatildeo musical grega Assim na primeira parte

do trabalho busco traccedilar um perfil descritivo inicial partindo para isso das passagens

traduzidas e comentadas em que Quintiliano emprega ilustra ou explica essas noccedilotildees Num

segundo momento tento sondar o estatuto loacutegico e ontoloacutegico das noccedilotildees de masculino e

feminino sem no entanto extrapolar o acircmbito estritamente cosmoloacutegico no qual Quintiliano

se deteacutem

Como Quintiliano divide o tratado em trecircs livros ndash um primeiro dedicado agrave arte

musical propriamente dita ou muacutesica audiacutevel um segundo que trata da muacutesica enquanto

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ferramenta pedagoacutegica e imagem da alma e um terceiro livro no qual aborda os fundamentos

matemaacuteticos e cosmoloacutegicos dos livros anteriores ndash e como as noccedilotildees de masculino e

feminino satildeo abordadas sempre a propoacutesito mas sem ordem aparente ao longo de todos os

trecircs livros resulta absolutamente impossiacutevel natildeo avanccedilar em saltos Pretendi minimizar esse

inconveniente seguindo estritamente a ordem da exposiccedilatildeo (teria seguido a ordem das razotildees

se tivesse encontrado alguma) Tentei tambeacutem nos comentaacuterios agraves passagens preencher os

hiatos expositivos informando o contexto de onde cada passagem foi retirada

Na seleccedilatildeo das passagens a analisar foi preciso excluir algumas (natildeo muitas) cujo

conteuacutedo natildeo fosse especialmente relevante para o objetivo deste trabalho Os trechos

excluiacutedos constituem-se sobretudo de informaccedilotildees jaacute dadas ou de simples menccedilotildees dos

termos masculino e feminino Fico grato a quem me possa informar alguma omissatildeo

imperdoaacutevel

Disse acima que as noccedilotildees de masculino e feminino tecircm papel estrateacutegico no

tratado de Aristides Quintiliano Natildeo eacute sem estrateacutegia igualmente que essas noccedilotildees satildeo

apresentadas ao leitor A Q abre os capiacutetulos iniciais do livro I expondo os motivos (a

ignoracircncia e leviandade dos seus contemporacircneos com relaccedilatildeo agrave musica) e o escopo da sua

iniciativa A muacutesica para ele natildeo eacute um divertimento banal mas a ordem impliacutecita por traacutes da

natureza

Concluiacutedo o preacircmbulo ele desce das alturas e passa a tratar da muacutesica stricto

sensu No capiacutetulo 5 do livro I propotildee uma divisatildeo da mateacuteria em duas partes muacutesica praacutetica

e muacutesica teoacuterica Cada parte por sua vez eacute subdividida em duas outras A teoacuterica em muacutesica

da natureza e teacutecnica musical a praacutetica tambeacutem chamada educativa em composiccedilatildeo (ou uso)

musical e expressatildeo musical Quintiliano aborda a seguir os dois primeiros aspectos da

teacutecnica musical o ritmo e o meacutelos Eacute soacute entatildeo que menciona pela primeira vez os termos

masculino e feminino

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2 Masculino e feminino

21 Meacutelos e rhythmoacutes

Como vimos eacute somente apoacutes ter tratado da teoria harmocircnica (Livro I caps 6-12)

e da teoria riacutetmica (caps 13-19) que A Q emprega pela primeira vez os termos ἄρρεν e θῆλυ

Diz ele (I 1925-30)

τινὲς δὲ τῶν παλαιῶν τὸν μὲν ῥυθμὸν ἄρρεν ἀπεκάλουν τὸ δὲ μέλος θῆλυ τὸ μὲν

γὰρ μέλος ἀνενέργητόν τ ἐστὶ καὶ ἀσχημάτιστον ὕλης ἐπέχον λόγον διὰ τὴν πρὸς

τοὐναντίον ἐπιτηδειότητα ὁ δὲ ῥυθμὸς πλάττει τε αὐτὸ καὶ κινεῖ τεταγμένως

ποιοῦντος λόγον ἐπέχων πρὸς τὸ ποιούμενον

Alguns dos antigos chamavam o ritmo de masculino e o meacutelos de feminino pois o

meacutelos eacute sem atualidade e sem forma possuindo o logos da mateacuteria pela sua aptidatildeo

para os contraacuterios ao passo que o ritmo move ordenadamente o meacutelos e o modela

possuindo o logos do criador com relaccedilatildeo ao que eacute criado

Evidentemente o meacutelos sem atualidade e sem forma mencionado nesta passagem

natildeo eacute exatamente o mesmo que capiacutetulos atraacutes (I 121-3) A Q definiu como meacutelos teacuteleion

ou meacutelos perfeito (aquele que combina harmonia ritmo e dicccedilatildeo) mas o meacutelos em sentido

proacuteprio (ἰδιαίτερον) e estrito um entrelaccedilamento de sons desiguais quanto agrave altura tonal isto

eacute de sons que se articulam desde a perspectiva de uma oposiccedilatildeo qualitativa de base a

oposiccedilatildeo entre grave e agudo

Tambeacutem a noccedilatildeo de ritmo eacute aqui empregada em sentido restrito e sequer

corresponde agrave totalidade daquilo que dentro do escopo da teoria musical e segundo o proacuteprio

A Q (I 1319-20) estaacute submetido agrave ordenaccedilatildeo riacutetmica os movimentos do corpo da melodia

e da dicccedilatildeo ou seja a danccedila a muacutesica e a poesia

No iniacutecio do capiacutetulo 13 Livro I A Q estabelece trecircs acepccedilotildees para o termo

ritmo conforme os objetos aos quais o termo seja aplicado Haacute assim o ritmo dos corpos

imoacuteveis o dos corpos moacuteveis e o ritmo em sentido proacuteprio (ἰδίως) que eacute o ritmo quando

aplicado agrave voz (ἐπὶ φωνῆς) ou ao som Eacute com respeito a esta uacuteltima acepccedilatildeo que diz ele (I

136-8) o ritmo se organiza segundo uma oposiccedilatildeo de estados denominados aacutersis e theacutesis

ruiacutedo e repouso (ἄρσιν καὶ θέσιν ψόφον καὶ ἠρεμίαν)

Certamente natildeo eacute coincidecircncia o fato de que cada termo da dualidade ritmo-

melodia se articule internamente tambeacutem segundo uma oposiccedilatildeo qualitativa Mais adiante

teremos ocasiatildeo de interrogar como essas (e outras) oposiccedilotildees especiacuteficas se articulam entre

si e todas por sua vez com a dualidade masculino-feminino a que A Q nos introduz

formalmente na passagem citada mas com a qual assim nos parece ele conta desde o iniacutecio

11

Em I 236-7 A Q nos daacute uma pista ao fazer da interaccedilatildeo entre os dissimilares a

condiccedilatildeo necessaacuteria de tudo o que vem a ser Embora Quintiliano nessa passagem designe

esses dissimilares (ἀνομοίων) como ldquoγεννωμένωνrdquo termo que Mathiesen (1983 p108)

traduz como ldquoprogenitoresrdquo o princiacutepio que ele aiacute enuncia natildeo poderia pela natureza do

assunto (ritmo e meacutetrica) estar circunscrito ao acircmbito exclusivo da reproduccedilatildeo sexuada

Em nota ao trecho (I 1925-30) reproduzido acima Barker (1990 p445) apoacutes

apontar a origem aristoteacutelica dos conceitos de agente e mateacuteria considera problemaacutetica a

fonte de sua associaccedilatildeo com as noccedilotildees de masculino e feminino embora essa associaccedilatildeo seja

mencionada tambeacutem em Aristoacuteteles

The terms of this distinction between matter and agent are Peripatetic and their

use here recalls Aristotles account of the male and female contributions to

reproduction (eg De Gen An 730b) Similar conceptions of the roles of melody

and rhythm are suggested by ps-Ar Probs xix49We cannot confidently identify

the origin of the application of sexual distinctions to music (used extensively by

Aristides in Book 11) and specifically of the equation of rhythm with male melody

with female such ideas may possibly be connected with the school of Damon

Colomer e Gil (1996 p96) satildeo mais especiacuteficos ao apontar uma possiacutevel origem

aristoxecircnica para a aplicaccedilatildeo das noccedilotildees aristoteacutelicas de ato e mateacuteria ao par ritmo e meacutelos

hipoacutetese que no fundo o proacuteprio Barker natildeo descarta jaacute que como diz os Elementa

Rhythmica satildeo ldquoa major source for the section on rhythmics in chs 13-19 of 12 Arist Quint

De Mus Book 1rdquo (1990 p193)

De fato nos Elementa Rhythmica (Livro II fr03) Aristoacutexeno refere-se ao ritmo e

ao ritmaacutevel (ῥυθμιζομένου) como duas naturezas especiacuteficas (δύο τινὰς φύσεις) as quais

estariam uma para outra como a forma (τὸ σχῆμα) estaacute para o que eacute formado (τὸ

σχηματιζόμενον) Aristoacutexeno eacute a princiacutepio ateacute mais abrangente que A Q jaacute que a relaccedilatildeo eacute

estendida a todos os ritmaacuteveis (corpo melodia e dicccedilatildeo) e natildeo exclusiva e especificamente ao

meacutelos Poreacutem para que natildeo haja duacutevida ele faz questatildeo de explicitar a relaccedilatildeo entre ritmo e

meacutelos ao mencionar adiante (fr04) que ldquoo mesmo [loacutegos] se aplica ao meacutelos e ao que quer

que tenha surgido para ser submetido ao ritmordquo2

Para A Q o meacutelos eacute ldquoἀσχημάτιστονrdquo3 informe para Aristoacutexeno eacute

ldquoσχηματιζόμενονrdquo algo que padece a forma Aleacutem de natildeo haver diferenccedila conceitual

2 Ὁ αὐτὸς δὲ λόγος καὶ ἐπὶ τοῦ μέλους καὶ εἴ τι ἄλλο πέφυκε ῥυθμίζεσθαι ou na traduccedilatildeo de Barker (1990

p185) ldquoThe same can be said about melody too and about anything else whose nature it is to be made rhythmic

[rhythmizesthai]rdquo 3 Quintiliano tambeacutem denomina o meacutelos ldquoἀνενέργητόνrdquo o que obviamente remete ao conceito de ato (ἐνέργεια

ou ἐντελέχεια) por oposiccedilatildeo agrave potecircncia (δuacuteναμις) termo que A Q emprega com relaccedilatildeo aos graus da escala O

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relevante entre os dois termos ambos apontam para uma acepccedilatildeo mais abrangente e mais

primitiva do rhythmoacutes Segundo Colomer e Gil (op cit loc cit) ldquoos termos rhythmoacutes e

schecircma foram a princiacutepio quase sinocircnimos embora depois a palavra rhythmoacutes se tenha

aplicado preferencialmente agrave forma em movimento e schecircma agrave forma estaacuteticardquo Ora essa

identificaccedilatildeo originaacuteria se esclarece a primeira e a segunda acepccedilotildees atribuiacutedas por A Q ao

termo ritmo (o ritmo dos corpos imoacuteveis e dos corpos moacuteveis) igualmente demonstra a

profunda unidade que coere aquelas trecircs acepccedilotildees pois em todas predomina a ideia de uma

determinaccedilatildeo formal

Haacute no entanto apesar dos paralelismos (mesmo no tocante agrave ordem de

exposiccedilatildeo) uma diferenccedila notaacutevel entre os textos de Aristoacutexeno e de Aristides Quintiliano Eacute

que Aristoacutexeno embora visivelmente preocupado esmiuccedilar a diferenccedila entre o ritmo e os

ritmaacuteveis natildeo recore para isso agraves noccedilotildees de masculino e feminino O tratado de Aristoacutexeno

tudo indica foi uma das principais fontes dos caps 13-19 do Livro I de A Q mas certamente

natildeo foi a uacutenica

Embora como sugerem Colomer e Gil o ingresso na teoria musical dos termos

masculino e feminino possa ter tido origem damoniana (e natildeo ser portanto histoacuterica e

originalmente pitagoacuterica) natildeo haacute duacutevida de que os termos ἄρρεν e θῆλυ fazem parte do

vocabulaacuterio filosoacutefico pitagoacuterico Sabemos disso porque Aristoacuteteles (Metafiacutesica 986a25) os

elenca entre famosos dez princiacutepios pitagoacutericos Noutra passagem da Metafiacutesica (988a2-10)

em que critica a concepccedilatildeo pitagoacuterico-platocircnica da diacuteada Aristoacuteteles natildeo somente explica a

conexatildeo entre as noccedilotildees de forma e mateacuteria e o par masculino-feminino mas afirma o caraacuteter

principial deste uacuteltimo

Com efeito eles pretendem derivar da mateacuteria uma multiplicidade se

bem que a Forma soacute gere uma vez ora o que observamos eacute que a mesa eacute

feita de um pedaccedilo de mateacuteria enquanto o homem que aplica a forma

apesar de ser um faz muitas mesas E a relaccedilatildeo entre macho e fecircmea

assemelha-se a esta pois a fecircmea eacute emprenhada numa soacute coacutepula ao passo

que o macho emprenha muitas fecircmeas E todavia estes fatos satildeo imagens

daqueles primeiros princiacutepios Eis aiacute pois como se pronunciou Platatildeo

acerca destes problemas pelo que ficou ditou eacute evidente que ele usou

apenas duas causas a essencial e a material ()

Se os fatos aparentemente desconexos da reproduccedilatildeo sexuada e da fabricaccedilatildeo de

uma mesa satildeo imagens ou imitaccedilotildees (μιμήματα) daqueles princiacutepios (τῶν ἀρχῶν ἐκείνων)

isto eacute dos princiacutepios essencial e substancial ndash ou em linguagem aristoteacutelica da causa material

e da causa formal ndash natildeo somente eacute liacutecito contar com a manifestaccedilatildeo desses princiacutepios tambeacutem

fato de que na passagem em tela ele recorra ao expediente privativo em vez empregar os termos proacuteprios natildeo

obscurece a distinccedilatildeo conceitual

13

no acircmbito da muacutesica mas se torna imperioso recorrer a eles quando se deseja como deseja

Quintiliano oferecer um vislumbre do cosmo total desde o microcosmo particular da muacutesica

Eacute o que trataremos de observar a seguir

22 Corpo e alma

Apoacutes ter introduzido no fim do cap19 as noccedilotildees de masculino e feminino A Q

natildeo volta a mencionaacute-las em nenhum momento ateacute o final do Livro I Natildeo quer isso dizer

todavia que ele jaacute natildeo as leve em conta ou pelo menos que natildeo as subentenda de algum

modo Em todo caso soacute deveraacute retomaacute-las em caraacuteter expliacutecito e operativo a partir do cap8

do Livro II

Φαίνεταί μοι τοίνυν ἡ ψυχή πόρρω μὲν τῶνδε ἡνίκα ἐστὶν ὁμιλοῦσα τῷ

κρείττονι λόγῳ τε ὁμέστιος εἶναι καὶ καθαρεύειν ἐπιθυμίας ἐπὰν δὲ ἐπὶ

τάδε ἀγκλίνῃ καὶ τὴν ἐνταῦθα διατριβὴν πείρᾳ μαθεῖν ἐπιχειρήσῃ

τηνικαῦτα αὐτῇ σώματός τε ἐγγίνεται χρεία καὶ σῶμα ἐπιζητεῖ

πρόσφορον ὑπόκειται δ αὐτῇ θεωρεῖν τὴν ἐν τούτοις διπλόην

ἀρρενότητά τέ φημι καὶ θηλύτητα ἥτις οὐκ ἐν ἐμψύχοις μόνοις ἄρα ἦν

ἀλλὰ κἀν τοῖς φύσει μόνῃ διοικουμένοις φυτῶν τε ὅσα μετάλλων τε

γένη καὶ ἀρωμάτων καὶ γὰρ τούτων δυάς τις ἐπιφαίνεται ἤτοι δι

ἁπαλότητος ἢ λειότητος ἢ εὐχροίας ἢ εὐωδίας ἢ καὶ τῶν ἐναντίων τὴν

ἑτέραν ἐπιδεικνυμένων φύσιν

Parece-me de fato que a alma quando distante das coisas e em comeacutercio

com o superior coabita com a razatildeo e estaacute livre de desejos mas quando

inclina-se para as coisas daqui e intenta aprender atraveacutes da experiecircncia

um modo de existir no tempo entatildeo sendo-lhe necessaacuterio um corpo ela

busca um corpo que lhe seja adequado E eacute da natureza da alma no

tocante aos corpos atentar para a dualidade ou seja para a masculinidade

e para a feminilidade dualidade presente natildeo soacute nos corpos animados

mas tambeacutem nos governados por uma soacute natureza tais como os gecircneros

das plantas dos metais e dos aromas pois tambeacutem neles se manifesta

certa dualidade pois seja pela brandura ou pela suavidade pela bela

aparecircncia ou pelo bom odor seja pelas qualidades contraacuterias apontam

para uma ou outra natureza (II 81-12)

Uma raacutepida contextualizaccedilatildeo nos permitiraacute compreender melhor tanto esta quanto

as demais passagens do cap8 Todo o livro II eacute dedicado agravequilo que no cap5 do livro I A Q

havia definido como muacutesica praacutetica (πρακτικόν) ou educativa (παιδευτικόν) Antes poreacutem de

tratar do seu tema propriamente A Q sente a necessidade de responder agraves objeccedilotildees dos

ceacuteticos4 (dentre os quais ningueacutem menos que Ciacutecero a quem Quintiliano poreacutem hesita em

4 ldquoEacute possiacutevel que os educadores romanos pensassem como Epicuro para quem a muacutesica natildeo tinha qualquer

significado aleacutem de um jogo de sons e concordassem com Ciacutecero que afirmava lsquoque a muacutesica natildeo tem utilidade

alguma aleacutem de um prazer infantil sem valor nenhum posto que natildeo pode guiar-nos agrave felicidadersquo Segundo o

autor romano Corneacutelius Nepos do seacutec I d C lsquoningueacutem ignora que a muacutesica segundo o estado de nossos

costumes natildeo conveacutem a um personagem importantersquo apesar de ter sido levada entre os gregos como lsquodigna de

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atribuir juiacutezos desfavoraacuteveis acerca da muacutesica) fundamentar a proacutepria ideia de uma formaccedilatildeo

moral atraveacutes da muacutesica E como a accedilatildeo da muacutesica sobre a alma depende tanto da capacidade

ativa da primeira quanto da capacidade receptiva da uacuteltima eacute por esta que ele comeccedila

A alma diz eacute responsaacutevel por dotar de certo ritmo e de ordem (ῥυθμοῦ τινος καὶ

τάξεως) as coisas deste mundo (τῶν ἐνθαδί) Poderiacuteamos dizer embora Quintiliano natildeo o faccedila

aqui explicitamente que a alma portanto eacute masculina em relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Mas

para que possa ser isso eacute preciso que natildeo seja apenas isso De fato diz A Q a alma natildeo

possui uma natureza ou potecircncia uacutenica (οὐδὲ τῶν μονήρη τινὰ φύσιν ἢ δύναμιν ἐχόντων) mas

certa natureza dupla (διπλῆς τινος φύσεως)

A duplicidade da alma consiste em ter sido dotada pelo administrador de todas as

coisas (ὁ τὸ σύπαν διοικῶν) de uma substacircncia divina na qual habita a razatildeo (λoacuteγος) e de

uma substacircncia mundana ou irracional (ἄλογος) na qual habita o desejo (ἐπιθυμία) As duas

naturezas ou potecircncias satildeo necessaacuterias para que a alma atue sobre o mundo corpoacutereo e essa

natureza duacuteplice sem a qual ela seria ineficaz pode-se definir assim a alma soacute eacute ativa em

relaccedilatildeo ao mundo corpoacutereo na medida em que eacute passiva em relaccedilatildeo ao mundo racional Ora a

muacutesica diz Quintiliano no iniacutecio do cap3 do livro II estaacute para a alma irracional assim como a

filosofia estaacute para a alma racional Desse modo ao submeter-se agrave muacutesica a alma irracional

submete-se igualmente agrave razatildeo pois a muacutesica eacute no fundo razatildeo transformada em mateacuteria

sensiacutevel tal como a alma mesma

Isso poreacutem natildeo eacute tudo Entre as duas naturezas da alma haacute um ponto intermeacutedio

que ao submeter o desejo agrave razatildeo confere unidade agraves duas metades Esse ponto intermeacutedio eacute

a memoacuteria (μνήμη) Memoacuteria eacute claro das belezas eternas do mundo suprassensiacutevel5 Desse

modo o dualismo aniacutemico resolve-se num elemento intermediaacuterio resultante da interaccedilatildeo

entre os polos extremos com os quais forma afinal uma triacuteade

Paralelamente a alma (tomada como unidade natildeo mais segundo a interaccedilatildeo das

suas partes) sendo a um soacute tempo ativa (frente ao mundo sensiacutevel) e passiva (perante o

mundo racional) eacute ela proacutepria um ponto intermeacutedio resultante da interaccedilatildeo entre polos

opostos com os quais por sua vez tambeacutem compotildee uma triacuteade As partes e o todo o

microcosmo e macrocosmo assim espelham-se mutuamente

consideraccedilatildeo e estimarsquo rdquo CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-

kagathiacutea Classica (Brasil) 2412 73-85 2011 5 Mesmo se desconsiderarmos esse elemento doutrinal platocircnico a memoacuteria seria ainda uma bela e eficaz

imagem da uniatildeo entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo pois a memoacuteria eacute uma operaccedilatildeo estritamente mental cujos

objetos no entanto satildeo todos oriundos da experiecircncia sensiacutevel

15

Mas a porccedilatildeo desejante (ou irracional) da alma possui igualmente as suas partes

A Q as denomina desejante (ἐπιθυμητική) a qual tende ao relaxamento (ou relaxaccedilatildeo

indulgecircncia) excessivo e impulsiva (θυμικὴ) que tende a uma tensatildeo igualmente desmedida

Fica claro desde logo embora Quintiliano reserve esse comentaacuterio para mais adiante que as

duas porccedilotildees da alma irracional formam uma oposiccedilatildeo do tipo ativo-passivo ou masculino-

feminino restando saber qual seria nesse caso o ponto intermeacutedio

O ponto intermeacutedio satildeo dois por um lado (e acima) a proacutepria porccedilatildeo racional da

alma que eacute inteiriccedila e natildeo se constitui de partes por outro (e abaixo) as paixotildees que resultam

(como A Q descreveraacute a seguir) da mescla entre as potecircncias ativa e passiva da alma As

triacuteades formadas portanto satildeo tambeacutem duas mas de tipos diferentes numa o ponto

intermeacutedio estaacute hierarquicamente acima dos termos opostos noutra hierarquicamente abaixo

A razatildeo da eficaacutecia persuasiva da muacutesica sobre a alma irracional reside

argumenta Quintiliano nas peculiaridades do seu aparato mimeacutetico que lhe permite produzir

a imitaccedilatildeo com mateacuteria similar agrave do objeto imitado Curiosamente esse aparato mimeacutetico eacute

tambeacutem triaacutedico pois a muacutesica imita6 os eacutethe e as paixotildees da alma com os conceitos

(ἐννοίαις) as palavras com as harmonias e a modulaccedilatildeo da voz (ἁρμονίαις καὶ φωνῆς

πλάσει) e a accedilatildeo com os ritmos e o movimento do corpo (ῥυθμοῖς καὶ κινήσει σώματος) A

muacutesica portanto abarca o universo inteiro da accedilatildeo humana desde o seu nascedouro (nos

movimentos afetivos e intelectuais da alma) ateacute sua exteriorizaccedilatildeo em forma de atos e

palavras

Ora sendo a muacutesica sobretudo uma terapia das paixotildees da alma (παθῶν ψυχικῶν

θεραπεία) cabe ao conceito (que siacutentese do conteuacutedo racional a transmitir e da impressatildeo

esteacutetico-emocional a causar estaacute relacionado ao movimentos internos da alma de onde brotam

as accedilotildees) o papel de guiar os elementos do meacutelos perfeito (dicccedilatildeo harmonia e ritmo) O cap8

e os seguintes a comeccedilar pelo trecho acima citado satildeo dedicados justamente a explicar

primeiro como se geram as paixotildees da alma e depois como a muacutesica eacute capaz de imitaacute-las e

de nelas intervir

De iniacutecio A Q trata da dualidade masculino-feminino como uma particularidade

do mundo corpoacutereo a que a alma tem de se submeter Reforccedila o caraacuteter especificamente

corpoacutereo dessa dualidade o fato de que ela natildeo se manifeste apenas em corpos animados (οὐκ

ἐν ἐμψύχοις μόνοις) mas tambeacutem em corpos governados por uma soacute natureza (ἀλλὰ κἀν τοῖς

φύσει μόνῃ διοικουμένοις) Essa observaccedilatildeo parece decorrer da necessidade de distinguir a jaacute

6 II 438-40

16

mencionada duplicidade da alma (razatildeo por que seria natural esperar que somente os corpos

animados estivessem submetidos agrave dualidade a dualidade ao menos entre corpo e alma) do

dualismo propriamente corpoacutereo Em todo caso embora tipicamente corpoacuterea a dualidade

masculino-feminino tambeacutem aqui natildeo se restringe ao fenocircmeno bioloacutegico da diferenciaccedilatildeo

sexual Aleacutem disso essa dualidade natildeo corresponde exatamente a duas espeacutecies opostas de

seres mas a dois polos de um eixo que atravessa de ponta a ponta o mundo corpoacutereo

alcanccedilando portanto e internamente todos os seres nele existentes Desse modo cada ente

particular pode ser tomado como uma resultante da interaccedilatildeo entre os dois princiacutepios em

relaccedilatildeo aos quais ele estabelece por sua vez um ponto intermeacutedio isto eacute uma mescla E eacute

precisamente na produccedilatildeo dessa mescla que o dualismo aniacutemico e o dualismo corpoacutereo se

articulam (II 816-28)

οὐ μόνον οὖν ἐφίεται σώματος ἀλλὰ καὶ τούτου ποιοῦ τινος ἢ γὰρ ἄρρεν

ἠγάπηκεν ἢ θῆλυ καὶ τούτων ὁτὲ μὲν ἄκρατον θάτερον ὁτὲ δὲ ἐξ ἀμφοῖν

ἔχον δεινήν τινα καὶ ὄντως ἄτοπον μίξιν αὐτίκα κἂν μὴ φύσει τοῦ

τοιούτου τύχωσι σώματος αὐταὶ ταῖς σφετέραις τροπαῖς μετερρύθμισάν

τε καὶ ἐς τὸ αὑταῖς ὅμοιον μετέστησαν οὕτως ἐν μὲν ἄρρεσι θῆλυς

ἐπιτρέχει μορφή δι ἣν καὶ ὁ βίος ὦπται τοιοῦτος ἐν δὲ γυναιξὶν ἀνδρεῖον

εἶδος ᾧ καὶ τὸ ἦθος ὅμοιον τεκμαιρόμεθα καὶ ἄνδρες μὴν ἀγένειοι καὶ

γενειάσκουσι γυναῖκες καί τις ἄρρην ἔβλεψεν ὑγρὸν καὶ γυναῖκες γοργὸν

προσεῖδον ὥστε καὶ τῶν ἠθῶν ἕκαστα θηράσεις ἑκάστῃ μορφῇ συνῳδά

A alma portanto natildeo soacute deseja um corpo mas certo tipo de corpo um

corpo masculino ou um corpo feminino Deseja dentre esses agraves vezes um

corpo puro de um tipo ou de outro agraves vezes um corpo que possua uma

curiosa e paradoxal mistura de ambos Assim quando natildeo conseguem

obter naturalmente esse determinado corpo as almas o remodelam

mediante torneios e o transformam em algo semelhante a si mesmas

Dessa forma sobre um corpo masculino recai uma forma feminina (razatildeo

por que tambeacutem sua vida assim se mostra) ou ainda sobre um corpo

feminino uma forma masculina no que tambeacutem assinalamos um eacutethos

similar Haacute homens imberbes e mulheres barbadas homens de lacircnguido

olhar e mulheres com mirada de Goacutergona de modo que cada eacutethos veraacutes

corresponde a uma fisionomia

Uma vez estabelecido o princiacutepio de que o dualismo aniacutemico de algum modo rege

o dualismo corpoacutereo A Q sente-se agrave vontade para tratar de um nos termos do outro

recorrendo para isso aos termos masculino e feminino (II 828-39)

ἐκ δὲ τῆς πρὸς τὸ ἄρρεν ἢ θῆλυ προσπαθείας ἢ πρὸς ἀμφότερον τὰ πάθη

συνίσταται περὶ ψυχήν τὸ μὲν οὖν θῆλυ λίαν ἀνειμένον ᾧ συνᾴδει τὸ

ἐπιθυμητικόν τὸ δ ἄρρεν σφοδρόν τε καὶ δραστήριον ᾧ τὸ θυμικὸν

ὡμοίωται περὶ μὲν οὖν τὸ θῆλυ ψυχῆς τε μέρος καὶ ἀνθρώπων γένος

πλεονάζουσι λῦπαι τε καὶ ἡδοναί περὶ δὲ τὸ ἄρρεν ὀργὴ καὶ θράσος

πάλιν δὲ τούτων γίνονται συζυγίαι λυπῶν τε πρὸς ἡδονὰς καὶ ὀργῆς πρὸς

θράσος καὶ θράσους πρὸς ἡδονὴν καὶ λύπην καὶ ὀργῆς αὖθις πρὸς

ἑκάτερον καὶ πάλιν ἑκάστου πρός τε ἓν καὶ πρὸς πλείω μίξεις καὶ μυρίας

ἄν τις ἐκ τούτων εὕροι τῶν παθῶν εἰκόνας ἐν ποικιλίᾳ θεωρουμένων

17

Conforme o apego ao masculino ao feminino ou a ambos estabelecem-se

as paixotildees da alma O feminino eacute demasiado indulgente e com ele

concorda a alma desejante ao passo que o masculino semelhante agrave alma

impulsiva eacute veemente e ativo Assim tanto na parte feminina da alma

quanto na parcela feminina da humanidade abundam os prazeres e as

dores ao passo que na masculina a ira e a coragem E uma vez mais

datildeo-se combinaccedilotildees entre essas paixotildees das dores com os prazeres da ira

com a coragem da coragem com o prazer e a dor ou da ira novamente

com as demais e ainda de uma com outra qualquer ou com vaacuterias A

partir dessas seria possiacutevel encontrar uma miriacuteade de imagens das

paixotildees em vista da sua variedade

Se a alma por um lado submete o mundo corpoacutereo este por sua vez a espelha

macrocosmicamente nela interferindo mediante interaccedilotildees simpaacuteticas a exemplo do que

ocorre na muacutesica No entanto natildeo satildeo apenas as disposiccedilotildees passivas ou paixotildees que

estabelecem pontes entre a alma e a realidade corpoacuterea Tambeacutem as disposiccedilotildees ativas e

intelectivas estatildeo submetidas ao dualismo masculino-feminino (II 848-69)

ἔστι γὰρ πρῶτον μὲν ἐν ὁρατοῖς ἑκατέραν ἰδεῖν τὴν φύσιν τὸ μὲν

ἀνθηρόν τε καὶ ἐς ὡραϊσμὸν προςφυὲς χρῶμά τε καὶ σχῆμα διαιροῦντα

θηλύτητι τὸ δὲ στυγνόν τε καὶ ἐς σύννοιαν ἄγον ἀρρενότητι πάλιν δὲ ἐν

ἀκοαῖς τοὺς μὲν λείους καὶ προσηνεῖς ἤχους ἐς τὸ θῆλυ τοὺς δὲ

τραχυτέρους εἰς τοὐναντίον ἁρμόττοντα καί ἵνα μὴ τὰ καθ ἕκαστον

λέγω κοινῶς περὶ πάντων ἀποφαντέον ὡς ὅσα μὲν τῶν αἰσθητῶν ἔς τε

ἡδονὴν δελεάζει καὶ ἠρέμα διαχεῖν τὴν γνώμην πέφυκε ταῦτα εἰς τὸ θῆλυ

κριτέον ὅσα δὲ κινεῖ τε εἰς σύννοιαν καὶ ἐγείρει τὸ δραστήριον ταῦτα εἰς

τὴν ἄρρενος μοῖραν ἀπονεμητέον τὰ δέ τοι μηδέτερον ἢ κατὰ μίξιν ἄμφω

δρῶντα ταῦτα τῶν μέσων ἀποφαντέον κατὰ δὴ ταῦτα καὶ περὶ ἐκείνων

λέγωμεν αἳ λόγῳ μέν εἰσι καταληπταὶ τέχναι τε καὶ ἀρεταὶ καὶ ἐπιστῆμαι

ἐκ δὲ τῆς τῶν ὑλῶν ποιότητος περὶ ἃς ἑκάστη τευτάζει τὰς πρὸς ἀλλήλας

διαφορὰς καὶ ὁμοιότητας εἰλήχασιν αἵ τε ἀρεταὶ πρὸς τὰς ἀρετὰς αἵ τε

ἐπιστῆμαι πρὸς τὰς ἐπιστήμας κακίαι τε αὖ πρὸς κακίας καὶ

ἀνεπιστημοσύναι πρὸς ἀμαθίας πάλιν δὲ ἀρεταὶ πρὸς κακίας ἢ ἐπιστήμας

ἢ ἀγνωσίας κακίαι τε αὖ πρὸς τὰς εἰρημένας ποικίλης τινὸς καὶ τῆς κατὰ

ταῦτα πλοκῆς τε οὔσης καὶ μίξεως

A princiacutepio eacute de fato possiacutevel identificar nos objetos visiacuteveis cada

natureza separadamente atribuindo o florido e as formas e cores

decorativas ao feminino e as sombrias e que conduzem agrave reflexatildeo ao

masculino e o mesmo para as coisas audiacuteveis relacionando os sons

suaves e doces ao feminino e os mais aacutesperos ao seu oposto E para que

eu natildeo entre aqui em detalhes eacute preciso dizer que no geral as coisas

sensiacuteveis que induzem ao prazer e que natural e docemente dissolvem o

juiacutezo estas se devem considerar femininas ao passo que aquelas que nos

levam agrave reflexatildeo ou promovem a accedilatildeo se devem designar masculinas Jaacute

aquelas que natildeo atuam nem de uma nem de outra maneira ou o faccedilam

segundo uma mescla de ambas estas se hatildeo de chamar intermediaacuterias

Disso decorre que falemos nos mesmos termos a respeito tambeacutem das

coisas apreendidas pela razatildeo ndash as artes as virtudes e as ciecircncias ndash as

quais devem suas semelhanccedilas e diferenccedilas muacutetuas aos assuntos de que se

ocupam as virtudes no tocante agraves virtudes e as ciecircncias no tocante agraves

ciecircncias e por seu turno os viacutecios no que diz respeito aos viacutecios e a

incultura com respeito agraves ignoracircncias e ainda virtudes com respeito aos

viacutecios ciecircncias ou ignoracircncias e os viacutecios com respeito estes todos

sendo possiacutevel certa combinaccedilatildeo e mescla dessas coisas

18

Cabe observar como A Q ao traccedilar um perfil do masculino e do feminino natildeo

oferece uma lista de entes individuais mas um elenco geneacuterico de qualidades sensiacuteveis das

quais ele passa sem maior detenccedila para o toacutepico das naturezas intermediaacuterias em que estatildeo

incluiacutedas as artes as ciecircncias e as virtudes A menccedilatildeo agraves artes ciecircncias e virtudes eacute

importante neste momento porque uma vez explicado o processo pelo qual atraveacutes de

mesclas dos princiacutepios masculino e feminino satildeo engendradas as paixotildees da alma

Quintiliano deve agora retomar o fio da exposiccedilatildeo e mostrar como a muacutesica por meio de

conceitos palavras ritmos e melodias eacute capaz de imitar essas mesmas paixotildees virtudes

viacutecios etc comunicando agrave alma o respectivo eacutethos Eacute o que faraacute no restante do livro II

23 Os conceitos

No iniacutecio do cap9 A Q retoma o tema dos conceitos com o qual tinha

concluiacutedo o cap7 antes da relativamente longa mas necessaacuteria digressatildeo acerca das paixotildees

da alma O propoacutesito do autor eacute demonstrar como um poeta eacute capaz de transmitir os conceitos

que deseje mediante o emprego de certos procedimentos retoacutericos A Q utiliza exemplos

extraiacutedos de Homero nos quais aponta como o poeta mesclando traccedilos masculinos e

femininos consegue traduzir em palavras uma gama complexa de impressotildees desde

sensaccedilotildees fiacutesicas como rapidez suavidade ou agitaccedilatildeo ateacute caracteres ou julgamentos morais

Esse conceitos (ἐννοήματα) compostos de traccedilos masculinos e femininos ndash conceitos que por

sua vez entram na composiccedilatildeo eacutetica das frases e dos discursos ndash A Q os compara aos

extratos dos quais satildeo feitos os remeacutedios7 e conclui (II 103-18)

τὰ μὲν οὖν ἐς ἄνεσιν ἄγοντα καὶ φαιδρότητα τὸν ἀφελῆ τε καὶ ἡδὺν λόγον

ἐγέννησε τὰ δὲ τὸ σύννουν κινοῦντα καὶ τὸ ὁρμητικὸν τὸν πολιτικόν τε

καὶ ἀγωνιστικὸν ἐξέφηνεν τοῦ μὲν οὖν πολιτικοῦ κατὰ τὸ ἄρρεν τὰ εἴδη

συντομίαι τε καὶ βραχύτητες καὶ ἀξίωμα καὶ μεγαλοπρέπεια τραχύτης τε

καὶ σφοδρότης καὶ μέγεθος καὶ μεστότης ἅπερ τήν τε φυσικὴν ἐμφαίνει

μεγαλόνοιαν τοῦ ἄρρενος μέγεθός τε σώματος καὶ ἁδροτῆτα διανοίας καὶ

τὸ ἐς τὰ μέγιστα τῶν ἔργων ἀνυτικὸν τάχος τοῦ δὲ ἀφελοῦς ἀραιότης

ἁβρότης κάλλη τε καὶ γλυκύτητες ὧν τὰ μὲν τὸ ἀνειμένον τοῦ θήλεος τὰ

δὲ τὸ ἐς ὡραϊσμὸν διαδείκνυσιν ἐπτοημένον γένοιτο δ ἄν τι καὶ τῇ

τούτων πλοκῇ οἷον ἡ δριμύτης τὸ μὲν τάχος ὡς ἄρρεν τὸ δὲ

μικροπρεπὲς ὡς ἐναντίον ἐπιφαίνουσα ἥ τ ἐπιμέλεια τὸ μὲν γλίσχρον

ἔχουσα κατὰ τὸ θῆλυ τὸ δὲ τῆς φιλοπονίας παρεκτεταμένον ὡς ἄρρεν

Assim os conceitos que levam agrave descontraccedilatildeo e agrave alegria produzem uma

frase despojada e doce enquanto os conceitos que mobilizam as partes

intelectiva e impulsiva produzem a frase contenciosa e poliacutetica Os traccedilos

da frase poliacutetica relacionados ao masculino satildeo concisatildeo brevidade

dignidade e elevaccedilatildeo assim como aspereza forccedila grandeza e

completude traccedilos que mostram a grandiosidade natural do masculino a

7 Uma comparaccedilatildeo semelhante jaacute tinha sido feita em II 47-12

19

magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores

trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e

doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros

a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a

exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e

atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade

como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo

masculino

Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem

duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel

Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade

contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de

masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e

mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos

interessa aqui compreender

Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase

feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por

ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por

ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo

como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa

ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de

desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo

remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na

disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma

Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que

poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade

seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma

caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel

quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a

porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade

contradiccedilatildeo alguma

No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a

capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente

aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam

o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante

uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses

materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes

20

Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro

tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais

duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do

diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons

livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma

martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente

tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade

Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a

accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua

presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No

capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a

dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do

discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto

24 As letras

Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto

καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων

γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς

φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς

τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον

ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως

περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων

ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων

τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ

ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε

πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ

ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα

μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν

χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον

ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς

ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς

τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον

διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως

τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν

ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων

κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος

ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ

τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως

eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo

de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais

outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como

as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido

satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que

limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves

enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade

21

temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo

dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo

que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente

eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o

lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute

atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por

sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a

passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes

outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se

com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar

jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua

a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio

das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona

ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o

emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito

aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias

e possuem ambas as naturezas

A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo

primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso

masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais

Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da

classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam

espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo

das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as

consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto

consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as

consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave

nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na

sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz

respeito agraves letras8

As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo

claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que

pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo

Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das

vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de

assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as

quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das

letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes

8 Cf Chapanski 2003 p 22-24

22

Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes

que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais

proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias

enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais

proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em

relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade

As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de

articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua

vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto

meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais

tau delta e theta As guturais capa gama e khi

Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como

ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo

que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as

surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste

em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de

separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas

silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)

seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as

consoantes o polo essencial (formal ou masculino)

AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo

seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais

(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a

doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo

princiacutepio dualista

25 As vogais e o solfejo

Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o

meacutelos (II 126-10)

Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι

λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα

τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ

μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει

23

O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a

harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que

se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo

percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e

ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos

Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo

de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I

Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de

disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute

apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma

harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo

especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das

mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder

perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o

objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e

o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir

encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)

Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς

κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ

ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ

μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον

μετεσχηκότες

A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe

tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e

masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo

intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos

gecircneros com maior ou menor intensidade

No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre

elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa

diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino (II 131-35)

Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς

πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα

πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων

ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς

ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε

τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς

ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς

μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ

συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ

9 Cf West 1994 p178

24

πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα

δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν

ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως

ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt

κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ

λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν

μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ

ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν

ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο

καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως

ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα

φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt

νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται

πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται

τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ

γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων

καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις

σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα

καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ

ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ

Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute

captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as

letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete

examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra

as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e

masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons

mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute

masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois

nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o

ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o

som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige

que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o

alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da

sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua

estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado

intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta

quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino

quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa

na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a

exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta

trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do

alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior

parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo

lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses

examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos

constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e

terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons

semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros

Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais

nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas

internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para

isso novos paracircmetros

O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio

que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou

25

fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais

vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora

a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem

interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)

estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto

importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado

designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais

satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas

Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute

Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de

masculino e feminino em si mesmas10

Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos

remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a

esfericidade da alma11

(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash

mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso

Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves

a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon

feminino) refira-se justamente a esse arredondamento

As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em

razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas

(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua

ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente

relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal

O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do

eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os

extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo

masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo

entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da

verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o

10

Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido

Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo

metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das

observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11

Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De

Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por

que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora

o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo

26

sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo

entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta

Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo

verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave

segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo

lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros

Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro

obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo

excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no

solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)

Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ

εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί

τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες

ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ

αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων

περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ

τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν

τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς

πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ

ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ

λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος

διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt

εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους

διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν

λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ

πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν

μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν

Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente

passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega

satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se

articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que

o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam

intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez

sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por

intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos

dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de

acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos

da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam

No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido

com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das

vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o

ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons

que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida

vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava

em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos

posteriormente por que isso eacute assim

A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim

ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo

27

O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de

quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de

quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores

distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12

Do grave para o agudo (ou de

cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram

denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica

(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era

acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de

um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira

(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da

uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons

ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro

tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo

(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom

O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute

justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do

tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao

ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira

(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da

sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada

μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito

formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava

formado com a nota acrescida

Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada

tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou

agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por

eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)

Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει

κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ

τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν

πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ

θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα

γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά

12

Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2

T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)

28

Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao

masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos

em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram

dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os

sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no

entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da

passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes

Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave

formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo

decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso

ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como

o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13

os rechaccedilavam por

completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14

(II 1488-90)

περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς

παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας

Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam

na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da

alma

Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos

instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo

mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes

mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais

como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se

apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta

a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo

a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as

noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura

tonal (II 1623-40)

Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα

διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ

θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος

μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα

εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν

ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ

τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ

πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν

περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον

θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον

ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι

13

Repuacuteblica 398c 14

Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)

29

δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς

τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν

οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν

ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt

Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela

sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute

feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais

do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua

tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se

descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade

e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por

gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito

debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde

participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira

participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros

intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua

natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar

cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza

iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo

interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam

familiares

No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os

instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o

dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em

que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria

dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado

por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da

muacutesica sobre a alma

O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro

245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo

ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees

superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da

regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo

anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto

ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees

hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm

pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15

15

Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida

(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a

associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre

medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente

que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento

que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a

30

Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite

(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os

nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm

unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses

nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo

masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria

Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo

residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real

manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo

um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas

entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do

universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os

planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros

26 A muacutesica das esferas

Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves

teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem

acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma

definiccedilatildeo (III 211-6)

Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν

ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ

φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον

τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν

διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει

Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o

feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e

amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o

esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de

sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo

AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero

proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute

elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza

(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas

antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura

que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo

31

Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os

planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e

femininas (III 216-40)

ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης

γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον

ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ

δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ

ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ

θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι

τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον

μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε

μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης

προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ

πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος

ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ

νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ

ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε

ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς

Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης

ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως

ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε

θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ

ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν

ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε

ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης

ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ

μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν

παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ

τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων

συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν

θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ

ἐπίπονος τὸν ἄρρενα

A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por

toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda

um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do

feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa

tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e

nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios

e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do

feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de

Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota

acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute

no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol

(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se

regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem

tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais

familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute

luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente

uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente

feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol

emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e

impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som

que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo

de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante

ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma

equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de

32

Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e

quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo

sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que

eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino

Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal

correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota

do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao

eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de

masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as

devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam

a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde

PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO

NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa

VOGAL ε α η ω α η Ω

Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a

meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o

eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe

apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por

outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela

soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim

seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo

ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas

pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo

Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco

pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter

especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a

correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e

as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como

essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda

oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de

Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido

Primeiro tetracorde Segundo tetracorde

33

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico

Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o

ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava

somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por

uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado

ou o ponto intermeacutedio

Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica

inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo

princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros

e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado

sob sua tutela

Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a

muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a

qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto

meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional

passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num

polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a

alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a

alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de

Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge

para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim

sucessivamente

Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua

organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata

da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se

reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical

os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura

da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual

o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado

primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas

mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro

torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim

dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16

16

Gueacutenon 1999 p23

34

No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser

dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de

analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre

regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos

incomensuraacuteveis

Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de

seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas

vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade

necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que

estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade

assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada

impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a

um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por

exemplo da lua e da alma

Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as

ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou

aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que

embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres

ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia

nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de

fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas

qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas

graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo

tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais

uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a

coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e

lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num

mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao

masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora

dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo

Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo

de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o

acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o

35

fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino

teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse

fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo

Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo

contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa

A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o

outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre

quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na

quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um

compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la

A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-

feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e

feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a

posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria

necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo

para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente

masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude

de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo

privativa

Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito

de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem

duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e

quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre

ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos

guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e

sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais

difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta

porosa uacutemida ou fechada

Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a

sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns

dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso

condiccedilotildees

Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo

naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem

36

necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas

se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou

outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)

Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo

condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de

fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees

associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o

caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute

necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa

objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da

mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos

dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do

iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num

patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado

intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos

individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo

Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees

de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam

somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre

esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes

noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre

relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma

espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila

Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos

loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou

analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ

ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)

A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas

relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse

processo igualmente uma relaccedilatildeo

Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et

du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee

notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas

moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux

celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou

encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de

nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui

37

exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est

en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le

plus petit comme analogue du plus grand)17

Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que

unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter

entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel

unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia

Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres

primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune

corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos

on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification

du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par

harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se

ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une

neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au

deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure

deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en

son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception

originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la

conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique

de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre

partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18

Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de

predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e

mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na

matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo

desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =

2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que

a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas

premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo

A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-

1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua

vez se apoiu em Aristoacuteteles19

) estabelece trecircs tipos de analogia20

A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o

termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo

17

Borella 2012 p23 18

Moutsopoulos 2004 p203-204 19

Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada

pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais

ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre

chez Aristote Paris PUF 1962 20

A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23

38

grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

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Page 8: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

8

Agrave indecisatildeo quanto agrave identidade do autor soma-se a incerteza na dataccedilatildeo da obra

Quintilino por um lado cita Ciacutecero (assassinado em 43 aC) e de outro foi usado como fonte

por Martianus Capella na redaccedilatildeo do livro IX do seu De nuptiis Philologiae et Mercurii

Como a redaccedilatildeo do De nuptiis eacute datada da primeira metade do seacutecV dC os comentadores

concordam em situar o De muacutesica e seu autor entre o I e o IV seacuteculos depois de Cristo

No conjunto da tratadiacutestica musical grega o De muacutesica ocupa ao lado dos

Elementos Harmocircnicos de Aristoacutexeno (segunda metade do seacutecIV aC) e da Harmocircnica (que

data de meados do seacutec II dC) de Ptolomeu um lugar de destaque Dentre esses trecircs

principais tratados no entanto o de Quintiliano eacute o uacutenico a nos oferecer uma ldquoexposiccedilatildeo

completa dos aspectos filosoacuteficos da muacutesica gregardquo (COLOMBER L GIL B 1996 p19)

Este trabalho objetiva abordar apenas um desses aspectos filosoacuteficos as noccedilotildees de masculino

(ἄρρεν) e feminino (θῆλυ)

No De muacutesica as noccedilotildees de masculino e feminino cumprem um papel estrateacutegico

Eacute essa dualidade que como princiacutepio estruturante fundamenta a doutrina dos eacutethe musicais

na sua interaccedilatildeo simpaacutetico-eacutetico-pedagoacutegica com as potecircncias da alma Trata-se aleacutem disso

de um princiacutepio que atua sobre todo o mundo corpoacutereo analogando os entes deste mundo uns

com os outros e estes mesmos por sua vez com as realidades celestes

Todavia embora Quintiliano apoiado na ferramenta da analogia e mediante o

emprego das noccedilotildees de masculino e feminino alcance conceber e expor uma visatildeo more

musicale demonstrata unitaacuteria do universo nem por isso se daacute o trabalho de tratar mais

detidamente dessas duas noccedilotildees e se insinua fazecirc-lo eacute sempre em funccedilatildeo de um objetivo

descritivo imediato Quanto agrave analogia expediente dos mais frequentes no De muacutesica

Quintiliano natildeo chega a abordaacute-la como uma teoria em si mesma embora expediente e teoria

estejam ambos em seu tratado indissociaacutevel e necessariamente ligados

Meu objetivo aqui eacute tratar particularmente das noccedilotildees de masculino e feminino e

natildeo do modo como essas noccedilotildees fundamentam as doutrinas esteacuteticas poliacuteticas pedagoacutegicas

cosmoloacutegicas ou metafiacutesicas relacionadas agrave reflexatildeo musical grega Assim na primeira parte

do trabalho busco traccedilar um perfil descritivo inicial partindo para isso das passagens

traduzidas e comentadas em que Quintiliano emprega ilustra ou explica essas noccedilotildees Num

segundo momento tento sondar o estatuto loacutegico e ontoloacutegico das noccedilotildees de masculino e

feminino sem no entanto extrapolar o acircmbito estritamente cosmoloacutegico no qual Quintiliano

se deteacutem

Como Quintiliano divide o tratado em trecircs livros ndash um primeiro dedicado agrave arte

musical propriamente dita ou muacutesica audiacutevel um segundo que trata da muacutesica enquanto

9

ferramenta pedagoacutegica e imagem da alma e um terceiro livro no qual aborda os fundamentos

matemaacuteticos e cosmoloacutegicos dos livros anteriores ndash e como as noccedilotildees de masculino e

feminino satildeo abordadas sempre a propoacutesito mas sem ordem aparente ao longo de todos os

trecircs livros resulta absolutamente impossiacutevel natildeo avanccedilar em saltos Pretendi minimizar esse

inconveniente seguindo estritamente a ordem da exposiccedilatildeo (teria seguido a ordem das razotildees

se tivesse encontrado alguma) Tentei tambeacutem nos comentaacuterios agraves passagens preencher os

hiatos expositivos informando o contexto de onde cada passagem foi retirada

Na seleccedilatildeo das passagens a analisar foi preciso excluir algumas (natildeo muitas) cujo

conteuacutedo natildeo fosse especialmente relevante para o objetivo deste trabalho Os trechos

excluiacutedos constituem-se sobretudo de informaccedilotildees jaacute dadas ou de simples menccedilotildees dos

termos masculino e feminino Fico grato a quem me possa informar alguma omissatildeo

imperdoaacutevel

Disse acima que as noccedilotildees de masculino e feminino tecircm papel estrateacutegico no

tratado de Aristides Quintiliano Natildeo eacute sem estrateacutegia igualmente que essas noccedilotildees satildeo

apresentadas ao leitor A Q abre os capiacutetulos iniciais do livro I expondo os motivos (a

ignoracircncia e leviandade dos seus contemporacircneos com relaccedilatildeo agrave musica) e o escopo da sua

iniciativa A muacutesica para ele natildeo eacute um divertimento banal mas a ordem impliacutecita por traacutes da

natureza

Concluiacutedo o preacircmbulo ele desce das alturas e passa a tratar da muacutesica stricto

sensu No capiacutetulo 5 do livro I propotildee uma divisatildeo da mateacuteria em duas partes muacutesica praacutetica

e muacutesica teoacuterica Cada parte por sua vez eacute subdividida em duas outras A teoacuterica em muacutesica

da natureza e teacutecnica musical a praacutetica tambeacutem chamada educativa em composiccedilatildeo (ou uso)

musical e expressatildeo musical Quintiliano aborda a seguir os dois primeiros aspectos da

teacutecnica musical o ritmo e o meacutelos Eacute soacute entatildeo que menciona pela primeira vez os termos

masculino e feminino

10

2 Masculino e feminino

21 Meacutelos e rhythmoacutes

Como vimos eacute somente apoacutes ter tratado da teoria harmocircnica (Livro I caps 6-12)

e da teoria riacutetmica (caps 13-19) que A Q emprega pela primeira vez os termos ἄρρεν e θῆλυ

Diz ele (I 1925-30)

τινὲς δὲ τῶν παλαιῶν τὸν μὲν ῥυθμὸν ἄρρεν ἀπεκάλουν τὸ δὲ μέλος θῆλυ τὸ μὲν

γὰρ μέλος ἀνενέργητόν τ ἐστὶ καὶ ἀσχημάτιστον ὕλης ἐπέχον λόγον διὰ τὴν πρὸς

τοὐναντίον ἐπιτηδειότητα ὁ δὲ ῥυθμὸς πλάττει τε αὐτὸ καὶ κινεῖ τεταγμένως

ποιοῦντος λόγον ἐπέχων πρὸς τὸ ποιούμενον

Alguns dos antigos chamavam o ritmo de masculino e o meacutelos de feminino pois o

meacutelos eacute sem atualidade e sem forma possuindo o logos da mateacuteria pela sua aptidatildeo

para os contraacuterios ao passo que o ritmo move ordenadamente o meacutelos e o modela

possuindo o logos do criador com relaccedilatildeo ao que eacute criado

Evidentemente o meacutelos sem atualidade e sem forma mencionado nesta passagem

natildeo eacute exatamente o mesmo que capiacutetulos atraacutes (I 121-3) A Q definiu como meacutelos teacuteleion

ou meacutelos perfeito (aquele que combina harmonia ritmo e dicccedilatildeo) mas o meacutelos em sentido

proacuteprio (ἰδιαίτερον) e estrito um entrelaccedilamento de sons desiguais quanto agrave altura tonal isto

eacute de sons que se articulam desde a perspectiva de uma oposiccedilatildeo qualitativa de base a

oposiccedilatildeo entre grave e agudo

Tambeacutem a noccedilatildeo de ritmo eacute aqui empregada em sentido restrito e sequer

corresponde agrave totalidade daquilo que dentro do escopo da teoria musical e segundo o proacuteprio

A Q (I 1319-20) estaacute submetido agrave ordenaccedilatildeo riacutetmica os movimentos do corpo da melodia

e da dicccedilatildeo ou seja a danccedila a muacutesica e a poesia

No iniacutecio do capiacutetulo 13 Livro I A Q estabelece trecircs acepccedilotildees para o termo

ritmo conforme os objetos aos quais o termo seja aplicado Haacute assim o ritmo dos corpos

imoacuteveis o dos corpos moacuteveis e o ritmo em sentido proacuteprio (ἰδίως) que eacute o ritmo quando

aplicado agrave voz (ἐπὶ φωνῆς) ou ao som Eacute com respeito a esta uacuteltima acepccedilatildeo que diz ele (I

136-8) o ritmo se organiza segundo uma oposiccedilatildeo de estados denominados aacutersis e theacutesis

ruiacutedo e repouso (ἄρσιν καὶ θέσιν ψόφον καὶ ἠρεμίαν)

Certamente natildeo eacute coincidecircncia o fato de que cada termo da dualidade ritmo-

melodia se articule internamente tambeacutem segundo uma oposiccedilatildeo qualitativa Mais adiante

teremos ocasiatildeo de interrogar como essas (e outras) oposiccedilotildees especiacuteficas se articulam entre

si e todas por sua vez com a dualidade masculino-feminino a que A Q nos introduz

formalmente na passagem citada mas com a qual assim nos parece ele conta desde o iniacutecio

11

Em I 236-7 A Q nos daacute uma pista ao fazer da interaccedilatildeo entre os dissimilares a

condiccedilatildeo necessaacuteria de tudo o que vem a ser Embora Quintiliano nessa passagem designe

esses dissimilares (ἀνομοίων) como ldquoγεννωμένωνrdquo termo que Mathiesen (1983 p108)

traduz como ldquoprogenitoresrdquo o princiacutepio que ele aiacute enuncia natildeo poderia pela natureza do

assunto (ritmo e meacutetrica) estar circunscrito ao acircmbito exclusivo da reproduccedilatildeo sexuada

Em nota ao trecho (I 1925-30) reproduzido acima Barker (1990 p445) apoacutes

apontar a origem aristoteacutelica dos conceitos de agente e mateacuteria considera problemaacutetica a

fonte de sua associaccedilatildeo com as noccedilotildees de masculino e feminino embora essa associaccedilatildeo seja

mencionada tambeacutem em Aristoacuteteles

The terms of this distinction between matter and agent are Peripatetic and their

use here recalls Aristotles account of the male and female contributions to

reproduction (eg De Gen An 730b) Similar conceptions of the roles of melody

and rhythm are suggested by ps-Ar Probs xix49We cannot confidently identify

the origin of the application of sexual distinctions to music (used extensively by

Aristides in Book 11) and specifically of the equation of rhythm with male melody

with female such ideas may possibly be connected with the school of Damon

Colomer e Gil (1996 p96) satildeo mais especiacuteficos ao apontar uma possiacutevel origem

aristoxecircnica para a aplicaccedilatildeo das noccedilotildees aristoteacutelicas de ato e mateacuteria ao par ritmo e meacutelos

hipoacutetese que no fundo o proacuteprio Barker natildeo descarta jaacute que como diz os Elementa

Rhythmica satildeo ldquoa major source for the section on rhythmics in chs 13-19 of 12 Arist Quint

De Mus Book 1rdquo (1990 p193)

De fato nos Elementa Rhythmica (Livro II fr03) Aristoacutexeno refere-se ao ritmo e

ao ritmaacutevel (ῥυθμιζομένου) como duas naturezas especiacuteficas (δύο τινὰς φύσεις) as quais

estariam uma para outra como a forma (τὸ σχῆμα) estaacute para o que eacute formado (τὸ

σχηματιζόμενον) Aristoacutexeno eacute a princiacutepio ateacute mais abrangente que A Q jaacute que a relaccedilatildeo eacute

estendida a todos os ritmaacuteveis (corpo melodia e dicccedilatildeo) e natildeo exclusiva e especificamente ao

meacutelos Poreacutem para que natildeo haja duacutevida ele faz questatildeo de explicitar a relaccedilatildeo entre ritmo e

meacutelos ao mencionar adiante (fr04) que ldquoo mesmo [loacutegos] se aplica ao meacutelos e ao que quer

que tenha surgido para ser submetido ao ritmordquo2

Para A Q o meacutelos eacute ldquoἀσχημάτιστονrdquo3 informe para Aristoacutexeno eacute

ldquoσχηματιζόμενονrdquo algo que padece a forma Aleacutem de natildeo haver diferenccedila conceitual

2 Ὁ αὐτὸς δὲ λόγος καὶ ἐπὶ τοῦ μέλους καὶ εἴ τι ἄλλο πέφυκε ῥυθμίζεσθαι ou na traduccedilatildeo de Barker (1990

p185) ldquoThe same can be said about melody too and about anything else whose nature it is to be made rhythmic

[rhythmizesthai]rdquo 3 Quintiliano tambeacutem denomina o meacutelos ldquoἀνενέργητόνrdquo o que obviamente remete ao conceito de ato (ἐνέργεια

ou ἐντελέχεια) por oposiccedilatildeo agrave potecircncia (δuacuteναμις) termo que A Q emprega com relaccedilatildeo aos graus da escala O

12

relevante entre os dois termos ambos apontam para uma acepccedilatildeo mais abrangente e mais

primitiva do rhythmoacutes Segundo Colomer e Gil (op cit loc cit) ldquoos termos rhythmoacutes e

schecircma foram a princiacutepio quase sinocircnimos embora depois a palavra rhythmoacutes se tenha

aplicado preferencialmente agrave forma em movimento e schecircma agrave forma estaacuteticardquo Ora essa

identificaccedilatildeo originaacuteria se esclarece a primeira e a segunda acepccedilotildees atribuiacutedas por A Q ao

termo ritmo (o ritmo dos corpos imoacuteveis e dos corpos moacuteveis) igualmente demonstra a

profunda unidade que coere aquelas trecircs acepccedilotildees pois em todas predomina a ideia de uma

determinaccedilatildeo formal

Haacute no entanto apesar dos paralelismos (mesmo no tocante agrave ordem de

exposiccedilatildeo) uma diferenccedila notaacutevel entre os textos de Aristoacutexeno e de Aristides Quintiliano Eacute

que Aristoacutexeno embora visivelmente preocupado esmiuccedilar a diferenccedila entre o ritmo e os

ritmaacuteveis natildeo recore para isso agraves noccedilotildees de masculino e feminino O tratado de Aristoacutexeno

tudo indica foi uma das principais fontes dos caps 13-19 do Livro I de A Q mas certamente

natildeo foi a uacutenica

Embora como sugerem Colomer e Gil o ingresso na teoria musical dos termos

masculino e feminino possa ter tido origem damoniana (e natildeo ser portanto histoacuterica e

originalmente pitagoacuterica) natildeo haacute duacutevida de que os termos ἄρρεν e θῆλυ fazem parte do

vocabulaacuterio filosoacutefico pitagoacuterico Sabemos disso porque Aristoacuteteles (Metafiacutesica 986a25) os

elenca entre famosos dez princiacutepios pitagoacutericos Noutra passagem da Metafiacutesica (988a2-10)

em que critica a concepccedilatildeo pitagoacuterico-platocircnica da diacuteada Aristoacuteteles natildeo somente explica a

conexatildeo entre as noccedilotildees de forma e mateacuteria e o par masculino-feminino mas afirma o caraacuteter

principial deste uacuteltimo

Com efeito eles pretendem derivar da mateacuteria uma multiplicidade se

bem que a Forma soacute gere uma vez ora o que observamos eacute que a mesa eacute

feita de um pedaccedilo de mateacuteria enquanto o homem que aplica a forma

apesar de ser um faz muitas mesas E a relaccedilatildeo entre macho e fecircmea

assemelha-se a esta pois a fecircmea eacute emprenhada numa soacute coacutepula ao passo

que o macho emprenha muitas fecircmeas E todavia estes fatos satildeo imagens

daqueles primeiros princiacutepios Eis aiacute pois como se pronunciou Platatildeo

acerca destes problemas pelo que ficou ditou eacute evidente que ele usou

apenas duas causas a essencial e a material ()

Se os fatos aparentemente desconexos da reproduccedilatildeo sexuada e da fabricaccedilatildeo de

uma mesa satildeo imagens ou imitaccedilotildees (μιμήματα) daqueles princiacutepios (τῶν ἀρχῶν ἐκείνων)

isto eacute dos princiacutepios essencial e substancial ndash ou em linguagem aristoteacutelica da causa material

e da causa formal ndash natildeo somente eacute liacutecito contar com a manifestaccedilatildeo desses princiacutepios tambeacutem

fato de que na passagem em tela ele recorra ao expediente privativo em vez empregar os termos proacuteprios natildeo

obscurece a distinccedilatildeo conceitual

13

no acircmbito da muacutesica mas se torna imperioso recorrer a eles quando se deseja como deseja

Quintiliano oferecer um vislumbre do cosmo total desde o microcosmo particular da muacutesica

Eacute o que trataremos de observar a seguir

22 Corpo e alma

Apoacutes ter introduzido no fim do cap19 as noccedilotildees de masculino e feminino A Q

natildeo volta a mencionaacute-las em nenhum momento ateacute o final do Livro I Natildeo quer isso dizer

todavia que ele jaacute natildeo as leve em conta ou pelo menos que natildeo as subentenda de algum

modo Em todo caso soacute deveraacute retomaacute-las em caraacuteter expliacutecito e operativo a partir do cap8

do Livro II

Φαίνεταί μοι τοίνυν ἡ ψυχή πόρρω μὲν τῶνδε ἡνίκα ἐστὶν ὁμιλοῦσα τῷ

κρείττονι λόγῳ τε ὁμέστιος εἶναι καὶ καθαρεύειν ἐπιθυμίας ἐπὰν δὲ ἐπὶ

τάδε ἀγκλίνῃ καὶ τὴν ἐνταῦθα διατριβὴν πείρᾳ μαθεῖν ἐπιχειρήσῃ

τηνικαῦτα αὐτῇ σώματός τε ἐγγίνεται χρεία καὶ σῶμα ἐπιζητεῖ

πρόσφορον ὑπόκειται δ αὐτῇ θεωρεῖν τὴν ἐν τούτοις διπλόην

ἀρρενότητά τέ φημι καὶ θηλύτητα ἥτις οὐκ ἐν ἐμψύχοις μόνοις ἄρα ἦν

ἀλλὰ κἀν τοῖς φύσει μόνῃ διοικουμένοις φυτῶν τε ὅσα μετάλλων τε

γένη καὶ ἀρωμάτων καὶ γὰρ τούτων δυάς τις ἐπιφαίνεται ἤτοι δι

ἁπαλότητος ἢ λειότητος ἢ εὐχροίας ἢ εὐωδίας ἢ καὶ τῶν ἐναντίων τὴν

ἑτέραν ἐπιδεικνυμένων φύσιν

Parece-me de fato que a alma quando distante das coisas e em comeacutercio

com o superior coabita com a razatildeo e estaacute livre de desejos mas quando

inclina-se para as coisas daqui e intenta aprender atraveacutes da experiecircncia

um modo de existir no tempo entatildeo sendo-lhe necessaacuterio um corpo ela

busca um corpo que lhe seja adequado E eacute da natureza da alma no

tocante aos corpos atentar para a dualidade ou seja para a masculinidade

e para a feminilidade dualidade presente natildeo soacute nos corpos animados

mas tambeacutem nos governados por uma soacute natureza tais como os gecircneros

das plantas dos metais e dos aromas pois tambeacutem neles se manifesta

certa dualidade pois seja pela brandura ou pela suavidade pela bela

aparecircncia ou pelo bom odor seja pelas qualidades contraacuterias apontam

para uma ou outra natureza (II 81-12)

Uma raacutepida contextualizaccedilatildeo nos permitiraacute compreender melhor tanto esta quanto

as demais passagens do cap8 Todo o livro II eacute dedicado agravequilo que no cap5 do livro I A Q

havia definido como muacutesica praacutetica (πρακτικόν) ou educativa (παιδευτικόν) Antes poreacutem de

tratar do seu tema propriamente A Q sente a necessidade de responder agraves objeccedilotildees dos

ceacuteticos4 (dentre os quais ningueacutem menos que Ciacutecero a quem Quintiliano poreacutem hesita em

4 ldquoEacute possiacutevel que os educadores romanos pensassem como Epicuro para quem a muacutesica natildeo tinha qualquer

significado aleacutem de um jogo de sons e concordassem com Ciacutecero que afirmava lsquoque a muacutesica natildeo tem utilidade

alguma aleacutem de um prazer infantil sem valor nenhum posto que natildeo pode guiar-nos agrave felicidadersquo Segundo o

autor romano Corneacutelius Nepos do seacutec I d C lsquoningueacutem ignora que a muacutesica segundo o estado de nossos

costumes natildeo conveacutem a um personagem importantersquo apesar de ter sido levada entre os gregos como lsquodigna de

14

atribuir juiacutezos desfavoraacuteveis acerca da muacutesica) fundamentar a proacutepria ideia de uma formaccedilatildeo

moral atraveacutes da muacutesica E como a accedilatildeo da muacutesica sobre a alma depende tanto da capacidade

ativa da primeira quanto da capacidade receptiva da uacuteltima eacute por esta que ele comeccedila

A alma diz eacute responsaacutevel por dotar de certo ritmo e de ordem (ῥυθμοῦ τινος καὶ

τάξεως) as coisas deste mundo (τῶν ἐνθαδί) Poderiacuteamos dizer embora Quintiliano natildeo o faccedila

aqui explicitamente que a alma portanto eacute masculina em relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Mas

para que possa ser isso eacute preciso que natildeo seja apenas isso De fato diz A Q a alma natildeo

possui uma natureza ou potecircncia uacutenica (οὐδὲ τῶν μονήρη τινὰ φύσιν ἢ δύναμιν ἐχόντων) mas

certa natureza dupla (διπλῆς τινος φύσεως)

A duplicidade da alma consiste em ter sido dotada pelo administrador de todas as

coisas (ὁ τὸ σύπαν διοικῶν) de uma substacircncia divina na qual habita a razatildeo (λoacuteγος) e de

uma substacircncia mundana ou irracional (ἄλογος) na qual habita o desejo (ἐπιθυμία) As duas

naturezas ou potecircncias satildeo necessaacuterias para que a alma atue sobre o mundo corpoacutereo e essa

natureza duacuteplice sem a qual ela seria ineficaz pode-se definir assim a alma soacute eacute ativa em

relaccedilatildeo ao mundo corpoacutereo na medida em que eacute passiva em relaccedilatildeo ao mundo racional Ora a

muacutesica diz Quintiliano no iniacutecio do cap3 do livro II estaacute para a alma irracional assim como a

filosofia estaacute para a alma racional Desse modo ao submeter-se agrave muacutesica a alma irracional

submete-se igualmente agrave razatildeo pois a muacutesica eacute no fundo razatildeo transformada em mateacuteria

sensiacutevel tal como a alma mesma

Isso poreacutem natildeo eacute tudo Entre as duas naturezas da alma haacute um ponto intermeacutedio

que ao submeter o desejo agrave razatildeo confere unidade agraves duas metades Esse ponto intermeacutedio eacute

a memoacuteria (μνήμη) Memoacuteria eacute claro das belezas eternas do mundo suprassensiacutevel5 Desse

modo o dualismo aniacutemico resolve-se num elemento intermediaacuterio resultante da interaccedilatildeo

entre os polos extremos com os quais forma afinal uma triacuteade

Paralelamente a alma (tomada como unidade natildeo mais segundo a interaccedilatildeo das

suas partes) sendo a um soacute tempo ativa (frente ao mundo sensiacutevel) e passiva (perante o

mundo racional) eacute ela proacutepria um ponto intermeacutedio resultante da interaccedilatildeo entre polos

opostos com os quais por sua vez tambeacutem compotildee uma triacuteade As partes e o todo o

microcosmo e macrocosmo assim espelham-se mutuamente

consideraccedilatildeo e estimarsquo rdquo CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-

kagathiacutea Classica (Brasil) 2412 73-85 2011 5 Mesmo se desconsiderarmos esse elemento doutrinal platocircnico a memoacuteria seria ainda uma bela e eficaz

imagem da uniatildeo entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo pois a memoacuteria eacute uma operaccedilatildeo estritamente mental cujos

objetos no entanto satildeo todos oriundos da experiecircncia sensiacutevel

15

Mas a porccedilatildeo desejante (ou irracional) da alma possui igualmente as suas partes

A Q as denomina desejante (ἐπιθυμητική) a qual tende ao relaxamento (ou relaxaccedilatildeo

indulgecircncia) excessivo e impulsiva (θυμικὴ) que tende a uma tensatildeo igualmente desmedida

Fica claro desde logo embora Quintiliano reserve esse comentaacuterio para mais adiante que as

duas porccedilotildees da alma irracional formam uma oposiccedilatildeo do tipo ativo-passivo ou masculino-

feminino restando saber qual seria nesse caso o ponto intermeacutedio

O ponto intermeacutedio satildeo dois por um lado (e acima) a proacutepria porccedilatildeo racional da

alma que eacute inteiriccedila e natildeo se constitui de partes por outro (e abaixo) as paixotildees que resultam

(como A Q descreveraacute a seguir) da mescla entre as potecircncias ativa e passiva da alma As

triacuteades formadas portanto satildeo tambeacutem duas mas de tipos diferentes numa o ponto

intermeacutedio estaacute hierarquicamente acima dos termos opostos noutra hierarquicamente abaixo

A razatildeo da eficaacutecia persuasiva da muacutesica sobre a alma irracional reside

argumenta Quintiliano nas peculiaridades do seu aparato mimeacutetico que lhe permite produzir

a imitaccedilatildeo com mateacuteria similar agrave do objeto imitado Curiosamente esse aparato mimeacutetico eacute

tambeacutem triaacutedico pois a muacutesica imita6 os eacutethe e as paixotildees da alma com os conceitos

(ἐννοίαις) as palavras com as harmonias e a modulaccedilatildeo da voz (ἁρμονίαις καὶ φωνῆς

πλάσει) e a accedilatildeo com os ritmos e o movimento do corpo (ῥυθμοῖς καὶ κινήσει σώματος) A

muacutesica portanto abarca o universo inteiro da accedilatildeo humana desde o seu nascedouro (nos

movimentos afetivos e intelectuais da alma) ateacute sua exteriorizaccedilatildeo em forma de atos e

palavras

Ora sendo a muacutesica sobretudo uma terapia das paixotildees da alma (παθῶν ψυχικῶν

θεραπεία) cabe ao conceito (que siacutentese do conteuacutedo racional a transmitir e da impressatildeo

esteacutetico-emocional a causar estaacute relacionado ao movimentos internos da alma de onde brotam

as accedilotildees) o papel de guiar os elementos do meacutelos perfeito (dicccedilatildeo harmonia e ritmo) O cap8

e os seguintes a comeccedilar pelo trecho acima citado satildeo dedicados justamente a explicar

primeiro como se geram as paixotildees da alma e depois como a muacutesica eacute capaz de imitaacute-las e

de nelas intervir

De iniacutecio A Q trata da dualidade masculino-feminino como uma particularidade

do mundo corpoacutereo a que a alma tem de se submeter Reforccedila o caraacuteter especificamente

corpoacutereo dessa dualidade o fato de que ela natildeo se manifeste apenas em corpos animados (οὐκ

ἐν ἐμψύχοις μόνοις) mas tambeacutem em corpos governados por uma soacute natureza (ἀλλὰ κἀν τοῖς

φύσει μόνῃ διοικουμένοις) Essa observaccedilatildeo parece decorrer da necessidade de distinguir a jaacute

6 II 438-40

16

mencionada duplicidade da alma (razatildeo por que seria natural esperar que somente os corpos

animados estivessem submetidos agrave dualidade a dualidade ao menos entre corpo e alma) do

dualismo propriamente corpoacutereo Em todo caso embora tipicamente corpoacuterea a dualidade

masculino-feminino tambeacutem aqui natildeo se restringe ao fenocircmeno bioloacutegico da diferenciaccedilatildeo

sexual Aleacutem disso essa dualidade natildeo corresponde exatamente a duas espeacutecies opostas de

seres mas a dois polos de um eixo que atravessa de ponta a ponta o mundo corpoacutereo

alcanccedilando portanto e internamente todos os seres nele existentes Desse modo cada ente

particular pode ser tomado como uma resultante da interaccedilatildeo entre os dois princiacutepios em

relaccedilatildeo aos quais ele estabelece por sua vez um ponto intermeacutedio isto eacute uma mescla E eacute

precisamente na produccedilatildeo dessa mescla que o dualismo aniacutemico e o dualismo corpoacutereo se

articulam (II 816-28)

οὐ μόνον οὖν ἐφίεται σώματος ἀλλὰ καὶ τούτου ποιοῦ τινος ἢ γὰρ ἄρρεν

ἠγάπηκεν ἢ θῆλυ καὶ τούτων ὁτὲ μὲν ἄκρατον θάτερον ὁτὲ δὲ ἐξ ἀμφοῖν

ἔχον δεινήν τινα καὶ ὄντως ἄτοπον μίξιν αὐτίκα κἂν μὴ φύσει τοῦ

τοιούτου τύχωσι σώματος αὐταὶ ταῖς σφετέραις τροπαῖς μετερρύθμισάν

τε καὶ ἐς τὸ αὑταῖς ὅμοιον μετέστησαν οὕτως ἐν μὲν ἄρρεσι θῆλυς

ἐπιτρέχει μορφή δι ἣν καὶ ὁ βίος ὦπται τοιοῦτος ἐν δὲ γυναιξὶν ἀνδρεῖον

εἶδος ᾧ καὶ τὸ ἦθος ὅμοιον τεκμαιρόμεθα καὶ ἄνδρες μὴν ἀγένειοι καὶ

γενειάσκουσι γυναῖκες καί τις ἄρρην ἔβλεψεν ὑγρὸν καὶ γυναῖκες γοργὸν

προσεῖδον ὥστε καὶ τῶν ἠθῶν ἕκαστα θηράσεις ἑκάστῃ μορφῇ συνῳδά

A alma portanto natildeo soacute deseja um corpo mas certo tipo de corpo um

corpo masculino ou um corpo feminino Deseja dentre esses agraves vezes um

corpo puro de um tipo ou de outro agraves vezes um corpo que possua uma

curiosa e paradoxal mistura de ambos Assim quando natildeo conseguem

obter naturalmente esse determinado corpo as almas o remodelam

mediante torneios e o transformam em algo semelhante a si mesmas

Dessa forma sobre um corpo masculino recai uma forma feminina (razatildeo

por que tambeacutem sua vida assim se mostra) ou ainda sobre um corpo

feminino uma forma masculina no que tambeacutem assinalamos um eacutethos

similar Haacute homens imberbes e mulheres barbadas homens de lacircnguido

olhar e mulheres com mirada de Goacutergona de modo que cada eacutethos veraacutes

corresponde a uma fisionomia

Uma vez estabelecido o princiacutepio de que o dualismo aniacutemico de algum modo rege

o dualismo corpoacutereo A Q sente-se agrave vontade para tratar de um nos termos do outro

recorrendo para isso aos termos masculino e feminino (II 828-39)

ἐκ δὲ τῆς πρὸς τὸ ἄρρεν ἢ θῆλυ προσπαθείας ἢ πρὸς ἀμφότερον τὰ πάθη

συνίσταται περὶ ψυχήν τὸ μὲν οὖν θῆλυ λίαν ἀνειμένον ᾧ συνᾴδει τὸ

ἐπιθυμητικόν τὸ δ ἄρρεν σφοδρόν τε καὶ δραστήριον ᾧ τὸ θυμικὸν

ὡμοίωται περὶ μὲν οὖν τὸ θῆλυ ψυχῆς τε μέρος καὶ ἀνθρώπων γένος

πλεονάζουσι λῦπαι τε καὶ ἡδοναί περὶ δὲ τὸ ἄρρεν ὀργὴ καὶ θράσος

πάλιν δὲ τούτων γίνονται συζυγίαι λυπῶν τε πρὸς ἡδονὰς καὶ ὀργῆς πρὸς

θράσος καὶ θράσους πρὸς ἡδονὴν καὶ λύπην καὶ ὀργῆς αὖθις πρὸς

ἑκάτερον καὶ πάλιν ἑκάστου πρός τε ἓν καὶ πρὸς πλείω μίξεις καὶ μυρίας

ἄν τις ἐκ τούτων εὕροι τῶν παθῶν εἰκόνας ἐν ποικιλίᾳ θεωρουμένων

17

Conforme o apego ao masculino ao feminino ou a ambos estabelecem-se

as paixotildees da alma O feminino eacute demasiado indulgente e com ele

concorda a alma desejante ao passo que o masculino semelhante agrave alma

impulsiva eacute veemente e ativo Assim tanto na parte feminina da alma

quanto na parcela feminina da humanidade abundam os prazeres e as

dores ao passo que na masculina a ira e a coragem E uma vez mais

datildeo-se combinaccedilotildees entre essas paixotildees das dores com os prazeres da ira

com a coragem da coragem com o prazer e a dor ou da ira novamente

com as demais e ainda de uma com outra qualquer ou com vaacuterias A

partir dessas seria possiacutevel encontrar uma miriacuteade de imagens das

paixotildees em vista da sua variedade

Se a alma por um lado submete o mundo corpoacutereo este por sua vez a espelha

macrocosmicamente nela interferindo mediante interaccedilotildees simpaacuteticas a exemplo do que

ocorre na muacutesica No entanto natildeo satildeo apenas as disposiccedilotildees passivas ou paixotildees que

estabelecem pontes entre a alma e a realidade corpoacuterea Tambeacutem as disposiccedilotildees ativas e

intelectivas estatildeo submetidas ao dualismo masculino-feminino (II 848-69)

ἔστι γὰρ πρῶτον μὲν ἐν ὁρατοῖς ἑκατέραν ἰδεῖν τὴν φύσιν τὸ μὲν

ἀνθηρόν τε καὶ ἐς ὡραϊσμὸν προςφυὲς χρῶμά τε καὶ σχῆμα διαιροῦντα

θηλύτητι τὸ δὲ στυγνόν τε καὶ ἐς σύννοιαν ἄγον ἀρρενότητι πάλιν δὲ ἐν

ἀκοαῖς τοὺς μὲν λείους καὶ προσηνεῖς ἤχους ἐς τὸ θῆλυ τοὺς δὲ

τραχυτέρους εἰς τοὐναντίον ἁρμόττοντα καί ἵνα μὴ τὰ καθ ἕκαστον

λέγω κοινῶς περὶ πάντων ἀποφαντέον ὡς ὅσα μὲν τῶν αἰσθητῶν ἔς τε

ἡδονὴν δελεάζει καὶ ἠρέμα διαχεῖν τὴν γνώμην πέφυκε ταῦτα εἰς τὸ θῆλυ

κριτέον ὅσα δὲ κινεῖ τε εἰς σύννοιαν καὶ ἐγείρει τὸ δραστήριον ταῦτα εἰς

τὴν ἄρρενος μοῖραν ἀπονεμητέον τὰ δέ τοι μηδέτερον ἢ κατὰ μίξιν ἄμφω

δρῶντα ταῦτα τῶν μέσων ἀποφαντέον κατὰ δὴ ταῦτα καὶ περὶ ἐκείνων

λέγωμεν αἳ λόγῳ μέν εἰσι καταληπταὶ τέχναι τε καὶ ἀρεταὶ καὶ ἐπιστῆμαι

ἐκ δὲ τῆς τῶν ὑλῶν ποιότητος περὶ ἃς ἑκάστη τευτάζει τὰς πρὸς ἀλλήλας

διαφορὰς καὶ ὁμοιότητας εἰλήχασιν αἵ τε ἀρεταὶ πρὸς τὰς ἀρετὰς αἵ τε

ἐπιστῆμαι πρὸς τὰς ἐπιστήμας κακίαι τε αὖ πρὸς κακίας καὶ

ἀνεπιστημοσύναι πρὸς ἀμαθίας πάλιν δὲ ἀρεταὶ πρὸς κακίας ἢ ἐπιστήμας

ἢ ἀγνωσίας κακίαι τε αὖ πρὸς τὰς εἰρημένας ποικίλης τινὸς καὶ τῆς κατὰ

ταῦτα πλοκῆς τε οὔσης καὶ μίξεως

A princiacutepio eacute de fato possiacutevel identificar nos objetos visiacuteveis cada

natureza separadamente atribuindo o florido e as formas e cores

decorativas ao feminino e as sombrias e que conduzem agrave reflexatildeo ao

masculino e o mesmo para as coisas audiacuteveis relacionando os sons

suaves e doces ao feminino e os mais aacutesperos ao seu oposto E para que

eu natildeo entre aqui em detalhes eacute preciso dizer que no geral as coisas

sensiacuteveis que induzem ao prazer e que natural e docemente dissolvem o

juiacutezo estas se devem considerar femininas ao passo que aquelas que nos

levam agrave reflexatildeo ou promovem a accedilatildeo se devem designar masculinas Jaacute

aquelas que natildeo atuam nem de uma nem de outra maneira ou o faccedilam

segundo uma mescla de ambas estas se hatildeo de chamar intermediaacuterias

Disso decorre que falemos nos mesmos termos a respeito tambeacutem das

coisas apreendidas pela razatildeo ndash as artes as virtudes e as ciecircncias ndash as

quais devem suas semelhanccedilas e diferenccedilas muacutetuas aos assuntos de que se

ocupam as virtudes no tocante agraves virtudes e as ciecircncias no tocante agraves

ciecircncias e por seu turno os viacutecios no que diz respeito aos viacutecios e a

incultura com respeito agraves ignoracircncias e ainda virtudes com respeito aos

viacutecios ciecircncias ou ignoracircncias e os viacutecios com respeito estes todos

sendo possiacutevel certa combinaccedilatildeo e mescla dessas coisas

18

Cabe observar como A Q ao traccedilar um perfil do masculino e do feminino natildeo

oferece uma lista de entes individuais mas um elenco geneacuterico de qualidades sensiacuteveis das

quais ele passa sem maior detenccedila para o toacutepico das naturezas intermediaacuterias em que estatildeo

incluiacutedas as artes as ciecircncias e as virtudes A menccedilatildeo agraves artes ciecircncias e virtudes eacute

importante neste momento porque uma vez explicado o processo pelo qual atraveacutes de

mesclas dos princiacutepios masculino e feminino satildeo engendradas as paixotildees da alma

Quintiliano deve agora retomar o fio da exposiccedilatildeo e mostrar como a muacutesica por meio de

conceitos palavras ritmos e melodias eacute capaz de imitar essas mesmas paixotildees virtudes

viacutecios etc comunicando agrave alma o respectivo eacutethos Eacute o que faraacute no restante do livro II

23 Os conceitos

No iniacutecio do cap9 A Q retoma o tema dos conceitos com o qual tinha

concluiacutedo o cap7 antes da relativamente longa mas necessaacuteria digressatildeo acerca das paixotildees

da alma O propoacutesito do autor eacute demonstrar como um poeta eacute capaz de transmitir os conceitos

que deseje mediante o emprego de certos procedimentos retoacutericos A Q utiliza exemplos

extraiacutedos de Homero nos quais aponta como o poeta mesclando traccedilos masculinos e

femininos consegue traduzir em palavras uma gama complexa de impressotildees desde

sensaccedilotildees fiacutesicas como rapidez suavidade ou agitaccedilatildeo ateacute caracteres ou julgamentos morais

Esse conceitos (ἐννοήματα) compostos de traccedilos masculinos e femininos ndash conceitos que por

sua vez entram na composiccedilatildeo eacutetica das frases e dos discursos ndash A Q os compara aos

extratos dos quais satildeo feitos os remeacutedios7 e conclui (II 103-18)

τὰ μὲν οὖν ἐς ἄνεσιν ἄγοντα καὶ φαιδρότητα τὸν ἀφελῆ τε καὶ ἡδὺν λόγον

ἐγέννησε τὰ δὲ τὸ σύννουν κινοῦντα καὶ τὸ ὁρμητικὸν τὸν πολιτικόν τε

καὶ ἀγωνιστικὸν ἐξέφηνεν τοῦ μὲν οὖν πολιτικοῦ κατὰ τὸ ἄρρεν τὰ εἴδη

συντομίαι τε καὶ βραχύτητες καὶ ἀξίωμα καὶ μεγαλοπρέπεια τραχύτης τε

καὶ σφοδρότης καὶ μέγεθος καὶ μεστότης ἅπερ τήν τε φυσικὴν ἐμφαίνει

μεγαλόνοιαν τοῦ ἄρρενος μέγεθός τε σώματος καὶ ἁδροτῆτα διανοίας καὶ

τὸ ἐς τὰ μέγιστα τῶν ἔργων ἀνυτικὸν τάχος τοῦ δὲ ἀφελοῦς ἀραιότης

ἁβρότης κάλλη τε καὶ γλυκύτητες ὧν τὰ μὲν τὸ ἀνειμένον τοῦ θήλεος τὰ

δὲ τὸ ἐς ὡραϊσμὸν διαδείκνυσιν ἐπτοημένον γένοιτο δ ἄν τι καὶ τῇ

τούτων πλοκῇ οἷον ἡ δριμύτης τὸ μὲν τάχος ὡς ἄρρεν τὸ δὲ

μικροπρεπὲς ὡς ἐναντίον ἐπιφαίνουσα ἥ τ ἐπιμέλεια τὸ μὲν γλίσχρον

ἔχουσα κατὰ τὸ θῆλυ τὸ δὲ τῆς φιλοπονίας παρεκτεταμένον ὡς ἄρρεν

Assim os conceitos que levam agrave descontraccedilatildeo e agrave alegria produzem uma

frase despojada e doce enquanto os conceitos que mobilizam as partes

intelectiva e impulsiva produzem a frase contenciosa e poliacutetica Os traccedilos

da frase poliacutetica relacionados ao masculino satildeo concisatildeo brevidade

dignidade e elevaccedilatildeo assim como aspereza forccedila grandeza e

completude traccedilos que mostram a grandiosidade natural do masculino a

7 Uma comparaccedilatildeo semelhante jaacute tinha sido feita em II 47-12

19

magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores

trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e

doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros

a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a

exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e

atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade

como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo

masculino

Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem

duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel

Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade

contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de

masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e

mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos

interessa aqui compreender

Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase

feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por

ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por

ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo

como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa

ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de

desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo

remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na

disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma

Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que

poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade

seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma

caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel

quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a

porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade

contradiccedilatildeo alguma

No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a

capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente

aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam

o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante

uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses

materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes

20

Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro

tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais

duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do

diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons

livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma

martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente

tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade

Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a

accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua

presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No

capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a

dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do

discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto

24 As letras

Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto

καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων

γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς

φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς

τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον

ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως

περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων

ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων

τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ

ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε

πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ

ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα

μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν

χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον

ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς

ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς

τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον

διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως

τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν

ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων

κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος

ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ

τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως

eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo

de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais

outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como

as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido

satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que

limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves

enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade

21

temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo

dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo

que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente

eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o

lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute

atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por

sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a

passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes

outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se

com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar

jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua

a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio

das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona

ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o

emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito

aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias

e possuem ambas as naturezas

A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo

primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso

masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais

Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da

classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam

espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo

das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as

consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto

consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as

consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave

nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na

sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz

respeito agraves letras8

As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo

claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que

pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo

Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das

vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de

assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as

quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das

letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes

8 Cf Chapanski 2003 p 22-24

22

Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes

que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais

proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias

enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais

proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em

relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade

As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de

articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua

vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto

meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais

tau delta e theta As guturais capa gama e khi

Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como

ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo

que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as

surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste

em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de

separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas

silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)

seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as

consoantes o polo essencial (formal ou masculino)

AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo

seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais

(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a

doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo

princiacutepio dualista

25 As vogais e o solfejo

Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o

meacutelos (II 126-10)

Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι

λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα

τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ

μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει

23

O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a

harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que

se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo

percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e

ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos

Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo

de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I

Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de

disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute

apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma

harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo

especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das

mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder

perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o

objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e

o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir

encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)

Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς

κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ

ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ

μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον

μετεσχηκότες

A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe

tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e

masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo

intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos

gecircneros com maior ou menor intensidade

No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre

elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa

diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino (II 131-35)

Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς

πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα

πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων

ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς

ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε

τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς

ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς

μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ

συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ

9 Cf West 1994 p178

24

πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα

δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν

ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως

ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt

κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ

λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν

μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ

ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν

ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο

καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως

ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα

φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt

νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται

πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται

τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ

γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων

καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις

σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα

καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ

ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ

Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute

captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as

letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete

examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra

as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e

masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons

mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute

masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois

nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o

ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o

som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige

que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o

alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da

sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua

estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado

intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta

quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino

quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa

na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a

exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta

trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do

alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior

parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo

lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses

examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos

constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e

terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons

semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros

Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais

nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas

internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para

isso novos paracircmetros

O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio

que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou

25

fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais

vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora

a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem

interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)

estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto

importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado

designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais

satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas

Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute

Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de

masculino e feminino em si mesmas10

Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos

remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a

esfericidade da alma11

(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash

mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso

Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves

a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon

feminino) refira-se justamente a esse arredondamento

As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em

razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas

(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua

ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente

relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal

O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do

eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os

extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo

masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo

entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da

verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o

10

Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido

Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo

metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das

observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11

Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De

Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por

que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora

o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo

26

sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo

entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta

Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo

verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave

segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo

lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros

Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro

obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo

excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no

solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)

Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ

εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί

τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες

ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ

αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων

περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ

τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν

τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς

πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ

ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ

λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος

διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt

εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους

διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν

λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ

πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν

μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν

Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente

passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega

satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se

articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que

o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam

intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez

sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por

intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos

dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de

acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos

da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam

No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido

com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das

vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o

ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons

que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida

vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava

em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos

posteriormente por que isso eacute assim

A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim

ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo

27

O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de

quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de

quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores

distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12

Do grave para o agudo (ou de

cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram

denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica

(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era

acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de

um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira

(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da

uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons

ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro

tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo

(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom

O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute

justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do

tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao

ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira

(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da

sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada

μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito

formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava

formado com a nota acrescida

Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada

tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou

agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por

eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)

Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει

κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ

τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν

πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ

θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα

γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά

12

Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2

T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)

28

Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao

masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos

em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram

dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os

sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no

entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da

passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes

Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave

formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo

decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso

ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como

o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13

os rechaccedilavam por

completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14

(II 1488-90)

περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς

παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας

Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam

na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da

alma

Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos

instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo

mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes

mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais

como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se

apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta

a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo

a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as

noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura

tonal (II 1623-40)

Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα

διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ

θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος

μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα

εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν

ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ

τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ

πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν

περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον

θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον

ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι

13

Repuacuteblica 398c 14

Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)

29

δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς

τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν

οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν

ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt

Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela

sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute

feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais

do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua

tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se

descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade

e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por

gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito

debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde

participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira

participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros

intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua

natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar

cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza

iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo

interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam

familiares

No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os

instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o

dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em

que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria

dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado

por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da

muacutesica sobre a alma

O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro

245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo

ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees

superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da

regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo

anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto

ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees

hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm

pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15

15

Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida

(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a

associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre

medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente

que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento

que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a

30

Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite

(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os

nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm

unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses

nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo

masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria

Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo

residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real

manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo

um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas

entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do

universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os

planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros

26 A muacutesica das esferas

Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves

teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem

acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma

definiccedilatildeo (III 211-6)

Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν

ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ

φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον

τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν

διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει

Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o

feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e

amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o

esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de

sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo

AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero

proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute

elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza

(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas

antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura

que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo

31

Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os

planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e

femininas (III 216-40)

ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης

γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον

ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ

δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ

ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ

θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι

τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον

μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε

μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης

προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ

πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος

ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ

νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ

ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε

ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς

Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης

ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως

ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε

θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ

ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν

ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε

ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης

ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ

μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν

παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ

τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων

συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν

θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ

ἐπίπονος τὸν ἄρρενα

A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por

toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda

um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do

feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa

tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e

nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios

e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do

feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de

Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota

acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute

no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol

(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se

regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem

tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais

familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute

luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente

uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente

feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol

emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e

impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som

que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo

de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante

ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma

equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de

32

Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e

quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo

sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que

eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino

Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal

correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota

do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao

eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de

masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as

devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam

a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde

PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO

NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa

VOGAL ε α η ω α η Ω

Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a

meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o

eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe

apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por

outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela

soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim

seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo

ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas

pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo

Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco

pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter

especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a

correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e

as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como

essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda

oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de

Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido

Primeiro tetracorde Segundo tetracorde

33

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico

Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o

ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava

somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por

uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado

ou o ponto intermeacutedio

Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica

inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo

princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros

e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado

sob sua tutela

Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a

muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a

qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto

meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional

passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num

polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a

alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a

alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de

Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge

para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim

sucessivamente

Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua

organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata

da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se

reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical

os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura

da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual

o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado

primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas

mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro

torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim

dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16

16

Gueacutenon 1999 p23

34

No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser

dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de

analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre

regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos

incomensuraacuteveis

Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de

seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas

vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade

necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que

estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade

assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada

impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a

um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por

exemplo da lua e da alma

Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as

ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou

aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que

embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres

ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia

nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de

fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas

qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas

graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo

tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais

uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a

coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e

lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num

mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao

masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora

dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo

Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo

de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o

acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o

35

fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino

teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse

fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo

Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo

contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa

A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o

outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre

quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na

quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um

compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la

A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-

feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e

feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a

posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria

necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo

para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente

masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude

de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo

privativa

Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito

de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem

duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e

quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre

ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos

guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e

sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais

difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta

porosa uacutemida ou fechada

Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a

sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns

dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso

condiccedilotildees

Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo

naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem

36

necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas

se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou

outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)

Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo

condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de

fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees

associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o

caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute

necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa

objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da

mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos

dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do

iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num

patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado

intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos

individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo

Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees

de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam

somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre

esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes

noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre

relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma

espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila

Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos

loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou

analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ

ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)

A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas

relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse

processo igualmente uma relaccedilatildeo

Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et

du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee

notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas

moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux

celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou

encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de

nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui

37

exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est

en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le

plus petit comme analogue du plus grand)17

Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que

unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter

entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel

unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia

Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres

primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune

corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos

on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification

du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par

harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se

ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une

neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au

deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure

deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en

son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception

originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la

conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique

de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre

partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18

Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de

predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e

mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na

matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo

desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =

2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que

a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas

premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo

A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-

1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua

vez se apoiu em Aristoacuteteles19

) estabelece trecircs tipos de analogia20

A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o

termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo

17

Borella 2012 p23 18

Moutsopoulos 2004 p203-204 19

Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada

pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais

ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre

chez Aristote Paris PUF 1962 20

A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23

38

grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

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Page 9: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

9

ferramenta pedagoacutegica e imagem da alma e um terceiro livro no qual aborda os fundamentos

matemaacuteticos e cosmoloacutegicos dos livros anteriores ndash e como as noccedilotildees de masculino e

feminino satildeo abordadas sempre a propoacutesito mas sem ordem aparente ao longo de todos os

trecircs livros resulta absolutamente impossiacutevel natildeo avanccedilar em saltos Pretendi minimizar esse

inconveniente seguindo estritamente a ordem da exposiccedilatildeo (teria seguido a ordem das razotildees

se tivesse encontrado alguma) Tentei tambeacutem nos comentaacuterios agraves passagens preencher os

hiatos expositivos informando o contexto de onde cada passagem foi retirada

Na seleccedilatildeo das passagens a analisar foi preciso excluir algumas (natildeo muitas) cujo

conteuacutedo natildeo fosse especialmente relevante para o objetivo deste trabalho Os trechos

excluiacutedos constituem-se sobretudo de informaccedilotildees jaacute dadas ou de simples menccedilotildees dos

termos masculino e feminino Fico grato a quem me possa informar alguma omissatildeo

imperdoaacutevel

Disse acima que as noccedilotildees de masculino e feminino tecircm papel estrateacutegico no

tratado de Aristides Quintiliano Natildeo eacute sem estrateacutegia igualmente que essas noccedilotildees satildeo

apresentadas ao leitor A Q abre os capiacutetulos iniciais do livro I expondo os motivos (a

ignoracircncia e leviandade dos seus contemporacircneos com relaccedilatildeo agrave musica) e o escopo da sua

iniciativa A muacutesica para ele natildeo eacute um divertimento banal mas a ordem impliacutecita por traacutes da

natureza

Concluiacutedo o preacircmbulo ele desce das alturas e passa a tratar da muacutesica stricto

sensu No capiacutetulo 5 do livro I propotildee uma divisatildeo da mateacuteria em duas partes muacutesica praacutetica

e muacutesica teoacuterica Cada parte por sua vez eacute subdividida em duas outras A teoacuterica em muacutesica

da natureza e teacutecnica musical a praacutetica tambeacutem chamada educativa em composiccedilatildeo (ou uso)

musical e expressatildeo musical Quintiliano aborda a seguir os dois primeiros aspectos da

teacutecnica musical o ritmo e o meacutelos Eacute soacute entatildeo que menciona pela primeira vez os termos

masculino e feminino

10

2 Masculino e feminino

21 Meacutelos e rhythmoacutes

Como vimos eacute somente apoacutes ter tratado da teoria harmocircnica (Livro I caps 6-12)

e da teoria riacutetmica (caps 13-19) que A Q emprega pela primeira vez os termos ἄρρεν e θῆλυ

Diz ele (I 1925-30)

τινὲς δὲ τῶν παλαιῶν τὸν μὲν ῥυθμὸν ἄρρεν ἀπεκάλουν τὸ δὲ μέλος θῆλυ τὸ μὲν

γὰρ μέλος ἀνενέργητόν τ ἐστὶ καὶ ἀσχημάτιστον ὕλης ἐπέχον λόγον διὰ τὴν πρὸς

τοὐναντίον ἐπιτηδειότητα ὁ δὲ ῥυθμὸς πλάττει τε αὐτὸ καὶ κινεῖ τεταγμένως

ποιοῦντος λόγον ἐπέχων πρὸς τὸ ποιούμενον

Alguns dos antigos chamavam o ritmo de masculino e o meacutelos de feminino pois o

meacutelos eacute sem atualidade e sem forma possuindo o logos da mateacuteria pela sua aptidatildeo

para os contraacuterios ao passo que o ritmo move ordenadamente o meacutelos e o modela

possuindo o logos do criador com relaccedilatildeo ao que eacute criado

Evidentemente o meacutelos sem atualidade e sem forma mencionado nesta passagem

natildeo eacute exatamente o mesmo que capiacutetulos atraacutes (I 121-3) A Q definiu como meacutelos teacuteleion

ou meacutelos perfeito (aquele que combina harmonia ritmo e dicccedilatildeo) mas o meacutelos em sentido

proacuteprio (ἰδιαίτερον) e estrito um entrelaccedilamento de sons desiguais quanto agrave altura tonal isto

eacute de sons que se articulam desde a perspectiva de uma oposiccedilatildeo qualitativa de base a

oposiccedilatildeo entre grave e agudo

Tambeacutem a noccedilatildeo de ritmo eacute aqui empregada em sentido restrito e sequer

corresponde agrave totalidade daquilo que dentro do escopo da teoria musical e segundo o proacuteprio

A Q (I 1319-20) estaacute submetido agrave ordenaccedilatildeo riacutetmica os movimentos do corpo da melodia

e da dicccedilatildeo ou seja a danccedila a muacutesica e a poesia

No iniacutecio do capiacutetulo 13 Livro I A Q estabelece trecircs acepccedilotildees para o termo

ritmo conforme os objetos aos quais o termo seja aplicado Haacute assim o ritmo dos corpos

imoacuteveis o dos corpos moacuteveis e o ritmo em sentido proacuteprio (ἰδίως) que eacute o ritmo quando

aplicado agrave voz (ἐπὶ φωνῆς) ou ao som Eacute com respeito a esta uacuteltima acepccedilatildeo que diz ele (I

136-8) o ritmo se organiza segundo uma oposiccedilatildeo de estados denominados aacutersis e theacutesis

ruiacutedo e repouso (ἄρσιν καὶ θέσιν ψόφον καὶ ἠρεμίαν)

Certamente natildeo eacute coincidecircncia o fato de que cada termo da dualidade ritmo-

melodia se articule internamente tambeacutem segundo uma oposiccedilatildeo qualitativa Mais adiante

teremos ocasiatildeo de interrogar como essas (e outras) oposiccedilotildees especiacuteficas se articulam entre

si e todas por sua vez com a dualidade masculino-feminino a que A Q nos introduz

formalmente na passagem citada mas com a qual assim nos parece ele conta desde o iniacutecio

11

Em I 236-7 A Q nos daacute uma pista ao fazer da interaccedilatildeo entre os dissimilares a

condiccedilatildeo necessaacuteria de tudo o que vem a ser Embora Quintiliano nessa passagem designe

esses dissimilares (ἀνομοίων) como ldquoγεννωμένωνrdquo termo que Mathiesen (1983 p108)

traduz como ldquoprogenitoresrdquo o princiacutepio que ele aiacute enuncia natildeo poderia pela natureza do

assunto (ritmo e meacutetrica) estar circunscrito ao acircmbito exclusivo da reproduccedilatildeo sexuada

Em nota ao trecho (I 1925-30) reproduzido acima Barker (1990 p445) apoacutes

apontar a origem aristoteacutelica dos conceitos de agente e mateacuteria considera problemaacutetica a

fonte de sua associaccedilatildeo com as noccedilotildees de masculino e feminino embora essa associaccedilatildeo seja

mencionada tambeacutem em Aristoacuteteles

The terms of this distinction between matter and agent are Peripatetic and their

use here recalls Aristotles account of the male and female contributions to

reproduction (eg De Gen An 730b) Similar conceptions of the roles of melody

and rhythm are suggested by ps-Ar Probs xix49We cannot confidently identify

the origin of the application of sexual distinctions to music (used extensively by

Aristides in Book 11) and specifically of the equation of rhythm with male melody

with female such ideas may possibly be connected with the school of Damon

Colomer e Gil (1996 p96) satildeo mais especiacuteficos ao apontar uma possiacutevel origem

aristoxecircnica para a aplicaccedilatildeo das noccedilotildees aristoteacutelicas de ato e mateacuteria ao par ritmo e meacutelos

hipoacutetese que no fundo o proacuteprio Barker natildeo descarta jaacute que como diz os Elementa

Rhythmica satildeo ldquoa major source for the section on rhythmics in chs 13-19 of 12 Arist Quint

De Mus Book 1rdquo (1990 p193)

De fato nos Elementa Rhythmica (Livro II fr03) Aristoacutexeno refere-se ao ritmo e

ao ritmaacutevel (ῥυθμιζομένου) como duas naturezas especiacuteficas (δύο τινὰς φύσεις) as quais

estariam uma para outra como a forma (τὸ σχῆμα) estaacute para o que eacute formado (τὸ

σχηματιζόμενον) Aristoacutexeno eacute a princiacutepio ateacute mais abrangente que A Q jaacute que a relaccedilatildeo eacute

estendida a todos os ritmaacuteveis (corpo melodia e dicccedilatildeo) e natildeo exclusiva e especificamente ao

meacutelos Poreacutem para que natildeo haja duacutevida ele faz questatildeo de explicitar a relaccedilatildeo entre ritmo e

meacutelos ao mencionar adiante (fr04) que ldquoo mesmo [loacutegos] se aplica ao meacutelos e ao que quer

que tenha surgido para ser submetido ao ritmordquo2

Para A Q o meacutelos eacute ldquoἀσχημάτιστονrdquo3 informe para Aristoacutexeno eacute

ldquoσχηματιζόμενονrdquo algo que padece a forma Aleacutem de natildeo haver diferenccedila conceitual

2 Ὁ αὐτὸς δὲ λόγος καὶ ἐπὶ τοῦ μέλους καὶ εἴ τι ἄλλο πέφυκε ῥυθμίζεσθαι ou na traduccedilatildeo de Barker (1990

p185) ldquoThe same can be said about melody too and about anything else whose nature it is to be made rhythmic

[rhythmizesthai]rdquo 3 Quintiliano tambeacutem denomina o meacutelos ldquoἀνενέργητόνrdquo o que obviamente remete ao conceito de ato (ἐνέργεια

ou ἐντελέχεια) por oposiccedilatildeo agrave potecircncia (δuacuteναμις) termo que A Q emprega com relaccedilatildeo aos graus da escala O

12

relevante entre os dois termos ambos apontam para uma acepccedilatildeo mais abrangente e mais

primitiva do rhythmoacutes Segundo Colomer e Gil (op cit loc cit) ldquoos termos rhythmoacutes e

schecircma foram a princiacutepio quase sinocircnimos embora depois a palavra rhythmoacutes se tenha

aplicado preferencialmente agrave forma em movimento e schecircma agrave forma estaacuteticardquo Ora essa

identificaccedilatildeo originaacuteria se esclarece a primeira e a segunda acepccedilotildees atribuiacutedas por A Q ao

termo ritmo (o ritmo dos corpos imoacuteveis e dos corpos moacuteveis) igualmente demonstra a

profunda unidade que coere aquelas trecircs acepccedilotildees pois em todas predomina a ideia de uma

determinaccedilatildeo formal

Haacute no entanto apesar dos paralelismos (mesmo no tocante agrave ordem de

exposiccedilatildeo) uma diferenccedila notaacutevel entre os textos de Aristoacutexeno e de Aristides Quintiliano Eacute

que Aristoacutexeno embora visivelmente preocupado esmiuccedilar a diferenccedila entre o ritmo e os

ritmaacuteveis natildeo recore para isso agraves noccedilotildees de masculino e feminino O tratado de Aristoacutexeno

tudo indica foi uma das principais fontes dos caps 13-19 do Livro I de A Q mas certamente

natildeo foi a uacutenica

Embora como sugerem Colomer e Gil o ingresso na teoria musical dos termos

masculino e feminino possa ter tido origem damoniana (e natildeo ser portanto histoacuterica e

originalmente pitagoacuterica) natildeo haacute duacutevida de que os termos ἄρρεν e θῆλυ fazem parte do

vocabulaacuterio filosoacutefico pitagoacuterico Sabemos disso porque Aristoacuteteles (Metafiacutesica 986a25) os

elenca entre famosos dez princiacutepios pitagoacutericos Noutra passagem da Metafiacutesica (988a2-10)

em que critica a concepccedilatildeo pitagoacuterico-platocircnica da diacuteada Aristoacuteteles natildeo somente explica a

conexatildeo entre as noccedilotildees de forma e mateacuteria e o par masculino-feminino mas afirma o caraacuteter

principial deste uacuteltimo

Com efeito eles pretendem derivar da mateacuteria uma multiplicidade se

bem que a Forma soacute gere uma vez ora o que observamos eacute que a mesa eacute

feita de um pedaccedilo de mateacuteria enquanto o homem que aplica a forma

apesar de ser um faz muitas mesas E a relaccedilatildeo entre macho e fecircmea

assemelha-se a esta pois a fecircmea eacute emprenhada numa soacute coacutepula ao passo

que o macho emprenha muitas fecircmeas E todavia estes fatos satildeo imagens

daqueles primeiros princiacutepios Eis aiacute pois como se pronunciou Platatildeo

acerca destes problemas pelo que ficou ditou eacute evidente que ele usou

apenas duas causas a essencial e a material ()

Se os fatos aparentemente desconexos da reproduccedilatildeo sexuada e da fabricaccedilatildeo de

uma mesa satildeo imagens ou imitaccedilotildees (μιμήματα) daqueles princiacutepios (τῶν ἀρχῶν ἐκείνων)

isto eacute dos princiacutepios essencial e substancial ndash ou em linguagem aristoteacutelica da causa material

e da causa formal ndash natildeo somente eacute liacutecito contar com a manifestaccedilatildeo desses princiacutepios tambeacutem

fato de que na passagem em tela ele recorra ao expediente privativo em vez empregar os termos proacuteprios natildeo

obscurece a distinccedilatildeo conceitual

13

no acircmbito da muacutesica mas se torna imperioso recorrer a eles quando se deseja como deseja

Quintiliano oferecer um vislumbre do cosmo total desde o microcosmo particular da muacutesica

Eacute o que trataremos de observar a seguir

22 Corpo e alma

Apoacutes ter introduzido no fim do cap19 as noccedilotildees de masculino e feminino A Q

natildeo volta a mencionaacute-las em nenhum momento ateacute o final do Livro I Natildeo quer isso dizer

todavia que ele jaacute natildeo as leve em conta ou pelo menos que natildeo as subentenda de algum

modo Em todo caso soacute deveraacute retomaacute-las em caraacuteter expliacutecito e operativo a partir do cap8

do Livro II

Φαίνεταί μοι τοίνυν ἡ ψυχή πόρρω μὲν τῶνδε ἡνίκα ἐστὶν ὁμιλοῦσα τῷ

κρείττονι λόγῳ τε ὁμέστιος εἶναι καὶ καθαρεύειν ἐπιθυμίας ἐπὰν δὲ ἐπὶ

τάδε ἀγκλίνῃ καὶ τὴν ἐνταῦθα διατριβὴν πείρᾳ μαθεῖν ἐπιχειρήσῃ

τηνικαῦτα αὐτῇ σώματός τε ἐγγίνεται χρεία καὶ σῶμα ἐπιζητεῖ

πρόσφορον ὑπόκειται δ αὐτῇ θεωρεῖν τὴν ἐν τούτοις διπλόην

ἀρρενότητά τέ φημι καὶ θηλύτητα ἥτις οὐκ ἐν ἐμψύχοις μόνοις ἄρα ἦν

ἀλλὰ κἀν τοῖς φύσει μόνῃ διοικουμένοις φυτῶν τε ὅσα μετάλλων τε

γένη καὶ ἀρωμάτων καὶ γὰρ τούτων δυάς τις ἐπιφαίνεται ἤτοι δι

ἁπαλότητος ἢ λειότητος ἢ εὐχροίας ἢ εὐωδίας ἢ καὶ τῶν ἐναντίων τὴν

ἑτέραν ἐπιδεικνυμένων φύσιν

Parece-me de fato que a alma quando distante das coisas e em comeacutercio

com o superior coabita com a razatildeo e estaacute livre de desejos mas quando

inclina-se para as coisas daqui e intenta aprender atraveacutes da experiecircncia

um modo de existir no tempo entatildeo sendo-lhe necessaacuterio um corpo ela

busca um corpo que lhe seja adequado E eacute da natureza da alma no

tocante aos corpos atentar para a dualidade ou seja para a masculinidade

e para a feminilidade dualidade presente natildeo soacute nos corpos animados

mas tambeacutem nos governados por uma soacute natureza tais como os gecircneros

das plantas dos metais e dos aromas pois tambeacutem neles se manifesta

certa dualidade pois seja pela brandura ou pela suavidade pela bela

aparecircncia ou pelo bom odor seja pelas qualidades contraacuterias apontam

para uma ou outra natureza (II 81-12)

Uma raacutepida contextualizaccedilatildeo nos permitiraacute compreender melhor tanto esta quanto

as demais passagens do cap8 Todo o livro II eacute dedicado agravequilo que no cap5 do livro I A Q

havia definido como muacutesica praacutetica (πρακτικόν) ou educativa (παιδευτικόν) Antes poreacutem de

tratar do seu tema propriamente A Q sente a necessidade de responder agraves objeccedilotildees dos

ceacuteticos4 (dentre os quais ningueacutem menos que Ciacutecero a quem Quintiliano poreacutem hesita em

4 ldquoEacute possiacutevel que os educadores romanos pensassem como Epicuro para quem a muacutesica natildeo tinha qualquer

significado aleacutem de um jogo de sons e concordassem com Ciacutecero que afirmava lsquoque a muacutesica natildeo tem utilidade

alguma aleacutem de um prazer infantil sem valor nenhum posto que natildeo pode guiar-nos agrave felicidadersquo Segundo o

autor romano Corneacutelius Nepos do seacutec I d C lsquoningueacutem ignora que a muacutesica segundo o estado de nossos

costumes natildeo conveacutem a um personagem importantersquo apesar de ter sido levada entre os gregos como lsquodigna de

14

atribuir juiacutezos desfavoraacuteveis acerca da muacutesica) fundamentar a proacutepria ideia de uma formaccedilatildeo

moral atraveacutes da muacutesica E como a accedilatildeo da muacutesica sobre a alma depende tanto da capacidade

ativa da primeira quanto da capacidade receptiva da uacuteltima eacute por esta que ele comeccedila

A alma diz eacute responsaacutevel por dotar de certo ritmo e de ordem (ῥυθμοῦ τινος καὶ

τάξεως) as coisas deste mundo (τῶν ἐνθαδί) Poderiacuteamos dizer embora Quintiliano natildeo o faccedila

aqui explicitamente que a alma portanto eacute masculina em relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Mas

para que possa ser isso eacute preciso que natildeo seja apenas isso De fato diz A Q a alma natildeo

possui uma natureza ou potecircncia uacutenica (οὐδὲ τῶν μονήρη τινὰ φύσιν ἢ δύναμιν ἐχόντων) mas

certa natureza dupla (διπλῆς τινος φύσεως)

A duplicidade da alma consiste em ter sido dotada pelo administrador de todas as

coisas (ὁ τὸ σύπαν διοικῶν) de uma substacircncia divina na qual habita a razatildeo (λoacuteγος) e de

uma substacircncia mundana ou irracional (ἄλογος) na qual habita o desejo (ἐπιθυμία) As duas

naturezas ou potecircncias satildeo necessaacuterias para que a alma atue sobre o mundo corpoacutereo e essa

natureza duacuteplice sem a qual ela seria ineficaz pode-se definir assim a alma soacute eacute ativa em

relaccedilatildeo ao mundo corpoacutereo na medida em que eacute passiva em relaccedilatildeo ao mundo racional Ora a

muacutesica diz Quintiliano no iniacutecio do cap3 do livro II estaacute para a alma irracional assim como a

filosofia estaacute para a alma racional Desse modo ao submeter-se agrave muacutesica a alma irracional

submete-se igualmente agrave razatildeo pois a muacutesica eacute no fundo razatildeo transformada em mateacuteria

sensiacutevel tal como a alma mesma

Isso poreacutem natildeo eacute tudo Entre as duas naturezas da alma haacute um ponto intermeacutedio

que ao submeter o desejo agrave razatildeo confere unidade agraves duas metades Esse ponto intermeacutedio eacute

a memoacuteria (μνήμη) Memoacuteria eacute claro das belezas eternas do mundo suprassensiacutevel5 Desse

modo o dualismo aniacutemico resolve-se num elemento intermediaacuterio resultante da interaccedilatildeo

entre os polos extremos com os quais forma afinal uma triacuteade

Paralelamente a alma (tomada como unidade natildeo mais segundo a interaccedilatildeo das

suas partes) sendo a um soacute tempo ativa (frente ao mundo sensiacutevel) e passiva (perante o

mundo racional) eacute ela proacutepria um ponto intermeacutedio resultante da interaccedilatildeo entre polos

opostos com os quais por sua vez tambeacutem compotildee uma triacuteade As partes e o todo o

microcosmo e macrocosmo assim espelham-se mutuamente

consideraccedilatildeo e estimarsquo rdquo CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-

kagathiacutea Classica (Brasil) 2412 73-85 2011 5 Mesmo se desconsiderarmos esse elemento doutrinal platocircnico a memoacuteria seria ainda uma bela e eficaz

imagem da uniatildeo entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo pois a memoacuteria eacute uma operaccedilatildeo estritamente mental cujos

objetos no entanto satildeo todos oriundos da experiecircncia sensiacutevel

15

Mas a porccedilatildeo desejante (ou irracional) da alma possui igualmente as suas partes

A Q as denomina desejante (ἐπιθυμητική) a qual tende ao relaxamento (ou relaxaccedilatildeo

indulgecircncia) excessivo e impulsiva (θυμικὴ) que tende a uma tensatildeo igualmente desmedida

Fica claro desde logo embora Quintiliano reserve esse comentaacuterio para mais adiante que as

duas porccedilotildees da alma irracional formam uma oposiccedilatildeo do tipo ativo-passivo ou masculino-

feminino restando saber qual seria nesse caso o ponto intermeacutedio

O ponto intermeacutedio satildeo dois por um lado (e acima) a proacutepria porccedilatildeo racional da

alma que eacute inteiriccedila e natildeo se constitui de partes por outro (e abaixo) as paixotildees que resultam

(como A Q descreveraacute a seguir) da mescla entre as potecircncias ativa e passiva da alma As

triacuteades formadas portanto satildeo tambeacutem duas mas de tipos diferentes numa o ponto

intermeacutedio estaacute hierarquicamente acima dos termos opostos noutra hierarquicamente abaixo

A razatildeo da eficaacutecia persuasiva da muacutesica sobre a alma irracional reside

argumenta Quintiliano nas peculiaridades do seu aparato mimeacutetico que lhe permite produzir

a imitaccedilatildeo com mateacuteria similar agrave do objeto imitado Curiosamente esse aparato mimeacutetico eacute

tambeacutem triaacutedico pois a muacutesica imita6 os eacutethe e as paixotildees da alma com os conceitos

(ἐννοίαις) as palavras com as harmonias e a modulaccedilatildeo da voz (ἁρμονίαις καὶ φωνῆς

πλάσει) e a accedilatildeo com os ritmos e o movimento do corpo (ῥυθμοῖς καὶ κινήσει σώματος) A

muacutesica portanto abarca o universo inteiro da accedilatildeo humana desde o seu nascedouro (nos

movimentos afetivos e intelectuais da alma) ateacute sua exteriorizaccedilatildeo em forma de atos e

palavras

Ora sendo a muacutesica sobretudo uma terapia das paixotildees da alma (παθῶν ψυχικῶν

θεραπεία) cabe ao conceito (que siacutentese do conteuacutedo racional a transmitir e da impressatildeo

esteacutetico-emocional a causar estaacute relacionado ao movimentos internos da alma de onde brotam

as accedilotildees) o papel de guiar os elementos do meacutelos perfeito (dicccedilatildeo harmonia e ritmo) O cap8

e os seguintes a comeccedilar pelo trecho acima citado satildeo dedicados justamente a explicar

primeiro como se geram as paixotildees da alma e depois como a muacutesica eacute capaz de imitaacute-las e

de nelas intervir

De iniacutecio A Q trata da dualidade masculino-feminino como uma particularidade

do mundo corpoacutereo a que a alma tem de se submeter Reforccedila o caraacuteter especificamente

corpoacutereo dessa dualidade o fato de que ela natildeo se manifeste apenas em corpos animados (οὐκ

ἐν ἐμψύχοις μόνοις) mas tambeacutem em corpos governados por uma soacute natureza (ἀλλὰ κἀν τοῖς

φύσει μόνῃ διοικουμένοις) Essa observaccedilatildeo parece decorrer da necessidade de distinguir a jaacute

6 II 438-40

16

mencionada duplicidade da alma (razatildeo por que seria natural esperar que somente os corpos

animados estivessem submetidos agrave dualidade a dualidade ao menos entre corpo e alma) do

dualismo propriamente corpoacutereo Em todo caso embora tipicamente corpoacuterea a dualidade

masculino-feminino tambeacutem aqui natildeo se restringe ao fenocircmeno bioloacutegico da diferenciaccedilatildeo

sexual Aleacutem disso essa dualidade natildeo corresponde exatamente a duas espeacutecies opostas de

seres mas a dois polos de um eixo que atravessa de ponta a ponta o mundo corpoacutereo

alcanccedilando portanto e internamente todos os seres nele existentes Desse modo cada ente

particular pode ser tomado como uma resultante da interaccedilatildeo entre os dois princiacutepios em

relaccedilatildeo aos quais ele estabelece por sua vez um ponto intermeacutedio isto eacute uma mescla E eacute

precisamente na produccedilatildeo dessa mescla que o dualismo aniacutemico e o dualismo corpoacutereo se

articulam (II 816-28)

οὐ μόνον οὖν ἐφίεται σώματος ἀλλὰ καὶ τούτου ποιοῦ τινος ἢ γὰρ ἄρρεν

ἠγάπηκεν ἢ θῆλυ καὶ τούτων ὁτὲ μὲν ἄκρατον θάτερον ὁτὲ δὲ ἐξ ἀμφοῖν

ἔχον δεινήν τινα καὶ ὄντως ἄτοπον μίξιν αὐτίκα κἂν μὴ φύσει τοῦ

τοιούτου τύχωσι σώματος αὐταὶ ταῖς σφετέραις τροπαῖς μετερρύθμισάν

τε καὶ ἐς τὸ αὑταῖς ὅμοιον μετέστησαν οὕτως ἐν μὲν ἄρρεσι θῆλυς

ἐπιτρέχει μορφή δι ἣν καὶ ὁ βίος ὦπται τοιοῦτος ἐν δὲ γυναιξὶν ἀνδρεῖον

εἶδος ᾧ καὶ τὸ ἦθος ὅμοιον τεκμαιρόμεθα καὶ ἄνδρες μὴν ἀγένειοι καὶ

γενειάσκουσι γυναῖκες καί τις ἄρρην ἔβλεψεν ὑγρὸν καὶ γυναῖκες γοργὸν

προσεῖδον ὥστε καὶ τῶν ἠθῶν ἕκαστα θηράσεις ἑκάστῃ μορφῇ συνῳδά

A alma portanto natildeo soacute deseja um corpo mas certo tipo de corpo um

corpo masculino ou um corpo feminino Deseja dentre esses agraves vezes um

corpo puro de um tipo ou de outro agraves vezes um corpo que possua uma

curiosa e paradoxal mistura de ambos Assim quando natildeo conseguem

obter naturalmente esse determinado corpo as almas o remodelam

mediante torneios e o transformam em algo semelhante a si mesmas

Dessa forma sobre um corpo masculino recai uma forma feminina (razatildeo

por que tambeacutem sua vida assim se mostra) ou ainda sobre um corpo

feminino uma forma masculina no que tambeacutem assinalamos um eacutethos

similar Haacute homens imberbes e mulheres barbadas homens de lacircnguido

olhar e mulheres com mirada de Goacutergona de modo que cada eacutethos veraacutes

corresponde a uma fisionomia

Uma vez estabelecido o princiacutepio de que o dualismo aniacutemico de algum modo rege

o dualismo corpoacutereo A Q sente-se agrave vontade para tratar de um nos termos do outro

recorrendo para isso aos termos masculino e feminino (II 828-39)

ἐκ δὲ τῆς πρὸς τὸ ἄρρεν ἢ θῆλυ προσπαθείας ἢ πρὸς ἀμφότερον τὰ πάθη

συνίσταται περὶ ψυχήν τὸ μὲν οὖν θῆλυ λίαν ἀνειμένον ᾧ συνᾴδει τὸ

ἐπιθυμητικόν τὸ δ ἄρρεν σφοδρόν τε καὶ δραστήριον ᾧ τὸ θυμικὸν

ὡμοίωται περὶ μὲν οὖν τὸ θῆλυ ψυχῆς τε μέρος καὶ ἀνθρώπων γένος

πλεονάζουσι λῦπαι τε καὶ ἡδοναί περὶ δὲ τὸ ἄρρεν ὀργὴ καὶ θράσος

πάλιν δὲ τούτων γίνονται συζυγίαι λυπῶν τε πρὸς ἡδονὰς καὶ ὀργῆς πρὸς

θράσος καὶ θράσους πρὸς ἡδονὴν καὶ λύπην καὶ ὀργῆς αὖθις πρὸς

ἑκάτερον καὶ πάλιν ἑκάστου πρός τε ἓν καὶ πρὸς πλείω μίξεις καὶ μυρίας

ἄν τις ἐκ τούτων εὕροι τῶν παθῶν εἰκόνας ἐν ποικιλίᾳ θεωρουμένων

17

Conforme o apego ao masculino ao feminino ou a ambos estabelecem-se

as paixotildees da alma O feminino eacute demasiado indulgente e com ele

concorda a alma desejante ao passo que o masculino semelhante agrave alma

impulsiva eacute veemente e ativo Assim tanto na parte feminina da alma

quanto na parcela feminina da humanidade abundam os prazeres e as

dores ao passo que na masculina a ira e a coragem E uma vez mais

datildeo-se combinaccedilotildees entre essas paixotildees das dores com os prazeres da ira

com a coragem da coragem com o prazer e a dor ou da ira novamente

com as demais e ainda de uma com outra qualquer ou com vaacuterias A

partir dessas seria possiacutevel encontrar uma miriacuteade de imagens das

paixotildees em vista da sua variedade

Se a alma por um lado submete o mundo corpoacutereo este por sua vez a espelha

macrocosmicamente nela interferindo mediante interaccedilotildees simpaacuteticas a exemplo do que

ocorre na muacutesica No entanto natildeo satildeo apenas as disposiccedilotildees passivas ou paixotildees que

estabelecem pontes entre a alma e a realidade corpoacuterea Tambeacutem as disposiccedilotildees ativas e

intelectivas estatildeo submetidas ao dualismo masculino-feminino (II 848-69)

ἔστι γὰρ πρῶτον μὲν ἐν ὁρατοῖς ἑκατέραν ἰδεῖν τὴν φύσιν τὸ μὲν

ἀνθηρόν τε καὶ ἐς ὡραϊσμὸν προςφυὲς χρῶμά τε καὶ σχῆμα διαιροῦντα

θηλύτητι τὸ δὲ στυγνόν τε καὶ ἐς σύννοιαν ἄγον ἀρρενότητι πάλιν δὲ ἐν

ἀκοαῖς τοὺς μὲν λείους καὶ προσηνεῖς ἤχους ἐς τὸ θῆλυ τοὺς δὲ

τραχυτέρους εἰς τοὐναντίον ἁρμόττοντα καί ἵνα μὴ τὰ καθ ἕκαστον

λέγω κοινῶς περὶ πάντων ἀποφαντέον ὡς ὅσα μὲν τῶν αἰσθητῶν ἔς τε

ἡδονὴν δελεάζει καὶ ἠρέμα διαχεῖν τὴν γνώμην πέφυκε ταῦτα εἰς τὸ θῆλυ

κριτέον ὅσα δὲ κινεῖ τε εἰς σύννοιαν καὶ ἐγείρει τὸ δραστήριον ταῦτα εἰς

τὴν ἄρρενος μοῖραν ἀπονεμητέον τὰ δέ τοι μηδέτερον ἢ κατὰ μίξιν ἄμφω

δρῶντα ταῦτα τῶν μέσων ἀποφαντέον κατὰ δὴ ταῦτα καὶ περὶ ἐκείνων

λέγωμεν αἳ λόγῳ μέν εἰσι καταληπταὶ τέχναι τε καὶ ἀρεταὶ καὶ ἐπιστῆμαι

ἐκ δὲ τῆς τῶν ὑλῶν ποιότητος περὶ ἃς ἑκάστη τευτάζει τὰς πρὸς ἀλλήλας

διαφορὰς καὶ ὁμοιότητας εἰλήχασιν αἵ τε ἀρεταὶ πρὸς τὰς ἀρετὰς αἵ τε

ἐπιστῆμαι πρὸς τὰς ἐπιστήμας κακίαι τε αὖ πρὸς κακίας καὶ

ἀνεπιστημοσύναι πρὸς ἀμαθίας πάλιν δὲ ἀρεταὶ πρὸς κακίας ἢ ἐπιστήμας

ἢ ἀγνωσίας κακίαι τε αὖ πρὸς τὰς εἰρημένας ποικίλης τινὸς καὶ τῆς κατὰ

ταῦτα πλοκῆς τε οὔσης καὶ μίξεως

A princiacutepio eacute de fato possiacutevel identificar nos objetos visiacuteveis cada

natureza separadamente atribuindo o florido e as formas e cores

decorativas ao feminino e as sombrias e que conduzem agrave reflexatildeo ao

masculino e o mesmo para as coisas audiacuteveis relacionando os sons

suaves e doces ao feminino e os mais aacutesperos ao seu oposto E para que

eu natildeo entre aqui em detalhes eacute preciso dizer que no geral as coisas

sensiacuteveis que induzem ao prazer e que natural e docemente dissolvem o

juiacutezo estas se devem considerar femininas ao passo que aquelas que nos

levam agrave reflexatildeo ou promovem a accedilatildeo se devem designar masculinas Jaacute

aquelas que natildeo atuam nem de uma nem de outra maneira ou o faccedilam

segundo uma mescla de ambas estas se hatildeo de chamar intermediaacuterias

Disso decorre que falemos nos mesmos termos a respeito tambeacutem das

coisas apreendidas pela razatildeo ndash as artes as virtudes e as ciecircncias ndash as

quais devem suas semelhanccedilas e diferenccedilas muacutetuas aos assuntos de que se

ocupam as virtudes no tocante agraves virtudes e as ciecircncias no tocante agraves

ciecircncias e por seu turno os viacutecios no que diz respeito aos viacutecios e a

incultura com respeito agraves ignoracircncias e ainda virtudes com respeito aos

viacutecios ciecircncias ou ignoracircncias e os viacutecios com respeito estes todos

sendo possiacutevel certa combinaccedilatildeo e mescla dessas coisas

18

Cabe observar como A Q ao traccedilar um perfil do masculino e do feminino natildeo

oferece uma lista de entes individuais mas um elenco geneacuterico de qualidades sensiacuteveis das

quais ele passa sem maior detenccedila para o toacutepico das naturezas intermediaacuterias em que estatildeo

incluiacutedas as artes as ciecircncias e as virtudes A menccedilatildeo agraves artes ciecircncias e virtudes eacute

importante neste momento porque uma vez explicado o processo pelo qual atraveacutes de

mesclas dos princiacutepios masculino e feminino satildeo engendradas as paixotildees da alma

Quintiliano deve agora retomar o fio da exposiccedilatildeo e mostrar como a muacutesica por meio de

conceitos palavras ritmos e melodias eacute capaz de imitar essas mesmas paixotildees virtudes

viacutecios etc comunicando agrave alma o respectivo eacutethos Eacute o que faraacute no restante do livro II

23 Os conceitos

No iniacutecio do cap9 A Q retoma o tema dos conceitos com o qual tinha

concluiacutedo o cap7 antes da relativamente longa mas necessaacuteria digressatildeo acerca das paixotildees

da alma O propoacutesito do autor eacute demonstrar como um poeta eacute capaz de transmitir os conceitos

que deseje mediante o emprego de certos procedimentos retoacutericos A Q utiliza exemplos

extraiacutedos de Homero nos quais aponta como o poeta mesclando traccedilos masculinos e

femininos consegue traduzir em palavras uma gama complexa de impressotildees desde

sensaccedilotildees fiacutesicas como rapidez suavidade ou agitaccedilatildeo ateacute caracteres ou julgamentos morais

Esse conceitos (ἐννοήματα) compostos de traccedilos masculinos e femininos ndash conceitos que por

sua vez entram na composiccedilatildeo eacutetica das frases e dos discursos ndash A Q os compara aos

extratos dos quais satildeo feitos os remeacutedios7 e conclui (II 103-18)

τὰ μὲν οὖν ἐς ἄνεσιν ἄγοντα καὶ φαιδρότητα τὸν ἀφελῆ τε καὶ ἡδὺν λόγον

ἐγέννησε τὰ δὲ τὸ σύννουν κινοῦντα καὶ τὸ ὁρμητικὸν τὸν πολιτικόν τε

καὶ ἀγωνιστικὸν ἐξέφηνεν τοῦ μὲν οὖν πολιτικοῦ κατὰ τὸ ἄρρεν τὰ εἴδη

συντομίαι τε καὶ βραχύτητες καὶ ἀξίωμα καὶ μεγαλοπρέπεια τραχύτης τε

καὶ σφοδρότης καὶ μέγεθος καὶ μεστότης ἅπερ τήν τε φυσικὴν ἐμφαίνει

μεγαλόνοιαν τοῦ ἄρρενος μέγεθός τε σώματος καὶ ἁδροτῆτα διανοίας καὶ

τὸ ἐς τὰ μέγιστα τῶν ἔργων ἀνυτικὸν τάχος τοῦ δὲ ἀφελοῦς ἀραιότης

ἁβρότης κάλλη τε καὶ γλυκύτητες ὧν τὰ μὲν τὸ ἀνειμένον τοῦ θήλεος τὰ

δὲ τὸ ἐς ὡραϊσμὸν διαδείκνυσιν ἐπτοημένον γένοιτο δ ἄν τι καὶ τῇ

τούτων πλοκῇ οἷον ἡ δριμύτης τὸ μὲν τάχος ὡς ἄρρεν τὸ δὲ

μικροπρεπὲς ὡς ἐναντίον ἐπιφαίνουσα ἥ τ ἐπιμέλεια τὸ μὲν γλίσχρον

ἔχουσα κατὰ τὸ θῆλυ τὸ δὲ τῆς φιλοπονίας παρεκτεταμένον ὡς ἄρρεν

Assim os conceitos que levam agrave descontraccedilatildeo e agrave alegria produzem uma

frase despojada e doce enquanto os conceitos que mobilizam as partes

intelectiva e impulsiva produzem a frase contenciosa e poliacutetica Os traccedilos

da frase poliacutetica relacionados ao masculino satildeo concisatildeo brevidade

dignidade e elevaccedilatildeo assim como aspereza forccedila grandeza e

completude traccedilos que mostram a grandiosidade natural do masculino a

7 Uma comparaccedilatildeo semelhante jaacute tinha sido feita em II 47-12

19

magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores

trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e

doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros

a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a

exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e

atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade

como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo

masculino

Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem

duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel

Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade

contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de

masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e

mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos

interessa aqui compreender

Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase

feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por

ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por

ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo

como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa

ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de

desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo

remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na

disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma

Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que

poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade

seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma

caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel

quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a

porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade

contradiccedilatildeo alguma

No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a

capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente

aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam

o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante

uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses

materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes

20

Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro

tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais

duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do

diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons

livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma

martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente

tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade

Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a

accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua

presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No

capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a

dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do

discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto

24 As letras

Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto

καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων

γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς

φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς

τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον

ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως

περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων

ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων

τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ

ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε

πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ

ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα

μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν

χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον

ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς

ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς

τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον

διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως

τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν

ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων

κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος

ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ

τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως

eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo

de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais

outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como

as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido

satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que

limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves

enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade

21

temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo

dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo

que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente

eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o

lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute

atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por

sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a

passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes

outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se

com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar

jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua

a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio

das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona

ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o

emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito

aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias

e possuem ambas as naturezas

A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo

primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso

masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais

Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da

classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam

espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo

das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as

consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto

consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as

consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave

nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na

sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz

respeito agraves letras8

As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo

claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que

pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo

Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das

vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de

assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as

quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das

letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes

8 Cf Chapanski 2003 p 22-24

22

Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes

que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais

proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias

enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais

proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em

relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade

As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de

articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua

vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto

meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais

tau delta e theta As guturais capa gama e khi

Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como

ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo

que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as

surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste

em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de

separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas

silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)

seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as

consoantes o polo essencial (formal ou masculino)

AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo

seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais

(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a

doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo

princiacutepio dualista

25 As vogais e o solfejo

Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o

meacutelos (II 126-10)

Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι

λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα

τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ

μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει

23

O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a

harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que

se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo

percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e

ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos

Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo

de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I

Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de

disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute

apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma

harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo

especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das

mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder

perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o

objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e

o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir

encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)

Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς

κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ

ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ

μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον

μετεσχηκότες

A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe

tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e

masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo

intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos

gecircneros com maior ou menor intensidade

No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre

elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa

diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino (II 131-35)

Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς

πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα

πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων

ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς

ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε

τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς

ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς

μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ

συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ

9 Cf West 1994 p178

24

πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα

δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν

ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως

ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt

κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ

λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν

μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ

ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν

ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο

καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως

ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα

φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt

νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται

πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται

τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ

γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων

καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις

σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα

καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ

ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ

Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute

captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as

letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete

examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra

as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e

masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons

mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute

masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois

nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o

ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o

som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige

que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o

alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da

sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua

estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado

intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta

quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino

quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa

na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a

exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta

trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do

alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior

parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo

lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses

examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos

constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e

terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons

semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros

Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais

nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas

internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para

isso novos paracircmetros

O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio

que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou

25

fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais

vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora

a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem

interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)

estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto

importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado

designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais

satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas

Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute

Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de

masculino e feminino em si mesmas10

Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos

remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a

esfericidade da alma11

(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash

mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso

Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves

a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon

feminino) refira-se justamente a esse arredondamento

As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em

razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas

(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua

ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente

relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal

O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do

eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os

extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo

masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo

entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da

verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o

10

Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido

Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo

metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das

observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11

Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De

Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por

que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora

o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo

26

sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo

entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta

Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo

verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave

segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo

lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros

Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro

obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo

excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no

solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)

Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ

εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί

τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες

ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ

αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων

περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ

τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν

τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς

πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ

ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ

λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος

διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt

εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους

διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν

λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ

πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν

μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν

Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente

passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega

satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se

articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que

o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam

intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez

sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por

intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos

dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de

acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos

da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam

No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido

com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das

vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o

ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons

que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida

vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava

em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos

posteriormente por que isso eacute assim

A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim

ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo

27

O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de

quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de

quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores

distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12

Do grave para o agudo (ou de

cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram

denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica

(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era

acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de

um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira

(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da

uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons

ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro

tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo

(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom

O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute

justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do

tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao

ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira

(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da

sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada

μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito

formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava

formado com a nota acrescida

Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada

tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou

agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por

eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)

Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει

κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ

τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν

πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ

θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα

γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά

12

Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2

T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)

28

Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao

masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos

em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram

dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os

sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no

entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da

passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes

Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave

formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo

decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso

ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como

o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13

os rechaccedilavam por

completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14

(II 1488-90)

περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς

παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας

Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam

na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da

alma

Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos

instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo

mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes

mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais

como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se

apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta

a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo

a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as

noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura

tonal (II 1623-40)

Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα

διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ

θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος

μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα

εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν

ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ

τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ

πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν

περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον

θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον

ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι

13

Repuacuteblica 398c 14

Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)

29

δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς

τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν

οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν

ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt

Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela

sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute

feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais

do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua

tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se

descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade

e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por

gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito

debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde

participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira

participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros

intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua

natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar

cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza

iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo

interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam

familiares

No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os

instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o

dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em

que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria

dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado

por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da

muacutesica sobre a alma

O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro

245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo

ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees

superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da

regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo

anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto

ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees

hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm

pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15

15

Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida

(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a

associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre

medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente

que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento

que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a

30

Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite

(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os

nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm

unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses

nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo

masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria

Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo

residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real

manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo

um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas

entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do

universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os

planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros

26 A muacutesica das esferas

Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves

teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem

acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma

definiccedilatildeo (III 211-6)

Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν

ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ

φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον

τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν

διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει

Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o

feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e

amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o

esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de

sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo

AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero

proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute

elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza

(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas

antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura

que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo

31

Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os

planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e

femininas (III 216-40)

ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης

γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον

ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ

δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ

ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ

θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι

τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον

μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε

μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης

προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ

πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος

ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ

νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ

ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε

ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς

Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης

ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως

ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε

θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ

ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν

ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε

ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης

ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ

μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν

παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ

τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων

συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν

θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ

ἐπίπονος τὸν ἄρρενα

A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por

toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda

um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do

feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa

tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e

nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios

e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do

feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de

Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota

acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute

no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol

(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se

regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem

tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais

familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute

luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente

uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente

feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol

emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e

impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som

que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo

de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante

ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma

equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de

32

Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e

quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo

sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que

eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino

Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal

correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota

do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao

eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de

masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as

devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam

a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde

PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO

NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa

VOGAL ε α η ω α η Ω

Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a

meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o

eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe

apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por

outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela

soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim

seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo

ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas

pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo

Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco

pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter

especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a

correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e

as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como

essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda

oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de

Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido

Primeiro tetracorde Segundo tetracorde

33

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico

Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o

ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava

somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por

uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado

ou o ponto intermeacutedio

Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica

inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo

princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros

e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado

sob sua tutela

Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a

muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a

qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto

meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional

passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num

polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a

alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a

alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de

Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge

para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim

sucessivamente

Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua

organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata

da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se

reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical

os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura

da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual

o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado

primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas

mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro

torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim

dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16

16

Gueacutenon 1999 p23

34

No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser

dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de

analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre

regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos

incomensuraacuteveis

Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de

seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas

vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade

necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que

estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade

assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada

impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a

um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por

exemplo da lua e da alma

Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as

ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou

aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que

embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres

ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia

nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de

fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas

qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas

graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo

tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais

uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a

coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e

lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num

mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao

masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora

dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo

Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo

de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o

acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o

35

fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino

teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse

fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo

Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo

contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa

A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o

outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre

quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na

quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um

compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la

A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-

feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e

feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a

posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria

necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo

para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente

masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude

de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo

privativa

Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito

de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem

duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e

quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre

ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos

guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e

sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais

difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta

porosa uacutemida ou fechada

Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a

sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns

dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso

condiccedilotildees

Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo

naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem

36

necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas

se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou

outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)

Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo

condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de

fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees

associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o

caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute

necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa

objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da

mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos

dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do

iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num

patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado

intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos

individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo

Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees

de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam

somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre

esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes

noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre

relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma

espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila

Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos

loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou

analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ

ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)

A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas

relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse

processo igualmente uma relaccedilatildeo

Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et

du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee

notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas

moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux

celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou

encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de

nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui

37

exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est

en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le

plus petit comme analogue du plus grand)17

Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que

unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter

entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel

unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia

Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres

primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune

corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos

on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification

du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par

harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se

ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une

neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au

deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure

deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en

son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception

originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la

conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique

de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre

partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18

Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de

predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e

mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na

matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo

desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =

2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que

a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas

premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo

A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-

1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua

vez se apoiu em Aristoacuteteles19

) estabelece trecircs tipos de analogia20

A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o

termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo

17

Borella 2012 p23 18

Moutsopoulos 2004 p203-204 19

Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada

pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais

ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre

chez Aristote Paris PUF 1962 20

A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23

38

grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

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Page 10: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

10

2 Masculino e feminino

21 Meacutelos e rhythmoacutes

Como vimos eacute somente apoacutes ter tratado da teoria harmocircnica (Livro I caps 6-12)

e da teoria riacutetmica (caps 13-19) que A Q emprega pela primeira vez os termos ἄρρεν e θῆλυ

Diz ele (I 1925-30)

τινὲς δὲ τῶν παλαιῶν τὸν μὲν ῥυθμὸν ἄρρεν ἀπεκάλουν τὸ δὲ μέλος θῆλυ τὸ μὲν

γὰρ μέλος ἀνενέργητόν τ ἐστὶ καὶ ἀσχημάτιστον ὕλης ἐπέχον λόγον διὰ τὴν πρὸς

τοὐναντίον ἐπιτηδειότητα ὁ δὲ ῥυθμὸς πλάττει τε αὐτὸ καὶ κινεῖ τεταγμένως

ποιοῦντος λόγον ἐπέχων πρὸς τὸ ποιούμενον

Alguns dos antigos chamavam o ritmo de masculino e o meacutelos de feminino pois o

meacutelos eacute sem atualidade e sem forma possuindo o logos da mateacuteria pela sua aptidatildeo

para os contraacuterios ao passo que o ritmo move ordenadamente o meacutelos e o modela

possuindo o logos do criador com relaccedilatildeo ao que eacute criado

Evidentemente o meacutelos sem atualidade e sem forma mencionado nesta passagem

natildeo eacute exatamente o mesmo que capiacutetulos atraacutes (I 121-3) A Q definiu como meacutelos teacuteleion

ou meacutelos perfeito (aquele que combina harmonia ritmo e dicccedilatildeo) mas o meacutelos em sentido

proacuteprio (ἰδιαίτερον) e estrito um entrelaccedilamento de sons desiguais quanto agrave altura tonal isto

eacute de sons que se articulam desde a perspectiva de uma oposiccedilatildeo qualitativa de base a

oposiccedilatildeo entre grave e agudo

Tambeacutem a noccedilatildeo de ritmo eacute aqui empregada em sentido restrito e sequer

corresponde agrave totalidade daquilo que dentro do escopo da teoria musical e segundo o proacuteprio

A Q (I 1319-20) estaacute submetido agrave ordenaccedilatildeo riacutetmica os movimentos do corpo da melodia

e da dicccedilatildeo ou seja a danccedila a muacutesica e a poesia

No iniacutecio do capiacutetulo 13 Livro I A Q estabelece trecircs acepccedilotildees para o termo

ritmo conforme os objetos aos quais o termo seja aplicado Haacute assim o ritmo dos corpos

imoacuteveis o dos corpos moacuteveis e o ritmo em sentido proacuteprio (ἰδίως) que eacute o ritmo quando

aplicado agrave voz (ἐπὶ φωνῆς) ou ao som Eacute com respeito a esta uacuteltima acepccedilatildeo que diz ele (I

136-8) o ritmo se organiza segundo uma oposiccedilatildeo de estados denominados aacutersis e theacutesis

ruiacutedo e repouso (ἄρσιν καὶ θέσιν ψόφον καὶ ἠρεμίαν)

Certamente natildeo eacute coincidecircncia o fato de que cada termo da dualidade ritmo-

melodia se articule internamente tambeacutem segundo uma oposiccedilatildeo qualitativa Mais adiante

teremos ocasiatildeo de interrogar como essas (e outras) oposiccedilotildees especiacuteficas se articulam entre

si e todas por sua vez com a dualidade masculino-feminino a que A Q nos introduz

formalmente na passagem citada mas com a qual assim nos parece ele conta desde o iniacutecio

11

Em I 236-7 A Q nos daacute uma pista ao fazer da interaccedilatildeo entre os dissimilares a

condiccedilatildeo necessaacuteria de tudo o que vem a ser Embora Quintiliano nessa passagem designe

esses dissimilares (ἀνομοίων) como ldquoγεννωμένωνrdquo termo que Mathiesen (1983 p108)

traduz como ldquoprogenitoresrdquo o princiacutepio que ele aiacute enuncia natildeo poderia pela natureza do

assunto (ritmo e meacutetrica) estar circunscrito ao acircmbito exclusivo da reproduccedilatildeo sexuada

Em nota ao trecho (I 1925-30) reproduzido acima Barker (1990 p445) apoacutes

apontar a origem aristoteacutelica dos conceitos de agente e mateacuteria considera problemaacutetica a

fonte de sua associaccedilatildeo com as noccedilotildees de masculino e feminino embora essa associaccedilatildeo seja

mencionada tambeacutem em Aristoacuteteles

The terms of this distinction between matter and agent are Peripatetic and their

use here recalls Aristotles account of the male and female contributions to

reproduction (eg De Gen An 730b) Similar conceptions of the roles of melody

and rhythm are suggested by ps-Ar Probs xix49We cannot confidently identify

the origin of the application of sexual distinctions to music (used extensively by

Aristides in Book 11) and specifically of the equation of rhythm with male melody

with female such ideas may possibly be connected with the school of Damon

Colomer e Gil (1996 p96) satildeo mais especiacuteficos ao apontar uma possiacutevel origem

aristoxecircnica para a aplicaccedilatildeo das noccedilotildees aristoteacutelicas de ato e mateacuteria ao par ritmo e meacutelos

hipoacutetese que no fundo o proacuteprio Barker natildeo descarta jaacute que como diz os Elementa

Rhythmica satildeo ldquoa major source for the section on rhythmics in chs 13-19 of 12 Arist Quint

De Mus Book 1rdquo (1990 p193)

De fato nos Elementa Rhythmica (Livro II fr03) Aristoacutexeno refere-se ao ritmo e

ao ritmaacutevel (ῥυθμιζομένου) como duas naturezas especiacuteficas (δύο τινὰς φύσεις) as quais

estariam uma para outra como a forma (τὸ σχῆμα) estaacute para o que eacute formado (τὸ

σχηματιζόμενον) Aristoacutexeno eacute a princiacutepio ateacute mais abrangente que A Q jaacute que a relaccedilatildeo eacute

estendida a todos os ritmaacuteveis (corpo melodia e dicccedilatildeo) e natildeo exclusiva e especificamente ao

meacutelos Poreacutem para que natildeo haja duacutevida ele faz questatildeo de explicitar a relaccedilatildeo entre ritmo e

meacutelos ao mencionar adiante (fr04) que ldquoo mesmo [loacutegos] se aplica ao meacutelos e ao que quer

que tenha surgido para ser submetido ao ritmordquo2

Para A Q o meacutelos eacute ldquoἀσχημάτιστονrdquo3 informe para Aristoacutexeno eacute

ldquoσχηματιζόμενονrdquo algo que padece a forma Aleacutem de natildeo haver diferenccedila conceitual

2 Ὁ αὐτὸς δὲ λόγος καὶ ἐπὶ τοῦ μέλους καὶ εἴ τι ἄλλο πέφυκε ῥυθμίζεσθαι ou na traduccedilatildeo de Barker (1990

p185) ldquoThe same can be said about melody too and about anything else whose nature it is to be made rhythmic

[rhythmizesthai]rdquo 3 Quintiliano tambeacutem denomina o meacutelos ldquoἀνενέργητόνrdquo o que obviamente remete ao conceito de ato (ἐνέργεια

ou ἐντελέχεια) por oposiccedilatildeo agrave potecircncia (δuacuteναμις) termo que A Q emprega com relaccedilatildeo aos graus da escala O

12

relevante entre os dois termos ambos apontam para uma acepccedilatildeo mais abrangente e mais

primitiva do rhythmoacutes Segundo Colomer e Gil (op cit loc cit) ldquoos termos rhythmoacutes e

schecircma foram a princiacutepio quase sinocircnimos embora depois a palavra rhythmoacutes se tenha

aplicado preferencialmente agrave forma em movimento e schecircma agrave forma estaacuteticardquo Ora essa

identificaccedilatildeo originaacuteria se esclarece a primeira e a segunda acepccedilotildees atribuiacutedas por A Q ao

termo ritmo (o ritmo dos corpos imoacuteveis e dos corpos moacuteveis) igualmente demonstra a

profunda unidade que coere aquelas trecircs acepccedilotildees pois em todas predomina a ideia de uma

determinaccedilatildeo formal

Haacute no entanto apesar dos paralelismos (mesmo no tocante agrave ordem de

exposiccedilatildeo) uma diferenccedila notaacutevel entre os textos de Aristoacutexeno e de Aristides Quintiliano Eacute

que Aristoacutexeno embora visivelmente preocupado esmiuccedilar a diferenccedila entre o ritmo e os

ritmaacuteveis natildeo recore para isso agraves noccedilotildees de masculino e feminino O tratado de Aristoacutexeno

tudo indica foi uma das principais fontes dos caps 13-19 do Livro I de A Q mas certamente

natildeo foi a uacutenica

Embora como sugerem Colomer e Gil o ingresso na teoria musical dos termos

masculino e feminino possa ter tido origem damoniana (e natildeo ser portanto histoacuterica e

originalmente pitagoacuterica) natildeo haacute duacutevida de que os termos ἄρρεν e θῆλυ fazem parte do

vocabulaacuterio filosoacutefico pitagoacuterico Sabemos disso porque Aristoacuteteles (Metafiacutesica 986a25) os

elenca entre famosos dez princiacutepios pitagoacutericos Noutra passagem da Metafiacutesica (988a2-10)

em que critica a concepccedilatildeo pitagoacuterico-platocircnica da diacuteada Aristoacuteteles natildeo somente explica a

conexatildeo entre as noccedilotildees de forma e mateacuteria e o par masculino-feminino mas afirma o caraacuteter

principial deste uacuteltimo

Com efeito eles pretendem derivar da mateacuteria uma multiplicidade se

bem que a Forma soacute gere uma vez ora o que observamos eacute que a mesa eacute

feita de um pedaccedilo de mateacuteria enquanto o homem que aplica a forma

apesar de ser um faz muitas mesas E a relaccedilatildeo entre macho e fecircmea

assemelha-se a esta pois a fecircmea eacute emprenhada numa soacute coacutepula ao passo

que o macho emprenha muitas fecircmeas E todavia estes fatos satildeo imagens

daqueles primeiros princiacutepios Eis aiacute pois como se pronunciou Platatildeo

acerca destes problemas pelo que ficou ditou eacute evidente que ele usou

apenas duas causas a essencial e a material ()

Se os fatos aparentemente desconexos da reproduccedilatildeo sexuada e da fabricaccedilatildeo de

uma mesa satildeo imagens ou imitaccedilotildees (μιμήματα) daqueles princiacutepios (τῶν ἀρχῶν ἐκείνων)

isto eacute dos princiacutepios essencial e substancial ndash ou em linguagem aristoteacutelica da causa material

e da causa formal ndash natildeo somente eacute liacutecito contar com a manifestaccedilatildeo desses princiacutepios tambeacutem

fato de que na passagem em tela ele recorra ao expediente privativo em vez empregar os termos proacuteprios natildeo

obscurece a distinccedilatildeo conceitual

13

no acircmbito da muacutesica mas se torna imperioso recorrer a eles quando se deseja como deseja

Quintiliano oferecer um vislumbre do cosmo total desde o microcosmo particular da muacutesica

Eacute o que trataremos de observar a seguir

22 Corpo e alma

Apoacutes ter introduzido no fim do cap19 as noccedilotildees de masculino e feminino A Q

natildeo volta a mencionaacute-las em nenhum momento ateacute o final do Livro I Natildeo quer isso dizer

todavia que ele jaacute natildeo as leve em conta ou pelo menos que natildeo as subentenda de algum

modo Em todo caso soacute deveraacute retomaacute-las em caraacuteter expliacutecito e operativo a partir do cap8

do Livro II

Φαίνεταί μοι τοίνυν ἡ ψυχή πόρρω μὲν τῶνδε ἡνίκα ἐστὶν ὁμιλοῦσα τῷ

κρείττονι λόγῳ τε ὁμέστιος εἶναι καὶ καθαρεύειν ἐπιθυμίας ἐπὰν δὲ ἐπὶ

τάδε ἀγκλίνῃ καὶ τὴν ἐνταῦθα διατριβὴν πείρᾳ μαθεῖν ἐπιχειρήσῃ

τηνικαῦτα αὐτῇ σώματός τε ἐγγίνεται χρεία καὶ σῶμα ἐπιζητεῖ

πρόσφορον ὑπόκειται δ αὐτῇ θεωρεῖν τὴν ἐν τούτοις διπλόην

ἀρρενότητά τέ φημι καὶ θηλύτητα ἥτις οὐκ ἐν ἐμψύχοις μόνοις ἄρα ἦν

ἀλλὰ κἀν τοῖς φύσει μόνῃ διοικουμένοις φυτῶν τε ὅσα μετάλλων τε

γένη καὶ ἀρωμάτων καὶ γὰρ τούτων δυάς τις ἐπιφαίνεται ἤτοι δι

ἁπαλότητος ἢ λειότητος ἢ εὐχροίας ἢ εὐωδίας ἢ καὶ τῶν ἐναντίων τὴν

ἑτέραν ἐπιδεικνυμένων φύσιν

Parece-me de fato que a alma quando distante das coisas e em comeacutercio

com o superior coabita com a razatildeo e estaacute livre de desejos mas quando

inclina-se para as coisas daqui e intenta aprender atraveacutes da experiecircncia

um modo de existir no tempo entatildeo sendo-lhe necessaacuterio um corpo ela

busca um corpo que lhe seja adequado E eacute da natureza da alma no

tocante aos corpos atentar para a dualidade ou seja para a masculinidade

e para a feminilidade dualidade presente natildeo soacute nos corpos animados

mas tambeacutem nos governados por uma soacute natureza tais como os gecircneros

das plantas dos metais e dos aromas pois tambeacutem neles se manifesta

certa dualidade pois seja pela brandura ou pela suavidade pela bela

aparecircncia ou pelo bom odor seja pelas qualidades contraacuterias apontam

para uma ou outra natureza (II 81-12)

Uma raacutepida contextualizaccedilatildeo nos permitiraacute compreender melhor tanto esta quanto

as demais passagens do cap8 Todo o livro II eacute dedicado agravequilo que no cap5 do livro I A Q

havia definido como muacutesica praacutetica (πρακτικόν) ou educativa (παιδευτικόν) Antes poreacutem de

tratar do seu tema propriamente A Q sente a necessidade de responder agraves objeccedilotildees dos

ceacuteticos4 (dentre os quais ningueacutem menos que Ciacutecero a quem Quintiliano poreacutem hesita em

4 ldquoEacute possiacutevel que os educadores romanos pensassem como Epicuro para quem a muacutesica natildeo tinha qualquer

significado aleacutem de um jogo de sons e concordassem com Ciacutecero que afirmava lsquoque a muacutesica natildeo tem utilidade

alguma aleacutem de um prazer infantil sem valor nenhum posto que natildeo pode guiar-nos agrave felicidadersquo Segundo o

autor romano Corneacutelius Nepos do seacutec I d C lsquoningueacutem ignora que a muacutesica segundo o estado de nossos

costumes natildeo conveacutem a um personagem importantersquo apesar de ter sido levada entre os gregos como lsquodigna de

14

atribuir juiacutezos desfavoraacuteveis acerca da muacutesica) fundamentar a proacutepria ideia de uma formaccedilatildeo

moral atraveacutes da muacutesica E como a accedilatildeo da muacutesica sobre a alma depende tanto da capacidade

ativa da primeira quanto da capacidade receptiva da uacuteltima eacute por esta que ele comeccedila

A alma diz eacute responsaacutevel por dotar de certo ritmo e de ordem (ῥυθμοῦ τινος καὶ

τάξεως) as coisas deste mundo (τῶν ἐνθαδί) Poderiacuteamos dizer embora Quintiliano natildeo o faccedila

aqui explicitamente que a alma portanto eacute masculina em relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Mas

para que possa ser isso eacute preciso que natildeo seja apenas isso De fato diz A Q a alma natildeo

possui uma natureza ou potecircncia uacutenica (οὐδὲ τῶν μονήρη τινὰ φύσιν ἢ δύναμιν ἐχόντων) mas

certa natureza dupla (διπλῆς τινος φύσεως)

A duplicidade da alma consiste em ter sido dotada pelo administrador de todas as

coisas (ὁ τὸ σύπαν διοικῶν) de uma substacircncia divina na qual habita a razatildeo (λoacuteγος) e de

uma substacircncia mundana ou irracional (ἄλογος) na qual habita o desejo (ἐπιθυμία) As duas

naturezas ou potecircncias satildeo necessaacuterias para que a alma atue sobre o mundo corpoacutereo e essa

natureza duacuteplice sem a qual ela seria ineficaz pode-se definir assim a alma soacute eacute ativa em

relaccedilatildeo ao mundo corpoacutereo na medida em que eacute passiva em relaccedilatildeo ao mundo racional Ora a

muacutesica diz Quintiliano no iniacutecio do cap3 do livro II estaacute para a alma irracional assim como a

filosofia estaacute para a alma racional Desse modo ao submeter-se agrave muacutesica a alma irracional

submete-se igualmente agrave razatildeo pois a muacutesica eacute no fundo razatildeo transformada em mateacuteria

sensiacutevel tal como a alma mesma

Isso poreacutem natildeo eacute tudo Entre as duas naturezas da alma haacute um ponto intermeacutedio

que ao submeter o desejo agrave razatildeo confere unidade agraves duas metades Esse ponto intermeacutedio eacute

a memoacuteria (μνήμη) Memoacuteria eacute claro das belezas eternas do mundo suprassensiacutevel5 Desse

modo o dualismo aniacutemico resolve-se num elemento intermediaacuterio resultante da interaccedilatildeo

entre os polos extremos com os quais forma afinal uma triacuteade

Paralelamente a alma (tomada como unidade natildeo mais segundo a interaccedilatildeo das

suas partes) sendo a um soacute tempo ativa (frente ao mundo sensiacutevel) e passiva (perante o

mundo racional) eacute ela proacutepria um ponto intermeacutedio resultante da interaccedilatildeo entre polos

opostos com os quais por sua vez tambeacutem compotildee uma triacuteade As partes e o todo o

microcosmo e macrocosmo assim espelham-se mutuamente

consideraccedilatildeo e estimarsquo rdquo CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-

kagathiacutea Classica (Brasil) 2412 73-85 2011 5 Mesmo se desconsiderarmos esse elemento doutrinal platocircnico a memoacuteria seria ainda uma bela e eficaz

imagem da uniatildeo entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo pois a memoacuteria eacute uma operaccedilatildeo estritamente mental cujos

objetos no entanto satildeo todos oriundos da experiecircncia sensiacutevel

15

Mas a porccedilatildeo desejante (ou irracional) da alma possui igualmente as suas partes

A Q as denomina desejante (ἐπιθυμητική) a qual tende ao relaxamento (ou relaxaccedilatildeo

indulgecircncia) excessivo e impulsiva (θυμικὴ) que tende a uma tensatildeo igualmente desmedida

Fica claro desde logo embora Quintiliano reserve esse comentaacuterio para mais adiante que as

duas porccedilotildees da alma irracional formam uma oposiccedilatildeo do tipo ativo-passivo ou masculino-

feminino restando saber qual seria nesse caso o ponto intermeacutedio

O ponto intermeacutedio satildeo dois por um lado (e acima) a proacutepria porccedilatildeo racional da

alma que eacute inteiriccedila e natildeo se constitui de partes por outro (e abaixo) as paixotildees que resultam

(como A Q descreveraacute a seguir) da mescla entre as potecircncias ativa e passiva da alma As

triacuteades formadas portanto satildeo tambeacutem duas mas de tipos diferentes numa o ponto

intermeacutedio estaacute hierarquicamente acima dos termos opostos noutra hierarquicamente abaixo

A razatildeo da eficaacutecia persuasiva da muacutesica sobre a alma irracional reside

argumenta Quintiliano nas peculiaridades do seu aparato mimeacutetico que lhe permite produzir

a imitaccedilatildeo com mateacuteria similar agrave do objeto imitado Curiosamente esse aparato mimeacutetico eacute

tambeacutem triaacutedico pois a muacutesica imita6 os eacutethe e as paixotildees da alma com os conceitos

(ἐννοίαις) as palavras com as harmonias e a modulaccedilatildeo da voz (ἁρμονίαις καὶ φωνῆς

πλάσει) e a accedilatildeo com os ritmos e o movimento do corpo (ῥυθμοῖς καὶ κινήσει σώματος) A

muacutesica portanto abarca o universo inteiro da accedilatildeo humana desde o seu nascedouro (nos

movimentos afetivos e intelectuais da alma) ateacute sua exteriorizaccedilatildeo em forma de atos e

palavras

Ora sendo a muacutesica sobretudo uma terapia das paixotildees da alma (παθῶν ψυχικῶν

θεραπεία) cabe ao conceito (que siacutentese do conteuacutedo racional a transmitir e da impressatildeo

esteacutetico-emocional a causar estaacute relacionado ao movimentos internos da alma de onde brotam

as accedilotildees) o papel de guiar os elementos do meacutelos perfeito (dicccedilatildeo harmonia e ritmo) O cap8

e os seguintes a comeccedilar pelo trecho acima citado satildeo dedicados justamente a explicar

primeiro como se geram as paixotildees da alma e depois como a muacutesica eacute capaz de imitaacute-las e

de nelas intervir

De iniacutecio A Q trata da dualidade masculino-feminino como uma particularidade

do mundo corpoacutereo a que a alma tem de se submeter Reforccedila o caraacuteter especificamente

corpoacutereo dessa dualidade o fato de que ela natildeo se manifeste apenas em corpos animados (οὐκ

ἐν ἐμψύχοις μόνοις) mas tambeacutem em corpos governados por uma soacute natureza (ἀλλὰ κἀν τοῖς

φύσει μόνῃ διοικουμένοις) Essa observaccedilatildeo parece decorrer da necessidade de distinguir a jaacute

6 II 438-40

16

mencionada duplicidade da alma (razatildeo por que seria natural esperar que somente os corpos

animados estivessem submetidos agrave dualidade a dualidade ao menos entre corpo e alma) do

dualismo propriamente corpoacutereo Em todo caso embora tipicamente corpoacuterea a dualidade

masculino-feminino tambeacutem aqui natildeo se restringe ao fenocircmeno bioloacutegico da diferenciaccedilatildeo

sexual Aleacutem disso essa dualidade natildeo corresponde exatamente a duas espeacutecies opostas de

seres mas a dois polos de um eixo que atravessa de ponta a ponta o mundo corpoacutereo

alcanccedilando portanto e internamente todos os seres nele existentes Desse modo cada ente

particular pode ser tomado como uma resultante da interaccedilatildeo entre os dois princiacutepios em

relaccedilatildeo aos quais ele estabelece por sua vez um ponto intermeacutedio isto eacute uma mescla E eacute

precisamente na produccedilatildeo dessa mescla que o dualismo aniacutemico e o dualismo corpoacutereo se

articulam (II 816-28)

οὐ μόνον οὖν ἐφίεται σώματος ἀλλὰ καὶ τούτου ποιοῦ τινος ἢ γὰρ ἄρρεν

ἠγάπηκεν ἢ θῆλυ καὶ τούτων ὁτὲ μὲν ἄκρατον θάτερον ὁτὲ δὲ ἐξ ἀμφοῖν

ἔχον δεινήν τινα καὶ ὄντως ἄτοπον μίξιν αὐτίκα κἂν μὴ φύσει τοῦ

τοιούτου τύχωσι σώματος αὐταὶ ταῖς σφετέραις τροπαῖς μετερρύθμισάν

τε καὶ ἐς τὸ αὑταῖς ὅμοιον μετέστησαν οὕτως ἐν μὲν ἄρρεσι θῆλυς

ἐπιτρέχει μορφή δι ἣν καὶ ὁ βίος ὦπται τοιοῦτος ἐν δὲ γυναιξὶν ἀνδρεῖον

εἶδος ᾧ καὶ τὸ ἦθος ὅμοιον τεκμαιρόμεθα καὶ ἄνδρες μὴν ἀγένειοι καὶ

γενειάσκουσι γυναῖκες καί τις ἄρρην ἔβλεψεν ὑγρὸν καὶ γυναῖκες γοργὸν

προσεῖδον ὥστε καὶ τῶν ἠθῶν ἕκαστα θηράσεις ἑκάστῃ μορφῇ συνῳδά

A alma portanto natildeo soacute deseja um corpo mas certo tipo de corpo um

corpo masculino ou um corpo feminino Deseja dentre esses agraves vezes um

corpo puro de um tipo ou de outro agraves vezes um corpo que possua uma

curiosa e paradoxal mistura de ambos Assim quando natildeo conseguem

obter naturalmente esse determinado corpo as almas o remodelam

mediante torneios e o transformam em algo semelhante a si mesmas

Dessa forma sobre um corpo masculino recai uma forma feminina (razatildeo

por que tambeacutem sua vida assim se mostra) ou ainda sobre um corpo

feminino uma forma masculina no que tambeacutem assinalamos um eacutethos

similar Haacute homens imberbes e mulheres barbadas homens de lacircnguido

olhar e mulheres com mirada de Goacutergona de modo que cada eacutethos veraacutes

corresponde a uma fisionomia

Uma vez estabelecido o princiacutepio de que o dualismo aniacutemico de algum modo rege

o dualismo corpoacutereo A Q sente-se agrave vontade para tratar de um nos termos do outro

recorrendo para isso aos termos masculino e feminino (II 828-39)

ἐκ δὲ τῆς πρὸς τὸ ἄρρεν ἢ θῆλυ προσπαθείας ἢ πρὸς ἀμφότερον τὰ πάθη

συνίσταται περὶ ψυχήν τὸ μὲν οὖν θῆλυ λίαν ἀνειμένον ᾧ συνᾴδει τὸ

ἐπιθυμητικόν τὸ δ ἄρρεν σφοδρόν τε καὶ δραστήριον ᾧ τὸ θυμικὸν

ὡμοίωται περὶ μὲν οὖν τὸ θῆλυ ψυχῆς τε μέρος καὶ ἀνθρώπων γένος

πλεονάζουσι λῦπαι τε καὶ ἡδοναί περὶ δὲ τὸ ἄρρεν ὀργὴ καὶ θράσος

πάλιν δὲ τούτων γίνονται συζυγίαι λυπῶν τε πρὸς ἡδονὰς καὶ ὀργῆς πρὸς

θράσος καὶ θράσους πρὸς ἡδονὴν καὶ λύπην καὶ ὀργῆς αὖθις πρὸς

ἑκάτερον καὶ πάλιν ἑκάστου πρός τε ἓν καὶ πρὸς πλείω μίξεις καὶ μυρίας

ἄν τις ἐκ τούτων εὕροι τῶν παθῶν εἰκόνας ἐν ποικιλίᾳ θεωρουμένων

17

Conforme o apego ao masculino ao feminino ou a ambos estabelecem-se

as paixotildees da alma O feminino eacute demasiado indulgente e com ele

concorda a alma desejante ao passo que o masculino semelhante agrave alma

impulsiva eacute veemente e ativo Assim tanto na parte feminina da alma

quanto na parcela feminina da humanidade abundam os prazeres e as

dores ao passo que na masculina a ira e a coragem E uma vez mais

datildeo-se combinaccedilotildees entre essas paixotildees das dores com os prazeres da ira

com a coragem da coragem com o prazer e a dor ou da ira novamente

com as demais e ainda de uma com outra qualquer ou com vaacuterias A

partir dessas seria possiacutevel encontrar uma miriacuteade de imagens das

paixotildees em vista da sua variedade

Se a alma por um lado submete o mundo corpoacutereo este por sua vez a espelha

macrocosmicamente nela interferindo mediante interaccedilotildees simpaacuteticas a exemplo do que

ocorre na muacutesica No entanto natildeo satildeo apenas as disposiccedilotildees passivas ou paixotildees que

estabelecem pontes entre a alma e a realidade corpoacuterea Tambeacutem as disposiccedilotildees ativas e

intelectivas estatildeo submetidas ao dualismo masculino-feminino (II 848-69)

ἔστι γὰρ πρῶτον μὲν ἐν ὁρατοῖς ἑκατέραν ἰδεῖν τὴν φύσιν τὸ μὲν

ἀνθηρόν τε καὶ ἐς ὡραϊσμὸν προςφυὲς χρῶμά τε καὶ σχῆμα διαιροῦντα

θηλύτητι τὸ δὲ στυγνόν τε καὶ ἐς σύννοιαν ἄγον ἀρρενότητι πάλιν δὲ ἐν

ἀκοαῖς τοὺς μὲν λείους καὶ προσηνεῖς ἤχους ἐς τὸ θῆλυ τοὺς δὲ

τραχυτέρους εἰς τοὐναντίον ἁρμόττοντα καί ἵνα μὴ τὰ καθ ἕκαστον

λέγω κοινῶς περὶ πάντων ἀποφαντέον ὡς ὅσα μὲν τῶν αἰσθητῶν ἔς τε

ἡδονὴν δελεάζει καὶ ἠρέμα διαχεῖν τὴν γνώμην πέφυκε ταῦτα εἰς τὸ θῆλυ

κριτέον ὅσα δὲ κινεῖ τε εἰς σύννοιαν καὶ ἐγείρει τὸ δραστήριον ταῦτα εἰς

τὴν ἄρρενος μοῖραν ἀπονεμητέον τὰ δέ τοι μηδέτερον ἢ κατὰ μίξιν ἄμφω

δρῶντα ταῦτα τῶν μέσων ἀποφαντέον κατὰ δὴ ταῦτα καὶ περὶ ἐκείνων

λέγωμεν αἳ λόγῳ μέν εἰσι καταληπταὶ τέχναι τε καὶ ἀρεταὶ καὶ ἐπιστῆμαι

ἐκ δὲ τῆς τῶν ὑλῶν ποιότητος περὶ ἃς ἑκάστη τευτάζει τὰς πρὸς ἀλλήλας

διαφορὰς καὶ ὁμοιότητας εἰλήχασιν αἵ τε ἀρεταὶ πρὸς τὰς ἀρετὰς αἵ τε

ἐπιστῆμαι πρὸς τὰς ἐπιστήμας κακίαι τε αὖ πρὸς κακίας καὶ

ἀνεπιστημοσύναι πρὸς ἀμαθίας πάλιν δὲ ἀρεταὶ πρὸς κακίας ἢ ἐπιστήμας

ἢ ἀγνωσίας κακίαι τε αὖ πρὸς τὰς εἰρημένας ποικίλης τινὸς καὶ τῆς κατὰ

ταῦτα πλοκῆς τε οὔσης καὶ μίξεως

A princiacutepio eacute de fato possiacutevel identificar nos objetos visiacuteveis cada

natureza separadamente atribuindo o florido e as formas e cores

decorativas ao feminino e as sombrias e que conduzem agrave reflexatildeo ao

masculino e o mesmo para as coisas audiacuteveis relacionando os sons

suaves e doces ao feminino e os mais aacutesperos ao seu oposto E para que

eu natildeo entre aqui em detalhes eacute preciso dizer que no geral as coisas

sensiacuteveis que induzem ao prazer e que natural e docemente dissolvem o

juiacutezo estas se devem considerar femininas ao passo que aquelas que nos

levam agrave reflexatildeo ou promovem a accedilatildeo se devem designar masculinas Jaacute

aquelas que natildeo atuam nem de uma nem de outra maneira ou o faccedilam

segundo uma mescla de ambas estas se hatildeo de chamar intermediaacuterias

Disso decorre que falemos nos mesmos termos a respeito tambeacutem das

coisas apreendidas pela razatildeo ndash as artes as virtudes e as ciecircncias ndash as

quais devem suas semelhanccedilas e diferenccedilas muacutetuas aos assuntos de que se

ocupam as virtudes no tocante agraves virtudes e as ciecircncias no tocante agraves

ciecircncias e por seu turno os viacutecios no que diz respeito aos viacutecios e a

incultura com respeito agraves ignoracircncias e ainda virtudes com respeito aos

viacutecios ciecircncias ou ignoracircncias e os viacutecios com respeito estes todos

sendo possiacutevel certa combinaccedilatildeo e mescla dessas coisas

18

Cabe observar como A Q ao traccedilar um perfil do masculino e do feminino natildeo

oferece uma lista de entes individuais mas um elenco geneacuterico de qualidades sensiacuteveis das

quais ele passa sem maior detenccedila para o toacutepico das naturezas intermediaacuterias em que estatildeo

incluiacutedas as artes as ciecircncias e as virtudes A menccedilatildeo agraves artes ciecircncias e virtudes eacute

importante neste momento porque uma vez explicado o processo pelo qual atraveacutes de

mesclas dos princiacutepios masculino e feminino satildeo engendradas as paixotildees da alma

Quintiliano deve agora retomar o fio da exposiccedilatildeo e mostrar como a muacutesica por meio de

conceitos palavras ritmos e melodias eacute capaz de imitar essas mesmas paixotildees virtudes

viacutecios etc comunicando agrave alma o respectivo eacutethos Eacute o que faraacute no restante do livro II

23 Os conceitos

No iniacutecio do cap9 A Q retoma o tema dos conceitos com o qual tinha

concluiacutedo o cap7 antes da relativamente longa mas necessaacuteria digressatildeo acerca das paixotildees

da alma O propoacutesito do autor eacute demonstrar como um poeta eacute capaz de transmitir os conceitos

que deseje mediante o emprego de certos procedimentos retoacutericos A Q utiliza exemplos

extraiacutedos de Homero nos quais aponta como o poeta mesclando traccedilos masculinos e

femininos consegue traduzir em palavras uma gama complexa de impressotildees desde

sensaccedilotildees fiacutesicas como rapidez suavidade ou agitaccedilatildeo ateacute caracteres ou julgamentos morais

Esse conceitos (ἐννοήματα) compostos de traccedilos masculinos e femininos ndash conceitos que por

sua vez entram na composiccedilatildeo eacutetica das frases e dos discursos ndash A Q os compara aos

extratos dos quais satildeo feitos os remeacutedios7 e conclui (II 103-18)

τὰ μὲν οὖν ἐς ἄνεσιν ἄγοντα καὶ φαιδρότητα τὸν ἀφελῆ τε καὶ ἡδὺν λόγον

ἐγέννησε τὰ δὲ τὸ σύννουν κινοῦντα καὶ τὸ ὁρμητικὸν τὸν πολιτικόν τε

καὶ ἀγωνιστικὸν ἐξέφηνεν τοῦ μὲν οὖν πολιτικοῦ κατὰ τὸ ἄρρεν τὰ εἴδη

συντομίαι τε καὶ βραχύτητες καὶ ἀξίωμα καὶ μεγαλοπρέπεια τραχύτης τε

καὶ σφοδρότης καὶ μέγεθος καὶ μεστότης ἅπερ τήν τε φυσικὴν ἐμφαίνει

μεγαλόνοιαν τοῦ ἄρρενος μέγεθός τε σώματος καὶ ἁδροτῆτα διανοίας καὶ

τὸ ἐς τὰ μέγιστα τῶν ἔργων ἀνυτικὸν τάχος τοῦ δὲ ἀφελοῦς ἀραιότης

ἁβρότης κάλλη τε καὶ γλυκύτητες ὧν τὰ μὲν τὸ ἀνειμένον τοῦ θήλεος τὰ

δὲ τὸ ἐς ὡραϊσμὸν διαδείκνυσιν ἐπτοημένον γένοιτο δ ἄν τι καὶ τῇ

τούτων πλοκῇ οἷον ἡ δριμύτης τὸ μὲν τάχος ὡς ἄρρεν τὸ δὲ

μικροπρεπὲς ὡς ἐναντίον ἐπιφαίνουσα ἥ τ ἐπιμέλεια τὸ μὲν γλίσχρον

ἔχουσα κατὰ τὸ θῆλυ τὸ δὲ τῆς φιλοπονίας παρεκτεταμένον ὡς ἄρρεν

Assim os conceitos que levam agrave descontraccedilatildeo e agrave alegria produzem uma

frase despojada e doce enquanto os conceitos que mobilizam as partes

intelectiva e impulsiva produzem a frase contenciosa e poliacutetica Os traccedilos

da frase poliacutetica relacionados ao masculino satildeo concisatildeo brevidade

dignidade e elevaccedilatildeo assim como aspereza forccedila grandeza e

completude traccedilos que mostram a grandiosidade natural do masculino a

7 Uma comparaccedilatildeo semelhante jaacute tinha sido feita em II 47-12

19

magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores

trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e

doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros

a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a

exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e

atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade

como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo

masculino

Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem

duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel

Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade

contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de

masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e

mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos

interessa aqui compreender

Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase

feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por

ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por

ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo

como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa

ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de

desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo

remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na

disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma

Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que

poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade

seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma

caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel

quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a

porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade

contradiccedilatildeo alguma

No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a

capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente

aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam

o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante

uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses

materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes

20

Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro

tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais

duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do

diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons

livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma

martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente

tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade

Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a

accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua

presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No

capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a

dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do

discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto

24 As letras

Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto

καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων

γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς

φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς

τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον

ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως

περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων

ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων

τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ

ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε

πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ

ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα

μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν

χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον

ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς

ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς

τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον

διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως

τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν

ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων

κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος

ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ

τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως

eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo

de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais

outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como

as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido

satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que

limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves

enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade

21

temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo

dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo

que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente

eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o

lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute

atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por

sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a

passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes

outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se

com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar

jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua

a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio

das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona

ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o

emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito

aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias

e possuem ambas as naturezas

A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo

primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso

masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais

Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da

classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam

espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo

das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as

consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto

consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as

consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave

nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na

sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz

respeito agraves letras8

As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo

claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que

pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo

Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das

vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de

assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as

quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das

letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes

8 Cf Chapanski 2003 p 22-24

22

Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes

que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais

proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias

enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais

proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em

relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade

As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de

articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua

vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto

meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais

tau delta e theta As guturais capa gama e khi

Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como

ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo

que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as

surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste

em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de

separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas

silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)

seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as

consoantes o polo essencial (formal ou masculino)

AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo

seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais

(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a

doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo

princiacutepio dualista

25 As vogais e o solfejo

Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o

meacutelos (II 126-10)

Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι

λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα

τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ

μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει

23

O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a

harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que

se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo

percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e

ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos

Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo

de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I

Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de

disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute

apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma

harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo

especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das

mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder

perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o

objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e

o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir

encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)

Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς

κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ

ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ

μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον

μετεσχηκότες

A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe

tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e

masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo

intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos

gecircneros com maior ou menor intensidade

No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre

elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa

diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino (II 131-35)

Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς

πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα

πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων

ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς

ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε

τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς

ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς

μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ

συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ

9 Cf West 1994 p178

24

πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα

δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν

ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως

ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt

κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ

λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν

μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ

ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν

ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο

καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως

ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα

φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt

νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται

πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται

τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ

γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων

καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις

σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα

καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ

ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ

Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute

captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as

letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete

examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra

as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e

masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons

mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute

masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois

nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o

ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o

som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige

que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o

alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da

sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua

estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado

intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta

quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino

quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa

na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a

exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta

trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do

alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior

parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo

lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses

examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos

constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e

terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons

semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros

Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais

nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas

internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para

isso novos paracircmetros

O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio

que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou

25

fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais

vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora

a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem

interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)

estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto

importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado

designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais

satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas

Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute

Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de

masculino e feminino em si mesmas10

Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos

remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a

esfericidade da alma11

(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash

mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso

Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves

a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon

feminino) refira-se justamente a esse arredondamento

As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em

razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas

(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua

ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente

relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal

O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do

eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os

extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo

masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo

entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da

verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o

10

Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido

Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo

metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das

observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11

Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De

Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por

que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora

o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo

26

sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo

entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta

Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo

verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave

segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo

lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros

Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro

obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo

excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no

solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)

Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ

εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί

τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες

ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ

αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων

περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ

τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν

τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς

πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ

ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ

λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος

διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt

εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους

διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν

λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ

πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν

μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν

Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente

passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega

satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se

articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que

o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam

intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez

sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por

intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos

dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de

acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos

da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam

No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido

com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das

vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o

ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons

que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida

vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava

em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos

posteriormente por que isso eacute assim

A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim

ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo

27

O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de

quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de

quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores

distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12

Do grave para o agudo (ou de

cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram

denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica

(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era

acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de

um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira

(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da

uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons

ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro

tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo

(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom

O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute

justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do

tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao

ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira

(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da

sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada

μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito

formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava

formado com a nota acrescida

Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada

tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou

agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por

eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)

Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει

κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ

τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν

πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ

θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα

γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά

12

Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2

T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)

28

Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao

masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos

em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram

dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os

sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no

entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da

passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes

Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave

formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo

decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso

ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como

o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13

os rechaccedilavam por

completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14

(II 1488-90)

περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς

παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας

Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam

na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da

alma

Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos

instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo

mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes

mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais

como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se

apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta

a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo

a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as

noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura

tonal (II 1623-40)

Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα

διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ

θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος

μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα

εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν

ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ

τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ

πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν

περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον

θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον

ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι

13

Repuacuteblica 398c 14

Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)

29

δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς

τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν

οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν

ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt

Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela

sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute

feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais

do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua

tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se

descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade

e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por

gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito

debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde

participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira

participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros

intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua

natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar

cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza

iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo

interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam

familiares

No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os

instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o

dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em

que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria

dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado

por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da

muacutesica sobre a alma

O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro

245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo

ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees

superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da

regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo

anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto

ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees

hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm

pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15

15

Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida

(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a

associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre

medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente

que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento

que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a

30

Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite

(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os

nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm

unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses

nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo

masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria

Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo

residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real

manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo

um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas

entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do

universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os

planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros

26 A muacutesica das esferas

Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves

teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem

acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma

definiccedilatildeo (III 211-6)

Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν

ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ

φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον

τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν

διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει

Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o

feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e

amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o

esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de

sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo

AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero

proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute

elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza

(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas

antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura

que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo

31

Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os

planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e

femininas (III 216-40)

ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης

γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον

ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ

δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ

ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ

θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι

τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον

μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε

μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης

προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ

πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος

ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ

νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ

ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε

ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς

Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης

ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως

ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε

θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ

ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν

ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε

ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης

ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ

μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν

παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ

τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων

συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν

θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ

ἐπίπονος τὸν ἄρρενα

A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por

toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda

um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do

feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa

tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e

nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios

e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do

feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de

Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota

acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute

no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol

(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se

regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem

tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais

familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute

luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente

uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente

feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol

emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e

impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som

que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo

de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante

ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma

equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de

32

Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e

quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo

sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que

eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino

Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal

correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota

do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao

eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de

masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as

devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam

a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde

PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO

NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa

VOGAL ε α η ω α η Ω

Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a

meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o

eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe

apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por

outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela

soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim

seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo

ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas

pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo

Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco

pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter

especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a

correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e

as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como

essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda

oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de

Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido

Primeiro tetracorde Segundo tetracorde

33

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico

Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o

ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava

somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por

uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado

ou o ponto intermeacutedio

Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica

inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo

princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros

e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado

sob sua tutela

Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a

muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a

qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto

meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional

passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num

polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a

alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a

alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de

Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge

para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim

sucessivamente

Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua

organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata

da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se

reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical

os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura

da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual

o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado

primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas

mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro

torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim

dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16

16

Gueacutenon 1999 p23

34

No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser

dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de

analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre

regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos

incomensuraacuteveis

Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de

seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas

vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade

necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que

estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade

assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada

impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a

um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por

exemplo da lua e da alma

Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as

ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou

aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que

embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres

ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia

nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de

fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas

qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas

graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo

tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais

uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a

coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e

lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num

mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao

masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora

dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo

Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo

de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o

acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o

35

fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino

teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse

fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo

Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo

contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa

A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o

outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre

quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na

quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um

compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la

A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-

feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e

feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a

posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria

necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo

para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente

masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude

de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo

privativa

Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito

de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem

duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e

quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre

ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos

guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e

sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais

difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta

porosa uacutemida ou fechada

Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a

sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns

dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso

condiccedilotildees

Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo

naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem

36

necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas

se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou

outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)

Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo

condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de

fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees

associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o

caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute

necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa

objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da

mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos

dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do

iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num

patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado

intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos

individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo

Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees

de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam

somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre

esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes

noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre

relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma

espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila

Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos

loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou

analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ

ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)

A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas

relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse

processo igualmente uma relaccedilatildeo

Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et

du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee

notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas

moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux

celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou

encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de

nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui

37

exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est

en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le

plus petit comme analogue du plus grand)17

Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que

unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter

entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel

unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia

Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres

primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune

corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos

on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification

du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par

harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se

ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une

neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au

deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure

deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en

son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception

originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la

conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique

de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre

partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18

Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de

predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e

mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na

matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo

desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =

2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que

a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas

premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo

A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-

1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua

vez se apoiu em Aristoacuteteles19

) estabelece trecircs tipos de analogia20

A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o

termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo

17

Borella 2012 p23 18

Moutsopoulos 2004 p203-204 19

Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada

pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais

ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre

chez Aristote Paris PUF 1962 20

A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23

38

grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

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Page 11: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

11

Em I 236-7 A Q nos daacute uma pista ao fazer da interaccedilatildeo entre os dissimilares a

condiccedilatildeo necessaacuteria de tudo o que vem a ser Embora Quintiliano nessa passagem designe

esses dissimilares (ἀνομοίων) como ldquoγεννωμένωνrdquo termo que Mathiesen (1983 p108)

traduz como ldquoprogenitoresrdquo o princiacutepio que ele aiacute enuncia natildeo poderia pela natureza do

assunto (ritmo e meacutetrica) estar circunscrito ao acircmbito exclusivo da reproduccedilatildeo sexuada

Em nota ao trecho (I 1925-30) reproduzido acima Barker (1990 p445) apoacutes

apontar a origem aristoteacutelica dos conceitos de agente e mateacuteria considera problemaacutetica a

fonte de sua associaccedilatildeo com as noccedilotildees de masculino e feminino embora essa associaccedilatildeo seja

mencionada tambeacutem em Aristoacuteteles

The terms of this distinction between matter and agent are Peripatetic and their

use here recalls Aristotles account of the male and female contributions to

reproduction (eg De Gen An 730b) Similar conceptions of the roles of melody

and rhythm are suggested by ps-Ar Probs xix49We cannot confidently identify

the origin of the application of sexual distinctions to music (used extensively by

Aristides in Book 11) and specifically of the equation of rhythm with male melody

with female such ideas may possibly be connected with the school of Damon

Colomer e Gil (1996 p96) satildeo mais especiacuteficos ao apontar uma possiacutevel origem

aristoxecircnica para a aplicaccedilatildeo das noccedilotildees aristoteacutelicas de ato e mateacuteria ao par ritmo e meacutelos

hipoacutetese que no fundo o proacuteprio Barker natildeo descarta jaacute que como diz os Elementa

Rhythmica satildeo ldquoa major source for the section on rhythmics in chs 13-19 of 12 Arist Quint

De Mus Book 1rdquo (1990 p193)

De fato nos Elementa Rhythmica (Livro II fr03) Aristoacutexeno refere-se ao ritmo e

ao ritmaacutevel (ῥυθμιζομένου) como duas naturezas especiacuteficas (δύο τινὰς φύσεις) as quais

estariam uma para outra como a forma (τὸ σχῆμα) estaacute para o que eacute formado (τὸ

σχηματιζόμενον) Aristoacutexeno eacute a princiacutepio ateacute mais abrangente que A Q jaacute que a relaccedilatildeo eacute

estendida a todos os ritmaacuteveis (corpo melodia e dicccedilatildeo) e natildeo exclusiva e especificamente ao

meacutelos Poreacutem para que natildeo haja duacutevida ele faz questatildeo de explicitar a relaccedilatildeo entre ritmo e

meacutelos ao mencionar adiante (fr04) que ldquoo mesmo [loacutegos] se aplica ao meacutelos e ao que quer

que tenha surgido para ser submetido ao ritmordquo2

Para A Q o meacutelos eacute ldquoἀσχημάτιστονrdquo3 informe para Aristoacutexeno eacute

ldquoσχηματιζόμενονrdquo algo que padece a forma Aleacutem de natildeo haver diferenccedila conceitual

2 Ὁ αὐτὸς δὲ λόγος καὶ ἐπὶ τοῦ μέλους καὶ εἴ τι ἄλλο πέφυκε ῥυθμίζεσθαι ou na traduccedilatildeo de Barker (1990

p185) ldquoThe same can be said about melody too and about anything else whose nature it is to be made rhythmic

[rhythmizesthai]rdquo 3 Quintiliano tambeacutem denomina o meacutelos ldquoἀνενέργητόνrdquo o que obviamente remete ao conceito de ato (ἐνέργεια

ou ἐντελέχεια) por oposiccedilatildeo agrave potecircncia (δuacuteναμις) termo que A Q emprega com relaccedilatildeo aos graus da escala O

12

relevante entre os dois termos ambos apontam para uma acepccedilatildeo mais abrangente e mais

primitiva do rhythmoacutes Segundo Colomer e Gil (op cit loc cit) ldquoos termos rhythmoacutes e

schecircma foram a princiacutepio quase sinocircnimos embora depois a palavra rhythmoacutes se tenha

aplicado preferencialmente agrave forma em movimento e schecircma agrave forma estaacuteticardquo Ora essa

identificaccedilatildeo originaacuteria se esclarece a primeira e a segunda acepccedilotildees atribuiacutedas por A Q ao

termo ritmo (o ritmo dos corpos imoacuteveis e dos corpos moacuteveis) igualmente demonstra a

profunda unidade que coere aquelas trecircs acepccedilotildees pois em todas predomina a ideia de uma

determinaccedilatildeo formal

Haacute no entanto apesar dos paralelismos (mesmo no tocante agrave ordem de

exposiccedilatildeo) uma diferenccedila notaacutevel entre os textos de Aristoacutexeno e de Aristides Quintiliano Eacute

que Aristoacutexeno embora visivelmente preocupado esmiuccedilar a diferenccedila entre o ritmo e os

ritmaacuteveis natildeo recore para isso agraves noccedilotildees de masculino e feminino O tratado de Aristoacutexeno

tudo indica foi uma das principais fontes dos caps 13-19 do Livro I de A Q mas certamente

natildeo foi a uacutenica

Embora como sugerem Colomer e Gil o ingresso na teoria musical dos termos

masculino e feminino possa ter tido origem damoniana (e natildeo ser portanto histoacuterica e

originalmente pitagoacuterica) natildeo haacute duacutevida de que os termos ἄρρεν e θῆλυ fazem parte do

vocabulaacuterio filosoacutefico pitagoacuterico Sabemos disso porque Aristoacuteteles (Metafiacutesica 986a25) os

elenca entre famosos dez princiacutepios pitagoacutericos Noutra passagem da Metafiacutesica (988a2-10)

em que critica a concepccedilatildeo pitagoacuterico-platocircnica da diacuteada Aristoacuteteles natildeo somente explica a

conexatildeo entre as noccedilotildees de forma e mateacuteria e o par masculino-feminino mas afirma o caraacuteter

principial deste uacuteltimo

Com efeito eles pretendem derivar da mateacuteria uma multiplicidade se

bem que a Forma soacute gere uma vez ora o que observamos eacute que a mesa eacute

feita de um pedaccedilo de mateacuteria enquanto o homem que aplica a forma

apesar de ser um faz muitas mesas E a relaccedilatildeo entre macho e fecircmea

assemelha-se a esta pois a fecircmea eacute emprenhada numa soacute coacutepula ao passo

que o macho emprenha muitas fecircmeas E todavia estes fatos satildeo imagens

daqueles primeiros princiacutepios Eis aiacute pois como se pronunciou Platatildeo

acerca destes problemas pelo que ficou ditou eacute evidente que ele usou

apenas duas causas a essencial e a material ()

Se os fatos aparentemente desconexos da reproduccedilatildeo sexuada e da fabricaccedilatildeo de

uma mesa satildeo imagens ou imitaccedilotildees (μιμήματα) daqueles princiacutepios (τῶν ἀρχῶν ἐκείνων)

isto eacute dos princiacutepios essencial e substancial ndash ou em linguagem aristoteacutelica da causa material

e da causa formal ndash natildeo somente eacute liacutecito contar com a manifestaccedilatildeo desses princiacutepios tambeacutem

fato de que na passagem em tela ele recorra ao expediente privativo em vez empregar os termos proacuteprios natildeo

obscurece a distinccedilatildeo conceitual

13

no acircmbito da muacutesica mas se torna imperioso recorrer a eles quando se deseja como deseja

Quintiliano oferecer um vislumbre do cosmo total desde o microcosmo particular da muacutesica

Eacute o que trataremos de observar a seguir

22 Corpo e alma

Apoacutes ter introduzido no fim do cap19 as noccedilotildees de masculino e feminino A Q

natildeo volta a mencionaacute-las em nenhum momento ateacute o final do Livro I Natildeo quer isso dizer

todavia que ele jaacute natildeo as leve em conta ou pelo menos que natildeo as subentenda de algum

modo Em todo caso soacute deveraacute retomaacute-las em caraacuteter expliacutecito e operativo a partir do cap8

do Livro II

Φαίνεταί μοι τοίνυν ἡ ψυχή πόρρω μὲν τῶνδε ἡνίκα ἐστὶν ὁμιλοῦσα τῷ

κρείττονι λόγῳ τε ὁμέστιος εἶναι καὶ καθαρεύειν ἐπιθυμίας ἐπὰν δὲ ἐπὶ

τάδε ἀγκλίνῃ καὶ τὴν ἐνταῦθα διατριβὴν πείρᾳ μαθεῖν ἐπιχειρήσῃ

τηνικαῦτα αὐτῇ σώματός τε ἐγγίνεται χρεία καὶ σῶμα ἐπιζητεῖ

πρόσφορον ὑπόκειται δ αὐτῇ θεωρεῖν τὴν ἐν τούτοις διπλόην

ἀρρενότητά τέ φημι καὶ θηλύτητα ἥτις οὐκ ἐν ἐμψύχοις μόνοις ἄρα ἦν

ἀλλὰ κἀν τοῖς φύσει μόνῃ διοικουμένοις φυτῶν τε ὅσα μετάλλων τε

γένη καὶ ἀρωμάτων καὶ γὰρ τούτων δυάς τις ἐπιφαίνεται ἤτοι δι

ἁπαλότητος ἢ λειότητος ἢ εὐχροίας ἢ εὐωδίας ἢ καὶ τῶν ἐναντίων τὴν

ἑτέραν ἐπιδεικνυμένων φύσιν

Parece-me de fato que a alma quando distante das coisas e em comeacutercio

com o superior coabita com a razatildeo e estaacute livre de desejos mas quando

inclina-se para as coisas daqui e intenta aprender atraveacutes da experiecircncia

um modo de existir no tempo entatildeo sendo-lhe necessaacuterio um corpo ela

busca um corpo que lhe seja adequado E eacute da natureza da alma no

tocante aos corpos atentar para a dualidade ou seja para a masculinidade

e para a feminilidade dualidade presente natildeo soacute nos corpos animados

mas tambeacutem nos governados por uma soacute natureza tais como os gecircneros

das plantas dos metais e dos aromas pois tambeacutem neles se manifesta

certa dualidade pois seja pela brandura ou pela suavidade pela bela

aparecircncia ou pelo bom odor seja pelas qualidades contraacuterias apontam

para uma ou outra natureza (II 81-12)

Uma raacutepida contextualizaccedilatildeo nos permitiraacute compreender melhor tanto esta quanto

as demais passagens do cap8 Todo o livro II eacute dedicado agravequilo que no cap5 do livro I A Q

havia definido como muacutesica praacutetica (πρακτικόν) ou educativa (παιδευτικόν) Antes poreacutem de

tratar do seu tema propriamente A Q sente a necessidade de responder agraves objeccedilotildees dos

ceacuteticos4 (dentre os quais ningueacutem menos que Ciacutecero a quem Quintiliano poreacutem hesita em

4 ldquoEacute possiacutevel que os educadores romanos pensassem como Epicuro para quem a muacutesica natildeo tinha qualquer

significado aleacutem de um jogo de sons e concordassem com Ciacutecero que afirmava lsquoque a muacutesica natildeo tem utilidade

alguma aleacutem de um prazer infantil sem valor nenhum posto que natildeo pode guiar-nos agrave felicidadersquo Segundo o

autor romano Corneacutelius Nepos do seacutec I d C lsquoningueacutem ignora que a muacutesica segundo o estado de nossos

costumes natildeo conveacutem a um personagem importantersquo apesar de ter sido levada entre os gregos como lsquodigna de

14

atribuir juiacutezos desfavoraacuteveis acerca da muacutesica) fundamentar a proacutepria ideia de uma formaccedilatildeo

moral atraveacutes da muacutesica E como a accedilatildeo da muacutesica sobre a alma depende tanto da capacidade

ativa da primeira quanto da capacidade receptiva da uacuteltima eacute por esta que ele comeccedila

A alma diz eacute responsaacutevel por dotar de certo ritmo e de ordem (ῥυθμοῦ τινος καὶ

τάξεως) as coisas deste mundo (τῶν ἐνθαδί) Poderiacuteamos dizer embora Quintiliano natildeo o faccedila

aqui explicitamente que a alma portanto eacute masculina em relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Mas

para que possa ser isso eacute preciso que natildeo seja apenas isso De fato diz A Q a alma natildeo

possui uma natureza ou potecircncia uacutenica (οὐδὲ τῶν μονήρη τινὰ φύσιν ἢ δύναμιν ἐχόντων) mas

certa natureza dupla (διπλῆς τινος φύσεως)

A duplicidade da alma consiste em ter sido dotada pelo administrador de todas as

coisas (ὁ τὸ σύπαν διοικῶν) de uma substacircncia divina na qual habita a razatildeo (λoacuteγος) e de

uma substacircncia mundana ou irracional (ἄλογος) na qual habita o desejo (ἐπιθυμία) As duas

naturezas ou potecircncias satildeo necessaacuterias para que a alma atue sobre o mundo corpoacutereo e essa

natureza duacuteplice sem a qual ela seria ineficaz pode-se definir assim a alma soacute eacute ativa em

relaccedilatildeo ao mundo corpoacutereo na medida em que eacute passiva em relaccedilatildeo ao mundo racional Ora a

muacutesica diz Quintiliano no iniacutecio do cap3 do livro II estaacute para a alma irracional assim como a

filosofia estaacute para a alma racional Desse modo ao submeter-se agrave muacutesica a alma irracional

submete-se igualmente agrave razatildeo pois a muacutesica eacute no fundo razatildeo transformada em mateacuteria

sensiacutevel tal como a alma mesma

Isso poreacutem natildeo eacute tudo Entre as duas naturezas da alma haacute um ponto intermeacutedio

que ao submeter o desejo agrave razatildeo confere unidade agraves duas metades Esse ponto intermeacutedio eacute

a memoacuteria (μνήμη) Memoacuteria eacute claro das belezas eternas do mundo suprassensiacutevel5 Desse

modo o dualismo aniacutemico resolve-se num elemento intermediaacuterio resultante da interaccedilatildeo

entre os polos extremos com os quais forma afinal uma triacuteade

Paralelamente a alma (tomada como unidade natildeo mais segundo a interaccedilatildeo das

suas partes) sendo a um soacute tempo ativa (frente ao mundo sensiacutevel) e passiva (perante o

mundo racional) eacute ela proacutepria um ponto intermeacutedio resultante da interaccedilatildeo entre polos

opostos com os quais por sua vez tambeacutem compotildee uma triacuteade As partes e o todo o

microcosmo e macrocosmo assim espelham-se mutuamente

consideraccedilatildeo e estimarsquo rdquo CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-

kagathiacutea Classica (Brasil) 2412 73-85 2011 5 Mesmo se desconsiderarmos esse elemento doutrinal platocircnico a memoacuteria seria ainda uma bela e eficaz

imagem da uniatildeo entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo pois a memoacuteria eacute uma operaccedilatildeo estritamente mental cujos

objetos no entanto satildeo todos oriundos da experiecircncia sensiacutevel

15

Mas a porccedilatildeo desejante (ou irracional) da alma possui igualmente as suas partes

A Q as denomina desejante (ἐπιθυμητική) a qual tende ao relaxamento (ou relaxaccedilatildeo

indulgecircncia) excessivo e impulsiva (θυμικὴ) que tende a uma tensatildeo igualmente desmedida

Fica claro desde logo embora Quintiliano reserve esse comentaacuterio para mais adiante que as

duas porccedilotildees da alma irracional formam uma oposiccedilatildeo do tipo ativo-passivo ou masculino-

feminino restando saber qual seria nesse caso o ponto intermeacutedio

O ponto intermeacutedio satildeo dois por um lado (e acima) a proacutepria porccedilatildeo racional da

alma que eacute inteiriccedila e natildeo se constitui de partes por outro (e abaixo) as paixotildees que resultam

(como A Q descreveraacute a seguir) da mescla entre as potecircncias ativa e passiva da alma As

triacuteades formadas portanto satildeo tambeacutem duas mas de tipos diferentes numa o ponto

intermeacutedio estaacute hierarquicamente acima dos termos opostos noutra hierarquicamente abaixo

A razatildeo da eficaacutecia persuasiva da muacutesica sobre a alma irracional reside

argumenta Quintiliano nas peculiaridades do seu aparato mimeacutetico que lhe permite produzir

a imitaccedilatildeo com mateacuteria similar agrave do objeto imitado Curiosamente esse aparato mimeacutetico eacute

tambeacutem triaacutedico pois a muacutesica imita6 os eacutethe e as paixotildees da alma com os conceitos

(ἐννοίαις) as palavras com as harmonias e a modulaccedilatildeo da voz (ἁρμονίαις καὶ φωνῆς

πλάσει) e a accedilatildeo com os ritmos e o movimento do corpo (ῥυθμοῖς καὶ κινήσει σώματος) A

muacutesica portanto abarca o universo inteiro da accedilatildeo humana desde o seu nascedouro (nos

movimentos afetivos e intelectuais da alma) ateacute sua exteriorizaccedilatildeo em forma de atos e

palavras

Ora sendo a muacutesica sobretudo uma terapia das paixotildees da alma (παθῶν ψυχικῶν

θεραπεία) cabe ao conceito (que siacutentese do conteuacutedo racional a transmitir e da impressatildeo

esteacutetico-emocional a causar estaacute relacionado ao movimentos internos da alma de onde brotam

as accedilotildees) o papel de guiar os elementos do meacutelos perfeito (dicccedilatildeo harmonia e ritmo) O cap8

e os seguintes a comeccedilar pelo trecho acima citado satildeo dedicados justamente a explicar

primeiro como se geram as paixotildees da alma e depois como a muacutesica eacute capaz de imitaacute-las e

de nelas intervir

De iniacutecio A Q trata da dualidade masculino-feminino como uma particularidade

do mundo corpoacutereo a que a alma tem de se submeter Reforccedila o caraacuteter especificamente

corpoacutereo dessa dualidade o fato de que ela natildeo se manifeste apenas em corpos animados (οὐκ

ἐν ἐμψύχοις μόνοις) mas tambeacutem em corpos governados por uma soacute natureza (ἀλλὰ κἀν τοῖς

φύσει μόνῃ διοικουμένοις) Essa observaccedilatildeo parece decorrer da necessidade de distinguir a jaacute

6 II 438-40

16

mencionada duplicidade da alma (razatildeo por que seria natural esperar que somente os corpos

animados estivessem submetidos agrave dualidade a dualidade ao menos entre corpo e alma) do

dualismo propriamente corpoacutereo Em todo caso embora tipicamente corpoacuterea a dualidade

masculino-feminino tambeacutem aqui natildeo se restringe ao fenocircmeno bioloacutegico da diferenciaccedilatildeo

sexual Aleacutem disso essa dualidade natildeo corresponde exatamente a duas espeacutecies opostas de

seres mas a dois polos de um eixo que atravessa de ponta a ponta o mundo corpoacutereo

alcanccedilando portanto e internamente todos os seres nele existentes Desse modo cada ente

particular pode ser tomado como uma resultante da interaccedilatildeo entre os dois princiacutepios em

relaccedilatildeo aos quais ele estabelece por sua vez um ponto intermeacutedio isto eacute uma mescla E eacute

precisamente na produccedilatildeo dessa mescla que o dualismo aniacutemico e o dualismo corpoacutereo se

articulam (II 816-28)

οὐ μόνον οὖν ἐφίεται σώματος ἀλλὰ καὶ τούτου ποιοῦ τινος ἢ γὰρ ἄρρεν

ἠγάπηκεν ἢ θῆλυ καὶ τούτων ὁτὲ μὲν ἄκρατον θάτερον ὁτὲ δὲ ἐξ ἀμφοῖν

ἔχον δεινήν τινα καὶ ὄντως ἄτοπον μίξιν αὐτίκα κἂν μὴ φύσει τοῦ

τοιούτου τύχωσι σώματος αὐταὶ ταῖς σφετέραις τροπαῖς μετερρύθμισάν

τε καὶ ἐς τὸ αὑταῖς ὅμοιον μετέστησαν οὕτως ἐν μὲν ἄρρεσι θῆλυς

ἐπιτρέχει μορφή δι ἣν καὶ ὁ βίος ὦπται τοιοῦτος ἐν δὲ γυναιξὶν ἀνδρεῖον

εἶδος ᾧ καὶ τὸ ἦθος ὅμοιον τεκμαιρόμεθα καὶ ἄνδρες μὴν ἀγένειοι καὶ

γενειάσκουσι γυναῖκες καί τις ἄρρην ἔβλεψεν ὑγρὸν καὶ γυναῖκες γοργὸν

προσεῖδον ὥστε καὶ τῶν ἠθῶν ἕκαστα θηράσεις ἑκάστῃ μορφῇ συνῳδά

A alma portanto natildeo soacute deseja um corpo mas certo tipo de corpo um

corpo masculino ou um corpo feminino Deseja dentre esses agraves vezes um

corpo puro de um tipo ou de outro agraves vezes um corpo que possua uma

curiosa e paradoxal mistura de ambos Assim quando natildeo conseguem

obter naturalmente esse determinado corpo as almas o remodelam

mediante torneios e o transformam em algo semelhante a si mesmas

Dessa forma sobre um corpo masculino recai uma forma feminina (razatildeo

por que tambeacutem sua vida assim se mostra) ou ainda sobre um corpo

feminino uma forma masculina no que tambeacutem assinalamos um eacutethos

similar Haacute homens imberbes e mulheres barbadas homens de lacircnguido

olhar e mulheres com mirada de Goacutergona de modo que cada eacutethos veraacutes

corresponde a uma fisionomia

Uma vez estabelecido o princiacutepio de que o dualismo aniacutemico de algum modo rege

o dualismo corpoacutereo A Q sente-se agrave vontade para tratar de um nos termos do outro

recorrendo para isso aos termos masculino e feminino (II 828-39)

ἐκ δὲ τῆς πρὸς τὸ ἄρρεν ἢ θῆλυ προσπαθείας ἢ πρὸς ἀμφότερον τὰ πάθη

συνίσταται περὶ ψυχήν τὸ μὲν οὖν θῆλυ λίαν ἀνειμένον ᾧ συνᾴδει τὸ

ἐπιθυμητικόν τὸ δ ἄρρεν σφοδρόν τε καὶ δραστήριον ᾧ τὸ θυμικὸν

ὡμοίωται περὶ μὲν οὖν τὸ θῆλυ ψυχῆς τε μέρος καὶ ἀνθρώπων γένος

πλεονάζουσι λῦπαι τε καὶ ἡδοναί περὶ δὲ τὸ ἄρρεν ὀργὴ καὶ θράσος

πάλιν δὲ τούτων γίνονται συζυγίαι λυπῶν τε πρὸς ἡδονὰς καὶ ὀργῆς πρὸς

θράσος καὶ θράσους πρὸς ἡδονὴν καὶ λύπην καὶ ὀργῆς αὖθις πρὸς

ἑκάτερον καὶ πάλιν ἑκάστου πρός τε ἓν καὶ πρὸς πλείω μίξεις καὶ μυρίας

ἄν τις ἐκ τούτων εὕροι τῶν παθῶν εἰκόνας ἐν ποικιλίᾳ θεωρουμένων

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Conforme o apego ao masculino ao feminino ou a ambos estabelecem-se

as paixotildees da alma O feminino eacute demasiado indulgente e com ele

concorda a alma desejante ao passo que o masculino semelhante agrave alma

impulsiva eacute veemente e ativo Assim tanto na parte feminina da alma

quanto na parcela feminina da humanidade abundam os prazeres e as

dores ao passo que na masculina a ira e a coragem E uma vez mais

datildeo-se combinaccedilotildees entre essas paixotildees das dores com os prazeres da ira

com a coragem da coragem com o prazer e a dor ou da ira novamente

com as demais e ainda de uma com outra qualquer ou com vaacuterias A

partir dessas seria possiacutevel encontrar uma miriacuteade de imagens das

paixotildees em vista da sua variedade

Se a alma por um lado submete o mundo corpoacutereo este por sua vez a espelha

macrocosmicamente nela interferindo mediante interaccedilotildees simpaacuteticas a exemplo do que

ocorre na muacutesica No entanto natildeo satildeo apenas as disposiccedilotildees passivas ou paixotildees que

estabelecem pontes entre a alma e a realidade corpoacuterea Tambeacutem as disposiccedilotildees ativas e

intelectivas estatildeo submetidas ao dualismo masculino-feminino (II 848-69)

ἔστι γὰρ πρῶτον μὲν ἐν ὁρατοῖς ἑκατέραν ἰδεῖν τὴν φύσιν τὸ μὲν

ἀνθηρόν τε καὶ ἐς ὡραϊσμὸν προςφυὲς χρῶμά τε καὶ σχῆμα διαιροῦντα

θηλύτητι τὸ δὲ στυγνόν τε καὶ ἐς σύννοιαν ἄγον ἀρρενότητι πάλιν δὲ ἐν

ἀκοαῖς τοὺς μὲν λείους καὶ προσηνεῖς ἤχους ἐς τὸ θῆλυ τοὺς δὲ

τραχυτέρους εἰς τοὐναντίον ἁρμόττοντα καί ἵνα μὴ τὰ καθ ἕκαστον

λέγω κοινῶς περὶ πάντων ἀποφαντέον ὡς ὅσα μὲν τῶν αἰσθητῶν ἔς τε

ἡδονὴν δελεάζει καὶ ἠρέμα διαχεῖν τὴν γνώμην πέφυκε ταῦτα εἰς τὸ θῆλυ

κριτέον ὅσα δὲ κινεῖ τε εἰς σύννοιαν καὶ ἐγείρει τὸ δραστήριον ταῦτα εἰς

τὴν ἄρρενος μοῖραν ἀπονεμητέον τὰ δέ τοι μηδέτερον ἢ κατὰ μίξιν ἄμφω

δρῶντα ταῦτα τῶν μέσων ἀποφαντέον κατὰ δὴ ταῦτα καὶ περὶ ἐκείνων

λέγωμεν αἳ λόγῳ μέν εἰσι καταληπταὶ τέχναι τε καὶ ἀρεταὶ καὶ ἐπιστῆμαι

ἐκ δὲ τῆς τῶν ὑλῶν ποιότητος περὶ ἃς ἑκάστη τευτάζει τὰς πρὸς ἀλλήλας

διαφορὰς καὶ ὁμοιότητας εἰλήχασιν αἵ τε ἀρεταὶ πρὸς τὰς ἀρετὰς αἵ τε

ἐπιστῆμαι πρὸς τὰς ἐπιστήμας κακίαι τε αὖ πρὸς κακίας καὶ

ἀνεπιστημοσύναι πρὸς ἀμαθίας πάλιν δὲ ἀρεταὶ πρὸς κακίας ἢ ἐπιστήμας

ἢ ἀγνωσίας κακίαι τε αὖ πρὸς τὰς εἰρημένας ποικίλης τινὸς καὶ τῆς κατὰ

ταῦτα πλοκῆς τε οὔσης καὶ μίξεως

A princiacutepio eacute de fato possiacutevel identificar nos objetos visiacuteveis cada

natureza separadamente atribuindo o florido e as formas e cores

decorativas ao feminino e as sombrias e que conduzem agrave reflexatildeo ao

masculino e o mesmo para as coisas audiacuteveis relacionando os sons

suaves e doces ao feminino e os mais aacutesperos ao seu oposto E para que

eu natildeo entre aqui em detalhes eacute preciso dizer que no geral as coisas

sensiacuteveis que induzem ao prazer e que natural e docemente dissolvem o

juiacutezo estas se devem considerar femininas ao passo que aquelas que nos

levam agrave reflexatildeo ou promovem a accedilatildeo se devem designar masculinas Jaacute

aquelas que natildeo atuam nem de uma nem de outra maneira ou o faccedilam

segundo uma mescla de ambas estas se hatildeo de chamar intermediaacuterias

Disso decorre que falemos nos mesmos termos a respeito tambeacutem das

coisas apreendidas pela razatildeo ndash as artes as virtudes e as ciecircncias ndash as

quais devem suas semelhanccedilas e diferenccedilas muacutetuas aos assuntos de que se

ocupam as virtudes no tocante agraves virtudes e as ciecircncias no tocante agraves

ciecircncias e por seu turno os viacutecios no que diz respeito aos viacutecios e a

incultura com respeito agraves ignoracircncias e ainda virtudes com respeito aos

viacutecios ciecircncias ou ignoracircncias e os viacutecios com respeito estes todos

sendo possiacutevel certa combinaccedilatildeo e mescla dessas coisas

18

Cabe observar como A Q ao traccedilar um perfil do masculino e do feminino natildeo

oferece uma lista de entes individuais mas um elenco geneacuterico de qualidades sensiacuteveis das

quais ele passa sem maior detenccedila para o toacutepico das naturezas intermediaacuterias em que estatildeo

incluiacutedas as artes as ciecircncias e as virtudes A menccedilatildeo agraves artes ciecircncias e virtudes eacute

importante neste momento porque uma vez explicado o processo pelo qual atraveacutes de

mesclas dos princiacutepios masculino e feminino satildeo engendradas as paixotildees da alma

Quintiliano deve agora retomar o fio da exposiccedilatildeo e mostrar como a muacutesica por meio de

conceitos palavras ritmos e melodias eacute capaz de imitar essas mesmas paixotildees virtudes

viacutecios etc comunicando agrave alma o respectivo eacutethos Eacute o que faraacute no restante do livro II

23 Os conceitos

No iniacutecio do cap9 A Q retoma o tema dos conceitos com o qual tinha

concluiacutedo o cap7 antes da relativamente longa mas necessaacuteria digressatildeo acerca das paixotildees

da alma O propoacutesito do autor eacute demonstrar como um poeta eacute capaz de transmitir os conceitos

que deseje mediante o emprego de certos procedimentos retoacutericos A Q utiliza exemplos

extraiacutedos de Homero nos quais aponta como o poeta mesclando traccedilos masculinos e

femininos consegue traduzir em palavras uma gama complexa de impressotildees desde

sensaccedilotildees fiacutesicas como rapidez suavidade ou agitaccedilatildeo ateacute caracteres ou julgamentos morais

Esse conceitos (ἐννοήματα) compostos de traccedilos masculinos e femininos ndash conceitos que por

sua vez entram na composiccedilatildeo eacutetica das frases e dos discursos ndash A Q os compara aos

extratos dos quais satildeo feitos os remeacutedios7 e conclui (II 103-18)

τὰ μὲν οὖν ἐς ἄνεσιν ἄγοντα καὶ φαιδρότητα τὸν ἀφελῆ τε καὶ ἡδὺν λόγον

ἐγέννησε τὰ δὲ τὸ σύννουν κινοῦντα καὶ τὸ ὁρμητικὸν τὸν πολιτικόν τε

καὶ ἀγωνιστικὸν ἐξέφηνεν τοῦ μὲν οὖν πολιτικοῦ κατὰ τὸ ἄρρεν τὰ εἴδη

συντομίαι τε καὶ βραχύτητες καὶ ἀξίωμα καὶ μεγαλοπρέπεια τραχύτης τε

καὶ σφοδρότης καὶ μέγεθος καὶ μεστότης ἅπερ τήν τε φυσικὴν ἐμφαίνει

μεγαλόνοιαν τοῦ ἄρρενος μέγεθός τε σώματος καὶ ἁδροτῆτα διανοίας καὶ

τὸ ἐς τὰ μέγιστα τῶν ἔργων ἀνυτικὸν τάχος τοῦ δὲ ἀφελοῦς ἀραιότης

ἁβρότης κάλλη τε καὶ γλυκύτητες ὧν τὰ μὲν τὸ ἀνειμένον τοῦ θήλεος τὰ

δὲ τὸ ἐς ὡραϊσμὸν διαδείκνυσιν ἐπτοημένον γένοιτο δ ἄν τι καὶ τῇ

τούτων πλοκῇ οἷον ἡ δριμύτης τὸ μὲν τάχος ὡς ἄρρεν τὸ δὲ

μικροπρεπὲς ὡς ἐναντίον ἐπιφαίνουσα ἥ τ ἐπιμέλεια τὸ μὲν γλίσχρον

ἔχουσα κατὰ τὸ θῆλυ τὸ δὲ τῆς φιλοπονίας παρεκτεταμένον ὡς ἄρρεν

Assim os conceitos que levam agrave descontraccedilatildeo e agrave alegria produzem uma

frase despojada e doce enquanto os conceitos que mobilizam as partes

intelectiva e impulsiva produzem a frase contenciosa e poliacutetica Os traccedilos

da frase poliacutetica relacionados ao masculino satildeo concisatildeo brevidade

dignidade e elevaccedilatildeo assim como aspereza forccedila grandeza e

completude traccedilos que mostram a grandiosidade natural do masculino a

7 Uma comparaccedilatildeo semelhante jaacute tinha sido feita em II 47-12

19

magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores

trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e

doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros

a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a

exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e

atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade

como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo

masculino

Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem

duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel

Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade

contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de

masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e

mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos

interessa aqui compreender

Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase

feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por

ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por

ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo

como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa

ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de

desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo

remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na

disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma

Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que

poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade

seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma

caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel

quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a

porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade

contradiccedilatildeo alguma

No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a

capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente

aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam

o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante

uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses

materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes

20

Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro

tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais

duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do

diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons

livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma

martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente

tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade

Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a

accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua

presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No

capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a

dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do

discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto

24 As letras

Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto

καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων

γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς

φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς

τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον

ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως

περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων

ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων

τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ

ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε

πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ

ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα

μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν

χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον

ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς

ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς

τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον

διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως

τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν

ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων

κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος

ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ

τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως

eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo

de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais

outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como

as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido

satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que

limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves

enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade

21

temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo

dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo

que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente

eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o

lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute

atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por

sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a

passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes

outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se

com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar

jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua

a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio

das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona

ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o

emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito

aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias

e possuem ambas as naturezas

A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo

primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso

masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais

Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da

classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam

espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo

das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as

consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto

consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as

consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave

nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na

sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz

respeito agraves letras8

As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo

claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que

pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo

Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das

vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de

assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as

quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das

letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes

8 Cf Chapanski 2003 p 22-24

22

Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes

que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais

proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias

enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais

proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em

relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade

As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de

articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua

vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto

meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais

tau delta e theta As guturais capa gama e khi

Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como

ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo

que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as

surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste

em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de

separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas

silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)

seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as

consoantes o polo essencial (formal ou masculino)

AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo

seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais

(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a

doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo

princiacutepio dualista

25 As vogais e o solfejo

Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o

meacutelos (II 126-10)

Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι

λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα

τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ

μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει

23

O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a

harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que

se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo

percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e

ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos

Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo

de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I

Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de

disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute

apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma

harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo

especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das

mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder

perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o

objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e

o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir

encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)

Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς

κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ

ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ

μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον

μετεσχηκότες

A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe

tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e

masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo

intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos

gecircneros com maior ou menor intensidade

No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre

elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa

diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino (II 131-35)

Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς

πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα

πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων

ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς

ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε

τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς

ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς

μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ

συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ

9 Cf West 1994 p178

24

πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα

δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν

ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως

ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt

κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ

λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν

μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ

ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν

ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο

καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως

ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα

φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt

νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται

πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται

τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ

γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων

καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις

σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα

καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ

ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ

Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute

captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as

letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete

examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra

as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e

masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons

mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute

masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois

nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o

ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o

som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige

que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o

alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da

sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua

estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado

intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta

quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino

quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa

na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a

exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta

trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do

alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior

parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo

lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses

examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos

constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e

terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons

semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros

Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais

nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas

internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para

isso novos paracircmetros

O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio

que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou

25

fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais

vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora

a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem

interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)

estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto

importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado

designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais

satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas

Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute

Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de

masculino e feminino em si mesmas10

Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos

remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a

esfericidade da alma11

(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash

mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso

Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves

a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon

feminino) refira-se justamente a esse arredondamento

As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em

razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas

(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua

ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente

relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal

O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do

eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os

extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo

masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo

entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da

verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o

10

Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido

Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo

metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das

observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11

Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De

Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por

que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora

o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo

26

sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo

entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta

Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo

verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave

segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo

lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros

Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro

obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo

excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no

solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)

Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ

εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί

τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες

ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ

αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων

περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ

τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν

τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς

πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ

ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ

λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος

διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt

εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους

διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν

λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ

πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν

μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν

Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente

passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega

satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se

articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que

o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam

intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez

sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por

intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos

dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de

acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos

da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam

No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido

com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das

vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o

ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons

que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida

vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava

em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos

posteriormente por que isso eacute assim

A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim

ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo

27

O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de

quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de

quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores

distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12

Do grave para o agudo (ou de

cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram

denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica

(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era

acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de

um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira

(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da

uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons

ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro

tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo

(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom

O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute

justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do

tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao

ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira

(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da

sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada

μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito

formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava

formado com a nota acrescida

Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada

tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou

agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por

eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)

Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει

κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ

τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν

πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ

θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα

γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά

12

Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2

T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)

28

Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao

masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos

em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram

dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os

sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no

entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da

passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes

Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave

formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo

decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso

ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como

o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13

os rechaccedilavam por

completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14

(II 1488-90)

περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς

παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας

Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam

na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da

alma

Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos

instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo

mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes

mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais

como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se

apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta

a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo

a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as

noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura

tonal (II 1623-40)

Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα

διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ

θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος

μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα

εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν

ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ

τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ

πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν

περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον

θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον

ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι

13

Repuacuteblica 398c 14

Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)

29

δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς

τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν

οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν

ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt

Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela

sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute

feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais

do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua

tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se

descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade

e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por

gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito

debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde

participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira

participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros

intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua

natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar

cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza

iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo

interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam

familiares

No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os

instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o

dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em

que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria

dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado

por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da

muacutesica sobre a alma

O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro

245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo

ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees

superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da

regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo

anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto

ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees

hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm

pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15

15

Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida

(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a

associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre

medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente

que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento

que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a

30

Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite

(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os

nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm

unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses

nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo

masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria

Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo

residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real

manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo

um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas

entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do

universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os

planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros

26 A muacutesica das esferas

Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves

teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem

acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma

definiccedilatildeo (III 211-6)

Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν

ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ

φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον

τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν

διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει

Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o

feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e

amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o

esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de

sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo

AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero

proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute

elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza

(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas

antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura

que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo

31

Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os

planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e

femininas (III 216-40)

ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης

γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον

ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ

δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ

ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ

θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι

τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον

μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε

μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης

προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ

πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος

ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ

νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ

ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε

ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς

Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης

ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως

ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε

θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ

ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν

ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε

ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης

ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ

μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν

παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ

τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων

συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν

θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ

ἐπίπονος τὸν ἄρρενα

A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por

toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda

um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do

feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa

tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e

nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios

e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do

feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de

Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota

acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute

no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol

(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se

regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem

tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais

familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute

luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente

uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente

feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol

emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e

impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som

que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo

de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante

ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma

equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de

32

Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e

quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo

sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que

eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino

Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal

correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota

do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao

eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de

masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as

devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam

a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde

PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO

NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa

VOGAL ε α η ω α η Ω

Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a

meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o

eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe

apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por

outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela

soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim

seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo

ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas

pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo

Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco

pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter

especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a

correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e

as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como

essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda

oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de

Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido

Primeiro tetracorde Segundo tetracorde

33

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico

Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o

ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava

somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por

uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado

ou o ponto intermeacutedio

Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica

inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo

princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros

e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado

sob sua tutela

Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a

muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a

qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto

meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional

passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num

polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a

alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a

alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de

Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge

para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim

sucessivamente

Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua

organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata

da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se

reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical

os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura

da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual

o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado

primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas

mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro

torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim

dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16

16

Gueacutenon 1999 p23

34

No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser

dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de

analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre

regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos

incomensuraacuteveis

Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de

seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas

vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade

necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que

estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade

assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada

impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a

um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por

exemplo da lua e da alma

Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as

ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou

aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que

embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres

ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia

nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de

fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas

qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas

graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo

tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais

uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a

coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e

lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num

mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao

masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora

dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo

Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo

de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o

acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o

35

fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino

teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse

fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo

Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo

contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa

A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o

outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre

quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na

quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um

compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la

A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-

feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e

feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a

posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria

necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo

para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente

masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude

de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo

privativa

Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito

de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem

duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e

quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre

ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos

guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e

sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais

difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta

porosa uacutemida ou fechada

Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a

sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns

dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso

condiccedilotildees

Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo

naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem

36

necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas

se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou

outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)

Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo

condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de

fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees

associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o

caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute

necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa

objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da

mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos

dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do

iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num

patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado

intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos

individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo

Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees

de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam

somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre

esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes

noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre

relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma

espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila

Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos

loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou

analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ

ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)

A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas

relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse

processo igualmente uma relaccedilatildeo

Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et

du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee

notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas

moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux

celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou

encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de

nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui

37

exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est

en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le

plus petit comme analogue du plus grand)17

Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que

unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter

entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel

unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia

Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres

primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune

corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos

on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification

du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par

harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se

ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une

neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au

deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure

deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en

son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception

originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la

conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique

de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre

partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18

Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de

predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e

mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na

matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo

desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =

2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que

a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas

premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo

A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-

1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua

vez se apoiu em Aristoacuteteles19

) estabelece trecircs tipos de analogia20

A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o

termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo

17

Borella 2012 p23 18

Moutsopoulos 2004 p203-204 19

Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada

pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais

ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre

chez Aristote Paris PUF 1962 20

A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23

38

grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

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Page 12: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

12

relevante entre os dois termos ambos apontam para uma acepccedilatildeo mais abrangente e mais

primitiva do rhythmoacutes Segundo Colomer e Gil (op cit loc cit) ldquoos termos rhythmoacutes e

schecircma foram a princiacutepio quase sinocircnimos embora depois a palavra rhythmoacutes se tenha

aplicado preferencialmente agrave forma em movimento e schecircma agrave forma estaacuteticardquo Ora essa

identificaccedilatildeo originaacuteria se esclarece a primeira e a segunda acepccedilotildees atribuiacutedas por A Q ao

termo ritmo (o ritmo dos corpos imoacuteveis e dos corpos moacuteveis) igualmente demonstra a

profunda unidade que coere aquelas trecircs acepccedilotildees pois em todas predomina a ideia de uma

determinaccedilatildeo formal

Haacute no entanto apesar dos paralelismos (mesmo no tocante agrave ordem de

exposiccedilatildeo) uma diferenccedila notaacutevel entre os textos de Aristoacutexeno e de Aristides Quintiliano Eacute

que Aristoacutexeno embora visivelmente preocupado esmiuccedilar a diferenccedila entre o ritmo e os

ritmaacuteveis natildeo recore para isso agraves noccedilotildees de masculino e feminino O tratado de Aristoacutexeno

tudo indica foi uma das principais fontes dos caps 13-19 do Livro I de A Q mas certamente

natildeo foi a uacutenica

Embora como sugerem Colomer e Gil o ingresso na teoria musical dos termos

masculino e feminino possa ter tido origem damoniana (e natildeo ser portanto histoacuterica e

originalmente pitagoacuterica) natildeo haacute duacutevida de que os termos ἄρρεν e θῆλυ fazem parte do

vocabulaacuterio filosoacutefico pitagoacuterico Sabemos disso porque Aristoacuteteles (Metafiacutesica 986a25) os

elenca entre famosos dez princiacutepios pitagoacutericos Noutra passagem da Metafiacutesica (988a2-10)

em que critica a concepccedilatildeo pitagoacuterico-platocircnica da diacuteada Aristoacuteteles natildeo somente explica a

conexatildeo entre as noccedilotildees de forma e mateacuteria e o par masculino-feminino mas afirma o caraacuteter

principial deste uacuteltimo

Com efeito eles pretendem derivar da mateacuteria uma multiplicidade se

bem que a Forma soacute gere uma vez ora o que observamos eacute que a mesa eacute

feita de um pedaccedilo de mateacuteria enquanto o homem que aplica a forma

apesar de ser um faz muitas mesas E a relaccedilatildeo entre macho e fecircmea

assemelha-se a esta pois a fecircmea eacute emprenhada numa soacute coacutepula ao passo

que o macho emprenha muitas fecircmeas E todavia estes fatos satildeo imagens

daqueles primeiros princiacutepios Eis aiacute pois como se pronunciou Platatildeo

acerca destes problemas pelo que ficou ditou eacute evidente que ele usou

apenas duas causas a essencial e a material ()

Se os fatos aparentemente desconexos da reproduccedilatildeo sexuada e da fabricaccedilatildeo de

uma mesa satildeo imagens ou imitaccedilotildees (μιμήματα) daqueles princiacutepios (τῶν ἀρχῶν ἐκείνων)

isto eacute dos princiacutepios essencial e substancial ndash ou em linguagem aristoteacutelica da causa material

e da causa formal ndash natildeo somente eacute liacutecito contar com a manifestaccedilatildeo desses princiacutepios tambeacutem

fato de que na passagem em tela ele recorra ao expediente privativo em vez empregar os termos proacuteprios natildeo

obscurece a distinccedilatildeo conceitual

13

no acircmbito da muacutesica mas se torna imperioso recorrer a eles quando se deseja como deseja

Quintiliano oferecer um vislumbre do cosmo total desde o microcosmo particular da muacutesica

Eacute o que trataremos de observar a seguir

22 Corpo e alma

Apoacutes ter introduzido no fim do cap19 as noccedilotildees de masculino e feminino A Q

natildeo volta a mencionaacute-las em nenhum momento ateacute o final do Livro I Natildeo quer isso dizer

todavia que ele jaacute natildeo as leve em conta ou pelo menos que natildeo as subentenda de algum

modo Em todo caso soacute deveraacute retomaacute-las em caraacuteter expliacutecito e operativo a partir do cap8

do Livro II

Φαίνεταί μοι τοίνυν ἡ ψυχή πόρρω μὲν τῶνδε ἡνίκα ἐστὶν ὁμιλοῦσα τῷ

κρείττονι λόγῳ τε ὁμέστιος εἶναι καὶ καθαρεύειν ἐπιθυμίας ἐπὰν δὲ ἐπὶ

τάδε ἀγκλίνῃ καὶ τὴν ἐνταῦθα διατριβὴν πείρᾳ μαθεῖν ἐπιχειρήσῃ

τηνικαῦτα αὐτῇ σώματός τε ἐγγίνεται χρεία καὶ σῶμα ἐπιζητεῖ

πρόσφορον ὑπόκειται δ αὐτῇ θεωρεῖν τὴν ἐν τούτοις διπλόην

ἀρρενότητά τέ φημι καὶ θηλύτητα ἥτις οὐκ ἐν ἐμψύχοις μόνοις ἄρα ἦν

ἀλλὰ κἀν τοῖς φύσει μόνῃ διοικουμένοις φυτῶν τε ὅσα μετάλλων τε

γένη καὶ ἀρωμάτων καὶ γὰρ τούτων δυάς τις ἐπιφαίνεται ἤτοι δι

ἁπαλότητος ἢ λειότητος ἢ εὐχροίας ἢ εὐωδίας ἢ καὶ τῶν ἐναντίων τὴν

ἑτέραν ἐπιδεικνυμένων φύσιν

Parece-me de fato que a alma quando distante das coisas e em comeacutercio

com o superior coabita com a razatildeo e estaacute livre de desejos mas quando

inclina-se para as coisas daqui e intenta aprender atraveacutes da experiecircncia

um modo de existir no tempo entatildeo sendo-lhe necessaacuterio um corpo ela

busca um corpo que lhe seja adequado E eacute da natureza da alma no

tocante aos corpos atentar para a dualidade ou seja para a masculinidade

e para a feminilidade dualidade presente natildeo soacute nos corpos animados

mas tambeacutem nos governados por uma soacute natureza tais como os gecircneros

das plantas dos metais e dos aromas pois tambeacutem neles se manifesta

certa dualidade pois seja pela brandura ou pela suavidade pela bela

aparecircncia ou pelo bom odor seja pelas qualidades contraacuterias apontam

para uma ou outra natureza (II 81-12)

Uma raacutepida contextualizaccedilatildeo nos permitiraacute compreender melhor tanto esta quanto

as demais passagens do cap8 Todo o livro II eacute dedicado agravequilo que no cap5 do livro I A Q

havia definido como muacutesica praacutetica (πρακτικόν) ou educativa (παιδευτικόν) Antes poreacutem de

tratar do seu tema propriamente A Q sente a necessidade de responder agraves objeccedilotildees dos

ceacuteticos4 (dentre os quais ningueacutem menos que Ciacutecero a quem Quintiliano poreacutem hesita em

4 ldquoEacute possiacutevel que os educadores romanos pensassem como Epicuro para quem a muacutesica natildeo tinha qualquer

significado aleacutem de um jogo de sons e concordassem com Ciacutecero que afirmava lsquoque a muacutesica natildeo tem utilidade

alguma aleacutem de um prazer infantil sem valor nenhum posto que natildeo pode guiar-nos agrave felicidadersquo Segundo o

autor romano Corneacutelius Nepos do seacutec I d C lsquoningueacutem ignora que a muacutesica segundo o estado de nossos

costumes natildeo conveacutem a um personagem importantersquo apesar de ter sido levada entre os gregos como lsquodigna de

14

atribuir juiacutezos desfavoraacuteveis acerca da muacutesica) fundamentar a proacutepria ideia de uma formaccedilatildeo

moral atraveacutes da muacutesica E como a accedilatildeo da muacutesica sobre a alma depende tanto da capacidade

ativa da primeira quanto da capacidade receptiva da uacuteltima eacute por esta que ele comeccedila

A alma diz eacute responsaacutevel por dotar de certo ritmo e de ordem (ῥυθμοῦ τινος καὶ

τάξεως) as coisas deste mundo (τῶν ἐνθαδί) Poderiacuteamos dizer embora Quintiliano natildeo o faccedila

aqui explicitamente que a alma portanto eacute masculina em relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Mas

para que possa ser isso eacute preciso que natildeo seja apenas isso De fato diz A Q a alma natildeo

possui uma natureza ou potecircncia uacutenica (οὐδὲ τῶν μονήρη τινὰ φύσιν ἢ δύναμιν ἐχόντων) mas

certa natureza dupla (διπλῆς τινος φύσεως)

A duplicidade da alma consiste em ter sido dotada pelo administrador de todas as

coisas (ὁ τὸ σύπαν διοικῶν) de uma substacircncia divina na qual habita a razatildeo (λoacuteγος) e de

uma substacircncia mundana ou irracional (ἄλογος) na qual habita o desejo (ἐπιθυμία) As duas

naturezas ou potecircncias satildeo necessaacuterias para que a alma atue sobre o mundo corpoacutereo e essa

natureza duacuteplice sem a qual ela seria ineficaz pode-se definir assim a alma soacute eacute ativa em

relaccedilatildeo ao mundo corpoacutereo na medida em que eacute passiva em relaccedilatildeo ao mundo racional Ora a

muacutesica diz Quintiliano no iniacutecio do cap3 do livro II estaacute para a alma irracional assim como a

filosofia estaacute para a alma racional Desse modo ao submeter-se agrave muacutesica a alma irracional

submete-se igualmente agrave razatildeo pois a muacutesica eacute no fundo razatildeo transformada em mateacuteria

sensiacutevel tal como a alma mesma

Isso poreacutem natildeo eacute tudo Entre as duas naturezas da alma haacute um ponto intermeacutedio

que ao submeter o desejo agrave razatildeo confere unidade agraves duas metades Esse ponto intermeacutedio eacute

a memoacuteria (μνήμη) Memoacuteria eacute claro das belezas eternas do mundo suprassensiacutevel5 Desse

modo o dualismo aniacutemico resolve-se num elemento intermediaacuterio resultante da interaccedilatildeo

entre os polos extremos com os quais forma afinal uma triacuteade

Paralelamente a alma (tomada como unidade natildeo mais segundo a interaccedilatildeo das

suas partes) sendo a um soacute tempo ativa (frente ao mundo sensiacutevel) e passiva (perante o

mundo racional) eacute ela proacutepria um ponto intermeacutedio resultante da interaccedilatildeo entre polos

opostos com os quais por sua vez tambeacutem compotildee uma triacuteade As partes e o todo o

microcosmo e macrocosmo assim espelham-se mutuamente

consideraccedilatildeo e estimarsquo rdquo CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-

kagathiacutea Classica (Brasil) 2412 73-85 2011 5 Mesmo se desconsiderarmos esse elemento doutrinal platocircnico a memoacuteria seria ainda uma bela e eficaz

imagem da uniatildeo entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo pois a memoacuteria eacute uma operaccedilatildeo estritamente mental cujos

objetos no entanto satildeo todos oriundos da experiecircncia sensiacutevel

15

Mas a porccedilatildeo desejante (ou irracional) da alma possui igualmente as suas partes

A Q as denomina desejante (ἐπιθυμητική) a qual tende ao relaxamento (ou relaxaccedilatildeo

indulgecircncia) excessivo e impulsiva (θυμικὴ) que tende a uma tensatildeo igualmente desmedida

Fica claro desde logo embora Quintiliano reserve esse comentaacuterio para mais adiante que as

duas porccedilotildees da alma irracional formam uma oposiccedilatildeo do tipo ativo-passivo ou masculino-

feminino restando saber qual seria nesse caso o ponto intermeacutedio

O ponto intermeacutedio satildeo dois por um lado (e acima) a proacutepria porccedilatildeo racional da

alma que eacute inteiriccedila e natildeo se constitui de partes por outro (e abaixo) as paixotildees que resultam

(como A Q descreveraacute a seguir) da mescla entre as potecircncias ativa e passiva da alma As

triacuteades formadas portanto satildeo tambeacutem duas mas de tipos diferentes numa o ponto

intermeacutedio estaacute hierarquicamente acima dos termos opostos noutra hierarquicamente abaixo

A razatildeo da eficaacutecia persuasiva da muacutesica sobre a alma irracional reside

argumenta Quintiliano nas peculiaridades do seu aparato mimeacutetico que lhe permite produzir

a imitaccedilatildeo com mateacuteria similar agrave do objeto imitado Curiosamente esse aparato mimeacutetico eacute

tambeacutem triaacutedico pois a muacutesica imita6 os eacutethe e as paixotildees da alma com os conceitos

(ἐννοίαις) as palavras com as harmonias e a modulaccedilatildeo da voz (ἁρμονίαις καὶ φωνῆς

πλάσει) e a accedilatildeo com os ritmos e o movimento do corpo (ῥυθμοῖς καὶ κινήσει σώματος) A

muacutesica portanto abarca o universo inteiro da accedilatildeo humana desde o seu nascedouro (nos

movimentos afetivos e intelectuais da alma) ateacute sua exteriorizaccedilatildeo em forma de atos e

palavras

Ora sendo a muacutesica sobretudo uma terapia das paixotildees da alma (παθῶν ψυχικῶν

θεραπεία) cabe ao conceito (que siacutentese do conteuacutedo racional a transmitir e da impressatildeo

esteacutetico-emocional a causar estaacute relacionado ao movimentos internos da alma de onde brotam

as accedilotildees) o papel de guiar os elementos do meacutelos perfeito (dicccedilatildeo harmonia e ritmo) O cap8

e os seguintes a comeccedilar pelo trecho acima citado satildeo dedicados justamente a explicar

primeiro como se geram as paixotildees da alma e depois como a muacutesica eacute capaz de imitaacute-las e

de nelas intervir

De iniacutecio A Q trata da dualidade masculino-feminino como uma particularidade

do mundo corpoacutereo a que a alma tem de se submeter Reforccedila o caraacuteter especificamente

corpoacutereo dessa dualidade o fato de que ela natildeo se manifeste apenas em corpos animados (οὐκ

ἐν ἐμψύχοις μόνοις) mas tambeacutem em corpos governados por uma soacute natureza (ἀλλὰ κἀν τοῖς

φύσει μόνῃ διοικουμένοις) Essa observaccedilatildeo parece decorrer da necessidade de distinguir a jaacute

6 II 438-40

16

mencionada duplicidade da alma (razatildeo por que seria natural esperar que somente os corpos

animados estivessem submetidos agrave dualidade a dualidade ao menos entre corpo e alma) do

dualismo propriamente corpoacutereo Em todo caso embora tipicamente corpoacuterea a dualidade

masculino-feminino tambeacutem aqui natildeo se restringe ao fenocircmeno bioloacutegico da diferenciaccedilatildeo

sexual Aleacutem disso essa dualidade natildeo corresponde exatamente a duas espeacutecies opostas de

seres mas a dois polos de um eixo que atravessa de ponta a ponta o mundo corpoacutereo

alcanccedilando portanto e internamente todos os seres nele existentes Desse modo cada ente

particular pode ser tomado como uma resultante da interaccedilatildeo entre os dois princiacutepios em

relaccedilatildeo aos quais ele estabelece por sua vez um ponto intermeacutedio isto eacute uma mescla E eacute

precisamente na produccedilatildeo dessa mescla que o dualismo aniacutemico e o dualismo corpoacutereo se

articulam (II 816-28)

οὐ μόνον οὖν ἐφίεται σώματος ἀλλὰ καὶ τούτου ποιοῦ τινος ἢ γὰρ ἄρρεν

ἠγάπηκεν ἢ θῆλυ καὶ τούτων ὁτὲ μὲν ἄκρατον θάτερον ὁτὲ δὲ ἐξ ἀμφοῖν

ἔχον δεινήν τινα καὶ ὄντως ἄτοπον μίξιν αὐτίκα κἂν μὴ φύσει τοῦ

τοιούτου τύχωσι σώματος αὐταὶ ταῖς σφετέραις τροπαῖς μετερρύθμισάν

τε καὶ ἐς τὸ αὑταῖς ὅμοιον μετέστησαν οὕτως ἐν μὲν ἄρρεσι θῆλυς

ἐπιτρέχει μορφή δι ἣν καὶ ὁ βίος ὦπται τοιοῦτος ἐν δὲ γυναιξὶν ἀνδρεῖον

εἶδος ᾧ καὶ τὸ ἦθος ὅμοιον τεκμαιρόμεθα καὶ ἄνδρες μὴν ἀγένειοι καὶ

γενειάσκουσι γυναῖκες καί τις ἄρρην ἔβλεψεν ὑγρὸν καὶ γυναῖκες γοργὸν

προσεῖδον ὥστε καὶ τῶν ἠθῶν ἕκαστα θηράσεις ἑκάστῃ μορφῇ συνῳδά

A alma portanto natildeo soacute deseja um corpo mas certo tipo de corpo um

corpo masculino ou um corpo feminino Deseja dentre esses agraves vezes um

corpo puro de um tipo ou de outro agraves vezes um corpo que possua uma

curiosa e paradoxal mistura de ambos Assim quando natildeo conseguem

obter naturalmente esse determinado corpo as almas o remodelam

mediante torneios e o transformam em algo semelhante a si mesmas

Dessa forma sobre um corpo masculino recai uma forma feminina (razatildeo

por que tambeacutem sua vida assim se mostra) ou ainda sobre um corpo

feminino uma forma masculina no que tambeacutem assinalamos um eacutethos

similar Haacute homens imberbes e mulheres barbadas homens de lacircnguido

olhar e mulheres com mirada de Goacutergona de modo que cada eacutethos veraacutes

corresponde a uma fisionomia

Uma vez estabelecido o princiacutepio de que o dualismo aniacutemico de algum modo rege

o dualismo corpoacutereo A Q sente-se agrave vontade para tratar de um nos termos do outro

recorrendo para isso aos termos masculino e feminino (II 828-39)

ἐκ δὲ τῆς πρὸς τὸ ἄρρεν ἢ θῆλυ προσπαθείας ἢ πρὸς ἀμφότερον τὰ πάθη

συνίσταται περὶ ψυχήν τὸ μὲν οὖν θῆλυ λίαν ἀνειμένον ᾧ συνᾴδει τὸ

ἐπιθυμητικόν τὸ δ ἄρρεν σφοδρόν τε καὶ δραστήριον ᾧ τὸ θυμικὸν

ὡμοίωται περὶ μὲν οὖν τὸ θῆλυ ψυχῆς τε μέρος καὶ ἀνθρώπων γένος

πλεονάζουσι λῦπαι τε καὶ ἡδοναί περὶ δὲ τὸ ἄρρεν ὀργὴ καὶ θράσος

πάλιν δὲ τούτων γίνονται συζυγίαι λυπῶν τε πρὸς ἡδονὰς καὶ ὀργῆς πρὸς

θράσος καὶ θράσους πρὸς ἡδονὴν καὶ λύπην καὶ ὀργῆς αὖθις πρὸς

ἑκάτερον καὶ πάλιν ἑκάστου πρός τε ἓν καὶ πρὸς πλείω μίξεις καὶ μυρίας

ἄν τις ἐκ τούτων εὕροι τῶν παθῶν εἰκόνας ἐν ποικιλίᾳ θεωρουμένων

17

Conforme o apego ao masculino ao feminino ou a ambos estabelecem-se

as paixotildees da alma O feminino eacute demasiado indulgente e com ele

concorda a alma desejante ao passo que o masculino semelhante agrave alma

impulsiva eacute veemente e ativo Assim tanto na parte feminina da alma

quanto na parcela feminina da humanidade abundam os prazeres e as

dores ao passo que na masculina a ira e a coragem E uma vez mais

datildeo-se combinaccedilotildees entre essas paixotildees das dores com os prazeres da ira

com a coragem da coragem com o prazer e a dor ou da ira novamente

com as demais e ainda de uma com outra qualquer ou com vaacuterias A

partir dessas seria possiacutevel encontrar uma miriacuteade de imagens das

paixotildees em vista da sua variedade

Se a alma por um lado submete o mundo corpoacutereo este por sua vez a espelha

macrocosmicamente nela interferindo mediante interaccedilotildees simpaacuteticas a exemplo do que

ocorre na muacutesica No entanto natildeo satildeo apenas as disposiccedilotildees passivas ou paixotildees que

estabelecem pontes entre a alma e a realidade corpoacuterea Tambeacutem as disposiccedilotildees ativas e

intelectivas estatildeo submetidas ao dualismo masculino-feminino (II 848-69)

ἔστι γὰρ πρῶτον μὲν ἐν ὁρατοῖς ἑκατέραν ἰδεῖν τὴν φύσιν τὸ μὲν

ἀνθηρόν τε καὶ ἐς ὡραϊσμὸν προςφυὲς χρῶμά τε καὶ σχῆμα διαιροῦντα

θηλύτητι τὸ δὲ στυγνόν τε καὶ ἐς σύννοιαν ἄγον ἀρρενότητι πάλιν δὲ ἐν

ἀκοαῖς τοὺς μὲν λείους καὶ προσηνεῖς ἤχους ἐς τὸ θῆλυ τοὺς δὲ

τραχυτέρους εἰς τοὐναντίον ἁρμόττοντα καί ἵνα μὴ τὰ καθ ἕκαστον

λέγω κοινῶς περὶ πάντων ἀποφαντέον ὡς ὅσα μὲν τῶν αἰσθητῶν ἔς τε

ἡδονὴν δελεάζει καὶ ἠρέμα διαχεῖν τὴν γνώμην πέφυκε ταῦτα εἰς τὸ θῆλυ

κριτέον ὅσα δὲ κινεῖ τε εἰς σύννοιαν καὶ ἐγείρει τὸ δραστήριον ταῦτα εἰς

τὴν ἄρρενος μοῖραν ἀπονεμητέον τὰ δέ τοι μηδέτερον ἢ κατὰ μίξιν ἄμφω

δρῶντα ταῦτα τῶν μέσων ἀποφαντέον κατὰ δὴ ταῦτα καὶ περὶ ἐκείνων

λέγωμεν αἳ λόγῳ μέν εἰσι καταληπταὶ τέχναι τε καὶ ἀρεταὶ καὶ ἐπιστῆμαι

ἐκ δὲ τῆς τῶν ὑλῶν ποιότητος περὶ ἃς ἑκάστη τευτάζει τὰς πρὸς ἀλλήλας

διαφορὰς καὶ ὁμοιότητας εἰλήχασιν αἵ τε ἀρεταὶ πρὸς τὰς ἀρετὰς αἵ τε

ἐπιστῆμαι πρὸς τὰς ἐπιστήμας κακίαι τε αὖ πρὸς κακίας καὶ

ἀνεπιστημοσύναι πρὸς ἀμαθίας πάλιν δὲ ἀρεταὶ πρὸς κακίας ἢ ἐπιστήμας

ἢ ἀγνωσίας κακίαι τε αὖ πρὸς τὰς εἰρημένας ποικίλης τινὸς καὶ τῆς κατὰ

ταῦτα πλοκῆς τε οὔσης καὶ μίξεως

A princiacutepio eacute de fato possiacutevel identificar nos objetos visiacuteveis cada

natureza separadamente atribuindo o florido e as formas e cores

decorativas ao feminino e as sombrias e que conduzem agrave reflexatildeo ao

masculino e o mesmo para as coisas audiacuteveis relacionando os sons

suaves e doces ao feminino e os mais aacutesperos ao seu oposto E para que

eu natildeo entre aqui em detalhes eacute preciso dizer que no geral as coisas

sensiacuteveis que induzem ao prazer e que natural e docemente dissolvem o

juiacutezo estas se devem considerar femininas ao passo que aquelas que nos

levam agrave reflexatildeo ou promovem a accedilatildeo se devem designar masculinas Jaacute

aquelas que natildeo atuam nem de uma nem de outra maneira ou o faccedilam

segundo uma mescla de ambas estas se hatildeo de chamar intermediaacuterias

Disso decorre que falemos nos mesmos termos a respeito tambeacutem das

coisas apreendidas pela razatildeo ndash as artes as virtudes e as ciecircncias ndash as

quais devem suas semelhanccedilas e diferenccedilas muacutetuas aos assuntos de que se

ocupam as virtudes no tocante agraves virtudes e as ciecircncias no tocante agraves

ciecircncias e por seu turno os viacutecios no que diz respeito aos viacutecios e a

incultura com respeito agraves ignoracircncias e ainda virtudes com respeito aos

viacutecios ciecircncias ou ignoracircncias e os viacutecios com respeito estes todos

sendo possiacutevel certa combinaccedilatildeo e mescla dessas coisas

18

Cabe observar como A Q ao traccedilar um perfil do masculino e do feminino natildeo

oferece uma lista de entes individuais mas um elenco geneacuterico de qualidades sensiacuteveis das

quais ele passa sem maior detenccedila para o toacutepico das naturezas intermediaacuterias em que estatildeo

incluiacutedas as artes as ciecircncias e as virtudes A menccedilatildeo agraves artes ciecircncias e virtudes eacute

importante neste momento porque uma vez explicado o processo pelo qual atraveacutes de

mesclas dos princiacutepios masculino e feminino satildeo engendradas as paixotildees da alma

Quintiliano deve agora retomar o fio da exposiccedilatildeo e mostrar como a muacutesica por meio de

conceitos palavras ritmos e melodias eacute capaz de imitar essas mesmas paixotildees virtudes

viacutecios etc comunicando agrave alma o respectivo eacutethos Eacute o que faraacute no restante do livro II

23 Os conceitos

No iniacutecio do cap9 A Q retoma o tema dos conceitos com o qual tinha

concluiacutedo o cap7 antes da relativamente longa mas necessaacuteria digressatildeo acerca das paixotildees

da alma O propoacutesito do autor eacute demonstrar como um poeta eacute capaz de transmitir os conceitos

que deseje mediante o emprego de certos procedimentos retoacutericos A Q utiliza exemplos

extraiacutedos de Homero nos quais aponta como o poeta mesclando traccedilos masculinos e

femininos consegue traduzir em palavras uma gama complexa de impressotildees desde

sensaccedilotildees fiacutesicas como rapidez suavidade ou agitaccedilatildeo ateacute caracteres ou julgamentos morais

Esse conceitos (ἐννοήματα) compostos de traccedilos masculinos e femininos ndash conceitos que por

sua vez entram na composiccedilatildeo eacutetica das frases e dos discursos ndash A Q os compara aos

extratos dos quais satildeo feitos os remeacutedios7 e conclui (II 103-18)

τὰ μὲν οὖν ἐς ἄνεσιν ἄγοντα καὶ φαιδρότητα τὸν ἀφελῆ τε καὶ ἡδὺν λόγον

ἐγέννησε τὰ δὲ τὸ σύννουν κινοῦντα καὶ τὸ ὁρμητικὸν τὸν πολιτικόν τε

καὶ ἀγωνιστικὸν ἐξέφηνεν τοῦ μὲν οὖν πολιτικοῦ κατὰ τὸ ἄρρεν τὰ εἴδη

συντομίαι τε καὶ βραχύτητες καὶ ἀξίωμα καὶ μεγαλοπρέπεια τραχύτης τε

καὶ σφοδρότης καὶ μέγεθος καὶ μεστότης ἅπερ τήν τε φυσικὴν ἐμφαίνει

μεγαλόνοιαν τοῦ ἄρρενος μέγεθός τε σώματος καὶ ἁδροτῆτα διανοίας καὶ

τὸ ἐς τὰ μέγιστα τῶν ἔργων ἀνυτικὸν τάχος τοῦ δὲ ἀφελοῦς ἀραιότης

ἁβρότης κάλλη τε καὶ γλυκύτητες ὧν τὰ μὲν τὸ ἀνειμένον τοῦ θήλεος τὰ

δὲ τὸ ἐς ὡραϊσμὸν διαδείκνυσιν ἐπτοημένον γένοιτο δ ἄν τι καὶ τῇ

τούτων πλοκῇ οἷον ἡ δριμύτης τὸ μὲν τάχος ὡς ἄρρεν τὸ δὲ

μικροπρεπὲς ὡς ἐναντίον ἐπιφαίνουσα ἥ τ ἐπιμέλεια τὸ μὲν γλίσχρον

ἔχουσα κατὰ τὸ θῆλυ τὸ δὲ τῆς φιλοπονίας παρεκτεταμένον ὡς ἄρρεν

Assim os conceitos que levam agrave descontraccedilatildeo e agrave alegria produzem uma

frase despojada e doce enquanto os conceitos que mobilizam as partes

intelectiva e impulsiva produzem a frase contenciosa e poliacutetica Os traccedilos

da frase poliacutetica relacionados ao masculino satildeo concisatildeo brevidade

dignidade e elevaccedilatildeo assim como aspereza forccedila grandeza e

completude traccedilos que mostram a grandiosidade natural do masculino a

7 Uma comparaccedilatildeo semelhante jaacute tinha sido feita em II 47-12

19

magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores

trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e

doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros

a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a

exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e

atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade

como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo

masculino

Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem

duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel

Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade

contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de

masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e

mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos

interessa aqui compreender

Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase

feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por

ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por

ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo

como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa

ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de

desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo

remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na

disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma

Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que

poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade

seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma

caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel

quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a

porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade

contradiccedilatildeo alguma

No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a

capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente

aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam

o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante

uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses

materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes

20

Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro

tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais

duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do

diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons

livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma

martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente

tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade

Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a

accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua

presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No

capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a

dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do

discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto

24 As letras

Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto

καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων

γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς

φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς

τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον

ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως

περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων

ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων

τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ

ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε

πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ

ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα

μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν

χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον

ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς

ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς

τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον

διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως

τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν

ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων

κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος

ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ

τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως

eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo

de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais

outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como

as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido

satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que

limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves

enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade

21

temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo

dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo

que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente

eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o

lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute

atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por

sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a

passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes

outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se

com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar

jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua

a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio

das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona

ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o

emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito

aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias

e possuem ambas as naturezas

A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo

primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso

masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais

Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da

classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam

espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo

das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as

consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto

consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as

consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave

nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na

sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz

respeito agraves letras8

As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo

claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que

pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo

Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das

vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de

assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as

quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das

letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes

8 Cf Chapanski 2003 p 22-24

22

Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes

que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais

proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias

enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais

proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em

relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade

As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de

articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua

vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto

meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais

tau delta e theta As guturais capa gama e khi

Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como

ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo

que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as

surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste

em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de

separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas

silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)

seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as

consoantes o polo essencial (formal ou masculino)

AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo

seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais

(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a

doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo

princiacutepio dualista

25 As vogais e o solfejo

Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o

meacutelos (II 126-10)

Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι

λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα

τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ

μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει

23

O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a

harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que

se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo

percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e

ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos

Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo

de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I

Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de

disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute

apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma

harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo

especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das

mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder

perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o

objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e

o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir

encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)

Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς

κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ

ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ

μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον

μετεσχηκότες

A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe

tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e

masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo

intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos

gecircneros com maior ou menor intensidade

No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre

elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa

diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino (II 131-35)

Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς

πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα

πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων

ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς

ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε

τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς

ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς

μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ

συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ

9 Cf West 1994 p178

24

πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα

δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν

ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως

ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt

κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ

λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν

μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ

ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν

ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο

καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως

ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα

φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt

νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται

πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται

τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ

γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων

καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις

σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα

καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ

ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ

Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute

captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as

letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete

examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra

as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e

masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons

mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute

masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois

nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o

ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o

som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige

que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o

alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da

sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua

estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado

intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta

quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino

quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa

na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a

exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta

trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do

alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior

parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo

lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses

examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos

constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e

terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons

semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros

Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais

nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas

internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para

isso novos paracircmetros

O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio

que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou

25

fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais

vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora

a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem

interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)

estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto

importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado

designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais

satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas

Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute

Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de

masculino e feminino em si mesmas10

Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos

remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a

esfericidade da alma11

(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash

mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso

Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves

a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon

feminino) refira-se justamente a esse arredondamento

As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em

razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas

(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua

ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente

relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal

O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do

eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os

extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo

masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo

entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da

verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o

10

Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido

Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo

metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das

observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11

Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De

Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por

que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora

o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo

26

sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo

entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta

Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo

verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave

segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo

lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros

Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro

obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo

excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no

solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)

Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ

εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί

τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες

ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ

αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων

περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ

τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν

τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς

πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ

ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ

λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος

διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt

εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους

διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν

λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ

πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν

μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν

Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente

passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega

satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se

articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que

o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam

intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez

sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por

intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos

dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de

acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos

da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam

No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido

com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das

vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o

ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons

que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida

vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava

em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos

posteriormente por que isso eacute assim

A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim

ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo

27

O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de

quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de

quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores

distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12

Do grave para o agudo (ou de

cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram

denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica

(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era

acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de

um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira

(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da

uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons

ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro

tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo

(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom

O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute

justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do

tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao

ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira

(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da

sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada

μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito

formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava

formado com a nota acrescida

Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada

tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou

agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por

eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)

Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει

κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ

τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν

πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ

θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα

γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά

12

Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2

T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)

28

Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao

masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos

em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram

dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os

sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no

entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da

passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes

Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave

formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo

decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso

ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como

o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13

os rechaccedilavam por

completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14

(II 1488-90)

περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς

παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας

Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam

na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da

alma

Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos

instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo

mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes

mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais

como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se

apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta

a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo

a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as

noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura

tonal (II 1623-40)

Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα

διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ

θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος

μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα

εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν

ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ

τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ

πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν

περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον

θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον

ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι

13

Repuacuteblica 398c 14

Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)

29

δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς

τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν

οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν

ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt

Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela

sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute

feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais

do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua

tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se

descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade

e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por

gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito

debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde

participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira

participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros

intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua

natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar

cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza

iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo

interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam

familiares

No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os

instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o

dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em

que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria

dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado

por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da

muacutesica sobre a alma

O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro

245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo

ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees

superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da

regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo

anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto

ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees

hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm

pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15

15

Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida

(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a

associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre

medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente

que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento

que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a

30

Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite

(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os

nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm

unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses

nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo

masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria

Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo

residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real

manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo

um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas

entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do

universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os

planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros

26 A muacutesica das esferas

Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves

teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem

acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma

definiccedilatildeo (III 211-6)

Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν

ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ

φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον

τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν

διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει

Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o

feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e

amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o

esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de

sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo

AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero

proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute

elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza

(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas

antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura

que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo

31

Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os

planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e

femininas (III 216-40)

ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης

γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον

ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ

δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ

ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ

θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι

τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον

μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε

μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης

προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ

πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος

ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ

νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ

ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε

ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς

Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης

ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως

ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε

θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ

ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν

ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε

ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης

ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ

μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν

παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ

τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων

συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν

θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ

ἐπίπονος τὸν ἄρρενα

A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por

toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda

um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do

feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa

tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e

nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios

e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do

feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de

Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota

acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute

no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol

(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se

regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem

tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais

familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute

luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente

uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente

feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol

emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e

impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som

que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo

de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante

ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma

equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de

32

Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e

quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo

sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que

eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino

Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal

correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota

do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao

eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de

masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as

devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam

a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde

PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO

NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa

VOGAL ε α η ω α η Ω

Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a

meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o

eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe

apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por

outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela

soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim

seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo

ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas

pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo

Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco

pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter

especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a

correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e

as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como

essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda

oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de

Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido

Primeiro tetracorde Segundo tetracorde

33

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico

Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o

ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava

somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por

uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado

ou o ponto intermeacutedio

Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica

inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo

princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros

e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado

sob sua tutela

Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a

muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a

qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto

meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional

passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num

polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a

alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a

alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de

Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge

para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim

sucessivamente

Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua

organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata

da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se

reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical

os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura

da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual

o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado

primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas

mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro

torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim

dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16

16

Gueacutenon 1999 p23

34

No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser

dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de

analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre

regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos

incomensuraacuteveis

Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de

seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas

vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade

necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que

estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade

assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada

impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a

um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por

exemplo da lua e da alma

Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as

ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou

aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que

embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres

ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia

nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de

fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas

qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas

graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo

tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais

uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a

coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e

lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num

mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao

masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora

dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo

Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo

de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o

acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o

35

fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino

teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse

fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo

Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo

contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa

A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o

outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre

quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na

quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um

compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la

A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-

feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e

feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a

posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria

necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo

para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente

masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude

de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo

privativa

Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito

de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem

duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e

quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre

ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos

guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e

sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais

difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta

porosa uacutemida ou fechada

Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a

sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns

dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso

condiccedilotildees

Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo

naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem

36

necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas

se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou

outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)

Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo

condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de

fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees

associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o

caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute

necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa

objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da

mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos

dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do

iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num

patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado

intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos

individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo

Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees

de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam

somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre

esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes

noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre

relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma

espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila

Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos

loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou

analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ

ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)

A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas

relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse

processo igualmente uma relaccedilatildeo

Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et

du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee

notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas

moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux

celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou

encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de

nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui

37

exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est

en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le

plus petit comme analogue du plus grand)17

Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que

unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter

entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel

unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia

Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres

primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune

corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos

on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification

du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par

harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se

ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une

neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au

deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure

deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en

son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception

originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la

conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique

de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre

partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18

Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de

predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e

mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na

matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo

desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =

2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que

a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas

premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo

A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-

1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua

vez se apoiu em Aristoacuteteles19

) estabelece trecircs tipos de analogia20

A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o

termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo

17

Borella 2012 p23 18

Moutsopoulos 2004 p203-204 19

Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada

pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais

ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre

chez Aristote Paris PUF 1962 20

A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23

38

grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

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Page 13: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

13

no acircmbito da muacutesica mas se torna imperioso recorrer a eles quando se deseja como deseja

Quintiliano oferecer um vislumbre do cosmo total desde o microcosmo particular da muacutesica

Eacute o que trataremos de observar a seguir

22 Corpo e alma

Apoacutes ter introduzido no fim do cap19 as noccedilotildees de masculino e feminino A Q

natildeo volta a mencionaacute-las em nenhum momento ateacute o final do Livro I Natildeo quer isso dizer

todavia que ele jaacute natildeo as leve em conta ou pelo menos que natildeo as subentenda de algum

modo Em todo caso soacute deveraacute retomaacute-las em caraacuteter expliacutecito e operativo a partir do cap8

do Livro II

Φαίνεταί μοι τοίνυν ἡ ψυχή πόρρω μὲν τῶνδε ἡνίκα ἐστὶν ὁμιλοῦσα τῷ

κρείττονι λόγῳ τε ὁμέστιος εἶναι καὶ καθαρεύειν ἐπιθυμίας ἐπὰν δὲ ἐπὶ

τάδε ἀγκλίνῃ καὶ τὴν ἐνταῦθα διατριβὴν πείρᾳ μαθεῖν ἐπιχειρήσῃ

τηνικαῦτα αὐτῇ σώματός τε ἐγγίνεται χρεία καὶ σῶμα ἐπιζητεῖ

πρόσφορον ὑπόκειται δ αὐτῇ θεωρεῖν τὴν ἐν τούτοις διπλόην

ἀρρενότητά τέ φημι καὶ θηλύτητα ἥτις οὐκ ἐν ἐμψύχοις μόνοις ἄρα ἦν

ἀλλὰ κἀν τοῖς φύσει μόνῃ διοικουμένοις φυτῶν τε ὅσα μετάλλων τε

γένη καὶ ἀρωμάτων καὶ γὰρ τούτων δυάς τις ἐπιφαίνεται ἤτοι δι

ἁπαλότητος ἢ λειότητος ἢ εὐχροίας ἢ εὐωδίας ἢ καὶ τῶν ἐναντίων τὴν

ἑτέραν ἐπιδεικνυμένων φύσιν

Parece-me de fato que a alma quando distante das coisas e em comeacutercio

com o superior coabita com a razatildeo e estaacute livre de desejos mas quando

inclina-se para as coisas daqui e intenta aprender atraveacutes da experiecircncia

um modo de existir no tempo entatildeo sendo-lhe necessaacuterio um corpo ela

busca um corpo que lhe seja adequado E eacute da natureza da alma no

tocante aos corpos atentar para a dualidade ou seja para a masculinidade

e para a feminilidade dualidade presente natildeo soacute nos corpos animados

mas tambeacutem nos governados por uma soacute natureza tais como os gecircneros

das plantas dos metais e dos aromas pois tambeacutem neles se manifesta

certa dualidade pois seja pela brandura ou pela suavidade pela bela

aparecircncia ou pelo bom odor seja pelas qualidades contraacuterias apontam

para uma ou outra natureza (II 81-12)

Uma raacutepida contextualizaccedilatildeo nos permitiraacute compreender melhor tanto esta quanto

as demais passagens do cap8 Todo o livro II eacute dedicado agravequilo que no cap5 do livro I A Q

havia definido como muacutesica praacutetica (πρακτικόν) ou educativa (παιδευτικόν) Antes poreacutem de

tratar do seu tema propriamente A Q sente a necessidade de responder agraves objeccedilotildees dos

ceacuteticos4 (dentre os quais ningueacutem menos que Ciacutecero a quem Quintiliano poreacutem hesita em

4 ldquoEacute possiacutevel que os educadores romanos pensassem como Epicuro para quem a muacutesica natildeo tinha qualquer

significado aleacutem de um jogo de sons e concordassem com Ciacutecero que afirmava lsquoque a muacutesica natildeo tem utilidade

alguma aleacutem de um prazer infantil sem valor nenhum posto que natildeo pode guiar-nos agrave felicidadersquo Segundo o

autor romano Corneacutelius Nepos do seacutec I d C lsquoningueacutem ignora que a muacutesica segundo o estado de nossos

costumes natildeo conveacutem a um personagem importantersquo apesar de ter sido levada entre os gregos como lsquodigna de

14

atribuir juiacutezos desfavoraacuteveis acerca da muacutesica) fundamentar a proacutepria ideia de uma formaccedilatildeo

moral atraveacutes da muacutesica E como a accedilatildeo da muacutesica sobre a alma depende tanto da capacidade

ativa da primeira quanto da capacidade receptiva da uacuteltima eacute por esta que ele comeccedila

A alma diz eacute responsaacutevel por dotar de certo ritmo e de ordem (ῥυθμοῦ τινος καὶ

τάξεως) as coisas deste mundo (τῶν ἐνθαδί) Poderiacuteamos dizer embora Quintiliano natildeo o faccedila

aqui explicitamente que a alma portanto eacute masculina em relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Mas

para que possa ser isso eacute preciso que natildeo seja apenas isso De fato diz A Q a alma natildeo

possui uma natureza ou potecircncia uacutenica (οὐδὲ τῶν μονήρη τινὰ φύσιν ἢ δύναμιν ἐχόντων) mas

certa natureza dupla (διπλῆς τινος φύσεως)

A duplicidade da alma consiste em ter sido dotada pelo administrador de todas as

coisas (ὁ τὸ σύπαν διοικῶν) de uma substacircncia divina na qual habita a razatildeo (λoacuteγος) e de

uma substacircncia mundana ou irracional (ἄλογος) na qual habita o desejo (ἐπιθυμία) As duas

naturezas ou potecircncias satildeo necessaacuterias para que a alma atue sobre o mundo corpoacutereo e essa

natureza duacuteplice sem a qual ela seria ineficaz pode-se definir assim a alma soacute eacute ativa em

relaccedilatildeo ao mundo corpoacutereo na medida em que eacute passiva em relaccedilatildeo ao mundo racional Ora a

muacutesica diz Quintiliano no iniacutecio do cap3 do livro II estaacute para a alma irracional assim como a

filosofia estaacute para a alma racional Desse modo ao submeter-se agrave muacutesica a alma irracional

submete-se igualmente agrave razatildeo pois a muacutesica eacute no fundo razatildeo transformada em mateacuteria

sensiacutevel tal como a alma mesma

Isso poreacutem natildeo eacute tudo Entre as duas naturezas da alma haacute um ponto intermeacutedio

que ao submeter o desejo agrave razatildeo confere unidade agraves duas metades Esse ponto intermeacutedio eacute

a memoacuteria (μνήμη) Memoacuteria eacute claro das belezas eternas do mundo suprassensiacutevel5 Desse

modo o dualismo aniacutemico resolve-se num elemento intermediaacuterio resultante da interaccedilatildeo

entre os polos extremos com os quais forma afinal uma triacuteade

Paralelamente a alma (tomada como unidade natildeo mais segundo a interaccedilatildeo das

suas partes) sendo a um soacute tempo ativa (frente ao mundo sensiacutevel) e passiva (perante o

mundo racional) eacute ela proacutepria um ponto intermeacutedio resultante da interaccedilatildeo entre polos

opostos com os quais por sua vez tambeacutem compotildee uma triacuteade As partes e o todo o

microcosmo e macrocosmo assim espelham-se mutuamente

consideraccedilatildeo e estimarsquo rdquo CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-

kagathiacutea Classica (Brasil) 2412 73-85 2011 5 Mesmo se desconsiderarmos esse elemento doutrinal platocircnico a memoacuteria seria ainda uma bela e eficaz

imagem da uniatildeo entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo pois a memoacuteria eacute uma operaccedilatildeo estritamente mental cujos

objetos no entanto satildeo todos oriundos da experiecircncia sensiacutevel

15

Mas a porccedilatildeo desejante (ou irracional) da alma possui igualmente as suas partes

A Q as denomina desejante (ἐπιθυμητική) a qual tende ao relaxamento (ou relaxaccedilatildeo

indulgecircncia) excessivo e impulsiva (θυμικὴ) que tende a uma tensatildeo igualmente desmedida

Fica claro desde logo embora Quintiliano reserve esse comentaacuterio para mais adiante que as

duas porccedilotildees da alma irracional formam uma oposiccedilatildeo do tipo ativo-passivo ou masculino-

feminino restando saber qual seria nesse caso o ponto intermeacutedio

O ponto intermeacutedio satildeo dois por um lado (e acima) a proacutepria porccedilatildeo racional da

alma que eacute inteiriccedila e natildeo se constitui de partes por outro (e abaixo) as paixotildees que resultam

(como A Q descreveraacute a seguir) da mescla entre as potecircncias ativa e passiva da alma As

triacuteades formadas portanto satildeo tambeacutem duas mas de tipos diferentes numa o ponto

intermeacutedio estaacute hierarquicamente acima dos termos opostos noutra hierarquicamente abaixo

A razatildeo da eficaacutecia persuasiva da muacutesica sobre a alma irracional reside

argumenta Quintiliano nas peculiaridades do seu aparato mimeacutetico que lhe permite produzir

a imitaccedilatildeo com mateacuteria similar agrave do objeto imitado Curiosamente esse aparato mimeacutetico eacute

tambeacutem triaacutedico pois a muacutesica imita6 os eacutethe e as paixotildees da alma com os conceitos

(ἐννοίαις) as palavras com as harmonias e a modulaccedilatildeo da voz (ἁρμονίαις καὶ φωνῆς

πλάσει) e a accedilatildeo com os ritmos e o movimento do corpo (ῥυθμοῖς καὶ κινήσει σώματος) A

muacutesica portanto abarca o universo inteiro da accedilatildeo humana desde o seu nascedouro (nos

movimentos afetivos e intelectuais da alma) ateacute sua exteriorizaccedilatildeo em forma de atos e

palavras

Ora sendo a muacutesica sobretudo uma terapia das paixotildees da alma (παθῶν ψυχικῶν

θεραπεία) cabe ao conceito (que siacutentese do conteuacutedo racional a transmitir e da impressatildeo

esteacutetico-emocional a causar estaacute relacionado ao movimentos internos da alma de onde brotam

as accedilotildees) o papel de guiar os elementos do meacutelos perfeito (dicccedilatildeo harmonia e ritmo) O cap8

e os seguintes a comeccedilar pelo trecho acima citado satildeo dedicados justamente a explicar

primeiro como se geram as paixotildees da alma e depois como a muacutesica eacute capaz de imitaacute-las e

de nelas intervir

De iniacutecio A Q trata da dualidade masculino-feminino como uma particularidade

do mundo corpoacutereo a que a alma tem de se submeter Reforccedila o caraacuteter especificamente

corpoacutereo dessa dualidade o fato de que ela natildeo se manifeste apenas em corpos animados (οὐκ

ἐν ἐμψύχοις μόνοις) mas tambeacutem em corpos governados por uma soacute natureza (ἀλλὰ κἀν τοῖς

φύσει μόνῃ διοικουμένοις) Essa observaccedilatildeo parece decorrer da necessidade de distinguir a jaacute

6 II 438-40

16

mencionada duplicidade da alma (razatildeo por que seria natural esperar que somente os corpos

animados estivessem submetidos agrave dualidade a dualidade ao menos entre corpo e alma) do

dualismo propriamente corpoacutereo Em todo caso embora tipicamente corpoacuterea a dualidade

masculino-feminino tambeacutem aqui natildeo se restringe ao fenocircmeno bioloacutegico da diferenciaccedilatildeo

sexual Aleacutem disso essa dualidade natildeo corresponde exatamente a duas espeacutecies opostas de

seres mas a dois polos de um eixo que atravessa de ponta a ponta o mundo corpoacutereo

alcanccedilando portanto e internamente todos os seres nele existentes Desse modo cada ente

particular pode ser tomado como uma resultante da interaccedilatildeo entre os dois princiacutepios em

relaccedilatildeo aos quais ele estabelece por sua vez um ponto intermeacutedio isto eacute uma mescla E eacute

precisamente na produccedilatildeo dessa mescla que o dualismo aniacutemico e o dualismo corpoacutereo se

articulam (II 816-28)

οὐ μόνον οὖν ἐφίεται σώματος ἀλλὰ καὶ τούτου ποιοῦ τινος ἢ γὰρ ἄρρεν

ἠγάπηκεν ἢ θῆλυ καὶ τούτων ὁτὲ μὲν ἄκρατον θάτερον ὁτὲ δὲ ἐξ ἀμφοῖν

ἔχον δεινήν τινα καὶ ὄντως ἄτοπον μίξιν αὐτίκα κἂν μὴ φύσει τοῦ

τοιούτου τύχωσι σώματος αὐταὶ ταῖς σφετέραις τροπαῖς μετερρύθμισάν

τε καὶ ἐς τὸ αὑταῖς ὅμοιον μετέστησαν οὕτως ἐν μὲν ἄρρεσι θῆλυς

ἐπιτρέχει μορφή δι ἣν καὶ ὁ βίος ὦπται τοιοῦτος ἐν δὲ γυναιξὶν ἀνδρεῖον

εἶδος ᾧ καὶ τὸ ἦθος ὅμοιον τεκμαιρόμεθα καὶ ἄνδρες μὴν ἀγένειοι καὶ

γενειάσκουσι γυναῖκες καί τις ἄρρην ἔβλεψεν ὑγρὸν καὶ γυναῖκες γοργὸν

προσεῖδον ὥστε καὶ τῶν ἠθῶν ἕκαστα θηράσεις ἑκάστῃ μορφῇ συνῳδά

A alma portanto natildeo soacute deseja um corpo mas certo tipo de corpo um

corpo masculino ou um corpo feminino Deseja dentre esses agraves vezes um

corpo puro de um tipo ou de outro agraves vezes um corpo que possua uma

curiosa e paradoxal mistura de ambos Assim quando natildeo conseguem

obter naturalmente esse determinado corpo as almas o remodelam

mediante torneios e o transformam em algo semelhante a si mesmas

Dessa forma sobre um corpo masculino recai uma forma feminina (razatildeo

por que tambeacutem sua vida assim se mostra) ou ainda sobre um corpo

feminino uma forma masculina no que tambeacutem assinalamos um eacutethos

similar Haacute homens imberbes e mulheres barbadas homens de lacircnguido

olhar e mulheres com mirada de Goacutergona de modo que cada eacutethos veraacutes

corresponde a uma fisionomia

Uma vez estabelecido o princiacutepio de que o dualismo aniacutemico de algum modo rege

o dualismo corpoacutereo A Q sente-se agrave vontade para tratar de um nos termos do outro

recorrendo para isso aos termos masculino e feminino (II 828-39)

ἐκ δὲ τῆς πρὸς τὸ ἄρρεν ἢ θῆλυ προσπαθείας ἢ πρὸς ἀμφότερον τὰ πάθη

συνίσταται περὶ ψυχήν τὸ μὲν οὖν θῆλυ λίαν ἀνειμένον ᾧ συνᾴδει τὸ

ἐπιθυμητικόν τὸ δ ἄρρεν σφοδρόν τε καὶ δραστήριον ᾧ τὸ θυμικὸν

ὡμοίωται περὶ μὲν οὖν τὸ θῆλυ ψυχῆς τε μέρος καὶ ἀνθρώπων γένος

πλεονάζουσι λῦπαι τε καὶ ἡδοναί περὶ δὲ τὸ ἄρρεν ὀργὴ καὶ θράσος

πάλιν δὲ τούτων γίνονται συζυγίαι λυπῶν τε πρὸς ἡδονὰς καὶ ὀργῆς πρὸς

θράσος καὶ θράσους πρὸς ἡδονὴν καὶ λύπην καὶ ὀργῆς αὖθις πρὸς

ἑκάτερον καὶ πάλιν ἑκάστου πρός τε ἓν καὶ πρὸς πλείω μίξεις καὶ μυρίας

ἄν τις ἐκ τούτων εὕροι τῶν παθῶν εἰκόνας ἐν ποικιλίᾳ θεωρουμένων

17

Conforme o apego ao masculino ao feminino ou a ambos estabelecem-se

as paixotildees da alma O feminino eacute demasiado indulgente e com ele

concorda a alma desejante ao passo que o masculino semelhante agrave alma

impulsiva eacute veemente e ativo Assim tanto na parte feminina da alma

quanto na parcela feminina da humanidade abundam os prazeres e as

dores ao passo que na masculina a ira e a coragem E uma vez mais

datildeo-se combinaccedilotildees entre essas paixotildees das dores com os prazeres da ira

com a coragem da coragem com o prazer e a dor ou da ira novamente

com as demais e ainda de uma com outra qualquer ou com vaacuterias A

partir dessas seria possiacutevel encontrar uma miriacuteade de imagens das

paixotildees em vista da sua variedade

Se a alma por um lado submete o mundo corpoacutereo este por sua vez a espelha

macrocosmicamente nela interferindo mediante interaccedilotildees simpaacuteticas a exemplo do que

ocorre na muacutesica No entanto natildeo satildeo apenas as disposiccedilotildees passivas ou paixotildees que

estabelecem pontes entre a alma e a realidade corpoacuterea Tambeacutem as disposiccedilotildees ativas e

intelectivas estatildeo submetidas ao dualismo masculino-feminino (II 848-69)

ἔστι γὰρ πρῶτον μὲν ἐν ὁρατοῖς ἑκατέραν ἰδεῖν τὴν φύσιν τὸ μὲν

ἀνθηρόν τε καὶ ἐς ὡραϊσμὸν προςφυὲς χρῶμά τε καὶ σχῆμα διαιροῦντα

θηλύτητι τὸ δὲ στυγνόν τε καὶ ἐς σύννοιαν ἄγον ἀρρενότητι πάλιν δὲ ἐν

ἀκοαῖς τοὺς μὲν λείους καὶ προσηνεῖς ἤχους ἐς τὸ θῆλυ τοὺς δὲ

τραχυτέρους εἰς τοὐναντίον ἁρμόττοντα καί ἵνα μὴ τὰ καθ ἕκαστον

λέγω κοινῶς περὶ πάντων ἀποφαντέον ὡς ὅσα μὲν τῶν αἰσθητῶν ἔς τε

ἡδονὴν δελεάζει καὶ ἠρέμα διαχεῖν τὴν γνώμην πέφυκε ταῦτα εἰς τὸ θῆλυ

κριτέον ὅσα δὲ κινεῖ τε εἰς σύννοιαν καὶ ἐγείρει τὸ δραστήριον ταῦτα εἰς

τὴν ἄρρενος μοῖραν ἀπονεμητέον τὰ δέ τοι μηδέτερον ἢ κατὰ μίξιν ἄμφω

δρῶντα ταῦτα τῶν μέσων ἀποφαντέον κατὰ δὴ ταῦτα καὶ περὶ ἐκείνων

λέγωμεν αἳ λόγῳ μέν εἰσι καταληπταὶ τέχναι τε καὶ ἀρεταὶ καὶ ἐπιστῆμαι

ἐκ δὲ τῆς τῶν ὑλῶν ποιότητος περὶ ἃς ἑκάστη τευτάζει τὰς πρὸς ἀλλήλας

διαφορὰς καὶ ὁμοιότητας εἰλήχασιν αἵ τε ἀρεταὶ πρὸς τὰς ἀρετὰς αἵ τε

ἐπιστῆμαι πρὸς τὰς ἐπιστήμας κακίαι τε αὖ πρὸς κακίας καὶ

ἀνεπιστημοσύναι πρὸς ἀμαθίας πάλιν δὲ ἀρεταὶ πρὸς κακίας ἢ ἐπιστήμας

ἢ ἀγνωσίας κακίαι τε αὖ πρὸς τὰς εἰρημένας ποικίλης τινὸς καὶ τῆς κατὰ

ταῦτα πλοκῆς τε οὔσης καὶ μίξεως

A princiacutepio eacute de fato possiacutevel identificar nos objetos visiacuteveis cada

natureza separadamente atribuindo o florido e as formas e cores

decorativas ao feminino e as sombrias e que conduzem agrave reflexatildeo ao

masculino e o mesmo para as coisas audiacuteveis relacionando os sons

suaves e doces ao feminino e os mais aacutesperos ao seu oposto E para que

eu natildeo entre aqui em detalhes eacute preciso dizer que no geral as coisas

sensiacuteveis que induzem ao prazer e que natural e docemente dissolvem o

juiacutezo estas se devem considerar femininas ao passo que aquelas que nos

levam agrave reflexatildeo ou promovem a accedilatildeo se devem designar masculinas Jaacute

aquelas que natildeo atuam nem de uma nem de outra maneira ou o faccedilam

segundo uma mescla de ambas estas se hatildeo de chamar intermediaacuterias

Disso decorre que falemos nos mesmos termos a respeito tambeacutem das

coisas apreendidas pela razatildeo ndash as artes as virtudes e as ciecircncias ndash as

quais devem suas semelhanccedilas e diferenccedilas muacutetuas aos assuntos de que se

ocupam as virtudes no tocante agraves virtudes e as ciecircncias no tocante agraves

ciecircncias e por seu turno os viacutecios no que diz respeito aos viacutecios e a

incultura com respeito agraves ignoracircncias e ainda virtudes com respeito aos

viacutecios ciecircncias ou ignoracircncias e os viacutecios com respeito estes todos

sendo possiacutevel certa combinaccedilatildeo e mescla dessas coisas

18

Cabe observar como A Q ao traccedilar um perfil do masculino e do feminino natildeo

oferece uma lista de entes individuais mas um elenco geneacuterico de qualidades sensiacuteveis das

quais ele passa sem maior detenccedila para o toacutepico das naturezas intermediaacuterias em que estatildeo

incluiacutedas as artes as ciecircncias e as virtudes A menccedilatildeo agraves artes ciecircncias e virtudes eacute

importante neste momento porque uma vez explicado o processo pelo qual atraveacutes de

mesclas dos princiacutepios masculino e feminino satildeo engendradas as paixotildees da alma

Quintiliano deve agora retomar o fio da exposiccedilatildeo e mostrar como a muacutesica por meio de

conceitos palavras ritmos e melodias eacute capaz de imitar essas mesmas paixotildees virtudes

viacutecios etc comunicando agrave alma o respectivo eacutethos Eacute o que faraacute no restante do livro II

23 Os conceitos

No iniacutecio do cap9 A Q retoma o tema dos conceitos com o qual tinha

concluiacutedo o cap7 antes da relativamente longa mas necessaacuteria digressatildeo acerca das paixotildees

da alma O propoacutesito do autor eacute demonstrar como um poeta eacute capaz de transmitir os conceitos

que deseje mediante o emprego de certos procedimentos retoacutericos A Q utiliza exemplos

extraiacutedos de Homero nos quais aponta como o poeta mesclando traccedilos masculinos e

femininos consegue traduzir em palavras uma gama complexa de impressotildees desde

sensaccedilotildees fiacutesicas como rapidez suavidade ou agitaccedilatildeo ateacute caracteres ou julgamentos morais

Esse conceitos (ἐννοήματα) compostos de traccedilos masculinos e femininos ndash conceitos que por

sua vez entram na composiccedilatildeo eacutetica das frases e dos discursos ndash A Q os compara aos

extratos dos quais satildeo feitos os remeacutedios7 e conclui (II 103-18)

τὰ μὲν οὖν ἐς ἄνεσιν ἄγοντα καὶ φαιδρότητα τὸν ἀφελῆ τε καὶ ἡδὺν λόγον

ἐγέννησε τὰ δὲ τὸ σύννουν κινοῦντα καὶ τὸ ὁρμητικὸν τὸν πολιτικόν τε

καὶ ἀγωνιστικὸν ἐξέφηνεν τοῦ μὲν οὖν πολιτικοῦ κατὰ τὸ ἄρρεν τὰ εἴδη

συντομίαι τε καὶ βραχύτητες καὶ ἀξίωμα καὶ μεγαλοπρέπεια τραχύτης τε

καὶ σφοδρότης καὶ μέγεθος καὶ μεστότης ἅπερ τήν τε φυσικὴν ἐμφαίνει

μεγαλόνοιαν τοῦ ἄρρενος μέγεθός τε σώματος καὶ ἁδροτῆτα διανοίας καὶ

τὸ ἐς τὰ μέγιστα τῶν ἔργων ἀνυτικὸν τάχος τοῦ δὲ ἀφελοῦς ἀραιότης

ἁβρότης κάλλη τε καὶ γλυκύτητες ὧν τὰ μὲν τὸ ἀνειμένον τοῦ θήλεος τὰ

δὲ τὸ ἐς ὡραϊσμὸν διαδείκνυσιν ἐπτοημένον γένοιτο δ ἄν τι καὶ τῇ

τούτων πλοκῇ οἷον ἡ δριμύτης τὸ μὲν τάχος ὡς ἄρρεν τὸ δὲ

μικροπρεπὲς ὡς ἐναντίον ἐπιφαίνουσα ἥ τ ἐπιμέλεια τὸ μὲν γλίσχρον

ἔχουσα κατὰ τὸ θῆλυ τὸ δὲ τῆς φιλοπονίας παρεκτεταμένον ὡς ἄρρεν

Assim os conceitos que levam agrave descontraccedilatildeo e agrave alegria produzem uma

frase despojada e doce enquanto os conceitos que mobilizam as partes

intelectiva e impulsiva produzem a frase contenciosa e poliacutetica Os traccedilos

da frase poliacutetica relacionados ao masculino satildeo concisatildeo brevidade

dignidade e elevaccedilatildeo assim como aspereza forccedila grandeza e

completude traccedilos que mostram a grandiosidade natural do masculino a

7 Uma comparaccedilatildeo semelhante jaacute tinha sido feita em II 47-12

19

magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores

trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e

doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros

a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a

exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e

atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade

como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo

masculino

Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem

duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel

Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade

contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de

masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e

mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos

interessa aqui compreender

Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase

feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por

ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por

ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo

como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa

ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de

desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo

remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na

disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma

Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que

poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade

seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma

caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel

quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a

porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade

contradiccedilatildeo alguma

No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a

capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente

aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam

o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante

uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses

materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes

20

Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro

tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais

duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do

diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons

livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma

martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente

tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade

Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a

accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua

presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No

capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a

dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do

discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto

24 As letras

Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto

καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων

γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς

φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς

τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον

ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως

περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων

ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων

τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ

ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε

πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ

ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα

μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν

χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον

ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς

ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς

τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον

διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως

τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν

ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων

κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος

ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ

τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως

eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo

de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais

outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como

as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido

satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que

limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves

enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade

21

temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo

dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo

que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente

eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o

lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute

atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por

sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a

passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes

outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se

com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar

jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua

a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio

das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona

ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o

emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito

aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias

e possuem ambas as naturezas

A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo

primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso

masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais

Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da

classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam

espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo

das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as

consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto

consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as

consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave

nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na

sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz

respeito agraves letras8

As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo

claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que

pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo

Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das

vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de

assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as

quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das

letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes

8 Cf Chapanski 2003 p 22-24

22

Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes

que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais

proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias

enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais

proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em

relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade

As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de

articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua

vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto

meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais

tau delta e theta As guturais capa gama e khi

Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como

ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo

que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as

surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste

em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de

separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas

silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)

seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as

consoantes o polo essencial (formal ou masculino)

AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo

seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais

(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a

doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo

princiacutepio dualista

25 As vogais e o solfejo

Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o

meacutelos (II 126-10)

Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι

λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα

τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ

μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει

23

O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a

harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que

se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo

percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e

ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos

Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo

de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I

Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de

disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute

apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma

harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo

especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das

mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder

perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o

objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e

o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir

encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)

Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς

κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ

ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ

μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον

μετεσχηκότες

A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe

tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e

masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo

intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos

gecircneros com maior ou menor intensidade

No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre

elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa

diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino (II 131-35)

Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς

πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα

πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων

ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς

ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε

τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς

ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς

μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ

συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ

9 Cf West 1994 p178

24

πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα

δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν

ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως

ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt

κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ

λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν

μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ

ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν

ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο

καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως

ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα

φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt

νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται

πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται

τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ

γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων

καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις

σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα

καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ

ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ

Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute

captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as

letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete

examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra

as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e

masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons

mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute

masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois

nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o

ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o

som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige

que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o

alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da

sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua

estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado

intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta

quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino

quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa

na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a

exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta

trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do

alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior

parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo

lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses

examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos

constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e

terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons

semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros

Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais

nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas

internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para

isso novos paracircmetros

O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio

que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou

25

fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais

vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora

a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem

interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)

estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto

importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado

designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais

satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas

Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute

Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de

masculino e feminino em si mesmas10

Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos

remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a

esfericidade da alma11

(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash

mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso

Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves

a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon

feminino) refira-se justamente a esse arredondamento

As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em

razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas

(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua

ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente

relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal

O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do

eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os

extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo

masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo

entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da

verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o

10

Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido

Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo

metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das

observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11

Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De

Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por

que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora

o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo

26

sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo

entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta

Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo

verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave

segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo

lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros

Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro

obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo

excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no

solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)

Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ

εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί

τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες

ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ

αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων

περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ

τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν

τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς

πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ

ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ

λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος

διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt

εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους

διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν

λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ

πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν

μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν

Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente

passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega

satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se

articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que

o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam

intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez

sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por

intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos

dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de

acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos

da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam

No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido

com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das

vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o

ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons

que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida

vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava

em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos

posteriormente por que isso eacute assim

A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim

ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo

27

O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de

quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de

quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores

distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12

Do grave para o agudo (ou de

cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram

denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica

(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era

acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de

um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira

(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da

uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons

ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro

tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo

(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom

O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute

justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do

tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao

ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira

(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da

sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada

μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito

formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava

formado com a nota acrescida

Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada

tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou

agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por

eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)

Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει

κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ

τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν

πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ

θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα

γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά

12

Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2

T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)

28

Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao

masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos

em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram

dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os

sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no

entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da

passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes

Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave

formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo

decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso

ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como

o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13

os rechaccedilavam por

completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14

(II 1488-90)

περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς

παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας

Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam

na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da

alma

Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos

instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo

mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes

mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais

como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se

apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta

a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo

a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as

noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura

tonal (II 1623-40)

Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα

διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ

θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος

μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα

εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν

ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ

τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ

πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν

περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον

θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον

ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι

13

Repuacuteblica 398c 14

Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)

29

δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς

τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν

οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν

ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt

Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela

sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute

feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais

do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua

tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se

descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade

e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por

gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito

debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde

participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira

participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros

intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua

natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar

cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza

iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo

interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam

familiares

No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os

instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o

dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em

que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria

dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado

por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da

muacutesica sobre a alma

O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro

245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo

ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees

superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da

regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo

anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto

ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees

hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm

pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15

15

Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida

(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a

associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre

medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente

que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento

que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a

30

Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite

(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os

nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm

unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses

nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo

masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria

Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo

residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real

manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo

um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas

entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do

universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os

planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros

26 A muacutesica das esferas

Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves

teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem

acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma

definiccedilatildeo (III 211-6)

Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν

ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ

φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον

τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν

διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει

Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o

feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e

amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o

esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de

sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo

AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero

proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute

elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza

(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas

antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura

que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo

31

Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os

planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e

femininas (III 216-40)

ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης

γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον

ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ

δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ

ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ

θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι

τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον

μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε

μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης

προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ

πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος

ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ

νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ

ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε

ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς

Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης

ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως

ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε

θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ

ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν

ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε

ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης

ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ

μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν

παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ

τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων

συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν

θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ

ἐπίπονος τὸν ἄρρενα

A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por

toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda

um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do

feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa

tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e

nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios

e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do

feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de

Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota

acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute

no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol

(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se

regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem

tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais

familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute

luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente

uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente

feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol

emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e

impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som

que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo

de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante

ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma

equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de

32

Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e

quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo

sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que

eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino

Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal

correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota

do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao

eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de

masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as

devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam

a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde

PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO

NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa

VOGAL ε α η ω α η Ω

Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a

meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o

eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe

apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por

outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela

soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim

seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo

ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas

pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo

Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco

pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter

especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a

correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e

as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como

essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda

oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de

Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido

Primeiro tetracorde Segundo tetracorde

33

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico

Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o

ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava

somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por

uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado

ou o ponto intermeacutedio

Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica

inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo

princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros

e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado

sob sua tutela

Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a

muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a

qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto

meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional

passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num

polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a

alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a

alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de

Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge

para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim

sucessivamente

Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua

organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata

da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se

reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical

os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura

da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual

o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado

primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas

mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro

torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim

dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16

16

Gueacutenon 1999 p23

34

No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser

dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de

analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre

regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos

incomensuraacuteveis

Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de

seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas

vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade

necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que

estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade

assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada

impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a

um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por

exemplo da lua e da alma

Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as

ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou

aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que

embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres

ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia

nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de

fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas

qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas

graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo

tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais

uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a

coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e

lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num

mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao

masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora

dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo

Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo

de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o

acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o

35

fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino

teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse

fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo

Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo

contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa

A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o

outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre

quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na

quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um

compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la

A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-

feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e

feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a

posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria

necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo

para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente

masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude

de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo

privativa

Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito

de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem

duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e

quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre

ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos

guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e

sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais

difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta

porosa uacutemida ou fechada

Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a

sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns

dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso

condiccedilotildees

Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo

naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem

36

necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas

se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou

outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)

Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo

condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de

fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees

associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o

caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute

necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa

objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da

mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos

dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do

iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num

patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado

intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos

individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo

Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees

de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam

somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre

esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes

noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre

relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma

espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila

Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos

loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou

analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ

ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)

A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas

relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse

processo igualmente uma relaccedilatildeo

Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et

du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee

notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas

moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux

celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou

encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de

nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui

37

exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est

en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le

plus petit comme analogue du plus grand)17

Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que

unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter

entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel

unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia

Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres

primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune

corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos

on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification

du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par

harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se

ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une

neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au

deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure

deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en

son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception

originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la

conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique

de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre

partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18

Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de

predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e

mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na

matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo

desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =

2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que

a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas

premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo

A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-

1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua

vez se apoiu em Aristoacuteteles19

) estabelece trecircs tipos de analogia20

A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o

termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo

17

Borella 2012 p23 18

Moutsopoulos 2004 p203-204 19

Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada

pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais

ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre

chez Aristote Paris PUF 1962 20

A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23

38

grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

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Page 14: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

14

atribuir juiacutezos desfavoraacuteveis acerca da muacutesica) fundamentar a proacutepria ideia de uma formaccedilatildeo

moral atraveacutes da muacutesica E como a accedilatildeo da muacutesica sobre a alma depende tanto da capacidade

ativa da primeira quanto da capacidade receptiva da uacuteltima eacute por esta que ele comeccedila

A alma diz eacute responsaacutevel por dotar de certo ritmo e de ordem (ῥυθμοῦ τινος καὶ

τάξεως) as coisas deste mundo (τῶν ἐνθαδί) Poderiacuteamos dizer embora Quintiliano natildeo o faccedila

aqui explicitamente que a alma portanto eacute masculina em relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Mas

para que possa ser isso eacute preciso que natildeo seja apenas isso De fato diz A Q a alma natildeo

possui uma natureza ou potecircncia uacutenica (οὐδὲ τῶν μονήρη τινὰ φύσιν ἢ δύναμιν ἐχόντων) mas

certa natureza dupla (διπλῆς τινος φύσεως)

A duplicidade da alma consiste em ter sido dotada pelo administrador de todas as

coisas (ὁ τὸ σύπαν διοικῶν) de uma substacircncia divina na qual habita a razatildeo (λoacuteγος) e de

uma substacircncia mundana ou irracional (ἄλογος) na qual habita o desejo (ἐπιθυμία) As duas

naturezas ou potecircncias satildeo necessaacuterias para que a alma atue sobre o mundo corpoacutereo e essa

natureza duacuteplice sem a qual ela seria ineficaz pode-se definir assim a alma soacute eacute ativa em

relaccedilatildeo ao mundo corpoacutereo na medida em que eacute passiva em relaccedilatildeo ao mundo racional Ora a

muacutesica diz Quintiliano no iniacutecio do cap3 do livro II estaacute para a alma irracional assim como a

filosofia estaacute para a alma racional Desse modo ao submeter-se agrave muacutesica a alma irracional

submete-se igualmente agrave razatildeo pois a muacutesica eacute no fundo razatildeo transformada em mateacuteria

sensiacutevel tal como a alma mesma

Isso poreacutem natildeo eacute tudo Entre as duas naturezas da alma haacute um ponto intermeacutedio

que ao submeter o desejo agrave razatildeo confere unidade agraves duas metades Esse ponto intermeacutedio eacute

a memoacuteria (μνήμη) Memoacuteria eacute claro das belezas eternas do mundo suprassensiacutevel5 Desse

modo o dualismo aniacutemico resolve-se num elemento intermediaacuterio resultante da interaccedilatildeo

entre os polos extremos com os quais forma afinal uma triacuteade

Paralelamente a alma (tomada como unidade natildeo mais segundo a interaccedilatildeo das

suas partes) sendo a um soacute tempo ativa (frente ao mundo sensiacutevel) e passiva (perante o

mundo racional) eacute ela proacutepria um ponto intermeacutedio resultante da interaccedilatildeo entre polos

opostos com os quais por sua vez tambeacutem compotildee uma triacuteade As partes e o todo o

microcosmo e macrocosmo assim espelham-se mutuamente

consideraccedilatildeo e estimarsquo rdquo CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-

kagathiacutea Classica (Brasil) 2412 73-85 2011 5 Mesmo se desconsiderarmos esse elemento doutrinal platocircnico a memoacuteria seria ainda uma bela e eficaz

imagem da uniatildeo entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo pois a memoacuteria eacute uma operaccedilatildeo estritamente mental cujos

objetos no entanto satildeo todos oriundos da experiecircncia sensiacutevel

15

Mas a porccedilatildeo desejante (ou irracional) da alma possui igualmente as suas partes

A Q as denomina desejante (ἐπιθυμητική) a qual tende ao relaxamento (ou relaxaccedilatildeo

indulgecircncia) excessivo e impulsiva (θυμικὴ) que tende a uma tensatildeo igualmente desmedida

Fica claro desde logo embora Quintiliano reserve esse comentaacuterio para mais adiante que as

duas porccedilotildees da alma irracional formam uma oposiccedilatildeo do tipo ativo-passivo ou masculino-

feminino restando saber qual seria nesse caso o ponto intermeacutedio

O ponto intermeacutedio satildeo dois por um lado (e acima) a proacutepria porccedilatildeo racional da

alma que eacute inteiriccedila e natildeo se constitui de partes por outro (e abaixo) as paixotildees que resultam

(como A Q descreveraacute a seguir) da mescla entre as potecircncias ativa e passiva da alma As

triacuteades formadas portanto satildeo tambeacutem duas mas de tipos diferentes numa o ponto

intermeacutedio estaacute hierarquicamente acima dos termos opostos noutra hierarquicamente abaixo

A razatildeo da eficaacutecia persuasiva da muacutesica sobre a alma irracional reside

argumenta Quintiliano nas peculiaridades do seu aparato mimeacutetico que lhe permite produzir

a imitaccedilatildeo com mateacuteria similar agrave do objeto imitado Curiosamente esse aparato mimeacutetico eacute

tambeacutem triaacutedico pois a muacutesica imita6 os eacutethe e as paixotildees da alma com os conceitos

(ἐννοίαις) as palavras com as harmonias e a modulaccedilatildeo da voz (ἁρμονίαις καὶ φωνῆς

πλάσει) e a accedilatildeo com os ritmos e o movimento do corpo (ῥυθμοῖς καὶ κινήσει σώματος) A

muacutesica portanto abarca o universo inteiro da accedilatildeo humana desde o seu nascedouro (nos

movimentos afetivos e intelectuais da alma) ateacute sua exteriorizaccedilatildeo em forma de atos e

palavras

Ora sendo a muacutesica sobretudo uma terapia das paixotildees da alma (παθῶν ψυχικῶν

θεραπεία) cabe ao conceito (que siacutentese do conteuacutedo racional a transmitir e da impressatildeo

esteacutetico-emocional a causar estaacute relacionado ao movimentos internos da alma de onde brotam

as accedilotildees) o papel de guiar os elementos do meacutelos perfeito (dicccedilatildeo harmonia e ritmo) O cap8

e os seguintes a comeccedilar pelo trecho acima citado satildeo dedicados justamente a explicar

primeiro como se geram as paixotildees da alma e depois como a muacutesica eacute capaz de imitaacute-las e

de nelas intervir

De iniacutecio A Q trata da dualidade masculino-feminino como uma particularidade

do mundo corpoacutereo a que a alma tem de se submeter Reforccedila o caraacuteter especificamente

corpoacutereo dessa dualidade o fato de que ela natildeo se manifeste apenas em corpos animados (οὐκ

ἐν ἐμψύχοις μόνοις) mas tambeacutem em corpos governados por uma soacute natureza (ἀλλὰ κἀν τοῖς

φύσει μόνῃ διοικουμένοις) Essa observaccedilatildeo parece decorrer da necessidade de distinguir a jaacute

6 II 438-40

16

mencionada duplicidade da alma (razatildeo por que seria natural esperar que somente os corpos

animados estivessem submetidos agrave dualidade a dualidade ao menos entre corpo e alma) do

dualismo propriamente corpoacutereo Em todo caso embora tipicamente corpoacuterea a dualidade

masculino-feminino tambeacutem aqui natildeo se restringe ao fenocircmeno bioloacutegico da diferenciaccedilatildeo

sexual Aleacutem disso essa dualidade natildeo corresponde exatamente a duas espeacutecies opostas de

seres mas a dois polos de um eixo que atravessa de ponta a ponta o mundo corpoacutereo

alcanccedilando portanto e internamente todos os seres nele existentes Desse modo cada ente

particular pode ser tomado como uma resultante da interaccedilatildeo entre os dois princiacutepios em

relaccedilatildeo aos quais ele estabelece por sua vez um ponto intermeacutedio isto eacute uma mescla E eacute

precisamente na produccedilatildeo dessa mescla que o dualismo aniacutemico e o dualismo corpoacutereo se

articulam (II 816-28)

οὐ μόνον οὖν ἐφίεται σώματος ἀλλὰ καὶ τούτου ποιοῦ τινος ἢ γὰρ ἄρρεν

ἠγάπηκεν ἢ θῆλυ καὶ τούτων ὁτὲ μὲν ἄκρατον θάτερον ὁτὲ δὲ ἐξ ἀμφοῖν

ἔχον δεινήν τινα καὶ ὄντως ἄτοπον μίξιν αὐτίκα κἂν μὴ φύσει τοῦ

τοιούτου τύχωσι σώματος αὐταὶ ταῖς σφετέραις τροπαῖς μετερρύθμισάν

τε καὶ ἐς τὸ αὑταῖς ὅμοιον μετέστησαν οὕτως ἐν μὲν ἄρρεσι θῆλυς

ἐπιτρέχει μορφή δι ἣν καὶ ὁ βίος ὦπται τοιοῦτος ἐν δὲ γυναιξὶν ἀνδρεῖον

εἶδος ᾧ καὶ τὸ ἦθος ὅμοιον τεκμαιρόμεθα καὶ ἄνδρες μὴν ἀγένειοι καὶ

γενειάσκουσι γυναῖκες καί τις ἄρρην ἔβλεψεν ὑγρὸν καὶ γυναῖκες γοργὸν

προσεῖδον ὥστε καὶ τῶν ἠθῶν ἕκαστα θηράσεις ἑκάστῃ μορφῇ συνῳδά

A alma portanto natildeo soacute deseja um corpo mas certo tipo de corpo um

corpo masculino ou um corpo feminino Deseja dentre esses agraves vezes um

corpo puro de um tipo ou de outro agraves vezes um corpo que possua uma

curiosa e paradoxal mistura de ambos Assim quando natildeo conseguem

obter naturalmente esse determinado corpo as almas o remodelam

mediante torneios e o transformam em algo semelhante a si mesmas

Dessa forma sobre um corpo masculino recai uma forma feminina (razatildeo

por que tambeacutem sua vida assim se mostra) ou ainda sobre um corpo

feminino uma forma masculina no que tambeacutem assinalamos um eacutethos

similar Haacute homens imberbes e mulheres barbadas homens de lacircnguido

olhar e mulheres com mirada de Goacutergona de modo que cada eacutethos veraacutes

corresponde a uma fisionomia

Uma vez estabelecido o princiacutepio de que o dualismo aniacutemico de algum modo rege

o dualismo corpoacutereo A Q sente-se agrave vontade para tratar de um nos termos do outro

recorrendo para isso aos termos masculino e feminino (II 828-39)

ἐκ δὲ τῆς πρὸς τὸ ἄρρεν ἢ θῆλυ προσπαθείας ἢ πρὸς ἀμφότερον τὰ πάθη

συνίσταται περὶ ψυχήν τὸ μὲν οὖν θῆλυ λίαν ἀνειμένον ᾧ συνᾴδει τὸ

ἐπιθυμητικόν τὸ δ ἄρρεν σφοδρόν τε καὶ δραστήριον ᾧ τὸ θυμικὸν

ὡμοίωται περὶ μὲν οὖν τὸ θῆλυ ψυχῆς τε μέρος καὶ ἀνθρώπων γένος

πλεονάζουσι λῦπαι τε καὶ ἡδοναί περὶ δὲ τὸ ἄρρεν ὀργὴ καὶ θράσος

πάλιν δὲ τούτων γίνονται συζυγίαι λυπῶν τε πρὸς ἡδονὰς καὶ ὀργῆς πρὸς

θράσος καὶ θράσους πρὸς ἡδονὴν καὶ λύπην καὶ ὀργῆς αὖθις πρὸς

ἑκάτερον καὶ πάλιν ἑκάστου πρός τε ἓν καὶ πρὸς πλείω μίξεις καὶ μυρίας

ἄν τις ἐκ τούτων εὕροι τῶν παθῶν εἰκόνας ἐν ποικιλίᾳ θεωρουμένων

17

Conforme o apego ao masculino ao feminino ou a ambos estabelecem-se

as paixotildees da alma O feminino eacute demasiado indulgente e com ele

concorda a alma desejante ao passo que o masculino semelhante agrave alma

impulsiva eacute veemente e ativo Assim tanto na parte feminina da alma

quanto na parcela feminina da humanidade abundam os prazeres e as

dores ao passo que na masculina a ira e a coragem E uma vez mais

datildeo-se combinaccedilotildees entre essas paixotildees das dores com os prazeres da ira

com a coragem da coragem com o prazer e a dor ou da ira novamente

com as demais e ainda de uma com outra qualquer ou com vaacuterias A

partir dessas seria possiacutevel encontrar uma miriacuteade de imagens das

paixotildees em vista da sua variedade

Se a alma por um lado submete o mundo corpoacutereo este por sua vez a espelha

macrocosmicamente nela interferindo mediante interaccedilotildees simpaacuteticas a exemplo do que

ocorre na muacutesica No entanto natildeo satildeo apenas as disposiccedilotildees passivas ou paixotildees que

estabelecem pontes entre a alma e a realidade corpoacuterea Tambeacutem as disposiccedilotildees ativas e

intelectivas estatildeo submetidas ao dualismo masculino-feminino (II 848-69)

ἔστι γὰρ πρῶτον μὲν ἐν ὁρατοῖς ἑκατέραν ἰδεῖν τὴν φύσιν τὸ μὲν

ἀνθηρόν τε καὶ ἐς ὡραϊσμὸν προςφυὲς χρῶμά τε καὶ σχῆμα διαιροῦντα

θηλύτητι τὸ δὲ στυγνόν τε καὶ ἐς σύννοιαν ἄγον ἀρρενότητι πάλιν δὲ ἐν

ἀκοαῖς τοὺς μὲν λείους καὶ προσηνεῖς ἤχους ἐς τὸ θῆλυ τοὺς δὲ

τραχυτέρους εἰς τοὐναντίον ἁρμόττοντα καί ἵνα μὴ τὰ καθ ἕκαστον

λέγω κοινῶς περὶ πάντων ἀποφαντέον ὡς ὅσα μὲν τῶν αἰσθητῶν ἔς τε

ἡδονὴν δελεάζει καὶ ἠρέμα διαχεῖν τὴν γνώμην πέφυκε ταῦτα εἰς τὸ θῆλυ

κριτέον ὅσα δὲ κινεῖ τε εἰς σύννοιαν καὶ ἐγείρει τὸ δραστήριον ταῦτα εἰς

τὴν ἄρρενος μοῖραν ἀπονεμητέον τὰ δέ τοι μηδέτερον ἢ κατὰ μίξιν ἄμφω

δρῶντα ταῦτα τῶν μέσων ἀποφαντέον κατὰ δὴ ταῦτα καὶ περὶ ἐκείνων

λέγωμεν αἳ λόγῳ μέν εἰσι καταληπταὶ τέχναι τε καὶ ἀρεταὶ καὶ ἐπιστῆμαι

ἐκ δὲ τῆς τῶν ὑλῶν ποιότητος περὶ ἃς ἑκάστη τευτάζει τὰς πρὸς ἀλλήλας

διαφορὰς καὶ ὁμοιότητας εἰλήχασιν αἵ τε ἀρεταὶ πρὸς τὰς ἀρετὰς αἵ τε

ἐπιστῆμαι πρὸς τὰς ἐπιστήμας κακίαι τε αὖ πρὸς κακίας καὶ

ἀνεπιστημοσύναι πρὸς ἀμαθίας πάλιν δὲ ἀρεταὶ πρὸς κακίας ἢ ἐπιστήμας

ἢ ἀγνωσίας κακίαι τε αὖ πρὸς τὰς εἰρημένας ποικίλης τινὸς καὶ τῆς κατὰ

ταῦτα πλοκῆς τε οὔσης καὶ μίξεως

A princiacutepio eacute de fato possiacutevel identificar nos objetos visiacuteveis cada

natureza separadamente atribuindo o florido e as formas e cores

decorativas ao feminino e as sombrias e que conduzem agrave reflexatildeo ao

masculino e o mesmo para as coisas audiacuteveis relacionando os sons

suaves e doces ao feminino e os mais aacutesperos ao seu oposto E para que

eu natildeo entre aqui em detalhes eacute preciso dizer que no geral as coisas

sensiacuteveis que induzem ao prazer e que natural e docemente dissolvem o

juiacutezo estas se devem considerar femininas ao passo que aquelas que nos

levam agrave reflexatildeo ou promovem a accedilatildeo se devem designar masculinas Jaacute

aquelas que natildeo atuam nem de uma nem de outra maneira ou o faccedilam

segundo uma mescla de ambas estas se hatildeo de chamar intermediaacuterias

Disso decorre que falemos nos mesmos termos a respeito tambeacutem das

coisas apreendidas pela razatildeo ndash as artes as virtudes e as ciecircncias ndash as

quais devem suas semelhanccedilas e diferenccedilas muacutetuas aos assuntos de que se

ocupam as virtudes no tocante agraves virtudes e as ciecircncias no tocante agraves

ciecircncias e por seu turno os viacutecios no que diz respeito aos viacutecios e a

incultura com respeito agraves ignoracircncias e ainda virtudes com respeito aos

viacutecios ciecircncias ou ignoracircncias e os viacutecios com respeito estes todos

sendo possiacutevel certa combinaccedilatildeo e mescla dessas coisas

18

Cabe observar como A Q ao traccedilar um perfil do masculino e do feminino natildeo

oferece uma lista de entes individuais mas um elenco geneacuterico de qualidades sensiacuteveis das

quais ele passa sem maior detenccedila para o toacutepico das naturezas intermediaacuterias em que estatildeo

incluiacutedas as artes as ciecircncias e as virtudes A menccedilatildeo agraves artes ciecircncias e virtudes eacute

importante neste momento porque uma vez explicado o processo pelo qual atraveacutes de

mesclas dos princiacutepios masculino e feminino satildeo engendradas as paixotildees da alma

Quintiliano deve agora retomar o fio da exposiccedilatildeo e mostrar como a muacutesica por meio de

conceitos palavras ritmos e melodias eacute capaz de imitar essas mesmas paixotildees virtudes

viacutecios etc comunicando agrave alma o respectivo eacutethos Eacute o que faraacute no restante do livro II

23 Os conceitos

No iniacutecio do cap9 A Q retoma o tema dos conceitos com o qual tinha

concluiacutedo o cap7 antes da relativamente longa mas necessaacuteria digressatildeo acerca das paixotildees

da alma O propoacutesito do autor eacute demonstrar como um poeta eacute capaz de transmitir os conceitos

que deseje mediante o emprego de certos procedimentos retoacutericos A Q utiliza exemplos

extraiacutedos de Homero nos quais aponta como o poeta mesclando traccedilos masculinos e

femininos consegue traduzir em palavras uma gama complexa de impressotildees desde

sensaccedilotildees fiacutesicas como rapidez suavidade ou agitaccedilatildeo ateacute caracteres ou julgamentos morais

Esse conceitos (ἐννοήματα) compostos de traccedilos masculinos e femininos ndash conceitos que por

sua vez entram na composiccedilatildeo eacutetica das frases e dos discursos ndash A Q os compara aos

extratos dos quais satildeo feitos os remeacutedios7 e conclui (II 103-18)

τὰ μὲν οὖν ἐς ἄνεσιν ἄγοντα καὶ φαιδρότητα τὸν ἀφελῆ τε καὶ ἡδὺν λόγον

ἐγέννησε τὰ δὲ τὸ σύννουν κινοῦντα καὶ τὸ ὁρμητικὸν τὸν πολιτικόν τε

καὶ ἀγωνιστικὸν ἐξέφηνεν τοῦ μὲν οὖν πολιτικοῦ κατὰ τὸ ἄρρεν τὰ εἴδη

συντομίαι τε καὶ βραχύτητες καὶ ἀξίωμα καὶ μεγαλοπρέπεια τραχύτης τε

καὶ σφοδρότης καὶ μέγεθος καὶ μεστότης ἅπερ τήν τε φυσικὴν ἐμφαίνει

μεγαλόνοιαν τοῦ ἄρρενος μέγεθός τε σώματος καὶ ἁδροτῆτα διανοίας καὶ

τὸ ἐς τὰ μέγιστα τῶν ἔργων ἀνυτικὸν τάχος τοῦ δὲ ἀφελοῦς ἀραιότης

ἁβρότης κάλλη τε καὶ γλυκύτητες ὧν τὰ μὲν τὸ ἀνειμένον τοῦ θήλεος τὰ

δὲ τὸ ἐς ὡραϊσμὸν διαδείκνυσιν ἐπτοημένον γένοιτο δ ἄν τι καὶ τῇ

τούτων πλοκῇ οἷον ἡ δριμύτης τὸ μὲν τάχος ὡς ἄρρεν τὸ δὲ

μικροπρεπὲς ὡς ἐναντίον ἐπιφαίνουσα ἥ τ ἐπιμέλεια τὸ μὲν γλίσχρον

ἔχουσα κατὰ τὸ θῆλυ τὸ δὲ τῆς φιλοπονίας παρεκτεταμένον ὡς ἄρρεν

Assim os conceitos que levam agrave descontraccedilatildeo e agrave alegria produzem uma

frase despojada e doce enquanto os conceitos que mobilizam as partes

intelectiva e impulsiva produzem a frase contenciosa e poliacutetica Os traccedilos

da frase poliacutetica relacionados ao masculino satildeo concisatildeo brevidade

dignidade e elevaccedilatildeo assim como aspereza forccedila grandeza e

completude traccedilos que mostram a grandiosidade natural do masculino a

7 Uma comparaccedilatildeo semelhante jaacute tinha sido feita em II 47-12

19

magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores

trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e

doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros

a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a

exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e

atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade

como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo

masculino

Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem

duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel

Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade

contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de

masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e

mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos

interessa aqui compreender

Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase

feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por

ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por

ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo

como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa

ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de

desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo

remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na

disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma

Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que

poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade

seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma

caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel

quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a

porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade

contradiccedilatildeo alguma

No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a

capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente

aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam

o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante

uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses

materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes

20

Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro

tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais

duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do

diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons

livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma

martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente

tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade

Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a

accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua

presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No

capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a

dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do

discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto

24 As letras

Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto

καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων

γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς

φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς

τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον

ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως

περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων

ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων

τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ

ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε

πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ

ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα

μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν

χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον

ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς

ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς

τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον

διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως

τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν

ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων

κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος

ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ

τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως

eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo

de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais

outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como

as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido

satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que

limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves

enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade

21

temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo

dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo

que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente

eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o

lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute

atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por

sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a

passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes

outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se

com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar

jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua

a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio

das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona

ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o

emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito

aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias

e possuem ambas as naturezas

A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo

primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso

masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais

Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da

classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam

espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo

das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as

consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto

consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as

consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave

nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na

sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz

respeito agraves letras8

As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo

claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que

pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo

Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das

vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de

assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as

quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das

letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes

8 Cf Chapanski 2003 p 22-24

22

Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes

que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais

proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias

enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais

proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em

relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade

As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de

articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua

vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto

meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais

tau delta e theta As guturais capa gama e khi

Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como

ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo

que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as

surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste

em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de

separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas

silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)

seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as

consoantes o polo essencial (formal ou masculino)

AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo

seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais

(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a

doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo

princiacutepio dualista

25 As vogais e o solfejo

Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o

meacutelos (II 126-10)

Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι

λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα

τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ

μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει

23

O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a

harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que

se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo

percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e

ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos

Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo

de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I

Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de

disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute

apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma

harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo

especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das

mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder

perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o

objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e

o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir

encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)

Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς

κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ

ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ

μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον

μετεσχηκότες

A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe

tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e

masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo

intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos

gecircneros com maior ou menor intensidade

No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre

elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa

diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino (II 131-35)

Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς

πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα

πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων

ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς

ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε

τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς

ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς

μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ

συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ

9 Cf West 1994 p178

24

πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα

δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν

ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως

ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt

κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ

λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν

μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ

ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν

ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο

καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως

ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα

φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt

νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται

πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται

τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ

γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων

καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις

σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα

καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ

ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ

Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute

captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as

letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete

examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra

as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e

masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons

mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute

masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois

nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o

ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o

som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige

que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o

alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da

sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua

estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado

intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta

quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino

quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa

na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a

exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta

trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do

alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior

parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo

lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses

examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos

constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e

terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons

semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros

Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais

nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas

internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para

isso novos paracircmetros

O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio

que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou

25

fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais

vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora

a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem

interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)

estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto

importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado

designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais

satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas

Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute

Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de

masculino e feminino em si mesmas10

Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos

remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a

esfericidade da alma11

(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash

mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso

Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves

a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon

feminino) refira-se justamente a esse arredondamento

As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em

razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas

(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua

ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente

relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal

O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do

eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os

extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo

masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo

entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da

verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o

10

Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido

Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo

metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das

observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11

Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De

Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por

que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora

o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo

26

sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo

entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta

Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo

verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave

segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo

lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros

Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro

obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo

excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no

solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)

Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ

εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί

τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες

ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ

αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων

περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ

τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν

τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς

πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ

ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ

λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος

διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt

εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους

διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν

λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ

πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν

μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν

Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente

passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega

satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se

articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que

o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam

intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez

sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por

intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos

dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de

acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos

da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam

No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido

com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das

vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o

ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons

que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida

vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava

em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos

posteriormente por que isso eacute assim

A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim

ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo

27

O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de

quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de

quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores

distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12

Do grave para o agudo (ou de

cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram

denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica

(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era

acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de

um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira

(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da

uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons

ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro

tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo

(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom

O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute

justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do

tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao

ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira

(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da

sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada

μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito

formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava

formado com a nota acrescida

Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada

tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou

agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por

eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)

Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει

κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ

τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν

πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ

θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα

γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά

12

Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2

T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)

28

Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao

masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos

em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram

dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os

sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no

entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da

passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes

Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave

formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo

decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso

ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como

o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13

os rechaccedilavam por

completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14

(II 1488-90)

περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς

παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας

Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam

na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da

alma

Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos

instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo

mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes

mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais

como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se

apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta

a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo

a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as

noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura

tonal (II 1623-40)

Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα

διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ

θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος

μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα

εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν

ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ

τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ

πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν

περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον

θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον

ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι

13

Repuacuteblica 398c 14

Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)

29

δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς

τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν

οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν

ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt

Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela

sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute

feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais

do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua

tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se

descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade

e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por

gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito

debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde

participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira

participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros

intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua

natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar

cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza

iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo

interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam

familiares

No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os

instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o

dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em

que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria

dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado

por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da

muacutesica sobre a alma

O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro

245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo

ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees

superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da

regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo

anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto

ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees

hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm

pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15

15

Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida

(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a

associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre

medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente

que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento

que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a

30

Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite

(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os

nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm

unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses

nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo

masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria

Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo

residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real

manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo

um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas

entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do

universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os

planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros

26 A muacutesica das esferas

Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves

teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem

acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma

definiccedilatildeo (III 211-6)

Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν

ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ

φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον

τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν

διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει

Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o

feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e

amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o

esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de

sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo

AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero

proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute

elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza

(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas

antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura

que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo

31

Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os

planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e

femininas (III 216-40)

ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης

γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον

ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ

δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ

ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ

θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι

τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον

μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε

μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης

προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ

πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος

ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ

νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ

ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε

ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς

Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης

ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως

ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε

θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ

ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν

ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε

ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης

ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ

μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν

παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ

τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων

συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν

θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ

ἐπίπονος τὸν ἄρρενα

A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por

toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda

um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do

feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa

tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e

nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios

e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do

feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de

Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota

acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute

no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol

(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se

regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem

tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais

familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute

luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente

uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente

feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol

emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e

impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som

que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo

de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante

ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma

equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de

32

Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e

quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo

sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que

eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino

Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal

correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota

do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao

eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de

masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as

devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam

a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde

PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO

NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa

VOGAL ε α η ω α η Ω

Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a

meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o

eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe

apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por

outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela

soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim

seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo

ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas

pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo

Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco

pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter

especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a

correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e

as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como

essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda

oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de

Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido

Primeiro tetracorde Segundo tetracorde

33

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico

Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o

ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava

somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por

uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado

ou o ponto intermeacutedio

Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica

inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo

princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros

e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado

sob sua tutela

Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a

muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a

qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto

meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional

passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num

polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a

alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a

alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de

Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge

para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim

sucessivamente

Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua

organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata

da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se

reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical

os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura

da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual

o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado

primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas

mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro

torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim

dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16

16

Gueacutenon 1999 p23

34

No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser

dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de

analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre

regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos

incomensuraacuteveis

Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de

seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas

vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade

necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que

estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade

assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada

impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a

um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por

exemplo da lua e da alma

Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as

ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou

aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que

embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres

ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia

nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de

fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas

qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas

graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo

tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais

uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a

coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e

lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num

mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao

masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora

dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo

Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo

de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o

acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o

35

fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino

teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse

fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo

Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo

contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa

A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o

outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre

quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na

quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um

compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la

A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-

feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e

feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a

posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria

necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo

para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente

masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude

de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo

privativa

Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito

de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem

duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e

quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre

ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos

guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e

sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais

difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta

porosa uacutemida ou fechada

Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a

sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns

dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso

condiccedilotildees

Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo

naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem

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necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas

se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou

outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)

Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo

condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de

fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees

associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o

caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute

necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa

objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da

mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos

dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do

iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num

patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado

intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos

individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo

Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees

de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam

somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre

esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes

noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre

relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma

espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila

Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos

loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou

analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ

ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)

A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas

relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse

processo igualmente uma relaccedilatildeo

Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et

du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee

notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas

moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux

celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou

encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de

nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui

37

exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est

en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le

plus petit comme analogue du plus grand)17

Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que

unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter

entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel

unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia

Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres

primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune

corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos

on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification

du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par

harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se

ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une

neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au

deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure

deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en

son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception

originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la

conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique

de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre

partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18

Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de

predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e

mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na

matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo

desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =

2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que

a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas

premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo

A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-

1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua

vez se apoiu em Aristoacuteteles19

) estabelece trecircs tipos de analogia20

A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o

termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo

17

Borella 2012 p23 18

Moutsopoulos 2004 p203-204 19

Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada

pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais

ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre

chez Aristote Paris PUF 1962 20

A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23

38

grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

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Page 15: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

15

Mas a porccedilatildeo desejante (ou irracional) da alma possui igualmente as suas partes

A Q as denomina desejante (ἐπιθυμητική) a qual tende ao relaxamento (ou relaxaccedilatildeo

indulgecircncia) excessivo e impulsiva (θυμικὴ) que tende a uma tensatildeo igualmente desmedida

Fica claro desde logo embora Quintiliano reserve esse comentaacuterio para mais adiante que as

duas porccedilotildees da alma irracional formam uma oposiccedilatildeo do tipo ativo-passivo ou masculino-

feminino restando saber qual seria nesse caso o ponto intermeacutedio

O ponto intermeacutedio satildeo dois por um lado (e acima) a proacutepria porccedilatildeo racional da

alma que eacute inteiriccedila e natildeo se constitui de partes por outro (e abaixo) as paixotildees que resultam

(como A Q descreveraacute a seguir) da mescla entre as potecircncias ativa e passiva da alma As

triacuteades formadas portanto satildeo tambeacutem duas mas de tipos diferentes numa o ponto

intermeacutedio estaacute hierarquicamente acima dos termos opostos noutra hierarquicamente abaixo

A razatildeo da eficaacutecia persuasiva da muacutesica sobre a alma irracional reside

argumenta Quintiliano nas peculiaridades do seu aparato mimeacutetico que lhe permite produzir

a imitaccedilatildeo com mateacuteria similar agrave do objeto imitado Curiosamente esse aparato mimeacutetico eacute

tambeacutem triaacutedico pois a muacutesica imita6 os eacutethe e as paixotildees da alma com os conceitos

(ἐννοίαις) as palavras com as harmonias e a modulaccedilatildeo da voz (ἁρμονίαις καὶ φωνῆς

πλάσει) e a accedilatildeo com os ritmos e o movimento do corpo (ῥυθμοῖς καὶ κινήσει σώματος) A

muacutesica portanto abarca o universo inteiro da accedilatildeo humana desde o seu nascedouro (nos

movimentos afetivos e intelectuais da alma) ateacute sua exteriorizaccedilatildeo em forma de atos e

palavras

Ora sendo a muacutesica sobretudo uma terapia das paixotildees da alma (παθῶν ψυχικῶν

θεραπεία) cabe ao conceito (que siacutentese do conteuacutedo racional a transmitir e da impressatildeo

esteacutetico-emocional a causar estaacute relacionado ao movimentos internos da alma de onde brotam

as accedilotildees) o papel de guiar os elementos do meacutelos perfeito (dicccedilatildeo harmonia e ritmo) O cap8

e os seguintes a comeccedilar pelo trecho acima citado satildeo dedicados justamente a explicar

primeiro como se geram as paixotildees da alma e depois como a muacutesica eacute capaz de imitaacute-las e

de nelas intervir

De iniacutecio A Q trata da dualidade masculino-feminino como uma particularidade

do mundo corpoacutereo a que a alma tem de se submeter Reforccedila o caraacuteter especificamente

corpoacutereo dessa dualidade o fato de que ela natildeo se manifeste apenas em corpos animados (οὐκ

ἐν ἐμψύχοις μόνοις) mas tambeacutem em corpos governados por uma soacute natureza (ἀλλὰ κἀν τοῖς

φύσει μόνῃ διοικουμένοις) Essa observaccedilatildeo parece decorrer da necessidade de distinguir a jaacute

6 II 438-40

16

mencionada duplicidade da alma (razatildeo por que seria natural esperar que somente os corpos

animados estivessem submetidos agrave dualidade a dualidade ao menos entre corpo e alma) do

dualismo propriamente corpoacutereo Em todo caso embora tipicamente corpoacuterea a dualidade

masculino-feminino tambeacutem aqui natildeo se restringe ao fenocircmeno bioloacutegico da diferenciaccedilatildeo

sexual Aleacutem disso essa dualidade natildeo corresponde exatamente a duas espeacutecies opostas de

seres mas a dois polos de um eixo que atravessa de ponta a ponta o mundo corpoacutereo

alcanccedilando portanto e internamente todos os seres nele existentes Desse modo cada ente

particular pode ser tomado como uma resultante da interaccedilatildeo entre os dois princiacutepios em

relaccedilatildeo aos quais ele estabelece por sua vez um ponto intermeacutedio isto eacute uma mescla E eacute

precisamente na produccedilatildeo dessa mescla que o dualismo aniacutemico e o dualismo corpoacutereo se

articulam (II 816-28)

οὐ μόνον οὖν ἐφίεται σώματος ἀλλὰ καὶ τούτου ποιοῦ τινος ἢ γὰρ ἄρρεν

ἠγάπηκεν ἢ θῆλυ καὶ τούτων ὁτὲ μὲν ἄκρατον θάτερον ὁτὲ δὲ ἐξ ἀμφοῖν

ἔχον δεινήν τινα καὶ ὄντως ἄτοπον μίξιν αὐτίκα κἂν μὴ φύσει τοῦ

τοιούτου τύχωσι σώματος αὐταὶ ταῖς σφετέραις τροπαῖς μετερρύθμισάν

τε καὶ ἐς τὸ αὑταῖς ὅμοιον μετέστησαν οὕτως ἐν μὲν ἄρρεσι θῆλυς

ἐπιτρέχει μορφή δι ἣν καὶ ὁ βίος ὦπται τοιοῦτος ἐν δὲ γυναιξὶν ἀνδρεῖον

εἶδος ᾧ καὶ τὸ ἦθος ὅμοιον τεκμαιρόμεθα καὶ ἄνδρες μὴν ἀγένειοι καὶ

γενειάσκουσι γυναῖκες καί τις ἄρρην ἔβλεψεν ὑγρὸν καὶ γυναῖκες γοργὸν

προσεῖδον ὥστε καὶ τῶν ἠθῶν ἕκαστα θηράσεις ἑκάστῃ μορφῇ συνῳδά

A alma portanto natildeo soacute deseja um corpo mas certo tipo de corpo um

corpo masculino ou um corpo feminino Deseja dentre esses agraves vezes um

corpo puro de um tipo ou de outro agraves vezes um corpo que possua uma

curiosa e paradoxal mistura de ambos Assim quando natildeo conseguem

obter naturalmente esse determinado corpo as almas o remodelam

mediante torneios e o transformam em algo semelhante a si mesmas

Dessa forma sobre um corpo masculino recai uma forma feminina (razatildeo

por que tambeacutem sua vida assim se mostra) ou ainda sobre um corpo

feminino uma forma masculina no que tambeacutem assinalamos um eacutethos

similar Haacute homens imberbes e mulheres barbadas homens de lacircnguido

olhar e mulheres com mirada de Goacutergona de modo que cada eacutethos veraacutes

corresponde a uma fisionomia

Uma vez estabelecido o princiacutepio de que o dualismo aniacutemico de algum modo rege

o dualismo corpoacutereo A Q sente-se agrave vontade para tratar de um nos termos do outro

recorrendo para isso aos termos masculino e feminino (II 828-39)

ἐκ δὲ τῆς πρὸς τὸ ἄρρεν ἢ θῆλυ προσπαθείας ἢ πρὸς ἀμφότερον τὰ πάθη

συνίσταται περὶ ψυχήν τὸ μὲν οὖν θῆλυ λίαν ἀνειμένον ᾧ συνᾴδει τὸ

ἐπιθυμητικόν τὸ δ ἄρρεν σφοδρόν τε καὶ δραστήριον ᾧ τὸ θυμικὸν

ὡμοίωται περὶ μὲν οὖν τὸ θῆλυ ψυχῆς τε μέρος καὶ ἀνθρώπων γένος

πλεονάζουσι λῦπαι τε καὶ ἡδοναί περὶ δὲ τὸ ἄρρεν ὀργὴ καὶ θράσος

πάλιν δὲ τούτων γίνονται συζυγίαι λυπῶν τε πρὸς ἡδονὰς καὶ ὀργῆς πρὸς

θράσος καὶ θράσους πρὸς ἡδονὴν καὶ λύπην καὶ ὀργῆς αὖθις πρὸς

ἑκάτερον καὶ πάλιν ἑκάστου πρός τε ἓν καὶ πρὸς πλείω μίξεις καὶ μυρίας

ἄν τις ἐκ τούτων εὕροι τῶν παθῶν εἰκόνας ἐν ποικιλίᾳ θεωρουμένων

17

Conforme o apego ao masculino ao feminino ou a ambos estabelecem-se

as paixotildees da alma O feminino eacute demasiado indulgente e com ele

concorda a alma desejante ao passo que o masculino semelhante agrave alma

impulsiva eacute veemente e ativo Assim tanto na parte feminina da alma

quanto na parcela feminina da humanidade abundam os prazeres e as

dores ao passo que na masculina a ira e a coragem E uma vez mais

datildeo-se combinaccedilotildees entre essas paixotildees das dores com os prazeres da ira

com a coragem da coragem com o prazer e a dor ou da ira novamente

com as demais e ainda de uma com outra qualquer ou com vaacuterias A

partir dessas seria possiacutevel encontrar uma miriacuteade de imagens das

paixotildees em vista da sua variedade

Se a alma por um lado submete o mundo corpoacutereo este por sua vez a espelha

macrocosmicamente nela interferindo mediante interaccedilotildees simpaacuteticas a exemplo do que

ocorre na muacutesica No entanto natildeo satildeo apenas as disposiccedilotildees passivas ou paixotildees que

estabelecem pontes entre a alma e a realidade corpoacuterea Tambeacutem as disposiccedilotildees ativas e

intelectivas estatildeo submetidas ao dualismo masculino-feminino (II 848-69)

ἔστι γὰρ πρῶτον μὲν ἐν ὁρατοῖς ἑκατέραν ἰδεῖν τὴν φύσιν τὸ μὲν

ἀνθηρόν τε καὶ ἐς ὡραϊσμὸν προςφυὲς χρῶμά τε καὶ σχῆμα διαιροῦντα

θηλύτητι τὸ δὲ στυγνόν τε καὶ ἐς σύννοιαν ἄγον ἀρρενότητι πάλιν δὲ ἐν

ἀκοαῖς τοὺς μὲν λείους καὶ προσηνεῖς ἤχους ἐς τὸ θῆλυ τοὺς δὲ

τραχυτέρους εἰς τοὐναντίον ἁρμόττοντα καί ἵνα μὴ τὰ καθ ἕκαστον

λέγω κοινῶς περὶ πάντων ἀποφαντέον ὡς ὅσα μὲν τῶν αἰσθητῶν ἔς τε

ἡδονὴν δελεάζει καὶ ἠρέμα διαχεῖν τὴν γνώμην πέφυκε ταῦτα εἰς τὸ θῆλυ

κριτέον ὅσα δὲ κινεῖ τε εἰς σύννοιαν καὶ ἐγείρει τὸ δραστήριον ταῦτα εἰς

τὴν ἄρρενος μοῖραν ἀπονεμητέον τὰ δέ τοι μηδέτερον ἢ κατὰ μίξιν ἄμφω

δρῶντα ταῦτα τῶν μέσων ἀποφαντέον κατὰ δὴ ταῦτα καὶ περὶ ἐκείνων

λέγωμεν αἳ λόγῳ μέν εἰσι καταληπταὶ τέχναι τε καὶ ἀρεταὶ καὶ ἐπιστῆμαι

ἐκ δὲ τῆς τῶν ὑλῶν ποιότητος περὶ ἃς ἑκάστη τευτάζει τὰς πρὸς ἀλλήλας

διαφορὰς καὶ ὁμοιότητας εἰλήχασιν αἵ τε ἀρεταὶ πρὸς τὰς ἀρετὰς αἵ τε

ἐπιστῆμαι πρὸς τὰς ἐπιστήμας κακίαι τε αὖ πρὸς κακίας καὶ

ἀνεπιστημοσύναι πρὸς ἀμαθίας πάλιν δὲ ἀρεταὶ πρὸς κακίας ἢ ἐπιστήμας

ἢ ἀγνωσίας κακίαι τε αὖ πρὸς τὰς εἰρημένας ποικίλης τινὸς καὶ τῆς κατὰ

ταῦτα πλοκῆς τε οὔσης καὶ μίξεως

A princiacutepio eacute de fato possiacutevel identificar nos objetos visiacuteveis cada

natureza separadamente atribuindo o florido e as formas e cores

decorativas ao feminino e as sombrias e que conduzem agrave reflexatildeo ao

masculino e o mesmo para as coisas audiacuteveis relacionando os sons

suaves e doces ao feminino e os mais aacutesperos ao seu oposto E para que

eu natildeo entre aqui em detalhes eacute preciso dizer que no geral as coisas

sensiacuteveis que induzem ao prazer e que natural e docemente dissolvem o

juiacutezo estas se devem considerar femininas ao passo que aquelas que nos

levam agrave reflexatildeo ou promovem a accedilatildeo se devem designar masculinas Jaacute

aquelas que natildeo atuam nem de uma nem de outra maneira ou o faccedilam

segundo uma mescla de ambas estas se hatildeo de chamar intermediaacuterias

Disso decorre que falemos nos mesmos termos a respeito tambeacutem das

coisas apreendidas pela razatildeo ndash as artes as virtudes e as ciecircncias ndash as

quais devem suas semelhanccedilas e diferenccedilas muacutetuas aos assuntos de que se

ocupam as virtudes no tocante agraves virtudes e as ciecircncias no tocante agraves

ciecircncias e por seu turno os viacutecios no que diz respeito aos viacutecios e a

incultura com respeito agraves ignoracircncias e ainda virtudes com respeito aos

viacutecios ciecircncias ou ignoracircncias e os viacutecios com respeito estes todos

sendo possiacutevel certa combinaccedilatildeo e mescla dessas coisas

18

Cabe observar como A Q ao traccedilar um perfil do masculino e do feminino natildeo

oferece uma lista de entes individuais mas um elenco geneacuterico de qualidades sensiacuteveis das

quais ele passa sem maior detenccedila para o toacutepico das naturezas intermediaacuterias em que estatildeo

incluiacutedas as artes as ciecircncias e as virtudes A menccedilatildeo agraves artes ciecircncias e virtudes eacute

importante neste momento porque uma vez explicado o processo pelo qual atraveacutes de

mesclas dos princiacutepios masculino e feminino satildeo engendradas as paixotildees da alma

Quintiliano deve agora retomar o fio da exposiccedilatildeo e mostrar como a muacutesica por meio de

conceitos palavras ritmos e melodias eacute capaz de imitar essas mesmas paixotildees virtudes

viacutecios etc comunicando agrave alma o respectivo eacutethos Eacute o que faraacute no restante do livro II

23 Os conceitos

No iniacutecio do cap9 A Q retoma o tema dos conceitos com o qual tinha

concluiacutedo o cap7 antes da relativamente longa mas necessaacuteria digressatildeo acerca das paixotildees

da alma O propoacutesito do autor eacute demonstrar como um poeta eacute capaz de transmitir os conceitos

que deseje mediante o emprego de certos procedimentos retoacutericos A Q utiliza exemplos

extraiacutedos de Homero nos quais aponta como o poeta mesclando traccedilos masculinos e

femininos consegue traduzir em palavras uma gama complexa de impressotildees desde

sensaccedilotildees fiacutesicas como rapidez suavidade ou agitaccedilatildeo ateacute caracteres ou julgamentos morais

Esse conceitos (ἐννοήματα) compostos de traccedilos masculinos e femininos ndash conceitos que por

sua vez entram na composiccedilatildeo eacutetica das frases e dos discursos ndash A Q os compara aos

extratos dos quais satildeo feitos os remeacutedios7 e conclui (II 103-18)

τὰ μὲν οὖν ἐς ἄνεσιν ἄγοντα καὶ φαιδρότητα τὸν ἀφελῆ τε καὶ ἡδὺν λόγον

ἐγέννησε τὰ δὲ τὸ σύννουν κινοῦντα καὶ τὸ ὁρμητικὸν τὸν πολιτικόν τε

καὶ ἀγωνιστικὸν ἐξέφηνεν τοῦ μὲν οὖν πολιτικοῦ κατὰ τὸ ἄρρεν τὰ εἴδη

συντομίαι τε καὶ βραχύτητες καὶ ἀξίωμα καὶ μεγαλοπρέπεια τραχύτης τε

καὶ σφοδρότης καὶ μέγεθος καὶ μεστότης ἅπερ τήν τε φυσικὴν ἐμφαίνει

μεγαλόνοιαν τοῦ ἄρρενος μέγεθός τε σώματος καὶ ἁδροτῆτα διανοίας καὶ

τὸ ἐς τὰ μέγιστα τῶν ἔργων ἀνυτικὸν τάχος τοῦ δὲ ἀφελοῦς ἀραιότης

ἁβρότης κάλλη τε καὶ γλυκύτητες ὧν τὰ μὲν τὸ ἀνειμένον τοῦ θήλεος τὰ

δὲ τὸ ἐς ὡραϊσμὸν διαδείκνυσιν ἐπτοημένον γένοιτο δ ἄν τι καὶ τῇ

τούτων πλοκῇ οἷον ἡ δριμύτης τὸ μὲν τάχος ὡς ἄρρεν τὸ δὲ

μικροπρεπὲς ὡς ἐναντίον ἐπιφαίνουσα ἥ τ ἐπιμέλεια τὸ μὲν γλίσχρον

ἔχουσα κατὰ τὸ θῆλυ τὸ δὲ τῆς φιλοπονίας παρεκτεταμένον ὡς ἄρρεν

Assim os conceitos que levam agrave descontraccedilatildeo e agrave alegria produzem uma

frase despojada e doce enquanto os conceitos que mobilizam as partes

intelectiva e impulsiva produzem a frase contenciosa e poliacutetica Os traccedilos

da frase poliacutetica relacionados ao masculino satildeo concisatildeo brevidade

dignidade e elevaccedilatildeo assim como aspereza forccedila grandeza e

completude traccedilos que mostram a grandiosidade natural do masculino a

7 Uma comparaccedilatildeo semelhante jaacute tinha sido feita em II 47-12

19

magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores

trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e

doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros

a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a

exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e

atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade

como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo

masculino

Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem

duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel

Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade

contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de

masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e

mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos

interessa aqui compreender

Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase

feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por

ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por

ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo

como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa

ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de

desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo

remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na

disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma

Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que

poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade

seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma

caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel

quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a

porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade

contradiccedilatildeo alguma

No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a

capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente

aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam

o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante

uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses

materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes

20

Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro

tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais

duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do

diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons

livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma

martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente

tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade

Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a

accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua

presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No

capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a

dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do

discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto

24 As letras

Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto

καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων

γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς

φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς

τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον

ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως

περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων

ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων

τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ

ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε

πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ

ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα

μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν

χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον

ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς

ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς

τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον

διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως

τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν

ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων

κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος

ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ

τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως

eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo

de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais

outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como

as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido

satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que

limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves

enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade

21

temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo

dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo

que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente

eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o

lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute

atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por

sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a

passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes

outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se

com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar

jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua

a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio

das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona

ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o

emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito

aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias

e possuem ambas as naturezas

A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo

primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso

masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais

Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da

classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam

espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo

das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as

consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto

consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as

consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave

nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na

sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz

respeito agraves letras8

As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo

claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que

pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo

Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das

vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de

assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as

quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das

letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes

8 Cf Chapanski 2003 p 22-24

22

Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes

que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais

proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias

enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais

proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em

relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade

As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de

articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua

vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto

meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais

tau delta e theta As guturais capa gama e khi

Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como

ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo

que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as

surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste

em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de

separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas

silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)

seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as

consoantes o polo essencial (formal ou masculino)

AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo

seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais

(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a

doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo

princiacutepio dualista

25 As vogais e o solfejo

Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o

meacutelos (II 126-10)

Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι

λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα

τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ

μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει

23

O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a

harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que

se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo

percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e

ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos

Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo

de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I

Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de

disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute

apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma

harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo

especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das

mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder

perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o

objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e

o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir

encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)

Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς

κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ

ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ

μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον

μετεσχηκότες

A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe

tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e

masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo

intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos

gecircneros com maior ou menor intensidade

No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre

elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa

diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino (II 131-35)

Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς

πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα

πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων

ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς

ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε

τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς

ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς

μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ

συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ

9 Cf West 1994 p178

24

πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα

δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν

ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως

ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt

κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ

λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν

μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ

ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν

ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο

καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως

ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα

φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt

νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται

πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται

τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ

γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων

καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις

σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα

καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ

ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ

Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute

captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as

letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete

examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra

as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e

masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons

mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute

masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois

nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o

ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o

som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige

que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o

alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da

sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua

estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado

intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta

quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino

quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa

na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a

exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta

trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do

alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior

parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo

lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses

examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos

constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e

terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons

semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros

Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais

nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas

internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para

isso novos paracircmetros

O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio

que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou

25

fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais

vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora

a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem

interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)

estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto

importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado

designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais

satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas

Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute

Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de

masculino e feminino em si mesmas10

Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos

remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a

esfericidade da alma11

(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash

mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso

Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves

a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon

feminino) refira-se justamente a esse arredondamento

As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em

razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas

(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua

ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente

relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal

O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do

eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os

extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo

masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo

entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da

verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o

10

Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido

Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo

metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das

observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11

Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De

Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por

que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora

o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo

26

sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo

entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta

Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo

verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave

segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo

lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros

Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro

obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo

excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no

solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)

Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ

εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί

τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες

ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ

αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων

περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ

τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν

τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς

πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ

ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ

λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος

διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt

εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους

διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν

λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ

πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν

μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν

Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente

passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega

satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se

articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que

o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam

intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez

sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por

intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos

dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de

acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos

da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam

No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido

com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das

vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o

ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons

que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida

vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava

em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos

posteriormente por que isso eacute assim

A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim

ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo

27

O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de

quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de

quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores

distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12

Do grave para o agudo (ou de

cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram

denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica

(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era

acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de

um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira

(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da

uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons

ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro

tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo

(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom

O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute

justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do

tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao

ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira

(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da

sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada

μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito

formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava

formado com a nota acrescida

Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada

tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou

agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por

eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)

Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει

κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ

τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν

πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ

θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα

γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά

12

Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2

T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)

28

Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao

masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos

em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram

dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os

sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no

entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da

passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes

Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave

formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo

decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso

ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como

o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13

os rechaccedilavam por

completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14

(II 1488-90)

περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς

παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας

Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam

na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da

alma

Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos

instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo

mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes

mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais

como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se

apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta

a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo

a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as

noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura

tonal (II 1623-40)

Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα

διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ

θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος

μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα

εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν

ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ

τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ

πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν

περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον

θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον

ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι

13

Repuacuteblica 398c 14

Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)

29

δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς

τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν

οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν

ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt

Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela

sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute

feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais

do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua

tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se

descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade

e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por

gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito

debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde

participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira

participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros

intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua

natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar

cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza

iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo

interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam

familiares

No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os

instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o

dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em

que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria

dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado

por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da

muacutesica sobre a alma

O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro

245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo

ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees

superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da

regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo

anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto

ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees

hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm

pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15

15

Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida

(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a

associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre

medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente

que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento

que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a

30

Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite

(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os

nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm

unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses

nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo

masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria

Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo

residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real

manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo

um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas

entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do

universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os

planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros

26 A muacutesica das esferas

Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves

teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem

acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma

definiccedilatildeo (III 211-6)

Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν

ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ

φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον

τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν

διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει

Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o

feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e

amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o

esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de

sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo

AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero

proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute

elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza

(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas

antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura

que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo

31

Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os

planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e

femininas (III 216-40)

ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης

γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον

ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ

δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ

ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ

θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι

τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον

μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε

μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης

προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ

πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος

ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ

νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ

ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε

ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς

Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης

ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως

ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε

θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ

ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν

ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε

ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης

ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ

μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν

παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ

τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων

συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν

θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ

ἐπίπονος τὸν ἄρρενα

A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por

toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda

um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do

feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa

tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e

nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios

e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do

feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de

Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota

acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute

no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol

(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se

regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem

tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais

familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute

luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente

uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente

feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol

emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e

impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som

que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo

de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante

ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma

equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de

32

Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e

quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo

sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que

eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino

Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal

correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota

do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao

eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de

masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as

devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam

a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde

PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO

NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa

VOGAL ε α η ω α η Ω

Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a

meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o

eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe

apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por

outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela

soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim

seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo

ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas

pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo

Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco

pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter

especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a

correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e

as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como

essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda

oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de

Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido

Primeiro tetracorde Segundo tetracorde

33

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico

Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o

ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava

somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por

uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado

ou o ponto intermeacutedio

Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica

inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo

princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros

e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado

sob sua tutela

Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a

muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a

qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto

meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional

passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num

polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a

alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a

alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de

Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge

para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim

sucessivamente

Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua

organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata

da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se

reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical

os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura

da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual

o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado

primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas

mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro

torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim

dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16

16

Gueacutenon 1999 p23

34

No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser

dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de

analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre

regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos

incomensuraacuteveis

Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de

seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas

vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade

necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que

estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade

assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada

impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a

um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por

exemplo da lua e da alma

Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as

ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou

aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que

embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres

ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia

nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de

fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas

qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas

graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo

tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais

uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a

coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e

lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num

mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao

masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora

dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo

Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo

de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o

acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o

35

fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino

teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse

fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo

Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo

contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa

A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o

outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre

quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na

quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um

compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la

A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-

feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e

feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a

posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria

necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo

para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente

masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude

de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo

privativa

Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito

de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem

duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e

quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre

ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos

guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e

sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais

difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta

porosa uacutemida ou fechada

Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a

sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns

dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso

condiccedilotildees

Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo

naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem

36

necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas

se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou

outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)

Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo

condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de

fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees

associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o

caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute

necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa

objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da

mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos

dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do

iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num

patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado

intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos

individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo

Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees

de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam

somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre

esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes

noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre

relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma

espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila

Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos

loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou

analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ

ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)

A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas

relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse

processo igualmente uma relaccedilatildeo

Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et

du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee

notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas

moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux

celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou

encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de

nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui

37

exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est

en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le

plus petit comme analogue du plus grand)17

Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que

unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter

entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel

unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia

Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres

primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune

corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos

on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification

du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par

harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se

ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une

neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au

deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure

deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en

son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception

originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la

conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique

de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre

partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18

Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de

predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e

mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na

matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo

desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =

2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que

a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas

premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo

A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-

1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua

vez se apoiu em Aristoacuteteles19

) estabelece trecircs tipos de analogia20

A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o

termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo

17

Borella 2012 p23 18

Moutsopoulos 2004 p203-204 19

Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada

pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais

ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre

chez Aristote Paris PUF 1962 20

A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23

38

grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

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Page 16: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

16

mencionada duplicidade da alma (razatildeo por que seria natural esperar que somente os corpos

animados estivessem submetidos agrave dualidade a dualidade ao menos entre corpo e alma) do

dualismo propriamente corpoacutereo Em todo caso embora tipicamente corpoacuterea a dualidade

masculino-feminino tambeacutem aqui natildeo se restringe ao fenocircmeno bioloacutegico da diferenciaccedilatildeo

sexual Aleacutem disso essa dualidade natildeo corresponde exatamente a duas espeacutecies opostas de

seres mas a dois polos de um eixo que atravessa de ponta a ponta o mundo corpoacutereo

alcanccedilando portanto e internamente todos os seres nele existentes Desse modo cada ente

particular pode ser tomado como uma resultante da interaccedilatildeo entre os dois princiacutepios em

relaccedilatildeo aos quais ele estabelece por sua vez um ponto intermeacutedio isto eacute uma mescla E eacute

precisamente na produccedilatildeo dessa mescla que o dualismo aniacutemico e o dualismo corpoacutereo se

articulam (II 816-28)

οὐ μόνον οὖν ἐφίεται σώματος ἀλλὰ καὶ τούτου ποιοῦ τινος ἢ γὰρ ἄρρεν

ἠγάπηκεν ἢ θῆλυ καὶ τούτων ὁτὲ μὲν ἄκρατον θάτερον ὁτὲ δὲ ἐξ ἀμφοῖν

ἔχον δεινήν τινα καὶ ὄντως ἄτοπον μίξιν αὐτίκα κἂν μὴ φύσει τοῦ

τοιούτου τύχωσι σώματος αὐταὶ ταῖς σφετέραις τροπαῖς μετερρύθμισάν

τε καὶ ἐς τὸ αὑταῖς ὅμοιον μετέστησαν οὕτως ἐν μὲν ἄρρεσι θῆλυς

ἐπιτρέχει μορφή δι ἣν καὶ ὁ βίος ὦπται τοιοῦτος ἐν δὲ γυναιξὶν ἀνδρεῖον

εἶδος ᾧ καὶ τὸ ἦθος ὅμοιον τεκμαιρόμεθα καὶ ἄνδρες μὴν ἀγένειοι καὶ

γενειάσκουσι γυναῖκες καί τις ἄρρην ἔβλεψεν ὑγρὸν καὶ γυναῖκες γοργὸν

προσεῖδον ὥστε καὶ τῶν ἠθῶν ἕκαστα θηράσεις ἑκάστῃ μορφῇ συνῳδά

A alma portanto natildeo soacute deseja um corpo mas certo tipo de corpo um

corpo masculino ou um corpo feminino Deseja dentre esses agraves vezes um

corpo puro de um tipo ou de outro agraves vezes um corpo que possua uma

curiosa e paradoxal mistura de ambos Assim quando natildeo conseguem

obter naturalmente esse determinado corpo as almas o remodelam

mediante torneios e o transformam em algo semelhante a si mesmas

Dessa forma sobre um corpo masculino recai uma forma feminina (razatildeo

por que tambeacutem sua vida assim se mostra) ou ainda sobre um corpo

feminino uma forma masculina no que tambeacutem assinalamos um eacutethos

similar Haacute homens imberbes e mulheres barbadas homens de lacircnguido

olhar e mulheres com mirada de Goacutergona de modo que cada eacutethos veraacutes

corresponde a uma fisionomia

Uma vez estabelecido o princiacutepio de que o dualismo aniacutemico de algum modo rege

o dualismo corpoacutereo A Q sente-se agrave vontade para tratar de um nos termos do outro

recorrendo para isso aos termos masculino e feminino (II 828-39)

ἐκ δὲ τῆς πρὸς τὸ ἄρρεν ἢ θῆλυ προσπαθείας ἢ πρὸς ἀμφότερον τὰ πάθη

συνίσταται περὶ ψυχήν τὸ μὲν οὖν θῆλυ λίαν ἀνειμένον ᾧ συνᾴδει τὸ

ἐπιθυμητικόν τὸ δ ἄρρεν σφοδρόν τε καὶ δραστήριον ᾧ τὸ θυμικὸν

ὡμοίωται περὶ μὲν οὖν τὸ θῆλυ ψυχῆς τε μέρος καὶ ἀνθρώπων γένος

πλεονάζουσι λῦπαι τε καὶ ἡδοναί περὶ δὲ τὸ ἄρρεν ὀργὴ καὶ θράσος

πάλιν δὲ τούτων γίνονται συζυγίαι λυπῶν τε πρὸς ἡδονὰς καὶ ὀργῆς πρὸς

θράσος καὶ θράσους πρὸς ἡδονὴν καὶ λύπην καὶ ὀργῆς αὖθις πρὸς

ἑκάτερον καὶ πάλιν ἑκάστου πρός τε ἓν καὶ πρὸς πλείω μίξεις καὶ μυρίας

ἄν τις ἐκ τούτων εὕροι τῶν παθῶν εἰκόνας ἐν ποικιλίᾳ θεωρουμένων

17

Conforme o apego ao masculino ao feminino ou a ambos estabelecem-se

as paixotildees da alma O feminino eacute demasiado indulgente e com ele

concorda a alma desejante ao passo que o masculino semelhante agrave alma

impulsiva eacute veemente e ativo Assim tanto na parte feminina da alma

quanto na parcela feminina da humanidade abundam os prazeres e as

dores ao passo que na masculina a ira e a coragem E uma vez mais

datildeo-se combinaccedilotildees entre essas paixotildees das dores com os prazeres da ira

com a coragem da coragem com o prazer e a dor ou da ira novamente

com as demais e ainda de uma com outra qualquer ou com vaacuterias A

partir dessas seria possiacutevel encontrar uma miriacuteade de imagens das

paixotildees em vista da sua variedade

Se a alma por um lado submete o mundo corpoacutereo este por sua vez a espelha

macrocosmicamente nela interferindo mediante interaccedilotildees simpaacuteticas a exemplo do que

ocorre na muacutesica No entanto natildeo satildeo apenas as disposiccedilotildees passivas ou paixotildees que

estabelecem pontes entre a alma e a realidade corpoacuterea Tambeacutem as disposiccedilotildees ativas e

intelectivas estatildeo submetidas ao dualismo masculino-feminino (II 848-69)

ἔστι γὰρ πρῶτον μὲν ἐν ὁρατοῖς ἑκατέραν ἰδεῖν τὴν φύσιν τὸ μὲν

ἀνθηρόν τε καὶ ἐς ὡραϊσμὸν προςφυὲς χρῶμά τε καὶ σχῆμα διαιροῦντα

θηλύτητι τὸ δὲ στυγνόν τε καὶ ἐς σύννοιαν ἄγον ἀρρενότητι πάλιν δὲ ἐν

ἀκοαῖς τοὺς μὲν λείους καὶ προσηνεῖς ἤχους ἐς τὸ θῆλυ τοὺς δὲ

τραχυτέρους εἰς τοὐναντίον ἁρμόττοντα καί ἵνα μὴ τὰ καθ ἕκαστον

λέγω κοινῶς περὶ πάντων ἀποφαντέον ὡς ὅσα μὲν τῶν αἰσθητῶν ἔς τε

ἡδονὴν δελεάζει καὶ ἠρέμα διαχεῖν τὴν γνώμην πέφυκε ταῦτα εἰς τὸ θῆλυ

κριτέον ὅσα δὲ κινεῖ τε εἰς σύννοιαν καὶ ἐγείρει τὸ δραστήριον ταῦτα εἰς

τὴν ἄρρενος μοῖραν ἀπονεμητέον τὰ δέ τοι μηδέτερον ἢ κατὰ μίξιν ἄμφω

δρῶντα ταῦτα τῶν μέσων ἀποφαντέον κατὰ δὴ ταῦτα καὶ περὶ ἐκείνων

λέγωμεν αἳ λόγῳ μέν εἰσι καταληπταὶ τέχναι τε καὶ ἀρεταὶ καὶ ἐπιστῆμαι

ἐκ δὲ τῆς τῶν ὑλῶν ποιότητος περὶ ἃς ἑκάστη τευτάζει τὰς πρὸς ἀλλήλας

διαφορὰς καὶ ὁμοιότητας εἰλήχασιν αἵ τε ἀρεταὶ πρὸς τὰς ἀρετὰς αἵ τε

ἐπιστῆμαι πρὸς τὰς ἐπιστήμας κακίαι τε αὖ πρὸς κακίας καὶ

ἀνεπιστημοσύναι πρὸς ἀμαθίας πάλιν δὲ ἀρεταὶ πρὸς κακίας ἢ ἐπιστήμας

ἢ ἀγνωσίας κακίαι τε αὖ πρὸς τὰς εἰρημένας ποικίλης τινὸς καὶ τῆς κατὰ

ταῦτα πλοκῆς τε οὔσης καὶ μίξεως

A princiacutepio eacute de fato possiacutevel identificar nos objetos visiacuteveis cada

natureza separadamente atribuindo o florido e as formas e cores

decorativas ao feminino e as sombrias e que conduzem agrave reflexatildeo ao

masculino e o mesmo para as coisas audiacuteveis relacionando os sons

suaves e doces ao feminino e os mais aacutesperos ao seu oposto E para que

eu natildeo entre aqui em detalhes eacute preciso dizer que no geral as coisas

sensiacuteveis que induzem ao prazer e que natural e docemente dissolvem o

juiacutezo estas se devem considerar femininas ao passo que aquelas que nos

levam agrave reflexatildeo ou promovem a accedilatildeo se devem designar masculinas Jaacute

aquelas que natildeo atuam nem de uma nem de outra maneira ou o faccedilam

segundo uma mescla de ambas estas se hatildeo de chamar intermediaacuterias

Disso decorre que falemos nos mesmos termos a respeito tambeacutem das

coisas apreendidas pela razatildeo ndash as artes as virtudes e as ciecircncias ndash as

quais devem suas semelhanccedilas e diferenccedilas muacutetuas aos assuntos de que se

ocupam as virtudes no tocante agraves virtudes e as ciecircncias no tocante agraves

ciecircncias e por seu turno os viacutecios no que diz respeito aos viacutecios e a

incultura com respeito agraves ignoracircncias e ainda virtudes com respeito aos

viacutecios ciecircncias ou ignoracircncias e os viacutecios com respeito estes todos

sendo possiacutevel certa combinaccedilatildeo e mescla dessas coisas

18

Cabe observar como A Q ao traccedilar um perfil do masculino e do feminino natildeo

oferece uma lista de entes individuais mas um elenco geneacuterico de qualidades sensiacuteveis das

quais ele passa sem maior detenccedila para o toacutepico das naturezas intermediaacuterias em que estatildeo

incluiacutedas as artes as ciecircncias e as virtudes A menccedilatildeo agraves artes ciecircncias e virtudes eacute

importante neste momento porque uma vez explicado o processo pelo qual atraveacutes de

mesclas dos princiacutepios masculino e feminino satildeo engendradas as paixotildees da alma

Quintiliano deve agora retomar o fio da exposiccedilatildeo e mostrar como a muacutesica por meio de

conceitos palavras ritmos e melodias eacute capaz de imitar essas mesmas paixotildees virtudes

viacutecios etc comunicando agrave alma o respectivo eacutethos Eacute o que faraacute no restante do livro II

23 Os conceitos

No iniacutecio do cap9 A Q retoma o tema dos conceitos com o qual tinha

concluiacutedo o cap7 antes da relativamente longa mas necessaacuteria digressatildeo acerca das paixotildees

da alma O propoacutesito do autor eacute demonstrar como um poeta eacute capaz de transmitir os conceitos

que deseje mediante o emprego de certos procedimentos retoacutericos A Q utiliza exemplos

extraiacutedos de Homero nos quais aponta como o poeta mesclando traccedilos masculinos e

femininos consegue traduzir em palavras uma gama complexa de impressotildees desde

sensaccedilotildees fiacutesicas como rapidez suavidade ou agitaccedilatildeo ateacute caracteres ou julgamentos morais

Esse conceitos (ἐννοήματα) compostos de traccedilos masculinos e femininos ndash conceitos que por

sua vez entram na composiccedilatildeo eacutetica das frases e dos discursos ndash A Q os compara aos

extratos dos quais satildeo feitos os remeacutedios7 e conclui (II 103-18)

τὰ μὲν οὖν ἐς ἄνεσιν ἄγοντα καὶ φαιδρότητα τὸν ἀφελῆ τε καὶ ἡδὺν λόγον

ἐγέννησε τὰ δὲ τὸ σύννουν κινοῦντα καὶ τὸ ὁρμητικὸν τὸν πολιτικόν τε

καὶ ἀγωνιστικὸν ἐξέφηνεν τοῦ μὲν οὖν πολιτικοῦ κατὰ τὸ ἄρρεν τὰ εἴδη

συντομίαι τε καὶ βραχύτητες καὶ ἀξίωμα καὶ μεγαλοπρέπεια τραχύτης τε

καὶ σφοδρότης καὶ μέγεθος καὶ μεστότης ἅπερ τήν τε φυσικὴν ἐμφαίνει

μεγαλόνοιαν τοῦ ἄρρενος μέγεθός τε σώματος καὶ ἁδροτῆτα διανοίας καὶ

τὸ ἐς τὰ μέγιστα τῶν ἔργων ἀνυτικὸν τάχος τοῦ δὲ ἀφελοῦς ἀραιότης

ἁβρότης κάλλη τε καὶ γλυκύτητες ὧν τὰ μὲν τὸ ἀνειμένον τοῦ θήλεος τὰ

δὲ τὸ ἐς ὡραϊσμὸν διαδείκνυσιν ἐπτοημένον γένοιτο δ ἄν τι καὶ τῇ

τούτων πλοκῇ οἷον ἡ δριμύτης τὸ μὲν τάχος ὡς ἄρρεν τὸ δὲ

μικροπρεπὲς ὡς ἐναντίον ἐπιφαίνουσα ἥ τ ἐπιμέλεια τὸ μὲν γλίσχρον

ἔχουσα κατὰ τὸ θῆλυ τὸ δὲ τῆς φιλοπονίας παρεκτεταμένον ὡς ἄρρεν

Assim os conceitos que levam agrave descontraccedilatildeo e agrave alegria produzem uma

frase despojada e doce enquanto os conceitos que mobilizam as partes

intelectiva e impulsiva produzem a frase contenciosa e poliacutetica Os traccedilos

da frase poliacutetica relacionados ao masculino satildeo concisatildeo brevidade

dignidade e elevaccedilatildeo assim como aspereza forccedila grandeza e

completude traccedilos que mostram a grandiosidade natural do masculino a

7 Uma comparaccedilatildeo semelhante jaacute tinha sido feita em II 47-12

19

magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores

trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e

doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros

a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a

exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e

atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade

como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo

masculino

Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem

duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel

Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade

contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de

masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e

mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos

interessa aqui compreender

Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase

feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por

ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por

ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo

como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa

ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de

desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo

remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na

disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma

Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que

poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade

seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma

caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel

quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a

porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade

contradiccedilatildeo alguma

No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a

capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente

aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam

o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante

uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses

materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes

20

Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro

tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais

duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do

diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons

livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma

martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente

tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade

Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a

accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua

presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No

capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a

dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do

discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto

24 As letras

Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto

καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων

γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς

φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς

τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον

ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως

περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων

ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων

τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ

ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε

πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ

ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα

μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν

χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον

ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς

ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς

τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον

διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως

τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν

ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων

κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος

ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ

τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως

eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo

de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais

outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como

as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido

satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que

limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves

enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade

21

temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo

dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo

que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente

eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o

lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute

atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por

sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a

passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes

outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se

com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar

jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua

a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio

das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona

ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o

emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito

aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias

e possuem ambas as naturezas

A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo

primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso

masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais

Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da

classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam

espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo

das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as

consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto

consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as

consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave

nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na

sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz

respeito agraves letras8

As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo

claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que

pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo

Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das

vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de

assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as

quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das

letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes

8 Cf Chapanski 2003 p 22-24

22

Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes

que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais

proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias

enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais

proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em

relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade

As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de

articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua

vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto

meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais

tau delta e theta As guturais capa gama e khi

Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como

ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo

que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as

surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste

em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de

separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas

silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)

seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as

consoantes o polo essencial (formal ou masculino)

AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo

seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais

(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a

doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo

princiacutepio dualista

25 As vogais e o solfejo

Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o

meacutelos (II 126-10)

Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι

λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα

τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ

μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει

23

O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a

harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que

se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo

percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e

ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos

Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo

de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I

Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de

disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute

apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma

harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo

especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das

mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder

perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o

objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e

o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir

encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)

Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς

κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ

ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ

μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον

μετεσχηκότες

A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe

tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e

masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo

intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos

gecircneros com maior ou menor intensidade

No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre

elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa

diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino (II 131-35)

Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς

πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα

πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων

ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς

ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε

τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς

ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς

μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ

συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ

9 Cf West 1994 p178

24

πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα

δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν

ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως

ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt

κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ

λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν

μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ

ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν

ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο

καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως

ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα

φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt

νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται

πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται

τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ

γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων

καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις

σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα

καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ

ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ

Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute

captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as

letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete

examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra

as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e

masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons

mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute

masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois

nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o

ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o

som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige

que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o

alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da

sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua

estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado

intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta

quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino

quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa

na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a

exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta

trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do

alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior

parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo

lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses

examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos

constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e

terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons

semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros

Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais

nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas

internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para

isso novos paracircmetros

O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio

que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou

25

fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais

vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora

a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem

interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)

estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto

importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado

designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais

satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas

Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute

Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de

masculino e feminino em si mesmas10

Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos

remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a

esfericidade da alma11

(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash

mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso

Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves

a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon

feminino) refira-se justamente a esse arredondamento

As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em

razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas

(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua

ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente

relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal

O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do

eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os

extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo

masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo

entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da

verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o

10

Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido

Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo

metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das

observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11

Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De

Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por

que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora

o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo

26

sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo

entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta

Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo

verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave

segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo

lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros

Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro

obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo

excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no

solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)

Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ

εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί

τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες

ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ

αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων

περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ

τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν

τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς

πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ

ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ

λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος

διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt

εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους

διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν

λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ

πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν

μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν

Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente

passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega

satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se

articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que

o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam

intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez

sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por

intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos

dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de

acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos

da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam

No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido

com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das

vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o

ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons

que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida

vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava

em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos

posteriormente por que isso eacute assim

A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim

ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo

27

O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de

quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de

quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores

distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12

Do grave para o agudo (ou de

cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram

denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica

(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era

acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de

um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira

(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da

uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons

ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro

tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo

(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom

O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute

justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do

tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao

ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira

(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da

sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada

μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito

formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava

formado com a nota acrescida

Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada

tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou

agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por

eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)

Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει

κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ

τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν

πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ

θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα

γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά

12

Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2

T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)

28

Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao

masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos

em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram

dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os

sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no

entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da

passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes

Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave

formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo

decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso

ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como

o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13

os rechaccedilavam por

completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14

(II 1488-90)

περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς

παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας

Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam

na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da

alma

Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos

instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo

mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes

mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais

como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se

apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta

a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo

a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as

noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura

tonal (II 1623-40)

Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα

διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ

θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος

μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα

εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν

ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ

τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ

πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν

περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον

θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον

ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι

13

Repuacuteblica 398c 14

Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)

29

δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς

τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν

οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν

ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt

Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela

sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute

feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais

do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua

tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se

descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade

e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por

gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito

debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde

participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira

participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros

intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua

natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar

cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza

iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo

interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam

familiares

No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os

instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o

dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em

que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria

dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado

por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da

muacutesica sobre a alma

O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro

245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo

ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees

superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da

regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo

anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto

ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees

hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm

pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15

15

Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida

(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a

associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre

medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente

que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento

que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a

30

Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite

(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os

nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm

unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses

nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo

masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria

Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo

residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real

manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo

um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas

entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do

universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os

planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros

26 A muacutesica das esferas

Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves

teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem

acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma

definiccedilatildeo (III 211-6)

Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν

ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ

φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον

τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν

διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει

Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o

feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e

amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o

esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de

sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo

AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero

proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute

elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza

(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas

antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura

que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo

31

Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os

planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e

femininas (III 216-40)

ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης

γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον

ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ

δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ

ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ

θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι

τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον

μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε

μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης

προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ

πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος

ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ

νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ

ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε

ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς

Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης

ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως

ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε

θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ

ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν

ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε

ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης

ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ

μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν

παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ

τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων

συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν

θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ

ἐπίπονος τὸν ἄρρενα

A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por

toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda

um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do

feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa

tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e

nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios

e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do

feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de

Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota

acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute

no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol

(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se

regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem

tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais

familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute

luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente

uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente

feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol

emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e

impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som

que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo

de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante

ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma

equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de

32

Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e

quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo

sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que

eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino

Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal

correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota

do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao

eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de

masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as

devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam

a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde

PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO

NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa

VOGAL ε α η ω α η Ω

Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a

meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o

eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe

apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por

outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela

soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim

seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo

ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas

pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo

Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco

pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter

especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a

correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e

as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como

essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda

oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de

Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido

Primeiro tetracorde Segundo tetracorde

33

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico

Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o

ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava

somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por

uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado

ou o ponto intermeacutedio

Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica

inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo

princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros

e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado

sob sua tutela

Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a

muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a

qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto

meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional

passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num

polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a

alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a

alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de

Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge

para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim

sucessivamente

Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua

organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata

da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se

reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical

os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura

da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual

o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado

primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas

mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro

torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim

dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16

16

Gueacutenon 1999 p23

34

No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser

dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de

analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre

regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos

incomensuraacuteveis

Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de

seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas

vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade

necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que

estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade

assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada

impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a

um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por

exemplo da lua e da alma

Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as

ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou

aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que

embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres

ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia

nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de

fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas

qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas

graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo

tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais

uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a

coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e

lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num

mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao

masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora

dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo

Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo

de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o

acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o

35

fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino

teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse

fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo

Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo

contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa

A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o

outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre

quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na

quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um

compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la

A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-

feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e

feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a

posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria

necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo

para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente

masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude

de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo

privativa

Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito

de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem

duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e

quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre

ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos

guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e

sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais

difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta

porosa uacutemida ou fechada

Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a

sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns

dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso

condiccedilotildees

Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo

naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem

36

necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas

se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou

outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)

Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo

condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de

fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees

associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o

caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute

necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa

objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da

mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos

dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do

iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num

patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado

intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos

individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo

Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees

de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam

somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre

esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes

noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre

relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma

espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila

Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos

loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou

analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ

ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)

A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas

relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse

processo igualmente uma relaccedilatildeo

Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et

du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee

notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas

moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux

celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou

encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de

nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui

37

exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est

en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le

plus petit comme analogue du plus grand)17

Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que

unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter

entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel

unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia

Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres

primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune

corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos

on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification

du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par

harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se

ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une

neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au

deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure

deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en

son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception

originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la

conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique

de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre

partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18

Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de

predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e

mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na

matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo

desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =

2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que

a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas

premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo

A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-

1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua

vez se apoiu em Aristoacuteteles19

) estabelece trecircs tipos de analogia20

A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o

termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo

17

Borella 2012 p23 18

Moutsopoulos 2004 p203-204 19

Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada

pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais

ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre

chez Aristote Paris PUF 1962 20

A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23

38

grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

BIBLIOGRAFIA

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo de Leonel Vallandro Porto Alegre Editora Globo

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_____________ Oacuterganon Categorias Da interpretaccedilatildeo Analiacuteticos Anteriores Analiacuteticos

Posteriores Toacutepicos Refutaccedilotildees sofiacutesticas Trad e notas de Edson Bini Bauru SP Edipro

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____________ Das Categorias Trad notas e comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos Satildeo

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Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2001

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BORELLA Jean Penser lrsquoanalogie Paris LrsquoHarmattan 2012

BRISSON Luc PRADEAU Jean-Franccedilois Vocabulaacuterio de Platatildeo Traduccedilatildeo Claudia

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BURNET John O despertar da filosofia grega Trad Mauro Gama Satildeo Paulo Siciliano

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CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-kagathiacutea

Classica (Brasil) 2412 73-85 2011

CHAPANSKI Gissele Uma traduccedilatildeo da Tekhne Grammatike de Dioniacutesio Traacutecio para o

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Paranaacute 2003

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio grego da filosofia Traduccedilatildeo Ivone C Benedetti Satildeo Paulo

Martins Fontes 2007

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Page 17: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

17

Conforme o apego ao masculino ao feminino ou a ambos estabelecem-se

as paixotildees da alma O feminino eacute demasiado indulgente e com ele

concorda a alma desejante ao passo que o masculino semelhante agrave alma

impulsiva eacute veemente e ativo Assim tanto na parte feminina da alma

quanto na parcela feminina da humanidade abundam os prazeres e as

dores ao passo que na masculina a ira e a coragem E uma vez mais

datildeo-se combinaccedilotildees entre essas paixotildees das dores com os prazeres da ira

com a coragem da coragem com o prazer e a dor ou da ira novamente

com as demais e ainda de uma com outra qualquer ou com vaacuterias A

partir dessas seria possiacutevel encontrar uma miriacuteade de imagens das

paixotildees em vista da sua variedade

Se a alma por um lado submete o mundo corpoacutereo este por sua vez a espelha

macrocosmicamente nela interferindo mediante interaccedilotildees simpaacuteticas a exemplo do que

ocorre na muacutesica No entanto natildeo satildeo apenas as disposiccedilotildees passivas ou paixotildees que

estabelecem pontes entre a alma e a realidade corpoacuterea Tambeacutem as disposiccedilotildees ativas e

intelectivas estatildeo submetidas ao dualismo masculino-feminino (II 848-69)

ἔστι γὰρ πρῶτον μὲν ἐν ὁρατοῖς ἑκατέραν ἰδεῖν τὴν φύσιν τὸ μὲν

ἀνθηρόν τε καὶ ἐς ὡραϊσμὸν προςφυὲς χρῶμά τε καὶ σχῆμα διαιροῦντα

θηλύτητι τὸ δὲ στυγνόν τε καὶ ἐς σύννοιαν ἄγον ἀρρενότητι πάλιν δὲ ἐν

ἀκοαῖς τοὺς μὲν λείους καὶ προσηνεῖς ἤχους ἐς τὸ θῆλυ τοὺς δὲ

τραχυτέρους εἰς τοὐναντίον ἁρμόττοντα καί ἵνα μὴ τὰ καθ ἕκαστον

λέγω κοινῶς περὶ πάντων ἀποφαντέον ὡς ὅσα μὲν τῶν αἰσθητῶν ἔς τε

ἡδονὴν δελεάζει καὶ ἠρέμα διαχεῖν τὴν γνώμην πέφυκε ταῦτα εἰς τὸ θῆλυ

κριτέον ὅσα δὲ κινεῖ τε εἰς σύννοιαν καὶ ἐγείρει τὸ δραστήριον ταῦτα εἰς

τὴν ἄρρενος μοῖραν ἀπονεμητέον τὰ δέ τοι μηδέτερον ἢ κατὰ μίξιν ἄμφω

δρῶντα ταῦτα τῶν μέσων ἀποφαντέον κατὰ δὴ ταῦτα καὶ περὶ ἐκείνων

λέγωμεν αἳ λόγῳ μέν εἰσι καταληπταὶ τέχναι τε καὶ ἀρεταὶ καὶ ἐπιστῆμαι

ἐκ δὲ τῆς τῶν ὑλῶν ποιότητος περὶ ἃς ἑκάστη τευτάζει τὰς πρὸς ἀλλήλας

διαφορὰς καὶ ὁμοιότητας εἰλήχασιν αἵ τε ἀρεταὶ πρὸς τὰς ἀρετὰς αἵ τε

ἐπιστῆμαι πρὸς τὰς ἐπιστήμας κακίαι τε αὖ πρὸς κακίας καὶ

ἀνεπιστημοσύναι πρὸς ἀμαθίας πάλιν δὲ ἀρεταὶ πρὸς κακίας ἢ ἐπιστήμας

ἢ ἀγνωσίας κακίαι τε αὖ πρὸς τὰς εἰρημένας ποικίλης τινὸς καὶ τῆς κατὰ

ταῦτα πλοκῆς τε οὔσης καὶ μίξεως

A princiacutepio eacute de fato possiacutevel identificar nos objetos visiacuteveis cada

natureza separadamente atribuindo o florido e as formas e cores

decorativas ao feminino e as sombrias e que conduzem agrave reflexatildeo ao

masculino e o mesmo para as coisas audiacuteveis relacionando os sons

suaves e doces ao feminino e os mais aacutesperos ao seu oposto E para que

eu natildeo entre aqui em detalhes eacute preciso dizer que no geral as coisas

sensiacuteveis que induzem ao prazer e que natural e docemente dissolvem o

juiacutezo estas se devem considerar femininas ao passo que aquelas que nos

levam agrave reflexatildeo ou promovem a accedilatildeo se devem designar masculinas Jaacute

aquelas que natildeo atuam nem de uma nem de outra maneira ou o faccedilam

segundo uma mescla de ambas estas se hatildeo de chamar intermediaacuterias

Disso decorre que falemos nos mesmos termos a respeito tambeacutem das

coisas apreendidas pela razatildeo ndash as artes as virtudes e as ciecircncias ndash as

quais devem suas semelhanccedilas e diferenccedilas muacutetuas aos assuntos de que se

ocupam as virtudes no tocante agraves virtudes e as ciecircncias no tocante agraves

ciecircncias e por seu turno os viacutecios no que diz respeito aos viacutecios e a

incultura com respeito agraves ignoracircncias e ainda virtudes com respeito aos

viacutecios ciecircncias ou ignoracircncias e os viacutecios com respeito estes todos

sendo possiacutevel certa combinaccedilatildeo e mescla dessas coisas

18

Cabe observar como A Q ao traccedilar um perfil do masculino e do feminino natildeo

oferece uma lista de entes individuais mas um elenco geneacuterico de qualidades sensiacuteveis das

quais ele passa sem maior detenccedila para o toacutepico das naturezas intermediaacuterias em que estatildeo

incluiacutedas as artes as ciecircncias e as virtudes A menccedilatildeo agraves artes ciecircncias e virtudes eacute

importante neste momento porque uma vez explicado o processo pelo qual atraveacutes de

mesclas dos princiacutepios masculino e feminino satildeo engendradas as paixotildees da alma

Quintiliano deve agora retomar o fio da exposiccedilatildeo e mostrar como a muacutesica por meio de

conceitos palavras ritmos e melodias eacute capaz de imitar essas mesmas paixotildees virtudes

viacutecios etc comunicando agrave alma o respectivo eacutethos Eacute o que faraacute no restante do livro II

23 Os conceitos

No iniacutecio do cap9 A Q retoma o tema dos conceitos com o qual tinha

concluiacutedo o cap7 antes da relativamente longa mas necessaacuteria digressatildeo acerca das paixotildees

da alma O propoacutesito do autor eacute demonstrar como um poeta eacute capaz de transmitir os conceitos

que deseje mediante o emprego de certos procedimentos retoacutericos A Q utiliza exemplos

extraiacutedos de Homero nos quais aponta como o poeta mesclando traccedilos masculinos e

femininos consegue traduzir em palavras uma gama complexa de impressotildees desde

sensaccedilotildees fiacutesicas como rapidez suavidade ou agitaccedilatildeo ateacute caracteres ou julgamentos morais

Esse conceitos (ἐννοήματα) compostos de traccedilos masculinos e femininos ndash conceitos que por

sua vez entram na composiccedilatildeo eacutetica das frases e dos discursos ndash A Q os compara aos

extratos dos quais satildeo feitos os remeacutedios7 e conclui (II 103-18)

τὰ μὲν οὖν ἐς ἄνεσιν ἄγοντα καὶ φαιδρότητα τὸν ἀφελῆ τε καὶ ἡδὺν λόγον

ἐγέννησε τὰ δὲ τὸ σύννουν κινοῦντα καὶ τὸ ὁρμητικὸν τὸν πολιτικόν τε

καὶ ἀγωνιστικὸν ἐξέφηνεν τοῦ μὲν οὖν πολιτικοῦ κατὰ τὸ ἄρρεν τὰ εἴδη

συντομίαι τε καὶ βραχύτητες καὶ ἀξίωμα καὶ μεγαλοπρέπεια τραχύτης τε

καὶ σφοδρότης καὶ μέγεθος καὶ μεστότης ἅπερ τήν τε φυσικὴν ἐμφαίνει

μεγαλόνοιαν τοῦ ἄρρενος μέγεθός τε σώματος καὶ ἁδροτῆτα διανοίας καὶ

τὸ ἐς τὰ μέγιστα τῶν ἔργων ἀνυτικὸν τάχος τοῦ δὲ ἀφελοῦς ἀραιότης

ἁβρότης κάλλη τε καὶ γλυκύτητες ὧν τὰ μὲν τὸ ἀνειμένον τοῦ θήλεος τὰ

δὲ τὸ ἐς ὡραϊσμὸν διαδείκνυσιν ἐπτοημένον γένοιτο δ ἄν τι καὶ τῇ

τούτων πλοκῇ οἷον ἡ δριμύτης τὸ μὲν τάχος ὡς ἄρρεν τὸ δὲ

μικροπρεπὲς ὡς ἐναντίον ἐπιφαίνουσα ἥ τ ἐπιμέλεια τὸ μὲν γλίσχρον

ἔχουσα κατὰ τὸ θῆλυ τὸ δὲ τῆς φιλοπονίας παρεκτεταμένον ὡς ἄρρεν

Assim os conceitos que levam agrave descontraccedilatildeo e agrave alegria produzem uma

frase despojada e doce enquanto os conceitos que mobilizam as partes

intelectiva e impulsiva produzem a frase contenciosa e poliacutetica Os traccedilos

da frase poliacutetica relacionados ao masculino satildeo concisatildeo brevidade

dignidade e elevaccedilatildeo assim como aspereza forccedila grandeza e

completude traccedilos que mostram a grandiosidade natural do masculino a

7 Uma comparaccedilatildeo semelhante jaacute tinha sido feita em II 47-12

19

magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores

trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e

doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros

a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a

exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e

atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade

como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo

masculino

Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem

duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel

Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade

contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de

masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e

mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos

interessa aqui compreender

Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase

feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por

ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por

ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo

como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa

ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de

desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo

remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na

disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma

Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que

poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade

seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma

caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel

quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a

porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade

contradiccedilatildeo alguma

No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a

capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente

aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam

o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante

uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses

materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes

20

Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro

tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais

duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do

diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons

livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma

martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente

tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade

Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a

accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua

presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No

capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a

dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do

discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto

24 As letras

Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto

καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων

γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς

φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς

τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον

ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως

περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων

ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων

τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ

ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε

πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ

ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα

μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν

χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον

ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς

ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς

τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον

διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως

τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν

ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων

κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος

ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ

τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως

eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo

de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais

outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como

as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido

satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que

limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves

enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade

21

temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo

dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo

que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente

eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o

lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute

atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por

sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a

passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes

outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se

com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar

jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua

a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio

das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona

ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o

emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito

aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias

e possuem ambas as naturezas

A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo

primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso

masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais

Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da

classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam

espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo

das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as

consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto

consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as

consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave

nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na

sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz

respeito agraves letras8

As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo

claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que

pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo

Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das

vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de

assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as

quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das

letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes

8 Cf Chapanski 2003 p 22-24

22

Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes

que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais

proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias

enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais

proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em

relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade

As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de

articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua

vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto

meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais

tau delta e theta As guturais capa gama e khi

Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como

ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo

que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as

surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste

em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de

separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas

silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)

seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as

consoantes o polo essencial (formal ou masculino)

AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo

seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais

(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a

doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo

princiacutepio dualista

25 As vogais e o solfejo

Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o

meacutelos (II 126-10)

Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι

λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα

τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ

μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει

23

O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a

harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que

se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo

percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e

ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos

Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo

de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I

Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de

disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute

apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma

harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo

especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das

mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder

perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o

objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e

o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir

encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)

Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς

κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ

ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ

μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον

μετεσχηκότες

A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe

tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e

masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo

intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos

gecircneros com maior ou menor intensidade

No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre

elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa

diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino (II 131-35)

Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς

πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα

πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων

ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς

ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε

τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς

ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς

μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ

συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ

9 Cf West 1994 p178

24

πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα

δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν

ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως

ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt

κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ

λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν

μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ

ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν

ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο

καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως

ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα

φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt

νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται

πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται

τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ

γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων

καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις

σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα

καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ

ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ

Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute

captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as

letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete

examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra

as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e

masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons

mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute

masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois

nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o

ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o

som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige

que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o

alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da

sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua

estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado

intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta

quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino

quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa

na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a

exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta

trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do

alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior

parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo

lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses

examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos

constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e

terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons

semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros

Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais

nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas

internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para

isso novos paracircmetros

O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio

que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou

25

fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais

vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora

a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem

interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)

estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto

importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado

designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais

satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas

Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute

Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de

masculino e feminino em si mesmas10

Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos

remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a

esfericidade da alma11

(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash

mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso

Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves

a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon

feminino) refira-se justamente a esse arredondamento

As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em

razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas

(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua

ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente

relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal

O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do

eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os

extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo

masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo

entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da

verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o

10

Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido

Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo

metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das

observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11

Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De

Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por

que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora

o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo

26

sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo

entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta

Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo

verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave

segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo

lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros

Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro

obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo

excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no

solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)

Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ

εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί

τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες

ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ

αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων

περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ

τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν

τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς

πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ

ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ

λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος

διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt

εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους

διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν

λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ

πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν

μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν

Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente

passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega

satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se

articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que

o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam

intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez

sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por

intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos

dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de

acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos

da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam

No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido

com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das

vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o

ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons

que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida

vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava

em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos

posteriormente por que isso eacute assim

A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim

ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo

27

O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de

quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de

quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores

distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12

Do grave para o agudo (ou de

cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram

denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica

(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era

acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de

um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira

(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da

uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons

ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro

tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo

(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom

O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute

justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do

tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao

ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira

(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da

sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada

μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito

formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava

formado com a nota acrescida

Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada

tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou

agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por

eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)

Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει

κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ

τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν

πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ

θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα

γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά

12

Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2

T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)

28

Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao

masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos

em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram

dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os

sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no

entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da

passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes

Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave

formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo

decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso

ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como

o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13

os rechaccedilavam por

completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14

(II 1488-90)

περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς

παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας

Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam

na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da

alma

Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos

instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo

mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes

mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais

como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se

apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta

a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo

a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as

noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura

tonal (II 1623-40)

Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα

διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ

θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος

μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα

εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν

ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ

τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ

πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν

περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον

θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον

ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι

13

Repuacuteblica 398c 14

Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)

29

δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς

τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν

οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν

ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt

Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela

sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute

feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais

do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua

tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se

descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade

e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por

gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito

debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde

participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira

participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros

intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua

natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar

cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza

iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo

interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam

familiares

No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os

instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o

dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em

que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria

dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado

por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da

muacutesica sobre a alma

O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro

245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo

ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees

superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da

regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo

anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto

ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees

hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm

pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15

15

Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida

(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a

associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre

medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente

que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento

que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a

30

Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite

(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os

nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm

unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses

nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo

masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria

Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo

residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real

manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo

um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas

entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do

universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os

planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros

26 A muacutesica das esferas

Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves

teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem

acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma

definiccedilatildeo (III 211-6)

Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν

ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ

φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον

τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν

διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει

Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o

feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e

amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o

esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de

sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo

AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero

proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute

elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza

(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas

antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura

que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo

31

Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os

planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e

femininas (III 216-40)

ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης

γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον

ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ

δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ

ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ

θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι

τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον

μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε

μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης

προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ

πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος

ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ

νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ

ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε

ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς

Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης

ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως

ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε

θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ

ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν

ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε

ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης

ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ

μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν

παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ

τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων

συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν

θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ

ἐπίπονος τὸν ἄρρενα

A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por

toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda

um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do

feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa

tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e

nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios

e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do

feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de

Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota

acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute

no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol

(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se

regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem

tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais

familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute

luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente

uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente

feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol

emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e

impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som

que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo

de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante

ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma

equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de

32

Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e

quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo

sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que

eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino

Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal

correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota

do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao

eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de

masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as

devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam

a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde

PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO

NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa

VOGAL ε α η ω α η Ω

Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a

meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o

eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe

apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por

outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela

soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim

seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo

ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas

pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo

Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco

pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter

especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a

correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e

as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como

essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda

oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de

Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido

Primeiro tetracorde Segundo tetracorde

33

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico

Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o

ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava

somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por

uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado

ou o ponto intermeacutedio

Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica

inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo

princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros

e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado

sob sua tutela

Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a

muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a

qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto

meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional

passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num

polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a

alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a

alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de

Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge

para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim

sucessivamente

Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua

organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata

da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se

reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical

os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura

da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual

o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado

primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas

mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro

torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim

dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16

16

Gueacutenon 1999 p23

34

No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser

dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de

analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre

regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos

incomensuraacuteveis

Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de

seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas

vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade

necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que

estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade

assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada

impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a

um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por

exemplo da lua e da alma

Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as

ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou

aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que

embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres

ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia

nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de

fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas

qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas

graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo

tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais

uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a

coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e

lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num

mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao

masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora

dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo

Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo

de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o

acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o

35

fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino

teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse

fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo

Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo

contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa

A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o

outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre

quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na

quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um

compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la

A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-

feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e

feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a

posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria

necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo

para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente

masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude

de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo

privativa

Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito

de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem

duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e

quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre

ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos

guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e

sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais

difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta

porosa uacutemida ou fechada

Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a

sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns

dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso

condiccedilotildees

Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo

naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem

36

necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas

se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou

outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)

Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo

condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de

fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees

associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o

caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute

necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa

objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da

mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos

dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do

iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num

patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado

intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos

individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo

Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees

de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam

somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre

esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes

noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre

relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma

espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila

Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos

loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou

analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ

ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)

A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas

relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse

processo igualmente uma relaccedilatildeo

Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et

du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee

notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas

moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux

celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou

encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de

nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui

37

exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est

en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le

plus petit comme analogue du plus grand)17

Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que

unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter

entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel

unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia

Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres

primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune

corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos

on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification

du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par

harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se

ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une

neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au

deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure

deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en

son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception

originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la

conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique

de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre

partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18

Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de

predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e

mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na

matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo

desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =

2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que

a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas

premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo

A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-

1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua

vez se apoiu em Aristoacuteteles19

) estabelece trecircs tipos de analogia20

A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o

termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo

17

Borella 2012 p23 18

Moutsopoulos 2004 p203-204 19

Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada

pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais

ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre

chez Aristote Paris PUF 1962 20

A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23

38

grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

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Page 18: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

18

Cabe observar como A Q ao traccedilar um perfil do masculino e do feminino natildeo

oferece uma lista de entes individuais mas um elenco geneacuterico de qualidades sensiacuteveis das

quais ele passa sem maior detenccedila para o toacutepico das naturezas intermediaacuterias em que estatildeo

incluiacutedas as artes as ciecircncias e as virtudes A menccedilatildeo agraves artes ciecircncias e virtudes eacute

importante neste momento porque uma vez explicado o processo pelo qual atraveacutes de

mesclas dos princiacutepios masculino e feminino satildeo engendradas as paixotildees da alma

Quintiliano deve agora retomar o fio da exposiccedilatildeo e mostrar como a muacutesica por meio de

conceitos palavras ritmos e melodias eacute capaz de imitar essas mesmas paixotildees virtudes

viacutecios etc comunicando agrave alma o respectivo eacutethos Eacute o que faraacute no restante do livro II

23 Os conceitos

No iniacutecio do cap9 A Q retoma o tema dos conceitos com o qual tinha

concluiacutedo o cap7 antes da relativamente longa mas necessaacuteria digressatildeo acerca das paixotildees

da alma O propoacutesito do autor eacute demonstrar como um poeta eacute capaz de transmitir os conceitos

que deseje mediante o emprego de certos procedimentos retoacutericos A Q utiliza exemplos

extraiacutedos de Homero nos quais aponta como o poeta mesclando traccedilos masculinos e

femininos consegue traduzir em palavras uma gama complexa de impressotildees desde

sensaccedilotildees fiacutesicas como rapidez suavidade ou agitaccedilatildeo ateacute caracteres ou julgamentos morais

Esse conceitos (ἐννοήματα) compostos de traccedilos masculinos e femininos ndash conceitos que por

sua vez entram na composiccedilatildeo eacutetica das frases e dos discursos ndash A Q os compara aos

extratos dos quais satildeo feitos os remeacutedios7 e conclui (II 103-18)

τὰ μὲν οὖν ἐς ἄνεσιν ἄγοντα καὶ φαιδρότητα τὸν ἀφελῆ τε καὶ ἡδὺν λόγον

ἐγέννησε τὰ δὲ τὸ σύννουν κινοῦντα καὶ τὸ ὁρμητικὸν τὸν πολιτικόν τε

καὶ ἀγωνιστικὸν ἐξέφηνεν τοῦ μὲν οὖν πολιτικοῦ κατὰ τὸ ἄρρεν τὰ εἴδη

συντομίαι τε καὶ βραχύτητες καὶ ἀξίωμα καὶ μεγαλοπρέπεια τραχύτης τε

καὶ σφοδρότης καὶ μέγεθος καὶ μεστότης ἅπερ τήν τε φυσικὴν ἐμφαίνει

μεγαλόνοιαν τοῦ ἄρρενος μέγεθός τε σώματος καὶ ἁδροτῆτα διανοίας καὶ

τὸ ἐς τὰ μέγιστα τῶν ἔργων ἀνυτικὸν τάχος τοῦ δὲ ἀφελοῦς ἀραιότης

ἁβρότης κάλλη τε καὶ γλυκύτητες ὧν τὰ μὲν τὸ ἀνειμένον τοῦ θήλεος τὰ

δὲ τὸ ἐς ὡραϊσμὸν διαδείκνυσιν ἐπτοημένον γένοιτο δ ἄν τι καὶ τῇ

τούτων πλοκῇ οἷον ἡ δριμύτης τὸ μὲν τάχος ὡς ἄρρεν τὸ δὲ

μικροπρεπὲς ὡς ἐναντίον ἐπιφαίνουσα ἥ τ ἐπιμέλεια τὸ μὲν γλίσχρον

ἔχουσα κατὰ τὸ θῆλυ τὸ δὲ τῆς φιλοπονίας παρεκτεταμένον ὡς ἄρρεν

Assim os conceitos que levam agrave descontraccedilatildeo e agrave alegria produzem uma

frase despojada e doce enquanto os conceitos que mobilizam as partes

intelectiva e impulsiva produzem a frase contenciosa e poliacutetica Os traccedilos

da frase poliacutetica relacionados ao masculino satildeo concisatildeo brevidade

dignidade e elevaccedilatildeo assim como aspereza forccedila grandeza e

completude traccedilos que mostram a grandiosidade natural do masculino a

7 Uma comparaccedilatildeo semelhante jaacute tinha sido feita em II 47-12

19

magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores

trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e

doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros

a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a

exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e

atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade

como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo

masculino

Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem

duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel

Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade

contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de

masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e

mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos

interessa aqui compreender

Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase

feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por

ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por

ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo

como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa

ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de

desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo

remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na

disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma

Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que

poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade

seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma

caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel

quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a

porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade

contradiccedilatildeo alguma

No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a

capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente

aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam

o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante

uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses

materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes

20

Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro

tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais

duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do

diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons

livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma

martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente

tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade

Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a

accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua

presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No

capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a

dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do

discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto

24 As letras

Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto

καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων

γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς

φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς

τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον

ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως

περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων

ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων

τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ

ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε

πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ

ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα

μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν

χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον

ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς

ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς

τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον

διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως

τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν

ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων

κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος

ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ

τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως

eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo

de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais

outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como

as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido

satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que

limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves

enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade

21

temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo

dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo

que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente

eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o

lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute

atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por

sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a

passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes

outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se

com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar

jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua

a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio

das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona

ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o

emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito

aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias

e possuem ambas as naturezas

A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo

primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso

masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais

Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da

classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam

espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo

das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as

consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto

consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as

consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave

nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na

sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz

respeito agraves letras8

As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo

claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que

pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo

Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das

vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de

assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as

quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das

letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes

8 Cf Chapanski 2003 p 22-24

22

Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes

que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais

proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias

enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais

proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em

relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade

As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de

articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua

vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto

meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais

tau delta e theta As guturais capa gama e khi

Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como

ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo

que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as

surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste

em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de

separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas

silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)

seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as

consoantes o polo essencial (formal ou masculino)

AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo

seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais

(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a

doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo

princiacutepio dualista

25 As vogais e o solfejo

Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o

meacutelos (II 126-10)

Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι

λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα

τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ

μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει

23

O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a

harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que

se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo

percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e

ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos

Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo

de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I

Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de

disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute

apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma

harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo

especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das

mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder

perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o

objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e

o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir

encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)

Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς

κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ

ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ

μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον

μετεσχηκότες

A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe

tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e

masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo

intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos

gecircneros com maior ou menor intensidade

No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre

elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa

diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino (II 131-35)

Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς

πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα

πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων

ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς

ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε

τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς

ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς

μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ

συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ

9 Cf West 1994 p178

24

πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα

δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν

ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως

ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt

κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ

λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν

μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ

ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν

ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο

καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως

ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα

φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt

νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται

πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται

τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ

γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων

καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις

σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα

καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ

ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ

Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute

captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as

letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete

examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra

as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e

masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons

mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute

masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois

nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o

ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o

som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige

que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o

alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da

sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua

estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado

intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta

quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino

quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa

na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a

exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta

trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do

alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior

parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo

lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses

examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos

constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e

terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons

semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros

Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais

nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas

internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para

isso novos paracircmetros

O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio

que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou

25

fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais

vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora

a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem

interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)

estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto

importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado

designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais

satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas

Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute

Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de

masculino e feminino em si mesmas10

Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos

remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a

esfericidade da alma11

(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash

mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso

Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves

a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon

feminino) refira-se justamente a esse arredondamento

As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em

razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas

(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua

ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente

relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal

O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do

eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os

extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo

masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo

entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da

verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o

10

Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido

Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo

metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das

observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11

Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De

Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por

que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora

o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo

26

sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo

entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta

Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo

verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave

segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo

lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros

Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro

obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo

excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no

solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)

Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ

εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί

τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες

ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ

αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων

περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ

τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν

τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς

πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ

ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ

λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος

διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt

εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους

διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν

λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ

πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν

μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν

Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente

passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega

satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se

articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que

o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam

intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez

sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por

intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos

dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de

acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos

da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam

No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido

com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das

vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o

ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons

que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida

vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava

em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos

posteriormente por que isso eacute assim

A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim

ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo

27

O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de

quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de

quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores

distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12

Do grave para o agudo (ou de

cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram

denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica

(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era

acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de

um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira

(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da

uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons

ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro

tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo

(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom

O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute

justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do

tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao

ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira

(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da

sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada

μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito

formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava

formado com a nota acrescida

Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada

tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou

agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por

eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)

Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει

κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ

τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν

πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ

θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα

γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά

12

Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2

T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)

28

Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao

masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos

em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram

dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os

sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no

entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da

passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes

Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave

formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo

decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso

ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como

o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13

os rechaccedilavam por

completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14

(II 1488-90)

περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς

παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας

Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam

na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da

alma

Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos

instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo

mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes

mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais

como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se

apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta

a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo

a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as

noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura

tonal (II 1623-40)

Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα

διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ

θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος

μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα

εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν

ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ

τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ

πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν

περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον

θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον

ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι

13

Repuacuteblica 398c 14

Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)

29

δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς

τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν

οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν

ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt

Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela

sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute

feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais

do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua

tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se

descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade

e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por

gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito

debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde

participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira

participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros

intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua

natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar

cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza

iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo

interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam

familiares

No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os

instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o

dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em

que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria

dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado

por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da

muacutesica sobre a alma

O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro

245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo

ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees

superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da

regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo

anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto

ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees

hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm

pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15

15

Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida

(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a

associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre

medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente

que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento

que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a

30

Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite

(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os

nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm

unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses

nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo

masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria

Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo

residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real

manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo

um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas

entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do

universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os

planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros

26 A muacutesica das esferas

Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves

teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem

acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma

definiccedilatildeo (III 211-6)

Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν

ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ

φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον

τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν

διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει

Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o

feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e

amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o

esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de

sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo

AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero

proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute

elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza

(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas

antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura

que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo

31

Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os

planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e

femininas (III 216-40)

ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης

γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον

ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ

δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ

ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ

θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι

τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον

μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε

μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης

προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ

πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος

ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ

νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ

ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε

ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς

Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης

ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως

ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε

θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ

ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν

ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε

ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης

ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ

μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν

παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ

τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων

συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν

θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ

ἐπίπονος τὸν ἄρρενα

A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por

toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda

um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do

feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa

tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e

nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios

e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do

feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de

Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota

acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute

no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol

(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se

regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem

tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais

familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute

luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente

uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente

feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol

emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e

impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som

que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo

de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante

ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma

equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de

32

Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e

quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo

sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que

eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino

Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal

correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota

do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao

eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de

masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as

devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam

a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde

PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO

NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa

VOGAL ε α η ω α η Ω

Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a

meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o

eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe

apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por

outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela

soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim

seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo

ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas

pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo

Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco

pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter

especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a

correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e

as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como

essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda

oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de

Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido

Primeiro tetracorde Segundo tetracorde

33

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico

Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o

ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava

somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por

uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado

ou o ponto intermeacutedio

Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica

inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo

princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros

e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado

sob sua tutela

Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a

muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a

qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto

meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional

passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num

polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a

alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a

alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de

Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge

para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim

sucessivamente

Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua

organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata

da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se

reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical

os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura

da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual

o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado

primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas

mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro

torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim

dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16

16

Gueacutenon 1999 p23

34

No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser

dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de

analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre

regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos

incomensuraacuteveis

Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de

seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas

vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade

necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que

estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade

assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada

impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a

um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por

exemplo da lua e da alma

Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as

ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou

aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que

embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres

ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia

nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de

fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas

qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas

graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo

tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais

uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a

coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e

lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num

mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao

masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora

dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo

Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo

de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o

acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o

35

fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino

teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse

fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo

Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo

contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa

A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o

outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre

quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na

quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um

compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la

A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-

feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e

feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a

posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria

necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo

para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente

masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude

de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo

privativa

Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito

de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem

duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e

quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre

ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos

guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e

sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais

difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta

porosa uacutemida ou fechada

Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a

sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns

dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso

condiccedilotildees

Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo

naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem

36

necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas

se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou

outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)

Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo

condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de

fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees

associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o

caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute

necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa

objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da

mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos

dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do

iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num

patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado

intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos

individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo

Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees

de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam

somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre

esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes

noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre

relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma

espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila

Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos

loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou

analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ

ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)

A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas

relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse

processo igualmente uma relaccedilatildeo

Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et

du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee

notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas

moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux

celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou

encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de

nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui

37

exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est

en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le

plus petit comme analogue du plus grand)17

Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que

unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter

entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel

unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia

Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres

primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune

corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos

on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification

du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par

harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se

ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une

neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au

deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure

deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en

son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception

originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la

conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique

de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre

partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18

Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de

predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e

mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na

matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo

desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =

2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que

a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas

premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo

A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-

1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua

vez se apoiu em Aristoacuteteles19

) estabelece trecircs tipos de analogia20

A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o

termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo

17

Borella 2012 p23 18

Moutsopoulos 2004 p203-204 19

Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada

pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais

ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre

chez Aristote Paris PUF 1962 20

A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23

38

grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

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Page 19: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

19

magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores

trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e

doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros

a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a

exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e

atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade

como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo

masculino

Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem

duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel

Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade

contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de

masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e

mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos

interessa aqui compreender

Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase

feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por

ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por

ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo

como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa

ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de

desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo

remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na

disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma

Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que

poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade

seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma

caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel

quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a

porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade

contradiccedilatildeo alguma

No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a

capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente

aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam

o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante

uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses

materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes

20

Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro

tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais

duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do

diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons

livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma

martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente

tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade

Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a

accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua

presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No

capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a

dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do

discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto

24 As letras

Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto

καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων

γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς

φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς

τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον

ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως

περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων

ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων

τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ

ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε

πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ

ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα

μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν

χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον

ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς

ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς

τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον

διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως

τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν

ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων

κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος

ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ

τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως

eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo

de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais

outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como

as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido

satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que

limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves

enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade

21

temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo

dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo

que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente

eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o

lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute

atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por

sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a

passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes

outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se

com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar

jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua

a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio

das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona

ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o

emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito

aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias

e possuem ambas as naturezas

A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo

primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso

masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais

Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da

classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam

espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo

das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as

consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto

consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as

consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave

nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na

sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz

respeito agraves letras8

As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo

claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que

pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo

Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das

vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de

assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as

quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das

letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes

8 Cf Chapanski 2003 p 22-24

22

Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes

que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais

proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias

enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais

proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em

relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade

As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de

articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua

vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto

meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais

tau delta e theta As guturais capa gama e khi

Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como

ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo

que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as

surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste

em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de

separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas

silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)

seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as

consoantes o polo essencial (formal ou masculino)

AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo

seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais

(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a

doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo

princiacutepio dualista

25 As vogais e o solfejo

Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o

meacutelos (II 126-10)

Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι

λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα

τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ

μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει

23

O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a

harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que

se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo

percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e

ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos

Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo

de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I

Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de

disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute

apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma

harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo

especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das

mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder

perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o

objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e

o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir

encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)

Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς

κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ

ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ

μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον

μετεσχηκότες

A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe

tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e

masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo

intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos

gecircneros com maior ou menor intensidade

No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre

elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa

diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino (II 131-35)

Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς

πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα

πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων

ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς

ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε

τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς

ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς

μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ

συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ

9 Cf West 1994 p178

24

πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα

δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν

ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως

ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt

κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ

λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν

μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ

ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν

ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο

καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως

ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα

φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt

νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται

πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται

τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ

γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων

καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις

σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα

καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ

ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ

Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute

captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as

letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete

examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra

as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e

masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons

mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute

masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois

nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o

ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o

som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige

que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o

alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da

sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua

estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado

intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta

quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino

quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa

na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a

exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta

trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do

alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior

parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo

lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses

examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos

constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e

terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons

semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros

Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais

nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas

internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para

isso novos paracircmetros

O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio

que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou

25

fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais

vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora

a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem

interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)

estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto

importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado

designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais

satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas

Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute

Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de

masculino e feminino em si mesmas10

Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos

remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a

esfericidade da alma11

(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash

mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso

Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves

a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon

feminino) refira-se justamente a esse arredondamento

As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em

razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas

(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua

ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente

relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal

O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do

eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os

extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo

masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo

entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da

verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o

10

Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido

Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo

metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das

observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11

Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De

Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por

que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora

o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo

26

sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo

entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta

Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo

verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave

segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo

lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros

Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro

obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo

excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no

solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)

Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ

εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί

τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες

ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ

αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων

περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ

τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν

τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς

πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ

ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ

λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος

διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt

εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους

διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν

λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ

πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν

μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν

Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente

passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega

satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se

articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que

o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam

intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez

sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por

intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos

dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de

acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos

da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam

No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido

com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das

vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o

ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons

que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida

vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava

em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos

posteriormente por que isso eacute assim

A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim

ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo

27

O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de

quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de

quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores

distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12

Do grave para o agudo (ou de

cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram

denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica

(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era

acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de

um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira

(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da

uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons

ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro

tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo

(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom

O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute

justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do

tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao

ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira

(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da

sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada

μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito

formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava

formado com a nota acrescida

Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada

tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou

agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por

eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)

Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει

κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ

τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν

πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ

θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα

γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά

12

Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2

T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)

28

Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao

masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos

em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram

dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os

sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no

entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da

passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes

Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave

formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo

decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso

ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como

o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13

os rechaccedilavam por

completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14

(II 1488-90)

περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς

παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας

Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam

na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da

alma

Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos

instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo

mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes

mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais

como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se

apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta

a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo

a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as

noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura

tonal (II 1623-40)

Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα

διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ

θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος

μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα

εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν

ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ

τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ

πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν

περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον

θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον

ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι

13

Repuacuteblica 398c 14

Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)

29

δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς

τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν

οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν

ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt

Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela

sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute

feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais

do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua

tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se

descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade

e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por

gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito

debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde

participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira

participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros

intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua

natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar

cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza

iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo

interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam

familiares

No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os

instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o

dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em

que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria

dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado

por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da

muacutesica sobre a alma

O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro

245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo

ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees

superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da

regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo

anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto

ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees

hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm

pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15

15

Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida

(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a

associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre

medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente

que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento

que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a

30

Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite

(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os

nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm

unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses

nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo

masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria

Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo

residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real

manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo

um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas

entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do

universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os

planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros

26 A muacutesica das esferas

Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves

teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem

acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma

definiccedilatildeo (III 211-6)

Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν

ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ

φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον

τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν

διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει

Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o

feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e

amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o

esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de

sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo

AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero

proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute

elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza

(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas

antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura

que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo

31

Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os

planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e

femininas (III 216-40)

ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης

γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον

ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ

δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ

ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ

θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι

τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον

μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε

μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης

προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ

πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος

ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ

νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ

ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε

ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς

Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης

ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως

ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε

θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ

ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν

ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε

ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης

ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ

μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν

παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ

τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων

συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν

θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ

ἐπίπονος τὸν ἄρρενα

A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por

toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda

um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do

feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa

tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e

nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios

e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do

feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de

Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota

acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute

no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol

(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se

regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem

tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais

familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute

luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente

uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente

feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol

emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e

impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som

que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo

de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante

ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma

equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de

32

Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e

quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo

sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que

eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino

Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal

correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota

do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao

eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de

masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as

devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam

a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde

PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO

NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa

VOGAL ε α η ω α η Ω

Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a

meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o

eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe

apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por

outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela

soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim

seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo

ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas

pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo

Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco

pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter

especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a

correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e

as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como

essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda

oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de

Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido

Primeiro tetracorde Segundo tetracorde

33

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico

Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o

ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava

somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por

uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado

ou o ponto intermeacutedio

Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica

inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo

princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros

e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado

sob sua tutela

Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a

muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a

qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto

meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional

passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num

polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a

alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a

alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de

Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge

para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim

sucessivamente

Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua

organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata

da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se

reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical

os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura

da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual

o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado

primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas

mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro

torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim

dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16

16

Gueacutenon 1999 p23

34

No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser

dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de

analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre

regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos

incomensuraacuteveis

Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de

seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas

vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade

necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que

estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade

assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada

impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a

um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por

exemplo da lua e da alma

Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as

ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou

aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que

embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres

ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia

nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de

fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas

qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas

graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo

tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais

uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a

coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e

lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num

mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao

masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora

dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo

Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo

de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o

acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o

35

fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino

teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse

fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo

Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo

contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa

A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o

outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre

quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na

quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um

compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la

A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-

feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e

feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a

posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria

necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo

para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente

masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude

de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo

privativa

Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito

de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem

duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e

quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre

ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos

guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e

sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais

difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta

porosa uacutemida ou fechada

Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a

sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns

dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso

condiccedilotildees

Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo

naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem

36

necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas

se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou

outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)

Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo

condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de

fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees

associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o

caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute

necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa

objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da

mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos

dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do

iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num

patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado

intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos

individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo

Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees

de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam

somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre

esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes

noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre

relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma

espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila

Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos

loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou

analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ

ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)

A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas

relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse

processo igualmente uma relaccedilatildeo

Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et

du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee

notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas

moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux

celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou

encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de

nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui

37

exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est

en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le

plus petit comme analogue du plus grand)17

Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que

unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter

entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel

unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia

Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres

primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune

corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos

on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification

du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par

harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se

ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une

neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au

deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure

deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en

son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception

originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la

conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique

de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre

partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18

Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de

predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e

mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na

matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo

desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =

2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que

a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas

premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo

A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-

1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua

vez se apoiu em Aristoacuteteles19

) estabelece trecircs tipos de analogia20

A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o

termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo

17

Borella 2012 p23 18

Moutsopoulos 2004 p203-204 19

Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada

pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais

ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre

chez Aristote Paris PUF 1962 20

A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23

38

grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

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Page 20: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

20

Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro

tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais

duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do

diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons

livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma

martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente

tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade

Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a

accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua

presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No

capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a

dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do

discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto

24 As letras

Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto

καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων

γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς

φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς

τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον

ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως

περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων

ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων

τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ

ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε

πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ

ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα

μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν

χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον

ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς

ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς

τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον

διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως

τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν

ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων

κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος

ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ

τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως

eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo

de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais

outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como

as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido

satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que

limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves

enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade

21

temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo

dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo

que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente

eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o

lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute

atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por

sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a

passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes

outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se

com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar

jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua

a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio

das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona

ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o

emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito

aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias

e possuem ambas as naturezas

A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo

primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso

masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais

Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da

classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam

espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo

das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as

consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto

consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as

consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave

nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na

sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz

respeito agraves letras8

As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo

claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que

pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo

Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das

vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de

assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as

quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das

letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes

8 Cf Chapanski 2003 p 22-24

22

Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes

que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais

proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias

enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais

proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em

relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade

As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de

articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua

vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto

meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais

tau delta e theta As guturais capa gama e khi

Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como

ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo

que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as

surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste

em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de

separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas

silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)

seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as

consoantes o polo essencial (formal ou masculino)

AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo

seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais

(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a

doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo

princiacutepio dualista

25 As vogais e o solfejo

Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o

meacutelos (II 126-10)

Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι

λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα

τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ

μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει

23

O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a

harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que

se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo

percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e

ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos

Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo

de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I

Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de

disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute

apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma

harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo

especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das

mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder

perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o

objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e

o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir

encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)

Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς

κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ

ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ

μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον

μετεσχηκότες

A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe

tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e

masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo

intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos

gecircneros com maior ou menor intensidade

No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre

elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa

diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino (II 131-35)

Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς

πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα

πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων

ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς

ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε

τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς

ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς

μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ

συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ

9 Cf West 1994 p178

24

πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα

δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν

ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως

ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt

κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ

λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν

μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ

ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν

ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο

καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως

ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα

φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt

νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται

πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται

τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ

γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων

καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις

σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα

καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ

ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ

Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute

captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as

letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete

examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra

as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e

masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons

mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute

masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois

nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o

ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o

som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige

que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o

alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da

sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua

estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado

intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta

quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino

quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa

na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a

exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta

trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do

alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior

parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo

lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses

examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos

constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e

terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons

semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros

Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais

nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas

internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para

isso novos paracircmetros

O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio

que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou

25

fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais

vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora

a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem

interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)

estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto

importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado

designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais

satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas

Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute

Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de

masculino e feminino em si mesmas10

Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos

remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a

esfericidade da alma11

(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash

mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso

Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves

a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon

feminino) refira-se justamente a esse arredondamento

As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em

razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas

(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua

ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente

relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal

O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do

eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os

extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo

masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo

entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da

verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o

10

Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido

Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo

metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das

observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11

Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De

Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por

que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora

o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo

26

sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo

entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta

Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo

verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave

segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo

lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros

Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro

obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo

excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no

solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)

Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ

εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί

τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες

ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ

αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων

περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ

τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν

τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς

πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ

ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ

λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος

διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt

εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους

διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν

λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ

πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν

μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν

Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente

passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega

satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se

articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que

o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam

intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez

sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por

intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos

dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de

acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos

da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam

No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido

com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das

vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o

ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons

que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida

vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava

em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos

posteriormente por que isso eacute assim

A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim

ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo

27

O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de

quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de

quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores

distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12

Do grave para o agudo (ou de

cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram

denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica

(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era

acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de

um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira

(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da

uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons

ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro

tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo

(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom

O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute

justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do

tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao

ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira

(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da

sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada

μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito

formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava

formado com a nota acrescida

Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada

tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou

agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por

eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)

Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει

κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ

τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν

πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ

θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα

γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά

12

Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2

T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)

28

Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao

masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos

em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram

dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os

sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no

entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da

passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes

Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave

formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo

decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso

ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como

o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13

os rechaccedilavam por

completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14

(II 1488-90)

περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς

παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας

Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam

na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da

alma

Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos

instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo

mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes

mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais

como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se

apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta

a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo

a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as

noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura

tonal (II 1623-40)

Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα

διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ

θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος

μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα

εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν

ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ

τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ

πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν

περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον

θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον

ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι

13

Repuacuteblica 398c 14

Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)

29

δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς

τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν

οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν

ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt

Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela

sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute

feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais

do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua

tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se

descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade

e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por

gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito

debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde

participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira

participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros

intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua

natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar

cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza

iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo

interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam

familiares

No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os

instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o

dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em

que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria

dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado

por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da

muacutesica sobre a alma

O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro

245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo

ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees

superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da

regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo

anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto

ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees

hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm

pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15

15

Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida

(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a

associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre

medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente

que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento

que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a

30

Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite

(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os

nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm

unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses

nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo

masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria

Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo

residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real

manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo

um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas

entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do

universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os

planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros

26 A muacutesica das esferas

Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves

teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem

acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma

definiccedilatildeo (III 211-6)

Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν

ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ

φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον

τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν

διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει

Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o

feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e

amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o

esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de

sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo

AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero

proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute

elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza

(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas

antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura

que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo

31

Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os

planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e

femininas (III 216-40)

ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης

γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον

ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ

δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ

ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ

θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι

τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον

μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε

μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης

προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ

πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος

ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ

νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ

ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε

ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς

Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης

ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως

ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε

θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ

ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν

ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε

ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης

ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ

μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν

παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ

τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων

συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν

θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ

ἐπίπονος τὸν ἄρρενα

A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por

toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda

um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do

feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa

tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e

nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios

e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do

feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de

Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota

acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute

no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol

(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se

regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem

tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais

familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute

luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente

uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente

feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol

emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e

impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som

que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo

de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante

ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma

equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de

32

Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e

quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo

sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que

eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino

Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal

correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota

do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao

eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de

masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as

devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam

a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde

PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO

NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa

VOGAL ε α η ω α η Ω

Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a

meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o

eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe

apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por

outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela

soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim

seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo

ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas

pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo

Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco

pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter

especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a

correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e

as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como

essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda

oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de

Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido

Primeiro tetracorde Segundo tetracorde

33

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico

Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o

ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava

somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por

uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado

ou o ponto intermeacutedio

Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica

inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo

princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros

e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado

sob sua tutela

Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a

muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a

qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto

meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional

passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num

polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a

alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a

alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de

Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge

para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim

sucessivamente

Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua

organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata

da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se

reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical

os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura

da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual

o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado

primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas

mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro

torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim

dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16

16

Gueacutenon 1999 p23

34

No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser

dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de

analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre

regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos

incomensuraacuteveis

Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de

seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas

vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade

necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que

estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade

assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada

impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a

um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por

exemplo da lua e da alma

Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as

ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou

aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que

embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres

ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia

nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de

fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas

qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas

graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo

tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais

uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a

coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e

lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num

mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao

masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora

dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo

Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo

de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o

acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o

35

fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino

teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse

fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo

Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo

contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa

A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o

outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre

quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na

quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um

compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la

A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-

feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e

feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a

posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria

necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo

para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente

masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude

de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo

privativa

Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito

de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem

duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e

quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre

ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos

guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e

sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais

difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta

porosa uacutemida ou fechada

Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a

sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns

dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso

condiccedilotildees

Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo

naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem

36

necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas

se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou

outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)

Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo

condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de

fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees

associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o

caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute

necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa

objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da

mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos

dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do

iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num

patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado

intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos

individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo

Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees

de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam

somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre

esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes

noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre

relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma

espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila

Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos

loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou

analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ

ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)

A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas

relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse

processo igualmente uma relaccedilatildeo

Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et

du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee

notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas

moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux

celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou

encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de

nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui

37

exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est

en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le

plus petit comme analogue du plus grand)17

Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que

unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter

entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel

unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia

Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres

primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune

corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos

on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification

du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par

harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se

ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une

neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au

deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure

deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en

son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception

originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la

conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique

de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre

partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18

Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de

predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e

mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na

matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo

desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =

2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que

a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas

premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo

A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-

1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua

vez se apoiu em Aristoacuteteles19

) estabelece trecircs tipos de analogia20

A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o

termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo

17

Borella 2012 p23 18

Moutsopoulos 2004 p203-204 19

Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada

pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais

ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre

chez Aristote Paris PUF 1962 20

A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23

38

grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

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Page 21: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

21

temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo

dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo

que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente

eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o

lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute

atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por

sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a

passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes

outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se

com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar

jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua

a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio

das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona

ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o

emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito

aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias

e possuem ambas as naturezas

A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo

primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso

masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais

Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da

classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam

espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo

das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as

consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto

consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as

consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave

nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na

sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz

respeito agraves letras8

As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo

claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que

pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo

Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das

vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de

assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as

quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das

letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes

8 Cf Chapanski 2003 p 22-24

22

Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes

que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais

proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias

enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais

proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em

relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade

As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de

articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua

vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto

meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais

tau delta e theta As guturais capa gama e khi

Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como

ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo

que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as

surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste

em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de

separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas

silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)

seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as

consoantes o polo essencial (formal ou masculino)

AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo

seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais

(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a

doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo

princiacutepio dualista

25 As vogais e o solfejo

Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o

meacutelos (II 126-10)

Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι

λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα

τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ

μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει

23

O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a

harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que

se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo

percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e

ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos

Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo

de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I

Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de

disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute

apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma

harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo

especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das

mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder

perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o

objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e

o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir

encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)

Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς

κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ

ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ

μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον

μετεσχηκότες

A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe

tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e

masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo

intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos

gecircneros com maior ou menor intensidade

No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre

elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa

diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino (II 131-35)

Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς

πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα

πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων

ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς

ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε

τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς

ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς

μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ

συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ

9 Cf West 1994 p178

24

πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα

δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν

ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως

ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt

κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ

λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν

μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ

ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν

ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο

καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως

ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα

φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt

νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται

πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται

τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ

γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων

καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις

σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα

καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ

ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ

Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute

captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as

letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete

examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra

as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e

masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons

mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute

masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois

nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o

ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o

som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige

que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o

alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da

sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua

estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado

intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta

quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino

quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa

na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a

exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta

trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do

alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior

parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo

lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses

examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos

constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e

terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons

semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros

Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais

nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas

internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para

isso novos paracircmetros

O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio

que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou

25

fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais

vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora

a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem

interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)

estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto

importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado

designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais

satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas

Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute

Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de

masculino e feminino em si mesmas10

Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos

remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a

esfericidade da alma11

(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash

mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso

Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves

a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon

feminino) refira-se justamente a esse arredondamento

As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em

razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas

(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua

ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente

relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal

O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do

eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os

extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo

masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo

entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da

verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o

10

Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido

Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo

metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das

observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11

Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De

Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por

que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora

o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo

26

sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo

entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta

Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo

verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave

segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo

lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros

Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro

obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo

excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no

solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)

Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ

εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί

τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες

ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ

αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων

περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ

τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν

τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς

πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ

ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ

λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος

διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt

εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους

διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν

λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ

πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν

μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν

Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente

passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega

satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se

articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que

o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam

intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez

sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por

intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos

dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de

acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos

da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam

No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido

com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das

vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o

ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons

que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida

vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava

em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos

posteriormente por que isso eacute assim

A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim

ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo

27

O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de

quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de

quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores

distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12

Do grave para o agudo (ou de

cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram

denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica

(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era

acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de

um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira

(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da

uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons

ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro

tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo

(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom

O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute

justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do

tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao

ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira

(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da

sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada

μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito

formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava

formado com a nota acrescida

Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada

tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou

agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por

eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)

Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει

κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ

τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν

πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ

θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα

γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά

12

Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2

T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)

28

Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao

masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos

em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram

dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os

sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no

entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da

passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes

Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave

formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo

decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso

ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como

o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13

os rechaccedilavam por

completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14

(II 1488-90)

περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς

παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας

Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam

na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da

alma

Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos

instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo

mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes

mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais

como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se

apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta

a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo

a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as

noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura

tonal (II 1623-40)

Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα

διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ

θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος

μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα

εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν

ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ

τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ

πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν

περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον

θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον

ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι

13

Repuacuteblica 398c 14

Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)

29

δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς

τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν

οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν

ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt

Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela

sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute

feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais

do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua

tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se

descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade

e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por

gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito

debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde

participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira

participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros

intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua

natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar

cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza

iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo

interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam

familiares

No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os

instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o

dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em

que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria

dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado

por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da

muacutesica sobre a alma

O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro

245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo

ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees

superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da

regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo

anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto

ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees

hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm

pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15

15

Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida

(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a

associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre

medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente

que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento

que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a

30

Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite

(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os

nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm

unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses

nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo

masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria

Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo

residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real

manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo

um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas

entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do

universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os

planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros

26 A muacutesica das esferas

Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves

teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem

acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma

definiccedilatildeo (III 211-6)

Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν

ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ

φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον

τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν

διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει

Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o

feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e

amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o

esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de

sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo

AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero

proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute

elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza

(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas

antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura

que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo

31

Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os

planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e

femininas (III 216-40)

ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης

γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον

ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ

δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ

ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ

θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι

τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον

μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε

μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης

προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ

πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος

ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ

νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ

ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε

ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς

Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης

ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως

ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε

θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ

ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν

ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε

ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης

ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ

μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν

παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ

τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων

συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν

θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ

ἐπίπονος τὸν ἄρρενα

A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por

toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda

um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do

feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa

tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e

nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios

e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do

feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de

Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota

acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute

no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol

(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se

regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem

tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais

familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute

luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente

uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente

feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol

emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e

impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som

que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo

de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante

ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma

equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de

32

Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e

quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo

sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que

eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino

Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal

correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota

do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao

eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de

masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as

devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam

a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde

PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO

NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa

VOGAL ε α η ω α η Ω

Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a

meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o

eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe

apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por

outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela

soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim

seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo

ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas

pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo

Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco

pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter

especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a

correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e

as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como

essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda

oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de

Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido

Primeiro tetracorde Segundo tetracorde

33

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico

Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o

ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava

somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por

uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado

ou o ponto intermeacutedio

Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica

inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo

princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros

e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado

sob sua tutela

Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a

muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a

qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto

meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional

passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num

polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a

alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a

alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de

Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge

para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim

sucessivamente

Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua

organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata

da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se

reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical

os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura

da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual

o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado

primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas

mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro

torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim

dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16

16

Gueacutenon 1999 p23

34

No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser

dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de

analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre

regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos

incomensuraacuteveis

Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de

seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas

vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade

necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que

estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade

assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada

impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a

um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por

exemplo da lua e da alma

Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as

ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou

aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que

embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres

ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia

nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de

fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas

qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas

graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo

tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais

uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a

coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e

lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num

mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao

masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora

dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo

Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo

de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o

acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o

35

fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino

teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse

fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo

Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo

contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa

A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o

outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre

quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na

quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um

compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la

A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-

feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e

feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a

posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria

necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo

para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente

masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude

de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo

privativa

Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito

de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem

duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e

quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre

ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos

guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e

sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais

difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta

porosa uacutemida ou fechada

Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a

sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns

dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso

condiccedilotildees

Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo

naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem

36

necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas

se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou

outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)

Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo

condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de

fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees

associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o

caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute

necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa

objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da

mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos

dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do

iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num

patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado

intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos

individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo

Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees

de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam

somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre

esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes

noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre

relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma

espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila

Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos

loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou

analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ

ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)

A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas

relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse

processo igualmente uma relaccedilatildeo

Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et

du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee

notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas

moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux

celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou

encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de

nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui

37

exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est

en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le

plus petit comme analogue du plus grand)17

Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que

unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter

entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel

unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia

Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres

primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune

corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos

on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification

du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par

harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se

ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une

neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au

deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure

deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en

son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception

originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la

conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique

de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre

partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18

Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de

predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e

mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na

matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo

desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =

2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que

a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas

premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo

A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-

1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua

vez se apoiu em Aristoacuteteles19

) estabelece trecircs tipos de analogia20

A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o

termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo

17

Borella 2012 p23 18

Moutsopoulos 2004 p203-204 19

Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada

pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais

ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre

chez Aristote Paris PUF 1962 20

A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23

38

grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

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Page 22: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

22

Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes

que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais

proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias

enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais

proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em

relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade

As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de

articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua

vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto

meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais

tau delta e theta As guturais capa gama e khi

Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como

ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo

que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as

surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste

em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de

separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas

silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)

seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as

consoantes o polo essencial (formal ou masculino)

AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo

seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais

(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a

doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo

princiacutepio dualista

25 As vogais e o solfejo

Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o

meacutelos (II 126-10)

Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι

λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα

τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ

μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει

23

O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a

harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que

se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo

percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e

ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos

Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo

de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I

Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de

disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute

apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma

harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo

especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das

mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder

perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o

objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e

o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir

encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)

Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς

κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ

ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ

μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον

μετεσχηκότες

A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe

tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e

masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo

intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos

gecircneros com maior ou menor intensidade

No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre

elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa

diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino (II 131-35)

Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς

πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα

πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων

ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς

ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε

τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς

ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς

μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ

συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ

9 Cf West 1994 p178

24

πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα

δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν

ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως

ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt

κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ

λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν

μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ

ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν

ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο

καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως

ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα

φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt

νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται

πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται

τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ

γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων

καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις

σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα

καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ

ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ

Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute

captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as

letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete

examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra

as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e

masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons

mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute

masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois

nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o

ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o

som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige

que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o

alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da

sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua

estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado

intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta

quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino

quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa

na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a

exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta

trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do

alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior

parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo

lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses

examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos

constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e

terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons

semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros

Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais

nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas

internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para

isso novos paracircmetros

O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio

que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou

25

fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais

vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora

a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem

interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)

estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto

importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado

designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais

satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas

Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute

Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de

masculino e feminino em si mesmas10

Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos

remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a

esfericidade da alma11

(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash

mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso

Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves

a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon

feminino) refira-se justamente a esse arredondamento

As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em

razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas

(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua

ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente

relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal

O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do

eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os

extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo

masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo

entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da

verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o

10

Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido

Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo

metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das

observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11

Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De

Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por

que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora

o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo

26

sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo

entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta

Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo

verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave

segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo

lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros

Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro

obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo

excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no

solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)

Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ

εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί

τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες

ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ

αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων

περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ

τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν

τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς

πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ

ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ

λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος

διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt

εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους

διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν

λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ

πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν

μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν

Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente

passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega

satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se

articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que

o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam

intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez

sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por

intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos

dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de

acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos

da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam

No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido

com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das

vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o

ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons

que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida

vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava

em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos

posteriormente por que isso eacute assim

A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim

ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo

27

O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de

quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de

quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores

distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12

Do grave para o agudo (ou de

cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram

denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica

(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era

acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de

um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira

(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da

uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons

ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro

tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo

(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom

O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute

justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do

tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao

ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira

(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da

sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada

μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito

formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava

formado com a nota acrescida

Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada

tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou

agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por

eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)

Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει

κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ

τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν

πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ

θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα

γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά

12

Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2

T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)

28

Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao

masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos

em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram

dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os

sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no

entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da

passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes

Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave

formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo

decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso

ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como

o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13

os rechaccedilavam por

completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14

(II 1488-90)

περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς

παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας

Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam

na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da

alma

Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos

instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo

mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes

mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais

como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se

apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta

a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo

a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as

noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura

tonal (II 1623-40)

Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα

διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ

θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος

μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα

εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν

ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ

τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ

πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν

περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον

θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον

ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι

13

Repuacuteblica 398c 14

Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)

29

δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς

τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν

οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν

ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt

Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela

sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute

feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais

do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua

tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se

descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade

e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por

gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito

debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde

participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira

participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros

intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua

natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar

cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza

iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo

interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam

familiares

No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os

instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o

dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em

que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria

dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado

por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da

muacutesica sobre a alma

O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro

245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo

ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees

superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da

regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo

anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto

ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees

hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm

pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15

15

Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida

(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a

associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre

medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente

que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento

que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a

30

Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite

(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os

nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm

unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses

nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo

masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria

Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo

residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real

manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo

um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas

entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do

universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os

planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros

26 A muacutesica das esferas

Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves

teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem

acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma

definiccedilatildeo (III 211-6)

Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν

ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ

φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον

τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν

διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει

Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o

feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e

amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o

esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de

sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo

AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero

proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute

elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza

(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas

antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura

que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo

31

Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os

planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e

femininas (III 216-40)

ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης

γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον

ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ

δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ

ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ

θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι

τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον

μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε

μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης

προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ

πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος

ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ

νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ

ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε

ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς

Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης

ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως

ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε

θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ

ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν

ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε

ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης

ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ

μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν

παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ

τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων

συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν

θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ

ἐπίπονος τὸν ἄρρενα

A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por

toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda

um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do

feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa

tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e

nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios

e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do

feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de

Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota

acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute

no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol

(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se

regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem

tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais

familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute

luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente

uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente

feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol

emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e

impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som

que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo

de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante

ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma

equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de

32

Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e

quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo

sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que

eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino

Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal

correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota

do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao

eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de

masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as

devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam

a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde

PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO

NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa

VOGAL ε α η ω α η Ω

Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a

meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o

eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe

apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por

outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela

soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim

seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo

ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas

pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo

Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco

pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter

especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a

correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e

as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como

essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda

oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de

Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido

Primeiro tetracorde Segundo tetracorde

33

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico

Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o

ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava

somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por

uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado

ou o ponto intermeacutedio

Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica

inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo

princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros

e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado

sob sua tutela

Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a

muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a

qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto

meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional

passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num

polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a

alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a

alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de

Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge

para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim

sucessivamente

Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua

organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata

da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se

reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical

os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura

da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual

o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado

primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas

mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro

torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim

dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16

16

Gueacutenon 1999 p23

34

No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser

dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de

analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre

regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos

incomensuraacuteveis

Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de

seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas

vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade

necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que

estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade

assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada

impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a

um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por

exemplo da lua e da alma

Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as

ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou

aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que

embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres

ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia

nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de

fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas

qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas

graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo

tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais

uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a

coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e

lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num

mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao

masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora

dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo

Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo

de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o

acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o

35

fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino

teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse

fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo

Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo

contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa

A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o

outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre

quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na

quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um

compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la

A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-

feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e

feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a

posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria

necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo

para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente

masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude

de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo

privativa

Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito

de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem

duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e

quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre

ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos

guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e

sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais

difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta

porosa uacutemida ou fechada

Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a

sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns

dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso

condiccedilotildees

Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo

naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem

36

necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas

se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou

outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)

Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo

condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de

fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees

associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o

caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute

necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa

objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da

mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos

dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do

iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num

patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado

intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos

individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo

Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees

de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam

somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre

esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes

noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre

relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma

espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila

Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos

loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou

analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ

ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)

A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas

relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse

processo igualmente uma relaccedilatildeo

Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et

du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee

notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas

moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux

celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou

encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de

nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui

37

exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est

en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le

plus petit comme analogue du plus grand)17

Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que

unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter

entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel

unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia

Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres

primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune

corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos

on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification

du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par

harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se

ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une

neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au

deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure

deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en

son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception

originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la

conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique

de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre

partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18

Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de

predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e

mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na

matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo

desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =

2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que

a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas

premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo

A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-

1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua

vez se apoiu em Aristoacuteteles19

) estabelece trecircs tipos de analogia20

A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o

termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo

17

Borella 2012 p23 18

Moutsopoulos 2004 p203-204 19

Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada

pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais

ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre

chez Aristote Paris PUF 1962 20

A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23

38

grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

BIBLIOGRAFIA

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo de Leonel Vallandro Porto Alegre Editora Globo

[19--]

_____________ Oacuterganon Categorias Da interpretaccedilatildeo Analiacuteticos Anteriores Analiacuteticos

Posteriores Toacutepicos Refutaccedilotildees sofiacutesticas Trad e notas de Edson Bini Bauru SP Edipro

2005

____________ Das Categorias Trad notas e comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos Satildeo

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Page 23: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

23

O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a

harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que

se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo

percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e

ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos

Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo

de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I

Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de

disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute

apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma

harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo

especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das

mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder

perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o

objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e

o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir

encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)

Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς

κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ

ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ

μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον

μετεσχηκότες

A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe

tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e

masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo

intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos

gecircneros com maior ou menor intensidade

No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre

elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa

diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino (II 131-35)

Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς

πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα

πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων

ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς

ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε

τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς

ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς

μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ

συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ

9 Cf West 1994 p178

24

πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα

δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν

ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως

ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt

κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ

λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν

μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ

ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν

ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο

καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως

ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα

φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt

νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται

πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται

τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ

γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων

καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις

σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα

καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ

ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ

Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute

captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as

letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete

examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra

as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e

masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons

mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute

masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois

nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o

ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o

som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige

que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o

alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da

sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua

estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado

intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta

quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino

quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa

na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a

exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta

trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do

alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior

parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo

lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses

examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos

constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e

terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons

semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros

Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais

nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas

internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para

isso novos paracircmetros

O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio

que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou

25

fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais

vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora

a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem

interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)

estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto

importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado

designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais

satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas

Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute

Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de

masculino e feminino em si mesmas10

Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos

remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a

esfericidade da alma11

(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash

mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso

Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves

a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon

feminino) refira-se justamente a esse arredondamento

As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em

razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas

(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua

ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente

relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal

O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do

eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os

extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo

masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo

entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da

verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o

10

Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido

Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo

metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das

observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11

Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De

Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por

que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora

o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo

26

sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo

entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta

Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo

verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave

segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo

lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros

Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro

obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo

excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no

solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)

Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ

εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί

τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες

ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ

αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων

περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ

τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν

τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς

πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ

ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ

λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος

διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt

εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους

διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν

λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ

πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν

μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν

Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente

passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega

satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se

articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que

o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam

intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez

sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por

intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos

dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de

acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos

da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam

No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido

com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das

vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o

ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons

que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida

vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava

em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos

posteriormente por que isso eacute assim

A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim

ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo

27

O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de

quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de

quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores

distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12

Do grave para o agudo (ou de

cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram

denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica

(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era

acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de

um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira

(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da

uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons

ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro

tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo

(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom

O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute

justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do

tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao

ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira

(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da

sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada

μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito

formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava

formado com a nota acrescida

Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada

tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou

agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por

eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)

Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει

κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ

τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν

πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ

θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα

γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά

12

Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2

T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)

28

Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao

masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos

em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram

dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os

sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no

entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da

passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes

Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave

formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo

decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso

ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como

o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13

os rechaccedilavam por

completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14

(II 1488-90)

περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς

παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας

Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam

na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da

alma

Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos

instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo

mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes

mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais

como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se

apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta

a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo

a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as

noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura

tonal (II 1623-40)

Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα

διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ

θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος

μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα

εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν

ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ

τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ

πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν

περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον

θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον

ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι

13

Repuacuteblica 398c 14

Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)

29

δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς

τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν

οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν

ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt

Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela

sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute

feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais

do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua

tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se

descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade

e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por

gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito

debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde

participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira

participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros

intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua

natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar

cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza

iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo

interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam

familiares

No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os

instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o

dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em

que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria

dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado

por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da

muacutesica sobre a alma

O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro

245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo

ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees

superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da

regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo

anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto

ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees

hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm

pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15

15

Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida

(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a

associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre

medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente

que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento

que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a

30

Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite

(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os

nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm

unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses

nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo

masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria

Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo

residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real

manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo

um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas

entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do

universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os

planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros

26 A muacutesica das esferas

Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves

teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem

acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma

definiccedilatildeo (III 211-6)

Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν

ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ

φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον

τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν

διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει

Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o

feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e

amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o

esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de

sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo

AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero

proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute

elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza

(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas

antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura

que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo

31

Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os

planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e

femininas (III 216-40)

ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης

γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον

ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ

δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ

ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ

θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι

τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον

μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε

μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης

προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ

πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος

ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ

νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ

ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε

ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς

Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης

ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως

ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε

θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ

ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν

ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε

ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης

ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ

μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν

παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ

τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων

συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν

θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ

ἐπίπονος τὸν ἄρρενα

A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por

toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda

um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do

feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa

tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e

nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios

e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do

feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de

Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota

acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute

no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol

(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se

regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem

tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais

familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute

luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente

uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente

feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol

emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e

impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som

que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo

de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante

ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma

equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de

32

Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e

quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo

sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que

eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino

Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal

correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota

do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao

eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de

masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as

devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam

a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde

PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO

NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa

VOGAL ε α η ω α η Ω

Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a

meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o

eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe

apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por

outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela

soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim

seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo

ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas

pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo

Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco

pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter

especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a

correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e

as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como

essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda

oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de

Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido

Primeiro tetracorde Segundo tetracorde

33

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico

Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o

ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava

somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por

uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado

ou o ponto intermeacutedio

Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica

inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo

princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros

e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado

sob sua tutela

Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a

muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a

qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto

meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional

passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num

polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a

alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a

alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de

Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge

para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim

sucessivamente

Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua

organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata

da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se

reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical

os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura

da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual

o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado

primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas

mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro

torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim

dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16

16

Gueacutenon 1999 p23

34

No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser

dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de

analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre

regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos

incomensuraacuteveis

Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de

seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas

vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade

necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que

estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade

assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada

impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a

um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por

exemplo da lua e da alma

Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as

ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou

aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que

embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres

ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia

nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de

fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas

qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas

graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo

tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais

uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a

coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e

lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num

mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao

masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora

dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo

Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo

de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o

acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o

35

fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino

teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse

fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo

Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo

contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa

A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o

outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre

quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na

quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um

compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la

A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-

feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e

feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a

posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria

necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo

para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente

masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude

de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo

privativa

Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito

de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem

duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e

quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre

ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos

guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e

sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais

difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta

porosa uacutemida ou fechada

Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a

sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns

dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso

condiccedilotildees

Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo

naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem

36

necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas

se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou

outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)

Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo

condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de

fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees

associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o

caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute

necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa

objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da

mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos

dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do

iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num

patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado

intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos

individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo

Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees

de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam

somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre

esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes

noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre

relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma

espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila

Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos

loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou

analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ

ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)

A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas

relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse

processo igualmente uma relaccedilatildeo

Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et

du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee

notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas

moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux

celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou

encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de

nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui

37

exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est

en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le

plus petit comme analogue du plus grand)17

Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que

unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter

entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel

unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia

Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres

primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune

corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos

on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification

du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par

harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se

ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une

neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au

deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure

deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en

son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception

originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la

conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique

de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre

partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18

Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de

predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e

mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na

matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo

desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =

2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que

a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas

premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo

A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-

1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua

vez se apoiu em Aristoacuteteles19

) estabelece trecircs tipos de analogia20

A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o

termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo

17

Borella 2012 p23 18

Moutsopoulos 2004 p203-204 19

Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada

pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais

ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre

chez Aristote Paris PUF 1962 20

A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23

38

grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

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Page 24: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

24

πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα

δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν

ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως

ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt

κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ

λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν

μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ

ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν

ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο

καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως

ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα

φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt

νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται

πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται

τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ

γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων

καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις

σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα

καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ

ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ

Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute

captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as

letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete

examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra

as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e

masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons

mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute

masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois

nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o

ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o

som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige

que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o

alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da

sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua

estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado

intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta

quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino

quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa

na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a

exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta

trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do

alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior

parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo

lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses

examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos

constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e

terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons

semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros

Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais

nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas

internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para

isso novos paracircmetros

O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio

que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou

25

fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais

vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora

a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem

interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)

estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto

importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado

designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais

satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas

Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute

Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de

masculino e feminino em si mesmas10

Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos

remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a

esfericidade da alma11

(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash

mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso

Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves

a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon

feminino) refira-se justamente a esse arredondamento

As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em

razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas

(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua

ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente

relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal

O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do

eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os

extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo

masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo

entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da

verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o

10

Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido

Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo

metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das

observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11

Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De

Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por

que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora

o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo

26

sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo

entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta

Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo

verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave

segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo

lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros

Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro

obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo

excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no

solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)

Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ

εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί

τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες

ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ

αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων

περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ

τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν

τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς

πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ

ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ

λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος

διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt

εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους

διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν

λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ

πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν

μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν

Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente

passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega

satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se

articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que

o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam

intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez

sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por

intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos

dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de

acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos

da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam

No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido

com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das

vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o

ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons

que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida

vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava

em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos

posteriormente por que isso eacute assim

A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim

ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo

27

O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de

quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de

quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores

distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12

Do grave para o agudo (ou de

cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram

denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica

(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era

acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de

um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira

(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da

uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons

ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro

tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo

(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom

O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute

justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do

tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao

ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira

(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da

sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada

μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito

formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava

formado com a nota acrescida

Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada

tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou

agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por

eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)

Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει

κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ

τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν

πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ

θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα

γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά

12

Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2

T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)

28

Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao

masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos

em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram

dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os

sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no

entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da

passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes

Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave

formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo

decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso

ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como

o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13

os rechaccedilavam por

completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14

(II 1488-90)

περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς

παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας

Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam

na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da

alma

Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos

instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo

mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes

mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais

como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se

apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta

a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo

a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as

noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura

tonal (II 1623-40)

Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα

διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ

θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος

μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα

εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν

ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ

τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ

πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν

περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον

θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον

ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι

13

Repuacuteblica 398c 14

Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)

29

δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς

τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν

οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν

ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt

Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela

sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute

feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais

do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua

tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se

descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade

e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por

gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito

debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde

participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira

participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros

intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua

natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar

cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza

iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo

interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam

familiares

No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os

instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o

dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em

que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria

dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado

por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da

muacutesica sobre a alma

O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro

245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo

ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees

superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da

regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo

anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto

ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees

hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm

pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15

15

Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida

(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a

associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre

medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente

que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento

que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a

30

Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite

(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os

nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm

unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses

nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo

masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria

Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo

residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real

manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo

um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas

entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do

universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os

planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros

26 A muacutesica das esferas

Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves

teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem

acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma

definiccedilatildeo (III 211-6)

Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν

ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ

φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον

τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν

διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει

Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o

feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e

amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o

esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de

sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo

AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero

proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute

elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza

(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas

antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura

que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo

31

Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os

planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e

femininas (III 216-40)

ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης

γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον

ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ

δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ

ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ

θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι

τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον

μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε

μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης

προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ

πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος

ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ

νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ

ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε

ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς

Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης

ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως

ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε

θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ

ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν

ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε

ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης

ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ

μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν

παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ

τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων

συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν

θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ

ἐπίπονος τὸν ἄρρενα

A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por

toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda

um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do

feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa

tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e

nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios

e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do

feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de

Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota

acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute

no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol

(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se

regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem

tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais

familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute

luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente

uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente

feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol

emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e

impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som

que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo

de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante

ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma

equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de

32

Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e

quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo

sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que

eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino

Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal

correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota

do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao

eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de

masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as

devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam

a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde

PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO

NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa

VOGAL ε α η ω α η Ω

Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a

meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o

eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe

apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por

outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela

soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim

seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo

ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas

pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo

Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco

pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter

especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a

correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e

as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como

essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda

oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de

Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido

Primeiro tetracorde Segundo tetracorde

33

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico

Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o

ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava

somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por

uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado

ou o ponto intermeacutedio

Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica

inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo

princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros

e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado

sob sua tutela

Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a

muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a

qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto

meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional

passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num

polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a

alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a

alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de

Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge

para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim

sucessivamente

Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua

organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata

da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se

reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical

os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura

da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual

o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado

primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas

mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro

torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim

dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16

16

Gueacutenon 1999 p23

34

No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser

dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de

analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre

regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos

incomensuraacuteveis

Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de

seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas

vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade

necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que

estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade

assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada

impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a

um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por

exemplo da lua e da alma

Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as

ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou

aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que

embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres

ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia

nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de

fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas

qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas

graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo

tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais

uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a

coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e

lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num

mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao

masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora

dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo

Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo

de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o

acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o

35

fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino

teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse

fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo

Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo

contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa

A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o

outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre

quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na

quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um

compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la

A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-

feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e

feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a

posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria

necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo

para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente

masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude

de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo

privativa

Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito

de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem

duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e

quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre

ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos

guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e

sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais

difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta

porosa uacutemida ou fechada

Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a

sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns

dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso

condiccedilotildees

Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo

naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem

36

necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas

se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou

outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)

Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo

condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de

fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees

associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o

caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute

necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa

objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da

mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos

dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do

iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num

patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado

intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos

individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo

Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees

de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam

somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre

esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes

noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre

relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma

espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila

Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos

loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou

analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ

ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)

A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas

relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse

processo igualmente uma relaccedilatildeo

Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et

du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee

notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas

moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux

celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou

encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de

nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui

37

exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est

en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le

plus petit comme analogue du plus grand)17

Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que

unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter

entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel

unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia

Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres

primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune

corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos

on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification

du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par

harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se

ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une

neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au

deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure

deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en

son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception

originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la

conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique

de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre

partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18

Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de

predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e

mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na

matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo

desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =

2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que

a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas

premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo

A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-

1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua

vez se apoiu em Aristoacuteteles19

) estabelece trecircs tipos de analogia20

A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o

termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo

17

Borella 2012 p23 18

Moutsopoulos 2004 p203-204 19

Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada

pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais

ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre

chez Aristote Paris PUF 1962 20

A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23

38

grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

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Page 25: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

25

fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais

vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora

a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem

interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)

estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto

importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado

designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais

satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas

Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute

Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de

masculino e feminino em si mesmas10

Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos

remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a

esfericidade da alma11

(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash

mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso

Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves

a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon

feminino) refira-se justamente a esse arredondamento

As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em

razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas

(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua

ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente

relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal

O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do

eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os

extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo

masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo

entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da

verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o

10

Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido

Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo

metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das

observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11

Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De

Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por

que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora

o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo

26

sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo

entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta

Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo

verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave

segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo

lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros

Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro

obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo

excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no

solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)

Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ

εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί

τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες

ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ

αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων

περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ

τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν

τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς

πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ

ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ

λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος

διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt

εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους

διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν

λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ

πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν

μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν

Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente

passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega

satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se

articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que

o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam

intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez

sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por

intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos

dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de

acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos

da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam

No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido

com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das

vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o

ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons

que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida

vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava

em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos

posteriormente por que isso eacute assim

A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim

ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo

27

O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de

quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de

quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores

distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12

Do grave para o agudo (ou de

cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram

denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica

(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era

acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de

um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira

(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da

uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons

ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro

tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo

(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom

O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute

justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do

tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao

ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira

(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da

sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada

μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito

formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava

formado com a nota acrescida

Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada

tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou

agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por

eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)

Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει

κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ

τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν

πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ

θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα

γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά

12

Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2

T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)

28

Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao

masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos

em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram

dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os

sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no

entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da

passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes

Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave

formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo

decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso

ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como

o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13

os rechaccedilavam por

completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14

(II 1488-90)

περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς

παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας

Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam

na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da

alma

Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos

instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo

mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes

mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais

como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se

apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta

a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo

a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as

noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura

tonal (II 1623-40)

Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα

διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ

θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος

μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα

εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν

ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ

τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ

πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν

περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον

θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον

ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι

13

Repuacuteblica 398c 14

Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)

29

δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς

τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν

οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν

ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt

Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela

sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute

feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais

do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua

tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se

descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade

e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por

gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito

debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde

participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira

participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros

intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua

natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar

cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza

iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo

interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam

familiares

No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os

instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o

dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em

que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria

dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado

por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da

muacutesica sobre a alma

O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro

245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo

ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees

superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da

regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo

anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto

ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees

hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm

pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15

15

Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida

(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a

associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre

medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente

que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento

que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a

30

Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite

(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os

nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm

unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses

nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo

masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria

Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo

residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real

manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo

um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas

entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do

universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os

planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros

26 A muacutesica das esferas

Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves

teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem

acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma

definiccedilatildeo (III 211-6)

Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν

ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ

φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον

τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν

διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει

Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o

feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e

amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o

esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de

sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo

AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero

proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute

elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza

(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas

antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura

que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo

31

Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os

planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e

femininas (III 216-40)

ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης

γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον

ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ

δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ

ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ

θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι

τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον

μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε

μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης

προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ

πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος

ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ

νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ

ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε

ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς

Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης

ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως

ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε

θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ

ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν

ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε

ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης

ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ

μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν

παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ

τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων

συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν

θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ

ἐπίπονος τὸν ἄρρενα

A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por

toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda

um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do

feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa

tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e

nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios

e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do

feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de

Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota

acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute

no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol

(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se

regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem

tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais

familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute

luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente

uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente

feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol

emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e

impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som

que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo

de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante

ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma

equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de

32

Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e

quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo

sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que

eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino

Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal

correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota

do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao

eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de

masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as

devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam

a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde

PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO

NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa

VOGAL ε α η ω α η Ω

Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a

meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o

eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe

apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por

outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela

soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim

seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo

ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas

pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo

Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco

pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter

especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a

correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e

as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como

essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda

oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de

Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido

Primeiro tetracorde Segundo tetracorde

33

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico

Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o

ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava

somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por

uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado

ou o ponto intermeacutedio

Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica

inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo

princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros

e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado

sob sua tutela

Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a

muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a

qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto

meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional

passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num

polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a

alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a

alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de

Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge

para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim

sucessivamente

Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua

organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata

da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se

reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical

os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura

da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual

o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado

primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas

mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro

torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim

dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16

16

Gueacutenon 1999 p23

34

No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser

dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de

analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre

regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos

incomensuraacuteveis

Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de

seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas

vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade

necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que

estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade

assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada

impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a

um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por

exemplo da lua e da alma

Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as

ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou

aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que

embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres

ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia

nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de

fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas

qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas

graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo

tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais

uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a

coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e

lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num

mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao

masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora

dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo

Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo

de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o

acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o

35

fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino

teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse

fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo

Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo

contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa

A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o

outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre

quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na

quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um

compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la

A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-

feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e

feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a

posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria

necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo

para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente

masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude

de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo

privativa

Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito

de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem

duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e

quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre

ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos

guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e

sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais

difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta

porosa uacutemida ou fechada

Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a

sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns

dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso

condiccedilotildees

Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo

naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem

36

necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas

se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou

outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)

Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo

condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de

fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees

associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o

caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute

necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa

objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da

mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos

dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do

iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num

patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado

intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos

individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo

Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees

de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam

somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre

esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes

noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre

relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma

espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila

Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos

loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou

analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ

ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)

A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas

relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse

processo igualmente uma relaccedilatildeo

Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et

du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee

notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas

moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux

celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou

encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de

nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui

37

exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est

en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le

plus petit comme analogue du plus grand)17

Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que

unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter

entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel

unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia

Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres

primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune

corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos

on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification

du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par

harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se

ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une

neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au

deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure

deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en

son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception

originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la

conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique

de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre

partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18

Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de

predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e

mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na

matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo

desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =

2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que

a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas

premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo

A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-

1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua

vez se apoiu em Aristoacuteteles19

) estabelece trecircs tipos de analogia20

A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o

termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo

17

Borella 2012 p23 18

Moutsopoulos 2004 p203-204 19

Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada

pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais

ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre

chez Aristote Paris PUF 1962 20

A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23

38

grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

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Page 26: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

26

sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo

entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta

Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo

verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave

segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo

lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros

Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro

obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo

excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no

solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)

Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ

εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί

τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες

ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ

αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων

περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ

τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν

τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς

πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ

ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ

λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος

διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt

εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους

διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν

λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ

πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν

μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν

Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente

passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega

satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se

articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que

o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam

intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez

sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por

intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos

dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de

acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos

da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam

No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido

com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das

vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o

ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons

que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida

vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava

em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos

posteriormente por que isso eacute assim

A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim

ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo

27

O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de

quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de

quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores

distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12

Do grave para o agudo (ou de

cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram

denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica

(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era

acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de

um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira

(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da

uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons

ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro

tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo

(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom

O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute

justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do

tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao

ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira

(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da

sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada

μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito

formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava

formado com a nota acrescida

Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada

tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou

agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por

eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)

Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει

κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ

τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν

πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ

θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα

γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά

12

Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2

T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)

28

Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao

masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos

em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram

dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os

sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no

entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da

passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes

Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave

formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo

decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso

ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como

o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13

os rechaccedilavam por

completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14

(II 1488-90)

περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς

παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας

Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam

na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da

alma

Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos

instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo

mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes

mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais

como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se

apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta

a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo

a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as

noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura

tonal (II 1623-40)

Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα

διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ

θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος

μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα

εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν

ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ

τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ

πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν

περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον

θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον

ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι

13

Repuacuteblica 398c 14

Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)

29

δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς

τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν

οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν

ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt

Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela

sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute

feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais

do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua

tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se

descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade

e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por

gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito

debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde

participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira

participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros

intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua

natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar

cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza

iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo

interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam

familiares

No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os

instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o

dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em

que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria

dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado

por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da

muacutesica sobre a alma

O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro

245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo

ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees

superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da

regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo

anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto

ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees

hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm

pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15

15

Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida

(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a

associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre

medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente

que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento

que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a

30

Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite

(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os

nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm

unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses

nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo

masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria

Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo

residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real

manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo

um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas

entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do

universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os

planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros

26 A muacutesica das esferas

Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves

teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem

acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma

definiccedilatildeo (III 211-6)

Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν

ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ

φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον

τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν

διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει

Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o

feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e

amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o

esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de

sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo

AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero

proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute

elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza

(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas

antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura

que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo

31

Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os

planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e

femininas (III 216-40)

ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης

γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον

ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ

δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ

ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ

θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι

τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον

μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε

μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης

προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ

πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος

ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ

νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ

ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε

ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς

Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης

ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως

ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε

θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ

ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν

ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε

ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης

ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ

μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν

παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ

τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων

συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν

θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ

ἐπίπονος τὸν ἄρρενα

A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por

toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda

um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do

feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa

tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e

nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios

e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do

feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de

Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota

acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute

no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol

(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se

regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem

tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais

familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute

luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente

uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente

feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol

emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e

impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som

que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo

de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante

ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma

equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de

32

Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e

quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo

sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que

eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino

Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal

correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota

do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao

eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de

masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as

devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam

a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde

PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO

NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa

VOGAL ε α η ω α η Ω

Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a

meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o

eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe

apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por

outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela

soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim

seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo

ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas

pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo

Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco

pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter

especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a

correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e

as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como

essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda

oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de

Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido

Primeiro tetracorde Segundo tetracorde

33

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico

Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o

ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava

somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por

uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado

ou o ponto intermeacutedio

Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica

inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo

princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros

e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado

sob sua tutela

Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a

muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a

qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto

meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional

passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num

polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a

alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a

alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de

Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge

para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim

sucessivamente

Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua

organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata

da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se

reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical

os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura

da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual

o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado

primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas

mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro

torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim

dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16

16

Gueacutenon 1999 p23

34

No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser

dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de

analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre

regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos

incomensuraacuteveis

Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de

seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas

vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade

necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que

estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade

assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada

impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a

um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por

exemplo da lua e da alma

Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as

ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou

aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que

embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres

ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia

nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de

fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas

qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas

graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo

tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais

uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a

coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e

lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num

mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao

masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora

dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo

Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo

de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o

acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o

35

fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino

teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse

fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo

Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo

contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa

A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o

outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre

quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na

quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um

compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la

A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-

feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e

feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a

posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria

necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo

para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente

masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude

de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo

privativa

Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito

de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem

duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e

quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre

ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos

guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e

sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais

difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta

porosa uacutemida ou fechada

Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a

sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns

dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso

condiccedilotildees

Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo

naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem

36

necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas

se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou

outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)

Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo

condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de

fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees

associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o

caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute

necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa

objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da

mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos

dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do

iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num

patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado

intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos

individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo

Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees

de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam

somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre

esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes

noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre

relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma

espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila

Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos

loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou

analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ

ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)

A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas

relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse

processo igualmente uma relaccedilatildeo

Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et

du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee

notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas

moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux

celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou

encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de

nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui

37

exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est

en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le

plus petit comme analogue du plus grand)17

Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que

unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter

entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel

unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia

Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres

primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune

corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos

on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification

du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par

harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se

ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une

neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au

deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure

deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en

son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception

originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la

conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique

de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre

partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18

Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de

predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e

mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na

matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo

desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =

2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que

a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas

premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo

A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-

1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua

vez se apoiu em Aristoacuteteles19

) estabelece trecircs tipos de analogia20

A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o

termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo

17

Borella 2012 p23 18

Moutsopoulos 2004 p203-204 19

Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada

pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais

ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre

chez Aristote Paris PUF 1962 20

A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23

38

grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

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Page 27: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

27

O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de

quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de

quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores

distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12

Do grave para o agudo (ou de

cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram

denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica

(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era

acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de

um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira

(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da

uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons

ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro

tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo

(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom

O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute

justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do

tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao

ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira

(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da

sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada

μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito

formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava

formado com a nota acrescida

Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada

tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou

agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por

eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)

Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει

κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ

τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν

πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ

θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα

γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά

12

Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2

T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)

28

Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao

masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos

em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram

dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os

sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no

entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da

passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes

Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave

formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo

decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso

ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como

o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13

os rechaccedilavam por

completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14

(II 1488-90)

περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς

παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας

Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam

na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da

alma

Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos

instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo

mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes

mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais

como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se

apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta

a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo

a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as

noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura

tonal (II 1623-40)

Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα

διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ

θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος

μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα

εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν

ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ

τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ

πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν

περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον

θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον

ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι

13

Repuacuteblica 398c 14

Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)

29

δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς

τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν

οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν

ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt

Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela

sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute

feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais

do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua

tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se

descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade

e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por

gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito

debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde

participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira

participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros

intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua

natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar

cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza

iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo

interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam

familiares

No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os

instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o

dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em

que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria

dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado

por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da

muacutesica sobre a alma

O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro

245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo

ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees

superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da

regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo

anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto

ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees

hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm

pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15

15

Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida

(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a

associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre

medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente

que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento

que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a

30

Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite

(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os

nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm

unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses

nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo

masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria

Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo

residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real

manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo

um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas

entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do

universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os

planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros

26 A muacutesica das esferas

Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves

teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem

acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma

definiccedilatildeo (III 211-6)

Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν

ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ

φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον

τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν

διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει

Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o

feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e

amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o

esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de

sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo

AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero

proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute

elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza

(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas

antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura

que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo

31

Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os

planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e

femininas (III 216-40)

ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης

γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον

ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ

δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ

ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ

θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι

τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον

μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε

μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης

προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ

πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος

ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ

νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ

ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε

ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς

Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης

ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως

ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε

θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ

ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν

ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε

ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης

ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ

μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν

παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ

τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων

συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν

θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ

ἐπίπονος τὸν ἄρρενα

A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por

toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda

um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do

feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa

tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e

nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios

e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do

feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de

Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota

acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute

no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol

(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se

regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem

tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais

familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute

luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente

uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente

feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol

emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e

impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som

que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo

de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante

ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma

equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de

32

Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e

quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo

sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que

eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino

Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal

correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota

do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao

eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de

masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as

devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam

a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde

PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO

NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa

VOGAL ε α η ω α η Ω

Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a

meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o

eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe

apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por

outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela

soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim

seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo

ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas

pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo

Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco

pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter

especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a

correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e

as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como

essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda

oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de

Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido

Primeiro tetracorde Segundo tetracorde

33

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico

Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o

ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava

somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por

uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado

ou o ponto intermeacutedio

Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica

inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo

princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros

e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado

sob sua tutela

Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a

muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a

qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto

meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional

passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num

polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a

alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a

alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de

Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge

para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim

sucessivamente

Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua

organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata

da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se

reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical

os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura

da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual

o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado

primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas

mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro

torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim

dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16

16

Gueacutenon 1999 p23

34

No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser

dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de

analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre

regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos

incomensuraacuteveis

Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de

seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas

vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade

necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que

estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade

assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada

impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a

um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por

exemplo da lua e da alma

Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as

ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou

aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que

embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres

ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia

nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de

fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas

qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas

graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo

tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais

uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a

coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e

lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num

mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao

masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora

dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo

Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo

de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o

acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o

35

fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino

teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse

fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo

Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo

contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa

A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o

outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre

quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na

quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um

compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la

A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-

feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e

feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a

posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria

necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo

para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente

masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude

de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo

privativa

Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito

de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem

duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e

quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre

ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos

guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e

sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais

difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta

porosa uacutemida ou fechada

Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a

sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns

dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso

condiccedilotildees

Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo

naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem

36

necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas

se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou

outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)

Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo

condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de

fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees

associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o

caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute

necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa

objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da

mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos

dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do

iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num

patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado

intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos

individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo

Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees

de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam

somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre

esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes

noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre

relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma

espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila

Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos

loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou

analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ

ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)

A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas

relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse

processo igualmente uma relaccedilatildeo

Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et

du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee

notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas

moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux

celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou

encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de

nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui

37

exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est

en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le

plus petit comme analogue du plus grand)17

Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que

unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter

entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel

unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia

Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres

primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune

corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos

on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification

du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par

harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se

ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une

neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au

deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure

deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en

son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception

originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la

conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique

de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre

partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18

Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de

predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e

mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na

matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo

desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =

2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que

a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas

premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo

A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-

1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua

vez se apoiu em Aristoacuteteles19

) estabelece trecircs tipos de analogia20

A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o

termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo

17

Borella 2012 p23 18

Moutsopoulos 2004 p203-204 19

Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada

pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais

ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre

chez Aristote Paris PUF 1962 20

A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23

38

grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

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Page 28: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

28

Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao

masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos

em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram

dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os

sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no

entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da

passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes

Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave

formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo

decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso

ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como

o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13

os rechaccedilavam por

completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14

(II 1488-90)

περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς

παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας

Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam

na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da

alma

Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos

instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo

mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes

mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais

como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se

apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta

a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo

a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as

noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura

tonal (II 1623-40)

Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα

διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ

θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος

μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα

εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν

ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ

τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ

πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν

περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον

θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον

ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι

13

Repuacuteblica 398c 14

Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)

29

δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς

τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν

οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν

ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt

Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela

sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute

feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais

do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua

tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se

descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade

e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por

gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito

debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde

participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira

participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros

intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua

natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar

cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza

iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo

interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam

familiares

No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os

instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o

dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em

que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria

dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado

por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da

muacutesica sobre a alma

O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro

245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo

ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees

superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da

regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo

anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto

ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees

hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm

pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15

15

Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida

(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a

associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre

medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente

que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento

que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a

30

Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite

(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os

nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm

unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses

nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo

masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria

Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo

residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real

manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo

um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas

entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do

universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os

planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros

26 A muacutesica das esferas

Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves

teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem

acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma

definiccedilatildeo (III 211-6)

Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν

ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ

φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον

τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν

διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει

Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o

feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e

amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o

esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de

sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo

AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero

proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute

elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza

(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas

antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura

que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo

31

Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os

planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e

femininas (III 216-40)

ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης

γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον

ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ

δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ

ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ

θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι

τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον

μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε

μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης

προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ

πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος

ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ

νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ

ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε

ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς

Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης

ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως

ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε

θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ

ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν

ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε

ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης

ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ

μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν

παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ

τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων

συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν

θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ

ἐπίπονος τὸν ἄρρενα

A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por

toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda

um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do

feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa

tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e

nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios

e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do

feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de

Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota

acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute

no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol

(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se

regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem

tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais

familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute

luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente

uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente

feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol

emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e

impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som

que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo

de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante

ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma

equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de

32

Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e

quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo

sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que

eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino

Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal

correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota

do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao

eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de

masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as

devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam

a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde

PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO

NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa

VOGAL ε α η ω α η Ω

Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a

meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o

eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe

apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por

outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela

soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim

seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo

ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas

pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo

Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco

pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter

especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a

correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e

as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como

essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda

oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de

Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido

Primeiro tetracorde Segundo tetracorde

33

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico

Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o

ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava

somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por

uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado

ou o ponto intermeacutedio

Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica

inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo

princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros

e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado

sob sua tutela

Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a

muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a

qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto

meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional

passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num

polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a

alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a

alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de

Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge

para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim

sucessivamente

Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua

organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata

da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se

reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical

os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura

da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual

o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado

primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas

mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro

torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim

dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16

16

Gueacutenon 1999 p23

34

No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser

dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de

analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre

regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos

incomensuraacuteveis

Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de

seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas

vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade

necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que

estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade

assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada

impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a

um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por

exemplo da lua e da alma

Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as

ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou

aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que

embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres

ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia

nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de

fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas

qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas

graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo

tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais

uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a

coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e

lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num

mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao

masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora

dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo

Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo

de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o

acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o

35

fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino

teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse

fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo

Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo

contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa

A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o

outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre

quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na

quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um

compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la

A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-

feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e

feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a

posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria

necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo

para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente

masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude

de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo

privativa

Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito

de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem

duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e

quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre

ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos

guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e

sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais

difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta

porosa uacutemida ou fechada

Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a

sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns

dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso

condiccedilotildees

Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo

naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem

36

necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas

se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou

outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)

Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo

condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de

fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees

associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o

caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute

necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa

objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da

mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos

dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do

iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num

patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado

intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos

individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo

Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees

de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam

somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre

esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes

noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre

relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma

espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila

Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos

loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou

analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ

ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)

A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas

relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse

processo igualmente uma relaccedilatildeo

Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et

du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee

notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas

moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux

celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou

encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de

nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui

37

exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est

en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le

plus petit comme analogue du plus grand)17

Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que

unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter

entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel

unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia

Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres

primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune

corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos

on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification

du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par

harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se

ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une

neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au

deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure

deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en

son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception

originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la

conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique

de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre

partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18

Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de

predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e

mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na

matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo

desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =

2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que

a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas

premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo

A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-

1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua

vez se apoiu em Aristoacuteteles19

) estabelece trecircs tipos de analogia20

A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o

termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo

17

Borella 2012 p23 18

Moutsopoulos 2004 p203-204 19

Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada

pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais

ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre

chez Aristote Paris PUF 1962 20

A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23

38

grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

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Page 29: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

29

δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς

τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν

οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν

ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt

Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela

sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute

feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais

do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua

tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se

descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade

e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por

gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito

debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde

participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira

participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros

intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua

natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar

cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza

iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo

interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam

familiares

No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os

instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o

dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em

que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria

dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado

por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da

muacutesica sobre a alma

O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro

245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo

ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees

superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da

regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo

anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto

ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees

hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm

pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15

15

Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida

(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a

associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre

medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente

que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento

que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a

30

Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite

(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os

nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm

unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses

nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo

masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria

Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo

residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real

manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo

um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas

entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do

universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os

planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros

26 A muacutesica das esferas

Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves

teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem

acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma

definiccedilatildeo (III 211-6)

Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν

ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ

φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον

τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν

διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει

Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o

feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e

amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o

esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de

sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo

AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero

proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute

elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza

(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas

antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura

que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo

31

Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os

planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e

femininas (III 216-40)

ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης

γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον

ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ

δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ

ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ

θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι

τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον

μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε

μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης

προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ

πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος

ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ

νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ

ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε

ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς

Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης

ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως

ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε

θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ

ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν

ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε

ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης

ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ

μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν

παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ

τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων

συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν

θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ

ἐπίπονος τὸν ἄρρενα

A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por

toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda

um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do

feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa

tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e

nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios

e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do

feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de

Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota

acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute

no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol

(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se

regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem

tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais

familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute

luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente

uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente

feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol

emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e

impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som

que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo

de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante

ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma

equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de

32

Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e

quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo

sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que

eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino

Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal

correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota

do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao

eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de

masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as

devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam

a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde

PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO

NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa

VOGAL ε α η ω α η Ω

Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a

meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o

eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe

apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por

outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela

soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim

seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo

ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas

pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo

Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco

pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter

especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a

correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e

as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como

essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda

oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de

Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido

Primeiro tetracorde Segundo tetracorde

33

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico

Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o

ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava

somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por

uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado

ou o ponto intermeacutedio

Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica

inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo

princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros

e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado

sob sua tutela

Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a

muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a

qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto

meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional

passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num

polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a

alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a

alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de

Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge

para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim

sucessivamente

Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua

organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata

da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se

reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical

os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura

da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual

o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado

primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas

mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro

torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim

dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16

16

Gueacutenon 1999 p23

34

No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser

dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de

analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre

regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos

incomensuraacuteveis

Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de

seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas

vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade

necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que

estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade

assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada

impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a

um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por

exemplo da lua e da alma

Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as

ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou

aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que

embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres

ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia

nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de

fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas

qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas

graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo

tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais

uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a

coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e

lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num

mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao

masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora

dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo

Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo

de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o

acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o

35

fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino

teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse

fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo

Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo

contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa

A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o

outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre

quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na

quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um

compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la

A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-

feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e

feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a

posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria

necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo

para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente

masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude

de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo

privativa

Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito

de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem

duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e

quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre

ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos

guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e

sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais

difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta

porosa uacutemida ou fechada

Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a

sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns

dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso

condiccedilotildees

Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo

naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem

36

necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas

se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou

outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)

Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo

condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de

fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees

associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o

caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute

necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa

objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da

mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos

dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do

iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num

patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado

intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos

individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo

Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees

de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam

somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre

esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes

noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre

relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma

espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila

Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos

loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou

analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ

ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)

A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas

relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse

processo igualmente uma relaccedilatildeo

Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et

du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee

notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas

moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux

celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou

encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de

nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui

37

exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est

en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le

plus petit comme analogue du plus grand)17

Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que

unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter

entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel

unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia

Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres

primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune

corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos

on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification

du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par

harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se

ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une

neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au

deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure

deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en

son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception

originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la

conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique

de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre

partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18

Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de

predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e

mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na

matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo

desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =

2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que

a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas

premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo

A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-

1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua

vez se apoiu em Aristoacuteteles19

) estabelece trecircs tipos de analogia20

A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o

termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo

17

Borella 2012 p23 18

Moutsopoulos 2004 p203-204 19

Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada

pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais

ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre

chez Aristote Paris PUF 1962 20

A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23

38

grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

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Page 30: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

30

Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite

(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os

nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm

unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses

nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo

masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria

Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo

residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real

manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo

um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas

entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do

universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os

planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros

26 A muacutesica das esferas

Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves

teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem

acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma

definiccedilatildeo (III 211-6)

Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν

ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ

φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον

τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν

διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει

Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o

feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e

amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o

esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de

sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo

AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero

proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute

elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza

(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas

antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura

que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo

31

Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os

planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e

femininas (III 216-40)

ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης

γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον

ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ

δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ

ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ

θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι

τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον

μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε

μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης

προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ

πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος

ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ

νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ

ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε

ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς

Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης

ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως

ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε

θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ

ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν

ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε

ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης

ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ

μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν

παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ

τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων

συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν

θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ

ἐπίπονος τὸν ἄρρενα

A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por

toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda

um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do

feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa

tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e

nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios

e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do

feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de

Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota

acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute

no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol

(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se

regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem

tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais

familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute

luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente

uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente

feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol

emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e

impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som

que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo

de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante

ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma

equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de

32

Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e

quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo

sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que

eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino

Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal

correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota

do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao

eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de

masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as

devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam

a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde

PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO

NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa

VOGAL ε α η ω α η Ω

Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a

meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o

eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe

apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por

outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela

soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim

seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo

ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas

pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo

Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco

pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter

especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a

correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e

as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como

essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda

oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de

Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido

Primeiro tetracorde Segundo tetracorde

33

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico

Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o

ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava

somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por

uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado

ou o ponto intermeacutedio

Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica

inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo

princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros

e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado

sob sua tutela

Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a

muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a

qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto

meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional

passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num

polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a

alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a

alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de

Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge

para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim

sucessivamente

Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua

organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata

da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se

reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical

os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura

da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual

o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado

primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas

mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro

torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim

dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16

16

Gueacutenon 1999 p23

34

No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser

dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de

analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre

regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos

incomensuraacuteveis

Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de

seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas

vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade

necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que

estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade

assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada

impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a

um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por

exemplo da lua e da alma

Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as

ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou

aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que

embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres

ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia

nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de

fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas

qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas

graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo

tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais

uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a

coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e

lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num

mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao

masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora

dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo

Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo

de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o

acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o

35

fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino

teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse

fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo

Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo

contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa

A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o

outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre

quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na

quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um

compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la

A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-

feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e

feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a

posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria

necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo

para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente

masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude

de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo

privativa

Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito

de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem

duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e

quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre

ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos

guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e

sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais

difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta

porosa uacutemida ou fechada

Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a

sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns

dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso

condiccedilotildees

Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo

naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem

36

necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas

se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou

outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)

Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo

condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de

fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees

associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o

caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute

necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa

objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da

mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos

dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do

iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num

patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado

intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos

individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo

Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees

de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam

somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre

esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes

noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre

relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma

espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila

Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos

loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou

analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ

ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)

A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas

relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse

processo igualmente uma relaccedilatildeo

Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et

du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee

notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas

moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux

celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou

encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de

nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui

37

exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est

en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le

plus petit comme analogue du plus grand)17

Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que

unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter

entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel

unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia

Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres

primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune

corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos

on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification

du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par

harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se

ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une

neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au

deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure

deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en

son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception

originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la

conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique

de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre

partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18

Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de

predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e

mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na

matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo

desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =

2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que

a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas

premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo

A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-

1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua

vez se apoiu em Aristoacuteteles19

) estabelece trecircs tipos de analogia20

A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o

termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo

17

Borella 2012 p23 18

Moutsopoulos 2004 p203-204 19

Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada

pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais

ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre

chez Aristote Paris PUF 1962 20

A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23

38

grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

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Page 31: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

31

Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os

planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e

femininas (III 216-40)

ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης

γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον

ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ

δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ

ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ

θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι

τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον

μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε

μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης

προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ

πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος

ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ

νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ

ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε

ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς

Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης

ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως

ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε

θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ

ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν

ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε

ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης

ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ

μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν

παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ

τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων

συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν

θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ

ἐπίπονος τὸν ἄρρενα

A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por

toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda

um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do

feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa

tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e

nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios

e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do

feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de

Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota

acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute

no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol

(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se

regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem

tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais

familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute

luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente

uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente

feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol

emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e

impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som

que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo

de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante

ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma

equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de

32

Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e

quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo

sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que

eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino

Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal

correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota

do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao

eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de

masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as

devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam

a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde

PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO

NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa

VOGAL ε α η ω α η Ω

Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a

meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o

eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe

apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por

outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela

soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim

seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo

ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas

pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo

Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco

pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter

especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a

correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e

as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como

essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda

oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de

Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido

Primeiro tetracorde Segundo tetracorde

33

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico

Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o

ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava

somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por

uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado

ou o ponto intermeacutedio

Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica

inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo

princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros

e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado

sob sua tutela

Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a

muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a

qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto

meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional

passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num

polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a

alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a

alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de

Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge

para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim

sucessivamente

Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua

organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata

da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se

reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical

os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura

da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual

o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado

primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas

mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro

torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim

dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16

16

Gueacutenon 1999 p23

34

No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser

dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de

analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre

regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos

incomensuraacuteveis

Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de

seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas

vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade

necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que

estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade

assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada

impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a

um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por

exemplo da lua e da alma

Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as

ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou

aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que

embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres

ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia

nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de

fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas

qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas

graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo

tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais

uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a

coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e

lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num

mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao

masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora

dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo

Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo

de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o

acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o

35

fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino

teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse

fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo

Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo

contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa

A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o

outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre

quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na

quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um

compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la

A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-

feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e

feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a

posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria

necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo

para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente

masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude

de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo

privativa

Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito

de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem

duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e

quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre

ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos

guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e

sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais

difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta

porosa uacutemida ou fechada

Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a

sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns

dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso

condiccedilotildees

Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo

naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem

36

necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas

se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou

outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)

Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo

condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de

fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees

associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o

caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute

necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa

objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da

mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos

dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do

iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num

patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado

intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos

individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo

Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees

de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam

somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre

esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes

noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre

relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma

espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila

Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos

loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou

analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ

ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)

A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas

relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse

processo igualmente uma relaccedilatildeo

Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et

du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee

notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas

moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux

celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou

encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de

nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui

37

exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est

en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le

plus petit comme analogue du plus grand)17

Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que

unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter

entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel

unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia

Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres

primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune

corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos

on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification

du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par

harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se

ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une

neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au

deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure

deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en

son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception

originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la

conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique

de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre

partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18

Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de

predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e

mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na

matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo

desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =

2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que

a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas

premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo

A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-

1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua

vez se apoiu em Aristoacuteteles19

) estabelece trecircs tipos de analogia20

A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o

termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo

17

Borella 2012 p23 18

Moutsopoulos 2004 p203-204 19

Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada

pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais

ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre

chez Aristote Paris PUF 1962 20

A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23

38

grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

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Page 32: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

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Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e

quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo

sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que

eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino

Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal

correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota

do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao

eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de

masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as

devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam

a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde

PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO

NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa

VOGAL ε α η ω α η Ω

Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a

meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o

eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe

apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por

outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela

soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim

seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo

ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas

pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre

masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo

Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco

pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter

especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a

correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e

as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como

essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda

oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de

Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido

Primeiro tetracorde Segundo tetracorde

33

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico

Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o

ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava

somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por

uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado

ou o ponto intermeacutedio

Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica

inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo

princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros

e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado

sob sua tutela

Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a

muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a

qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto

meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional

passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num

polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a

alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a

alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de

Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge

para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim

sucessivamente

Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua

organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata

da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se

reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical

os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura

da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual

o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado

primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas

mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro

torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim

dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16

16

Gueacutenon 1999 p23

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No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser

dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de

analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre

regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos

incomensuraacuteveis

Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de

seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas

vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade

necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que

estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade

assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada

impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a

um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por

exemplo da lua e da alma

Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as

ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou

aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que

embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres

ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia

nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de

fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas

qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas

graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo

tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais

uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a

coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e

lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num

mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao

masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora

dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo

Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo

de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o

acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o

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fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino

teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse

fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo

Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo

contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa

A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o

outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre

quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na

quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um

compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la

A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-

feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e

feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a

posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria

necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo

para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente

masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude

de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo

privativa

Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito

de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem

duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e

quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre

ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos

guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e

sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais

difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta

porosa uacutemida ou fechada

Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a

sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns

dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso

condiccedilotildees

Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo

naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem

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necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas

se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou

outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)

Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo

condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de

fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees

associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o

caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute

necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa

objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da

mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos

dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do

iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num

patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado

intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos

individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo

Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees

de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam

somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre

esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes

noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre

relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma

espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila

Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos

loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou

analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ

ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)

A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas

relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse

processo igualmente uma relaccedilatildeo

Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et

du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee

notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas

moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux

celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou

encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de

nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui

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exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est

en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le

plus petit comme analogue du plus grand)17

Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que

unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter

entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel

unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia

Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres

primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune

corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos

on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification

du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par

harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se

ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une

neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au

deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure

deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en

son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception

originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la

conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique

de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre

partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18

Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de

predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e

mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na

matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo

desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =

2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que

a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas

premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo

A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-

1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua

vez se apoiu em Aristoacuteteles19

) estabelece trecircs tipos de analogia20

A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o

termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo

17

Borella 2012 p23 18

Moutsopoulos 2004 p203-204 19

Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada

pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais

ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre

chez Aristote Paris PUF 1962 20

A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23

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grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

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Page 33: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

33

3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico

Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o

ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava

somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por

uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado

ou o ponto intermeacutedio

Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica

inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo

princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros

e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado

sob sua tutela

Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a

muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a

qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto

meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional

passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num

polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a

alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a

alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de

Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge

para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim

sucessivamente

Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua

organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata

da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se

reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical

os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura

da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual

o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado

primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas

mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro

torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim

dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16

16

Gueacutenon 1999 p23

34

No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser

dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de

analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre

regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos

incomensuraacuteveis

Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de

seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas

vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade

necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que

estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade

assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada

impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a

um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por

exemplo da lua e da alma

Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as

ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou

aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que

embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres

ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia

nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de

fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas

qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas

graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo

tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais

uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a

coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e

lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num

mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao

masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora

dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo

Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo

de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o

acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o

35

fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino

teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse

fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo

Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo

contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa

A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o

outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre

quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na

quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um

compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la

A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-

feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e

feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a

posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria

necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo

para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente

masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude

de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo

privativa

Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito

de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem

duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e

quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre

ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos

guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e

sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais

difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta

porosa uacutemida ou fechada

Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a

sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns

dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso

condiccedilotildees

Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo

naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem

36

necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas

se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou

outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)

Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo

condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de

fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees

associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o

caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute

necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa

objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da

mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos

dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do

iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num

patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado

intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos

individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo

Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees

de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam

somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre

esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes

noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre

relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma

espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila

Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos

loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou

analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ

ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)

A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas

relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse

processo igualmente uma relaccedilatildeo

Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et

du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee

notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas

moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux

celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou

encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de

nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui

37

exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est

en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le

plus petit comme analogue du plus grand)17

Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que

unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter

entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel

unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia

Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres

primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune

corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos

on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification

du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par

harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se

ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une

neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au

deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure

deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en

son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception

originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la

conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique

de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre

partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18

Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de

predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e

mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na

matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo

desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =

2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que

a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas

premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo

A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-

1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua

vez se apoiu em Aristoacuteteles19

) estabelece trecircs tipos de analogia20

A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o

termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo

17

Borella 2012 p23 18

Moutsopoulos 2004 p203-204 19

Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada

pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais

ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre

chez Aristote Paris PUF 1962 20

A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23

38

grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

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Page 34: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

34

No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser

dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de

analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre

regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos

incomensuraacuteveis

Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de

seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas

vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade

necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que

estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade

assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada

impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a

um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por

exemplo da lua e da alma

Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as

ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou

aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que

embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres

ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia

nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de

fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas

qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas

graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo

tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais

uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a

coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e

lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num

mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao

masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora

dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo

Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo

de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o

acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o

35

fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino

teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse

fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo

Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo

contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa

A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o

outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre

quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na

quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um

compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la

A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-

feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e

feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a

posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria

necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo

para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente

masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude

de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo

privativa

Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito

de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem

duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e

quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre

ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos

guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e

sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais

difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta

porosa uacutemida ou fechada

Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a

sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns

dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso

condiccedilotildees

Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo

naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem

36

necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas

se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou

outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)

Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo

condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de

fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees

associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o

caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute

necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa

objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da

mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos

dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do

iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num

patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado

intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos

individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo

Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees

de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam

somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre

esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes

noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre

relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma

espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila

Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos

loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou

analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ

ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)

A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas

relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse

processo igualmente uma relaccedilatildeo

Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et

du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee

notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas

moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux

celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou

encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de

nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui

37

exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est

en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le

plus petit comme analogue du plus grand)17

Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que

unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter

entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel

unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia

Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres

primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune

corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos

on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification

du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par

harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se

ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une

neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au

deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure

deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en

son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception

originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la

conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique

de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre

partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18

Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de

predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e

mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na

matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo

desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =

2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que

a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas

premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo

A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-

1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua

vez se apoiu em Aristoacuteteles19

) estabelece trecircs tipos de analogia20

A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o

termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo

17

Borella 2012 p23 18

Moutsopoulos 2004 p203-204 19

Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada

pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais

ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre

chez Aristote Paris PUF 1962 20

A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23

38

grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

BIBLIOGRAFIA

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[19--]

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Page 35: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

35

fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino

teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse

fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo

Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo

contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa

A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o

outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre

quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na

quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um

compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la

A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-

feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e

feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a

posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria

necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo

para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente

masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude

de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo

privativa

Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito

de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem

duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e

quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre

ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos

guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e

sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais

difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta

porosa uacutemida ou fechada

Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a

sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns

dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso

condiccedilotildees

Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo

naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem

36

necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas

se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou

outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)

Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo

condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de

fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees

associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o

caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute

necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa

objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da

mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos

dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do

iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num

patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado

intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos

individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo

Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees

de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam

somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre

esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes

noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre

relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma

espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila

Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos

loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou

analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ

ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)

A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas

relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse

processo igualmente uma relaccedilatildeo

Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et

du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee

notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas

moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux

celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou

encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de

nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui

37

exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est

en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le

plus petit comme analogue du plus grand)17

Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que

unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter

entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel

unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia

Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres

primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune

corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos

on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification

du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par

harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se

ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une

neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au

deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure

deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en

son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception

originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la

conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique

de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre

partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18

Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de

predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e

mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na

matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo

desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =

2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que

a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas

premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo

A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-

1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua

vez se apoiu em Aristoacuteteles19

) estabelece trecircs tipos de analogia20

A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o

termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo

17

Borella 2012 p23 18

Moutsopoulos 2004 p203-204 19

Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada

pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais

ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre

chez Aristote Paris PUF 1962 20

A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23

38

grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

BIBLIOGRAFIA

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo de Leonel Vallandro Porto Alegre Editora Globo

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Page 36: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

36

necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas

se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou

outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)

Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo

condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de

fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees

associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o

caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute

necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa

objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da

mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos

dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do

iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num

patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado

intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos

individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo

Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees

de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam

somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre

esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes

noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre

relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma

espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila

Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos

loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou

analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ

ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)

A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas

relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse

processo igualmente uma relaccedilatildeo

Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et

du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee

notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas

moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux

celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou

encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de

nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui

37

exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est

en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le

plus petit comme analogue du plus grand)17

Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que

unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter

entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel

unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia

Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres

primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune

corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos

on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification

du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par

harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se

ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une

neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au

deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure

deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en

son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception

originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la

conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique

de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre

partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18

Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de

predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e

mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na

matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo

desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =

2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que

a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas

premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo

A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-

1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua

vez se apoiu em Aristoacuteteles19

) estabelece trecircs tipos de analogia20

A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o

termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo

17

Borella 2012 p23 18

Moutsopoulos 2004 p203-204 19

Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada

pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais

ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre

chez Aristote Paris PUF 1962 20

A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23

38

grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

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4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

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LALANDE Andreacute Vocabulaacuterio teacutecnico e criacutetico da filosofia Satildeo Paulo Martins Fontes

1996

McINERNY Ralph M The logic of analogy an interpretation of St Tomas Haia Martinus

Nijhoff 1961

MOUTSOPOULOS E La philosophie de la musique dans le systegraveme de Proclus Athegravenes

Acad De Athegravenes 2004

44

QUINTILIANO Ariacutestides Sobre la muacutesica Introduccioacuten traduccioacuten y notas de Luis

Colomber y Begontildea Gil Madrid Editoral Gredos 1996

______________________ On Music in three books Translation introduction commentary

and annotations by Thomas J Mathiesen Yale University Press 1983

______________________ Aristidis Quintiliani de musica libri tres Reginald Pepys

Winnington-Ingram (ed) Lipsiae Teubner 1963

REINACH Theacuteodore A muacutesica grega Satildeo Paulo Perspectiva 2011

ROCHA R A Sobre a muacutesica In SOARES Carmen ROCHA Roosevelt Plutarco obras

morais Coimbra Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos 2010 p63-237

ROUGIER Louis A religiatildeo astral dos pitagoacutericos Trad De Aydano Arruda Satildeo Paulo

Ibrasa 1990

WEST M L Ancient greek music New York Oxford University Press 1994

Page 37: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

37

exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est

en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le

plus petit comme analogue du plus grand)17

Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que

unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter

entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel

unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia

Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres

primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune

corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos

on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification

du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par

harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se

ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une

neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au

deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure

deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en

son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception

originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la

conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique

de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre

partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18

Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de

predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e

mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na

matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo

desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =

2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que

a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas

premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo

A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-

1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua

vez se apoiu em Aristoacuteteles19

) estabelece trecircs tipos de analogia20

A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o

termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo

17

Borella 2012 p23 18

Moutsopoulos 2004 p203-204 19

Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada

pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais

ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre

chez Aristote Paris PUF 1962 20

A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23

38

grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

BIBLIOGRAFIA

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo de Leonel Vallandro Porto Alegre Editora Globo

[19--]

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WEST M L Ancient greek music New York Oxford University Press 1994

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grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo

da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais

mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um

homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente

Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os

seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas

passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No

entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou

submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais

masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais

nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro

(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no

caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar

da natureza masculina ou feminina

Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De

fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um

boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta

pelos escotistas21

a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos

quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da

univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes

sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia

O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial

interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos

quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute

analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso

por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade

poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos

animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica

de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem

heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela

qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica

21

Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

BIBLIOGRAFIA

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo de Leonel Vallandro Porto Alegre Editora Globo

[19--]

_____________ Oacuterganon Categorias Da interpretaccedilatildeo Analiacuteticos Anteriores Analiacuteticos

Posteriores Toacutepicos Refutaccedilotildees sofiacutesticas Trad e notas de Edson Bini Bauru SP Edipro

2005

____________ Das Categorias Trad notas e comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos Satildeo

Paulo Matese 1965

____________ Eacutetica a Nicocircmaco Trad introduccedilatildeo e notas de Maacuterio da Gama Kury

Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2001

BARKER Andrew Greek music writings vol02 harmonic and acoustic theory Cambridge

Cambridge University Press 1990

BORELLA Jean Penser lrsquoanalogie Paris LrsquoHarmattan 2012

BRISSON Luc PRADEAU Jean-Franccedilois Vocabulaacuterio de Platatildeo Traduccedilatildeo Claudia

Berliner Satildeo Paulo Martins Fontes 2010

BURNET John O despertar da filosofia grega Trad Mauro Gama Satildeo Paulo Siciliano

1994

CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-kagathiacutea

Classica (Brasil) 2412 73-85 2011

CHAPANSKI Gissele Uma traduccedilatildeo da Tekhne Grammatike de Dioniacutesio Traacutecio para o

portuguecircs 2003 190f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras) ndash Universidade Federal do Paranaacute

Paranaacute 2003

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio grego da filosofia Traduccedilatildeo Ivone C Benedetti Satildeo Paulo

Martins Fontes 2007

GUEacuteNON Reneacute A grande triacuteade Satildeo Paulo Pensamento 1999

LALANDE Andreacute Vocabulaacuterio teacutecnico e criacutetico da filosofia Satildeo Paulo Martins Fontes

1996

McINERNY Ralph M The logic of analogy an interpretation of St Tomas Haia Martinus

Nijhoff 1961

MOUTSOPOULOS E La philosophie de la musique dans le systegraveme de Proclus Athegravenes

Acad De Athegravenes 2004

44

QUINTILIANO Ariacutestides Sobre la muacutesica Introduccioacuten traduccioacuten y notas de Luis

Colomber y Begontildea Gil Madrid Editoral Gredos 1996

______________________ On Music in three books Translation introduction commentary

and annotations by Thomas J Mathiesen Yale University Press 1983

______________________ Aristidis Quintiliani de musica libri tres Reginald Pepys

Winnington-Ingram (ed) Lipsiae Teubner 1963

REINACH Theacuteodore A muacutesica grega Satildeo Paulo Perspectiva 2011

ROCHA R A Sobre a muacutesica In SOARES Carmen ROCHA Roosevelt Plutarco obras

morais Coimbra Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos 2010 p63-237

ROUGIER Louis A religiatildeo astral dos pitagoacutericos Trad De Aydano Arruda Satildeo Paulo

Ibrasa 1990

WEST M L Ancient greek music New York Oxford University Press 1994

Page 39: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

39

Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que

a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque

metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os

analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in

fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um

animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de

proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo

ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por

meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o

corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo

intelectualrdquo e outras

Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute

ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de

Arquitas22

(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia

(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem

chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a

princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23

a

exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar

ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes

sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de

cette meacutedieacuteteacuterdquo24

Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos

implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo

Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo

matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos

contiacutenua ou descontiacutenua

A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab

= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo

o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino

Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C

estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma

desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave

22

Borella 2012 p 26 23

Borella 2012 p 27 24

Op cit loc cit

40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

BIBLIOGRAFIA

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo de Leonel Vallandro Porto Alegre Editora Globo

[19--]

_____________ Oacuterganon Categorias Da interpretaccedilatildeo Analiacuteticos Anteriores Analiacuteticos

Posteriores Toacutepicos Refutaccedilotildees sofiacutesticas Trad e notas de Edson Bini Bauru SP Edipro

2005

____________ Das Categorias Trad notas e comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos Satildeo

Paulo Matese 1965

____________ Eacutetica a Nicocircmaco Trad introduccedilatildeo e notas de Maacuterio da Gama Kury

Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2001

BARKER Andrew Greek music writings vol02 harmonic and acoustic theory Cambridge

Cambridge University Press 1990

BORELLA Jean Penser lrsquoanalogie Paris LrsquoHarmattan 2012

BRISSON Luc PRADEAU Jean-Franccedilois Vocabulaacuterio de Platatildeo Traduccedilatildeo Claudia

Berliner Satildeo Paulo Martins Fontes 2010

BURNET John O despertar da filosofia grega Trad Mauro Gama Satildeo Paulo Siciliano

1994

CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-kagathiacutea

Classica (Brasil) 2412 73-85 2011

CHAPANSKI Gissele Uma traduccedilatildeo da Tekhne Grammatike de Dioniacutesio Traacutecio para o

portuguecircs 2003 190f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras) ndash Universidade Federal do Paranaacute

Paranaacute 2003

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio grego da filosofia Traduccedilatildeo Ivone C Benedetti Satildeo Paulo

Martins Fontes 2007

GUEacuteNON Reneacute A grande triacuteade Satildeo Paulo Pensamento 1999

LALANDE Andreacute Vocabulaacuterio teacutecnico e criacutetico da filosofia Satildeo Paulo Martins Fontes

1996

McINERNY Ralph M The logic of analogy an interpretation of St Tomas Haia Martinus

Nijhoff 1961

MOUTSOPOULOS E La philosophie de la musique dans le systegraveme de Proclus Athegravenes

Acad De Athegravenes 2004

44

QUINTILIANO Ariacutestides Sobre la muacutesica Introduccioacuten traduccioacuten y notas de Luis

Colomber y Begontildea Gil Madrid Editoral Gredos 1996

______________________ On Music in three books Translation introduction commentary

and annotations by Thomas J Mathiesen Yale University Press 1983

______________________ Aristidis Quintiliani de musica libri tres Reginald Pepys

Winnington-Ingram (ed) Lipsiae Teubner 1963

REINACH Theacuteodore A muacutesica grega Satildeo Paulo Perspectiva 2011

ROCHA R A Sobre a muacutesica In SOARES Carmen ROCHA Roosevelt Plutarco obras

morais Coimbra Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos 2010 p63-237

ROUGIER Louis A religiatildeo astral dos pitagoacutericos Trad De Aydano Arruda Satildeo Paulo

Ibrasa 1990

WEST M L Ancient greek music New York Oxford University Press 1994

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40

alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e

depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os

demais planetas25

Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a

medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees

do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar

o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira

conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira

E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome

porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda

Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum

attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est

eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por

atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o

mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse

termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao

animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o

remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede

A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No

entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em

sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela

Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um

analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente

Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas

dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios

estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado

primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio

tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas

Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do

emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o

ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso

desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute

25

Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados

mediante um termo meacutedio

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

42

4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

BIBLIOGRAFIA

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo de Leonel Vallandro Porto Alegre Editora Globo

[19--]

_____________ Oacuterganon Categorias Da interpretaccedilatildeo Analiacuteticos Anteriores Analiacuteticos

Posteriores Toacutepicos Refutaccedilotildees sofiacutesticas Trad e notas de Edson Bini Bauru SP Edipro

2005

____________ Das Categorias Trad notas e comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos Satildeo

Paulo Matese 1965

____________ Eacutetica a Nicocircmaco Trad introduccedilatildeo e notas de Maacuterio da Gama Kury

Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2001

BARKER Andrew Greek music writings vol02 harmonic and acoustic theory Cambridge

Cambridge University Press 1990

BORELLA Jean Penser lrsquoanalogie Paris LrsquoHarmattan 2012

BRISSON Luc PRADEAU Jean-Franccedilois Vocabulaacuterio de Platatildeo Traduccedilatildeo Claudia

Berliner Satildeo Paulo Martins Fontes 2010

BURNET John O despertar da filosofia grega Trad Mauro Gama Satildeo Paulo Siciliano

1994

CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-kagathiacutea

Classica (Brasil) 2412 73-85 2011

CHAPANSKI Gissele Uma traduccedilatildeo da Tekhne Grammatike de Dioniacutesio Traacutecio para o

portuguecircs 2003 190f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras) ndash Universidade Federal do Paranaacute

Paranaacute 2003

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio grego da filosofia Traduccedilatildeo Ivone C Benedetti Satildeo Paulo

Martins Fontes 2007

GUEacuteNON Reneacute A grande triacuteade Satildeo Paulo Pensamento 1999

LALANDE Andreacute Vocabulaacuterio teacutecnico e criacutetico da filosofia Satildeo Paulo Martins Fontes

1996

McINERNY Ralph M The logic of analogy an interpretation of St Tomas Haia Martinus

Nijhoff 1961

MOUTSOPOULOS E La philosophie de la musique dans le systegraveme de Proclus Athegravenes

Acad De Athegravenes 2004

44

QUINTILIANO Ariacutestides Sobre la muacutesica Introduccioacuten traduccioacuten y notas de Luis

Colomber y Begontildea Gil Madrid Editoral Gredos 1996

______________________ On Music in three books Translation introduction commentary

and annotations by Thomas J Mathiesen Yale University Press 1983

______________________ Aristidis Quintiliani de musica libri tres Reginald Pepys

Winnington-Ingram (ed) Lipsiae Teubner 1963

REINACH Theacuteodore A muacutesica grega Satildeo Paulo Perspectiva 2011

ROCHA R A Sobre a muacutesica In SOARES Carmen ROCHA Roosevelt Plutarco obras

morais Coimbra Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos 2010 p63-237

ROUGIER Louis A religiatildeo astral dos pitagoacutericos Trad De Aydano Arruda Satildeo Paulo

Ibrasa 1990

WEST M L Ancient greek music New York Oxford University Press 1994

Page 41: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

41

o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio

que haacute entre eles

De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute

saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois

ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que

significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do

animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de

atribuiccedilatildeo intriacutenseca

Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en

gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il

srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme

attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes

auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou

drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la

qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la

quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles

parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement

lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute

possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation

drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par

elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles

nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles

mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles

du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance

individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont

des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la

substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et

par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie

drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique

que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination

de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les

unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation

agrave lrsquoecirctre26

(grifo nosso)

26

Borella 2012 p 35-36

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4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

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_____________ Oacuterganon Categorias Da interpretaccedilatildeo Analiacuteticos Anteriores Analiacuteticos

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portuguecircs 2003 190f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras) ndash Universidade Federal do Paranaacute

Paranaacute 2003

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44

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Colomber y Begontildea Gil Madrid Editoral Gredos 1996

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and annotations by Thomas J Mathiesen Yale University Press 1983

______________________ Aristidis Quintiliani de musica libri tres Reginald Pepys

Winnington-Ingram (ed) Lipsiae Teubner 1963

REINACH Theacuteodore A muacutesica grega Satildeo Paulo Perspectiva 2011

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morais Coimbra Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos 2010 p63-237

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Ibrasa 1990

WEST M L Ancient greek music New York Oxford University Press 1994

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4 Agrave guisa de conclusatildeo

Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a

categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os

analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui

participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a

multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob

a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao

feminino

Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve

participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua

participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo

Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua

eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o

acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo

Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi

preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla

philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave

filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim

exatamente onde termina a primeira

43

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Berliner Satildeo Paulo Martins Fontes 2010

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43

BIBLIOGRAFIA

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[19--]

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Posteriores Toacutepicos Refutaccedilotildees sofiacutesticas Trad e notas de Edson Bini Bauru SP Edipro

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BORELLA Jean Penser lrsquoanalogie Paris LrsquoHarmattan 2012

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Berliner Satildeo Paulo Martins Fontes 2010

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CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-kagathiacutea

Classica (Brasil) 2412 73-85 2011

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Ibrasa 1990

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Page 44: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Fernando Luís Barreto de …§ões... · estreita relação entre reflexão filosófica e teoria musical na Grécia Antiga. Neste trabalho, busco

44

QUINTILIANO Ariacutestides Sobre la muacutesica Introduccioacuten traduccioacuten y notas de Luis

Colomber y Begontildea Gil Madrid Editoral Gredos 1996

______________________ On Music in three books Translation introduction commentary

and annotations by Thomas J Mathiesen Yale University Press 1983

______________________ Aristidis Quintiliani de musica libri tres Reginald Pepys

Winnington-Ingram (ed) Lipsiae Teubner 1963

REINACH Theacuteodore A muacutesica grega Satildeo Paulo Perspectiva 2011

ROCHA R A Sobre a muacutesica In SOARES Carmen ROCHA Roosevelt Plutarco obras

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ROUGIER Louis A religiatildeo astral dos pitagoacutericos Trad De Aydano Arruda Satildeo Paulo

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